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Maria Helena da Silva Gil da Costa

O MEDO E O DESENVOLVIMENTO HUMANO


Uma proposta de Educação de Adultos desde a inter-relação
Criatividade e Motricidade Humana para uma vida “serena, útil e corajosa”

Dissertação de Doutoramento
Área Científica – Educação

Orientadora – Professora Doutora Eugenia Trigo

UNIVERSIDADE DE TRÁS-OS-MONTES E ALTO DOURO


Vila Real, 2008
Este trabalho foi expressamente elaborado com
vista à obtenção do grau de Doutor em Educação
de acordo com o Decreto-Lei nº 388/70, de 18 de
Agosto.
À Mãe e ao Pai
Agradecimentos

E agora, no final, é tempo de agradecer e de dar graças – não só por todas as


vezes em que pedi e me foi dado, em que procurei e achei, ou em que bati e me foi
aberto. Agora, no final, é também tempo de agradecer e de dar graças por todas as
vezes em que me foi dado, mesmo sem ter pedido; em que achei, sem ter procurado;
em que me foi aberto, sem ter batido.
À Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, por ter acolhido este meu
projecto. E porque são as pessoas que fazem as instituições, aos Coordenadores do
Departamento de Educação e Psicologia, Professor Doutor José João Pinhanços de
Bianchi e Professora Doutora Maria da Conceição Azevedo, e a tantos dos
Professores e Colaboradores deste Departamento e da Universidade que, em muitas
ocasiões, formais ou informais, sempre me fizeram sentir de dentro, mesmo sendo de
fora.
À Professora Eugenia Trigo, Orientadora desta tese – pelo seu rigor científico
e busca incessante de coerência, pela sua capacidade de me fazer conciliar e olhar a
tese e a vida numa perspectiva que eu não sabia ser possível, pelo seu
acompanhamento permanente, pela sua persistência em descobrir novas formas de
fazer tutoria que transformaram em proximidade os milhares de quilómetros que
nos separavam.
Aos Professores Maria da Conceição Azevedo e Luis Guillermo Jaramillo que,
em diferentes etapas do projecto e com diferentes papéis, mas num mesmo
sentimento de amizade e num mesmo espírito de exigência, acompanharam os meus
trabalhos e, com os desafios que me colocaram, me fizeram crescer como
investigadora e como pessoa.
Ao grupo e a cada uma das pessoas do grupo de pesquisa colaborativa – à
Conceição Barbosa da Cunha, à Maria da Conceição Azevedo, à Joana Cunha e
Costa, à Mariana Salvador, ao André Vela, ao Ricardo Mota Leite, ao Rui Pedro
Pereira, ao Vítor Briga. Pelo seu sim e pela sua amizade. Pela sua disponibilidade
para se deixarem ser parte da pesquisa, pelo seu empenho na qualidade dos
resultados, pela coragem de falarem das suas emoções e dos seus sentimentos, pela
alegria que em tudo isso puseram. Sem eles o trabalho não teria sido possível. Com
eles – nas palavras, nos gestos e no silêncio –, vivi momentos mágicos de relação e
comunhão.
À Universidade del Cauca, em Popayán, na Colômbia, nas pessoas dos
Professores Magnólia Aristizábal e Pedro Yanza, por tão generosamente me terem
acolhido e permitido estar presente, não só em diversos dos seus encontros e
seminários da “Tercera Promoción do Doctorado en Ciencias de la Educación”, que
foram decisivos na minha formação como investigadora, mas por também me terem
permitido a experiência de me sentir parte de um dos seus grupos de estudantes.
Com o Francisco Bohórquez, o Mario Loaiza, a Nubia Agudelo, o Luis Felipe
Contecha, o Miguel Corchuelo e o Juan Martin Velasco comecei a descobrir a
sabedoria e a generosidade da alma colombiana e que às vezes é preciso aprender a
receber sem nada dar em troca.
Ao Professor Scott Isaksen, Presidente do Creative Problem Solving Group,
Inc., em Buffalo, nos Estados Unidos, que, na riqueza científica e humana da sua
equipa de Colaboradores e Associados (especialmente o Professor Don Treffinger,
Brian Dorval, Ken Lauer e Jess Bergeron), não só me ajudaram agora na aplicação
do VIEW e do Situational Outlook Questionnaire, como, ao longo dos anos, me têm
ajudado a compreender e descobrir formas de potenciar a nossa capacidade criadora.
Aos Professores Manuel Sérgio e Clara Costa Oliveira de quem, muito mais
do que a validação das categorias de análise construídas, recebi importantes
conselhos e incentivos.
Ao Patronato de Santa Teresinha da Paróquia do Santíssimo Sacramento no
Porto, muito especialmente ao Senhor Padre José Soares Jorge e ao Senhor João
Sousa, por me terem disponibilizado os seus espaços para a realização dos diversos
encontros do grupo de Pesquisa Colaborativa.
À Universidade Católica, especialmente aos Professores Jorge Cunha e José
Carlos Carvalho e ao Senhor Vítor Ventura que (muito para lá da cedência de uma
sala de projecção para uma das sessões do grupo), com muita paciência estiveram
disponíveis para encontrar os horários que melhor pudessem conjugar as minhas
necessidades de trabalhar e de fazer a tese.
À Guida e à Catarina pelo cuidado e carinho imenso que puseram na
transcrição de tantas horas de gravação das sessões de trabalho de campo. E depois
na recolha de textos, na revisão das minhas traduções, na impressão da tese, e etc.
etc. etc.
À Senhora D. Teresa Azevedo, e com muita saudade, pela sua amizade e
capacidade de acolhimento, por todas as vezes que me recebeu na sua casa, por todas
as vezes que se dispôs a vir à minha, por todas as vezes que organizou a sua vida
pelas necessidades da minha tese, por todas as vezes que me alegrou a “alma” com os
seus doces e coisas boas.
Ao Richard que me ouviu, e ouviu e ouviu.
À Guida, ao Zé, à Inês, à Mariana, à Catarina e ao Gonçalo, porque são a
minha casa e durante sete anos não se cansaram de perguntar “quando é que
acaba?”. À Mãe e ao Pai, junto de quem vejo o que é uma vida e um amor “sereno,
útil e corajoso” – porque sempre acreditam, porque sempre estão.
Resumo

Palavras-
Palavras-chave: medo, desenvolvimento humano, educação de adultos,
criatividade, motricidade humana, ecologia de saberes.

O medo, estado psicológico e mecanismo natural, está inscrito de forma indelével no


mais profundo do nosso ser, mas, por força da aprendizagem e da cultura, pode
sofrer alterações nas suas formas de expressão e no seu significado. Quando
saudável, pode ser uma chamada para a acção, mas, quando se torna crónico, mesmo
que não patológico, afecta a nossa capacidade de desenvolvimento e crescimento
pessoal, a nossa relação com os outros e a nossa relação com o mundo.

Tendo como base esta preocupação e, como pressupostos, que o homem é um todo, a
realidade é múltipla e complexa e a subjectividade é característica essencial do
comportamento humano, esta tese assume e incorpora a necessidade de encarar a
pesquisa nas ciências sociais e humanas com um acto criador. Assim, e enquanto
Investigação Qualitativa que, em determinadas fases do processo, recorre à Pesquisa
Colaborativa, pode ser sumariamente explicada a partir da interacção sistémica das
quatro dimensões (os 4 P’s) da Criatividade.

O Produto, a tese – com o propósito de chegar a um conjunto de princípios educativos


para lidar com o medo que possam ser aplicados em contexto de Educação de
Adultos, esta tese incorpora: um conceito multidimensional de
desenvolvimento humano; a noção de que os discursos são encarnados e que o
investigador influi na construção do objecto do conhecimento; diferentes
cosmovisões e diferentes linguagens.

A Pessoa, o investigador – para a criação de um produto com as características


enunciadas, foi necessário que o investigador (singular ou colectivo, consoante
as fases do processo), se dispusesse a conciliar a dualidade dos papéis de
investigador e de investigado e, mais do que simples operador, mas como
sujeito reflexivo, procurasse transformar o conhecimento em consciência.

A Pressão, a natureza do contexto da pesquisa – num clima que se procurou que


fosse matizado por um conhecimento vivido, uma atitude de habitar a
pergunta e uma vontade de jogar a inventar modelos.

O Processo, as operações realizadas – com correspondência entre as diferentes


etapas e fases do processo da pesquisa e as componentes, estádios e fases do
Processo de Resolução Criativa de Problemas, o processo de investigação foi
percorrido em três diferentes caminhos: o caminho da reflexão e compreensão
dos problemas e desafios encontrados; o caminho da execução e produção de
resultados parciais e globais; o caminho da avaliação de todo o processo e que,
como tal, encerra, mas também reabre para um outro ciclo da pesquisa.
Resumen
Palabras-
Palabras-clave: miedo, desarrollo humano, educación de adultos, creatividad,
motricidad humana, ecología de saberes.

El miedo, estado psicológico y mecanismo natural, está inscrito de forma indeleble en


lo más profundo de nuestro ser, pero, por medio del aprendizaje y de la cultura,
puede sufrir alteraciones en sus formas de expresión y en su significado. Cuando es
saludable, puede ser una llamada para la acción, mas, cuando se vuelve crónico,
aunque no patológico, afecta a nuestra capacidad de desarrollo y crecimiento
personal, a nuestra relación con los otros y a nuestra relación con el mundo.

Teniendo, como base, esta preocupación y, como presupuestos, que el hombre es un


todo, la realidad es múltiple y compleja y la subjetividad es característica esencial
del comportamiento humano, esta tesis asume e incorpora la necesidad de encarar la
investigación en las ciencias sociales y humanas como un acto creador. Así, y
mientras la Investigación Cualitativa, que, en determinadas fases del proceso,
recorre a la Investigación Colaborativa, puede ser sumamente explicada a partir de
la interacción sistémica de las cuatro dimensiones (los 4 P´s) de la Creatividad.

El Producto, la tesis – como el propósito de llegar a un conjunto de procedimientos y


principios educativos para lidiar con el miedo que puedan ser aplicadas en
contexto de educación de adultos; esta tesis incorpora: un concepto
multidimensional de desarrollo humano; la noción que los discursos son
encarados y que el investigador influye en la construcción del objeto de
conocimiento; diferentes cosmovisiones y diferentes lenguajes.

La Persona, el investigador – para la creación de un producto con las características


enunciadas, fue necesario que el investigador (singular o colectivo,
consonante con las fases del proceso), se dispusiera a conciliar la dualidad de
los papeles de investigador y de investigación y, más que simple operador,
sino como sujeto reflexivo, procurase transformar el conocimiento en
conciencia.

La Presión, la naturaleza del contexto de la investigación – en un clima en que se


intentó que fuera matizado por un conocimiento vivido, una actitud de
habitar la pregunta y una voluntad de jugar a inventar modelos.

El Proceso, las operaciones realizadas – en correspondencia entre las diferentes


etapas y fases del proceso de la investigación y los componentes, estadios y
fases del Proceso de Resolución Creativa de Problemas, el proceso de
investigación fue recorrido en tres diferentes caminos: el camino de la
reflexión y comprensión de los problemas y desafíos encontrados; el camino de
la ejecución y producción de resultados parciales y globales; el camino de la
evaluación de todo el proceso y que, como tal, cierra, mas también re-abre
para otro ciclo de investigación.
Summary

Key Words:
Words fear, human development, adult education, creativity, human
motricity, “wisdoms” ecology.

Fear – a psychological state of mind and a natural mechanism – is registered in


ourselves in a permanent way. However, owing to learning and cultural differences,
it may undergo changes in its meaning and in the way it is expressed. If healthy, it
may be a call to action, but when it becomes chronic, although not yet pathological,
it can affect our capacity for both development and personal growth, as well as our
relationships with others and how we relate to the world.

With this in mind, and assuming that (1) man is a single entity, that (2) reality is
both multiple and complex and that (3) subjectivity is an essential feature of human
behaviour, then this thesis assumes and incorporates the need to view social and
human scientific research as an act of creation. Therefore, as Qualitative
Investigation (which, at some stages, uses Collaborative Research) it can be
explained by systemic interaction of the 4 dimensions of Creativity (the 4 P’s)
summarised as follows.

The Product, the thesis – aims to set out a number of procedures and educational
principles for dealing with fear to use in an adult education context. It
combines: different perspectives and visions of the universe and different
languages; a multidimensional concept of human development; the idea that
language is embodied in the person and that the researcher influences the
construction of the object of knowledge.

The Person, the researcher – given the purpose of creating a product with the above-
mentioned characteristics, it was necessary that the researcher (as
individual, or as a group, depending on the stages of the process) was able (1)
to conciliate the role of researcher with the role of object of research, (2) to be
not only an operator, but a reflexive subject who tries to transform knowledge
into consciousness.

The Pressure, or the nature of the research context – a climate which was intended
to be of living knowledge; with an attitude of “inhabiting the question”, and a
will to create its own research design.

The Process, the operations performed – links the different stages and phases of the
research process with the different components, stages and phases of the
Creative Problem Solving process. Consequently, the research process was
done in three different paths: the path of problem and challenging
understanding; the path of partial and global results production; the path of
process assessment which, simultaneously closes and reopens into a new
cycle of investigation.
Índice

Índice de Ilustrações iv
Índice de Quadros vii
Índice de Tabelas viii
Índice de Mapas Mentais ix
Índice de Gráficos ix
Índice de Anexos ix

I. PROCESSO DA PESQUISA

Introdução 3
1. Fundamento Epistémico da Tese 4
1.1 Na procura dos que constroem um saber encarnado e comprometido com o
mundo 5
1.2 Implicações para a pesquisa 8
2. O Tema 15
2.1. Os caminhos que foram dar ao medo 15
2.2. O problema 20
3. A Pesquisa 23
3.1 Caminhos, fases, actores e enquadramento da pesquisa 24
3.2 Propósito e perguntas de investigação 28
3.3 Categorias de análise 34
4. Organização da Tese 37

Capítulo 1 – Roteiro 43
1. Criação do desenho da investigação 49
1.1 Os desafios do desenho da Complementaridade e do processo de
Pesquisa Colaborativa no contexto metodológico da Investigação
Qualitativa 49
1.2 Modalidades da investigação 53
1.3 Critérios de credibilidade 54
2. Itinerário e crónicas do caminho 55
2.1 Cronograma 57
2.2 Descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas 59
2.2.1 Etapa 0 – por outros caminhos 61
2.2.2 Etapa 1 – na procura de caminhos 63
2.2.3 Etapa 2 – caminhando 72
2.2.4 Etapa 3 – achando luzes 90

i
2.2.5 Etapa 4 – novos caminhos 97
2.2.6 Correspondência entre processo criativo, processo da pesquisa e
relatório da pesquisa 99
2.3 Processo de orientação da tese 101
2.4 Processamento de dados 106
2.4.1 Mapa mental das categorias de análise 109
2.5 Aspectos éticos 113

II. CENTRAR

Capítulo 2 – Descobrir os próprios caminhos 119


1. Eu Pessoa – Já alguma vez? 123
2. Eu Educadora – Memórias 134

Capítulo 3 – Descobrir caminhos de outros 143


1. O Medo 146
1.1 Omnipresença do medo 146
1.2 Vivendo com medo 174
1.3 Síntese do medo 198
2. O Desenvolvimento Humano 203
2.1 A inquietação do Ser 203
2.2 Contornos do desenvolvimento humano 214
2.3 Síntese do desenvolvimento humano 235
3. Campo de Criação 237
3.1 Educação de Adultos 238
3.2 Criatividade 243
3.3 Motricidade Humana 247
3.4 Inter-relação de conceitos 253
4. Educação Criativo-Motrícia 256
3.1 Enfrentando o medo 257
3.2 ConVIVENDO com o medo 277

III. AGIR

Capítulo 4 – Criar o caminho 285


1. Quem (somos os que fizemos parte da Pesquisa Colaborativa e constituímos
o universo de estudo sobre o qual recai esta investigação)? 289
1.1 As pessoas 290
1.2 O grupo 302
1.3 Conjugando os dados e descobrindo implicações 317
1.4 Quem – excerto do mapa mental das categorias de análise 331

ii
2. O que (faz com que uma vida seja serena, útil e corajosa)? 333
2.1 O disfarce do medo 333
2.2 Definição e caracterização do medo 337
2.3 Relação de medos e efeitos do medo 345
2.4 Síntese do “o quê” 353
2.5 O quê – excerto do mapa mental das categorias de análise 355
3. Como (pode o educador lidar com o seu medo e, por isso, ajudar as pessoas
a enfrentarem os seus medos e a terem uma vida serena, útil e corajosa)? 354
3.1 A vivência da totalidade 354
3.2 Formas de (não) lidar com o medo 360
3.3 Brincando com números 363
3.4 O processo de lidar com o medo 368
3.5 Síntese do “como” 373
3.6 Como – excerto do mapa mental das categorias de análise 375
4. Por que (razão o educador só pode ajudar outros a enfrentarem os seus
medos e a terem uma vida serena, útil e corajosa, depois de ele próprio ter
entrado no processo de enfrentar os seus)? 377
4.1 Passagem de testemunho e contágio 377
4.2 As causas do medo 379
4.3 As causas do não medo como um dado insignificante muito significativo 386
4.4 O velho, o rapaz... e o medo 388
4.5 Conjugando e formulando uma resposta 392
4.6 Síntese do “por quê” 394
4.7 Por quê – excerto do mapa mental das categorias de análise 397
5. Para que (serve uma vida serena, útil e corajosa)? 399
5.1 Ser parte do Universo 400
5.2 O medo para o desenvolvimento humano 401
5.3 O medo para a conservação social 403
5.4 O papel do medo na construção do humano 404
5.5 Ligações e reflexões 405
5.6 Lendo uma resposta para a pergunta da pesquisa 411
5.7 Síntese do “para quê” 412
5.8 Para quê – excerto do mapa mental das categorias de análise 414

IV. CELEBRAR

O sentido do caminho 420


À maneira de conclusão 421
Proposta educativa 426

iii
Para abrir um novo caminho 436
Fechar o ciclo 437
Reabrir o ciclo 447

FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 453

ILUSTRAÇÕES
I.1 Imagem que, ao ouvir a sua conferência no IV Congresso Internacional
de Motricidade Humana, o Prof. Manuel Sérgio (me) sugeriu sobre a
nova forma de fazer ciência. 8
I.2 Inter-relação entre educação, ciência e desenvolvimento humano. 10
I.3 Da dicotomia à sinergia. 12
I.4 Caminhos. 15
I.5 Interligação entre conteúdo conceptual, processo de investigação e
campo de criação. 34
I.6 Encadeamento das fases da pesquisa. 60
I.7 Primeira tentativa de definição do projecto de investigação. 62
I.8 Segunda tentativa de definição do projecto de investigação. 63
I.9 Objectivos e resultados da primeira fase das histórias de vida / escrita
do eu. 65
I.10 Objectivos e resultados da segunda fase das histórias de vida / escrita
do eu. 66
I.11 Construção do referencial interno. 67
I.12 Processo de revisão bibliográfica. 69
I.13 Linhas de orientação para a construção do itinerário da pesquisa e
observação do trabalho de campo. 70
I.14 A pergunta como morada: caminho de construção. 71
I.15 Fotografias da sessão de relaxamento e construção das “caixas do
medo”. 76
I.16 Fotografias da partilha da memória descritiva da “caixa do medo”. 77
I.17 Fotografias da partilha da aplicação da técnica ORA ao filme visualizado
“A Vila”. 78
I.18 Fotografias da sessão de construção dos mapas mentais. 79
I.19 Fotografias do fim de semana no Gerês – caminhada nocturna e subida
à serra. 80
I.20 Fotografias da preparação e da sessão do labirinto. 80
I.21 Fotografias da sessão de apresentação e discussão dos mapas
mentais. 81
I.22 Fotografias do trabalho de construção de subcategorias. 91

iv
I.23 Construção de Sentido. 95
I.24 Fotografias de Orientadores e Orientanda. 103
I.25 Exemplo de um dos slides utilizados no primeiro encontro do grupo de
pesquisa colaborativa. 114
II.1 Os próprios caminhos. 123
II.2 Querem ouvir uma história? 134
II.3 Compilação de títulos de jornais que diariamente modelam o nosso
pensar e sentir. 146
II.4 Síntese de definições de medo. 172
II.5 A diversidade do medo. 178
II.6 A ligação entre o medo e a organização perceptual. 194
II.7 Do domínio do medo sobre a acção ao medo impulsionador da acção. 198
II.8 “Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. A partir de Boff, 1998
e de Ribeiro Dias, 2000. 204
II.9 A dinâmica do Ser na perspectiva do Yoga Sutra. Adaptação de
Esteves, 1999. 208
II.10 Higher Self e Ego. Reprodução, adaptação e tradução de Jeffers
(1991:193). 210
II.11 Síntese de “Todos os nomes do Ser”. 213
II.12 A desumanização nas histórias dos homens. 214
II.13 A desumanização nas histórias dos homens. 217
II.14 A desumanização nas histórias dos homens. 219
II.15 Modelo ecológico de Bronfenbrenner. Reprodução de Papalia et al.
(2001:14). 220
II.16 O círculo dos três caminhos. 226
II.17 Dinâmica do desenvolvimento humano. 236
II.18 Campo de criação – interligação das três dimensões. 237
II.19 Educação de Adultos: síntese do conceito. 240
II.20 Criatividade: síntese do conceito. 244
II.21 A abordagem sistémica da Criatividade. Tradução e reprodução de
Isaksen, 1994. © The Creative Problem Solving Group, Inc. – Used with
permission. 245
II.22 Motricidade Humana: síntese do conceito. 249
II.23 Relação entre os pilares da motricidade humana e as características do
acto motrício. 250
II.24 Dimensões da corporeidade. Reprodução de Trigo, E. (2006). 253
II.25 Inter-relação dos conceitos de Educação de Adultos, Criatividade,
Motricidade Humana e Desenvolvimento Humano. 254
II.26 O espaço dado ao Ser no processo de enfrentar o medo. 256
II.27 Dimensões da Educação Criativo-Motrícia. 258

v
II.28 A pessoa-corporeidade. Reprodução de Trigo, E. (imagens de
conferências públicas). 259
II.29 O contexto/pressão-interacção da pessoa consigo mesma, com os
outros, com o cosmos. Reprodução de Trigo, E. (imagens de
conferências públicas). 262
II.30 O processo-momentos da acção e da mudança. Reprodução de Trigo,
E. (imagens de conferências públicas). 265
II.31 O produto – consciência de si, consciência dos outros, consciência do
mundo. 276
III.1 Passos 1 e 2 – análise e triangulação de actores e momentos da
pesquisa. 387
III.2 Fotografias de sessões do grupo de pesquisa. 290
III.3 Fotografias de sessões do grupo de pesquisa. 291
III.4 Fotografias de sessões do grupo de pesquisa. 291
III.5 Fotografias de sessões do grupo de pesquisa. 291
III.6 Fotografias de um encontro do grupo, três meses depois das sessões. 292
III.7 Perspectiva sistémica da criatividade. © The Creative Problem Solving
Group, Inc. – Used with permission. 302
III.8 A importância do clima. © The Creative Problem Solving Group, Inc. –
Used with permission. 302
III.9 Implicações do estilo de criação. © The Creative Problem Solving
Group, Inc. – Used with permission. 310
III.10 Influências no comportamento criativo. © The Creative Problem Solving
Group, Inc. – Used with permission. 310
III.11 Perspectiva sistémica das dimensões a considerar numa proposta de
um programa educativo sobre o medo e o desenvolvimento humano. 393
III.12 Sinergia dos movimentos horizontal e vertical das perguntas de
investigação. 400
III.13 Construção do binómio individuação-solidariedade. 407
IV.1 Passo 3 – construção de sentido. 420
IV.2 Predomínios da utilidade e do agir. 423
IV.3 O predomínio da serenidade e do centrar. 424
IV.4 Predomínios do celebrar, mas sem coragem. 425
IV.5 A inter-penetração da serenidade, da utilidade e da coragem. 426
IV.6 A dinâmica do desenvolvimento humano na educação criativo-motrícia. 427
IV.7 Interacção sistémica dos princípios educativos de um programa de
educação de adultos sobre o medo e o desenvolvimento humano. 429
IV.8 Componentes e estádios de um programa de educação de adultos
sobre o medo e o desenvolvimento humano. 432
IV.9 Um tempo para terminar, um tempo para começar. 436

vi
IV.10 Voltando aos próprios caminhos. 438
IV.11 Símbolos do meu processo de crescimento. 440
IV.12 Aprendizagem quântica. 441
IV.13 “Era a mesma velha luta, mas eu estava a começar a partir de um lugar
de maior liberdade do que antes” – Moffit (2001a:3) 447

QUADROS
I.1 Síntese geral da pesquisa. 24
I.2 Caminhos, actores e tempos da pesquisa. 25
I.3 Perguntas, propósitos e categorias de análise da pesquisa. 29
I.4 Categorias de análise da pesquisa. 34
I.5 Resumo do índice da tese. 37
I.6 Desenho da pesquisa. 49
I.7 Cronograma da pesquisa. 57
II.1 Conceito de emoções primárias. Destaques a partir de Damásio (1995,
2003). 156
II.2 Conceito de sentimentos de emoções universais básicas e subtis.
Destaques a partir de Damásio (1995, 2003). 157
II.3 Conceito de emoções secundárias. Destaques a partir de Damásio
(1995, 2003). 158
II.4 Conceito de emoções de fundo. Destaques a partir de Damásio (1995,
2003). 159
II.5 Conceito de sentimentos de fundo. Destaques a partir de Damásio
(1995, 2003). 160
II.6 Cartografia elementar do medo. Reprodução e tradução de Marina
(2006:33). 163
II.7 Propósitos do desenvolvimento humano. Reprodução de Trigo & Coego
(2003). 277
III.1 Aplicação do SOQ – tabela comparativa entre os resultados do grupo de
pesquisa e resultados de empresas inovadoras e de empresas
estagnadas. 308
III.2 Resultados da aplicação do SOQ ao grupo de pesquisa. 309
III.3A Parte B do SOQ – resultados da pergunta 1 (1ª parte). 318
III.3B Parte B do SOQ – resultados da pergunta 1 (2ª parte). 319
III.4A Parte B do SOQ – resultados da pergunta 2 (1ª parte). 322
III.4B Parte B do SOQ – resultados da pergunta 2 (2ª parte). 325
III.5A Parte B do SOQ – resultados da pergunta 3 (1ª parte). 328
III.5B Parte B do SOQ – resultados da pergunta 3 (2ª parte). 329
III.6 Relação entre “serenidade-utilidade-coragem” e o eixo central da
categoria “como”. 369

vii
TABELAS
I.1 O que é e o que não é “serenidade”. 31
I.2 O que é e o que não é “utilidade”. 31
I.3 O que é e o que não é “coragem”. 31
I.4 Interligação de conceitos. 32
I.5 Paralelos entre conteúdo conceptual, perguntas de investigação e campo
de criação. 33
II.6 Correspondência entre etapas e fases da pesquisa e as componentes e
estádios do processo de resolução criativa de problemas (versão 6.0 –
Isaksen, 2000). 48
I.7 Sessões do grupo – síntese por sessão dos resultados alcançados e das
perguntas e temas em aberto. 85
I.8 Correspondência entre o processo criativo e metodológico e o relatório da
pesquisa. 99
II.1 Categorias de sentidos presentes nos significados lexicais e analógicos
da palavra medo. 152
II.2 Paralelos entre expressões e atributos do conceito de medo. 173
II.3 Síntese de “Todos os nomes do Ser”. 213
II.4 Paralelos entre as condições-estados da vida plena sugeridos por
Csikszentmihalyi, Sturner e as Escrituras Hindus. 226
II.5 Estádios do processo de desenvolvimento espiritual de Sturner.
Reprodução, tradução e adaptação de Sturner (1994:57-58). 231
II.6 Paralelos entre diversas abordagens dos estádios de desenvolvimento
humano. 234
III.1 Razões para participar no grupo de pesquisa. 293
III.2 Comparação entre razões para participar e expectativas em relação do
trabalho de pesquisa. 296
III.3 Efeitos por participar no grupo de pesquisa. 298
III.4 Referências espontâneas ao clima do grupo de pesquisa. 303
III.5 Dimensões do clima: indicações de níveis altos, níveis baixos e
indicações neutras nas sessões do grupo de pesquisa. 305
III.6 Aplicação do SOQ - diferenças entre os valores médios do grupo de
pesquisa e das organizações inovadoras. 308
III.7 Aplicação do SOQ - comparação entre resultados das empresas
inovadoras e das organizações estagnadas e os valores da amplitude do
grupo de pesquisa. 307
III.8 Síntese dos resultados do grupo de pesquisa. 318
III.9 Correspondência dos sete corpos com tipos e efeitos de medo
identificados no grupo de pesquisa. 351
III.10 Percentagens de categorias de efeitos do medo identificados no grupo de 352

viii
pesquisa
III.11 Síntese da leitura. 354
III.12 Correspondência entre o eixo central da categoria “o quê” com o eixo
central da categoria “como”. 361
III.13 Número de referências a formas de lidar com o medo que promovem o
desenvolvimento humano em função dos momentos da acção e da
mudança. 364
III.14 Referências a formas de lidar com o medo que promovem o
desenvolvimento humano. 365
III.15 Razões para ter medo referidas no grupo de pesquisa. 382
III.16 Razões para não ter medo referidas no grupo de pesquisa. 387
III.17 O papel do medo na construção do humano. 405
IV.1 Paralelo entre perguntas da pesquisa, dimensões da criatividade,
elementos de um programa educativo e os princípios didácticos de um
programa de educação de adultos sobre o medo e o desenvolvimento
humano. 428

MAPAS MENTAIS
II.1 Mapa geral das categorias de análise. 111
III.1 Quem – excerto do mapa geral das categorias de análise. 331
III.2 O Quê – excerto do mapa geral das categorias de análise. 355
III.3 Como – excerto do mapa geral das categorias de análise. 375
III.4 Por Quê – excerto do mapa geral das categorias de análise. 397
III.5 Para Quê – excerto do mapa geral das categorias de análise. 414

GRÁFICOS
III.1 Aplicação do SOQ ao grupo de pesquisa – resultados médios. 307
III.2 Aplicação do VIEW ao grupo de pesquisa – resultados da orientação para
a mudança. 312
III.3 Aplicação do VIEW ao grupo de pesquisa – resultados da forma de
processar a informação. 314
III.4 Aplicação do VIEW ao grupo de pesquisa – resultados das formas de
decidir. 315

ANEXOS (disco compacto adjunto)


1ª Secção
- Anexo 1 Glossário
- Anexo 2 Biografias de autores citados

ix
2ª Secção
- Anexo 3 Transcrição das sessões do grupo de pesquisa com
marcação das categorias de análise
Sessão 1
Sessão 2
Sessão 3
Sessão 4
Sessão 5
Sessão 6
Sessão 7
Sessão 8
Sessão 9
Sessão 10
Sessão 11
Sessão 12
- Anexo 3A Mapas mentais construídos pelo grupo de pesquisa (sessões
8 e 11)
1 Categorias de medos
2 Estratégias para lidar com o medo
3 Medo e Desenvolvimento Humano
3ª Secção
- Anexo 4 Mapa mental das categorias de análise
1 Total
2 Parcelar – Categorias
3 Parcelar – Quem
4 Parcelar – O Quê1
5 Parcelar – O Quê2
6 Parcelar – Como
7 Parcelar – Por Quê
8 Parcelar – Para Quê
- Anexo 4A Descrição das categorias de análise
Introdução
1. Quem
1.1 As Pessoas
1.2 O Grupo
2 O Quê
2.1 Definição de medo
2.2 Relação e explicação de medos
2.3 Efeitos do medo
2.4 Perguntas do grupo que ficam em aberto

x
3. Porquê
3.1 Causas do medo
3.2 Causas do não ter medo
3.3 Perguntas do grupo que ficam em aberto
4.Como
4.1 Como os outros reagem aos nossos medos
4.2 Como se lida com o medo
4.3 Perguntas do grupo que ficam em aberto
5. Para Quê
5.1 Para a conservação social
5.2 Para o desenvolvimento humano
5.3 Perguntas do grupo que ficam em aberto
- Anexo 5 Análise de dados – tabelas das categorias e subcategorias de
análise
Quem
1 Pessoas – total
2 Pessoas – razões para participar
3 Pessoas – expectativas
4 Pessoas – efeitos por participar
5 Grupo – total
6 Grupo – dimensões do clima
O Quê
1 Total
2 Medos
3 Efeitos do medo
Como
1 Total
2 Como outros reagem
3 Centrado na Conservação
4 Centrado no Desenvolvimento Humano – clima
5 Centrado no Desenvolvimento Humano – tomada de
consciência
6 Centrado no Desenvolvimento Humano – assumir
7 Centrado no Desenvolvimento Humano – tomada de
decisão
7 Centrado no Desenvolvimento Humano – estratégias
Por Quê
1 Total
2 Causas do medo
3 Causas do não medo

xi
4 Pessoas/medo
5 Pessoas/não medo
Para Quê
1 Total
2 Conservação Social
3 Desenvolvimento Humano – Eu
4 Desenvolvimento Humano – Outros
5 Desenvolvimento Humano – Cosmos
- Anexo 6 Situational Outlook Questionnaire – resultados
SOQ Chart
SOQ Presentation
SOQ Qualitative Analysis
SOQ Themes for the verbatim responses
- Anexo 7 VEW – resultados
Group 1
Group
Introduction to VIEW Presentation
VIEW Group Results
VIEW Hand Score Report
VIEW Report Form
4ª Secção
- Anexo 8 Diário da tese
- Anexo 9 Diário de campo
5ª Secção
- Anexo 10 Certificados do The Creative Problem Solving Group, Inc.
CPS Advanced
CPS – Creative Problem Solving Facilitator
SOQ – Situational Outlook Questionnaire Administrator
VIEW Administrator

xii
I. PROCESSO DA PESQUISA
2
Introdução

I. PROCESSO DA PESQUISA
Introdução
1. Fundamento Epistémico da Tese
1.1 Na procura dos que constroem um saber encarnado e comprometido com o mundo
1.2 Implicações para a pesquisa
2. O Tema
2.1. Os caminhos que foram dar ao medo
2.2. Explicando o tema
3. A Pesquisa
3.1 Caminhos, fases, actores e enquadramento da pesquisa
3.2 Propósitos e perguntas de investigação
3.3 Categorias de análise
4. Organização da Tese
Capítulo 1 – Roteiro

II. CENTRAR
Capítulo 2 – Descobrir os próprios caminhos
Capítulo 3 – Descobrir caminhos de outros

III. AGIR
Capítulo 4 – Criar o caminho

IV. CELEBRAR
O sentido do caminho
Para abrir um novo caminho

3
1. Fundamento Epistémico da Tese
“A história é sobre uma pequena onda, a balançar pelo oceano fora,
divertindo-se à grande. Goza o vento e o ar fresco, até que repara nas
outras ondas à sua frente, a despenhar-se nas rochas.
- Meu Deus, isto é terrível – diz a pequena onda. Olha só o que me vai
acontecer!
Aí chega outra onda. Vê a primeira onda (…) e pergunta-lhe:
- Porque estás tão triste?
A primeira onda diz:
- Oh, não compreendes! Vamos todas despenhar-nos! Todas nós, ondas,
vamos transformar-nos em nada! Não é terrível?
A segunda onda diz:
- Não, quem não compreende és tu. Tu não és uma onda, tu és parte do
oceano”.
Mitch Albom

As páginas que se seguem resultam de um exercício que é, simultaneamente, de


humildade e de poder. De humildade, porque me sinto pequena frente à co-participação
na imensa tarefa de quem, pelo acto de reflexão, procura fazer ciência. De poder
porque, apesar disso, me sinto com a força e o atrevimento (talvez também com a
ilusão e a ingenuidade) dos que, estando pouco mais do que a começar, entendem que
tudo lhes é possível e que não há ventos, nem tempestades, que os possam demover
do seu caminho e de, um dia, encontrar “o Grande Tesouro, “o Santo Graal”, por que
tanto se dispõem a lutar.

Mas as páginas seguintes resultam igualmente (eu diria, até, essencialmente), de mais
um exercício de procura de identidade, feito aqui no encalço de grandes investigadores
e pensadores. São aqueles a quem, carinhosamente, gostaria de chamar “os meus
heróis” no caminho da busca de sentido, que é o que, em última análise, significa fazer
investigação.

- Heróis, porque, atiçando em mim o fogo da curiosidade, me ajudam a ganhar


consciência da minha inquietação.
- Heróis, também, porque sempre me fazem despertar para realidades
desconhecidas, mas com que, numa certa dimensão interior, desde sempre me
senti profundamente identificada.
- Heróis, ainda, porque, pelo contágio da sua energia que me assegura que outro
caminho é possível, permitem criar condições para responder à minha vontade e
necessidade de saber.

4
- Heróis, finalmente, porque, em coerência*1 e enamoramento comprometido, são
quem, em diversos espaços e tempos, se tem atrevido a pôr em causa o
estabelecido, a alargar fronteiras e a descortinar novas formas de pensar, de fazer
as coisas, de fazer ciência e ser parte do mundo.

Assim, e tal como a riqueza de uma nação passa pelo reconhecimento das suas
origens, dos seus feitos, dos seus valores, dos seus homens e mulheres, também neste
início do trabalho, para lá de uma prática académica de fundamentação-legitimação
epistémica da pesquisa, eu gostaria de tentar fazer um ritual de reconhecimento de
alguns daqueles que participaram na construção:
- deste projecto de investigação – o que é o mesmo que dizer, de uma certa forma de
ler o (meu-nosso) mundo;
- das relações que estabeleci com (muitos) outros – e, de uma forma especial, com
quem fez parte do trabalho de campo e da análise de dados – o grupo de pesquisa
colaborativa;
- daquilo que vou sendo – enquanto educadora, enquanto investigadora, enquanto
pessoa… enquanto “mais eu” a descobrir.

É, por isso que, com vontade de pertencer a uma grande família, procurarei apresentar
aqui alguns dos autores e conceitos que, em termos globais, inspiraram e justificam o
chão-caminho-método em que esta investigação se desenvolve.

1.1 Na procura dos que constroem um saber encarnado


e comprometido com o mundo
“Se (...) centrarmos o nosso olhar no futuro, (...) duas imagens contraditórias nos
ocorrem alternadamente. Por um lado, as potencialidades da tradução tecnológica dos
conhecimentos acumulados fazem-nos crer no limiar de uma sociedade de comunicação
e interactiva libertada das carências e inseguranças que ainda hoje compõem os dias de
muitos de nós: o século XXI a começar antes de começar. Por outro lado, uma reflexão

1
* - Sinal que, ao longo da tese, remete para o glossário.

5
cada vez mais aprofundada sobre os limites do rigor científico combinada com os
perigos cada vez mais verosímeis da catástrofe ecológica ou da guerra nuclear fazem-
nos temer que o século XXI termine antes de começar.
(...) Qual das imagens é verdadeira? Ambas e nenhuma. É esta a ambiguidade e
complexidade da situação do tempo presente, um tempo de transição, síncrone com
muita coisa que está além ou aquém dele, mas descompassado em relação a tudo o que
o habita” (Sousa Santos, 1988: 6).

Estava pouco mais do que no início do meu curso de Sociologia (1989-94) quando, pela
primeira vez, li “Um Discurso sobre as Ciências” do Prof. Boaventura Sousa Santos.
Nessa altura andava lutando comigo mesma pelo entendimento das grandes questões
epistemológicas, um campo das ciências que me parecia muito árido, crítico e analítico,
distante de tudo o que era a simplicidade da minha experiência de vida e das minhas
preocupações essenciais e, por isso, também distante da minha capacidade de
compreender “por dentro” muito do que estava a estudar. Mas aquela leitura (não só
com o que aí pude encontrar de questionamento e interligação de campos e conceitos
mas, essencialmente, com tudo o que me fez reflectir sobre a ligação entre a ciência e o
sentido da existência e do desenvolvimento humano), trouxe-me também a
possibilidade de começar a entender o que, em muitos outros autores também, se pode
situar num continuum de matizes que represente as múltiplas formas da relação circular
entre fazer ciência e criar mundos.

- De um lado, uma forma de pensar o homem e de fazer mundo que separa corpo e
alma, que reduz e divide a complexidade* humana. Um mundo que tanto ocasiona
uma cultura materialista “do império dos sentidos”, como uma cultura espiritualista,
desenraizada, “pairando soberanamente por sobre a densidade do real (...), refém
das suas ideias, projecções e teorias” (Boff, 1998:61). Um mundo que se torna
responsável por um desenvolvimento unilateral, “ecologicamente predatório,
socialmente perverso e politicamente injusto” (Prieto, in Max-Neef, 1993:7). Uma
cultura que favorece “a auto-afirmação em vez da integração, a análise em vez da
síntese, o conhecimento racional em vez da sabedoria intuitiva, a competição em
vez da cooperação, a expansão em vez da conservação” (Capra, 1982:prefácio).

- Do outro, uma forma de pensar o humano e de fazer mundo(s) na sua multiplicidade


de identidades e possibilidades, cheio(s) de singularidades, pleno(s) de

6
intersubjectividades, em que, por força da sua natureza dinâmica, da unidade e da
inter-relação de todos os fenómenos, “as descobertas científicas podem estar em
perfeita harmonia com os objectivos espirituais” (Capra, 1982:28). Uma forma de
entender e fazer ciência em que todo o conhecimento é local e total, em que todo o
conhecimento é auto-conhecimento, em que todo o conhecimento científico se pode
traduzir em sabedoria de vida (Sousa Santos, 1988, 2002). Uma forma de fazer
ciência que tem consciência* de que “os padrões que os cientistas observam na
natureza estão intimamente relacionados com os padrões das suas mentes, com os
seus conceitos, pensamentos e valores” (Capra, 1982:17).

Daí em diante e, de uma forma especial, em todo o trabalho de preparação e


desenvolvimento desta investigação, voltei mais vezes aos seus livros e, enquanto me
acercava do pensamento de muitos outros autores, fui também procurando perceber, na
perspectiva do “diálogo entre realismo e idealismo, entre razão e emoção, entre ciência
e arte, entre o sim e o não” (Torre, 2008:2), as profundas interconexões e
complementaridades que entre eles estão presentes, mesmo quando utilizam
disciplinas aparentemente distantes ou diferentes2.

Assim, e ganhando consciência da importância de uma ciência em que realidades e


utopias interagem, se pensam e se desafiam na complexidade, de uma ciência
sonhadora-construtora da história e de novas realidades, de uma CIÊNCIA ENCARNADA E
COMPROMETIDA no mundo (Trigo, 2005a), comecei a encontrar (em mim, no meu mundo
e, por inerência, na fundamentação desta pesquisa), as raízes da construção
necessária e urgente do que é, como diz o Prof. Manuel Sérgio, um “novo paradigma do
saber… e do ser”:

“Saber é encontrar as razões e os métodos que permitem a dimensão divina da


realidade – dimensão divina, isto é, capaz, pela transcendência, de ruptura e profecia.
Ruptura, em relação à ideia de que o ser humano é o Rei da Criação, seu conquistador e
manipulador, que separou o sujeito do objecto e alguns sujeitos do seu semelhante (…);

2
Naquele mesmo texto acima referenciado, Saturnino de la Torre também escreve que “a perspectiva
objectiva, estática, coisificada, a que nos acostumou o realismo científico, começa a vacilar à luz dos
novos saberes que vão desde a neurociência à transpersonalidade e da física mecânica à teologia
quântica”. Argumenta, por isso, sobre a necessidade de um encontro de saberes que, fluindo através de
campos muito diversos, seja resposta à “ecologia dos saberes” de Moraes e à “religação dos saberes” de
Morin.

