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Marcia Guerra1
A única história cria estereótipos. E o problema com estereótipos não é que eles sejam
mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única história. (...)
Histórias tem sido usadas para expropriar e tornar maligno. Mas histórias podem também ser usadas
para capacitar e humanizar. Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também
podem reparar essa dignidade perdida2.
1
Historiadora, professora do IFRJ e do Mestrado Profissional em História/UERJ, tendo
como objeto principal de pesquisa o Ensino de História da África e suas relações com os
movimentos sociais. marcia.pereira@ifrj.edu.br
2
Chimamanda Adichie em Os perigos da História Única. 2009. Disponível em
https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story/transcript?lan
guage=pt-br
2
Mas as referências não se limitavam a uma África mediterrânea ou do Norte, ainda que
para as regiões ao Sul do Saara houvesse maior dificuldade na obtenção de dados. Heródoto
de Helicarnaso (século V a.c) e Cláudio Ptolomeu (século II), escreveram sobre a África, que
designavam de Etiópia e os etíopes, isto é, a população Africana. Historiadores ou
intelectuais árabes como Al-Mas’udi e Ibn Hawkal (século X), Al Bakiri (século XI), Al-Idrisi
(século XII), Yakult (século XIII), Ibn Batuta (século XIV), Ibn Khaldun (séculos XIV-XV),
Al- Hasan, conhecido por Leão Africano (séculos XV-XVI), Mahmud Kati (século XVI) e Es
Saadi (século XVII) também não ignoraram as articulações e características daqueles por eles
chamados povos do Sudão (FAGE, 2010:54). Mas, como bem sabemos, esses conhecimentos
permaneceram ignorados, ou quase, pela historiografia até bem longe no século XX. E
continuam a manter considerável distância das salas de aula da educação básica ou das
graduações em humanidades. Quando de sua formação, os professores de História
praticamente ignoraram esses conhecimentos.
3
Em Olduvai, na Tanzânia, os antropólogos Mary e Louis Leakey encontraram, em 1959,
o crânio fossilizado do Zinjanthropus boisei. Exames revelaram que o crânio era mais de um
milhão de anos mais velho do que o mais antigo fóssil encontrado até então. Na mesma região
eles acharam, na década seguinte, ossos e utensílios do Homo habilis, o primeiro hominídeo
na cadeia evolutiva a produzir instrumentos de pedra. Cf. também: Richard Leakey. A origem
da espécie Humana. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
Leia mais sobre esse assunto em http://acervo.oglobo.globo.com/fatos-
historicos/antropologos-confirmam-que-ser-humano-surgiu-na-africa-
10053408#ixzz4YJFvLjhC
© 2017.
3
Esses estudos árabes foram sendo acrescidos, nos séculos seguintes, de uma produção
intensa sobre o continente africano. Aventureiros, missionários e conquistadores buscavam
entender e descrever o que viam para viabilizar o domínio sobre a região. Um conhecimento
colonial se desenvolveu e subalternizou a África e os africanos, mas efetivamente o fez a
partir de dados e informações que selecionavam sobre a região. O trabalho do inglês Richard
Burton é um exemplo dessa produção. Parte da vida desse aventureiro hábil nos disfarces e
no domínio de idiomas foi passada buscando descobrir as nascentes do Rio Nilo e, ao mesmo
tempo, mapear o coração da África, para a Royal Geographical Society. Ele escreveu
inúmeros relatórios (foi cônsul britânico também), artigos e livros sobre a África Ocidental,
mesmo não tendo tido sucesso em alcançar as cabeceiras do mais extenso rio do mundo. Tal
produção, que tinha um público amplo já na época, circulou e circula para além do campo
exclusivo dos seus destinatários. Sobre ela nos diz Gebara:
Mas, nas últimas muitas décadas, elas também não estiveram presentes em nossas escolas e
universidades.
4
Alexsander Gebara, 2006, p. 21
5
Alberto da Costa e Silva, 2011, p. 238.
4
trocas se desenvolviam no interior do império português) através do que já foi descrito como
um rio chamado Atlântico. Não é preciso reiterar a ausência desse debate nos ambientes
escolares e acadêmicos ao longo de quase todo o século XX.