7
ruptura, em relação a um crescimento, apenas técnico e científico, onde as “razões do
coração” não se conhecem e onde a “religião dos fins” se substitui pela “religião dos
meios”; (…) ruptura em relação ao domínio exclusivo, ditatorial do quantitativo e do físico
(mesmo nas suas formas pedagógicas), que eliminou do desenvolvimento humano o
não-mensurável, o não-formalizável, o não-biológico e não atribui ao ser humano senão
funções sem referência a um projecto de vida; ruptura, por isso, em relação a políticas
onde a afectação de recursos contemple tão-só a inovação tecnológica, a
competitividade empresarial, a competência científica, sem outros valores, como a
justiça social (…)” (Sérgio, 2005b:53-55).

Ilustração I.1 - Imagem que, ao ouvir a sua conferência no IV Congresso Internacional


de Motricidade Humana3, o Prof. Manuel Sérgio (me) sugeriu sobre a nova forma de fazer ciência.

1.2 Implicações para a pesquisa


“Sim”, pensou, a respirar profundamente, “nunca mais tentarei fugir de
Siddhartha. (…) Nunca mais me mutilarei e destruirei para encontrar um
segredo oculto atrás das ruínas (…). Aprenderei comigo próprio, serei aluno
de mim mesmo; aprenderei comigo próprio o segredo de Siddhartha”. Olhou
de novo em seu redor, como se visse o mundo pela primeira vez. O mundo
era belo, estranho e misterioso (…) e no meio de tudo estava ele,
Siddhartha, o que despertara, a caminho de si mesmo – Hermann Hess.

Sou educadora e, no decurso da reflexão atrás referida, ganho, não só consciência de


que é no “para quê” da ciência que encontro as razões para fazer o que venho fazendo
há trinta anos, como essa consciência me leva também a definir propósitos e a

3
IV Congresso Internacional de Motricidade Humana, 2005, Porto do Son (A Coruña), Espanha.

8
estabelecer prioridades para esta pesquisa. Assim, e muito mais do que me colocar
frente a opções metodológicas que tenham em vista o conhecimento pelo
conhecimento, as minhas decisões passam a ser orientadas pelos propósitos que
definem uma investigação aplicada4 – para que o conhecimento possa “ajudar as
pessoas a compreenderem a natureza de um problema (...) e, por isso, possa permitir-
lhes uma maior capacidade de controlo sobre o seu próprio ambiente5” (Patton,
2002:217).

Procurando, por isso, começar a dar notícia do modo como, nesta pesquisa, PROCESSO
INVESTIGATIVO e PROCESSO EDUCATIVO se cruzam e interpenetram, utilizo, como primeira
referência, o que (de acordo com a Prof. Anna Feitosa, 1999:69) são as quatro
perguntas fundamentais que E.F. Schumacher propõe como condição necessária para
aceder à essência do DESENVOLVIMENTO HUMANO:

“1. O que é que se passa de facto no meu mundo interior?


2. O que é que se passa no mundo interior dos outros seres?
3. Como me vêem os outros seres?
4. O que é que eu observo de facto no mundo à minha volta?”

4
De acordo com Patton (2002) o trabalho dos investigadores na investigação qualitativa aplicada pode ser
assim, resumidamente, descrito:
- Trabalham com problemas humanos e societais.
- A fonte das questões está nos problemas e preocupações vividas pelas pessoas e articuladas pelos
“policymakers”.
- Conduzem estudos que testam as aplicações da teoria básica e do conhecimento disciplinar em
experiências e problemas do mundo real.
- Utilizam campos interdisciplinares mais orientados para os problemas do que para as disciplinas.
- Respondem a questões interdisciplinares do campo da economia antropológica, da psicologia
social, da geografia política, do desenvolvimento educacional e organizacional, etc.
- Apresentam as suas experiências e insights pessoais nas recomendações que possam emergir
porque, durante o trabalho de campo, se colocaram especialmente próximos dos problemas
estudados.
- Têm consciência de que os problemas surgem dentro das fronteiras de um tempo e espaço
específicos.
Tipologia de Propósitos da Investigação Qualitativa (Patton, 2002:213):
1. Pesquisa básica (basic research): contribuir para o conhecimento fundamental e para a teoria.
2. Pesquisa aplicada (applied research): esclarecer uma preocupação social.
3. Avaliação sumativa (summative evaluation): determinar a eficácia de um programa.
4. Avaliação formativa (formative evaluation): melhorar um programa.
5. Investigação-acção (action research): resolver um problema específico.
5
“The purpose of applied research is to contribute knowledge that will help understand the nature of a
problem in order to intervene, thereby allowing human beings to more effectively control their
environment” (Patton, 2002:217).

9
Isto é, perguntas fundamentais que, no processo de construção de conhecimento,
começam por ser perguntas de desconstrução de nós mesmos. Perguntas
fundamentais porque, muito mais do que descrever ou explicar o que se estuda,
permitem compreender o que se estuda porque disso se faz parte (Max-Neef, 1993).
Perguntas fundamentais para que, operando dentro de nós mesmos e não permitindo
incoerências e falsas separações de mentes e tempos de vida (Bohórquez & Trigo,
2006), se vá ganhando o direito de, em comunhão e respeito, aceder à observação do
“mundo interior de outros seres”.

“Os cortes epistemológicos* ou são íntegros,


Processo Desenvolvimento
ou não. Os abarcam todo o nosso ser, ou Investigativo Humano

reduzem-se a simples teoricismos que enchem


páginas e páginas de livros inteiros, mas não
chegam a modificar na realidade a vida das
Processo
pessoas e dos povos (Trigo, 2005:45). Educativo

Ilustração I.2 – Inter-relação entre educação, ciência e


desenvolvimento humano.

Posto isto, e, primeiro, com o que aprendi com muitos daqueles a quem já chamei “os
meus heróis”; segundo, num paralelo com o simbolismo dos “desafios [da união de
opostos] que se colocam para a construção do humano” (Boff, 1998:119); terceiro, na
medida da minha capacidade de autoconsciência, de autocrítica e de maturidade
científica e de criação, passo a colocar os sete princípios-compromissos-intenções que
procurei se mantivessem ao leme de todo o processo desta pesquisa.

1. Professar um sentido ético ► AUTONOMIA/DEPENDÊNCIA.

“Os resultados científicos que [os cientistas] obtêm e as aplicações tecnológicas que
investigam estarão condicionados pela estrutura das suas mentes. Embora grande parte
das suas pesquisas (...) não seja explicitamente dependente dos seus sistemas de
valores, a estrutura mais abrangente dentro da qual essas pesquisas são efectuadas
nunca será independente de valores. Os cientistas são, portanto, responsáveis, não

10
apenas intelectualmente, mas também moralmente, pelas suas pesquisas” (Capra,
1982:18).

Entendendo que o pensamento não emocional não existe, que é preciso atender às
emoções, pois são elas que permitem “escutar o que acontece na profundidade de
cada um de nós” e categorizar as experiências com a qualidade do “bem” e do “mal”
(Damásio, 2003:183).

2. Voltar às coisas simples, formular perguntas simples, escrever com palavras simples
► SIMPLES/COMPLEXO.

Tentando não só colocar, como Einstein costumava dizer, as perguntas que “só uma
criança pode fazer mas que, depois de feitas, são capazes de trazer uma nova luz à
nossa perplexidade” (Sousa Santos, 1988:6), mas também aí e, exactamente por
isso, procurando ver como somos directamente responsáveis pelo nosso destino e
pelo destino do nosso planeta (Berman, 1981).

3. Reconciliar e integrar diferentes cosmovisões, diferentes maneiras de conhecer,


diferentes linguagens ► REALIDADE/UTOPIA.

“Neste período [pós-moderno] não se concede um lugar privilegiado ou preponderante a


nenhum discurso, nem se considera que alguma teoria particular seja a que possui a
chave do conhecimento” (Martínez Salgado, 1996:42).

Dando espaço à narração e às metáforas das humanidades (Castro, 1996),


procurando na ecologia de saberes e na harmonia da ciência moderna e da
sabedoria oriental, uma visão do mundo que não faz distinção entre o animado e o
inanimado, entre o espírito e a matéria... (Zemelman, 1996; Capra, 1982; Sisk &
Torrance, 2001; Sousa et al, 1998; McCall, 2003, Torre, 2007).

Movendo fronteiras sem perder rigorosidade e coerência; tirando de distintos


autores, aprendendo com todos e com tudo, com todos os saberes, sabedorias* e

11
sabores que ajudem a construir e interpretar a informação. Respondendo ao desafio
do diálogo da ciência com diferentes formas de conhecimento, reabilitando o senso
comum, a integração e a complementaridade (Sousa Santos, 1988, 2002; Feitosa,
1999). Não ficando amordaçada e prisioneira de um só lugar, por seguro que seja,
mas que, afinal, não pode dar senão uma visão restrita na hora de compreender a
complexidade do real.

Ilustração I.3 – Da dicotomia à sinergia.

4. Assumir, metodológica e publicamente, a dificuldade e a complexidade da distinção


sujeito-objecto ► SUJEITO/OBJECTO.

“Não se pode pensar em objectividade sem subjectividade. (...) Nem objectivismo, nem
subjectivismo (...), mas subjectividade e objectividade em permanente dialecticidade.
Confundir subjectividade com subjectivismo, com psicologismo, e negar-lhe a
importância que tem no processo de transformação do mundo, da história, é cair num
simplismo ingénuo. É admitir o impossível: um mundo sem homens, tal qual a outra
ingenuidade, a do subjectivismo, que implica homens sem mundo” (Freire, 2003:37).

Abandonando a tentação de contemplar a sociedade de um “ponto de vista divino”


(Morin, 2003:108), entendendo que a razão universal é impossível porque a mente é
corporizada (Varela, 2000; Toro, 2005a), assumindo que, desde a selecção do
problema, o investigador influi na construção do objecto de conhecimento (Sérgio,
2005a).

12
5. Expor(-me) e ser parte do objecto de observação, conciliando a dualidade dos
papeis de investigador e de “investigado” ► OBSERVADOR/OBSERVADO.

Sendo honesta comigo mesma e com os outros e, com isso, revelando o que
sabemos estar muitas vezes a montante e a jusante das nossas investigações
(motivações, interesses, fragilidades, descobertas, necessidades de crescimento e
de amadurecimento …) (Bogdan & Biklen, 2006), mas que, por vezes, é tão difícil de
revelar.

“Ser sujeito numa investigação é fundirmo-nos no investigado e com os investigados; (...)


é possibilidade de existir e de alargar os nossos horizontes de vida (...). É ter a
capacidade e inteireza de conceber a investigação como fonte de transformação pessoal
e colectiva” (Jaramillo, 2006:116a).

Ganhando consciência de que a vida (e, por inerência esta pesquisa), não é uma
substância, mas um fenómeno de inter-relação com o universo e com o outros, um
fenómeno complexo que necessita de ser situado na interconexão do princípio
dialógico (que permite a dualidade no seio da unidade), do princípio da
recursividade (em que os produtos e os efeitos são, ao mesmo tempo, causas e
produtores daquilo que os produz) e do princípio hologramático (pois a parte está no
todo e o todo está na parte) (Morin, 2003).

6. Procurar-fazer-criar-descobrir novos caminhos e aceitar que, em tudo isso, haja,


seguramente, outros tantos retrocessos ► VIVER/MORRER.

“O desenho da investigação qualitativa não se especifica por completo no início, mas


vai-se construindo conforme decorre o trabalho de campo (...). Isto exige, entre outras
coisas, uma certa tolerância à incerteza e à ambiguidade que estarão presentes durante
o processo” (Martínez Salgado, 1996:45).

Compreendendo as múltiplas implicações de que só a mudança é permanente e


que, nos sistemas vivos, o desequilíbrio é condição necessária para o crescimento
de sistemas dinâmicos (Prigogine, 1983). Perdendo, por isso, o medo do caos,

13
aprendendo a fluir com ele e a correr riscos já que, como também (e tão bem)
ensina a sabedoria popular, o maior risco de todos seria não correr risco nenhum.

7. Terminar onde não comecei ► SABER/SER.

Não só do ponto de vista da investigação, mas, também (e como sinal do princípio


de rede que nos inter-conecta com todos os outros e com o universo), enquanto
pessoa-comunidade-mundo que cresce(m) à luz da pesquisa (Jaramillo, 2006b).

E que assim seja.

14
2. O Tema

Ilustração I.4 – Caminhos.

2.1 Os caminhos que foram dar ao medo

“O reconhecimento dos aspectos subjectivos e pessoais cujas raízes remontam


inclusive à biografia do investigador é mais característico dos que trabalham a partir
de algum dos "paradigmas alternativos" que floresceram nos tempos recentes. Essa
consciência do papel das características e tendências pessoais do investigador é
algo que se converte numa descoberta para todo aquele capaz de o enfrentar. Os
"paradigmas alternativos" consideram necessário não só reconhecê-lo, mas também
informar sobre esses elementos, incorporar o observador como importante
componente que é do cenário que investiga” (Martínez Salgado, 1996:54).

Concluí o curso de educadores de infância em 1978. E, depois de uma breve


passagem pelo trabalho directo com crianças em jardim de infância, fui chamada a
colaborar na formação inicial de educadores de infância. Durante vários anos
dediquei-me de corpo inteiro a essa tarefa, como se isso fosse a razão do meu viver.
Até que, em determinado momento bem conhecido de todos os que são próximos
desta área, foi colocado a todas as escolas de formação (até aí consideradas de
ensino médio), mais um grande desafio – a passagem a escolas superiores de
educação. Sem me alongar naquilo que foi todo esse demorado (e às vezes
doloroso) processo de reconversão, diria só que, para além de muitos outros
requisitos, se impunha um que dizia especialmente respeito a todas as educadoras
que faziam parte integrante do seu corpo docente – a obtenção do grau académico
de licenciatura. Assim, e depois de alguma reflexão sobre o conjunto de cursos a

15
que poderia ter acesso e que pudessem trazer algum contributo para o trabalho que
realizava, optei pela licenciatura em Sociologia.

Durante cinco anos procurei conciliar as minhas funções docentes e, na altura,


também já directivas, com o meu novo papel de aluna universitária. Foi um período
de (ainda maior) clausura, em que permanentemente me obrigava a ultrapassar
aqueles que julgara serem os meus limites de capacidade de trabalho – porque o
trabalho docente não “encolhia” nem se compadecia com esta “vida paralela”;
porque a exigência e qualidade profissional já conquistada se estendiam também à
nova situação; porque era preciso, sempre e em todos os campos, fazer mais e
melhor.

Foi, naturalmente, um período rico de experiências, de alargamento de fronteiras.


Mas foi também, e por isso mesmo, um período em que durante muito tempo lutei
comigo mesma para, além de mais, integrar uma visão do mundo bem diferente
daquela que, até aí, me tinha estabelecido. É que, tendo sido formada como
educadora numa escola católica (com um tipo de formação de grande implicação
emocional e espiritual), e num período especialmente agitado e também idealista da
vida nacional, encarava o trabalho com um imenso sentido do dever e da urgência
das coisas, e a vida numa perspectiva de doação e serviço à comunidade – na
convicção de que quanto mais trabalhasse mais poderia fazer bem e mudar o
mundo.

Mas a sociologia (pelo menos como a percebia naquela altura), com a sua
abordagem tão mental e, de certa maneira, desapaixonada, com a sua objectividade
de análise e o seu espírito crítico, fazia-me ver que o mundo não era assim tão
facilmente mudável e mostrava-me, “pela explicação das regularidades sociais, que
havia uma multiplicidade de interferências em muitas das escolhas em que (...) eu
julgara6 exercer opções verdadeiramente livres” (Ferreira de Almeida, 1994:21).
Passei, por isso, a sentir que entre uma cabeça colocada nas nuvens, pela minha
formação como educadora, e os meus pés bem enterrados na terra, pela minha
formação como socióloga, havia um vazio que eu não sabia como preencher. E, por
muito valiosa que tivesse sido a experiência, na hora da conclusão do curso, o
cansaço era tanto que “só” me restava uma decisão: “aconteça o que acontecer,
venham os requisitos que vierem, estudante, nunca mais!”.

6
O sublinhado é meu.

16
Foi ao longo deste processo que conheci a Prof. Maria da Conceição Azevedo, que
também teve um papel importante no desenvolvimento e orientação desta tese.
Rapidamente percebemos que partilhávamos muitos sonhos e inquietações. Mas foi
(tantas vezes ainda é!) difícil perceber aonde ela queria chegar quando, em muitas
ocasiões, me dizia: “tudo contribui para o bem”.

E ela tinha razão. Um ano depois, num congresso de educação de infância em que
estive presente em Espanha, vi-me a assistir a uma conferência proferida pelo Prof.
David de Prado sobre o tema “Criatividade”. Foi, como é ele próprio, uma
conferência agitada e contundente. Mas, nesse momento, senti uma profunda
afinidade com o tema, como se ali pudesse vir a encontrar respostas para o meu
desassossego e para o reconhecimento das minhas próprias necessidades, um
meio de preencher e totalizar o espaço deixado vazio pelas duas formações e,
essencialmente, por aquele período de “semi-vida”.

Nesse mesmo dia tive conhecimento da existência do Master de Creatividad


Aplicada Total da Universidade de Santiago de Compostela. E não tive dúvidas – o
meu papel de estudante não estava terminado. Eu voltaria à universidade. Mas
agora as razões eram bem diferente das razões anteriores – os requisitos agora
eram meus. EU era a razão para voltar à universidade: eu e a minha capacidade de
crescimento e de valorização pessoal; eu e aquilo que, na altura, não era ainda
capaz de identificar claramente – a minha necessidade de autoconhecimento, de
transgressão e de transcendência.

Foi assim que encontrei muitas pessoas (colegas e professores), de vários pontos
do mundo, com muitos dos quais ainda hoje mantenho relações de trabalho e de
amizade, e que me fizeram perceber não estar sozinha na busca de novos conceitos
e novas formas de vida. Foi aí que conheci a Prof. Eugenia Trigo, Orientadora desta
Tese, pessoa inquieta e “desesperantemente perguntadora” que nunca me deixa
“jogar às escondidas”.

Não posso, e talvez não faça sentido, descrever aqui tudo o que representou a
minha passagem por terras de Santiago. Diria, porém, que foi o tempo em que me
compreendi peregrina do caminho de descoberta da minha vida: um caminho em
que se é (sou) eternamente aprendiz; um caminho em que se percebe que o mundo
(pelo menos o meu mundo) só muda se eu mudar – e que isso é que é urgente; um
caminho em que constantemente se procura não desistir de se ser quem se é; um

17
caminho de centração na própria interioridade e que, por isso, se faz só; mas
também um caminho que está cheio de bordões em que nos podermos (me posso)
apoiar – desde que seja capaz de os descobrir naquilo que são as oferendas e os
propósitos do universo.

Foi assim que, partindo da necessidade de uma consciência clara sobre a realidade
do presente, comecei a vislumbrar, na vida e também na ciência, um meio de
preencher o tal vazio. Tinha começado, mesmo sem o saber, a descobrir o
paradigma da mente corporizada (Varela, 2000; Trigo, 2005a, Toro, 2005a). Tinha
começado a descobrir que, para lá de todos os “devia” e dos “é preciso” do meu
tradicional compromisso com o mundo, e para lá dos “o quês” e do “porquês” da
ciência moderna, havia, também na vida, a urgência de aprender a perguntar pelos
“para quês” e pelos “comos” da ciência encarnada. Tinha começado a perceber que
ciência, porque é vida, é também poesia, é sonho, é sentir, é arte, é sabedoria, é
criação.

Talvez por isso (seguramente por tudo isto), muitas outras coisas mudaram. Foram
tempos de alguma... glória. Tão grande tinha sido já o caminho realizado que não
podia deixar de dar frutos. Inclusive na minha acção profissional:

- deixei para trás todas as funções directivas, administrativas e burocráticas em


que, durante dezasseis anos, tanto me ocupara;
- comecei a ser chamada a trabalhar a temática da Criatividade com
profissionais de outras áreas – designers para a indústria, médicos dentistas,
quadros de empresas, operários...;
- comecei a sentir estar chegando mais perto das pessoas;
- comecei a perceber que a minha actividade profissional, porque era extensão
de um trabalho interior, se tornava mais eficaz com menos esforço.

Mas o problema do caminho é mesmo esse, ser caminho – isto é, ser dinâmica, ser
mudança. E se dele fazemos paragem ou estalagem, deixa de cumprir os seus
propósitos. Não passou, assim, tanto tempo que não começasse a sentir que estava
a ficar demasiado encantada, tranquila e segura com os resultados alcançados e
que, por isso, começava a repetir-me a mim mesma. E, quando se deixa de estar
vigilante, os velhos padrões de comportamento voltam a instalar-se. E eu estava (de
novo!) dando demasiado tempo para a acção, pouco para a centração, ainda menos
para a celebração – a também “velha fórmula” para evitar olhar honestamente para

18
dentro de mim mesma. Precisava, definitivamente, e sob pena de vir a revogar a
minha condição de mulher-peregrina, de voltar a pôr os pés ao caminho. Precisava,
ainda que paradoxalmente, de encontrar um meio de me “sentar” para tirar de mim o
que estava escondido.

São muitos, naturalmente, os caminhos que poderia ter escolhido. Eu escolhi, e


também por força do meu próprio percurso, voltar-me de novo para a investigação e
busca de conhecimento, num projecto que fosse a extensão do meu trabalho e da
minha vida, que me considerasse e me exigisse na globalidade e na inter-relação do
meu ser pessoa e do meu ser profissional.

Foram várias as tentativas para encontrar o espaço onde desenvolver a minha


pesquisa. Comecei por procurar no exterior do País. Há tantos lugares conceituados
onde se trabalha a Criatividade de uma forma institucionalizada e sistematizada que
parecia não haver solução que não fosse ir para esses lugares. Até que
(surpreendentemente, ou não?) encontrei o espaço e as pessoas dentro da minha
terra e das minhas relações – em termos geográficos e em termos afectivos. Mais
uma vez a vida me provava que não havia necessidade de procurar fora aquilo que
eu já tinha dentro.

O que foi, daí em diante, todo o processo de ler em mim o tema da tese e a forma de
o desenvolver, está descrito no “Capítulo 1 Roteiro – 2. Itinerário e crónicas do
caminho” e detalhadamente relatado no Diário da Tese (Anexo 8). Por agora, o que
pretendo deixar claro é que, se uma tese principia no dia em que se começa a
imaginar a possibilidade de a fazer, esse dia também não surge do nada. É essa a
razão porque aqui descrevi parte do percurso que contem algumas das suas
justificações mais profundas.

Assim, trabalhar “O Medo e o Desenvolvimento Humano” é consequência da minha


própria história de vida: percebendo-me, percebendo os outros e o mundo, na
distância que separa o meu Eu (a minha actualidade) do meu Mais Eu (a minha
possibilidade), não me resta opção que não seja enxergar também os medos e
bloqueios que povoam essa distância e limitam a minha capacidade de projectar, de
transgredir e de transcender. E esta consciência, como julgo que ficou claro, não é
fruto de um processo puramente mental – é também resultado de uma “percepção

19
tornada consciente do fundo onto-teleológico do meu7 Ser” (Azevedo & Gil da Costa,
2005:245).

2.2. O Problema
EL MIEDO GLOBAL
Los que trabajan tienen miedo de perder el trabajo.
Los que no trabajan tienen miedo de no encontrar nunca trabajo.
Quien no tiene miedo al hambre, tiene miedo a la comida.
Los automovilistas tienen miedo de caminar y los peatones tienen miedo de
ser atropellados.
La democracia tiene miedo de recordar y el lenguaje tiene miedo de decir.
Los civiles tienen miedo a los militares, los militares tienen miedo a la falta de
armas, las armas tienen miedo a la falta de guerras.
Es el tiempo del miedo.
Miedo de la mujer a la violencia del hombre y miedo del hombre a la mujer
sin miedo.
Miedo a los ladrones, miedo a la policía.
Miedo a la puerta sin cerradura, al tiempo sin relojes, al niño sin televisión,
miedo a la noche sin pastillas para dormir y miedo al día sin pastillas para
despertar.
Miedo a la multitud, miedo a la soledad, miedo a lo que fue y a lo que puede
ser, miedo de morir, miedo de vivir.
Eduardo Galeano

O medo que, segundo Damásio (1995), é uma das cinco emoções básicas, é um
sinal valioso, a nossa resposta natural em situações de perigo. As suas reacções
automáticas desencadeiam tensão muscular, aceleração dos batimentos cardíacos,
alterações nos sistemas digestivo e imunitário, aumento da adrenalina e dos
corticorteróides para enfrentar a ameaça... (Dreher, 2000). Mas se o medo (e,
consequentemente, os seus efeitos) se torna crónico, afecta a nossa saúde, a nossa
capacidade de desenvolvimento e crescimento PESSOAL, a nossa relação COM OS
OUTROS, a nossa relação COM O UNIVERSO.

Na verdade, até no futebol quem joga à defesa é quem tem medo de perder. E,
muitas vezes, usa de violência. Mas o processo não produz os efeitos desejados
porque, muito embora possa haver um êxito fugaz, quem está demasiado
preocupado com a defesa da sua baliza no mínimo (ou no máximo), não ganha.
Pode não perder, mas não ganha. As grandes equipas não ganham por 1-0, ganham
por 4-2. Deixam entrar golos (aparentes derrotas) mas, mesmo assim, ganham.
Porque arriscam. A sua maior preocupação é o golo (construir) e isso resulta mais e

7
O sublinhado é meu.

20
melhor do que a simples defesa (destruir). E o espectáculo é muito mais bonito, mas
também muito mais raro.

Entendo que a violência do terrorismo (em qualquer das suas formas) é também
isto. Mas entendo também (e é aí que especificamente quero colocar o tom deste
trabalho) que viver nessa posição de excessiva defesa, e com a violência que lhe
está inerente e que tantas vezes usamos contra nós mesmos, também é isto.

É o que, em termos genéricos, chamo MEDO DA VIDA. É o que, em termos


específicos, se consubstancia nalgum (ou em alguns) dos seguintes exemplos de
medos que, por agora, propositadamente apresento de forma não organizada:

Medo do sofrimento Medo de parecer ser Medo do desconhecido


Medo de conhecer Medo de se perder Medo do fracasso
Medo de arriscar Medo do prazer Medo do sucesso
Medo de ter medo Medo da imaginação Medo da hierarquia
Medo de ser criticado Medo da mudança Medo da desaprovação
Medo de ser rejeitado Medo do risco Medo de Deus
Medo da desilusão Medo da verdade Medo de ser diferente
Medo da perda Medo do abandono Medo do ridículo
Medo do eu desconhecido Medo da solidão Medo da opinião pública
Medo de si mesmo Medo de perder a cabeça Medo de se abrir
Medo do confronto Medo da entrega Medo dos começos
Medo de dizer não Medo de expressar-se Medo dos fins das coisas
Medo do silêncio Medo da intimidade Medo de ficar parado
Medo de perder Medo da perda de amor Medo de estar só
Medo de desiludir Medo do inesperado Medo de aborrecer
Medo de ser activo Medo da represália Medo de escolher

A nossa capacidade de lidar com o medo pode, assim, definir muito da pessoa que
somos e do que viremos a ser como pessoas: ou ficamos presos numa situação de
constante MEDO DA VIDA (no que isso significa de bloqueios nas nossas relações intra e
interpessoais), ou podemos, numa relação-acção caracterizada por intencionalidade e
significado, ser construtores do nosso PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO HUMANO
(Kolyniak, 2005)16 – isto é, caminhando no sentido de uma “sociedade sinérgica,

16
“Desenvolvimento Humano: processo contínuo e imprevisível de construção do ser humano, como
espécie e como indivíduo, que ocorre na dialéctica entre natureza e cultura, referindo-se à totalidade
complexa que se expressa como motricidade, afectividade e cognição, envolvendo, como constituinte, a
praxis orientada por valores como busca de condições de existência material e espiritual dignas para

21
solidária e cooperante” (Sérgio, 2005a:21), no sentido do desenvolvimento máximo
das nossas possibilidades, na descoberta da nossa própria interioridade, na passagem
progressiva por aquilo que são, na perspectiva de Walt Whitman (Ribeiro Dias, 2000),
os diferentes níveis de si mesmo – eu, eu-mesmo, eu-eu mesmo.

Trata-se, então, de perceber que este MEDO DA VIDA não é fobia, não é patológico17,
não precisa obrigatoriamente de terapia. É “normal”, mas precisa, URGENTEMENTE, de
ser educado. Se assim não for, fica a tristeza, se para tal houver coragem, de perceber
(em termos pessoais e civilizacionais) a distância entre o que é e o que poderia ter
sido, mas não foi.

todos os seres humanos, a ampliação da liberdade de pensamento, sentimento e expressão crítico-


criativa, a promoção da solidariedade e do respeito à alteridade” (Kolyniak, 2005:33).
17
São patológicas as condutas que incapacitam para uma vida aceitável – as que são destrutivas para o
sujeito e as que produzem dano a outras pessoas (Marina, 2006:111)

22
3. A Pesquisa
As coisas têm vida própria, é tudo uma questão de lhes
acordar a alma – Gabriel Garcia Marquez

Reconhecendo que
“todas as capacidades do homem confluem para a constituição do nível
máximo de consciência da própria identidade, da própria missão, do próprio
destino” (Ribeiro Dias, 2000:92);
perfilhando um conceito de Desenvolvimento Humano que vê a pessoa como
“ser transcendente (possibilidade de ser ele mesmo), como alguém que se
relaciona com o outro em posição de igualdade, sendo este outro parte
importante na construção da sua identidade, em relação dialéctica com o
mundo (o cosmos), criando e re-criando ambientes que o fazem cada vez
mais humano” (Jaramillo, 2005a:90);
considerando que
“a ciência pós-moderna sabe que nenhuma forma de conhecimento é, em si
mesma, racional; só a configuração de todas elas é racional. Tenta, pois,
dialogar com outras formas de conhecimento deixando-se penetrar por elas”
(Sousa Santos, 1988:55),
para conseguir uma melhor compreensão da realidade estudada, esta pesquisa
procurou: (1) deixar-se inquietar por diversas fontes de dados – dados objectivos,
subjectivos e inter-subjectivos; dados expressos por publicações científicas, jornais e
revistas; dados expressos com quem se partilham ideias; dados percebidos através
da relação com o mundo....; (2) indagar de várias maneiras e por muitos caminhos;
(3) utilizar a biografia da própria investigadora para, encarnando o projecto, não
fechar o saber num enquadramento teórico explicativo, mas, compreendendo os
processos e fazendo a descoberta de uma cultura que se concretiza na mente e nas
acções de quem investiga, buscar o sentido do conhecimento na construção da vida
(Patton, 2002; Morin, 2002; Torre, 2008; Zemelman, 1996; Jaramillo, 2006b).

O quadro I.1 é uma representação gráfica da síntese geral da investigação realizada


e comporta os seguintes elementos:
- enquadramento do tema e do processo da pesquisa no tempo global de vida
pessoal, relacional e cósmico: eu-outros-cosmos;
- enquadramento metodológico: investigação qualitativa;
- actores e momentos da pesquisa: pessoa, educadora, autores, outros;
- propósito da pesquisa: proposta educativa;

23
- perguntas de investigação: “como?”; “o quê?”; “por quê?”; “para quê?”;
- categorias de análise: quem, o quê, por quê, como, para quê.

O Medo e o Desenvolvimento Humano


EU-
EU-OUTROS-
OUTROS-COSMOS
Eu Pessoa

TR

Eu Educadora

IA
Complementaridade-Pesquisa Colaborativa

NG
Com os Autores

UL


Procurando com Outros
Investigação Qualitativa

ÃO
Pessoa-Educadora-Autores-Outros
1. COMO pode o educador lidar com o seu Categorias de Análise
medo e ajudar as pessoas a enfrentarem os
seus medos e terem uma vida serena, útil e
corajosa? Quem
2. O QUE faz com que uma vida seja serena, O Quê
útil e corajosa?
3. POR QUE o educador só pode ajudar outros Por Quê Proposta
a enfrentarem os seus medos e a terem uma
vida serena, útil e corajosa depois de ele ter
Como Educativa
entrado no processo de enfrentar os seus? Para Quê
4. PARA QUE serve uma vida serena, útil e
corajosa?
EU – OUTROS – COSMOS
Quadro I.1 – Síntese geral da pesquisa.

3.1 Caminhos, fases, actores e enquadramento da


pesquisa

Trilhando os caminhos e aceitando os desafios da Investigação Qualitativa


(nomeadamente os que são colocados pela Complementaridade e pela Pesquisa
Colaborativa), o processo de investigação, que ocorreu entre os anos de 2001 e
2008, desenrolou-se numa sequência cumulativa e numa permanente TRIANGULAÇÃO
entre diversos ACTORES E TEMPOS (quadro I.2):

Etapa 0. Por outros caminhos.


- Construção de um projecto “clássico”.

Etapa 1. Na procura de caminhos.


• Fase reflexiva e de aproximação à pesquisa.
- Emergência do tema a partir do trabalho pessoal (primeira parte
do trabalho de campo).

24
- Construção do referencial interno.
a. Eu Pessoa ► Eu Educadora
- Revisão da literatura, perguntas de investigação, desenho da
investigação.
b. Eu Pessoa ► Eu Educadora ► Com os Autores

Etapa 2. Caminhando.
• Fase de aprofundamento.
- Trabalho com o grupo de pesquisa colaborativa – sessões do
grupo (segunda parte do trabalho de campo).
c. Eu Pessoa ► Eu Educadora ► Com os Autores ►
Procurando com Outros

O Medo e o Desenvolvimento Humano


EU – OUTROS – COSMOS

Eu Pessoa
Complementaridade - PesquisaColaborativa


TR
Investigação Qualitativa

Eu Educadora
IA
NG


UL

Com os Autores


ÃO

Procurando com Outros



Pessoa-Educadora-Autores-Outros
EU – OUTROS – COSMOS
Quadro I.2 – Caminhos, actores e tempos da pesquisa.

Etapa 3. Achando luzes.


• Fase de leitura da informação recebida.
- Trabalho com o grupo de pesquisa colaborativa – análise da
informação.
d. Eu Pessoa ► Eu Educadora ► Com os Autores ►
Procurando com Outros.
- Interpretação-triangulação entre a realidade empírica, a realidade
conceptual e a perspectiva da investigadora.
e. Pessoa-Educadora-Autores-Outros
• Fase de construção de sentido.
f. Pessoa-Educadora-Autores-Outros
• Fase de apresentação e discussão dos significados encontrados.

25
g. Pessoa-Educadora-Autores-Outros ► Procurando com
Outros.
h. Pessoa-Educadora-Autores-Outros

Etapa 4. Novos caminhos.


• Fase de identificação de novos projectos e novas perguntas.
i. Pessoa-Educadora-Autores-Outros

Deixando para espaço próprio18 a explicação do que acima denomino “etapa 0 –


PROCURANDO POR OUTROS CAMINHOS”, passo directamente à explicação breve de
cada uma das restantes quatro etapas.

A etapa 1, “NA PROCURA DE CAMINHOS” é construída a partir de dois tipos de trabalho.


Relativamente à “emergência do tema a partir do trabalho pessoal – eu
pessoa e eu educadora” (primeira abordagem do trabalho de campo) e
“construção do meu referencial interno”, julgo que o que até agora foi
apresentado é suficiente para compreender as razões que estiveram
subjacentes às opções tomadas. Resta acrescentar que, na mesma
perspectiva não dualista com que procuro encarar esta pesquisa, só em
termos de discurso é possível separar o “pessoal” do “profissional” dado que
os dois se completam e mutuamente se alimentam.
Relativamente ao segundo, “com os autores” (o trabalho de revisão da
literatura), não posso deixar de retomar a ideia de que, tal como observador
e objecto de observação não são elementos estanques, mas duas faces da
mesma moeda, também leitor e leitura não podem ser separados. Porque
não existe leitura neutra e objectiva, porque o leitor é co-produtor da obra do
escritor (Boff, 1998), todas as interpretações, selecções e conexões
estabelecidas com o tema se baseiam em experiências de vida e, por isso,
na subjectividade do sujeito-leitor. Também por isso, é daqui que nasce(m)
pergunta(s) de investigação que se torna(m) “morada” (Jaramillo, 2006b) e,
daí, se avança para uma nova configuração do desenho da pesquisa.

A etapa 2, “CAMINHANDO”, “fase de aprofundamento”, é, simultaneamente, a segunda


abordagem do trabalho de campo e o início da pesquisa colaborativa
(“procurando com outros”). Contudo, e muito embora este processo de

18
Ver “Capítulo 1 Roteiro – 2.2 Descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas”.

26
investigação aponte como preferencial a participação de cada um dos
membros da equipa em todas as fases do projecto, neste caso, e por força
dos propósitos académicos em causa, desenvolveu-se mais numa
perspectiva de cooperação (Trigo & Kon-Traste, 2001:57). Isto é, mais
localizada no tempo de formação-educação de adultos e, na etapa seguinte
(na fase de “leitura da informação recebida”), com o grupo mais restrito de
informantes-chave.

A etapa 3, “ACHANDO LUZES”, é composta por três fases. A “fase de leitura da


informação recebida” começa por ainda ser de pesquisa colaborativa, com
um grupo de informantes-chave. Mas, logo a seguir, para fazer a triangulação
entre a realidade empírica, a realidade conceptual e a perspectiva da
investigadora (de interpretação e preparação do documento final) passa a ser
de reflexão solitária (mas não isolada), pois, muito embora não fisicamente
presentes, congrega todos os tempos e todos os intervenientes na pesquisa
(“pessoa-educadora-autores-outros”). Tal como também acontece na fase
seguinte, “construção de sentido”, é o tempo do meu regresso ao silêncio.
Porém, a última fase desta etapa, “apresentação e discussão dos
significados encontrados”, retoma o trabalho com o grupo de pesquisa
colaborativa para fazer a afinação da análise.

A etapa 4, “NOVOS CAMINHOS”, sendo, de todos, o de menor duração, volta ao


trabalho solitário. Para, por um lado, e pela explanação das conquistas
realizadas e das dificuldades encontradas, encerrar o processo, mas, por
outro, e pela definição de novos projectos e de novas perguntas, possibilitar
a sua reabertura futura.

Finalmente, e no mesmo quadro I.2, “EU-OUTROS-COSMOS”, como contextualização


de todos estes momentos e do tema, destacando que se situam num tempo
ecológico de comunicação pessoal, relacional e cósmica. Primeiro, como sinal da
crescente percepção de que (na vivência do tema e no desenvolvimento da
pesquisa), a nossa importância e responsabilidade é tanta que, ainda que a
repercussão da nossa acção só fosse reconhecida nos espaços imediatamente
próximos, não pode também deixar de ser assumida nas ondas de repercussão

27
maiores da sua/nossa própria existência19. Segundo, e porque o tempo ecológico é
uma via de dois sentidos, como sinal da crescente consciência de que aquilo que
fomos (e somos), aquilo que nos moveu (e move), está também imbuído das
energias que nos circundam - com elas precisamos ganhar sintonia e nelas ler os
propósitos.

“A partir do momento em que um indivíduo empreende uma acção, seja ela qual for,
esta começa a escapar às suas intenções. Esta acção entra num universo de
interacções e é finalmente o meio ambiente que a agarra num sentido que pode
tornar-se contrário à intenção inicial. Muitas vezes a acção retorna sobre a nossa
cabeça como um boomerang (…). A ecologia da acção é (…) ter em conta a sua
própria complexidade, isto é, risco, acaso, iniciativa, decisão, inesperado, imprevisto,
consciência das derivas e das transformações” (Morin, 2002:93).

3.2 Propósito e perguntas de investigação

• Propósito

A velha sabedoria oriental diz-nos que “quando o discípulo está pronto, o mestre
aparece” (Moffit, 2002b). O grande passo tem de ser dado pelo discípulo – porque
não há aprendizagem sem motivação e não há motivação sem consciência da
necessidade de aprendizagem; porque, mesmo tendo havido um empenho árduo em
forçar a consciência da necessidade, só se ensina quando o outro aprende; porque
o mestre é só aquele (ou aquilo) que facilita a criação das condições de
aprendizagem.

Por isso, e considerando que “adulto” não é alguém biologicamente maduro, mas
quem:
- é capaz de pesar os ganhos e as limitações-desafios do já vivido;
- tem a certeza de que pode fazer algo de único com a sua vida pois é possível
atingir patamares mais elevados na sua condição de ser humano;

19
Também por esta razão, e na medida da nossa consciência e autocrítica, todos os momentos da
pesquisa são descritos detalhada e “encarnadamente” no “Capítulo 1 Roteiro – 2.2 Descrição do
cronograma” e, em “IV – Reabrir um novo caminho” é feita uma reflexão sobre os efeitos (em mim e
no grupo de pesquisa colaborativa) do trabalho realizado.

28
- sabe (nas entranhas) que é pela sua actuação e compromisso que é possível
mudar;
- não matou a sensibilidade do olhar e a capacidade de projectar;
- conserva o sentido da urgência das coisas (da vida) e a paixão pelo porvir;
esta investigação teve como PROPÓSITO chegar a um conjunto de PROCEDIMENTOS E
PRINCÍPIOS EDUCATIVOS que possam ser aplicados, preferencialmente, em contexto
de EDUCAÇÃO DE ADULTOS – não pela eventual dificuldade “técnica” de aplicação ou
compreensão desses procedimentos e princípios, mas porque o seu uso (e eventual
sucesso na criação de novas formas de vida), depende da capacidade (e vontade)
do “discípulo” para (1) tomar CONSCIÊNCIA da presença dos seus medos e da
consequente necessidade de fazer alguma coisa que modifique o estabelecido, (2)
assumir a RESPONSABILIDADE, (3) tomar uma DECISÃO, (4) EXECUTAR o decidido.

O Medo e o Desenvolvimento Humano


EU – OUTROS – COSMOS

1. COMO pode o educador lidar com


o seu medo e, por isso, ajudar as
pessoas a enfrentarem os seus medos
e terem uma vida serena, útil e corajosa?
2. O QUE faz com que uma vida seja
serena, útil e corajosa?
3. POR QUE razão o educador só pode
Proposta
ajudar outros a enfrentarem os seus medos Educativa
e a terem uma vida serena, útil e corajosa,
depois de ele próprio ter entrado no
processo de enfrentar os seus?
4. PARA QUE serve uma vida serena, útil e
corajosa?
EU – OUTROS – COSMOS
Quadro I.3 – Perguntas, propósitos e categorias de análise da pesquisa.

• Formulação e explicitação do sentido das perguntas


da pesquisa.

“Habitar a pergunta, ver-se no meio dela, (...) vê-la por muitas arestas e perspectivas
que saem de tempos e lugares absolutos de uma cientificidade positiva; poderíamos
dizer que a pergunta emerge ao constituir ela própria o seu tempo e o seu lugar.
Deste modo, a pergunta faz-se presente enquanto é parte dos investigadores e não
só uma indagação que lhes é alheia. A pergunta chega, é percebida
constitutivamente, deixa de ser somente objectiva e teórica; poderíamos dizer,
fenomenologicamente, que se constitui Morada, em indagação original na qual o

29
investigador pode reconhecê-la e fazê-la sua, é co-dependente dela (e ela dele) e,
graças a isso, é livre para decidir como desejaria construir o itinerário metodológico
para resolvê-la” (Jaramillo, 2006b:xix).

A PERGUNTA CENTRAL e as PERGUNTAS DERIVADAS desta investigação são fruto de


um processo que, para melhor compreender o significado do tema da pesquisa e
corresponder aos seus propósitos, procurou fazer a articulação entre o trabalho
pessoal e a fundamentação teórica. Assim, e num momento de “eureka” cujo
disparador foi a leitura do texto de Csikszentmihalyi (1998) sobre vida plena, surge o
esboço das primeiras perguntas de partida que, com o desenvolvimento do
processo, acabam por vir a ter a seguinte formulação:

- PERGUNTA CENTRAL (em correspondência directa com o propósito da pesquisa).


a) Procedimentos – Como pode o educador lidar com o seu medo e, por
isso, ajudar as pessoas a enfrentarem os seus medos e a terem uma vida
serena, útil e corajosa?
- PERGUNTAS DERIVADAS.
b) Conceptual – O que faz com que uma vida seja serena, útil e corajosa?
c) Memória – Por que razão o educador só pode ajudar outros a
enfrentarem os seus medos e a terem uma vida serena, útil e corajosa,
depois de ele próprio ter entrado no processo de enfrentar os seus?
d) Existencial – Para que serve uma vida serena, útil e corajosa?

Duas questões presidem à PERGUNTA CENTRAL, dos PROCEDIMENTOS, do “como”. Por


um lado, os significados de “percepção clara” e de “trabalho diligente” contidos nos
verbos “enfrentar” e “lidar” e que remetem para o conceito de acção20 (Sérgio, 1986).
Por outro (e estando já aqui implícita a pergunta do “por quê), a consideração da
importância da presença de um educador que, consciente e intencionalmente, se
faça também educando (Freire, 2003).

Preside à PERGUNTA CONCEPTUAL, do “o quê”, o entendimento da importância da


presença na vida de três sinais distintivos (“serenidade”, “utilidade” e “coragem”)
que, na sua mútua implicação, são considerados como antagónicos dos atributos do
medo. Congregando, na sua inter-relação, o pensamento de Csikszentmihalyi
(1998), Sturner (1996) e de Nolan (2001) e, na sua explicitação singular, o

20
Acção – “qualquer acto intencional (interno e externo; observável e não observável) – a
interrelação entre pensamento, emoção, intenção, inquietude, consciência, energia” (Trigo, 2006:64).

30
pensamento de Maslow (1991), Rogers (1970), Frankl (1994), Maturana (2000),
Freire (2003), Morin (2003, 2006), Max-Neef (1993) e outros, tais sinais podem, em
termos esquemáticos, ser caracterizados da seguinte maneira:

O que não é O que é


Apatia. Alegria.
Conformismo. Sentido de Coerência.
Serenidade

Centrar
Satisfação das necessidades básicas. Auto-realização.
Passividade. Silêncio-Harmonia-Paz – consigo mesmo, com os Outros,
com o Cosmos.
Consenso ou ausência de conflito. Unidade – descoberta de relação e sentido.
Tabela I.1 – O que é e o que não é “serenidade”.

O que não é O que é


Desempenho puro e simples de Sentido de vida pessoal.
papéis socialmente atribuídos.
Correspondência pura e simples a Sentido de vida relacional.
Utilidade

expectativas sociais.

Agir
Ajustamento. Adequação.
Nível de vida. Qualidade de vida.
Níveis elevados de produtividade Uma mais valia (criatividade benéfica e positiva) para si e
económica. para os outros.
Tabela I.2 – O que é e o que não é “utilidade”.

O que não é O que é


Temeridade. Confiança.
Determinação.
Imprudência. Capacidade de encarar problemas como desafios.
Capacidade de arriscar.
Coragem

Celebrar
Capacidade de transgredir e de ser diferente.
Capacidade de permitir que o futuro aconteça.
Arrogância. Capacidade de viver com o coração e de descobrir
significados.
Sabedoria – encontro do coração e do intelecto.
Força para desfazer dicotomias e viver na plenitude.
Tabela I.3 – O que é e o que não é “coragem”.

A PERGUNTA DA MEMÓRIA, do “por quê”, do presente do passado (consequência da


pergunta dos procedimentos e da consideração de que se é educador-educando),
tem na sua base a reflexão feita sobre a importância de dois momentos do processo
educativo: o desenvolvimento pessoal do educador e o procedimento didáctico
desse mesmo educador em relação às pessoas com quem trabalha. O que significa
que só um educador que tenha aprendido a lidar com os seus medos (ou aquele
que, pelo menos, já se tenha iniciado nesse processo), tem legitimidade para ajudar
outros a enfrentarem os seus. Isto é, só o educador em processo, porque em
movimento (qualquer que seja o ponto da espiral de crescimento em que se
encontre), ganha o direito de “aplicar” procedimentos didácticos. Para além de uma
questão de honestidade, é uma questão de eficácia – os processos que implicam o

31
Ser não podem ser transmitidos senão pela utilização total do Ser. Não é a mente,
nem a emoção, nem o corpo, nem o espírito (que, por si só, são “retalhos” do Ser),
que podem substituir a acção do Ser.

Finalmente, a PERGUNTA EXISTENCIAL, que remete para o plano espiritual, para a


autoresponsabilização e para o compromisso, é a pergunta da procura de sentido
para uma vida que se vai tornando “serena, útil e corajosa” (Frankl, 1994; Feitosa,
2006).

• Interligação dos conceitos presentes nas perguntas


de investigação.

PERGUNTAS VIDA PLENA ACÇÃO DESENVOLVIMENTO HUMANO


INVESTIGAÇÃO INTENCIONAL - definição – - para quê -
Uma vida Manutenção 1. Tomada de 1. Processo - como espécie e Consciência
SERENA CENTRAR consciência contínuo de como indivíduo
MEDITAR construção - na dialéctica de si
de descoberta 2. Responsabilização do humano. natureza-cultura do outro
de relação e simplesmente ser do cosmos
sentido dos 3. Decisão
diversos tempos
de vida
(pessoal,
cultural,
cósmico)
Uma vida ÚTIL Produção 4. Execução 2. Implica uma - condições dignas Transformação
AGIR praxis de existência
portadora de CRIAR orientada material e um outro mundo é
valor por valores. espiritual. possível
o ser criador e - liberdade de
criativo pensamento,
sentimento,
expressão crítico-
criativa
- solidariedade
- alteridade
Uma vida Ócio →→→→→→→ 3. Refere-se à - motricidade Felicidade
CORAJOSA CELEBRAR ↑ consciência ↓ totalidade humana Partilhada
↑responsabilização↓ complexa.
de plenitude, o prazer da ↑ decisão ↓
desfazer das unidade do ser ↑ execução ↓
dicotomias ←←←←←←←
Tabela I.4 – Interligação de conceitos.

Ao longo de todo este processo de criação, muitos “outros e simultâneos” foram os


tempos de incubação, os momentos de eureka, os tempos de avanço e os tempos
de retrocesso que, para além da formulação das perguntas, levaram à consolidação
daquilo que “procurei-descobri” ser sinal de coerência interna da pesquisa. Assim, e

32
como explicação de como vejo que tudo se liga, coloco na tabela I.4 a
correspondência entre o conteúdo conceptual das perguntas de investigação e:
- os caminhos de criação e de vida plena (Sturner, 1996, Csikszentmihalyi,
1998; Nolan, 2001);
- os movimentos centrífugo e centrípeto dos momentos da acção intencional e
do processo da mudança (Sérgio, 2005a);
- as ideias centrais do conceito de desenvolvimento humano aqui em causa
(Kolyniak, 2005);
- o “para quê” do desenvolvimento humano (Trigo & Coego, 2003).

A SERENIDADE da vida (tempo e fruto do centrar-alimentar, da atenção da pessoa


sobre si mesma, do silêncio e da continuidade que dá sentido e força ao agir), é
construída na consciência de quem se é e do para que se existe. A UTILIDADE da
vida (tempo e fruto do agir, efeito da condição anterior e razão do celebrar) é
transformação coerente entre diversos campos da vida. A CORAGEM (tempo e fruto
do celebrar, do agradecer e do abençoar a unidade do Ser) é o fazer da paz e da
felicidade partilhada e, por isso, o inspirar e comprometer num novo ciclo de vida.

• Interligação entre o conteúdo conceptual das


perguntas de investigação, o campo de criação e o
processo da pesquisa.

Resultou do tempo em que comecei entendendo que o CONTEÚDO CONCEPTUAL das


perguntas, construídas inicialmente (só) com o propósito de orientar a compreensão
do tema da investigação, tinha também uma interligação profunda, tanto com o
PROCESSO, como com o próprio CAMPO DE CRIAÇÃO da pesquisa (Tabela I.5 e
Ilustração I.5). Aqui me descobri, finalmente, “habitando a pergunta” (Jaramillo,
2006):

Conteúdo Conceptual Perguntas de Investigação Campo de Criação


Centrar, meditar, manutenção “O que faz com que uma vida...?” Educação de Adultos
Serenidade  “Por que razão o educador...?”  Motricidade Humana
Agir, criar, produção “Como pode o educador lidar...?” Criatividade
Utilidade  
Celebrar, ócio “Para que serve uma vida...?” Desenvolvimento
Coragem   Humano
Tabela I.5 – Paralelos entre conteúdo conceptual, perguntas de investigação e campo de criação.

33
- Porque, pelas perguntas de “O QUÊ” e do “PORQUÊ”, se possibilita uma atitude e
um clima de CENTRAÇÃO e SERENIDADE – e isso é EDUCAÇÃO e MOTRICIDADE
HUMANA, descoberta da complexidade multidimensional, da essência, do sentido
e da repercussão da própria existência do sujeito como Ser (Trigo, 2006;
Azevedo & Louro, 2006).

- Porque, pela pergunta do


“COMO”, se possibilita uma
atitude de PRODUÇÃO e
Conteúdo
conceptual das
Processo
de
CRIAÇÃO – e isso é
perguntas investigação
CRIATIVIDADE que acrescenta
ao mundo alguma coisa,
Campo
de
nova e com valor (Isaksen et
criação
al, 1994).

Ilustração I.5 – Interligação entre conteúdo conceptual, - Porque, pela pergunta do


processo de investigação e campo de criação.
“PARA QUÊ”, se possibilita o
prazer de quem CELEBRA a plenitude que se encontra no que se é e no que se
faz – e isso é a CORAGEM de se assumir na totalidade do DESENVOLVIMENTO
HUMANO (Kolyniak, 2005).

3.3 Categorias de análise


O Medo e o Desenvolvimento Humano
EU – OUTROS – COSMOS

Categorias de Análise
Quem?
O Quê?

Como?

Por Quê?

Para Quê?

EU – OUTROS – COSMOS
Quadro I.4 – Categorias de análise da pesquisa.

As categorias de análise são o resultado (revisto e aceite por três especialistas), do


trabalho feito com os informantes-chave do grupo de investigação colaborativa sobre

34
a transcrição das sessões de trabalho desse mesmo grupo21. Compreendem
categorias, sub-categorias e sub-subcategorias criadas por via dedutiva (que emana
do referencial interno e da revisão da literatura), e por via indutiva (que emana das
transcrições das sessões e dos resultados da observação participante) que podem
ser assim muito sucintamente descritas:

a) Quem. Porque as relações que o ser humano estabelece consigo próprio, com
os outros e o com o mundo são determinadas pela consciência / percepção de si
mesmo (Guenther & Combs, 1980), (o que, por inerência, condiciona aqui o
conteúdo das restantes categorias de análise desta pesquisa), esta categoria
reúne todas as narrativas em que os participantes falam sobre si mesmos ou
sobre o grupo em que estão inseridos. Apresenta duas grandes sub-categorias:
a. As pessoas do grupo – caracterização geral, razões, expectativas e
efeitos por participar.
b. O grupo de pesquisa colaborativa – clima do grupo, dimensões do
Situational Outlook Questionnaire (Isaksen et al, 1995); estilos de
criação, dimensões do VIEW (Selby et al, 2003).

b) O quê. Sendo a categoria conceptual, reúne as seguintes sub-categorias.


a. Definições e caracterização do medo - os participantes dizem o que,
na sua experiência, é o medo e descrevem alguns dos seus atributos.
b. Relação e explicação dos medos – explicação do sentido de muitos
medos, tanto experimentados em si mesmos, como percepcionados
pelos membros do grupo em outras pessoas ou situações.
c. Efeitos do medo – situações de causa-efeito, consequências não
intencionais do medo (reacções automáticas, bloqueios, obstáculos,
limitações, respostas imediatas, respostas reflexas), em termos
físicos, emocionais, relacionais, mentais, etc., que, por si só, e porque
actuam num círculo vicioso, nada acrescentaram às pessoas.

c) Como. Sendo a categoria processual, reúne as seguintes sub-categorias:


a. Como os outros reagem aos nossos medos – percepções-
interpretações-reacções-valores-significados atribuídos por outras
pessoas a alguns dos medos indicados pelos participantes (seja na
perspectiva directa “do outro”, seja na leitura que o próprio faz das

21
Ver “Capítulo 1 – 2.2 Descrição do cronograma; 2.4 Processamento de dados”, “Anexo 3 –
Transcrição das sessões do grupo de pesquisa” e “Anexo 4 – Descrição das categorias de análise”.

35
reacções das outras pessoas relativamente às suas atitudes,
sentimentos e comportamentos).
b. Processo de lidar com o medo centrado na conservação –, congrega
formas de reacção ao medo em que, muito embora haja consciência
da acção, são estratégias de disfarce, de evitamento e de fuga pois
pretendem a continuidade de uma dada situação através do auto-
engano e da paralisação de actos e de pensamento.
c. Processo de lidar com o medo centrado no desenvolvimento humano
– formas de acção sobre o medo apresentadas e, de alguma maneira,
experimentadas ou identificadas pelos participantes (por isso, não
normativas), que promovem o desenvolvimento humano: num
movimento duplo do exterior (universo) para o centro (nós), ou do
centro (tomada de consciência e tomada de decisão) para o exterior
(estratégias e execução) (Kolyniak, 2005; Sérgio, 1986).

d) Por Quê. Sendo a categoria da memória, reúne as seguintes sub-categorias:


a. Razões do medo – motivos que levaram à ocorrência do medo (tanto
experimentados pelos membros do grupo, como por eles
percepcionados em outras pessoas ou situações).
b. Pessoas que influenciaram – indicações sobre pessoas que, em
qualquer momento da vida, tiveram um tipo de actuação que, de uma
forma ou outra, criou as condições para se ter medo.
c. Razões para não ter medo – motivos que levaram à ausência do
medo (tanto experimentados pelos participantes, como por eles
percepcionados em outras pessoas ou situações).
d. Pessoas que influenciaram – indicações sobre pessoas que, em
qualquer momento da vida dos participantes, tiveram um tipo de
actuação que, de uma forma ou outra, criou as condições para que se
não tenha medo.

e) Para quê. Sendo a categoria existencial, reúne as seguintes subcategorias:


a. Para a conservação social – a possibilidade da utilização do medo
como garantia do controlo e da reprodução social.
b. Para o desenvolvimento humano – a perspectiva existencial do medo,
em termos individuais e sociais, no sentido do desenvolvimento
humano.

36
4. Organização da Tese

I. Processo da Pesquisa
Introdução
Cap. 1 – Roteiro
II. Centrar
Cap. 2 – Descobrir os próprios caminhos
Cap. 3 – Descobrir caminhos de outros
III. Agir
Cap. 4 – Criar o caminho
IV. Celebrar
O Sentido do caminho
Reabrir um novo caminho

Quadro I.5 – Resumo do índice da tese.

O relatório deste estudo exploratório tem quatro partes (quadro I.5). A primeira,
orientada para a explicação do PROCESSO DA PESQUISA, contém, para lá desta
Introdução, o Roteiro do caminho percorrido. Cada uma das restantes três, orientadas
para a apresentação dos RESULTADOS PARCIAIS E GLOBAIS da pesquisa, correspondem,
a um dos estados ou caminhos de criação (Sturner, 1996).

• I. Processo da Pesquisa

INTRODUÇÃO: a introdução, que este ponto sobre a organização da tese encerra,


procurou situar e fazer o retrato geral da investigação realizada – na sua
perspectiva epistemológica, ontológica, conceptual e metodológica.

CAPÍTULO 1 – “ROTEIRO”: é a explicação do desenho da investigação e a descrição do


caminho percorrido em todas as fases do processo da pesquisa. Enquanto
processo criativo que é, este processo inscreve-se num sistema dinâmico que
engloba: (1) o PRODUTO, a tese, que, enquanto investigação aplicada e com o
propósito de fazer inovação educativa e didáctica, incorpora diferentes
cosmovisões e linguagens num conceito multidimensional de desenvolvimento
humano (Morin, 2003; Bachelard, 2002; Sousa Santos, 1988); (2) as PESSOAS,
os investigadores, que, numa conciliação da dualidade de papéis de
investigadores-investigados, se colocam na disposição e vontade de
transformarem o conhecimento em consciência (Zemelman, 1996); (3) a

37
PRESSÃO, o contexto da pesquisa, que, matizado por um “conhecimento
saboreado-vivido”, incorpora uma atitude de “habitar a pergunta” e de “jogar a
inventar modelos” (Jaramillo, 2006b); (4) o PROCESSO, as fases e operações
realizadas que, num desenvolvimento não linear, mas cíclico, passam pela
compreensão do problema, pela produção de ideias e pela avaliação e
planeamento da acção (Isaksen et al, 1994).
São, por isso, duas as funções deste espaço. Por um lado, explicar a
interligação e o sentido da complementaridade e da pesquisa colaborativa no
contexto da investigação qualitativa. Por outro (e porque não procederam de
um desenho pré-estabelecido), descrever detalhadamente as etapas,
estratégias e actividades desenvolvidas ao longo de todo o processo para que,
também por esse meio, se cumpram critérios de aplicabilidade e
comparabilidade da pesquisa.

• II Centrar

A segunda parte da tese engloba o que, sob a égide dos caminhos de criação e de
vida plena (Sturner, 1996), foi construído num caminho de centração. Isto é, um
caminho que é feito no silêncio, na reflexão e na atenção da pessoa sobre si mesma e
que, por essa via, permite aceder a uma maior consciência de si, uma maior
consciência dos outros, uma maior consciência do mundo. Correspondendo à etapa 1
da pesquisa, “na procura de caminhos”, esta segunda parte compreende os dois
capítulos que, genericamente, ajudaram a compreender e situar o tema e o problema
da pesquisa.

O CAPÍTULO 2 – “DESCOBRIR OS PRÓPRIOS CAMINHOS”, feito a partir da reflexão sobre a


minha própria experiência de vida pessoal e profissional e numa conciliação
dos papéis de observador e observado, integra o meu REFERENCIAL INTERNO –
isto é, os conhecimentos extra-teóricos e empíricos produzido antes da revisão
bibliográfica. Utilizando, no seu primeiro texto, uma linguagem metafórica, e, no
segundo, recorrendo a memórias do vivido, é o produto daquela que foi a
primeira abordagem do trabalho de campo.

O CAPÍTULO 3 – “DESCOBRIR CAMINHOS DE OUTROS”, é construído numa perspectiva de


interdisciplinaridade e está mais voltado para a compreensão do problema

38
numa perspectiva de ecologia de saberes* do que em função do estudo de
uma disciplina específica (Patton, 2002; Torre, 2008). Tendo como espinha
dorsal os principais temas da tese (medo e desenvolvimento humano) e a
compreensão e explicitação dos conceitos do campo de criação da pesquisa, é
resultado não só de um longo processo de revisão bibliográfica (que
antecedeu, acompanhou e sucedeu à segunda fase do trabalho de campo),
como também da interacção criativa entre o pensamento dos autores e a
minha introspecção como investigadora. Porque é fruto de um trabalho feito no
silêncio e na procura de compreensão do tema e do problema de investigação,
está integrado na segunda parte, “centrar”.

• III Agir

A terceira parte da tese (enquanto prolongamento “natural” e inevitável da centração e


do entendimento da responsabilidade que vem da consciência de si, da consciência
dos outros e da consciência do mundo), é construída no caminho do agir. Fruto de um
trabalho de execução, feito de dentro para fora, engloba o capítulo que corresponde à
etapa 2 da pesquisa, “caminhando”.

O CAPÍTULO 4 – “CRIAR O CAMINHO”, utiliza as categorias de análise das transcrições


das sessões da segunda abordagem do trabalho de campo para, a partir delas,
fazer a LEITURA E INTERPRETAÇÃO DA INFORMAÇÃO RECEBIDA. Com cinco pontos
distintos, cada um deles parte de uma das principais categorias de análise (1.
quem; 2. o quê; 3. como. 4. por quê; 5. para quê), para, pelo cruzamento e
triangulação com as restantes, procurar responder a cada uma das perguntas
da investigação. Constrói-se, assim, um texto interpretativo e de diálogo entre
os vários actores e tempos da pesquisa.

• IV Celebrar

O MEDO, enquanto emoção, é uma resposta reflexa a O DESENVOLVIMENTO HUMANO é um movimento em


determinados estímulos; enquanto sentimento, permite espiral, consciente e intencional, com ondas de
a criação de uma estatégia de protecção; mas, repercussão que flúem entre os contextos micro e
enquanto estado de alma (não patológico, mas macro, em princípio acessível a qualquer indivíduo

39
encarnado, enraízado e subtil), é muito mais uma que, por criação própria e em busca de sentido na
forma de estar no mundo – não uma coisa que se sua totalidade complexa, rompe as barreiras da
tenha, mas uma condição em que se está e em que se gente cinzenta, sem graça e com medo, alarga as
vive e que, em causalidade circular, tem, no modo de fronteiras da desconfiança, da apatia e da
percepção do eu, a matéria prima da sua força e, na mediocridade feita norma e, com isso, assegura a
dualidade e infidelidade a nós mesmos, um dos seus possibilidade de construção de mundos de alegria e
efeitos mais desintegradores e limitadores. de paz.

Desembocando nas duas definições acima transcritas22, a última parte da tese retoma
todos os pontos anteriores e, à maneira de conclusão, por um lado, CONSTRÓI E
ENCONTRA SENTIDO, e, por outro, REABRE UM NOVO CAMINHO.

“O SENTIDO DO CAMINHO”, que corresponde à etapa 3, “achando luzes”, é um processo


de recriação dos aspectos mais significativos da tese e cumpre duas funções:
- A primeira, apresentar o que quer ser um contributo para a construção de tipos-
ideais que conjuguem os atributos comuns à média das distintas formas de
lidar com o medo. É o meio encontrado para ajudar a perceber que o medo
afecta a nossa vida de diferentes maneiras – se for construtivo e apropriado, é
um incentivo para a acção criadora e transformadora da existência humana; se
for destrutivo e desadequado, ou então, ignorado, disfarçado ou negado, pode
converter-se num disparador de dualidades desintegradoras e limitadoras da
unidade, totalidade e do sentido da relação da pessoa consigo mesma, com os
outros e com o mundo.
- A segunda, e a partir da interacção de três áreas estruturadoras da construção
do humano (Educação de Adultos, Criatividade e Motricidade Humana), criar e
enquadrar um conjunto de PRINCÍPIOS EDUCATIVOS que orientem um programa
de educação de adultos: o princípio da individuação-integração (o sentido da
mudança); o princípio da inquietação (a percepção-consciência do sujeito em
relação); o princípio da coerência da acção e do reconhecimento de si mesmo
(o motor, o provocador do movimento); o princípio do testemunho e do contágio
(as condições do terreno).

“REABRIR UM NOVO CAMINHO” é o olhar a obra feita, é a avaliação-celebração de todo o


processo, a que corresponde à última etapa da pesquisa, “novos caminhos”.
Tal como o anterior, cumpre duas funções que se interpenetram – encerrar um
ciclo e, nesse encerrar, abrir um ciclo novo. O encerramento do ciclo

22
Ver “IV Celebrar – O sentido do caminho – Proposta educativa”.

40
corresponde, naturalmente, ao fim desta tese. Em jeito de “tempo da colheita”,
regressa às suas bases para olhar e pesar o fruto – do ponto de vista
epistemológico, ontológico, metodológico, mas também do ponto de vista do
grupo da pesquisa e do ponto de vista pessoal. O abrir de um novo ciclo é,
também ele, extensão da colheita feita. É o tempo dado para saborear as
conquistas e pesar as dificuldades e, com ambas, imaginar as possibilidades e
oportunidades futuras.

41
Capítulo 1
Roteiro
I. PROCESSO DA PESQUISA
Introdução
Capítulo 1 – Roteiro
1. Criação do desenho da investigação
1.1 Os desafios do desenho da Complementaridade e do processo de Pesquisa Colaborativa no contexto
metodológico da Investigação Qualitativa
1.2 Modalidades da investigação
1.3 Critérios de credibilidade
2. Itinerário e crónicas do caminho
2.1 Cronograma
2.2 Descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas
2.2.1 Etapa 0 – por outros caminhos
2.2.2 Etapa 1 – na procura de caminhos
2.2.3 Etapa 2 – caminhando
2.2.4 Etapa 3 – achando luzes
2.2.5 Etapa 4 – novos caminhos
2.2.6 Correspondência entre processo criativo, processo da pesquisa e relatório da pesquisa
2.3 Processo de orientação da tese
2.4 Processamento de dados
2.4.1 Mapa mental das categorias de análise
2.5 Aspectos éticos

II. CENTRAR
Capítulo 2 – Descobrir os próprios caminhos
Capítulo 3 – Descobrir caminhos de outros

III. AGIR
Capítulo 4 – Criar o caminho

IV. CELEBRAR
O sentido do caminho
Para abrir um novo caminho

43
“O conhecimento pós-moderno, sendo total, não é determinístico, sendo local,
não é descritivista. É um conhecimento sobre as condições de possibilidade.
(...) Um conhecimento deste tipo é relativamente imetódico, constitui-se a partir
de uma pluralidade metodológica. Cada método é uma linguagem e a
realidade responde na língua em que é perguntada. Só uma constelação de
métodos pode captar o silêncio que persiste entre cada língua que pergunta.
Numa fase de revolução científica como a que atravessamos, essa pluralidade
de métodos só é possível mediante transgressão metodológica. Sendo certo
que cada método só esclarece o que lhe convém e quando esclarece fá-lo sem
surpresas de maior, a inovação científica consiste em inventar contextos
persuasivos que conduzam à aplicação dos métodos fora do seu habitat
natural” (Sousa Santos, 1988: 48-49).

Foi um texto de Boaventura Sousa Santos que serviu de mote ao fundamento


epistémico desta tese. É com o mesmo autor que, buscando seguimento, me preparo
para começar a informar sobre o que foi o seu processo de indagação. E, no extracto
acima colocado, identifico um conjunto de conceitos e de relações entre conceitos que
considero especialmente relevantes:

método // linguagem
linguagem da pergunta // linguagem da resposta
conhecimento pós-moderno // total-local // condições de possibilidade
revolução-inovação científica // pluralidade metodológica // transgressão metodológica

Isto é, conceitos e relações entre conceitos que, distantes de uma concepção


metodológica linear e meramente técnica, também apontam a necessidade de se
encarar a pesquisa nas ciências sociais e humanas como um acto criador (Bohm &
Peat, 1988) – porque também ela se apresenta como uma situação complexa, com
aspectos múltiplos e conflituosos, onde nem sempre as prioridades são claras; porque
também ela se apresenta como um problema para o qual não há caminho nem solução
previamente definidos; porque também ela se apresenta como um desafio novo que
precisa de soluções inovadoras (Isaksen et al, 1994:34).

44
É por isso que, agora, para informar sobre o processo de investigação desta tese, não
posso dar só notícia das operações realizadas (etapas, métodos, estratégias e
actividades desenvolvidos), mas preciso primeiro de o enquadrar no conjunto do
sistema em que, como processo criativo que é, se integra e de que depende – o
sistema dos 4 P’s (pessoa, processo, produto e pressão) que, porque operam juntos,
definem a abordagem sistémica da criatividade (Isaksen et al, 1994:7).

Começarei, por isso, por reconstituir o que, no espaço da Introdução, especialmente


nos princípios e compromissos então enunciados23, foi definido como sendo o “produto”
desejado, para que depois, e em função das características-desafios que lhe estão
associados, possa fazer a correspondência com o que, nos restantes elementos do
sistema, foi necessário colocar em interacção.

1. O produto – a tese

Tendo como propósito específico chegar a um conjunto de princípios educativos que


possam ser aplicados em contexto de educação de adultos, entendi que, enquanto
propósitos gerais, esta tese deveria, em síntese, assumir e incorporar:

- Um CONCEITO MULTIDIMENSIONAL, ético, solidário e responsável de Desenvolvimento


Humano (Morin, 2006).
- A ESCUTA DAS EMOÇÕES como meio para entender o que acontece na profundidade
de cada pessoa (Damásio, 2003:183).
- A consciência de que a VIDA É UM FENÓMENO COMPLEXO de auto-eco-organização, de
inter-relação com o universo e com o outros (Morin, 2003).
- A ideia de RESPONSABILIDADE PELO NOSSO DESTINO e pelo destino do nosso planeta
(Berman, 1981).
- A noção de que todos os DISCURSOS SÃO ENCARNADOS e que o investigador influi na
construção do objecto do conhecimento (Morin, 2003; Sérgio, 2005a; Varela, 2000).
- DIFERENTES COSMOVISÕES, diferentes maneiras de conhecer e diferentes linguagens
(Sousa Santos, 1988, 2002; Zemelman, 1996; Feitosa, 1999; Capra, 1982; Sisk &
Torrance, 2001; Sousa et al, 1998; Bachelard, 2002; 1998; McCall, 2003).

23
Ver “Introdução – 1.2 Implicações para a pesquisa”.

45
2. A pessoa – os investigadores

Para possibilitar a criação de um produto com as características atrás enunciadas,


passou a ser necessário que, enquanto investigadora, me preparasse e disponibilizasse
para (Zemelman, 1996; Patton, 2002; Jaramillo, 2006b; Martínez Salgado, 1996; Castro,
1996; Bogdan & Biklen, 2006):

- SER PARTE DO OBJECTO DE OBSERVAÇÃO – conciliando a dualidade dos papéis de


investigadora e de investigado para ajudar a ampliar a compreensão sobre o todo
investigado; sentindo que o que queria observar é parte da minha própria natureza e
cultura; utilizando a minha biografia na escolha do tema, na revisão da literatura, na
interpretação dos dados e nos processos de alteridade estabelecidos com os outros
membros do grupo e com síntese e construção de sentido.

- ESTAR PRESENTE COMO SUJEITO REFLEXIVO em todo o processo de investigação –


não como simples operadora, mas seleccionando materiais, vislumbrando
possibilidades, criando os meus próprios caminhos.

- UTILIZAR A SUBJECTIVIDADE – para me tornar sensível e reflexiva sobre tudo o que


acontecesse na investigação, ou fora dela.

- TRANSFORMAR O CONHECIMENTO EM CONSCIÊNCIA – não só com paixão intelectual,


mas como pessoa que quer estar comprometida com o que estuda e que aí procura
encontrar o sentido do conhecimento na construção da história.

3. A pressão – a natureza do contexto da pesquisa

Na minha interacção como investigadora (sujeito-actor-construtor) e a situação que


queria investigar, procurei que o contexto-clima da pesquisa ficasse matizado por um
“conhecimento saboreado-vivido”, por uma atitude de “habitar a pergunta” e por uma
vontade de “jogar a inventar modelos” (Jaramillo, 2006b):

46
- CONHECIMENTO SABOREADO – porque o conhecimento está inseparavelmente
entrelaçado com a minha/nossa história vivida, com o meu/nosso corpo, com a
minha/nossa linguagem, com a minha/nossa história social.

- HABITANDO A PERGUNTA – porque houve três contributos para que a pergunta fosse
sentida como algo que me pertence (como minha morada), em que estou implicada:
(1) o papel dos afectos e da biografia na adesão ao tema da investigação; (2) a
utilização de ferramentas distintas para ir buscar, não só dados objectivos nos livros,
mas também dados subjectivos e inter-subjectivos; (3) o dar forma à pergunta
indagando de várias maneiras e por múltiplos caminhos.

- JOGANDO A INVENTAR MODELOS – porque assumir o problema como morada também


implicou que não fosse o modelo a determinar o problema, mas que fosse o
problema a determinar o modelo e a dar forma ao desenho.
É o efeito lúdico do desafio de criar o próprio caminho de investigação – procurando
pistas, dando tempo, criando métodos, inventando, transgredindo, perdendo-me,
encontrando-me, recriando.

4. O processo – as operações realizadas

O processo, que raramente é linear, é a dimensão que diz respeito ao modo como o
acto criador tem lugar. Com correspondência entre as diferentes etapas e fases do
processo da pesquisa (também elas não lineares) e as componentes, estádios e fases
do Processo de Resolução Criativa de Problemas (CPS)24 (Isaksen et al, 1994; Isaksen

24
CPS – Creative Problem Solving, na sua versão original.
“A Resolução Criativa de Problemas é um processo, um método, um sistema de abordagem de um
problema de forma imaginativa que resulte numa acção eficaz” (Ruth Noller, Apud Isaksen, 1994:31). A
abordagem do processo de Resolução Criativa de Problemas usa, de forma complementar, o pensamento
criativo e o pensamento crítico para lidar com situações desconhecidas ou ambíguas.
A um nível global, a versão 6.0 do Processo de Resolução Criativa de Problemas (CPS) compreende três
componentes e seis fases:
- Compreensão do Problema – construção de oportunidades; exploração de dados; enunciar problemas.
- Produção de Ideias – produção de ideias.
- Planeamento da Acção – desenvolvimento de soluções; construção da aceitação.
A um nível mais específico, cada um dos estádios compreende duas fases que, no seu conjunto, enfatizam o
equilíbrio dinâmico entre o pensamento divergente e o pensamento convergente. A primeira fase, de

47
& Treffinger, 2004), o caminho percorrido, sintetizado na tabela II.6, é um dos caminhos
possíveis. Consciente, também por isso, que outros caminhos permitiriam outras
possibilidades (Feitosa, 1999:78), nos pontos seguintes deste capítulo apresentarei: em
primeiro lugar, a fundamentação das principais escolhas feitas; depois, os
procedimentos e aplicações práticas que configuraram o desenho da pesquisa.

Etapas e fases da Pesquisa Componentes e estádios do Processo de


Resolução Criativa de Problemas
Etapa 0 Por outros caminhos. Compreensão do Problema (1)
Etapa 1 Na procura de caminhos. - Construção de Oportunidades
- fase reflexiva e de aproximação à pesquisa. - Exploração de Dados
- Enunciar Problemas.
Etapa 2 Caminhando.
- fase de aprofundamento. Produção de Ideias
Etapa 3 Achando luzes. - Produção de Ideias
- fase de leitura da informação recebida.
- fase de construção de sentido. Planeamento da Acção
- fase de apresentação e discussão dos - Desenvolvimento de Soluções.
significados encontrados. - Construção da Aceitação.
Etapa 4 Novos caminhos.
Compreensão do Problema (2)
- fase de identificação de novos projectos e novas
- Construção de Oportunidades
perguntas.
Tabela II.6 – Correspondência entre etapas e fases da pesquisa e as componentes e estádios
do processo de resolução criativa de problemas (versão 6.0 – Isaksen, 2000).

produção, é utilizada para produzir opções diferentes e invulgares. A segunda, de análise, é utilizada para
analisar, desenvolver ou aperfeiçoar as opções anteriormente produzidas (Isaksen, 1994; 2000).

48
1. Criação do Desenho da Investigação
As pessoas crescidas gostam de números. Quando lhes falais de um novo
amigo nunca perguntam o essencial. Nunca vos dizem: “Como é a fala dele?
Quais os seus jogos predilectos? Colecciona borboletas?” Perguntam: “Que
idade tem? Quantos irmãos são? Quanto pesa? Quanto é que o pai ganha?”
E só julgam que o conhecem depois disto. Se disserdes às pessoas
crescidas: “Vi uma bela casa de tijolos vermelhos, com gerânios nas janelas
e pombas no telhado…” elas não conseguem imaginar uma casa. É preciso
dizer-lhes: “Vi uma casa de quinhentos contos”. Então exclamam: “Ai, que
bonita!” – Saint-Exupéry, O Principezinho.

Quadro Geral do Desenho da Pesquisa

Modalidades de
Paradigmas Metodologia Investigação Educativa Credibilidade Instrumentos

INDICADORES
QUALITATIVOS Histórias de Vida
SISTÉMICOS QUALITATIVA FINALIDADE:
•Aplicada
VERACIDADE:
ALCANCE TEMPORAL: Triangulação - de Estudo de Caso
•Complementaridade
•Longitudinal pessoas, momentos,
especialistas e técnicas
PROFUNIDADE: Verificação do relatório Grupo
ECOLÓGICOS •Pesquisa Colaborativa •Exploratória final Colaborador

MARCO EM QUE TEM


LUGAR: FIABILIDADE INTERNA:
•De campo Triangulação - consulta de Observação
especialistas Participante
CONCEPÇÃO DO
FENÓMENO
EDUCATIVO NEUTRALIDADE NA
COMPLEXIDADE **********
•Ideográfico ANÁLISE:
Saturação de dados
DIMENSÃO Elaboração de relatórios
TEMPORAL: amplos Questionário
SOQ
•Descritiva Descrição minuciosa dos
factos
ORIENTAÇÃO QUE
ASSUME
•Aplicação APLICABILIDADE: Questionário
SUBJECTIVIDADE
Descrição rigorosa do VIEW
contexto e do processo

Quadro II.6 – Desenho da pesquisa.

1.1 Os desafios da Complementaridade e da Pesquisa


Colaborativa no contexto da Investigação Qualitativa
“Utilizamos a expressão investigação qualitativa como um termo genérico que agrupa
diversas estratégias de investigação que partilham determinadas características. Os
dados recolhidos são designados por qualitativos, o que significa ricos em pormenores
descritivos relativamente a pessoas, locais e conversas, e de complexo tratamento
estatístico. As questões a investigar não se estabelecem mediante a operacionalização

49
de variáveis, sendo, outrossim, formuladas com o objectivo de investigar os fenómenos
em toda a sua complexidade e em contexto natural. Ainda que os indivíduos que fazem
investigação qualitativa possam vir a seleccionar questões específicas à medida que
recolhem os dados, a abordagem à investigação não é feita com o objectivo de
responder a questões prévias ou de testar hipóteses. Privilegiam, essencialmente, a
compreensão dos comportamentos a partir da perspectiva dos sujeitos da investigação.
As causas exteriores são consideradas de importância secundária. Recolhem
normalmente os dados em função de um contacto aprofundado com os indivíduos, nos
seus contextos ecológicos naturais” (Bogdan & Biklen, 2006:16).

Tendo definido como PROPÓSITO, não a busca de leis gerais, mas a inovação educativa
e didáctica, e, como PRESSUPOSTOS, (1) que o homem é um todo, (2) que a
subjectividade é uma característica essencial do comportamento humano, (3) que a
realidade é múltipla e complexa, (4) que a conduta humana tem uma dimensão histórica
e social e (5) que não há forma de fazer ciência, ou de evoluir cientificamente, sem
pequenas ou grandes doses de criatividade capazes de romper com os paradigmas
estabelecidos (Sousa Santos, 1988, 2002¸ Bohm & Peat, 1988, Patton, 2002; Morin,
2003; Sérgio, 2005), considerei que a INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA era o caminho
adequado para a realização desta pesquisa.

Assim, e porque esta metodologia se situa nos paradigmas sistémicos, ecológicos, da


complexidade e da subjectividade (que entendem que o investigador faz parte do todo
investigado) e permite a utilização de técnicas e procedimentos quantitativos e
qualitativos diversos, fiquei também, e por inerência, colocada perante o PRIMEIRO
CONJUNTO DE DESAFIOS E REQUISITOS METODOLÓGICOS (Patton, 2002; Martínez Salgado,
1996; Castro, 1996; Bogdan & Biklenm 2006; Trigo et al, 2001; Murcia & Jaramillo,
2003; Bohm & Peat, 1988):

a) que considerasse as pessoas e os cenários da pesquisa dentro do seu próprio


quadro de referência, numa perspectiva holística, como um todo integrado, não
reduzidos a variáveis;
b) que, sob o pretexto da objectividade, não me quisesse separar dos factos e do
investigado, pois, numa investigação educativa, a relação que se estabelece
entre o investigador e o sujeito investigado tem repercussões decisivas sobre os
resultados;

50
c) que fosse sensível aos efeitos que produzia sobre as pessoas que eram objecto
do meu estudo;
d) que desse ênfase à validade na minha investigação.

Mas, além disso, a opção por uma metodologia qualitativa desencadeou duas outras
escolhas: a do desenho da Complementaridade e a do processo da Pesquisa
Colaborativa.

• Complementaridade

“Chamamos complementaridade à possibilidade que o investigador tem de reunir de


forma inclusiva várias perspectivas e métodos de investigação com o propósito de
compreender melhor um fenómeno social. Deste modo, considera o referido fenómeno
da forma mais próxima possível da realidade vivida pelos sujeitos nele imersos e
pressupõe que tal compreensão não se alcançaria na sua totalidade se a investigação
se restringisse a pequenas observações por parte do investigador” (Jaramillo, 2006b:viii).

A opção pelo desenho da COMPLEMENTARIDADE também me colocou, por sua vez, e


enquanto investigadora, perante um NOVO PAR DE DESAFIOS (Jaramillo, 2006b):

a) que desenvolvesse um estudo impregnado de interculturalidade epistémica que


se pudesse sobrepor à monocultura do saber;
b) que não investigasse por meio de um desenho pré-estabelecido, mas que
criasse o desenho enquanto investigava.

O desenho criado no estudo acabou, assim, por ser composto por cinco etapas e seis
fases que, como adiante será explicado25, se interpenetraram e cruzaram ao longo de
todo o processo de investigação: etapa 0 – por outros caminhos; etapa 1 – na procura
de caminhos (fase reflexiva e de aproximação à pesquisa); etapa 2 – caminhando (fase
de aprofundamento); etapa 3 – achando luzes (fase de leitura da informação recebida;
fase de construção de sentido; fase de apresentação e discussão dos significados

25
Ver ponto 2 deste capítulo, “2.2 descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas”.

51
encontrados); etapa 4 – novos caminhos (fase de apresentação e discussão dos
significados encontrados).

• Pesquisa Colaborativa

Nascida de uma preocupação despertada pela investigação qualitativa no campo da


educação, a PESQUISA COLABORATIVA (Trigo et al, 2001) foi a outra opção metodológica.
Primeiro, porque permite que se congreguem propósitos de investigação com
propósitos de desenvolvimento. Segundo, porque pode revelar-se como uma alternativa
importante para uma educação eficaz e de qualidade: (1) porque, tendo como valores
fundamentais a colaboração, a competência e a solidariedade, é (nomeadamente em
contexto de educação de adultos), uma forma de dar vida aos quatro pilares da
educação enunciados pela Unesco – aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a
ser, aprender a viver juntos (Delors, 1996); (2) porque coloca investigadores e
educadores e outros membros da comunidade educativa numa mesma equipa e em
processo de reflexão-acção; (3) porque, para além de investigadores e educadores
trabalharem juntos no processo de construção do conhecimento (planificação,
implementação e análise de uma investigação), eles também partilham a
responsabilidade na tomada de decisões e na realização de tarefas que permitem
resolver problemas imediatos e práticos dos educadores (Trigo et al, 2001:57-61).