O impacto desse processo foi grande no Brasil. A África e suas lutas contra os gigantes
colonizadores permitia antever um futuro positivo também para o Brasil. Seria possível
superar o então designado “atraso” que havíamos herdado da colonização. Professores,
estudantes e intelectuais buscavam dialogar com esses muitos acontecimentos que vimos
descrevendo. O editorial do Boletim de História da Faculdade Nacional de Filosofia, saído em
1963, reivindica o lugar privilegiado ocupado por África para se entender o que é/era o Brasil
contemporâneo bem comoa especificidade da sensibilidade dos brasileiros, fruto do seu
passado e do seu presente, nos estudos sobre o continente que se rebelava:
6
A trajetória de elaboração e publicação da coleção História Geral da África foi objeto de
estudos do pesquisador brasileiro Muryatan Barbosa. Podemos observar em seu trabalho a
originalidade e a importância teórica das opções metodológicas que orientaram sua escrita,
bem como o significado político conferido ao projeto naquele momento. Cf. M.S. Barbosa. A
construção da perspectiva africana: uma história do projeto História Geral da África (Unesco),
in Rev. Bras. Hist. São Paulo, v. 32, nº 64, p. 211-230 - 2012
5
Foram criados centro de estudos e vieram a luz obras muitas análises dos acontecimentos,
algumas seminais, como Brasil e África: outro horizonte, livro do historiador José Honório
Rodrigues lançado em 1961. Porém, os episódios políticos derivados do Golpe de 1964, em
particular sua violenta ação na educação brasileira, contribuíram para que a percepção do
passado comum a unir brasileiros e africanos permanecesse à margem da preocupação dos
investigadores e professores nacionais.
Como já foi possível concluir, a África sempre esteve ali. Assim como os estudos e os
estudiosos de sua história. Assim como essa história, esses estudos e esses estudiosos
permaneciam ignorados (ou quase) pelos intelectuais e pelos sistemas de ensino no Brasil. A
pergunta primeira que devemos nos fazer é a de como explicar essa invisibilidade ou, em um
neologismo, essa invisibilização (ato voluntário de tornar invisível)?
7
A recepção das independências africanas pela academia brasileira foi estudada por mim
e os resultados da pesquisa foram parcialmente publicados em minha tese de doutoramento:
História da África, uma disciplina em construção.
8
A composição, de autoria de Paulinho Camafeu, foi cantada pelo bloco baiano no seu
carnaval de estreia, em 1975. O Ilê Ayê é considerado o primeiro bloco a reivindicar
formalmente a herança africana na sua constituição. A letra da canção “Que bloco é esse?” diz
6
entre as duas margens do rio Atlântico, levando a que todos vissem que “Vem a Lua de
Luanda/Para iluminar a rua /Nossa sede é nossa sede/e que o "apartheid" se destrua” 9
diferentes frentes de luta foram abertas, reafirmando a importância de se romper com a
perspectiva de uma única história – que celebra os sucessos da modernidade europeia e
condena ao ostracismo todas as trajetórias que lhe são distintas, rejeitando-as. Ainda em 1988,
como resultado das pressões do Movimento Negro, e da Frente de Parlamentares Negros, a
Constituição brasileira assegura o reconhecimento de que o Brasil é uma nação etnicamente
plural e que o ensino da História do Brasil deverá levar em conta as contribuições das
distintas culturas e etnias para a formação do povo brasileiro.
Que bloco é esse?/Eu quero saber/É o mundo negro/Que viemos cantar pra vocês/Somos
criolo doido/Somos bem legal/Somos cabelo duro/Somos Black pau/Branco/Se você soubesse
o valor que o preto tem/Tu tomava banho de piche/E ficava negro também. Disponível em
http://ile-aiye.lyrics.com.br/letras/285914/
9
Martinho da Vila, Quizomba a festa da raça, samba enredo da GRES Unidos de Vila
Isabel, 1988. Vencedora do Carnaval carioca do mesmo ano. Disponível em
https://www.letras.mus.br/martinho-da-vila/287389/
7
(...)
10
Um resultado fundamental da marcha foi a constituição de um Grupo de Trabalho
interdisciplinar no âmbito do governo federal
(http://www.leliagonzalez.org.br/material/Marcha_Zumbi_1995_divulgacaoUNEGRO-
RS.pdf)
8
Esta estratégia vem orientando a atuação das lideranças do Movimento Negro desde
então. Mas é interessante observar que a questão referente a um conteúdo específico para a
educação étnico-racial e de História e de Cultura afro-brasileira e da África não estava
presente entre as reivindicações. Já era, entretanto, negociada diretamente com diferentes
prefeituras e governos estaduais onde os movimentos negros se apresentavam com força
política. Foi o caso da Bahia, onde foi instituído na Constituição do Estado, promulgada em
05 de outubro de 1989, que;
...
...
11
Idem.
9
Três anos mais tarde, em 17 de janeiro de 1994, no município de Belém, a Lei n.º
7.68514, também preconizava a inclusão, no currículo das escolas da rede municipal de ensino,
na disciplina de História, do conteúdo relativo ao estudo da Raça Negra na formação
sociocultural brasileira. E, em termos muito semelhantes aos de Porto Alegre, exigia que
fossem abordadas as condições coevas da produção cultural de origem afro-brasileira.
Em janeiro de 1996, foi a vez do município de São Paulo quebrar resistências e aderir
à educação antirracista, através da obrigatoriedade de incluir em seus currículos “estudos
contra a discriminação racial” (Lei n.º 11.973). Ainda em 1996, em Brasília, o então
governador Cristovam Buarque sancionou a polêmica Lei nº 1.187, que dispunha sobre a
introdução do “estudo da raça negra” como conteúdo programático dos currículos do sistema
de ensino do Distrito Federal.
Mas, mesmo assim, a Lei de Diretrizes e Bases para a Educação aprovada em 1996
não incluiu a proposição do Movimento Negro, apresentada pela Senadora Benedita da Silva,
de reformulação do ensino de história do Brasil e a previsão de obrigatoriedade em todos os
níveis educacionais para a ‘História das populações negras do Brasil’.
15
Lei n.º 2.251, de 31 de março de 1995 do município de Aracaju, estado de Sergipe apud
SILVA JUNIOR, 1998: 295-296
11
O conteúdo pretendido pelo Movimento Negro foi, assim, fagocitado e tornado uma
reafirmação da concepção de povo brasileiro formado com auxílio das diferentes etnias e
culturas, reiterando o mito das três raças, “que juntas formaram um só povo brasileiro”. Em
uma entrevista concedida posteriormente, Ubiratan Aguiar16, Coordenador da Comissão que
elaborou a proposta de texto para a Educação, reiterou sua posição – que foi também a da
maioria da Câmara:
Por isso se há um modelo de educação nacional, ele deveria ser retangular, quem
ingressa deveria ter a oportunidade de sair, e aí estão incluídas as minorias e a grande
maioria dos que não têm. (...). Nós nascemos de um caldeamento de raças, quem é
que não tem no sangue um pouco de português, de africano, de indígena, nós somos
o produto do caldeamento dessas raças, uns estão mais presentes na pigmentação da
pele. Sobre o movimento negro, olhe, eu sei que houve algumas manifestações, mas
não propriamente na área educacional, considerando essa questão lembro-me do
problema da educação indígena, esse eu lembro que houve uma presença muito
forte17.
16
Coordenador da comissão suprapartidária que elaborou a proposta de texto para a
educação, na Comissão de Sistematização da Constituinte, depois foi presidente da Comissão
de Educação e Cultura. Coordenador da discussão da LDB na Câmara dos Deputados.
17
A entrevista, concedida em 2004, foi publicada por Tatiane Rodrigues em seu artigo
Embates e contribuições do movimento negro à política educacional nas décadas de 1980 e
1990.
18
São exemplos: o Programa de Ação Afirmativa do Instituto Rio Branco e o Programa
Nacional de Ação Afirmativa, assinado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, em
2002.
12
afirmasse uma história positivada dos negros é tornada posição do Estado brasileiro. Isso se
dá com a promulgação da lei nº 10.639/03, cuja origem foi o projeto de lei nº 259 de 1999,
apresentado por Esther Grossi e Benhur Ferreira.
O parecer da professora Petronilha Beatriz Silva, relatora do Conselho Nacional de
Educação – CNE – orientando a aplicação das diretrizes para a educação, corrobora essa
visão:
Todos estes dispositivos legais, bem como reivindicações e propostas do
Movimento Negro ao longo do século XX, apontam para a necessidade de diretrizes
que orientem a formulação de projetos empenhados na valorização da história e
cultura dos afro-brasileiros e dos africanos, assim como comprometidos com a de
educação de relações étnico-raciais positivas, a que tais conteúdos devem conduzir
(CNE/CP 3/2004, p. 9).
19
Assim está contido no §2º, do artigo 3 Resolução 1/2004 do CNE/CP. Diário Oficial da
União, Brasília, 22 de junho de 2004, Seção 1, p. 11: § 3° O ensino sistemático de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica, nos termos da Lei 10639/2003,
refere-se, em especial, aos componentes curriculares de Educação Artística, Literatura e
História do Brasil.
20
É preciso lembrar que a resistência à Lei, que em geral é expressa com os mesmos
argumentos da Comissão de Educação de 1988, existiu e a legislação só passou a ser
efetivamente cumprida, em muitos casos, quando os sistemas educacionais passaram a ser
acionados juridicamente.