Assim, e apesar de, por força dos objectivos académicos deste tese (e como adiante
também será descrito), só ter sido usado numa perspectiva de cooperação nalgumas
fases do projecto26, a opção por um processo de Pesquisa Colaborativa fez(-nos)
enfrentar um TERCEIRO CONJUNTO DE DESAFIOS e compromissos (Trigo et al, 2001:57-
61):

a) o da criação de um clima de respeito e liberdade;


b) o do atendimento de uma grande diversidade de expectativas;

26
De acordo com os autores, e baseando-se em Hord e Devís, embora a investigação colaborativa possa
também ser apelidada de “investigação cooperativa”, cooperação e colaboração são conceitos diferentes: A
“cooperação” remete para uma forma imperfeita de participação; a “colaboração” exige o compromisso de
cada um dos membros da equipa em todas as fases do projecto da pesquisa (Trigo & Kon-Traste, 2001:57).

52
c) o da criação de um espaço de assumir riscos, de criação colectiva e de
compromisso social;
d) o da abertura para a modificação das mentalidades dos intervenientes;
e) o da melhoria das práticas de ensino dos educadores envolvidos;
f) o da flexibilidade de desempenho, enquanto investigadora e de acordo com as
fases da investigação, de uma diversidade de papéis.

1.2 Modalidades da Investigação

Utilizando os critérios de classificação definidos por Arnal et al (1994), as modalidades


de investigação educativa presentes neste estudo são as seguintes:

- Segundo a FINALIDADE – INVESTIGAÇÃO APLICADA


 A elaboração de uma proposta educativa para lidar com o medo em
contexto de educação de adultos, em ordem a melhorar a qualidade
educativa.
- Segundo o ALCANCE TEMPORAL – INVESTIGAÇÃO LONGITUDINAL (DIACRÓNICA)
 Estudo realizado entre 2001 e 2008, parte de um trabalho sobre a minha
singularidade-subjectividade (de auto-reflexão sobre a minha história de
vida pessoal), continua com as singularidades-subjectividades dos outros
(os membros do grupo de pesquisa colaborativa) e, no fim, regressa a
mim.
- Segundo a PROFUNDIDADE – INVESTIGAÇÃO EXPLORATÓRIA
 Porque não havia trabalho prévio, indagação para conhecer e
compreender desde o início.
- Segundo o MARCO EM QUE TEM LUGAR – DE CAMPO
 Numa situação natural, num tempo e num lugar de educação de adultos
em meio urbano.
- Segundo a CONCEPÇÃO DO FENÓMENO EDUCATIVO – INVESTIGAÇÃO IDEOGRÁFICA
 Estudo baseado na singularidade: as vivências do grupo de Pesquisa
Colaborativa.
- Segundo a DIMENSÃO TEMPORAL – INVESTIGAÇÃO DESCRITIVA

53
 Estudo de caso.
- Segundo a ORIENTAÇÃO QUE ASSUMIU – INVESTIGAÇÃO APLICADA
 Orientada para a aquisição de conhecimento com o propósito de dar
resposta a problemas concretos.

1.3 Critérios de Credibilidade

Porque se trata de um estudo de caso a partir do um ponto de vista qualitativo, a


validação da pesquisa, feita a partir de três perspectivas (o modo de recolher os dados,
os processos de interpretação apoiados pelos referentes teóricos e a subjectividade do
investigador), utilizou os seguintes CRITÉRIOS E INDICADORES QUALITATIVOS (Trigo & Kon-
Traste, 2001:129):

- VERACIDADE – CREDIBILIDADE / VALOR DE VERDADE


 Triangulação de pessoas, momentos, especialistas e técnicas – diferentes
tomas de dados, diferentes contrastações de teorias, reflexões e
justificações metodológicas.
 Verificação do relatório final por parte dos participantes.
- FIABILIDADE INTERNA – DEPENDÊNCIA
 Triangulação – consulta de especialistas externos à equipa de investigação,
tanto para o seguimento do processo de uma maneira sistemática e rigorosa,
como para a confecção e validação dos sistemas de categorização e
interpretação dos dados.
- NEUTRALIDADE NA ANÁLISE – CONFIRMABILIDADE / OBJECTIVIDADE
 Saturação de dados.
 Elaboração de relatórios amplos.
 Descrição minuciosa dos factos.
- APLICABILIDADE – COMPARABILIDADE
 Descrição rigorosa do contexto de recolha de dados, dos materiais utilizados,
dos participantes e relações entre eles, com aplicação dos questionários
SOQ e VIEW para melhor caracterização dos actores envolvidos.
 Descrição minuciosa do processo seguido.

54
2. Itinerário e Crónicas do Caminho
Quando partires de regresso a Ítaca,
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências,
Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,
um Poseidon irado – não os temas,
jamais encontrarás tais coisas no caminho,
se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime
teu corpo toca e o espírito te habita.
Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,
Poseidon em fúria – nunca encontrarás,
se não é na tua alma que os transportes,
ou ela os não erguer perante ti.
Deves orar por uma viagem longa.
Que sejam muitas as manhãs de verão,
quando, com que prazer, com que deleite,
entrares em portos jamais antes vistos!
Em colónias fenícias deverás deter-te
para comprares mercadorias raras:
Ítaca
coral e madrepérola, âmbar e marfim,
e perfumes subtis de toda a espécie,
compra desses perfumes quanto possas.
E vai ver as cidades do Egipto,
para aprenderes com os que sabem muito.
Terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é o teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.
Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.
Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.
Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,
terás compreendido o sentido de Ítaca.
C. Cavafy (1911)

Tal como naquele, também aqui o testemunho do “meu regresso a Ítaca” é longo. Não
só porque pretendo fazer uma apresentação minuciosa de tudo o que esteve implicado
no processo metodológico da pesquisa, mas porque também aí descobri o meu
processo criativo. São caminhos paralelos (não duas coisas separadas), ambos parte
da minha natureza e da minha cultura.

Este ponto do capítulo é, então, composto por:

- Cronograma da pesquisa.
- Descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas.

55
- Processo de orientação da tese.
- Processamento de dados.
- Aspectos éticos.

56
2.1 Cronograma

JOGANDO A INVENTAR MODELOS


INÍCIO FIM
2001-2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2008
● ▼ ▼ ▼ ▼ ▼ ●
Etapa 0 Etapa 1 Etapa 2 Etapa 3 Etapa 4
POR OUTROS CAMINHOS
Construção de um projecto
segundo o modelo “clássico”.
Diário da Tese
COMPREENSÃO DO NA PROCURA DE CAMINHOS
PROBLEMA (1) Fase reflexiva e de aproximação à pesquisa
Primeira abordagem do trabalho de campo – Histórias de vida 1 – trabalho de reflexão e escrita sobre mim mesma.
Construção de Oportunidades Definição do tema de investigação.
Continuação da primeira abordagem do trabalho de campo - Histórias de vida 2 – trabalho de reflexão e escrita sobre mim mesma
a partir do tema definido para a investigação.
Construção de uma metáfora  referencial interno  temas e subtemas de estudo.
Exploração de Dados Revisão bibliográfica  linhas de orientação geral.
Concretização do problema de investigação – definição da(s) pergunta(s) de investigação.
Enunciar Problemas Decisões metodológicas.
PRODUÇÃO DE IDEIAS CAMINHANDO
Fase de aprofundamento – trabalho com o grupo
Constituição do grupo de pesquisa colaborativa.
Segunda abordagem do trabalho de campo – sessões de trabalho com o grupo.
Produção de Ideias Aplicação dos instrumentos de caracterização do grupo de trabalho – SOQ e VIEW
ACHANDO LUZES

CONHECIMENTO SABOREADO
Fase de leitura da informação
Constituição do grupo de informantes-chaveAnálise de dados - categorias.
Interpretação/triangulação entre realidade empírica, realidade conceptual e
perspectiva da investigadora.
PLANEAMENTO DA ACÇÁO Fase de Construção de Sentido
Desenvolvimento de Soluções À maneira de conclusão e proposta educativa.
Fase de apresentação e discussão
dos significados encontrados
Construção da Aceitação Sugestões do grupo de pesquisa.
Afinação da análise.
NOVOS CAMINHOS
Fase de identificação de
COMPREENSÃO DO PROBLEMA (2) Construção de Oportunidades 2
novos projectos e novas
perguntas
HABITANDO A PERGUNTA

Quadro I.7 – Cronograma da pesquisa.


57
58
2.2 Descrição do Cronograma – Procedimentos,
Instrumentos e Técnicas
“Não se pode ignorar a facilidade com que se confunde rigidez e inflexibilidade com
rigor, a frequência e a impunidade com que se sufoca o acto criador com uma mordaça
metodológica que muitas vezes privilegia estéreis caminhos já trilhados e que levam a
qualquer lugar ou, muitas vezes, a lugar nenhum, em troca de minimizar os riscos e
elevar o nível de segurança” (Feitosa, 1999:66).

Sustentado pela investigação qualitativa e orientado pelo princípio da


complementaridade, pretendi que, em termos genéricos, e como procurei assinalar no
cronograma atrás colocado (quadro I.7 do ponto 2.1 deste capítulo), todo o processo da
pesquisa fosse sendo matizado por três tons distintos (Jaramillo, 2006b):

1) O tom do “CONHECIMENTO SABOREADO” – criado por uma vontade de aceder a


um conhecimento que, não sendo só teórico-disciplinar (mas também pessoal e
relacional), permitisse a formação e o devir humano.

2) O tom de “HABITANDO A PERGUNTA” – criado por uma atitude de indagação e de


aproximação ao objecto de estudo com uma pergunta que, além de objectiva e
teórica, fosse também entendida inter-subjectivamente.

3) O tom de “JOGANDO A INVENTAR MODELOS” – criado por uma abertura criativa que
permitisse desenhar múltiplas formas de produzir aproximações, reflexões,
retrocessos e avanços na configuração do problema.

Recorrendo, por isso, a desenhos produzidos “à medida” e ao longo do seu próprio


desenvolvimento, o processo acabou por ser composto por elementos e fases não
independentes que, como fios que configuram um tecido, se interrelacionam, cruzam e,
de certa maneira, se sobrepõem (ilustração I.6). Essa a razão porque, no cronograma
atrás colocado, estão assinaladas as datas do início das várias etapas percorridas, mas
não as da respectiva conclusão, pois, dentro das possibilidades, tudo foi sempre ficando
em aberto e permitindo novas reconfigurações. Se, daqui em diante, a descrição dos
procedimentos da pesquisa e o discurso de uma “metodologia encarnada” (que situa e
descreve o PROCESSO CRIADOR), aparecem tão lineares, isso deve-se a razões de

59
facilidade de discurso, não à existência de uma sequência rígida, ou desligada, entre
cada uma das suas etapas e fases.

Ilustração I.6 – Encadeamento das fases da pesquisa.

Procurando, também por este meio, garantir a VALIDADE e a APLICABILIDADE da pesquisa,


passo a apresentar em paralelo:

a) no desenvolvimento do texto – a explanação detalhada e rigorosa dos


procedimentos em cada uma das etapas e fases do processo metodológico e
criativo, nomeadamente no que diz respeito a contexto, factos, instrumentos e
técnicas;

b) em caixas de texto inseridas lateralmente ao longo da apresentação – a


indicação da correspondência em termos globais (já que, em termos específicos
não pode ser estabelecida passo a passo), entre as etapas da pesquisa e as
fases do processo criativo (modelo 6.0 do processo de CPS27), com uma muito
breve explicação do seu significado.

27
Creative Problem Solving, na sua versão original (Isaksen et al., 2000).

60
2.2.1 Etapa 0 – Por outros caminhos

Processo Criativo – Compreensão do Problema


Construção de Oportunidades (1)

Permite fazer a transição entre o espaço em que o


problema se situa de forma ampla e confusa e um
espaço em que o problema se situe de uma forma
mais definida e clara:

- Fase da descoberta das oportunidades e dos


desafios que podem ser considerados.
(Isaksen et al., 2000)

“A escolha de um método particular para estudar um ou outro objecto sociológico não


tem nada de anódino. Compromete a pessoa que fará a investigação a uma determinada
relação de campo, a certas práticas existenciais; contém em filigrana certas formas de
pensamento e exclui outras. Em resumo, o que está em jogo na realidade são alguns
anos de vida de um(a) sociólogo(a). Na medida em que ele/ela controle a escolha do seu
método, a decisão será tomada muito mais em função de inclinações profundas do que
de considerações racionais. E está muito bem que seja assim, porque para fazer um
bom trabalho de investigação é necessário em princípio desejar fazê-lo. A paixão é o
motor do descobrimento” (Martínez Salgado, 1996:54).

Com excepção do que diz respeito à redacção do diário da tese, a etapa 0 foi a única
etapa/fase da pesquisa que, pelo menos aparentemente, começou e terminou em si
mesma e, com isso, colocou uma fronteira (mais) definida com as restantes etapas e
fases. Foi o tempo de tentativas de criação de um projecto de investigação segundo o
modelo “clássico” da investigação quantitativa – definição de um problema a estudar,
perguntas de investigação, hipóteses, metodologia...

A partir das leituras feitas e das preocupações profissionais então sentidas, na primeira
tentativa estavam implícitas questões como estas:

- Tudo aponta para a necessidade/urgência de criatividade e inovação no sistema educativo


português. Não será que as orientações curriculares (da Ed. Pré-Escolar) apontam para uma
educação criativa e estamos, simultaneamente, matando a criatividade dos alunos (futuros
educadores) no tempo de formação?

61
- Relação entre autoconceito, relação com os outros, visão do mundo. Que autoconceito as
escolas/professores estão fomentando nos seus alunos?
- O aluno é uma pessoa. Que projectos educativos desenvolvem as escolas na formação de
professores? Que ideal prosseguem? Como partilham os professores/formadores esses ideais?
De que maneira as tradições e as rotinas das escolas se compatibilizam com esses ideais?
- Relação entre corpo e mente. Que experiências/vivências corporais são facultadas aos alunos
durante o tempo de formação?

1ª Tentativa de Criação do Projecto


Tema: Criatividade e Desenvolvimento Interpessoal

PROCEDIMENTOS
1. Defino ideias e palavras-
chave que identificam os
meus contextos, interesses,
inquietações... RESULTADO
2. Relaciono tudo com Demasiado abrangente.
leituras. Pouco consistente
3. Construo um esquema com
todos esses elementos.
4. Defino hipóteses de
perguntas de partida.

Ilustração I.7 – Primeira tentativa de definição do projecto de investigação.

Na segunda tentativa, que partia de uma vontade de sintetizar os principais interesses


de estudo, estavam implícitas perguntas como estas:

- Será que a introdução do yoga e de actividades criativas no plano de estudos de formação de


educadores/ professores traz benefícios ao nível da autoestima, do autoconhecimento, da
performance geral, do crescimento espiritual?
- O clima criativo da sala de aula pode ser melhorado se o professor desenvolver regularmente
práticas de interioridade?

Mas também este foi abandonado por não dar resposta adequada aos objectivos que
me tinha proposto para a realização da tese. Contudo, se agora o refiro (e embora
nessa altura tivesse ficado a sensação de trabalho perdido), é porque, tempos depois,
acabei por verificar que, embora numa dimensão bem mais profunda, ele também ficou
contido no projecto que se veio a definir.

62
2ª Tentativa de Criação do Projecto
Tema: Liderança Criativa através do Silêncio

PROCEDIMENTOS
1. Leio muito - recolho
muitas citações e RESULTADOS
“engordo” a minha Não traz nenhuma
estante. promessa de
2. Desenvolvo um novo contribuição nova.
esquema de tópicos de Continua a não conseguir
pesquisa. atingir os objectivos
3. Defino novas perguntas pessoais propostos.
de partida.

Ilustração I.8 – Segunda tentativa de definição do projecto de investigação.

• Diário da tese

O diário da pesquisa (Anexo 8), onde desde este início fui registando os tempos,
lugares, circunstâncias, tarefas e as emoções associadas, tornou-se um instrumento-
testemunha fundamental, não só das fases e procedimentos da pesquisa, como do
processo criativo que lhe está associado, como ainda (e com todas as suas crises de
crescimento), do processo de desenvolvimento pessoal, enquadramento importante
para a definição e execução do próprio projecto.

2.2.2 Etapa 1 – Na procura de caminhos

Processo Criativo – Compreensão do Problema


Construção de Oportunidades (2)

Permite fazer a transição entre o espaço em que o


problema se situa de forma ampla e confusa e um
espaço em que o problema se situe de uma forma
mais definida e clara:

- Continuação da fase da descoberta das


oportunidades e dos desafios que podem ser
considerados.
(Isaksen et al., 2000)

63
• Fase reflexiva e de aproximação à pesquisa

“Recuperar a consciência histórica é um desafio pois pressupõe, por parte do intelectual,


ter que abandonar o seu espaço para se comprometer com a sua realidade. Mais que
um compromisso, é uma paixão intelectual para encontrar o sentido do conhecimento na
construção da história. Recuperar a consciência histórica no plano do conhecimento
significa transformar o conhecimento em consciência” (Zemelman, 1996:33).

A etapa 1, como primeira abordagem do trabalho de campo, começa com a decisão de


me dar tempo para CENTRAR28, me pensar e ver a mim mesma no meio do mundo,
examinando-me nesse processo e nas relações que aí estabeleço com os outros. Na
minha própria biografia e nos temas aí emergentes procuro encontrar, não só o tema da
pesquisa, mas também entendê-lo como parte da minha natureza/cultura e assumi-lo
como compromisso com o observado.

1. Primeira abordagem do trabalho de campo – histórias de vida e definição do


tema de investigação

Tendo como condição o “abandono” do trabalho académico para me dedicar à tarefa de


busca interior, dou início à criação das minhas próprias HISTÓRIAS DE VIDA (1). São estes
os objectivos:
- utilizar diferentes linguagens para compreender onde estou e como me sinto;
- procurar a união natural entre o crescimento pessoal e a acção profissional;
- descobrir que no eixo fundamental da minha vida está o tema da pesquisa.

A técnica de criação, embora por diversas vezes também utilize mais do que uma
linguagem, é, essencialmente, a ESCRITA DO EU. Utilizando a escrita livre, procuro deixar
fluir a mão e o pensamento para escrever (desenhar/pintar/dançar...) tudo o que surja,
com o mínimo de censura possível.

28
O primeiro dos três caminhos de criação referidos por Sturner (1996) – ver “Capítulo 3 Descobrir
caminhos de outros – 2.2 Contornos do desenvolvimento humano”.

64
“Quando usamos a expressão Escrita do Eu, referimo-nos a um exercício de
investigação existencial que permite à pessoa tomar partes da sua vida concreta e
analisá-las numa forma escrita com o objectivo de conseguir uma maior e mais
progressiva vigilância activa sobre si mesma. Ao escrevê-las, a pessoa tenta ver as
circunstâncias da vida de uma forma mais clara. A vida, tornada objectiva no texto
escrito, exige que a pessoa assuma a responsabilidade de fazer a ligação entre “o que
é” e “o que pode ser” (Azevedo & Gil da Costa, 2005:1329).

Ao fim de vários meses e de muitas páginas escritas, é possível identificar no conjunto


dos trabalhos produzidos, a recorrência (explícita ou não) do tema do medo e da
inquietação por níveis mais elevados de crescimento e amadurecimento pessoal. Fica
definido o tema da pesquisa – “O Medo no Desenvolvimento Humano”.

Escrita do Eu / Histórias de Vida 1


OBJECTIVOS
1. Compreender onde estou
e como me sinto. RESULTADOS
2. Procurar a união natural • Preciso de muito
entre o crescimento tempo, “treino” e
pessoal e a acção coragem!
profissional. – Quando a auto-censura
3. Descobrir que, no eixo se instala, os resultados
fundamental da minha são repetitivos e
“medrosos” .
vida, está o meu tema e as – Quando me permito ouvir
minhas perguntas de a mim mesma, os
partida. resultados começam a
4. Esquecer o trabalho ser espelho da minha
académico e dedicar-me à alma.
tarefa de busca interior.

Ilustração I.9 – Objectivos e resultados da primeira fase das histórias de vida / escrita do eu.

Daqui cresce a necessidade de continuar a escrever histórias de vida, mas agora a


partir dos diferentes enfoques sugeridos pelo tema da pesquisa identificado (HISTÓRIAS
DE VIDA 2). É a forma de, pela análise em profundidade do tema de estudo, ir fazendo a
descoberta de uma cultura que (também) se concretiza na minha mente e nas minhas
acções (Zemelman, 1996; Jaramillo, 2006b).

65
Escrita do Eu / Histórias de Vida 2
(sobre o Medo)
PERGUNTAS
RESULTADOS
SUBJACENTES
• Começo a ficar envolvida
Onde está o meu medo?
e comprometida com o
Por que não quero entrar
que escrevo.
nele?
• Faço uma limpeza interior.
Qual é o verdadeiro medo?
• Dou-me ao direito de
Porquê?
chorar e rir.
Para que serve?
Afinal, não era assim
Como enfrentá-lo?
tão complicado!!!
Vale a pena enfrentá-lo?

Ilustração I.10 – Objectivos e resultados da segunda fase das histórias de vida / escrita do eu.

E começo a vislumbrar outras perguntas de investigação. O primeiro esboço é este:

- Como podemos explorar novas maneiras de lidar com o nosso medo?

Fica, por isso, e a partir daqui, definido o propósito da pesquisa – dar resposta à
necessidade sentida de criar uma proposta educativa para lidar com o medo em
contexto de educação de adultos.

“O objectivo é a força de comando de uma pesquisa. As decisões sobre o tipo de


desenho, de medida, de análise e de formas de apresentação da informação flúem do
objectivo.
(...) O objectivo da investigação aplicada é contribuir com conhecimento que ajude as
pessoas a compreenderem a natureza de um problema de forma a intervir, ou até
controlar o seu meio.
(...) Na investigação aplicada os campos são interdisciplinares e estão mais orientados
em função do problema do que em função de uma disciplina.
(...) Os investigadores da pesquisa aplicada são capazes de trazer os seus insights e
experiências pessoais para dentro de todas as recomendações que possam surgir
porque durante o trabalho de campo estão especialmente perto dos problemas que
29
estão a estudar (Patton, 2002: 213, 217)

29
“Purpose is the controlling force in research. Decisions about design, measurement, analysis, and
reporting all flow from purpose.

66
2. Referencial Interno

“Brinque com metáforas, analogias e conceitos. Na maioria das investigações a rigidez


de pensamento constitui uma praga. Envolvemo-nos com a recolha de dados num local
específico e ficamos tão agarrados ao que lhe é particular, isto é, aos seus pormenores,
que não conseguimos estabelecer relações com outras situações ou com todo o arsenal
de experiências pessoais que trazemos connosco. Relativamente à situação, pergunte-
se: «o que é que isto me faz lembrar?»” (Bogdan & Biklen, 2006:216).

Metáfora  Referencial Interno


PROCESSO
• Recolho as palavras/ideias fundamentais nas minhas
histórias de vida.
• Divido-as em grupos e dou-lhes um título.
• Ordeno-as numa sequência que corresponda à minha
experiência de vida.
• Procuro metáforas para cada uma das categorias
encontradas.
• Escrevo o texto.

O trabalho jorrou de dentro!

RESULTADOS
• Começam a surgir temas e sub-temas da pesquisa

Ilustração I.11 – Construção do referencial interno.

A partir das histórias de vida (e continuando a deixar de lado todo o trabalho de revisão
de literatura para que a análise indutiva não fique limitada – Bogdan & Biklen,
2006:105), escrevo um texto sobre o tema do Medo e do Desenvolvimento Humano30
sob a forma de uma METÁFORA. Com a redacção deste texto, com as interpretações e
explicações que aí vão emergindo, vou criando o meu REFERENCIAL INTERNO –
conhecimento extra-teórico, empírico, resultante do primeiro acesso ao campo do
estudo (Jaramillo, 2006b).

(…) The purpose of applied research is to contribute knowledge that will help people understand the nature
of a problem in order to intervene, thereby allowing human beings to more effectively control their
environment.
(…) Applied interdisciplinary fields are especially problem oriented rather than discipline oriented.
(…) Applied qualitative researchers are able to bring their personal insights and experiences into any
recommendations that may emerge because they get especially close to the problems under study during
fieldwork” (Patton, 2002: 213, 217).
30
Ver “Capítulo 2 Descobrir os próprios caminhos – 1. Eu Pessoa: Já alguma vez?”.

67
E, a partir do referencial interno assim criado, surge um CONJUNTO DE TEMAS E SUB-
TEMAS DE ESTUDO que há-de orientar a revisão da literatura:
- o medo enquanto facto natural inerente ao ser humano;
- o medo bloqueador;
- o lado positivo do medo;
- tipos de medo;
- consequências do medo;
- a inquietação do Ser;
- como enfrentar o medo;
- efeitos esperados depois do processo de intervenção dialógica: aproximação à
natureza do Ser; liderança; Paz.

3. Revisão bibliográfica e linhas de orientação geral

Processo Criativo – Compreensão do Problema


Exploração de Dados

Continuação da transição entre o espaço em que o


problema se situa de forma ampla e confusa e um
espaço em que o problema se situe de uma forma
mais definida e clara:

- Fase da identificação, a partir de diferentes


pontos de vista, dos dados mais importantes.
(Isaksen et al., 2000)

“A revisão bibliográfica mais relevante pode ajudar a enfocar um estudo (...). Contudo,
essa revisão pode criar dificuldades num estudo qualitativo porque gera predisposições
no pensamento do investigador reduzindo a sua abertura para o que surja dentro do
campo. É por isso que, por vezes, a revisão da literatura pode não surgir senão depois
da colecta de dados. Alternativamente, a revisão da literatura pode ser simultânea ao
trabalho de campo, permitindo uma interacção criativa entre o processo de colecta de
dados, a revisão da literatura e a introspecção do investigador. Como em quaisquer
outras questões do desenho qualitativo, a qualquer momento podem aparecer “trade-
31
offs” , pelo que há sempre vantagens e desvantagens em que a revisão seja feita antes,

31
Expressão que designa uma situação em que há conflito de escolha, em que se perde uma qualidade em
troca de outra qualidade ou aspecto (http://pt.wikipedia.org/wiki/Trade-off - 28.04.08).

68
durante ou depois – ou num base contínua ao longo de todo o estudo” (Patton,
32
2002:226) .

Revisão Bibliográfica
Ler → Reflectir → Registar → Posicionar → Enlaçar

Deixo de querer encaixar-me no


pensamento dos autores:
Eles tornam-se meus aliados.
Eles ajudam-me a aprofundar o meu O desenho
pensamento e as minhas intuições. do
projecto
São imensas as fontes de informação: vai
Em muitos tipos de livros. tomando
Nas pessoas com quem vivo e trabalho forma!
Nos espaços em que me movo...

Ilustração I.12 – Processo de revisão bibliográfica.

Tendo por base o conjunto de temas e sub-temas antes encontrado, dou início ao
trabalho de REVISÃO BIBLIOGRÁFICA (Ilustração I.12). Foi este o processo de leitura que,
33
COMBINANDO O REFERENCIAL INTERNO COM O CORPO TEÓRICO , permitiu escrever /
associar / escrever / projectar:

- ler e sublinhar textos de autores diversos e de origens diversas numa


perspectiva da ecologia dos saberes (Moraes, Apud Torre, 200834);
- escrever, sempre que adequado e necessário, uma reflexão sobre o texto lido;
- registar os temas, ideias e conceitos mais relevantes das leituras realizadas no
programa EndNote, versão 6;
- recolher indicações de bibliografia e informações para consulta posterior;
- posicionar as ideias mais importantes no conjunto temas antes definido.

32
“Review of relevant literature can bring focus to a study (…). Yet, reviewing the literature can present a
quandary in qualitative inquiry because it may bias the researcher's thinking and reduce openness to
whatever emerges in the field. Thus, sometimes a literature review may not take place until after data
collection. Alternatively, the literature review may go on simultaneously with the fieldwork, permitting a
creative interplay among the process of data collection, literature review, and researcher introspection”
(Patton, 2002:226).
33
Ver “Cap. 3 Descobrir caminhos de outros”.
34
Ecologia dos saberes: um encontro de saberes que flúem através de campos como a física quântica, a
neurociência, a psicologia positiva, as organizações, a epistemologia e os escritos sobre transpersonalidade
e espiritualidade de alguns engenheiros como Deslauriers ou científicos como Goswami, Lazlo, Sheldrake,
Capra, Zancollo (Torre, 2007:1).

69
Aos poucos, a partir de PROCESSOS INDUTIVOS E DEDUTIVOS (e com o auxílio do
programa Visual Mind™ para construção de mapas mentais35), vou reformulando-
refinando os temas e sub-temas anteriores e, a partir deles, encontro as LINHAS DE
ORIENTAÇÃO GERAL que me vão permitir avançar na construção do itinerário da pesquisa
e, mais tarde, começar a observar e compreender o que vai ocorrendo na segunda fase
de acesso ao trabalho de campo (ilustração I.13).

Linhas de Orientação Geral


O MEDO
Omnipresença do Medo

Vivendo COM Medo

O DESENVOLVIMENTO HUMANO
A Inquietação do Ser

EDUCAÇÃO CRIATIVO-MOTRÍCIA
Enfrentando o Medo

ConVIVENDO com o Medo

Ilustração I.13 – Linhas de orientação geral


para a construção do itinerário da pesquisa e observação do trabalho de campo.

4. Definição das perguntas de investigação

Processo Criativo – Compreensão do Problema


Enunciar Problemas

Última parte da transição entre o espaço em que o


problema se situa de forma ampla e confusa e um
espaço em que o problema se situe de uma forma
mais definida e clara:

- Fase da formação de enunciados específicos


para o problema.
(Isaksen et al., 2000)

No processo de construção das linhas de orientação geral atrás descrito (ou, dito de
outra maneira, das múltiplas interrogações suscitadas pela conjugação da base

35
Programa Visual Mind™, versão 6 business.

70
pessoal, com o que vai surgindo da base teórica), as perguntas de investigação vão
ganhando uma forma mais definida.

Ilustração I.14 – A pergunta como morada: caminho de construção.

Primeiro, de uma forma mais lenta e subtil, vai-se instalando a PERGUNTA CENTRAL (a
indagação que dará directamente resposta ao propósito da investigação), a pergunta
processual (como...). Depois, para completar o círculo, a formulação das PERGUNTAS
DERIVADAS – a pergunta conceptual (o quê...), a pergunta da memória (porquê...), que
até já estava contida na pergunta processual, e a pergunta existencial (para quê...):

- Como pode o educador lidar com o seu medo e, por isso, ajudar as pessoas a enfrentarem os
seus medos e a terem uma vida serena, útil e corajosa?
- O que faz com que uma vida seja serena, útil e corajosa?
- Por que razão o educador só pode ajudar outros a enfrentarem os seus medos (e a terem uma
vida serena, útil e corajosa), depois de ele próprio ter entrado no processo de enfrentar os seus?
- Para que serve uma vida serena, útil e corajosa?

Assim, sentindo-a(s) minha(s), e neste longo caminho de ir “habitando a pergunta”, vai


surgindo a consciência do quanto nela(s) está abrangido e das múltiplas perspectivas
com que podem ser encaradas.

71
2.2.3 Etapa 2 – Caminhando

Processo Criativo – Produção de Ideias


Produção de Ideias (1)

Procurando romper com padrões e hábitos


estabelecidos, permite gerar um grande número de
ideias e a abertura a novas perspectivas:

- Preparação do espaço de trabalho.


(Isaksen et al., 2000)

• Fase de aprofundamento – trabalho com o grupo

Concretizado que está o propósito, formulado que está o conjunto das perguntas de
investigação, novas opções devem ser feitas para que possa passar à
36
EXTERIORIZAÇÃO e segunda fase do TRABALHO DE CAMPO. Contudo, e antes disso,
dedico um tempo à formação e participo num “Seminário de Tesis Doctoral”, sobre
Investigação Qualitativa em Ciências da Educação, na Universidad del Cauca –
Popayán/Colômbia, orientado pelos Professores Eugenia Trigo e Luis Guillermo
Jaramillo, daquela Universidade, e pela Professora Maria da Conceição Azevedo, da
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.

Com o apoio, a partir daqui, do Professor Luis Guillermo Jaramillo, na qualidade de


ESPECIALISTA EXTERNO para fazer o seguimento do processo, decido vincular
investigação e desenvolvimento através da conjugação entre PROCESSO FORMATIVO de
acção-reflexão-acção, PESQUISA COLABORATIVA, ESTUDO DE CASO e OBSERVAÇÃO
PARTICIPANTE.

1. Estudo de caso – constituição e trabalho do grupo de pesquisa colaborativa

Recorro a um estudo de caso baseado na singularidade das vivências de um grupo de


pessoas que, em regime de voluntariado, se constitua para trabalhar processos (1) de
PROCURA PESSOAL e (2) de CRIAÇÃO DE UMA PROPOSTA EDUCATIVA para lidar com o

36
O segundo dos três caminhos de criação referidos por Sturner (1996) – ver “Capítulo 3 Descobrir
caminhos de outros – 2.2 Contornos do desenvolvimento humano”.

72
medo. Nessa sequência, procuro que o trabalho do grupo se desenvolva ao longo de
um tempo e de um lugar que seja, simultaneamente, (1) de EDUCAÇÃO DE ADULTOS e (2)
de PESQUISA COLABORATIVA.

A primeira tarefa é formar esse grupo. São feitos contactos pessoais com potenciais
interessados de diferentes áreas, para apresentação do projecto e da proposta para
participar. Os critérios de escolha dos participantes são os seguintes:

- pessoas que, directa ou indirectamente, estejam ligadas à formação e educação


de adultos;
- pessoas que sintam a necessidade de abrandar o ritmo, de mexer com o tema,
de conversar sobre ele para, em conjunto, descortinarem situações-respostas
que, para cada uma, sejam importantes;
- pessoas com vontade de serem desafiadas pelas ideias dos outros;
- pessoas dispostas a se encontrarem como pares, não como “papéis”;
- pessoas que não tenham medo de se virem a sentir confusas ao longo do
processo;
- pessoas com disponibilidade para reunirem uma vez por semana,
- pessoas que tirem vantagens de publicações e participação em congressos
sobre o tema da pesquisa.

Rapidamente nove pessoas aceitam a proposta:

- GÉNERO – 5 mulheres e 5 homens.


- IDADES – entre os 27 e os 61 anos (média – 38.3).
- HABILITAÇÕES ACADÉMICAS – mínimas, licenciatura ou equivalente (concluída ou
em fase de conclusão); máximas, doutoramento (concluído ou em fase de
conclusão).
- ÁREAS DE FORMAÇÃO ACADÉMICA – artes, biologia, criatividade, direito, educação,
educação da infância, filosofia, música, psicologia social, sociologia, teologia.
- ACTIVIDADES PROFISSIONAIS ENVOLVIDAS – professores ou equivalente (5); editor
de conteúdos (1); padre (1); realizador de cinema (1); estudantes (3).
- NACIONALIDADES – portugueses (8); 1 espanhol (1); 1 angolano (1).

73
Contudo, e porque, a partir da terceira sessão, há uma desistência, o grupo fica
constituído por: Maria da Conceição Barbosa da Cunha, Maria da Conceição Azevedo,
Joana Cunha e Costa, Mariana Salvador, André Vela, Ricardo Mota Leite, Rui Pedro
Pereira, Vítor Briga e eu própria37.

A segunda tarefa é encontrar um espaço disponível para os encontros do grupo de


pesquisa. A coordenadora de um jardim de infância, que faz parte do grupo, faculta o
espaço: uma sala de motricidade, grande, arejada, tranquila, cheia de colchões, onde
nos podemos sentar, deitar, correr, dançar, andar descalços e, por isso, desde o
primeiro dia, ultrapassar as “cerimónias” e entrar na informalidade.

2. Segunda fase do trabalho de campo – trabalho com o grupo

Processo Criativo – Produção de Ideias


Produção de Ideias (2)

Procurando romper com padrões e hábitos


estabelecidos, permite gerar um grande número de
ideias e a abertura a novas perspectivas:

- Criar e identificar ideias com potencial


interessante para usar ou desenvolver
posteriormente.
(Isaksen et al., 2000)

“Desde Dilthey, a investigação nas ciências sociais é a transformação de experiências


em vivências, facto que é resultado de uma interpretação subjectiva e, por isso, de um
processo fenomenológico. As experiências não se podem viver desde fora; apreender a
vivência implica estar dentro dela, fazê-la imanente, encarná-la. Para isso, é preciso
situar-se no plano em que o sujeito e o objecto se tornam indissociáveis numa conexão
38
de convergência no conhecer, sentir e querer fazer” (Córdoba, Bohórquez et al.
2005:210).

37
Apesar da identificação, com sua autorização e interesse, dos nomes dos membros do grupo de pesquisa
colaborativa, o anonimato do que foi dito nas sessões de trabalho está garantido pela utilização de códigos
(ver ponto 2.2.4 deste capítulo: etapa 3 – fase de leitura da informação recebida).
38
“Desde Dilthey, la investigación en las ciencias sociales es la transformación de experiencias en
vivencias, hecho que es resultado de una interpretación subjetiva y por tanto de un proceso
fenomenológico. Las experiencias no se pueden vivir desde afuera; aprehender la vivencia implica estar
dentro de ella, hacerlas inmanentes, encarnalas. Para ello, es preciso situarse en el plano donde el objeto

74
O tempo de formação/educação de adultos e da primeira parte da pesquisa colaborativa
é composto por:
- uma reunião semanal preparatória entre mim e cada uma das pessoas do grupo
que, rotativamente, se dispõe a orientar a sessão;
- onze encontros do grupo, em fim de tarde, ao longo de três meses;
- um encontro de fim de semana no Gerês, onde, confrontados com a natureza e
actividades de outdoor, podemos viver diferentes tipos de experiências pessoais
e grupais.

Utilizamos uma metodologia de acção-reflexão-acção que, no contexto de uma


educação criativo-motrícia39, estimula a vivência e a discussão do tema da pesquisa.

“Acredito que podemos mudar o mundo se nos começarmos a ouvir uns aos outros.
Conversas simples, honestas, com dimensão humana. Não são mediação, negociação,
resolução de problemas, debates ou reuniões públicas. Conversas simples, verdadeiras,
40
onde cada um tenha possibilidade de falar, onde cada um possa ouvir e ser ouvido”
(Wheatley, 2002:3).

Sem nenhuma sequência pré-definida porque, sem perder de vista o horizonte da


pesquisa, o que interessa é o processo (o construir junto e o viver das situações
criadas), as sessões do grupo acabam por, resumidamente, se desenrolarem da
seguinte maneira41:

1ª SESSÃO - 4 ABRIL 2005


PROPÓSITOS
- Dar início aos trabalhos do grupo de Pesquisa Colaborativa.
- Criar um clima adequado ao trabalho de equipa.
- Promover uma maior compreensão do âmbito do projecto.
- Esclarecer sobre os papéis e compromissos envolvidos.

y el sujeto resultan indisociables en una conexión de convergencia en el conocer, sentir y querer hacer”
(Córdoba, Bohórquez et al. 2005:210).
39
Ver “Capítulo 3 Descobrir caminhos de outros – 3. Campo de criação”.
40
“I believe we can change the world if we start listening to one another again. Simple, honest, human
conversations. Not mediation, negotiation, problem-solving, debate, or public meetings. Simple, truthful
conversation where we each have a chance to speak, we each feel heard, and we each listen well”
(Wheatley, 2002:3).
41
Ver também Anexo 3 – transcrição das sessões do grupo de pesquisa.

75
TAREFA FEITA
- Apresentação dos participantes – dados pessoais mais relevantes, razões para
participar, expectativas...
- Apresentação e discussão em grupo dos propósitos e caminhos da pesquisa,
formas de trabalho, condições, exigências, vantagens, cronograma...
- Distribuição de documentação de apoio.
- Organização do trabalho futuro – orientação voluntária e rotativa das sessões,
redacção rotativa das actas das sessões, diários de campo individuais…
- Proposta de um plano de acção com vista à apresentação de uma comunicação
no Congresso de Motricidade Humana, em Porto do Son, Espanha.

2ª SESSÃO - 11 ABRIL 2005

Ilustração I.15 – Fotografias da sessão de relaxamento e construção das “caixas do medo”.


PROPÓSITOS
- Levantar, em segurança, experiências pessoais de medo – situações,
circunstâncias, efeitos, pessoas, formas de ultrapassar...
- Utilizar linguagens mais globais e menos racionais.
- Apelar ao sentido e à linguagem do corpo (um corpo disponível para ir buscar
memórias e torná-las presentes de forma visual).
- Redescobrir o prazer de parar.
TAREFA FEITA
- Leitura de um trecho de “O Pequeno Livro dos Medos” de Sérgio Godinho
(1991).
- Relaxamento orientado sobre o tema “medo”.
- Brainstorming sobre o tema “caixa”.
- Construção individual da “caixa do medo” com diversos tipos de materiais –
barro, papel, arame, tecidos…

76
- Registo individual da experiência vivida e da memória descritiva da “caixa do
medo” (por quê, para quê...).

3ª E 4ª SESSÕES - 18 ABRIL E 2 MAIO 2005


PROPÓSITOS
- Identificar experiências pessoais de medo.
- Construir conhecimento a partir das experiências pessoais.
TAREFA FEITA
- Apresentações individuais das caixas do medo e partilha das experiências da
sessão anterior.
- Registo de ideias e palavras-chave para posterior trabalho de construção de um
mapa mental que leve a conceptualizar sobre o tema do medo e do
desenvolvimento humano.

Ilustração I.16 – Fotografias da partilha da memória descritiva da “caixa do medo”.

5ª SESSÃO – 9 MAIO 2005


PROPÓSITOS
- Utilizar o cinema como técnica pedagógica ao serviço da transformação.
- Estimular a discussão sobre o medo a partir de outras perspectivas.
TAREFA FEITA
- Apresentação do conceito do cinema formativo42.
- Explicação da Técnica O.R.A.43 (a ser utilizada como trabalho de casa).

42
Cinema Formativo:
- “Emissão e recepção intencional de filmes portadores de valores culturais, humanos, técnico-
científicos ou artísticos com a finalidade de melhorar o conhecimento, as estratégias ou as atitudes e
comportamentos dos espectadores” (Saturnino de la Torre, citado por Briga, 2003).
43
Técnica O.R.A (Briga, 2003):
- Observação e Compreensão – descrição do contexto do filme; descrição do filme; compreensão do
tema em reflexão, “o medo no desenvolvimento humano”.
- Relacionar – destacar as (minhas) ideias principais do filme; relacionar as ideias com o tema em
reflexão; interpretar as ideias à luz do tema em reflexão e retirar conclusões.
- Aplicar – transferência para a realidade pessoal; inovação – aprendizagens para a vida: como aplicar as
conclusões à minha realidade? Reflexão sobre a aprendizagem.

77
- Visualização do Filme “A Vila” (de M. Night Shyamalan)44.

6ª E 7ª SESSÃO - 16 E 23 MAIO 2005

Ilustração I.17 – Fotografias da partilha da aplicação da técnica ORA ao filme visualizado “A Vila”.
PROPÓSITOS
- Fazer a ligação entre o filme “A Vila” e o medo na sua relação com o
desenvolvimento humano.
- Interpretar as ideias principais do filme à luz do tema de reflexão.
- Fazer uma transferência das ideias do filme para a realidade de cada um.
TAREFA FEITA
- Partilha da aplicação da técnica ORA (observar, relacionar, aplicar) ao filme
visualizado.
- Registo de ideias e palavras-chave.

8ª SESSÃO - 30 MAIO 2005


PROPÓSITOS
- Sintetizar as ideias gerais das sessões anteriores.
- Construir conhecimento.
TAREFA FEITA

44
Título Original – The Village. Ano de Lançamento (EUA) – 2004. Estúdio – Touchstone Pictures / Scott
Rudin Productions.
Sinopse do Filme: Em 1897, uma vila parece ser o local ideal para viver – tranquila e isolada e com
os moradores vivendo em harmonia. Porém, este local perfeito passa por mudanças quando os
habitantes descobrem que o bosque que o cerca esconde uma raça de misteriosas e perigosas
criaturas, por eles chamados “aqueles de quem não falamos”. O medo de ser a próxima vítima destas
criaturas faz com que nenhum habitante da vila se arrisque a entrar no bosque. Apesar dos constantes
avisos de Edward Walker (William Hurt), o líder local, e de sua mãe (Sigourney Weaver), o jovem
Lucius Hunt (Joaquin Phoenix) tem um grande desejo de ultrapassar os limites da vida rumo ao
desconhecido. Lucius é apaixonado por Ivy Walker (Bryce Dallas Howard), uma jovem cega que
também atrai a atenção do desequilibrado Noah Percy (Adrien Brody). O amor de Noah acaba por
colocar a vida de Ivy em perigo, fazendo com que verdades sejam reveladas e o caos tome conta da
vila.

78
- Trabalho em grupos – início da criação de mapas mentais a partir das áreas
identificadas nos registos das sessões anteriores.

Ilustração I.18 – Fotografias da sessão de construção dos mapas mentais.

9ª SESSÃO - 4 E 5 JUNHO 2005


PROPÓSITO
- Romper com as rotinas.
- Entrar na natureza e descobrir as sensações do corpo.
- Trabalhar o contacto com o outro.
- Sentir e entrar em caminhos não explorados.
- Redescobrir o prazer de parar e de brincar.
TAREFA FEITA
1º dia
- Encontro do grupo e viagem até Fafiães, Gerês.
- Alojamento e jantar numa pensão da aldeia.
- Marcha nocturna na serra45, sem lanterna – primeiro em grupo, depois cada um
sozinho.
- Reencontro na aldeia.
2º dia
- Subida à serra.
- Rapel.
- Almoço e descanso.
- Paralelas.
- Tempo de reflexão sobre as vivências.
- Celebração na serra.
- Regresso à aldeia. Regresso ao Porto.

45
As actividades de marcha nocturna, rapel e paralelas foram realizadas com o apoio de monitores da
Javsport, especializados e certificados pelo ICN e pelo IEPF.

79
Ilustração I.19 – Fotografias do fim de semana no Gerês – caminhada nocturna e subida à serra.

10ª SESSÃO - 13 JUNHO 2005


PROPÓSITO
- Proporcionar uma forma de experiência espiritual, significativa e vitalizante, que
favoreça o encontro intra e interpessoal.
TAREFA FEITA
- Apresentação do conceito e da simbólica do labirinto46.
- Percursos de “o labirinto da construção de si” – primeiro, sozinhos, depois, em
pares, com uma pessoa de olhos vendados sendo guiada por outra.
- Registo e partilha da vivência.

Ilustração I.20 – Fotografias da preparação e da sessão do labirinto.

46
“A forma do labirinto é um arquétipo que se encontra por todo o mundo. No Ocidente, está associado ao
palácio cretense de Minos onde estava encerrado o Minotauro. Contudo, encontramos formas semelhantes
em outros locais como na China, no Egipto e mesmo nos corredores de acesso a certas grutas pré-
históricas. Os labirintos foram muito populares na Idade Média, havendo vários nas catedrais góticas, dos
quais o mais conhecido é, por certo, o de Chartres, que data do século XII. Uma enorme carga simbólica
está associado à forma do labirinto, facto que não é alheio ao seu uso no âmbito da educação espiritual
que recentemente tem aumentado.
(...) Nos dias de hoje, muitas comunidades e grupos vêm redescobrindo os labirintos como forma de
experiência espiritual: pelo facto de confiar no caminho, perdendo a necessidade de ter um controlo
consciente sobre as coisas exteriores, as pessoas tornam-se mais receptivas aos seus estados interiores e
abrem-se à surpresa e aceitação da realidade que as rodeia. Caminhando em direcção ao centro,
aproximam-se também do centro de si mesmas e dispõem-se a receber como um presente a experiência que
é atingir o centro do labirinto” (Azevedo, no prelo).

80
11ª SESSÃO - 20 JUNHO 2005
PROPÓSITOS
- Sintetizar as ideias gerais das sessões anteriores.
- Construir conhecimento.
TAREFA FEITA
- Trabalho em grupos – conclusão dos mapas mentais iniciados na 8ª sessão
(Anexo 3A).

12ª SESSÃO - 27 JUNHO 2005 (com a presença de um dos especialistas externos e de


dois convidados)

Ilustração I.21 – Fotografias da sessão de apresentação e discussão dos mapas mentais.


PROPÓSITO
- Dar a conhecer e discutir o trabalho de síntese feito pelos grupos.
- Fazer o balanço das sessões de trabalho.
TAREFA FEITA
- Apresentação e discussão dos mapas mentais concluídos na sessão anterior.
- Avaliação individual do trabalho realizado ao longo das doze sessões.
- Planeamento de futuros encontros do grupo.
- Confraternização.

3. Observação participante

“É difícil encontrar o sentido de um grupo social só a partir da contemplação exterior a


esse fenómeno; adoptando, por exemplo, uma posição de observador não participante
com um amplo marco teórico referencial, ou somente a partir da intervenção activa
dentro do fenómeno, sem ter um conhecimento alternativo teórico do mesmo. No
primeiro caso, a descrição não transcenderia a realidade de sentido causal e, no

81
segundo, ficar-se-ia só com a lista de eventos (acções e interacções) sem
transcendência no plano real de significado” (Murcia & Jaramillo, 2003:92).

E, em tudo isto, o meu papel de OBSERVADORA PARTICIPANTE na vida real do grupo,


como produtora e produto do processo. Trata-se de ir ao campo, não como líder, nem
como orientadora, mas como membro do grupo e observadora, sem um rumo pré-
definido:

- sendo discreta, procurando deixar que as coisas fluam, mas também estimulando
experiências diferentes e o contacto das pessoas umas com as outras, numa atitude
de “esforço prazenteiro” capaz de, também aqui, ultrapassar dicotomias;
- só ajudando, se necessário, a centrar os temas, procurando participar com o que
sou, não com o que sei ou estudei;
- deixando que o processo e os temas demorem se isso corresponder às
preocupações das pessoas;
- aprendendo a viver na lentidão dos processos – dando tempo para escutar,
processar, dialogar;
- procurando ajudar a tomar consciência, mas respeitando o ritmo de cada um;
- estando atenta aos meus próprios sentimentos e utilizando-os, tanto como fonte de
partilha com o grupo, como fonte de reflexão sobre a pesquisa;
- recorrendo à intuição para, em cada momento, decidir o que fazer, como fazer, até
que ponto ser parte, até que ponto ser observador – muito “fácil” porque o clima do
grupo permite e estimula a ser parte, a estar dentro, mas também “difícil” porque o
propósito do trabalho obriga a ser “observador”, a estar fora...;
- tratando de nunca esquecer que as pessoas são mais importantes do que os
projectos (a tese é consequência, não objectivo, do trabalho que estamos a fazer –
ela nos reuniu, mas não se sobrepõe a nós), mas também que há que ter projectos
para implicar as pessoas.

4. Registos do trabalho com o grupo

As TRANSCRIÇÕES DOS REGISTOS ÁUDIO das sessões (Anexo 8) constituem o instrumento


da pesquisa no que diz respeito ao trabalho com o grupo. São compostas por 319

82
páginas que, à medida que vão sendo compostas, e para garantir a sua exactidão, são
enviadas a todos os participantes para correcção.

Outros registos, como os REGISTOS DAS REUNIÕES PREPARATÓRIAS entre mim e os


orientadores das sessões de trabalho do grupo e os DIÁRIOS DE CAMPO, os que são
facultados por outros participantes e o meu (Anexo 9), são documentos criados ao
longo das sessões (e onde se anotam observações, reflexões pessoais, sentires), que
constituem material de informação complementar.

5. Aplicação do SOQ e do VIEW

Porque nos processos grupais o CLIMA afecta a comunicação, a resolução de


problemas, a tomada de decisão, a aprendizagem e a motivação e influencia a eficácia
e a produtividade da equipa na sua capacidade de inovar (Isaksen et al, 1995; Isaksen
& Lauer, 2002; Isaksen, 2007), no final do conjunto das sessões é feita a aplicação de
um instrumento de caracterização do clima do grupo, o SOQ47 (Anexo 6). O
questionário, na sua versão portuguesa48, é aplicado on-line e os resultados são
apurados por Jesse Bergeron, um dos elementos da equipa de Scott Isaksen, co-autor
do SOQ e Presidente do Creative Problem Solving Group, Inc.49, detentor do respectivo
copyright, com quem tenho vindo a trabalhar desde há anos.

47
SOQ – Situational Outlook Questionnaire. Dimensões do SOQ:
- Desafio e Envolvimento – o nível em que as pessoas estão envolvidas nas tarefas diárias, nos
objectivos a longo prazo e na visão do futuro.
- Liberdade – a independência de comportamento exercida pelas pessoas do grupo.
- Confiança e Abertura – a segurança emocional nas relações.
- Tempo para as Ideias – a quantidade de tempo que as pessoas podem ocupar (e ocupam efectivamente)
na elaboração de novas ideias.
- Alegria e Humor – a espontaneidade e o à vontade dentro do espaço de trabalho.
- Conflitos – a presença de tensões pessoais e emocionais (em contraste com a tensão de ideias na
dimensão “debates”).
- Apoio às Ideias – o modo como são tratadas as ideias novas.
- Debates – a ocorrência de acordos e desacordos entre pontos de vista, ideias, diferentes experiências e
diferentes conhecimentos.
- Riscos Assumidos – a tolerância da incerteza e da ambiguidade presentes no local de trabalho.
48
Em 1997, e trabalhando com Ken Lauer, na altura Director de Investigação do Creative Problem Solving
Group, Inc., fiz a primeira tradução do SOQ. Em 2004, Maria Oliveira juntou-se a esta equipa e a versão
que, neste momento, está disponível on line tem a assinatura de nós as duas.
49
O “Creative Problem Solving Group, Inc., CPSB, é uma organização que se dedica à pesquisa e ao
desenvolvimento que congrega um conjunto internacional de facilitadores, formadores e consultores
altamente especializados no uso do Processo de Resolução Criativa de Problemas. Tem como missão:

83
Ao mesmo tempo, e sabendo que, para além de implicações nas relações interpessoais
e na dinâmica do grupo, os ESTILOS DE RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS (individuais e do
grupo no seu todo), também influenciam os resultados obtidos, é feita a aplicação do
VIEW50 (Anexo 7), pois permite caracterizar a forma como as pessoas percebem,
processam e fazem escolhas e avaliar o estilo de criação presente no grupo (Selby et
al, 2003). Aplicado também on-line, mas na sua versão inglesa (porque a portuguesa
ainda não está disponível), os resultados são apurados por Don Treffinger, um dos
autores do instrumento, com quem também trabalho desde há anos.

Assim que recebo os resultados, e porque estou credenciada para tal pelo Creative
Problem Solving, Inc.51 (Anexo 10), faço um novo encontro com o grupo de pesquisa
para apresentação e discussão dos respectivos resultados e reflexão sobre o modo
como as características agora reveladas podem ter afectado o desenrolar do trabalho
da equipa.

6. Grupo de pesquisa colaborativa – resultados alcançados, perguntas e temas

A tabela abaixo colocada (tabela I.7) foi construída a partir dos seguintes documentos:

- registos das reuniões preparatórias dos encontros do grupo de pesquisa


colaborativa;
- transcrições das sessões;
- actas das sessões e diários de campo.

ajudar as pessoas a compreenderem e usarem os seus talentos criativos em desafios novos, importantes e
complexos: ajudar as pessoas a promoverem sinergias, a diversidade e o trabalho de equipa; aumentar o uso
produtivo do talento humano dentro das organizações de modo a melhorar a qualidade de vida numa
sociedade (www.cpsb.com).
50
Dimensões do VIEW:
- Orientação para a Mudança – descreve as preferências de resposta e de formas de lidar com a estrutura,
a novidade e a autoridade quando se enfrenta a mudança ou a resolução de problemas.
- Processamento da Informação – descreve as preferências sobre o como e o tempo em que a pessoa usa
a suas energia interna e os seus recursos, e a energia e os recursos dos outros e do ambiente.
- Formas de Decidir – descreve as preferências sobre o modo como, na análise de opções, na tomada de
decisão e na execução, se equilibram e se enfatizam as preocupações com a tarefa e as necessidades
pessoais ou interpessoais.
51
SOQ Certification Program (1997) e VIEW Certification Program (2003) do Creative Problem Solving
Group, Inc (Buffalo – NY / USA).

84
RESULTADOS ALCANÇADOS ALGUMAS PERGUNTAS E TEMAS EM ABERTO E SUA RELAÇÃO
ORGANIZADOS EM FUNÇÃO DOS 4 P’S COM CATEGORIAS DE ANÁLISE DA PESQUISA
1ª Sessão - 4 Abril 2005
1) Ao nível do clima/pressão: 1) Como se lida com o medo – processo centrado no
 Início da construção da identidade do grupo – “nós”. desenvolvimento humano:
 Criação de um clima informal de abertura, motivação,  Como vai ser estruturado o trabalho?
boa disposição, tranquilidade e disponibilidade.  Como fazer com que o trabalho seja produtivo no
tempo que lhe está destinado?
2ª Sessão - 11 Abril 2005
1) Ao nível do clima/pressão:
 Compromisso de confidencialidade no grupo.
 Integração-construção do sentido de grupo a partir da
experiência do relaxamento, da disponibilização do
corpo e da linguagem das emoções.
 Diário de Campo – “sinto que, no final de uma
segunda sessão, não poderíamos estar mais longe
do que estamos. É como se, pelo interesse e
compromisso das pessoas, tivéssemos passado por
cima do tempo de entrosamento e constrangimento
inicial”.
3ª e 4ª Sessões - 18 Abril e 2 Maio 2005
1) Ao nível da pessoa: 1) Definição de medo:
 Identificação de medos pessoais e de figuras  As polaridades do medo – realismo-fuga; construtor-
significativas a eles ligadas – histórias, causas, bloqueador; imperceptível-atrapalhador; utilidade-
efeitos, estratégias, formas de ultrapassar. inutilidade; força-fraqueza; ameaça-tentação, um
2) Ao nível do clima/pressão: tudo e um nada...
 Integração no grupo a partir da forma como se fala 2) Como se lida com o medo – processo centrado no
dos medos. desenvolvimento humano:
 Acta da 4ª sessão: “o debate foi particularmente  A importância da presença de uma figura significativa
animado – o que começou com uma partilha tornou- que seja testemunho de fortaleza.
se motivo para outros elementos do grupo (por causa  Distinção entre medo e objecto de medo – a
da identificação) também falarem dos seus medos e necessidade de enfrentar o medo eliminando o
de formas de os controlar/curar”. (...) “As pessoas objecto do medo.
despediram-se e foram felizes, e inquietas, para  A importância de saber viver bem com os medos.
casa...”.  Como ganhar consciência das próprias limitações-
3) Ao nível do processo: possibilidades?
 Extracto do relato da 3ª sessão – “Num trabalho  “Sei que sou [capaz, inteligente, corajoso...], mas não
deste tipo parece-me que, andando rápido, podemos sinto que sou”.
perder coisas preciosas” (colocar referência). - Por que é tudo tão claro no pensar, mas não
Decisão do grupo – as coisas valem por si mesmas, no sentir?
trabalha-se com a profundidade que o grupo precisar, - Como reconhecer e trabalhar as emoções?
demore o que demorar; não há programa para Como passar do pensar ao sentir? Como
cumprir, não é preciso chegar a nenhum lugar evitar estratégias exclusivamente ligadas à
previamente definido. razão?
 Extracto de um diário de campo (3ª sessão) – Não  De que sentires reais estamos a fugir?
estou ainda convencida de que tenhamos ido às - Como utilizar vivências que nos ponham a
«profundezas» do tema (...).” sentir coisas não sentidas? Como sentir o que
 Extracto de um diário de campo (3ª sessão) – “Foi está colado na pele?
uma sessão muito intensa. Não conseguimos mais - Como mexer, de verdade, com os medos
do que ouvir sete pessoas. Isto é, ficámos pelo ligados à pele, ao toque, ao corpo?
primeiro passo da sessão e, mesmo assim, não 3) Para quê – o lado positivo do medo:
terminámos.  O medo como factor de maior consciência e
aprendizagem; o medo que ajuda a superar
objectivos.

85
5ª Sessão - 9 Maio 2005
1) Ao nível do clima/pressão:
 Extracto de um diário de campo – “No final do filme,
que é intenso, o silêncio era total. Foram precisos
minutos para começarmos a reagir. Toda a gente
ficou mexida com o que vimos”.
 Acta da 5ª sessão: “Após uma brevíssima reflexão
conjunta sobre o filme (que a todos tinha deixado
uma forte impressão), o nosso encontro terminou
pelas 20.20 horas e, como se vem tornando hábito,
as pessoas despediram-se e foram felizes e inquietas
para casa...”.
6ª e 7ª Sessões - 16 e 23 Maio 2005
1) Ao nível do clima/pressão: 1) O quê – efeitos do medo:
 Extracto de um diário de campo – “(...) sinto as  Relação entre medo e mentira, fantasia e criação de
pessoas muito interessadas; mas sinto também (pelo mundos.
menos nalgumas situações), que não abordam os  Quais as consequências de viver “congelado-
seus sentires, mas os seus saberes, sobre o tema do paralisado ” no medo? Vive-se melhor, ou pior, sendo
medo – em termos individuais e em termos sociais. alienado?
(...) Mas também sinto que as pessoas estão bem  O medo entranhado (como parte de si, do corpo, do
umas com as outras, desfrutam da companhia e que sentir, do viver), que leva a ter medo mesmo daquilo
este trabalho está a fazer bem a todos”. que se sabe não ser real.
2) Ao nível do produto: 2) Porquê – causas do medo:
 Extracto de um diário de campo – “Pelo caminho, de  Relação entre medo, sentimento de culpa e
regresso a casa, conversei muito com a A. sobre os religiosidade.
nossos trabalhos, sobretudo sobre o bem que nos 3) Para quê – o medo para a conservação social:
têm proporcionado – contribuem muito para aliviar o  Relação entre controlo social e medo. O medo como
stress do dia. Também nos interrogamos se, na alavanca ao controlo social; o medo como factor de
verdade, estamos a ajudar (...) a alcançar o objectivo coesão e isolamento; a utilização da mentira para
porque, às vezes, pode-se correr o risco de nos deter o poder e governar.
esquecermos que estamos no grupo para uma 4) Como se lida com o medo – processo centrado no
investigação!” desenvolvimento humano:
 De tanto pensar, de tanto analisar, de tanto
raciocinar, o que estou a esconder de mim mesmo?
O que estou a evitar?
 A importância dos processos interiores para superar
o medo. A necessidade-capacidade de entrar em
contacto consigo mesmo, com os valores profundos,
para ter força para enfrentar os medos.
 Se não houvesse limitações, se não houvesse medo,
o que poderia ser feito?
9ª Sessão - 4 e 5 Junho 2005
1) Ao nível da pessoa: 1) Porquê – causas do medo:
 Sentimento de identificação e fusão com o universo –  O papel do pensamento na construção do medo.
pacificação interior. 2) Como se lida com o medo – processo centrado no
 Somatização de emoções. desenvolvimento humano:
 Experiência de ir até ao próprio limite num momento  Como explicar o que são medos interiores a quem só
dado. é capaz de entender os físicos-exteriores?
 Extracto de um diário de campo – “(...) na vida há  Como permitir o soltar das emoções e evitar o elogio
momentos tão profundos que, por serem tão fácil que as faz conter?
profundos, sentimos medos de os partilhar! Sentimos  Como aprender a não duvidar de si mesmo e a ter a
medo, sim, porque às vezes as nossas palavras são força e a confiança suficientes quando, contra todos,
ineficazes para expressar o verdadeiramente se intui estar no caminho certo?
profundo que uma pessoa possa sentir!”  A importância do sentido de missão como forma de
2) Ao nível do clima/pressão: lidar com o medo – “faz o que tem de ser feito sem te
 Sentimento de protecção, de segurança e de preocupares com as consequências, se isso fizer

86
pertença que nasceu da sintonia do grupo no silêncio parte da tua missão”.
e nas passadas do caminho.
 Extracto de um diário de campo – “Com a sua
sensibilidade, o K. soube tornar aquele momento
num momento mágico de relação entre as pessoas.
E no final alguma coisa tinha mudado. Posso dizer
que foi um momento essencial de comunicação de
almas e entrosamento das pessoas. Por tudo o que
em conjunto vivemos, a serenidade e a paz que ali
estavam presentes, tornámo-nos companheiros de
viagem”.
3) Ao nível do processo:
 Consciência da necessidade de dar tempo para que
as vivências ganhem maior sentido.
10ª Sessão - 13 Junho 2005
1) Porquê – causas do medo:
 O medo e o desejo da liberdade. O medo de falhar
nas escolhas e de não chegar tão longe como se
poderia.
2) Como se lida com o medo – processo centrado no
desenvolvimento humano:
 Qual é o labirinto da minha vida? Qual o monstro que
hoje está lá no centro à minha espera?
 O que se consegue no centro é uma conquista
dolorosa.
 O caminho que vai desde “pensar” o meu centro a
“sentir” o meu centro.
 A confiança de quando se acredita numa coisa muito
forte e se sente que essa coisa muito forte está a
indicar o caminho.
 Deixando acontecer o não planeado recebe-se mais
do que o sonhado.
11ª Sessão - 20 Junho 2005
1) Ao nível do produto:
 Mapas mentais dos seguintes temas (Anexo 3A)
- Medo – categorias de medos.
- Estratégias para lidar com o medo.
- Medo e Desenvolvimento Humano – medo
destrutivo/bloqueador; medo impulsionador.
2) Ao nível do clima/pressão:
 Extracto de um diário de campo: “Ao nosso grupo
juntou-se o J. Foi bonito o seu contributo.
Trabalhámos em harmonia. Trabalhámos e
conversámos.
12ª Sessão - 27 Junho 2005
1) Como se lida com o medo – processo centrado no
desenvolvimento humano:
 Lidar com o medo e transformá-lo em energia
positiva. Distinção entre medo bloqueador e medo
impulsionador:
- O medo bloqueador provoca: tensão,
ansiedade, angústia, perda da noção do real,
aumento do medo de nós próprios, viver para
o exterior, excesso de projectos, viver em
função da imagem, afastamento da própria

87
essência.
- O medo impulsionador possibilita:
consciência, novas energias, auto-
conhecimento, paz de espírito, viver no
presente, liderança.
 Não gostamos das pessoas por aquilo que temos em
comum, mas por aquilo que vivemos em comum.
Tabela I.7 – Sessões do grupo – síntese por sessão dos resultados alcançados e das perguntas e temas em aberto.

Síntese dos resultados alcançados e perguntas e temas em aberto nas sessões


do grupo de pesquisa colaborativa

Resultados alcançados – organizados em função dos 4 P’s da criatividade:


1. Ao nível da pessoa.
 Identificação de medos pessoais e de figuras significativas a eles ligados.
 Experiência de ir até ao próprio limite.
 Somatizaçáo de emoções
2. Ao nível do clima /pressão.
 Integração-construção do sentido de grupo.
 As pessoas estão interessadas, mas muitas vezes não se abordam os
sentires, mas os saberes sobre o tema do medo.
 As pessoas estão bem umas com as outras, desfrutam da companhia; o
trabalho está a fazer bem a todos.
3. Ao nível do processo.
 As coisas valem por si mesmas. Trabalha-se com a profundidade que o
grupo precisar, demore o que demorar; não há programa para cumprir, não é
preciso chegar a nenhum lugar previamente definido.
 Consciência da necessidade de dar tempo para que as vivências ganhem
maior sentido.
4. Ao nível do produto.
 Os nossos trabalhos contribuem muito para aliviar o stress do dia.
 Categorização de: medos; estratégias para lidar com o medo.
 Distinção entre medo destrutivo/bloqueador e medo impulsionador.

88
Perguntas e temas em aberto – organizados em função das categorias de análise da
pesquisa.

1. O quê.
 As polaridades do medo.
 O medo entranhado que leva a ter medo mesmo daquilo que se sabe não
ser real.
2. Como.
 Como se lida com o medo – processo centrado no desenvolvimento humano.
- A importância de saber viver bem com os medos.
- A importância dos processos interiores para superar os medos.
- A importância do sentido de missão como forma de lidar com o medo.
- Lidar com o medo e transformá-lo em energia positiva.
- De tanto pensar e analisar, o que estou a esconder de mim mesmo?
- Como ganhar consciência das próprias limitações-possibilidades?
- Como passar do pensar ao sentir?
- Como utilizar vivências que nos ponham a sentir coisas não sentidas?
Como sentir o que está colado à pele?
- Como mexer, de verdade, com os medos ligados à pele, ao toque, ao
corpo?
3. Porquê.
 A importância da presença de uma figura significativa que seja testemunho
de fortaleza.
 O papel do pensamento na construção do medo.
 Relação entre medo, sentimento de culpa e religiosidade.
4. Para quê.
 O medo para o controlo social – o medo como factor de coesão e
isolamento; a utilização do medo para deter o poder e governar
 O medo para o desenvolvimento humano - o medo como factor de maior
consciência e aprendizagem; o medo que ajuda a superar objectivos.

89
2.2.4 Etapa 3 – Achando Luzes

Processo Criativo – Produção de Ideias


Produção de Ideias (3)

Procurando romper com padrões e hábitos


estabelecidos, permite a geração de um grande
número de ideias e de abertura a novas
perspectivas:

- Continuação da criação e identificação de


ideias com potencial interessante para usar ou
desenvolver posteriormente.
(Isaksen et al., 2000)

A terceira etapa pode ser dividida em três fases distintas – leitura da informação
recebida, construção de sentido e apresentação e discussão dos significados
encontrados. A pesquisa colaborativa, embora ainda ocorra no início da primeira fase,
sofre depois uma interrupção para só voltar a ser retomada na realização da última.

• Fase de leitura da informação recebida

1. Análise de dados

“Por «dados» entendemos as páginas de materiais descritivos recolhidos no processo de


trabalho de campo (transcrições de entrevistas, notas de campo, artigos de jornal, dados
oficiais, memorandos escritos pelos sujeitos, etc. Os seus próprios memorandos, notas
de pensamentos que teve, comentários do observador, diagramas e a compreensão que
adquiriu e registou devem ser manipulados da mesma maneira (...). Deve organizá-los
de modo a ser capaz de ler e recuperar os dados à medida que se apercebe do seu
potencial de informação e do que pretende escrever” (Bogdan & Biklen, 2006:232).

Com a colaboração de seis membros do grupo de pesquisa que se dispõem a continuar


a participar na qualidade de informantes-chave, começa o trabalho de análise dos
dados.

90
As transcrições das sessões são divididas por pequenos grupos de colaboradores para
um trabalho preparatório de identificação-criação de categorias e sub-categorias.
Depois reúnem-se e discutem-se os resultados parcelares e os dados são
recategorizados até, em CONSENSO e por uma SATURAÇÃO DOS DADOS que garanta a
neutralidade na análise, chegarmos ao conjunto final das categorias52. O desenho de
uma proposta educativa para lidar com o medo em contexto de educação de adultos
(propósito da pesquisa) está contido neste conjunto final.

Ilustração I.22 – Fotografias do trabalho de construção de subcategorias.

Em termos gerais (e com mais ou menos detalhe de acordo com a necessidade sentida,
e conforme se pode ver nos documentos contidos no Anexo 5, os passos dados para a
construção das CATEGORIAS DE ANÁLISE foram os seguintes:

1. Criação de códigos de localização de todos os trechos dos relatos. Exemplo:


1A1/4
... não sei se já senti medo… Não, sinto medo de ter medo, acho que é o único medo que eu tenho.

1A1/4 = primeira sessão, código de participante, primeira intervenção / parágrafo 4.

2. Leitura, análise, criação de categorias e sub-categorias de análise e marcação a


cores do texto dos relatos das sessões – uma cor para cada categoria (Anexo3).
Exemplos:
1A1/4
A) ... não sei se já senti medo… Não, sinto B) medo de ter medo, acho que é A. Quem, caract. pp
o único medo que eu tenho. B. O Quê, relação de
medos

52
O ponto 2.4 deste capítulo, sobre processamento de dados, relata o modo como as categorias de análise
emergiram a partir dos resultados empíricos e dos estudos conceptuais.

91
2V1/4
A) E, nestes 9 anos, todas as semanas estou a ser avaliado, porque todas as A) O quê, relação de
semanas estou a trabalhar com grupos diferentes e todas as semanas (e já medos
são algumas centenas de grupos), mas todas as semanas tenho medo
quando vou começar um trabalho. B) Os meus amigos dizem-me: “Já andas B) Como, como reagem as
nisso há tantos anos… Como é que é possível?”. outras pessoas

9I9/1
Gostava de dizer uma coisa – eu tenho um bocado a ideia que, A) se eu hoje Por Quê, razões para não
não tive medo no rappel, em grande medida era porque tinha que chegar lá em ter medo CONTINUA EM
baixo rapidamente. 9J2/1; 9I10/1
9J2/1
A’) Tinhas uma missão, tinhas um valor muito grande. CONTINUAÇÃO DE 9I9/1
9I10/1
A’’) Nem hesitei, só tinha que descer. CONTINUAÇÃO DE 9I9/1

10U2/3 Para Quê, desenv.


(....) E depois, deixando acontecer, surgiram-me coisas que não estavam humano, outros
planeadas: recebi uma flor; recebi e dei abraços; dancei; dancei a valsa; tive
sorrisos.

3. Compilação dos excertos do texto em função das categorias e subcategorias de


análise encontradas (Anexo 5). Exemplo:
Categoria: o quê / Subcategoria: relação de medos
1A1/4 – (…) medo de ter medo
1CA1/3 - (…) ter receio de fazer uma coisa.
1CA1/3 – (...) queremos uma coisa, ou um sentimento de amor, ou qualquer tipo de sentimento que não sou
capaz de expressar por medo.
2V1/4 - E, nestes 9 anos, todas as semanas estou a ser avaliado, porque todas as semanas estou a trabalhar
com grupos diferentes e todas as semanas (e já são algumas centenas de grupos), mas todas as semanas
tenho medo quando vou começar um trabalho.

4. Identificação, quando necessário, de sub-subcategorias nos excertos compilados


(Anexo 5). Exemplo:
Categoria: o quê / Subcategoria: relação de medos Sub-subcategorias
1A1/4 – (…) medo de ter medo 1. Medo de ter medo
1CA1/3 - (…) ter receio de fazer uma coisa. 2. Medo de fazer alguma coisa
1CA1/3 – (...) queremos uma coisa, ou um sentimento de amor, ou 3. Medo de expressar emoções ou
qualquer tipo de sentimento que não sou capaz de expressar por sentimentos
medo.

92
2V1/4 – E, nestes 9 anos, todas as semanas estou a ser avaliado 4. Medo de ser avaliado
(...), mas todas as semanas tenho medo quando vou começar um
trabalho.

5. Criação, quando necessário, de sub-sub-subcategorias – agrupando, cruzando,


ordenando... desagrupando, descruzando, desordenando... sub-subcategorias
(Anexo 5). Exemplo:
Categoria: o quê / Subcategoria: relação de medos
Sub-subcategorias Sub-sub-subcategorias
Identificação do Classificação Relação Eu-Outros- Corpo de Origem
Medo Cosmos
1. Medo de ter medo Medo do medo Eu Corpo mental
2. Medo de fazer Medo do compromisso Outros Corpo cultural
algo
3. Medo de Medo da intimidade Outros Corpo emocional
expressar emoções
ou sentimentos
4. Medo de ser Medo da avaliação dos Outros Corpo cultural
avaliado outros

6. Construção de um mapa mental para posicionamento de todas as categorias e


subcategorias de análise53. Excerto:

7. Descrição das categorias54: identificação da categoria e das sub-categorias com


indicação do respectivo código de localização no mapa mental geral; explanação
dos conceitos subjacentes; apresentação, sempre que considerado necessário, de
um conjunto de palavras-chave; um exemplo dessa subcategoria com identificação
do respectivo código da localização no texto de análise.

8. Consulta de especialistas externos ao grupo de pesquisa, como garantia da sua


fiabilidade interna, para validação dos resultados – a Prof. Eugenia Trigo, da

53
Ver “Capítulo 1 Roteiro – 2.4 Processamento de dados” e “Anexo 4 – Descrição das categorias de
análise”.
54
Ver “Anexo 4 – Descrição das categorias de análise”.

93
Universidade del Cauca, o Prof. Doutor Manuel Sérgio, da Universidade Técnica de
Lisboa e a Prof. Doutora Clara Costa Oliveira, da Universidade do Minho.

2. Interpretação/triangulação da informação recebida

É o tempo do meu regresso ao trabalho de investigador solitário para fazer a


triangulação e interpretação dos dados.

“Bertraux recorda que os "objectos" que as ciências sociais examinam são falantes, mais
do que isso, são pensantes e o que dizem tem significado; além disso, o investigador é
um deles, um ser humano entre seres humanos. Com frequência as pessoas que ele
estuda sabem mais do que se passa do que o investigador mesmo; contudo, este último
tem algo a acrescentar, porque cada pessoa tem um campo de percepção limitado e é aí
que começa o desafio da investigação: trata-se de dizer algo mais sobre o todo de que
forma parte o grupo em estudo, de unir os fragmentos do conhecimento que encontrou
por um e outro lado. É este o sentido que o autor reconhece à frase "análise da
informação": um processo não só de análise, mas de síntese, um processo contínuo de
concentração no âmbito tanto invisível como omnipresente das relações sociais”
(Martínez Salgado, 1996:48).

Tentando sentir-me livre para interpretar, são estes os passos que dou para cada uma
das perguntas e categorias de análise:

- faço uma introdução para identificar a palavra-chave, a perspectiva geral, o eixo


da categoria;
- explico como fui fazendo e como foi achado esse eixo;
- faço a interpretação dos dados da categoria a partir desse eixo;
- escrevo sobre todas as subcategorias à luz do eixo central;
- preparo e envio para anexos os mapas intermédios, tudo o que foi feito para
chegar a esta construção.

É um tempo longo de criação em que (utilizando a lógica, o raciocínio, mas também a


percepção) procuro fazer como que uma hermenêutica – um texto interpretativo onde,

94
em processo de triangulação, e a partir da minha subjectividade de investigadora,
dialogo com as pessoas do grupo, com os autores, com o meu diário de campo.

É o verdadeiro acto criador do pesquisador. É um tempo de ligação entre tudo, de


coerência da tese. É, inclusive, o tempo em que descubro que o tema do projecto antes
abandonado (Etapa 0), também aqui está contido, mas agora de uma maneira mais
profunda, porque vivenciado – afinal, “por outros caminhos”.

• Fase de construção de sentido

Processo Criativo – Planeamento da Acção


Desenvolvimento de Soluções

Permite trabalhar uma solução promissora para que


se torne exequível.

- Fase de desenvolvimento, fortalecimento,


análise, avaliação, selecção e estabelecimento
de prioridades de ideias e possibilidades
promissoras.
(Isaksen et al., 2000)

Análise da
Análise da
A+B Categoria
Categoria B
A

A+C B+C

Análise da
Categoria
C
Legenda
A+B / B+C / A+C = interpretação
A+B+C = construção de sentido

Ilustração I.23 – Construção de sentido.

É, finalmente, o retomar todas as partes da obra feita – lembrando, actualizando,


conjugando, sintetizando. Identificando a imagem global do que foi construído ao longo

95
de muitos meses, compreendendo o que é essencial, concretizando a proposta
educativa – para cumprir os propósitos. Para fazer (e encontrar o) sentido.

“[Bertraux] descreve a etapa da comunicação dos resultados. Esta exige, em seu


entender, algo mais que um simples informe; o que importa é que a comunicação seja
lida e que tenha sentido para as pessoas. Para isso estas requerem, entre outras,
modalidades narrativas elaboradas com uma estrutura e uma linguagem muito distintas
das que são usadas no artigo científico básico” (Martínez Salgado, 1996:48).

• Fase de apresentação e discussão dos significados


encontrados

Processo Criativo – Planeamento da Acção


Construção da Aceitação

Permite trabalhar uma solução promissora para que


se torne exequível.

- Fase de consideração de diversas fontes de


apoio e de resistência para desenvolver e
avaliar as soluções.
(Isaksen et al., 2000)

“A relação sujeito-objecto, além de cumprir uma função gnoseológica de apropriação,


constitui o próprio objecto do conhecimento; daqui que não possamos aceitar que o
desenvolvimento do conhecimento seja dissociável do desenvolvimento da consciência e
auto-consciência do sujeito, de modo que permita avançar não só para etapas
superiores do conhecimento, mas também da consciência do homem” (Zemelman,
1996:47).

Com tudo escrito, volto a convocar o grupo de pesquisa para apresentação e discussão
da proposta educativa e dos significados encontrados no quadro de leitura da pesquisa.
Dos nove, estávamos sete. Os outros dois estavam geograficamente muito longe.

É tempo de dar conta da tarefa feita, das decisões tomadas e das soluções
encontradas. É, essencialmente, tempo para escutar e estar disponível para mudar o

96
que, a partir daí, precise de ser mudado. Mas foi também, e de alguma maneira, tempo
de festa, porque foi tempo de encontro.

Embora, depois da conclusão do trabalho conjunto, já nos tivéssemos voltado a


encontrar em diversas ocasiões, esta foi a primeira vez em que, formalmente, nos
voltamos a juntar para tratar do tema da pesquisa. Assim, e tendo também utilizado
algum tempo para partilhar o que, para cada um, significa “dois anos e meio depois”, a
grande decisão foi que vamos retomar os nossos encontros (já não para a tese, quiçá
para outras teses), mas para nós mesmos – com uma forte componente vivencial, como
espaço de reflexão, de desenvolvimento e amadurecimento pessoal. Dos nove,
estamos nove.

2.2.5 Etapa 4 – Novos caminhos

Processo Criativo – Compreensão do Problema


Construção de Oportunidades (1)

Permite fazer a transição entre o espaço em que o


problema se situa de forma ampla e confusa e um
espaço em que o problema se situe de uma forma
mais definida e clara:

- Fase da descoberta das oportunidades e dos


desafios que podem ser considerados.
(Isaksen et al., 2000)

• Identificação de novos projectos e novas perguntas /


conclusão do relatório da investigação

“Os investigadores qualitativos têm a “Utilize auxiliares visuais. Uma técnica de


sorte de não terem um modo único de análise que tem recebido cada vez mais
apresentar os resultados (....) Com a atenção diz respeito à utilização de
prática, o seu estilo particular de auxiliares visuais (...). Figuras como
apresentação acabará por surgir. Os diagramas, matrizes, tabelas, e gráficos
estilos de apresentação podem ser podem ser utilizadas em todas as fases da
visualizados num contínuo. Num dos análise de dados, desde o planeamento

97
extremos encontram-se os modos formais até aos produtos finais. (...) Podem ajudá-
ou tradicionais de organizar uma lo a resumir o seu pensamento,
apresentação. (...) No extremo oposto permitindo-lhe apresentar mais facilmente
podem encontrar-se os modos de escrita os seus resultados a outras pessoas”
mais informais ou não tradicionais” (Bogdan & Biklen, 2006:217).
(Bogdan & Biklen, 2006:256).

É também um tempo que demora tempo – porque é tempo de ler e reler e de dar a ler –
ganhando distância, olhando o detalhe, confirmando a coerência.

É o tempo de fechar, de agradecer, repousar e CELEBRAR55.

Mas é também o tempo de, procurando e aceitando a importância do trabalho feito, aí


descortinar novos caminhos, oportunidades, desafios e energias que o permitam reabrir.
Logo que for o seu tempo.

55
O terceiro dos três caminhos de criação referidos por Sturner (1996) – ver “Capítulo 3 Descobrir
caminhos de outros – 2.2 Contornos do desenvolvimento humano”.

98
2.2.6 Correspondência entre processo criativo (CPS), processo da pesquisa e relatório da pesquisa

CPS Processo da Pesquisa Relatório da Pesquisa


Componentes Etapas e fases da pesquisa Produtos da pesquisa Capítulos e sub-capítulos do relatório da pesquisa
- Fundamento - A pesquisa
I.
Introdução epistémico - Organização da
Processo
- O tema tese
da
Cap. 1 - Criação do desenho da investigação
Pesquisa
Roteiro - Itinerário e crónicas do caminho
Etapa 0 – Por outros caminhos Referencial Interno
Cap. 2
Etapa 1 – Na procura de caminhos  - Eu Pessoa – já alguma vez?
Descobrir os
Fase reflexiva e de aproximação à pesquisa. Temas e sub-temas de estudo - Eu Educadora – memórias
próprios caminhos
1. Histórias de vida (trabalho de campo I)  II
2. Revisão bibliográfica Linhas de Orientação Geral Centrar - O medo

Problema
Cap. 3
 - O desenvolvimento humano

Compreensão do
Descobrir caminhos
Perguntas da Investigação - Campo de criação
de outros
 - Educação criativo-motrícia
Etapa 2 – Caminhando Cap. 1 Roteiro – 2.4.1 Mapa das categorias de análise
Fase de aprofundamento. Observação-participação no Anexo 3 – Transcrição das sessões do grupo de pesquisa
1. Sessões de trabalho com o grupo de trabalho de campo Anexo 4 – Descrição das categorias de análise
pesquisa colaborativa (trabalho de campo  Anexo 5 – Análise de dados
II) III Anexo9 – Diário de campo
Etapa 3 – Achando luzes Agir
Categorias de Análise
Fase de leitura da informação recebida. - Quem...?
Cap. 4 - Por que .....?

Produção de Ideias

1. Análise de dados (c/ informantes-chave) - O que .....?
Quadro de Leitura da Criar o caminho - Para que .....?
2. Interpretação/triangulação - Como…?
Informação Recolhida
Fase de construção de sentido.