13
21
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. CNE/CP Parecer 03/2004. P. 12
disponível em http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/003.pdf
14
2007 – 2012 37
2002 – 2006 11
1997 – 2001 3
1991 – 1996 9
1986 – 1990 2
Total 62
Por outro lado, cresceu o número daqueles que, para além do reconhecimento dos
estreitos vínculos que unem Brasil e África, em particular a sua porção atlântica, consideram
ser a história africana relevante em si própria. Concordando com o Embaixador Costa e Silva,
quando este afirmou que
22
SILVA, Alberto da Costa e. Os estudos de história da África e sua importância para o
Brasil.
16
com ela articulações substantivas. Temas como a Etnicidade e luta de classes na África
contemporânea: Ruanda (1959-1994), Aspectos do islamismo da Guiné, a África do Sul e o
apartheid ou a África e a política no cinema contemporâneo são exemplos dessas fronteiras
expandidas.
africana no Brasil.
Tal escolha está claramente definida nos objetivos a serem alcançados com o curso, em
nenhum momento tendo parecido necessário aos seus proponentes acrescentar alguma
explicação quanto à opção de abordagem no corpo do programa, o que não significa que ela
não venha a ser feita em sala de aula. O objetivo de “apresentar um panorama geral da
História africana, dando particular ênfase à instituição do tráfico atlântico de escravos e suas
consequências, a partir do século XVI” expressa com clareza a pretensão dos professores que
optam por dar este tratamento à história da África.
A abordagem panorâmica, que à primeira vista poderia vir a se confundir com aquela
centrada na escravidão, tem por objetivo explicito tratar as principais questões que se
apresentam no debate historiográfico sobre a África moderna e contemporânea e, embora isto
não seja explicitado nos objetivos ou no conteúdo programático, também se volta para o
estudo da África subsaariana, em particular sua porção centro ocidental, aí incluídos Angola e
Moçambique – é o que transparece nas indicações bibliográficas que praticamente ignoram o
norte do continente, assim como a África mais ao sul...
Nos programas incluídos nesta categoria a história da África inicia-se com a presença
do Islã, e a delimitação das unidades acompanha a da historiografia europeia sobre África:
escravidão, colonialismo e independência. Todos os cursos têm início com uma discussão
conceitual e historiográfica que pode ser mais ou menos abrangente, mas nas quais se discute
a ideia de África, as fontes para o seu estudo e as possibilidades que o mesmo descortina.
Como reflete Chimamanda Adichie, como poderiam ter sido as relações entre ela,
uma jovem negra nigeriana estudando nos Estados Unidos, e sua colega de quarto
..., e se minha colega de quarto soubesse de minha amiga Fumi Onda, uma
mulher destemida que apresenta um show de TV em Lagos, e que está determinada a
contar as histórias que nós preferimos esquecer? E se minha colega de quarto
soubesse sobre a cirurgia cardíaca que foi realizada no hospital de Lagos na semana
passada? E se minha colega de quarto soubesse sobre a música nigeriana
contemporânea? Pessoas talentosas cantando em inglês e Pidgin, e Igbo e Yoruba e
Ijo, misturando influências de Jay-Z a Fela, de Bob Marley a seus avós. E se minha
colega de quarto soubesse sobre a advogada que recentemente foi ao tribunal na
Nigéria para desafiar uma lei ridícula que exigia que as mulheres tivessem o
consentimento de seus maridos antes de renovarem seus passaportes? E se minha
colega de quarto soubesse sobre Nollywood, cheia de pessoas inovadoras fazendo
filmes apesar de grandes questões técnicas? Filmes tão populares que são realmente
os melhores exemplos de que nigerianos consomem o que produzem. E se minha
colega de quarto soubesse da minha maravilhosamente ambiciosa trançadora de
cabelos, que acabou de começar seu próprio negócio de vendas de extensões de
cabelos? Ou sobre os milhões de outros nigerianos que começam negócios e às vezes
fracassam, mas continuam a fomentar ambição?
Referências:
COSTA e SILVA, Alberto da. A história da África e sua importância para o Brasil. In _____.
Um rio chamado Atlântico. A África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2011
_____. Os estudos de História da África e sua importância para o Brasil. In: A dimensão
atlântica da África. II Reunião Internacional de História da África. Rio de Janeiro, CEA-
USP/SDG-Marinha/CAPES, 1996
SILVA JR, José Afonso. Uma trajetória em redes: modelos e características operacionais
das agências de notícias. Das origens às redes digitais: com estudo de caso de três agências de
notícias. Tese (Doutorado em Comunicação) – Faculdade de Comunicação, Universidade
Federal da Bahia, Salvador. 2006.