3. Síntese e proposta educativa
Síntese
Fase de apresentação e discussão dos O sentido do caminho
+

da Acção
significados encontrados. - À maneira de conclusão

Planeamento
Princípios Educativos
4. Sessão com o grupo de pesquisa IV - Princípios de Educação de Adultos
Etapa 4 – Novos caminhos Celebrar Para abrir um novo caminho
Fase de identificação de novos projectos e - Fechar o ciclo

novas perguntas. - Reabrir o ciclo
Novas perguntas

Compreensão
do Problema 2
Tabela I.8 – Correspondência entre o processo criativo e metodológico e o relatório da pesquisa.

99
100
2.3 Processo de Orientação da Tese
Mentor

When no one noticed


You saw me struggling.
You could have passed but didn’t:
Your thinking and your smiles
Convinced me to excel.
Your steadfast faith in me
Compelled me to succed.
And if by chance I didn’t
You’d still be there for me.
It is good to have
Some one like you.
Richard Kramer

O processo de orientação da tese, que permitiu e incentivou a abertura e disponibilidade


para avanços, retrocessos e reconfigurações da pesquisa, foi um dos elementos
essenciais do percurso metodológico-criativo atrás descrito. Estando vivamente
presente em todas as suas fases (e não sendo, também ele, nem independente, nem
linear), foi mais um dos fios que configurou o tecido criado. Entre ambos, processo de
orientação e caminho percorrido, criou-se uma relação que, à maneira de Morin (2003),
é uma relação-realidade complexa pois, mantendo-se duos na unidade, situaram-se
simultaneamente no interior e no exterior um do outro e tornaram-se produto e
produtores de si mesmos.

É, por isso (e, ao mesmo tempo, apesar disso), que, quando atrás fiz a descrição dos
procedimentos e técnicas desta tese, não fiz a explicação do processo da sua
orientação. Mas, é porque se trata também, e fundamentalmente, de um acto criador,
que, sob o risco de omitir um elemento vital da pesquisa, não posso deixar de a fazer
agora. Nessa continuidade, vou colocar esta descrição na mesma matriz (a matriz dos 4
P’s), já antes utilizada para situar o processo metodológico. Assim (e na medida das
possibilidades de uma descrição que não deve tornar-se demasiado extensa), começo
pela repetição do que, noutras ocasiões58, já serviu para a caracterização do produto
desejado para que, também aqui, possa perceber-se como implicou e se conjugou com
restantes partes do sistema.

58
Ver “Introdução – 1.2 Implicações para a pesquisa” e início do “Capítulo 1 Roteiro”.

101
• Produto

Os propósitos gerais desta tese, que passo a renomear, incorporam os seguintes


enunciados:

- Um conceito multidimensional, ético, solidário e responsável de


Desenvolvimento Humano (Morin, 2006).
- A escuta das emoções como meio para entender o que acontece na
profundidade de cada pessoa (Damásio, 2003:183).
- A consciência de que a vida é um fenómeno complexo de auto-eco-organização,
de inter-relação com o universo e com o outros (Morin, 2003).
- A ideia de responsabilidade pelo nosso destino e pelo destino do nosso planeta
(Berman, 1981).
- A noção de que todos os discursos são encarnados e que o investigador influi na
construção do objecto do conhecimento (Morin, 2003; Sérgio & Toro, 2005;
Varela, 2000).
- Diferentes cosmovisões, diferentes maneiras de conhecer e diferentes
linguagens (Sousa Santos, 1988; Zemelman, 1996; Feitosa, 1999; Capra, 1982;
Sisk & Torrance, 2001; Sousa & al, 1998; Bachelard, 2002; McCall, 2003).

• Pessoa(s) e Pressão-Clima

Tal como já tive oportunidade de referir na Introdução desta tese, ao longo da pesquisa
pude contar (num trabalho feito em parceria), com a orientação de três Professores com
formações, sistemas e, até, nacionalidades diferentes. De uma forma continuada, com a
orientação da Prof. Doutora Eugenia Trigo (da Galiza, Espanha, vinculada à
Universidade del Cauca, na Colômbia); no início e escolha do tema e na fase da
pesquisa colaborativa, com a Prof. Doutora Maria da Conceição Azevedo (Portugal,
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro); em momentos pontuais de assessoria
metodológica, com a orientação do Prof. Doutor Luís Guillermo Jaramillo (Colômbia,
Universidade del Cauca).

102
Orientadora(es) e Orientada, com papeis e responsabilidades diferentes, mas que, na
complexidade e pela intercomunicação, se tornaram, à maneira dialógica de Freire,
orientadora(es)-orientada(os) e orientada-orientadora – “porque a educação autêntica
(...) não se faz de A para B ou de A sobre B, mas de A com B, mediatizados pelo
mundo” (Freire, 2003:84).

Não quero, por isso, mas também por uma economia de palavras, separar aqui a
descrição da dimensão pessoa da dimensão clima. Aliás, se tivesse de escolher uma
única palavra que caracterizasse ambas, escolhia “cumplicidade” – pelo que pressupõe
de confiança, discrição e compromisso; pelo que integra de comportamentos de escuta,
de comunicação, de permanente trabalho de equipa.

Ilustração I.24 – Fotografias de Orientadores e Orientanda.

Do lado da(os) Orientadora(es) – tendo como primeira responsabilidade a focalização


no processo, o jeito da(os) Orientadora(es) caracterizou-se globalmente por:
- Buscar coerência e equilíbrio entre processo-conteúdo, tarefa-pessoa,
divergência-convergência, inovação-adaptação.
- Colocar e estimular um grande nível de energia e de desafio, um elevado grau
de preocupação, interesse e sensibilidade.
- Respeitar, mas também incentivar, o meu ritmo de produção.
- Promover, sempre que necessário, e pela gestão de instrumentos e processos
diversos, situações de ensino-aprendizagem.
- Promover, sempre que necessário, e pela oferta (ou sugestão) de actividades
diversas, tempos fortes de distanciamento e incubação.
- Apontar o sentido, mas não a forma de lá chegar – de modo a que, mostrando
que são possíveis muitos caminhos, preservar a minha autonomia, a minha
responsabilidade e a minha capacidade de criação e de decisão.

103
- Exigir tudo o que acreditaram ser possível – não numa atitude de quem aponta o
errado (nem de quem corrige e faz pelo outro o que só ele deve fazer), mas
ajudando a encontrar em mim aquilo que se acreditou ser possível encontrar.

Do lado da Orientada – sendo a pessoa a quem, em última análise, cabe a


responsabilidade pelas decisões tomadas, por providenciar e organizar recursos e
promover a acção, a atitude caracterizou-se por:
- Estar genuinamente comprometida com o processo de desenvolvimento teórico-
disciplinar e de desenvolvimento pessoal da pesquisa.
- Ter flexibilidade de pensamento e abertura de coração para, em diversos pontos
do percurso, aceitar o desafio de explorar caminhos diferentes dos inicialmente
previstos.
- Confiar na orientação e, por isso, fornecer e pedir toda a informação necessária,
tanto do ponto de vista conceptual e metodológico, como do ponto de vista
pessoal e relacional.

• Processo

Acompanhando todas as fases da pesquisa, o processo de orientação foi, também ele,


constituído por uma grande diversidade de tempos de encontro:

Tempos de tutoria presencial


Em Portugal, em Espanha e na Colômbia, com uma periodicidade que variou entre
semanal e anual (mas esta com a duração de duas a três semanas a tempo inteiro),
foram sempre tempos de questionamento muito fortes, de criação de novos
impulsos e/ou de mudança de alguns rumos que se tornavam demasiado rígidos ou
inadequados.
Mas foram também ocasiões de encontro em que, às vezes, e à primeira vista,
parecia que o foco de atenção não se colocava na tese. Porque a tese é vida e a
vida é tese, os tempos de tutoria presencial também englobaram a proposta e
execução de actividades e vivências muito diversas que, pelas sinergias
desencadeadas, vieram a dar origem a novos espaços de criação.

104
Tempos de tutoria virtual
Inicialmente encarados, pela minha parte, com alguma preocupação, vieram a
revelar-se uma forma diferente, mas também produtiva e eficaz, de ser orientada no
processo da pesquisa. Com uma frequência que, em diversas épocas, chegou a ser
diária, a tutoria virtual (tanto escrita, como falada), teve, inclusive, a vantagem de
obrigar a uma maior disciplina, organização e estruturação do plano conjunto de
trabalho.

Tempos de formação
Integrados em contextos variados, e com o envolvimento de outros investigadores e
especialistas, os tempos de formação incluíram: acções de formação no
Departamento de Doutorado da Universidade del Cauca, em Popayán59; a presença
em congressos, painéis e mesas redondas (em Portugal, Espanha e Colômbia)60,
para que, a partir da experiência de apresentação e discussão pública do projecto
da pesquisa, fosse possível repensar e/ou dar resposta às questões e situações que
ali fossem colocadas.

59

2005 – 30 Janeiro a 12 Fevereiro


- Seminário de Tesis Doctoral, com los estudiantes de la Tercera Promoción, Área Currículo, Doctorado
en Ciências de la Educación, Popayán, Colômbia, orientado por los profesores Eugenia Trigo Aza,
Maria da Conceição Azevedo e Luís Guillermo Jaramillo.
2006 - 23 Janeiro a 8 Fevereiro
- “Educación y Pedagogia Contemporâneas en el marco de la configuración de las Ciências Sociales y
Humanas. Una visión prospectiva para la formación de posgrado” – Seminário organizado por
Rudecolombia, Doctorado en Ciências de la Educación, Universidad del Cauca, Popayán, Colombia.
- Seminário de Tesis Doctoral, com los estudiantes de la Tercera Promoción, Área Currículo, orientado
por los profesores Magnólia Aristizábal, Eugenia Trigo y Luís Evelio Alvarez, Rudecolombia,
Doctorado en Ciências de la Educación, Popayán, Colômbia.
60

- Comunicação no II Encontro Internacional de Experiencias Significativas en Motricidad y Desarrollo


Humano, entre 9 e 11 Fevereiro 2005, organizado pelo Departamento de Educación Física, Recreación
y Deporte da Facultad de Ciencias Naturales, Exactas y de la Educación, da Universidad del Cauca, em
Popayán, Colômbia.
- Comunicação “O Medo no Desenvolvimento Humano – uma perspectiva curricular” no
Colóquio/Debate “Problemas e Desafios da Educação Contemporânea”, em 24 Junho 2005, no âmbito
do Curso de Mestrado “História e Problemas Actuais da Educação da Universidade de Trás-os-Montes
e Alto Douro – Pólo de Chaves.
- Comunicação “O Medo no Desenvolvimento Humano – do medo da subjectividade à subjectividade
do medo” no IV Congreso Internacional de Motricidad Humana – Motricidad y Desarrollo Humano,
organizado pela Associación Internacional de Motricidad Humana, entre 30 de Junho e 3 de Julho
2005, em Porto do Son (A Coruña).

105
Tempos de tutoria colectiva
Conduzidos pelos Orientadores, e no prolongamento dos programas de formação,
foram oportunidades de conhecer e reflectir com outros colegas de doutoramento
sobre os diversos projectos envolvidos.

Tempos de assessorias diversas


Tempos em que, por força da rede solidária criada nas actividades atrás referidas,
doutorandos de diferentes proveniências, por sugestão dos Orientadores e/ou por
nossa própria iniciativa, trocámos inquietações e respostas, textos e experiências –
e, com isso, e pela minha parte, não só a possibilidade de realizar novos avanços e
configurações da pesquisa, mas também de me abrir a novas possibilidades de
acção e de relação.

2.4 Processamento de Dados


As coisas têm vida própria. É tudo uma questão de lhes acordar a alma.
Gabriel Garcia Marquez

Tal como já tive oportunidade de explicar61, o trabalho de criação do quadro de


categorias de análise foi feito com o grupo de informantes-chave, em CONSENSO (não
por votação), sobre as 319 páginas de texto de transcrição das sessões do grupo de
pesquisa e, posteriormente, revisto e aceite por três especialistas externos ao grupo de
pesquisa – a Prof. Doutora Eugenia Trigo, o Prof. Doutor Manuel Sérgio e a Prof.
Doutora Clara Costa Oliveira. Mais adiante, neste mesmo capítulo, coloco um mapa
mental62, síntese do resultado encontrado, e, no Anexo 4, a descrição detalhada de
cada uma das categorias e sub-categorias nele contidas.

Porque as perguntas da investigação estão redigidas no sentido de querer compreender


o “como”, o “o quê”, o “por quê” e o “para quê” de uma vida “serena, útil e corajosa”, as
primeiras categorias de análise a emergir foram aquelas que correspondiam
directamente a essas interrogações.

61
Ver ponto 2.2 deste capítulo, “Descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas”.
62
Ver ponto 2.4.1 deste capítulo, “Mapa mental das categorias de análise”.

106
Depois, e a partir delas (e da categoria “quem” que caracteriza a população em estudo),
foi um processo de criação feito de permanente agrupamento/desagrupamento,
construção/desconstrução/reorganização, que levou à emergência de um novo conjunto
de sub-categorias que, em muitos casos, o grupo nem imaginava que lá estivessem
contidas.

Foram utilizadas duas vias de criação:

- A VIA DEDUTIVA – a da criação a partir do referencial interno e da revisão


bibliográfica, tal como vinham sendo conjugadas nas linhas de orientação geral.

- A VIA INDUTIVA – a da criação a partir das (novas) “sugestões” que emanavam das
narrativas do grupo de pesquisa e de que a participação activa no trabalho do grupo
permitiu fazer uma leitura.

São resultado da primeira, da via dedutiva, tanto algumas das sub-categorias


directamente relacionadas com a identificação e caracterização do grupo de pesquisa
(1. Quem), como algumas das sub-categorias relacionadas com a procura de respostas
às perguntas de investigação (2. O Quê: 3. Porquê; 4. Como; 5. Para Quê). São elas:

1. As sub-categorias que contêm:


- os conceitos de autoconceito e de identidade (Quem – 1.1.1.1 e 1.1.1.2);
- o conceito corporeidade (ex: O Quê – 2.2.1.1.1 a 2.2.3.1.2);
- o conceito de motricidade humana (Como – 3.2.2.2.1 e 3.2.2.2.2) e a
compreensão do intercâmbio energético da interacção do ser humano consigo
mesmo, com os outros e com o cosmos (ex: O Quê – 2.2.1, 2.2.2 e 2.2.3);
- o conceito de desenvolvimento humano (Como – 3.2.2);
- o conceito de acção (Como – 3.2.2.2), e os quatro momentos em que esta
desenvolve – tomada de consciência (3.2.2.2.1.1), assumir (3.2.2.2.1.2), tomada
de decisão (3.2.2.2.1.3) ; execução (3.2.2.2.1.4);
- os conceitos de habitus, controlo e reprodução social (Como – 3.2.1 e Para Quê
– 5.1).

107
2. As sub-categorias constituídas pelas dimensões do Situational Outlook
Questionnaire - SOQ (Quem – 1.2.1) e do VIEW (Quem – 1.2.2) para que se
pudesse fazer a ligação entre duas fontes de dados – a espontânea, dos relatos dos
participantes, e a formal, dos resultados da aplicação destes questionários ao grupo
de pesquisa e, com isso conseguir melhor compreender:
a) a percepção que os participantes tinham sobre o clima para a criatividade e
inovação gerado no grupo (SOQ), respectivas implicações no tipo de resultados
obtidos na pesquisa e onde, por isso, se colocam novos caminhos-desafios de
investigação;
b) os estilos de resolução de problemas presentes no grupo (VIEW) e, também
aqui, as respectivas implicações no tipo de resultados obtidos na pesquisa e
onde, também por isso, se colocam novos caminhos-desafios de investigação.

São resultado da segunda via de criação de categorias de análise, isto é, da via


indutiva, todas as outras não referidas nos parágrafos anteriores.

Importa ainda dizer que, em diversas situações, foram feitas subcategorizações em


função do significado atribuído ao contexto do discurso de que fazem parte, e não pelo
que, eventualmente, pudessem parecer indicar fora desse mesmo contexto. Por
exemplo, o “medo da normalidade” foi subcategorizado como “medo de não
corresponder às próprias expectativas”, e o “medo do exercício físico” foi classificado
como “medo da intimidade-comunicação consigo próprio”, pois assim se considerou ser
o sentido do discurso de origem.

Chegámos, desta maneira, a um quadro de análise muito simples, despretensioso,


possivelmente quase óbvio e, com isso (ou, talvez por isso), a uma certa coerência
interna que, quando conseguida desta maneira, não se quis mais abandonar. É que, à
medida que avançávamos em direcção à saturação de dados (o que aconteceu a pouco
mais de dois terços da análise das sessões), fomos ganhando consciência de que
estávamos num processo de criação que evoluía (e, com isso, ganhava sentido), do
complicado para o simples e que esse simples era, simultaneamente, complexo pois, na
rede das ligações estabelecidas (o que nos levou, em diversos casos, a atribuir títulos
muito próximos a várias das sub-categorias criadas), parecia ter sido encontrado o sinal
do princípio hologramático de que fala Morín (2003).

108
2.4.1 Mapa mental das categorias de análise

Ver Mapa Mental na folha seguinte.

109
110
111
112
2.5 Aspectos Éticos

“Ao assumir uma postura ética, um indivíduo tenta compreender o seu papel como
trabalhador e o seu papel como cidadão de uma região, de uma nação, do planeta. No
meu caso, eu pergunto: quais são as minhas obrigações como investigador científico,
como escritor, como líder? Se estivesse sentado do outro lado da mesa, se ocupasse
um nicho diferente na sociedade, que direito teria a esperar daqueles outros que
pesquisam, escrevem, gerem, lideram? E, para ter uma perspectiva ainda mais
alargada, em que tipo de mundo eu gostaria de viver (....)? Qual é a minha
responsabilidade em fazer com que esse mundo aconteça? Qualquer [pessoa] deveria
ser capaz de se colocar (ou de responder) este conjunto de perguntas relacionadas com
63
o seu nicho ocupacional e cívico” (Gardner, 2006:8) .

É sob a inspiração das perguntas colocadas por um grande investigador, Howard


Gardner, que, para terminar este capítulo, procurarei fazer uma síntese dos aspectos
éticos envolvidos no processo da pesquisa, de uma forma especial ao longo do trabalho
com o grupo e no meu papel de observadora participante. Começo, por isso, por colocar
algumas ideias retiradas do meu diário de tese e do meu diário de campo:

Antes do início do trabalho com o grupo

- Vou começando (...) a preparar o primeiro encontro. Queria que a primeira reunião fosse um tempo de
apresentação e de “tirar dúvidas”, mas também um exemplo do esforço prazenteiro que deverá definir
a nossa forma de trabalho em equipa.
- Tento ter tudo muito em ordem – sinal de que não me sinto completamente segura? (...) Até que ponto
devo dar informação? Dar muita, incomoda com dados e condiciona o trabalho; dar demasiado pouca,
pode fazer dispersar por caminhos que não são os que interessam...

63
“As I use the term, “ethics” also relates to other persons, but in a more abstract way. In taking ethical
stances, an individual tries to understand his or her role as a worker and his or her role as a citizen of a
region, a nation, and the planet. In my own case, I ask: What are my obligations as a scientific researcher,
a writer, a manager, a leader? If I were sitting on the other side of the table, if I occupied a different nich
in society, what would I have the right to expect from those “others” who research,, write, manage, lead?
And, to take an even wider perspective, what kind of a world would I like to live in, if (…) I were cloaked in
a “veil of ignorance” with respect to my ultimate position in the world? What is my responsibility in
bringing such a world into being? Every reader should be able to pose, in not answer, the same set of
questions with respect to his or her occupational and civic niche” (Gardner, 2006:8).

113
- Preparo diversos ficheiros em powerpoint para levar para a reunião e começo a sentir que estão
concisos e claros. Alguns servirão de apoio à discussão durante o encontro; outros são para que cada
um leve para sua casa e, a seu tempo, vá tomando contacto com eles.
- Faço cópias do desdobrável do IV Congresso Internacional de Motricidade e Desenvolvimento
Humano que, em Julho, se vai realizar em Porto de Som, na Galiza. É uma oportunidade
interessantíssima para nos apresentarmos como equipa de pesquisa e darmos a conhecer o nosso
trabalho perante um grupo de investigadores internacionais (...).

Como Trabalhar: esforço prazenteiro


Tema e Propósitos claros Instrumentos da Pesquisa
• O tema: • Registos das sessões (audio e/ou
– O Medo no Desenvolvimento Humano video).
• Propósitos / “o para quê”: • Histórias de vida.
– Procura pessoal • Diário(s) em que cada pessoa recolhe
– Criação de uma estratégia didáctica o que acontece consigo própria.
– ...
Eixo de cada sessão Vantagens
• Uma sessão semanal de 2 horas. • Desenvolvimento pessoal de cada um.
• Trabalhos orientados por diferentes • Tese de doutoramento de Helena Gil
pessoas do grupo. da Costa com a indicação da
• Utilização de múltiplas estratégias – participação de todos.
diferentes técnicas de criatividade. • Comunicação de todos no IV
• Explorar/ estudar o medo tendo em Congresso Internacional de Motricidade
vista a criação de um documento. Humana.
• Síntese de cada sessão. • Publicação em co-autoria de
documento(s) de natureza escrita ou
outros.

Ilustração I.25 – Exemplo de um dos slides utilizados no primeiro encontro do grupo de pesquisa colaborativa.

Ao longo das sessões do grupo

- Tendo em conta o meu próprio processo, preciso lembrar-me da importância de não contaminar –
pedir ao grupo o seu conceito de medo e de desenvolvimento humano antes de colocar definições de
autores …
- Foi abordada a questão da confidencialidade do nosso trabalho (...). Julgo que isso tanto passa por
alguma insegurança relativamente ao resto das pessoas, que ainda são desconhecidas, como também
pelas nossas próprias inseguranças relativamente ao tema. Mas todos assumimos esse compromisso.
- Todo o trabalho se desenvolveu com seriedade. Sinto que, no final de uma segunda sessão, não
poderíamos estar mais longe do que estamos. É como se, pelo interesse e compromisso das pessoas,
tivéssemos passado por cima do tempo habitual de entrosamento e de constrangimento inicial.

114
- (...) A descoberta de que vivemos um permanente deixarmo-nos conduzir e envolver pelo tema que
nos congregou (que faz com que tudo demore mais tempo do que o previsto), um ir muito mais a fundo
do que aquilo que alguma vez supusemos ser possível num grupo que, enquanto tal, nunca antes se
tinha encontrado.
- Muitas vezes nos colocamos esta pergunta: “será que, com este ritmo, conseguimos chegar onde
queremos?”. (...) Aos poucos vamos percebendo que é tudo parte da dinâmica de um grupo – há que
deixar que flua. Uma coisa é a tese, a outra, as necessidades das pessoas com um tema que também
é delas.
- Estou a aprender a levar os dois ritmos em paralelo – a tese é o pretexto para o que está a acontecer.
Em pesquisa colaborativa não é preciso chegar a lugar nenhum previamente estipulado. Trabalha-se
com a profundidade que o grupo precisa, demore o que demorar. Só tenho de fazer o grupo andar
para a frente se ele estiver parado.
- Quanto à minha forma de estar e sentir ao longo das primeiras sessões – oscilo entre a necessidade-
vontade de estar completamente engajada e presente no trabalho que estamos a fazer, e a
consciência de que me cabe um papel especial: uma visão mais ampla, uma atenção de observador
constante e a responsabilidade com a logística, a atenção ao gravador, o fazer fotografias, etc.
- As minhas sempre inquietações interiores – Até que ponto sou parte do grupo? Até que ponto,
participando “demasiado” (isto é, fazendo muitas perguntas ou comentários), posso estar a arrastar o
grupo para o trabalho que eu já fiz (por exemplo, induzindo-os para as categorias que eu, há tempos,
construí)? Porque, na verdade, à medida que vamos avançando, falando e vivendo, eu não consigo
deixar de, mentalmente, ir fazendo a triangulação com os outros momentos da pesquisa. Opto, por
isso e em princípio, por uma posição mais discreta – deixar que as coisas fluam para, posteriormente,
melhor poder triangular. Mas, procuro, também, ter sempre presente os princípios de uma investigação
colaborativa – as coisas vão-se construindo entre todos, mas eu também sou parte e é justo e
importante que coloque as minhas aportações. O grupo só agora começou, mas a tese já está a ser
feita há muito tempo e o meu ponto de vista é mais um ponto no grupo. Preciso de me deixar levar
pelas minhas intuições e pela minha experiência.

Julgo, então, estar em condições de dizer que foram cumpridos os princípios éticos de
uma investigação qualitativa:

115
1. Foram apresentadas e cumpridas as condições estipuladas para o funcionamento
do grupo.
2. Cada pessoa do grupo aderiu voluntariamente e soube de antemão em que projecto
se estava a envolver.
3. Cada pessoa tinha consciência do meu papel de observadora participante. Procurei
sempre manter a minha posição como membro do grupo, não como líder, nem como
orientadora, nem como quem já estudou ou “sabe tudo”.
4. Foi pedida autorização para fazer a gravação áudio das sessões e fazer uso das
suas transcrições.
5. Foi pedida autorização para fazer e utilizar as fotografias do grupo.
6. Sem embargo de, com o seu consentimento e interesse, ser feita a apresentação
dos nomes dos participantes no grupo como colaboradores no projecto da pesquisa,
está garantido o anonimato do que foi dito em cada sessão.
7. Os resultados do trabalho foram apresentados ao grupo e as suas sugestões foram
utilizadas para fazer a afinação da análise.

116
1.1.1.1 feita pelo próprio
1.1.1 caracterização geral de
cada uma das pessoas do grupo 1.1.1.2 feita pelos outros

1.1.2 razões para participar


1.1 as pessoas do grupo
de pesquisa colaborativa 1.1.3 expectativas em
relação ao trabalho

3.1 como os outros 1.1.4 efeitos (no


reagem aos nossos medos próprio) por participar

3.2.1 processo centrado na conservação 1.2.1.1 desafio e envolvimento


3.2.2.1.1 liderança 1.2.1.2 confiança e abertura

3.2.2.1.2 amor 1.2.1.3 liberdade


3.2.2.1 clima necessário 1. QUEM
3.2.2.1.3 confiança 1.2.1.4 tempo para as ideias
3.2.2.1.4 autonomia e responsabilidade 1.2.1 clima do grupo - dimensões (SOQ) 1.2.1.5 conflito

3.2.2.2.1.1.1.1 a) saber quem sou 1.2.1.6 debates

3.2.2.2.1.1.1.2 b) ser diferente


1.2 o grupo de pesquisa colaborativa 1.2.1.7 alegria e humor

3.2.2.2.1.1.1.3 c) perceber que posso 1.2.1.8 apoio a ideias


3.2.2.2.1.1.1 1. Ser
3.2.2.2.1.1.1.4 d) do 1.2.1.9 riscos assumidos
pensar / falar ao sentir
1.2.2.1 orientação para a mudança
3.2.2.2.1.1.1.5 e) a minha
1.2.2 estilos de criação 1.2.2.2 formas de processar informação
consciência de ser educador
- dimensões (VIEW)
3.2.2.2.1.1.2.1 a) ver 1.2.2.3 formas de decidir
de outra perspectiva
3.2.2.2.1.1.2 2. Poder Ser
2.1.1 definições e
3.2.2.2.1.1.2.2 b) sentido da missão caracterizações do medo
2.1 definição de medo
3.2.2.2.1.1.3.1 a) 3.2.2.2.1.1 tomada de
2.1.2 representações simbólicas do medo
ganhar consciência do consciência / o que aprender
medo 2.2.1.1.1 corpo emocional-mental

3.2.2.2.1.1.3.2 b) aprender a confiança 2.2.1.1 medo da decisão 2.2.1.1.2 corpo emocional-mental-espiritual


ou transcendente
3.2.2.2.1.1.3.3 d) aprender a errar

3.2.2.2.1.1.3.4 c) aprender 2.2.1.2.1 corpo físico


2.2.1.2 medo da
a resolver problemas 3.2.2.2.1.1.3 3.Processo de Aprendizagem 3.2.2.2.1 movimento centrífugo intimidade-comunicação 2.2.1.2.2 corpo
consigo mesmo físico-emocional-cultural
3.2.2.2.1.1.3.5 e) aprender que
é um processo demorado e difícil
2.2.1.3.1 corpo mental
3.2.2.2.1.1.3.6 f) viver aqui e agora
2.2.1.3 medo da loucura 2.2.1.3.2 corpo emocional-mental
3.2.2.2.1.1.3.7 g) não
preocupar com as consequências 2.2.1.3.3 corpo físico-emocional

2.2.1.4 medo de não 2.2.1.4.1 corpo cultural


3.2.2.2.1.2.1 assumir a responsabilidade 3.2.2.2.1.2 assumir corresponder aos próprios
3.2.2 processo centrado 3.2 como se lida com o medo 3. COMO valores 2.2.1.4.2 corpo cultural-mental
3.2.2.2.1.3.1 a) auto-responsabilidade no desenvolvimento humano
2.2.1.5.1 corpo
3.2.2.2.1.3.2 b) espiritual ou transcendente
2.2.1 relacionados com o Eu
reconhecimento do valor 3.2.2.2 acção 2.2.1.5 medo de não corresponder
em causa às próprias expectativas 2.2.1.5.2 corpo emocional
3.2.2.2.1.3.3 c) sentido 3.2.2.2.1.3 tomada de decisão 2.2.1.5.3 corpo mental
da necessidade de mudança / condições da mudança
2.2.1.6.1 corpo
3.2.2.2.1.3.4 d) confiança espiritual ou transcendente
3.2.2.2.1.3.5 e) método 2.2.1.6.2 corpo mágico ou místico
2.2.1.6 medo do existencial
3.2.2.2.1.3.6 f) pensar em positivo 2.2.1.6.3 corpo espiritual
ou transcendente-cultural
3.2.2.2.2.1.1.1.1 relaxamento
2.2.1.7 medo do medo 2.2.1.7.1 corpo mental
3.2.2.2.2.1.1.1.2 bioenergia

3.2.2.2.2.1.1.1.3 meditação 3.2.2.2.2.1.1.1 com o Eu 2.2.1.8.1 corpo físico


2.2 relação e explicação dos medos
3.2.2.2.2.1.1.1.4 utilização 2.2.1.8.2 corpo inconsciente
2.2.1.8 medo do sofrimento físico
da arte e da fantasia
3.2.2.2.2.1.1 1. O Tempo do Meu Mundo 2.2.1.8.3 corpo físico-espiritual
ou transcendente
3.2.2.2.2.1.1.2.1 a pele da alma 3.2.2.2.2.1.1.2 com os Outros

3.2.2.2.2.1.1.3.1 2.2.2.1.1 corpo cultural


harmonia com o universo 2.2.2.1 medo da avaliação dos outros
3.2.2.2.2.1.1.3 com o Cosmos 2.2.2.1.2 corpo cultural-emocional
3.2.2.2.2.1.1.3.2 silêncio 3.2.2.2.2.1 execução e estratégias 3.2.2.2.2 movimento centrípeto 2.2.2.2.1 corpo físico

3.2.2.2.2.1.2.1 esforço 2.2.2.2 medo da dependência 2.2.2.2.2 corpo emocional

3.2.2.2.2.1.2.2 ir em 2.2.2.2.3 corpo físico-emocional


frente em função da missão
2.2.2.3 medo da 2.2.2.3.1 corpo emocional
3.2.2.2.2.1.2.3 intimidade-comunicação com
procurar apoios e 3.2.2.2.2.1.2 2. O Tempo no Mundo os outros
confiar 2.4.1 Mapa Mental das 2.2.2 relacionados com os Outros 2.2.2.4.1 corpo emocional
2.2.2.4 medo de ficar só
3.2.2.2.2.1.2.4 assumir Categorias de Análise
riscos e responsabilidades
2.2.2.5 medo de mitos 2.2.2.5.1 corpo cultural
3.2.2.2.2.1.2.5 atenção e prudência
2.2.2.6 medo de ser diferente 2.2.2.6.1 corpo cultural

2.2.2.7 medo do compromisso 2.2.2.7.1 corpo cultural


3.3 perguntas do grupo
que ficam em aberto 2.2.2.8.1 corpo emocional
2.2.2.8 medo do conflito
4.1.1.1.1.1 corpo emocional 2.2.2.8.2 corpo emocional-mental
4.1.1.1.1 ausência de unificação do Eu
4.1.1.1.1.2 corpo mental 2.2.2.9 medo do desconhecido 2.2.2.9.1 corpo emocional

4.1.1.1.2.1 corpo emocional 2.2.3.1.1 corpo físico


4.1.1.1.2 desejo 2.2.3 relacionados com o Cosmos 2.2.3.1 medo do cosmos
4.1.1.1.2.2 corpo mental 4.1.1.1 percepção do Eu 2.2.3.1.2 corpo transcendente
2. O QUÊ
4.1.1.1.3.1 corpo mental
4.1.1.1.3 imaginação 2.3.1.1.1 corpo mental
4.1.1.1.3.2 corpo emocional
2.3.1.1 alteração da vida quotidiana 2.3.1.1.2 corpo físico
4.1.1.1.4.1 corpo mental 4.1.1.1.4 noção do dever 2.3.1.1.3 corpo físico-emocional

4.1.1.2.1.1 corpo cultural 2.3.1.2.1 corpo emocional


4.1.1.2.1.2 corpo mental 4.1.1.2.1 dependência
de pessoas ou coisas 2.3.1.2.2 corpo transcendente
4.1.1.2.1.3 corpo emocional 2.3.1.2.3 corpo mental

4.1.1.2.2.1 corpo emocional 4.1.1.2.2 experiências de 2.3.1.2.4 corpo inconsciente


não integração / abandono 2.3.1.2 desistência do eu
2.3.1.2.5 corpo emocional-mental
4.1.1 razões do medo
4.1.1.2.3.1 corpo emocional
4.1 causas do medo 2.3.1.2.6 corpo físico-emocional
4.1.1.2.3.2 corpo físico 4.1.1.2.3 experiências
de violência / desrespeito 4.1.1.2 percepção dos Outros 2.3.1.2.7 corpo
4.1.1.2.3.3 corpo físico-emocional mental-emocional-transcendente

4.1.1.2.4.1 corpo cultural 2.3.1.3 estimulação da acção 2.3.1.3.1 corpo mental

4.1.1.2.4.2 corpo mental 4.1.1.2.4 experiências


2.3.1 na relação com o EU 2.3.1.4 não consciência 2.3.1.4.1 corpo mental
ou previsão de fracasso
4.1.1.2.4.3 corpo emocional
2.3.1.5.1 corpo emocional
4. PORQUÊ
4.1.1.2.5.1 corpo emocional 4.1.1.2.5 experiências do mundo afectivo 2.3.1.5.2 corpo mental
2.3.1.5 paralisação
4.1.1.2.6.1 corpo cultural 4.1.1.2.6 práticas culturais 2.3.1.5.3 corpo físico-emocional

2.3.1.5.4 corpo emocional-mental


4.1.1.3.1.1 corpo cultural
4.1.1.3.1 mitos
4.1.1.3.1.2 corpo transcendente-cultural 2.3.1.6.1 corpo mental
4.1.1.3 percepção do Cosmos 2.3.1.6 sentimento de culpa / avaliação
2.3.1.6.2 corpo emocional-mental
4.1.1.3.2.1 corpo
espiritual ou transcendente 4.1.1.3.2 morte / finitude
2.3.1.7.1 corpo emocional
2.3 efeitos do medo 2.3.1.7.2 corpo físico
4.1.2 pessoas que influenciaram
2.3.1.7 sofrimento
2.3.1.7.3 corpo físico-emocional
4.2.1.1.1 corpo emocional
2.3.1.7.4 corpo emocional-mental
4.2.1.1.2 corpo emocional-mental 4.2.1.1 percepção do Eu
4.2.1.1.3 corpo transcendente 2.3.1.8 somatização 2.3.1.8.1 corpo físico

4.2.1.2.1 corpo mental 4.2.1.2 percepção dos Outros 4.2.1 razões para não ter medo 2.3.2.1.1 corpo cultural
2.3.2.1 anulação da diferença
4.2 causas do não ter medo 2.3.2.1.2 corpo emocional
4.2.1.3.1 corpo emocional

4.2.1.3.2 corpo físico 4.2.1.3 percepção do Cosmos 2.3.2.2 criação de dependências 2.3.2.2.1 corpo emocional

4.2.1.3.3 corpo transcendente 2.3.2.3.1 corpo mental

4.2.2 pessoas que influenciaram 2.3.2.3.2 corpo emocional

2.3.2.3 dificuldade de comunicação 2.3.2.3.3 corpo emocional-mental


4.3 perguntas do grupo
que ficam em aberto 2.3.2 na relação os Outros 2.3.2.3.4 corpo físico-emocional

2.3.2.3.5 corpo emocional-cultural


5.1 para a conservação social
5.2.1 na relação com o Eu 2.3.2.4.1 corpo emocional

5.2.2 na relação com o Outro 2.3.2.4.2 corpo mental


5.2 para o desenvolvimento humano 2.3.2.4 fuga das situações
5. PARA QUÊ 2.3.2.4.3 corpo físico
5.2.3 na relação com o Cosmos
2.3.2.4.4 corpo físico-emocional
5.3 perguntas do grupo
que ficam em aberto 2.3.2.5 resistência ao compromisso 2.3.2.5.1 corpo cultural

2.3.3.1.1 corpo cultural


2.3.3 na relação com o Cosmos 2.3.3.1 criação de um mundo irreal
2.3.3.1.2 corpo mágico

2.4 perguntas do grupo


que ficam em aberto
II. CENTRAR
118
Capítulo 2
Descobrir os próprios caminhos

I. PROCESSO DA PESQUISA
Introdução
Capítulo 1 – Roteiro

II. CENTRAR
Capítulo 2 – Descobrir os próprios caminhos
1. Eu Pessoa – Já alguma vez?
2. Eu Educadora – Memórias
Capítulo 3 – Descobrir caminhos de outros

III. AGIR
Capítulo 4 – Criar o caminho

IV. CELEBRAR
O sentido do caminho
Para abrir um novo caminho

119
“Entre em si mesmo e examine as profundidades de que brota a sua vida.
Neste manancial encontrará as respostas às suas perguntas. Tome-as como
são, sem interpretações” – Rainer Maria Rilke.

Este capítulo, o meu referencial interno na pesquisa, é uma das respostas dadas neste
trabalho a três desafios diferentes mas, aqui, também complementares: o desafio de
revelar os interesses, motivações e descobertas que estão a montante do processo de
investigação; o desafio de conciliar a dualidade dos papéis de observador e
observado/objecto de observação; o desafio de não limitar a análise indutiva na escolha
dos temas e, por isso, entrar no mundo dos sujeitos (de ir ao campo), sem nenhuma, ou
quase nenhuma, revisão da literatura (Bogdan & Biklen, 2006, Martínez Salgado, 2006;
Jaramillo, 2006b). Foi, por isso, composto com os saberes e sabores (conhecimentos
extra-teóricos e empíricos), que resultaram dessa primeira fase do trabalho de campo64.
Dele também nasceram os temas que começaram por orientar a leitura dos autores e
que depois (e numa perspectiva de ecologia de saberes), vieram a constituir as linhas
de orientação da pesquisa – em função do seu desenho metodológico; em função da
abordagem e observação da segunda fase do trabalho de campo.

É dos capítulos mais pequenos desta tese, mas, porque é resultado de um processo de
busca interior, também é o que demorou mais tempo a redigir. Integra dois textos
diferentes. “Eu Educadora – memórias”, de construção mais fácil, foi, como o nome
indica, um trabalho feito a partir de uma selecção de recordações da minha vida de
educadora. O outro, “Eu Pessoa – já alguma vez?”, de muito mais difícil construção, foi
o primeiro de todos os textos públicos que escrevi. Parte das minhas histórias de vida e
está escrito sob a forma de uma metáfora. Para explicar o que e como foi esse
processo de criação, refaço algumas “folhas soltas” do meu diário da pesquisa:

Sobre as histórias de vida:


Preciso de muito tempo de “treino” (e coragem também) para ser capaz de deixar fluir o
pensamento e escrever tudo aquilo que surge. Num percurso cheio de avanços e retrocessos,
confronto-me com duas situações. Quando a auto-censura se instala, os resultados são repetitivos

64
A razão por que nos dois textos deste capítulo, quando há alusão a alguns autores, não estão colocadas
quaisquer referências bibliográficas. Quis manter na apresentação dos textos o mesmo princípio que
norteou a sua redacção.

120
e “medrosos” – dão notícias do sabido, do já alcançado, não se aventuram em terrenos
desconhecidos ou difíceis. A (minha) mente, por si só, é capaz de encontrar 1.000 explicações
para evitar ir muito mais a fundo. É tão fácil enganar-nos(me) a nós(mim) mesmos(a)! Mas,
quando me permito, timidamente, ouvir a mim mesma, os resultados começam a ser espelho da
minha alma.
(...) Há dias em que as páginas escritas se sucedem umas às outras. Há dias em que é
muito duro confrontar-me com as minhas sombras – e o estômago aperta. E, nesses dias, surge a
dúvida: “Não estarei a exagerar? Não são todas as pessoas assim? Até parece que não sou uma
pessoa normal”. Mas depois, e mais uma vez, confronto-me com a necessidade de fazer o que
tantas vezes digo aos meus alunos: “Se queremos dar luz a um quadro, temos de lhe colocar a
sombra. Temos de encarar as nossas Sombras para descobrir a nossa Luz”. Só me resta uma
saída – continuar.
(...) Começo a ficar envolvida e comprometida com o que escrevo. Dou-me ao direito de
chorar e rir.

Sobre a metáfora
Continuando a esquecer todas as leituras de autores, preciso escrever um texto sobre o
tema do medo a partir das minhas histórias de vida. Devo recorrer a metáforas, à poesia, a
desenhos. É-me sempre tão difícil começar uma nova etapa! E o pior é que preciso passar dos
textos íntimos de descoberta e sofrimento para um texto de metáforas – e que vai ser tornado
público!
(...) Dou-me muito tempo para incubação. Já que não me organizo por dentro, ponho em
ordem o que está fora: arrumo prateleiras, reordeno a minha biblioteca, classifico dossiers... Os
dias vão-se sucedendo e não acontece nada. Não consigo encontrar a ideia ou o fio condutor do
trabalho. Os dias vão passando.
Quando já não sei mais como fazer, sento-me e releio, mais uma vez, as minhas histórias
de vida e, simplesmente, sublinho o que considero serem as palavras e as ideias fundamentais.
Organizo essas ideias e palavras em categorias, ordeno-as numa sequência que corresponda à
minha experiência de vida e dou um título a cada uma delas. Procuro símbolos para cada uma das
categorias: alguns, encontro-os nos meus textos; outros, vou buscá-los ao espaço da casa em que
habito – a imagens, objectos, brinquedos... Começo a escrever o texto.
Mas nem todos os dias são dias de produção – preciso de tempo, de silêncio, de não ser
interrompida... Algumas partes saem “a ferros” (há dias em que passo toda a tarde à volta de duas

121
páginas; às vezes até são mesmo dois parágrafos) – remoo e não avanço. Outras são escritas de
um só fôlego.
Saiu aos arranques – como quem vomita. A imagem pode não ser muito bonita ou
elegante, mas é a que vem. Não me lembro de um texto que me tivesse sido tão difícil organizar.
Mas é o que consegui fazer até agora. A primeira leitura final é inquietante. Sinto que há ainda
muito para fazer – está cheio de repetições e de ideias desorganizadas. Também acho que tem
algumas coisas interessantes. Deixo, por isso, passar alguns dias antes de o voltar a ler. Dou-o
também a ler a quem me pode ajudar.
Com a distância criada, a segunda leitura traz satisfação. Sinto que o trabalho, de facto,
jorrou de dentro. É por isso que ele custou tanto. É o resultado de um processo muito longo. Ainda
que não esteja completo, para já, está pronto.

Espero que façam sentido para quem as lê, como fizeram para mim depois de as ter
escrito.

122
1. Eu Pessoa: Já alguma vez?

Ilustração II.1 – Os próprios caminhos.

The Te of Piglet

Animal so shy and small,


Dreaming you were Bold and Tall - You can be a guiding star,
You hesitate, all sensitive, If you make the most of Who You are.
Waiting for a chance to Live. And the sensitivity
That you’re now ashamed to see
Time is swift, it races by; Can be developed even more,
Opportunities are born and die... So you can find the hidden doors
Still you wait and will not try - To places no one’s been before.
A bird with wings who dares not rise and fly. And the pride you’ll feel inside
Is not the kind that makes you fall -
But that You you want to see It’s the kind that recognizes
Is not you, and will never be. The bigness found in being Small.
No one else will ever do
The special things that wait inside of you. Benjamin Hof

Nos frascos pequeninos – a importância das coisas banais

Já alguma vez ouviu dizer que é nos frascos pequeninos que se guardam os
melhores perfumes e os piores venenos? Tal como com perfumes e venenos,
também as coisas mais importantes da vida se revestem muitas vezes de uma
aparência quase insignificante mas, no entanto, poderosa – para o melhor, e para o
pior.

Contudo, e no que diz respeito aos venenos, nem sempre é fácil distinguir até que
ponto um veneno é um veneno. Todos sabemos que, quando usado na medida
certa, também pode ser capaz de curar. Por isso, o que o torna perigoso não é tanto
o conjunto dos ingredientes da sua composição, mas a nossa ignorância em lidar
com eles. A fronteira entre o seu poder curativo e o seu poder destruidor só será
ultrapassada se não soubermos como doseá-los.

123
Tenho 1.50 m de altura. Quando era criança só em casa me diziam “que grande tu
estás!”. Em todos os outros locais da minha vida de menina sempre fui dos mais
pequenos – dos que se sentavam nas primeiras filas da sala de aula para poderem
ver para o quadro; dos que precisavam de ajuda para chegar aos locais mais altos;
dos que sentiam a bola passar por cima quando se jogava ao volley ou ao “mata”;
dos que se sentiam meio engolidos no meio de uma multidão... Mas sempre me
disseram: “Não te preocupes, a altura não é o importante. Pode ser-se grande de
outras maneiras”.

À medida que fui “crescendo”, fui deixando de acreditar nos contos de fadas – tornei-
me mais realista, mais adulta, “maior”. Mas demorei algum tempo a perceber que “as
outras maneiras” também queriam dizer que a sabedoria e o encanto desses contos
não se encontravam na chegada mais ou menos gloriosa da fada que, de um
momento para o outro, tudo muda, tudo resolve e a todos deixa “felizes para
sempre”, mas antes na sua capacidade de antever o potencial de coche que existe
em cada abóbora.

Assim, e num tempo em que o peso dos media é enorme; num tempo em que tanta
gente nova quer a fama pela fama e, por causa disso, é capaz de se expor para lá
dos limites da sua intimidade e integridade; num tempo em que a importância dos
países, das instituições e das pessoas e das coisas, se pauta pelo PIB, pelos
orçamentos, pelos sinais exteriores de riqueza, pelo seu valor de troca, julgo que é
tempo de trabalhar o escondido, o desconhecido, o esquecido, o que não tem preço.

É por tudo isto que hoje quero reflectir sobre a importância das coisas pequenas e
das coisas simples: são elas que mais vezes fazem parte da nossa vida; é delas que
mais precisamos cuidar; é nelas que mais precisamos encontrar sentido – para que
a vida se não torne, agora sim, demasiado pequena, demasiado simples, demasiado
banal.

Mas, muito embora as coisas pequeninas não me obriguem a olhar para cima, não
me abafem, não me façam sentir (ainda) mais pequena; muito embora eu seja capaz
de as olhar nos olhos (sem erros de paralaxe!) e, com elas, ser capaz de descobrir
potenciais e, aí sim, transformar, nem sempre é fácil. Diria mesmo, é para as coisas
pequeninas de que mais coragem se torna necessária – porque são as que mais se

124
escondem; porque são as que estão dentro de nós; porque exigem uma capacidade
de abertura ao desconhecido que, muitas vezes, nos é difícil e tememos encontrar.

Há duas expressões de Cristo que me atraem. Uma é “não temais”; a outra é “a paz
seja convosco”. E, curiosamente ou não, as duas são insistentemente repetidas
após a ressurreição. Isto é, após um tempo de vida que leva à morte, e após uma
morte que leva, de novo, à vida.

É nisto, então, que gosto de pensar. A vida é feita de ciclos e cada ciclo contém em
si mesmo a sua morte e a sua ressurreição. E, para que tal aconteça, é preciso não
temer e, com isso, ganhar a paz.

Julgo que muitos de nós, exactamente porque tememos, evitamos os processos de


morte mas, com isso, perdemos também o tempo da ressurreição e da luz e, por
inerência, a paz. Como vivemos, então?

O meu medo, o meu limbo?

Já alguma vez viu uma criança a aprender a andar? Quando ela começa a ser capaz
de largar a mão da mãe, a ser capaz de deixar de se agarrar às coisas e, por isso,
conseguir dar alguns passos sozinha? É tão bonito e entusiasmante. A sua cara de
alegria e, ao mesmo tempo, de aflição; os seus passos que surgem como que
delicadamente arrancados; o seu andar simultaneamente audacioso e
“tremelicante”. Não deixa ninguém indiferente.

Mas também termina sempre da mesma maneira, não é? Por muito que consiga
avançar, há um momento em que encontra um obstáculo, uma cadeira por exemplo,
não consegue desviar-se e cai... e chora.

Já alguma vez reparou no que os adultos muitas vezes lhe dizem? “Bate na cadeira,
a cadeira é má!”. Como se a culpa fosse da cadeira. Como se a responsabilidade
não fosse sua. Tão só porque não se soube desviar. Como se houvesse
necessidade de alguma coisa ter culpa por a criança (ainda) não saber andar. É tão
mais fácil! O mal não está em não saber andar, em ainda se estar a aprender. O
problema é buscar culpados fora de nós mesmos, querer evitar reconhecer que a
única responsabilidade (que não é culpa!) está dentro de nós.

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Também quem tem de se sujeitar a exames médicos melindrosos e com resultados
duvidosos sabe bem que, pior que uma má notícia, é o tempo de espera por essa
notícia. A expressão “pelo menos digam-me alguma coisa” já terá sido dita por
alguns de nós e, se assim foi, somos certamente ainda capazes de sentir no nosso
corpo a ansiedade e angústia então vividas. No entanto, e nas outras situações de
vida mais banais, muitas vezes optamos por atitudes bem diferentes. Procuramos
fugir e não ver aquilo que até está entrando pelos olhos dentro. Como se assim
pudéssemos escapar ao sofrimento.

É o fazer da nossa vida um estado de limbo – não é céu, não é inferno – é uma
espécie mista de quem está à porta, mas, por medo, não entra no paraíso, mas
também dele se não afasta.

Quantos de nós já pensámos, sentimos, ou dissemos “tenho medo!”? Em que


medida é o medo que dita os nossos actos? Em que medida é o medo que traça o
caminho da nossa existência? E não estou a falar em patologias ou fobias. E
também não estou a falar daquele medo que nos faz sentir um frio na barriga, que
nos faz suar as mãos, que nos faz tremer as pernas ou nos prende a voz quando
nos encontramos perante o perigo.

Estou a falar do medo que está presente nas coisas banais. Estou a falar daquele
medo, bem mais escondido (ou inconfessável), e, por isso, também mais esquecido
e disfarçável – aquele que faz com que nos demos ao fracasso, aquele que nos
coloca barreiras, limites e impossíveis, aquele que nos faz optar pelo que, na
verdade, não queríamos. Aquele medo que existe em cada um de nós e que só é
perigoso quando, exactamente, escolhemos não o olhar nos olhos, não o enfrentar
disfarçando-o e, com isso, o deixamos comandar o nosso próprio destino.

Vamos lá a ver. Procuremos fazer um exercício de memória. Quais eram os meus


sonhos em criança? O que queria ser quando fosse grande? Quantas vezes já disse
“um dia vou...” e esse dia nunca chegou? Quantas vezes prometi a mim mesma
“nunca mais...” e isso é que nunca aconteceu? Quantas vezes me imaginei a fazer
isto, e mais isto, e ainda mais aquilo e tal nunca passou da minha imaginação?

O que terá acontecido? Mudei de opinião? Para melhor? Ou tive azar e “não me
deixaram”, “a vida não me deu oportunidade”?

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Terá sido que alguém não me deixou, ou terei sido eu que não me permiti? Terá sido
azar, ou terei eu mesmo escolhido ser assim?

Assumir nas mãos as rédeas da própria vida significa assumir a responsabilidade


total pelas minhas decisões, pelo que me acontece, pelos meus actos, pelo meu
futuro e, especialmente, pelo meu presente.

Não será que tantas vezes se tem medo daquilo que mais se quer? Não será que
tantas vezes se escolhe exactamente aquilo de que menos se gosta?

Como deixamos que isto aconteça na nossa vida?

Tipos de Medo – ser rato que foge

Já alguma vez viu um rato, daqueles que nos roem as roupas nas casas antigas?

O que aconteceu quando o encontrou? Quem fugiu primeiro? A pessoa, ou o rato?


Ou os dois?

Mas já pensou também na diferença que existe entre um rato “de verdade” e um rato
dos desenhos animados? Do primeiro, ninguém quer ouvir falar – a não ser para
cobaia de laboratório. Do segundo, não há quem diga que não é “bonitinho”,
“riquinho”, “engraçadinho” – tantas vezes o verdadeiro herói que nem pelo gato se
deixa enganar.

Acho que raras vezes na vida terei visto um rato (“de verdade”) passeando-se
calmamente no jardim ou na rua. Parece que anda sempre correndo afogueado.
Afinal, fugindo! De que maneira me sinto também rato?

Sempre que vivo sobrecarregada de coisas – às vezes parece que a vida nos engole
com trabalhos, projectos e responsabilidades... Outras vezes carrego literal e
fisicamente tudo nas costas – as nossas pastas e carteiras estão sempre demasiado
cheias. E tudo coisas imprescindíveis!

Sempre que vivo sobrecarregada com o peso do sentido do dever – a agenda cheia
de compromissos, as eternas e imensas listas de coisas para fazer, a caixa de

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correio electrónico atafulhada de emails para responder... Tanta coisa que TENHO
que fazer! Tão poucas aquelas que QUERO fazer, que tenho PRAZER em fazer!

Sempre que só me permito viver quando tudo o resto termina, quando os outros e as
coisas me dão licença para viver. E depois queixo-me: “o barulho é tanto... não dá
para fazer!”, “estou tão cansada!”, “não me apetece!”...

Sempre que vivo demasiado presa aos dez mandamentos e desligada do sentido do
amor. Aquele que é, afinal, o grande mandamento do tempo novo. E amor, primeiro,
a mim própria.

Outras vezes até parece que a vida vai correndo de feição. Tudo tranquilo, o
sucesso está lá, nada parece perturbar demasiado a existência e fazer pensar muito
sobre o assunto. No entanto, um descontentamento contente (o oposto do amor de
Camões e do sentido da existência criativa) fala baixinho do mais profundo do Ser.

E a pergunta permanece: não será que, como professora, como educadora, estou a
ensinar aquilo que, afinal, preciso de aprender? Não será que sei todas as receitas,
que conheço todas as mezinhas mas, no fundo, não as sei usar ou, pelo menos, não
as consigo aplicar em mim? Onde fica a congruência de se ser professor quando, no
mais íntimo de nós mesmos, sabemos estar a ensinar, ou a exigir, o que nós não
fazemos ou não tentamos fazer?

Em suma, ser rato significa fugir ao esforço de mudança, evitar o confronto com o
passo doloroso de buscar novos caminhos; significa evitar o assunto procurando
desculpas.

Mas, atenção, aquilo que se procura, encontra-se – e às vezes mais do que se


procurava!

Os efeitos, consequências – ser galinha num círculo de giz

Já alguma vez hipnotizou uma galinha?

É fácil. Primeiro faça um círculo de giz no chão. Depois pegue numa galinha,
coloque-a dentro do círculo de giz, agarre-a pelo pescoço e obrigue-a a olhar para o

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círculo durante alguns minutos – não é preciso muito. Largue o pescoço da galinha.
Observe: ela não foge, permanece olhando o círculo de giz. Dê agora um safanão à
galinha – ela acorda e segue a sua vida.

Não sei se é muito adequado colocar aqui uma história de galinhas. Mas parece-me
que há nela algumas palavras e ideias sobre as quais vale a pena reflectir. E vou só
enunciar três:

1. Uma galinha – é considerada, habitualmente, um dos animais mais


estúpidos. Em inglês, chamar a alguém “chicken” é o mesmo que chamar-lhe
medroso, medricas. E ninguém gosta de ser assim chamado.
2. O círculo de giz – fechado, aparentemente intransponível, mas também, e
afinal de contas, tão demasiado simples e fácil.
3. O safanão – aparentemente violento mas, simultaneamente, libertador.

Estar no círculo de giz significa viver na incapacidade de enfrentar obstáculos que,


só aparentemente, são intransponíveis. É viver na repetição de nós mesmos –
envolvidos em rotinas, talvez numa aparente busca da perfeição, numa aparente
competência e naturalidade que, no fim, escondem e acarretam paragens e
retrocessos, perda de eficácia, perda de satisfação, perda de espontaneidade, perda
de coragem, perda de legitimidade.

Estar hipnotizado no círculo de giz é ter o medo espelhado no corpo, é ter um corpo
em permanente crispação: um corpo rígido de quem tem medo de se libertar; um
corpo fechado de quem tem medo de enfrentar o desconhecido e se agarra ao que
domina; um corpo que não pisa o chão com firmeza, que parece estar sempre uns
palmos acima da terra; um corpo encolhido, em permanente posição de defesa; um
corpo passivo, carente de energia e luz; um corpo duramente silencioso de quem
tem medo de verbalizar, medo da própria voz, medo, afinal, de existir.

Estar no círculo de giz é ser boneco abanado pelo vento de quem parece ter
controlo sobre tudo, excepto sobre a própria vida. É engolir a própria vida. É o
isolamento e a solidão de quem não se atreve a passar o risco, de quem não se
aproxima das coisas, das situações e da vida e fica, apenas, olhando. É a
afectividade escondida e esquecida, não comprometedora, não sofredora, mas
também não vivificadora.

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Estar no círculo de giz é ser feito de celofane – transparente, invisível, não
reconhecido, não lembrado. É esquecer os sonhos perdidos, os sonhos que se
situam para lá do círculo. É ignorar que o risco de giz em que nos colocámos pode
ser um mundo, mas não é O mundo.

Porque o SER não se cala – ser pato que nada

Já alguma vez reparou num pato a nadar?

Tão tranquilo, tão deslizante, tão harmonioso. Parece ser todo ele a imagem e o
símbolo da paz.

Mas já pensou que o que permite esse movimento e essa tranquilidade não é mais
do que a permanente agitação das suas patas no interior das águas? Será que paz
e inquietude não são, cada uma delas, condição para a existência da outra?

Porque é difícil calar o Ser, a inquietação sempre permanece:”Onde estás tu no


meio de tudo isto? Onde fica a tua fidelidade a ti próprio?”

Às vezes ser pato que nada revela-se no sentir da presença de uma bola dentro do
peito. Como se estivesse pronta a rebentar, mas que não rebenta... ainda. Regressa
para dentro do meu peito.

Outras vezes revela-se numa atracção, em dois sentidos, pela loucura. É o sentirmo-
nos atraídos pelas coisas ou pessoas com vidas diferentes, ou sentir que se atrai
tais coisas ou pessoas. Como se, no íntimo, se soubesse que é exactamente aí que
mais se é.

Outras vezes também é uma ânsia imensa de sair e viajar – de dar o salto para o
desconhecido, para aquilo que é inequivocamente diferente do que se é (ou do que
se vive); talvez porque se pressente ser exactamente aí que se é igual.

Outras vezes, ainda, é o sentido angustiante do tempo perdido. É o sentir que a vida
nos está dando presentes e que nos limitamos a tocá-los, talvez a abaná-los, mas
nunca a abri-los – por falta de coragem em tirar-lhes a fita, rasgar-lhes o papel e
enfrentá-los.

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Outras vezes, finalmente, e quando todos os outros falharam, é a vida que nos dá o
safanão – como à galinha – e nos obriga, contra tudo, contra todos, contra nós
mesmos, a mudar.

O que fazer? Ser Vasco da Gama

Já alguma vez ouviu falar de Vasco da Gama?

Claro, como não? Somos Portugueses!

Mas é que às vezes desconhecemos tanto da nossa História que talvez valha a
pena lembrar que “Vasco da Gama” não é só nome de ponte, mas nome de quem
descobriu caminhos. Caminhos que levavam onde outros já tinham chegado;
caminhos que se julgava levarem a lugares sem retorno; caminhos que poucos
quereriam, ou sonhariam, sequer, ser possível descobrir.

Mas porque ele descobriu esse caminho, o seu caminho, Portugal ficou mais rico, a
Humanidade ficou mais rica, o mundo ganhou a capacidade de se sentir mais perto.
E, se não fosse por isso, pela descoberta do seu caminho (o nosso, Português),
talvez nunca ninguém tivesse algum dia ouvido falar dele.

Como estaremos nós na descoberta dos nossos próprios caminhos, da nossa


história pessoal? Terei já, pelo menos, descoberto onde estou, vislumbrado para
onde quero ir, e, com isso, começado por me fazer ao caminho?

Ser Vasco da Gama é o não se ficar pelo que já se sabe. Ser Vasco da Gama é
estar-se disponível para partir – ainda que não se saiba qual é o caminho; ainda que
seja o caminho que, exactamente, é preciso descobrir.

É, por isso, estar aberto e ter coragem de fazer um trabalho sobre mim mesma, um
trabalho de criação pessoal – com tudo o que isso implica de descoberta da luz e de
aceitação das sombras. É aceitar abrir espaços interiores de privacidade e
intimidade. É aceitação (com carinho) das debilidades pessoais. É a capacidade de
compreender que as fraquezas e as fragilidades se podem tornar forças se houver,
pelo menos, a disponibilidade e a coragem de enfrentar.

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Ser Vasco da Gama é também ter a coragem e a ousadia de deitar fora – o que já
não presta, o que já serviu mas não serve mais: ideias, preconceitos, atitudes,
comportamentos. É estar preparado para mudar – deixar para trás, deixar ir, não
reter, avançar e ficar livre.

É o dar-se tempo para pousar e repousar, pois é o dar-se o tempo que permite
aceder ao espaço interior de riquezas por descobrir. Mas é também o saber que
nenhum tesouro pode ser descoberto sem que se suje as mãos para o desenterrar.

É perceber que o esconder faz gastar mais energia do que o deixar que as coisas
venham à luz.

É não ficar à espera; é aprender a dizer não. É ser pirata na própria vida, ganhar
coragem de ir contra convenções e contra leis, inclusive contra aquelas que mais
satisfazem o nosso ego.

É perceber que nem sempre tudo vai correr de feição. É saber que há que estar
preparado para todos os “Adamastores” – os que vivem dentro de nós, mas também
os que vivem fora. Mas é saber também que sempre haverá muitos “Velhos do
Restelo” – que vivem dentro, e também fora de nós.

É perceber que a procura e descoberta desse caminho novo é um tempo de


sofrimento, de luta. É o perceber que, quando se toca uma ferida, ela dói. É passar
muito tempo em terra deserta, ou muito tempo em que só mar se avista – em que
parece que o caminho nunca tem fim, em que se regressa, vezes sem conta,
perdidos, ao mesmo local.

Mas é também correr o risco de não se ser Vasco da Gama, mas Cristóvão
Colombo. Isto é, de percebermos que os nossos companheiros e a viagem não são
aqueles que pensámos que seriam, mas que, com eles, podemos acabar por
descobrir coisas diferentes do que procurávamos, podemos acabar por descobrir o
que (talvez) nem sonhássemos existir.

Mas também é a convicção, sempre presente, ainda que também escondida ou por
vezes esquecida, de que vale a pena e que nada nos pode impedir porque, muito
simplesmente, “eu sou capaz!”.

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Resultado – ser David Copperfield

Já alguma vez leu “David Copperfield”?

O livro, sim. Começa assim: “Nasci. Se me tornarei herói da minha existência, ou se


esse lugar será ocupado por outro, estas páginas o revelarão”.

Então, ser David Copperfield é ser o actor principal do livro da nossa vida. Tão
simples como isso. Julgo que temos todos gasto demasiado tempo à procura e na
construção dos papéis sociais que nos dizem que temos de desempenhar. Raras
vezes temos a coragem de perceber que nada no meu exterior se altera se a
mudança não começa no meu interior.

É a descoberta do sentido do Ser, é regressar a casa – uma casa renovada pelo


caminho realizado -, é a descoberta do sentido do Ser, é a maior consciência do
sentido da minha existência.

Gandhi dizia que “cada um dos nossos actos é ditado por uma de duas coisas – ou
pelo Amor, ou pelo Medo”. Não é o ódio que é o oposto do amor, mas o medo. Ódio
não é mais que ausência de amor. O medo é o seu oposto.

Então, trabalhando no sentido de erradicar o medo das nossas vidas, em dimensões


e áreas cada vez mais abrangentes, chegaremos ao Amor. E o fruto do amor é a
Paz.

“Não temais”; “A Paz seja convosco” – são, afinal, uma só e a mesma saudação. A
única forma de VIVER!

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2. Eu Educadora: Memórias
Pois bem, ainda que pareça mentira, existiu, em tempos, um ser
humano que não tinha medo pela simples razão de nunca o ter
experimentado. O rapaz, chamado João, costumava perguntar ao pai:
- Diz-me lá, papá… que é que se sente quando se tem medo? Sente-
se um formigueiro…? É como quando se dorme e não se vê nada? E
que forma tem o medo? É volúvel, como o fumo? Ou é pesado, como
uma pedra?...
- Mais cedo ou mais tarde saberás como é – respondia-lhe o pai – e,
então, veremos se és tão valente como agora…
À medida que passavam os anos, a curiosidade de João foi crescendo
e, quando teve idade para viajar pelo mundo, não quis esperar mais.
Pôs uma trouxa às costas e abandonou a povoação, disposto a
conhecer o medo, onde quer que ele estivesse.
Da história do “João sem Medo”

“Querem ouvir uma história?” É assim que começam alguns dos momentos mais
mágicos que um educador vive com as crianças. E ouvimos as cores e vemos os
sons e tocamos nos cheiros...

Ilustração II.2 – Querem ouvir uma história?

Queria contar aqui algumas histórias. É assim que agora eu queria começar. Não
serão assim tão mágicas. Ou serão? Têm a magia da vida e das memórias do
vivido. São histórias de vida de que, de algum modo, também fui protagonista em
diferentes contextos e tempos da minha vida profissional. Nalgumas como
impulsionadora dos acontecimentos; noutras como mera observadora. Nalgumas em
que o tema do medo está bem explícito; noutras em que ele aparece um pouco mais
“disfarçado”. Mas em todas encontro os seus sinais. E é isso que me tem vindo a dar
a certeza de que, como educadores, precisamos encarar o medo como um
“companheiro de percurso” que precisa da nossa atenção.

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A Paz

Há mais de vinte anos atrás, numa escola da cidade do Porto, foi proposto a um
grupo de crianças de 5 anos que fizessem desenhos sobre a Paz. Entre todos os
desenhos que a educadora desse grupo me mostrou na altura, lembro
especialmente três. As legendas ditadas pelas crianças eram estas:

- A paz são balões que sobem para o céu.


- A paz é quando a minha mãe à noite me vai dar um beijo à cama e me tapa
com os cobertores.
- A paz é quando o meu pai me diz “vai-te embora, deixa-me em paz”.

O mundo é assim! Ela tem de se defender!

Trabalhei muitos anos com famílias de crianças em idade de pré-escolar e do


primeiro ciclo do ensino básico. E não é segredo para ninguém que esse trabalho é
também um dos mais difíceis que um educador tem pela frente. Como alguém diria,
“os pais são as crianças mais difíceis”... Escola e famílias, confrontando-se muitas
vezes em situações de forte carga emocional, podem acabar por desencadear
relações mais ou menos conflituosas. Os professores/educadores, porque se
sentem frequentemente postos em causa nas suas competências; os pais porque,
também eles inseguros do papel a desempenhar, procuram encontrar no exterior as
razões que justifiquem os seus próprios comportamentos tantas vezes
descomprometidos.

A criança tinha oito anos. Era uma menina alta, esguia, uma cara “mistura de anjo e
de boneca sofisticada”, filha de médicos. Tudo contribuía para que fosse inteligente,
bem relacionada, com imenso poder de persuasão e de comando.

Muitas das outras meninas esvoaçavam constantemente à sua volta. Muitos dos
meninos se perdiam de amores e paixão. Todos eles capazes de “dar um braço”
para serem aceites, ou se manterem, no seu círculo privilegiado de amigos pois
poucos eram os que aí conseguiam ter “lugar cativo”. De acordo com a sua
capacidade de cumprirem as “tarefas” que lhes fossem designadas, tanto podiam
ser parte, como, no dia seguinte, excluídos e, com isso, desprezados e humilhados.

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Poucos, muito poucos, escapavam à sua influência e viviam, sem sofrimento,
distantes do seu “território”.

Foram muitas as tentativas para mudar a situação. Primeiro, com as crianças – mas
não houve grandes resultados. Depois, com os pais da menina a quem, numa
conversa convocada pela professora, foi exposto, com a maior delicadeza de que se
foi capaz, tudo o que estava a acontecer.

Surpreendentemente (ou não?), a mãe disse: “É assim mesmo. Vivemos num


mundo-cão, a minha filha tem de se defender. E ela é uma vencedora!”

Ida ao telhado

Há vários anos atrás (no tempo em que os cursos de educadores eram de


educadoras), conversávamos numa aula sobre o quanto as crianças se aventuravam
mais no desconhecido que nós, adultos. E uma aluna disse: “isso pode ser verdade
para as pessoas mais velhas, mas nós somos jovens e, na nossa idade, ainda se
conserva esse espírito”.

A aula decorria no primeiro e último piso de um edifício antigo. Fiz-lhes, por isso,
uma proposta: “se assim é, desafio uma das alunas desta turma a sair pela varanda
desta sala e ir ao telhado da escola”.

“Está a brincar”, disseram muitas. “Não, é uma proposta para levar a sério”,
respondi. “Desafio uma das alunas desta turma a sair por aquela varanda e ir ao
telhado da escola”.

A confusão instalou-se. Todas falavam ao mesmo tempo:

- Que disparate! E para que é que isso nos serve?


- O que é que as pessoas que estiverem lá fora vão dizer?
- Se estivesse de sapatilhas...
- Se hoje tivesse vindo de calças em vez de saia...
- Se...

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Fui escrevendo no quadro estes comentários à medida que eles foram sendo feitos.
E, como eu continuava a insistir na proposta, uma das alunas disse: “Eu vou!”

Dirigimo-nos para a varanda da sala. Ao chegarmos lá fora “descobrimos” que a


varanda até estava ao mesmo nível do telhado-cobertura das saídas das salas do
rés-do-chão. Era muito fácil chegar ao telhado. Por isso, bem agarrada ao corrimão
da varanda, a aluna alçou uma perna de cada vez e, sem grande esforço nem
perigo, estava no telhado. Logo depois, e sem grande esforço também, voltou para
dentro da sala.

- Oh, assim é fácil!


- Isso também eu fazia!
- Não era desse telhado que estávamos a falar!
- ...

Relemos as frases que tinham sido escritas antes no quadro e tivemos um bom
momento de reflexão. De facto, era fácil; de facto, qualquer um poderia ter feito; de
facto, ninguém tinha especificado de que telhado se estava a falar; de facto...

Mas a verdade é que, num grupo de 50 pessoas, só uma se atreveu a tentar. Mais
do que isso, num grupo de 50 pessoas, só uma saiu do seu lugar para ir ver como
se poderia ir ao telhado. Todas as outras se tinham posto a “conjugar os verbos no
imperfeito do conjuntivo”, sem se darem ao trabalho de verificar quão difícil,
impossível ou perigoso era o desafio que lhes tinha sido colocado.

Relação com a vida

Durante muito tempo, também no curso de educadores de infância, só leccionei


disciplinas que se situavam no primeiro e no terceiro (e último) ano do plano
curricular. Conhecia os alunos no início da sua formação, tínhamos contactos
acidentais ao longo do ano seguinte, e voltávamo-nos a encontrar em contexto de
sala de aula quando chegavam ao terceiro.

Como tinham mudado! Se, no primeiro ano, era clara a sua imaturidade,
ingenuidade e indisciplina, também era bem patente a vontade de trabalhar para dar
vida aos seus sonhos. E muito embora fossem poucos, até então, os seus contactos

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com as crianças, havia sempre um encantamento e uma capacidade crítica (às
vezes até demasiado apurada), frente a qualquer situação que considerassem
menos adequada – pelo menos relativamente aos seus próprios padrões de
exigência. Talvez por isso sempre me fascinou trabalhar com os alunos nesta fase
da sua formação – é um tempo de descoberta em que nada parece impedir que se
venha a acertar.

Mas encontrá-los de novo, já no terceiro ano, era sempre ocasião de imensas


surpresas. Por um lado, porque era bem evidente o caminho percorrido, uma maior
fundamentação, uma maior maturidade intelectual. Mas, por outro, já os sentia muito
distantes da sua vontade de acertar, espartilhados que estavam por “regras
institucionais” (quer elas fossem reais, quer também criadas por uma “galopante
imaginação colectiva”) – muito mais dependentes daquilo que os outros (leia-se, as
notas) ditassem como sendo o único modo (garantido) de fazer as coisas; com muito
menos capacidade de arriscar; já com os primeiros sinais do desengano que se
esconde por trás do discurso de que “uma coisa é a teoria, outra a prática” – o que é
o mesmo que dizer, “uma coisa são os sonhos, outra a realidade e, entre os dois,
escolhemos a segurança da segunda”.

Confiança

Acontece tantas vezes! Demora muito tempo para que os alunos deixem a posição
de recostados nas cadeiras, pernas esticadas e braços cruzados sobre o peito
(ganhando distância e “defendendo-se” do professor) e sejam capazes de se inclinar
para a frente, com os olhos a brilhar, apaixonados por um projecto que, afinal, nos é
comum!

Especialmente se nos aproximamos deles com propostas que saem um pouco fora
dos padrões estabelecidos, a primeira reacção é desconfiar, criar muros, esperar
para ver. Mas o pior é que, às vezes, alguns demoram mesmo demasiado tempo. E,
por isso, quando, finalmente, “baixam a guarda”, quando se deixam entusiasmar e
se comprometem, já muito se perdeu num tempo que é irrecuperável e nunca pode
voltar para trás. Como se não entendessem(os) que entre a confiança cega (própria
dos néscios ou de relações muito fortes e antigas) e a desconfiança total (própria de
quem sempre suspeita e tem medo) há muitas outras matizes por que se poderia
optar na relação entre as pessoas.

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Vista-se da pessoa que quer ser

Foi dos exercícios difíceis que propus a um grupo de alunos. Até porque, pouco
mais que adolescentes, a preocupação com a imagem era muito grande.

Tratava-se de procurar compreender o que queremos para a nossa vida, de ter


consciência de quem somos e de, sonhando, criar os próprios caminhos. Sugeri, por
isso, que, na aula seguinte, cada um se vestisse da pessoa que queria ser. Isto é, se
entendesse que na sua vida poderia haver falta de alegria e de espontaneidade,
poderia vir vestido de palhaço. Se entendesse que na sua vida havia necessidade
de maior simplicidade, poderia vir de pijama. Se entendesse que na sua vida havia
necessidade de maior rigor, poderia vir vestido de cientista... E se vir vestido de
alguma coisa pudesse ser demasiado difícil que, pelo menos, trouxesse um símbolo
de um projecto de vida.

Na aula seguinte havia de tudo. Gente que tinha vindo vestida daquilo que queria
ser. Gente que tinha trazido objectos. Gente que, pura e simplesmente, tinha vindo
“assistir à aula”.

Começamos a aula a dançar, para nos sentirmos à vontade, para soltar, para que,
entre todos, nos pudéssemos ver bem, para ganharmos energia. Depois sugeri que
nos juntássemos em grupos de dois ou três e que cada um, num espaço de maior
privacidade, contasse as suas razões e os seus projectos. E depois juntámo-nos
todos e continuámos a conversar. E a conversa foi animada.

No fim fiz só uma pergunta: “se os nossos objectivos são assim tão claros (e isso já
é MUITO bom), o que nos impede, então, de alcançá-los?” E um aluno respondeu:
“o medo que tenho”. E perguntei: “É isso que nos impede de sermos quem somos?
Temos medo de quê?”

O que se seguiu foi de uma “tranquilidade electrizante” que qualquer professor sabe
que não acontece todos os dias. Num momento estávamos fazendo um
brainstorming espontâneo, em que se partilhava, já não o que eram os objectivos de
vida, mas aquilo que é bem mais difícil de partilhar: o que nos impede, ou nos limita,
no revelar da nossa inteira humanidade.

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São estas algumas das minhas histórias de educadora. Serão, talvez, “histórias
tristes”, mas, porque são histórias de inquietação, não deixarão, talvez, de ser
mágicas. Não é daí que nasce a Paz?

E, para finalizar o infindável, talvez valha a pena uma reflexão muito breve, feita de
pensamentos dispersos, sobre outros efeitos do medo na educação (na transmissão
e na vivência de saberes), e que, por isso, corre o risco de se tornar uma caricatura
de si mesma:

- Não estaremos ainda demasiado próximos daquilo que Freinet, há já tantos anos,
assinalava como sendo uma escola preocupada em formar alunos, mas
esquecida de educar pessoas?

- Gastamos tantas horas falando em cognição, conteúdos, conhecimentos,


tecnologias da informação, rentabilização de recursos, avaliação de
competências cognitivas e operacionais, mas pouco (ou nada) em criar espaços
de reflexão sobre si mesmo, de auto-conhecimento, de interioridade e
transformação pessoal!

- Não será que muitas vezes estamos simplesmente substituindo a velha fotocópia
de estudo pelo novo “site” da disciplina, ou pela “banda larga” nas escolas, e,
com isso, a querer(em) convencer-nos de que nos modernizamos e
correspondemos ao apelo dos novos tempos?

- Qual a distância entre as reflexões sugeridas pelos resultados de tantas


pesquisas e por pensadores preocupados com as ideias éticas de solidariedade,
de responsabilidade e com a dimensão humana do desenvolvimento, e aquilo
que, efectivamente, somos capazes de realizar nas nossas práticas docentes?

- Quantas vezes não somos como os professores a que Churchill se referia, mais
interessados em encontrar o que ele não sabia do que aquilo que ele sabia?

- Fala-se tanto em preparar os alunos para o mercado de trabalho (para a


Europa!), em desenvolvimento técnico-económico, em desenvolvimento
sustentável, e tão pouco (ou nada!) em preparar pessoas conscientes do seu
papel na construção de um mundo melhor e mais humano!

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Não será fácil ver, também aqui, os efeitos do medo? Do medo de errar, do medo de
ser chamado incompetente, do medo de experimentar, do medo de ser chamado
sonhador, utópico ou ultrapassado, do medo de fazer diferente, do medo de ir contra
a corrente, do medo de ir contra os poderes estabelecidos?

Não será que, enquanto docente, tenho medo de falar de mim mesmo, do que se
sinto, do que me emociona, do que vivo (não do que faço, do que li ou do que sei)
evitando a real comunicação interpessoal a que um novo paradigma (também)
docente inevitavelmente tem de conduzir?

Não será que, enquanto docente, formador, professor, educador, responsável


ministerial… tenho medo de me questionar sobre os porquês e os para quê da
minha actuação, tenho medo de conferir se, de facto, os resultados da minha acção
correspondem às minhas intenções?

E se assim é, talvez valha a pena que nos comecemos também a perguntar se não
estaremos a transformar o equilíbrio dinâmico dos pilares da educação, tal como em
1996 foram formulados pela Unesco (ser, saber, fazer, viver juntos), num
“desequilíbrio resistente” de certas políticas e práticas educativas que, à custa da
determinação em atingir, a qualquer preço, um também qualquer desenvolvimento
técnico e económico e um pseudo rigor científico, promovem sim o desalento, o
individualismo e a competição, destroem o ser humano e comprometem o nosso
destino planetário.

141
Capítulo 3
Descobrir caminhos de outros

I. PROCESSO DA PESQUISA
Introdução
Capítulo 1 – Roteiro

II. CENTRAR
Capítulo 2 – Descobrir os próprios caminhos
Capítulo 3 – Descobrir caminhos de outros
1. O Medo
1.1 Omnipresença do medo
1.2 Vivendo com medo
1.3 Síntese do medo
2. O Desenvolvimento Humano
2.1 A inquietação do Ser
2.2 Contornos do desenvolvimento humano
2.3 Síntese do desenvolvimento humano
3. Campo de Criação
3.1 Educação de Adultos
3.2 Criatividade
3.3 Motricidade Humana
3.4 Inter-relação de conceitos
4. Educação Criativo-Motrícia
3.1 Enfrentando o medo
3.2 ConVIVENDO com o medo

III. AGIR
Capítulo 4 – Criar o caminho

IV. CELEBRAR
O sentido do caminho
Para abrir um novo caminho

143
Quem se contenta com o que sabe, não sabe com o que se contenta – J. Gil da Costa

O propósito deste capítulo é dar espaço para o desenvolvimento de um trabalho feito


“em parceria” com um grupo muito particular de actores da pesquisa – os autores de
referência de todas as disciplinas que, de uma forma que procurei integrada, me
ajudaram a um melhor entendimento do tema da investigação.

Depois de ter passado pelo processo de reflexão e escrita pessoal, que constituiu a
primeira etapa do trabalho de campo e deu origem ao Capítulo 2 que inclui o texto “Eu
pessoa: já alguma vez?”65, entrei numa fase de revisão da literatura que, não sendo
fechada em si mesma, acompanhou, cresceu e se diversificou ao longo de todo o
restante processo da investigação. Foi, por isso, uma fase de encontro com um grande
número de autores a quem, na minha qualidade de simples aprendiz, me atrevo a
chamar aliados, pois aclararam, fundamentaram e alargaram as minhas descobertas
pessoais e, por via da ligação assim criada, ajudaram a criar caminhos e a ler o que se
passou nas fases subsequentes da pesquisa (Patton, 2002, Bogdan & Biklen, 2006).
Por isso digo ter sido um trabalho feito em parceria: tendo sido gerado na comunicação
da imensidade de possibilidades que se abrem a partir das folhas dos livros, é fruto de
uma relação de transcendência que ultrapassa os limites estreitos das grelhas do
espaço e do tempo.

Assim, e na certeza do que até já vem da sabedoria popular, a do ponto que se


acrescenta sempre que um novo conto se conta, procuro plasmar aqui o que foi a
primeira parte de um processo de interacção criativa entre as palavras e expressões
originais do pensamento dos autores e a minha introspecção como investigadora
(Patton, 2002:226)66, de modo a que, no capítulo seguinte, possa continuar e completar

65
Tal como está referido no “Capítulo 1 Roteiro – 2.2 Descrição do cronograma”, este trabalho foi
realizado sem qualquer enquadramento teórico para não limitar a abertura ao que aí pudesse aí surgir
(Patton, 2002).
66
Tal como já tive oportunidade de colocar no “Capítulo 1 Roteiro – 2.2.2 Etapa 1”, Patton escreve o
seguinte sobre o processo de revisão da literatura:
“A revisão da literatura mais relevante pode ajudar a enfocar um estudo (...). Contudo, rever a
literatura pode criar dificuldades num estudo qualitativo porque, criando predisposições no
pensamento do investigador, pode reduzir a sua abertura para o que surja dentro do campo. É por
isso que, por vezes, a revisão da literatura pode não surgir senão depois da colecta de dados.

144
esse processo de interacção com a leitura-triangulação dos dados recolhidos na
segunda etapa do trabalho de campo.

Passo, então, a apresentar o que (a partir de campos tão diversos como os da


Educação, Sociologia, Psicologia, Neurobiologia, Motricidade Humana, Criatividade,
Comunicação, Espiritualidade, Literatura Universal, Sabedoria Oriental…), resultou da
inter-penetração do trabalho pessoal com a revisão da literatura, construiu as
combinações e as subdivisões do tema e constituiu o campo da pesquisa:

1. O Medo
 Omnipresença do Medo
 Vivendo com Medo

2. O Desenvolvimento Humano
 A Inquietação do Ser

3. Campo de Criação
 Educação de Adultos
 Criatividade
 Motricidade Humana

4. Educação Criativo-Motrícia
 Enfrentando o Medo
 ConVIVENDO com o Medo.

Alternativamente, a revisão da literatura pode ser simultânea ao trabalho de campo, permitindo uma
interacção criativa entre o processo de colecta de dados, a revisão da literatura e a introspecção do
investigador” (Patton, 2002:226).

145
1. O Medo
“A maior falta do apóstolo é o medo. O que desencadeia o medo é a falta de confiança na força do Mestre; é esta que oprime o
coração e aperta a garganta. O apóstolo pára então de professar. Permanece apóstolo? Os discípulos que abandonaram o Mestre
aumentaram a coragem dos algozes. Quem se cala perante os inimigos de uma causa fortalece-os. O temor do apóstolo é o
primeiro aliado dos inimigos da causa. “Obrigar a calar através do medo” é o primeiro passo da estratégia dos ímpios. O terror que
se utiliza nas ditaduras é baseado no medo dos apóstolos. O silêncio possui a sua eloquência apostólica apenas quando não vira o
rosto a quem nele bate. Assim, calando, fez Cristo. Mas com aquele gesto demonstrou a própria fortaleza. Cristo não se deixou
atemorizar pelos homens. Saindo ao encontro da multidão disse com coragem: «Sou eu.»” - Cardeal Wyszyński.

1.1 Omnipresença do Medo

Ilustração II.3 – Compilação de títulos de jornais que diariamente modelam o nosso pensar e o nosso sentir.

Quando todos os dias nos vemos imersos em notícias dos horrores que, pelo mundo, o
homem inflige ao homem; quando, todos os dias, nos confrontamos com situações de
violência, mesmo que simbólica, nas nossas relações de
homem↔mulher
adulto↔adolescente↔criança
chefe↔subordinado↔colegas
professores↔alunos↔colegas↔famílias
serviços↔utente-cliente-beneficiário-consumidor
Estado↔contribuinte-cidadãos...;
quando, todos os dias, nos vemos aflitos ao antever as consequências de notícias como
aquelas cujos títulos aqui reproduzi (ilustração II.3); quando, todos os dias, em tantas
áreas (na educação, inclusive), encontramos quem sempre esteja interessado ou seja
só capaz de, secamente, descortinar e revelar as nossas falhas, mais do que

146
interessado ou capaz de reconhecer, estimular e divulgar o nosso valor; quando, todos
os dias, vemos quem (qual vampiro de energia), julgue ser essa a única (e estranha)
forma de resolver problemas e de encontrar o alimento de que, em si mesmo, carece,
que herança nos está a ser transmitida e que herança estamos nós a transmitir? Somos
e criamos filhos de quem, ou do quê?

São muitos os autores que nos dizem que vivemos numa cultura baseada no medo
(Jeffers, 1991; Livsey & Palmer, 1999; Albisetti, 2003; Moffit, 2003a; Gil, 2005). E este
medo, não sendo mais visto como uma activação emocional (isto é, pontual), em função
de um sinal de perigo, mas sendo antes um PERMANENTE ESTADO DE ALERTA (Machado,
2004:77), permite, pela sua manipulação, a obtenção de vantagens aos mais diversos
níveis – desde o nível dos círculos restritos da vida privada, até ao nível da legitimação,
controlo e reprodução de uma qualquer estrutura social, política e económica por alguns
desejada (Machado, 2004:165).

“É melhor ser amado que temido ou o inverso? Respondo que seria preferível ser ambas
as coisas, mas, como é muito difícil conciliá-las, parece-me muito mais seguro ser
temido do que amado, se só se puder ser uma delas. (…) Os homens hesitam menos
em prejudicar um homem que se torna amado do que outro que se torna temido, pois o
amor mantém-se por um laço de obrigações que, em virtude de os homens serem maus,
se quebra quando surge ocasião de melhor proveito. Mas o medo mantém-se por um
temor do castigo que nunca nos abandona” (Maquiavel, 1976:89-90).

Sendo visto por muitos como o manual prático do déspota, mas sendo vivido, por
muitos outros, como uma difícil realidade com que é preciso gerir o quotidiano, “O
Príncipe”, de Maquiavel, apesar dos quase cinco séculos de distância com que foi
escrito, parece continuar a ser fonte de inspiração – tanto para detentores do poder
político, como para a manutenção do poder, e dos poderes, em torno das classes e
posições dominantes. Não foi, por isso, por acaso que escolhi aqui colocar este excerto.
De uma forma muito directa, Maquiavel explica por que é melhor ser temido do que
amado e como o medo de ser prejudicado pelos homens (que se considera serem
maus), se disfarça na autoridade de um castigo infligido, ou na possibilidade e ameaça

147
de o vir a infligir. Ou, dito de uma outra maneira, como Maquiavel explica como medo
gera medo.

Contudo, usá-lo aqui não significa que me pretenda circunscrever a uma reflexão de
cariz estritamente político e social, tal como não significa que o procure usar para
colocar só dentro da ordem das coisas públicas os eventuais beneficiários das
vantagens da manipulação do medo. Muito embora acredite que os poderes mundiais,
políticos e económicos (de muitos tipos e quadrantes), têm interesse em manter o ser
humano naquilo a que Boff (1998:118) chamou a “situação de galinha (…) e no apagar
da sua consciência a vocação sacrossanta de águia”66, entendo também que público e
privado se espelham mutuamente e que, em qualquer sistema de interacção humana e
social (por mais escondida que ocorra no espaço dos afazeres domésticos), não há
algozes e vítimas, nem ganhadores e perdedores – do ponto de vista ecológico da
dignificação e da construção do humano que aqui interessa considerar, quando alguém
perde, todos perdemos e, mesmo que isso só se revele a longo prazo, as maiores
vítimas dos algozes são os próprios algozes.

Prefiro, então, continuar a procurar referências que, do ponto de vista individual (e, por
isso, também social), possam ajudar a reflectir sobre a responsabilidade de cada um em
todo este processo; e se, ao longo deste texto, surgem conceitos como os de
“sociedade”, “fenómeno social”, “controlo social*”, “constrangimento social”, etc.,
compreender que tais conceitos não têm só implícita a imputação de responsabilidades
a um qualquer sistema ou grupo mais ou menos anónimos e indefinidos – como “a
instituição e a norma só existem na medida em que os actores as praticam e
reproduzem” (Ferreira de Almeida, 1994:218), como os sistemas e os grupos são
gerados (ou, pelo menos, alimentados) nos contextos sinérgicos do privado, também
implicam a responsabilidade e a capacidade do fazer diferente de “cada eu”.

Deste modo, e porque acredito que uma investigação aplicada (ainda para mais
desenvolvida na área da Educação de Adultos) precisa criar espaços de reflexão sobre
a responsabilidade, decisão, e mudança individuais, procuro reforçar e manter presente

66
Para Boff (1998:113), a “galinha” expressa a situação humana no seu quotidiano, na dimensão de
limitações e sombras que marcam a vida, enquanto que a águia representa a mesma vida humana na sua
criatividade, na sua capacidade de romper barreiras, nos seus sonhos, na sua luz.

148
uma das maiores lições que as Ciências Sociais me têm dado: o entendimento de que
sou e como sou simultaneamente livre e condicionada, mas também o entendimento de
que, quanto maior for a consciência do meu condicionamento, mais livre me posso
tornar e, por isso, mais capaz de ser co-criadora da própria existência.

Assim, e apesar de, pela multiplicidade das interferências, não ser possível apresentar
um quadro que cubra todas as situações, definições e relações do fenómeno do medo e
do desenvolvimento humano, passo à apresentação das contribuições de alguns dos
autores que mais me ajudaram a construir e situar esta questão nessa oscilação entre
mentalidades individuais e imprinting cultural* – mesmo que, às vezes, esta distinção
não queira significar mais do que o espírito com que, no momento, foi estabelecida.

• Todos os nomes do medo

Relembrando, como já tive oportunidade de dizer na introdução desta tese, que estou a
deixar de lado as situações patológicas de medo – tanto as que dão origem ao pânico e
às fobias, como aquelas que, sob qualquer forma ou dimensão, movem quem exerce
violência com o firme propósito de fazer mal (agressores, torturadores, violadores,
assassinos…); relembrando também que só pretendo estudar aquilo a que chamei
“medo da vida”, isto é, “medos muito correntes mas que dificultam a vida de quem os
sofre” (Marina, 2006:111), começo pelo princípio, isto é, começo pela consulta dos
sentidos lexical e analógico da palavra medo.

1. Dicionário da Língua Portuguesa

Medo – sentimento de INQUIETAÇÃO que se sente com a ideia de um PERIGO REAL OU


APARENTE; terror; receio; apreensão; susto (Almeida Costa, 1998:1071).

2. Dicionário Enciclopédico de Língua Portuguesa

Medo – PERTURBAÇÃO ANGUSTIOSA DO ÂNIMO por um risco ou mal que ameaça ou que se
imagina; temor; susto violento. Receio ou apreensão de que aconteça algo contrário ao que
se deseja (1992: 751).

149
3. Nova Enciclopédia Larousse

Medo – sentimento de forte INQUIETAÇÃO, de ANGÚSTIA, na presença de, ou a pensar em um


perigo, uma ameaça. Receio de, pavor perante uma determinada situação, temor,
apreensão, receio de um dano ou mal, acompanhado ou não de perturbação emocional
(1997: 4637).

4. Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa

Medo: TERROR, SUSTO, perturbação resultante da ideia de um perigo real ou aparente.


Acanhamento, apreensão, aquela, arreceio, assombração, assombro, atamento,
atemorizamento, cagaço, cagueira, cafunfa, cativeza, cegonhão, cenofobia, cólicas,
confrangimento, desassossego, encanho, encolha, encolhimento, enleio, estreiteza,
estupor, fajeca, floreio, fugeca, grima, horror, lã, medão, medeiro, meduiço, mordedura,
mordicação, ódio, pânico, patifaria, pavor, pejo, pequeninez, purgativa, pusilanimidade,
receança, sobressalto, socórdia, sucho, surpresa, susto, temor, terror, timidez, vareio,
vergonha, acagaçar, apesarar, assaranzar, desencolher, mijar, morder, mordicar,
morsegar. (Bivar, 1948:1481-1483).

Causar medo: ASSUSTAR, ATEMORIZAR, HORRORIZAR.


Afogar, alarmar, amedrontar, apavorar, assustar, ataburrar, atemorizar, aterrar,
aterrecer, aterrorar, encobardar, encolher, enregelar, espavorar, espavorecer, espavorir,
espavorizar, estarrecer, estremecer, horrificar, horripilar, horrorizar, intimidar, intimidecer,
pavorear, retrair, sobressaltar, soterrar, temorizar, terrificar, terrorizar, tremer, varar,
assustamento, alarmista, apavoramento, assustador, atemorizador, aterramento,
aterrorização, caravela, descaro, estafermo, estarrecimento, estrampalho, fantasma,
horribilidade, horror, jabiraca, juã-de-las-vinhas, sarronca, surraço, temibilidade, temor,
terribilidade, terror, terrorista, trampalho, assustoso, abarbarado, apavorante,
atataranhado, atemorizante, aterrador, aterrorizador, atro, endiabrado, enfiado,
espavorido, estremecido, formidaloso, formidante, formidável, formidaloso, fulminante,
horrendo, horrente, horribilíssimo, hórrido, horrífico, horripilante, horripilo, horrível,
horrorífico, horrorizado, horroroso, infando, infernal, intimidação, intimidador, intimidante,
intimidativo, larval, lôbrego, lúgubre, medonho, metuendo, pavoroso, sanhudo,
temedoiro, temerando, temeroso, temido, tenebroso, terrível, terrificante, terrífico,
terrorizante, tétrico, tetro, torvo, tremendo, tristonho, urco (Bivar, 1948:1481-1483).

Ter medo: TEMER – TER MEDO ou RECEIO DE

150
Acaipirar-se, acanhar, acobardar, apoltronar-se, arrecear-se, assolhar, assombrar-se,
assovacar-se, atemorizar-se, bisonhar, debilitar, entoar, esperdigotar, estarrecer,
estremecer, palpitar, pejar, poltronear, recear, respeitar, respeitar, saltear, tataranhar,
tremelicar, tremer, amedrontado, acaipirado, acanhado, acobardado, alarmado,
apreensivo, arisco, arrolhado, arrolhador, assomado, assombradiço, assovacado,
assustadiço, assustado, atadinho, aterrado, borrado, cagão, canhenho, coado, curto,
débil, desanimado, desconfiado, duvidoso, efeminado, empachoso, encolhido,
enconchado, entanguido, envergonhado, espantadiço, espantado, esperdigotado,
formidoloso, fraco, imbecil, imbele, mafião, manco, matuto, medroso, meticuloso,
partista, pávido, pejado, peludo, pusilâmine, receável, receoso, semetidinho, temeroso,
temido, tímido, timorato, torpe, trémulo, trepidante, vergonhoso, zopeiro, cagarola,
acanhadão, bandarrinha, bandurrinha, bicidódio, bisonharia, bisonhice, cagão, cagarrão,
caguinça, caguinchas, cismador, cobarde, cobardia, cobardice, curteza, ecmofobia,
ecmófobo, envergonhação, envergonhaço, estátua, fracalhão, fujão, galucho, manicaca,
mãos-atadas, medrica, mijota, mirocha, molúria, ningresmingeres, panhão, peança,
poltranaz, poltrão, poltronice, tabaréu, tabarca, tararaca, tataranha, tímido, tremelicação,
tremelica, trengo, xoninhas (Bivar, 1948:1481-1483).

Tirar o medo: animar, desatemorizar, desacanhar, desapavorar, desassombrar, desassustar,


desenvolver, realentar, refrescar, sair, desatemorizador, desatemorizado, desassustado
(Bívar, 1948:1481-1483).

Sem medo: destemido, despavorido, destímido, impávido, impertérrito, intrémulo, intrépido,


seguro, tafetudo, temido, desacanhamento, valoroso, destimidez, ananhanguera,
atambia, desassombramento, intrepidez (Bivar, 1948:1481-1483).

E fico absolutamente fascinada com a quantidade e diversidade da riqueza cultural


implícita no conteúdo deste último documento! Quis, por isso, e apesar da sua
extensão, reproduzi-lo aqui quase na íntegra para que, mesmo que de forma rápida e
intuitiva, o possa conjugar com os outros três. Isto é, seleccionar e organizar algumas
das expressões neles contidas e, pela apresentação das categorias assim construídas,
descobrir toda a gama de sentidos que nelas vejo envolvidas (tabela II.1).

Alcunhas de quem tem medo: Sentidos relacionados com a ausência/perda de paz:


Imbecil; poltrão; medrica; xoninhas; trengo; mãos-atadas; Traiçoeiramente; sobressalto; susto; desassossego;
cagarola; caguinchas; atadinho; assustadiço; fracalhão; surpresa; apreensão; ódio; terror; assustar;
tímido; medroso; peludo; cobarde; envergonhado; assustamento; infernal; desconfiado; inquietação;

151
acaipirado; cagão; acanhado… perturbação, angústia…

Sentidos relacionados com a perda de identidade ou Sentidos relacionados com as vísceras e fluidos
de estatura: corporais:
Encolhimento; pequeninez; curtamente; encolha; Cagaço; cagueira; cólicas; cagaçar; mijar; borrado;
estreiteza; encolher; retrair; curto; encolhido; cagão; cagarrão; caguinça; mijota; purgativa;
enconchado; semetidinho; curteza; vício de vontade… assovacado, cafunfa...

Sentidos relacionados com a perda de segurança: Sentidos relacionados com a fuga da realidade:
Estremecer; tremer; varar; palpitar; apreensivo; trémulo; Enleio; floreio; cismador; fujão; arisco…
trepidante; estremecer; tremelicação; tremelica…

Sentidos relacionados com o impacto interpessoal e Sentidos relacionados com a perda de energia vital:
formas de lidar com as situações:
Meticuloso; respeitar; timidez; vergonha; bisonhice, Enregelar; debilitar; débil; desanimado; estátua; afogar;
atamento… fraco…

Alcunhas de quem não tem medo: Tirar o medo


- Repor vida: animar; refrescar; sair; desenvolver; realentar… - Repor vida: animar; refrescar; sair; desenvolver; realentar…
- Eliminar alguma coisa: desatemorizar; desacanhar; - Eliminar alguma coisa: desatemorizar; desacanhar;
desapavorar; desassombrar; desassustar; desassustado desapavorar; desassombrar; desassustar; desassustado
desatemorizador; desatemorizado … desatemorizador; desatemorizado …

Estar sem medo


Destimidez; ananhanguera; atambia; desacanhamento; desassombramento; intrepidez.
Tabela II.1 – Categorias de sentidos presentes nos significados lexicais e analógicos da palavra medo.

Correndo o risco de ter feito uma análise demasiado simples (talvez mesmo simplória e
de senso comum), mas também aqui sem outra pretensão que não seja a de revelar o
impacto e as interrogações que as palavras (me) provocam, não posso deixar de
comentar o quanto me parece que, por si só, estes quadros ajudam a construir uma
imagem bastante completa do conceito de medo. Mais do que isso, e atrevo-me a dizer,
parece-me que estas categorias são, em si mesmas (e tal como noutros pontos deste
capítulo terei oportunidade de referir67), uma certa forma de “validação” dos resultados
da própria investigação científica. É como se a sabedoria popular, que é experiência de
vida, se tivesse adiantado (inclusive ou, sobretudo (?), na sua versão mais “vernácula”),
na compreensão daquilo que a pesquisa precisou de muitos anos para demonstrar. É
como se, e mais uma vez, a relação entre a ciência e o saber popular não fosse

67
Ver ponto 1.3 deste capítulo (síntese do medo).

152
mutuamente exclusiva, mas, sim, mutuamente inclusiva e, por isso, complementar
(Sousa Santos, 1998, 2002).

Em jeito de síntese, ficam, para já, duas ANOTAÇÕES:


1. A quantidade de emoções e sentimentos que, implícita ou explicitamente, estão
envolvidas nesta caracterização do medo: timidez, angústia, ódio, susto, …
Todos se cruzam!
2. A diversidade de sentidos encontrados – os âmbitos e as relações que já aqui se
pressente estarem implicados: a corporeidade*, a necessidade básica de
segurança, a criação de uma identidade própria, a percepção do real, as
relações interpessoais, a manutenção da fonte de vida, a construção da paz, …

Mas ficam-me, também, três INTERROGAÇÕES:


1. Por que será que, sendo uma emoção universal, inerente à natureza, as
“alcunhas” de quem tem medo são tão depreciativas, tão humilhantes?
2. Por que será que as palavras que podem ser usadas como vocativos para quem
não tem medo vão desde “valoroso” (isto é, o que tem valor), a “temido (isto é, o
que faz temer, ou que mete medo), a “impávido” (isto é, o que se não deixa
perturbar)? Qual o seu denominador comum? Alguma forma de poder? Que tipo
de poder? Será que quem não tem medo mete medo? Porquê? Por que é
diferente? Por isso tem valor? Será que tem medo quem intencionalmente mete
medo?
3. Por que será que é muito menor o número de palavras usadas para significar
“não ter medo” do que as usadas para “ter medo”? Será que, de facto, “a
covardia é muito mais universal do que a bravura” (Neill, 1971:116) e a valentia*
e, por isso (como não há tantas ocasiões para serem usadas), também não são
precisas mais?

Mas, porque não quero deter-me, pelo menos por agora, numa reflexão demorada
sobre esta minha “análise”, passo à apresentação dos resultados obtidos no estudo de
outros enfoques sobre a relação do ser humano com o medo (bem diferentes destes e
também entre si distintos), para que, no final, e pela identificação das ideias

153
consideradas mais pertinentes, possa fazer uma reflexão global, síntese integradora de
todas as abordagens apresentadas.

• Criação de um primeiro cenário de fundo – a palavra da


neurobiologia

Damásio (1995), considerando que os sentimentos são o que revela quem somos e o
que constrói a nossa humanidade, explica que a nossa mente está alicerçada nos
sentimentos de DOR e de PRAZER como genealogias da regulação vital e que somos
impelidos para dois tipos de movimentos – o movimento de procura e o movimento de
recuo.

O MOVIMENTO DE PROCURA, de exploração e de curiosidade (alinhado com a ideia de


recompensa e de prazer), leva à aproximação do meio ambiente, aumenta a
capacidade de sobrevivência (mas também a nossa vulnerabilidade), e está associado
a emoções positivas como a felicidade e o orgulho. O MOVIMENTO DE RECUO, de
imobilização, de fechamento e de retracção (alinhado com a ideia de castigo e de dor),
leva ao distanciamento do meio ambiente e está associado a emoções negativas como
a angústia, o medo e a tristeza (Damásio, 1995).

Assim, e partindo de uma CONCEPÇÃO DO SER HUMANO como


“um organismo que surge para a vida dotado de MECANISMOS AUTOMÁTICOS DE
SOBREVIVÊNCIA” e ao qual a EDUCAÇÃO E A ACULTURAÇÃO acrescentam um conjunto de
estratégias de tomada de decisão socialmente permissíveis e desejáveis que favorecem
a sobrevivência e servem de base à CONSTRUÇÃO DE UMA PESSOA” (Damásio, 1995:141),
Damásio apresenta, ao longo das suas três mais conhecidas obras de referência, os
resultados de estudos realizados no campo da neurobiologia das emoções e, com isso,
desenvolve uma série de reflexões centradas na procura da compreensão das nossas
emoções e dos nossos sentimentos. Passo a fazer uma breve síntese do pensamento
do autor a partir da explicitação dos conceitos-chave contidos na concepção do ser
humano acima transcrita: (1) mecanismos automáticos de sobrevivência; (2) educação
e aculturação; (3) construção de uma pessoa.

154
1. Mecanismos automáticos de sobrevivência

A HOMEOSTASIA, enquanto conjunto de processos de regulação automática inatos a


todos os seres vivos, soluciona problemas básicos da vida – por exemplo, problemas de
incorporação e transformação de energia e de manutenção de um equilíbrio químico
adequado à vida e problemas de defesa do organismo em situações de doença e lesão
física (Damásio, 2003:46).

À medida que ocorre a evolução biológica, estes DISPOSITIVOS AUTOMÁTICOS vão-se


tornando mais sofisticados e, sem quase dependência da aprendizagem, criam diversos
tipos de resposta – desde o simples retraimento e aproximação, até aos mais
complexos de competição e cooperação. Assim, quando o organismo (num PROCESSO
DE GOVERNAÇÃO E AVALIAÇÃO PRODUZIDO POR CADA UMA DAS SUAS CÉLULAS), detecta uma
mudança no ambiente que possa alterar potencialmente o seu curso de vida (tanto em
termos de ameaça, como de oportunidade de melhoria), responde de modo a criar um
estado de equilíbrio e bem-estar mais benéfico para a sua auto-preservação.

Em jeito de metáfora, Damásio (2003:44-57) estabelece uma correspondência entre a


máquina da homeostasia e “uma árvore bem alta e larga em que os vários ramos são
fenómenos automáticos da regulação da vida” (2003: 47):

- Nos ramos mais baixos: o processo de metabolismo – componentes químicos e


mecânicos; os reflexos básicos – ex: o sistema imunitário; reflexo de alarme ou
susto.
- Nos ramos médios: certas pulsões e motivações; comportamentos normalmente
associados à noção de prazer (recompensa) ou dor (punição) – fome, sede,
curiosidade, comportamentos exploratórios, comportamentos lúdicos,
comportamentos sexuais…
- Nos ramos próximos do cume: as emoções (as “jóias” da regulação automática
da vida) – a alegria, a mágoa, o medo, o orgulho, a vergonha, a simpatia…
- Nos ramos mais altos: os sentimentos.

Emoções universais
= medo, zanga/cólera, nojo/aversão, felicidade/alegria, surpresa, tristeza =

155
As EMOÇÕES, que se situam nos ramos próximos do cume, significam, literalmente,
movimento para fora (Damásio, 1995:144ss; 2000:72ss; 2004,75ss):

a) São constituídas por RESPOSTAS REFLEXAS a um determinado estímulo e


regulam a sobrevivência através da produção de uma reacção específica – fuga
(flight), imobilização (freeze), ataque (fight), ou adopção de um comportamento
agradável.
b) São dependentes de dispositivos cerebrais inatos e ocupam um conjunto restrito
de regiões cerebrais.
c) São responsáveis por modificações na paisagem corporal e na paisagem
cerebral – sistemas visceral, vestibular e músculo-esquelético e circuitos
cerebrais.
d) Embora sedimentadas ao longo da história evolucionária, podem sofrer
modificações nas suas formas de expressão e no seu significado de acordo com
a aprendizagem e a cultura.
e) Apesar da variação individual e do papel da cultura, podem ser activadas
automaticamente sem deliberação consciente.
f) Constituem o substrato dos padrões neurais que formam os sentimentos de
emoção.

Emoções Primárias, Universais, Básicas, Inatas, Pré-organizadas


Medo, zanga/cólera, nojo/aversão, surpresa, tristeza, felicidade/alegria.
- São reacções ou movimentos pré-organizados a certas características de
estímulos – sons, tamanho, envergadura...
- Desenrolam-se no teatro do corpo.
- Apresentam diferentes tipos de perfis – de “explosão”, com início rápido, um pico
de intensidade, uma decadência rápida (cólera, medo, surpresa, aversão); de
“onda”, com características menos intensas (tristeza e emoções de fundo).
- Não se confinam aos seres humanos.
Quadro II.1 – Conceito de emoções primárias. Destaques a partir de Damásio (1995, 2003).

Sentimentos universais
= de medo, de cólera, de nojo, de felicidade, de tristeza =

Situando-se nos ramos mais elevados daquela árvore, os SENTIMENTOS são os


SENSORES do interior do organismo (da sua harmonia ou do seu desacordo), e tornam
possível uma maior flexibilidade de respostas. As respostas dos sentimentos permitem
(Damásio, 2003:161ss):

156
a) A percepção do objecto – a sensação da emoção em relação ao objecto que a
desencadeou.
b) A percepção do estado corporal – a relação objecto/estado emocional do corpo.
c) A percepção das modificações de estilo e eficiência do pensamento – a criação,
para lá da resposta automática, de uma estratégia de protecção alargada.

Sentimentos de Emoções Universais Básicas


Sentimento de felicidade, de tristeza, de cólera, de medo, de nojo.
- São o sentir dos estados emocionais, a consciência das emoções.
- São invisíveis para o público – desenrolam-se no teatro da mente.
Sentimentos de Emoções Universais Subtis
Euforia, êxtase, melancolia, ansiedade, pânico, timidez, remorso, vergonha, vingança…
- Baseiam-se nas emoções que são pequenas variantes das emoções básicas (da
tristeza surge a melancolia e a ansiedade; do medo, o pânico e a timidez).
Quadro II.2 – Conceito de sentimentos de emoções universais básicas e subtis.
Destaques a partir de Damásio (1995, 2003).

2. Educação e Aculturação

A educação e a aculturação “acrescentam um conjunto de estratégias de tomada de


decisão socialmente permissível” (Damásio, 1995:141) – porque existem certos
mecanismos que só são accionados depois da exposição a um estímulo específico;
porque há razões e situações em que, ter medo, ou estar feliz, por exemplo, variam com
a experiência individual e cultural. Assim, e ao terminar o desenvolvimento infantil, o
cérebro (tendo passado pela intervenção da sociedade e aí cruzado o adquirido com o
instintivo), está dotado de níveis adicionais de estratégias para a sobrevivência.

Emoções secundárias ou sociais


= vergonha, ciúme, culpa, orgulho simpatia, compaixão, embaraço,
inveja, gratidão, admiração, espanto, indignação, desprezo… =

O mecanismo das EMOÇÕES SECUNDÁRIAS desenvolve-se logo que começamos a ter


sentimentos e a formar ligações sistemáticas entre as emoções primárias e
determinadas categorias de objectos e situações Apesar de obtidas sob influência de
disposições inatas, as emoções secundárias são representações adquiridas – por isso,
únicas, individuais e personalizadas (Damásio: 1995:149ss). Esse mecanismo ocorre a
três níveis:

157
1. Avaliação cognitiva do acontecimento – considerações deliberadas e
conscientes em relação a uma determinada pessoa ou situação.
2. A um nível não consciente – reacção automática e involuntária das redes do
córtex pré-frontal aos sinais resultantes do processamento de imagens mentais,
tem subjacente o conhecimento de como, na experiência individual, certo tipo de
situações tem dado origem a certo tipo de respostas emocionais.
3. De uma forma não consciente, automática e involuntária – sinalização à
amígdala da resposta destas disposições pré-frontais. Afectam o organismo de
duas maneiras:
a. Causando um estado emocional do corpo – as vísceras ficam
colocadas no estado associado ao tipo de estímulo e provocam
mudanças nos estados do corpo e do cérebro; a musculatura
esquelética (expressões faciais e posturas corporais) completa o
quadro externo da emoção.
b. Causando um impacto importante no estilo e eficiência dos processos
cognitivos.

Emoções Secundárias ou Sociais


Vergonha, ciúme, culpa, orgulho simpatia, compaixão, embaraço, inveja, gratidão,
admiração, espanto, indignação, desprezo…
- São representações adquiridas.
- Apresentam diversas combinações das componentes das emoções primárias (ex: o
desprezo utiliza as expressões faciais do nojo).
- Não se confinam aos seres humanos.
Exemplo: MEDO ►Embaraço, Vergonha, Culpa
Estímulo-emocionalmente- Identificação de um problema no comportamento ou no
competente (EEC) corpo do próprio indivíduo.
Consequências do Evitar a punição imposta por terceiros; reequilíbrio do
desencadear da emoção próprio, do outro, ou do grupo; policiamento das regras de
comportamento social.
Base fisiológica da emoção Medo, tristeza, tendências submissivas.
Quadro II.3 – Conceito de emoções secundárias. Destaques a partir de Damásio (1995, 2003).

Emoções de fundo
= bem-estar/mal-estar; calma/tensão; irritação/relaxamento;
letargia/entusiasmo; desânimo/esperança; bom-humor/mau-humor;
fadiga/energia; dor/prazer, esperança/desencorajamento;
estabilidade/instabilidade; equilíbrio/desequilíbrio; harmonia/discórdia… =

158
As EMOÇÕES DE FUNDO estão mais próximas do núcleo interior da vida e têm um alvo
mais interno do que externo. São causadas por um ou mais dos seguintes elementos:
processos de regulação da vida; certas condições de natureza interna; processos de
conflito mental manifesto ou escondido; processos fisiológicos; interacções do
organismo com o meio ambiente.

Embora não especialmente proeminentes, mas representando um papel importante,


podem ser detectadas através de manifestações subtis de:

a) Postura corporal – perfil dos movimentos, precisão, frequência e amplitude dos


membros ou do corpo inteiro.
b) Expressões faciais – quantidade e velocidade dos movimentos oculares e grau
de contracção dos músculos faciais.
c) Linguagem – música da voz, cadência do discurso, prosódia.

Emoções de Fundo
Dor/prazer, bem-estar/mal-estar; calma/tensão; irritação/relaxamento;
letargia/entusiasmo; desânimo/esperança; bom-humor/mau-humor; fadiga/energia;
esperança/desencorajamento; estabilidade/instabilidade; equilíbrio/desequilíbrio;
harmonia/discórdia…
- Correspondem ao estado do corpo que ocorre entre emoções.
- Apresentam manifestações subtis do corpo, linguagem e expressões faciais.
Quadro II.4 – Conceito de emoções de fundo. Destaques a partir de Damásio (1995, 2003).

Sentimentos de fundo
= sentimento de dor / prazer; bem-estar / mal-estar;
calma / tensão; irritação / entusiasmo… =

Os SENTIMENTOS DE FUNDO, aqueles que, em íntima ligação com a consciência


nuclear68, sentimos com mais frequência ao longo da vida, não têm origem em
emoções, mas correspondem a estados do corpo que ocorrem entre emoções:
a) São a nossa imagem da paisagem do corpo quando as emoções não estão
activadas.
b) Podem ser agradáveis ou desagradáveis, mas não são demasiado positivos
nem demasiado negativos.

68
“A consciência consiste na construção do conhecimento sobre dois factores: que o organismos está
envolvido numa relação com um objecto e que o objecto presente nessa relação provoca uma modificação
no organismo” (Damásio, 2003:40).

159
c) Ajudam-nos a definir o nosso estado mental.
d) São o sentimento da própria vida, a sensação de existir.

Sentimentos de Fundo
Sentimento de dor / prazer; bem-estar / mal-estar; calma / tensão; irritação / entusiasmo …
- Têm origem em estados corporais de “fundo” e não em estados emocionais.
- Não são nem demasiado positivos, nem demasiado negativos.
- Não se encontram no primeiro plano da nossa mente.
- Permitem apreciar o tom físico geral do nosso ser.
Quadro II.5 – Conceito de sentimentos de fundo. Destaques a partir de Damásio (1995, 2003).

Humores

Os HUMORES (mood)69, ainda que quase só tratado em nota de rodapé, são um outro
tipo de estados emocionais referenciado por Damásio (2004) que me parece também
ser relevante colocar.

“Quando os estados emocionais tendem a tornar-se razoavelmente frequentes ou até


contínuos ao longo do tempo, é preferível referirmo-nos a eles como humores e não
como emoções.
(...) Os HUMORES são emoções arrastadas, acompanhadas pelos consequentes
sentimentos; transportam através do tempo os conjuntos de respostas que caracterizam
as emoções: modificações endócrinas, modificações do sistema nervoso autónomo,
modificações músculo-esqueléticas e modificações no modo de processamento das
imagens” (Damásio, 2003:388-389).

Quando um determinado conjunto de emoções se desenvolve de forma não adequada e


persistente durante um longo período de tempo, além de poder implicar um custo muito

69
Em Daniel Goleman (2005:180-181) também encontramos algumas considerações sobre o conceito de
humor:
1. O humor está relacionado com as emoções, mas é diferente delas, especialmente na duração – as
emoções podem aparecer e desaparecer numa questão de segundos ou de minutos, mas um humor
pode durar todo o dia.
2. Quando temos uma emoção, conseguimos identificar o que a produziu, especificar o evento que a
desencadeou e aquilo que a fez emergir. Mas não conseguimos fazer o mesmo com um humor.
3. Um humor pode ser provocado por três tipos de situações:
- alterações internas não relacionadas com o que está a acontecer no exterior;
- uma experiência emocional muito densa;
- pensamentos subtis que decorrem em segundo plano na mente e de cujo controlo não nos
conseguimos libertar só pela consciência da sua existência.
4. O humor intensifica as emoções e influencia e restringe a forma como pensamos.

160
elevado na vida do indivíduo afectado, pode, inclusive, tornar-se patológico*70. Os
humores ocorrem nas seguintes situações:

a) Quando a pessoa activa repetidamente a mesma emoção.


b) Quando a pessoa modifica frequentemente o seu tom emocional de forma
inesperada.
c) Quando a pessoa emite uma nota predominantemente emocional de forma
consistente, durante uma boa parte do tempo e a sua manifestação se torna um
modo de ser físico e mental permanente.

3. Construção de uma pessoa

“A eliminação da emoção e do sentimento acarreta um empobrecimento da organização


da experiência humana. (...) Na ausência de emoções e sentimentos sociais, mesmo
que, improvavelmente, outras capacidades intelectuais se pudessem manter, os
instrumentos culturais conhecidos como comportamentos éticos, crenças religiosas, leis,
justiça e organização política não teriam emergido ou teriam emergido de uma forma
bem diferente” (Damásio, 2003:183-184).

É por isso que, e também de acordo com Damásio, as estratégias de sobrevivência


atrás descritas são também a base da construção de uma pessoa - criam um ponto de
vista moral que, quando necessário, pode transcender os interesses do grupo e mesmo
os da própria espécie.

Neurobiologia – síntese:
1. O medo está associado ao sentimento de dor e pode desencadear movimentos de
recuo, imobilização, fechamento, retracção e levar ao distanciamento do meio
ambiente.
2. O medo pode apresentar-se sob diferentes configurações e expressões: emoção e

70
A depressão é um dos exemplos típicos de humores – a emoção-tristeza que se prolonga durante dias e
meses: o choro, a perda de apetite, os pensamentos melancólicos “tornam-se um permanente modo de ser,
físico e mental” (Damásio, 2003:388).

161
sentimento primários (medo); sentimento de emoções universais subtis (pânico,
timidez); emoção e sentimento secundários (embaraço, vergonha, culpa); emoção
e sentimento de fundo (dor, mal-estar...); humor.
3. Enquanto emoção, o medo é uma resposta reflexa. Enquanto sentimento, o medo
permite a criação de uma estratégia de protecção alargada – desempenha, por
isso, um papel regulador que conduz à criação de circunstâncias vantajosas para
o organismo.
4. O medo é responsável por modificações na paisagem corporal (sistema visceral,
vestibular e músculo-esquelético) e na paisagem cerebral (circuitos cerebrais).
Pode ser detectado através de manifestações (mesmo que subtis) na (1) postura
corporal (perfil dos movimentos, precisão, frequência e amplitude dos membros ou
do corpo inteiro); nas (2) expressões faciais (quantidade e velocidade dos
movimentos oculares e grau de contracção dos músculos faciais); e na (3)
linguagem (música da voz, prosódia e cadência do discurso).
5. Por força da aprendizagem e da cultura, o medo pode sofrer alterações nas suas
formas de expressão e no seu significado – pode ser accionado pela exposição a
um estímulo específico ou por razões e situações dependentes da experiência
individual e cultural. Constitui, por isso, uma representação única, individual e
personalizada.
6. Se o medo se desenvolver de forma persistente e não adequada durante um longo
período de tempo, para além de ter um custo elevado na vida do indivíduo, pode,
inclusive, tornar-se patológico*.
7. Ser humano é emocionar-se.

• Criação de um segundo cenário de fundo – a palavra da


psicologia e da bioenergia

1. Da psicologia

Por considerar que, no léxico do medo, existe um conjunto de expressões que não
estão bem definidas, José António Marina (2006:30-36) apresenta uma cartografia
elementar para precisar os diversos sentidos dessas expressões (quadro 2.6). Assim, e

162
a partir dos termos “inquietação” e “intranquilidade” (ou agitação, desassossego,
nervosismo, etc.), que considera serem características afectivas partilhadas por
diversas emoções, o autor define:

a) ANSIEDADE – uma intranquilidade desagradável.


a. ANGÚSTIA – uma ansiedade sem desencadeantes claros, acompanhada
de preocupações recorrentes, com uma antecipação vaga de ameaças
globais e com dificuldade de pôr em prática programas de
71
enfrentamento (de fuga, luta, imobilidade ou submissão).
b. MEDO – ansiedade provocada pela antecipação de um perigo.

b) EXCITAÇÃO – uma intranquilidade agradável perante, por exemplo, uma boa


notícia inesperada.
c. EXCITAÇÃO e ANSIEDADE – causam uma focalização da atenção e uma
activação do sistema digestivo, respiratório ou cardiovascular.

Agradável:
EXCITAÇÃO

INQUIETAÇÃO
OU
INTRANQUILIDADE Sem causa conhecida:
ANGÚSTIA
Desagradável:
ANSIEDADE
Com causa conhecida:
MEDO

Quadro II.6 – Cartografia elementar do medo.


Reprodução e tradução de Marina (2006:33).

71
Estratégias de enfrentamento – “os procedimentos com que enfrentamos as situações de stress,
ansiedade, angústia ou medo” (Marina, 2006:39).
Stress – “um sujeito experimenta stress quando a presença de acontecimentos, que exigem dele um esforço
que ultrapassa os seus recursos mentais ou físicos, lhe provoca um sentimento desagradável,
inquieto, debilitador, com sinais de activação fisiológica e incapacidade de controlar a situação”
(Morin, 2006:38).
Coping – “modo e maneiras de lutar contra os conflitos, problemas, angústias. Richard S. Lazarus (...)
define-o como ‘os esforços cognitivos e comportamentais que se desenvolvem para lidar com
exigências externas ou internas que o sujeito avalia como superiores aos seus próprios recursos”
(Marina, 2006:40).

163
Com esta distinção base, e considerando que os SENTIMENTOS (enquanto balanço
consciente da situação vivida) indicam o modo como os nossos desejos ou expectativas
se comportam perante a realidade, Marina faz uma ampla caracterização e reflexão
sobre o medo. Porque vou voltar mais vezes a este autor, limito-me, para já, a destacar
alguns desses atributos:

- O medo provoca um SENTIMENTO DESAGRADÁVEL, inquieto e de falta de controlo.


- O medo leva à posta em prática de um PROGRAMA DE ENFRENTAMENTO* de fuga,
luta, imobilização ou submissão.
- O medo é um MODO DE PERCEBER o mundo que “surge da interacção de um pólo
subjectivo – o sujeito que o sente – com um pólo objectivo – o que o sujeito
sente como ameaçador” (Marina, 2006:78).
- O medo é uma EMOÇÃO INDIVIDUAL, mas, porque é CONTAGIOSA, também é uma
emoção SOCIAL.
- O medo é um FENÓMENO TRANSACCIONAL, isto é, de causalidade circular.
“Tendemos a pensar que depois de uma causa vem o efeito. Mas aqui
encontrámo-nos com influência recíprocas e o efeito converte-se em causa e ao
contrário (Marina, 2006:16).

Em Daniel Goleman, encontro um outro conceito importante, o conceito de EMOÇÕES


72
DESTRUTIVAS :

“Emoções destrutivas são emoções prejudiciais para o próprio e para os outros.


(...) São destrutivas quando sentidas em contextos não apropriados ou não normativos.
Quando o medo, por exemplo, é sentido numa situação familiar na qual não há nada a
temer, é destrutivo. Mas se sentimos medo no momento em que um tigre está preste a
saltar, então é apropriado e ajuda-nos a sobreviver” (Goleman, 2005:84; 210).

Destaco também duas implicações para a compreensão do medo (Goleman, 2005:189;


210):

72
Este conceito é apresentado no livro “Emoções destrutivas e como dominá-las” que, com narração de
Daniel Goleman (2005), junta nomes como o de Francisco Varela, Richard Davidson, Paul Ekman, Alan
Wallace e do Dalai Lama. É um diálogo entre o conhecimento ocidental e a sabedoria oriental para,
compreendendo o papel das emoções destrutivas no sofrimento humano, se encontrem caminhos de
construção da paz.

164
1. Porque não pode ser categoricamente classificado como construtivo ou
destrutivo, o medo tem instâncias negativas e instâncias positivas – o medo de
ficar preso de angústias negativas pode, por exemplo, desenvolver a aspiração
de libertação e dar azo a um estado espiritual de aspiração.
2. Uma pessoa não altera os seus sentimentos, mas pode alterar a sua acção –
embora continuem a ter o mesmo impulso emocional, as pessoas são capazes
de alterar a maneira como reagem a esse impulso.

2. Da bioenergia*

Em Alexander Lowen, criador da bionergia, encontro uma contribuição importante para


o entendimento das relações que se estabelecem entre as distintas emoções e,
especificamente, com o medo. De acordo com este autor, as emoções podem ser
classificadas como SIMPLES ou COMPOSTAS. As primeiras têm apenas um tom
sentimental, de prazer ou dor; as segundas contêm tanto elementos de prazer, como
elementos de dor, e podem juntar-se a duas ou mais emoções para produzir uma
reacção mais complexa. No ressentimento, por exemplo, há rancor e medo (Lowen,
1997:87-108).

Mas, além disso, também existem emoções que se constituem em PARES ANTAGÓNICOS.
São pares de emoções em que existe uma correspondência tão grande que facilmente
uma das emoções se transforma na outra. É o caso, por exemplo, do par RAIVA-MEDO73
(Lowen, 1984:163SS):

73
Lowen (1984:163SS) descreve outros dois pares antagónicos (pânico-furor e terror-fúria) que completam
a compreensão do medo.
Pânico-furor: Sem o controlo do ego, o medo pode degenerar em pânico pois precisa que aquele
acrescente um elemento racional e limite o comportamento dentro de determinados padrões. A
raiva pode transformar-se em furor quando a identificação do ego com o corpo diminui e o seu
controlo é enfraquecido. Pânico e furor baseiam-se na sensação de estar numa armadilha.
Manifestações físicas do pânico – corpo tenso, como em posição de fuga; peito inchado; garganta
fechada, dificuldade de respiração, com sobrecarga na inspiração e incapacidade de expelir
completamente o ar. O grito reprimido está subjacente à dificuldade de respirar.
Manifestações física do furor: excitação muscular excessiva; perda de controlo das acções. O furor
é normalmente destrutivo para a pessoa e para o seu ambiente.
Terror-Fúria: O terror é uma forma de choque. Desenvolve-se em situações onde qualquer esforço para
resistir ou escapar surge sem esperança. Manifestações físicas do terror: redução da sensibilidade
do organismo; incapacidade de inspirar; sistema muscular paralisado com impossibilidade de fuga
ou de luta. O terror representa a fuga para dentro. O terror é o efeito do furor dos pais sobre a

165
a) O medo e a raiva activam o sistema simpático-supra-renal para que forneça
energia para a luta ou para a fuga. O sistema muscular encontra-se carregado e
mobilizado para agir.
- Manifestações físicas do medo: mobiliza o movimento de fuga –
movimento descendente ao longo das costas (ex: encolhimento da cauda
do cão); carregamento para fugir. Se a fuga for impossível, a excitação
fica presa no pescoço e nas costas, os ombros ficam levantados, os
olhos arregalados, a cabeça para trás, a parte traseira recolhida, numa
atitude que mostra que a pessoa se encontra num constante estado de
medo, quer disso tenha, ou não, consciência.
- Manifestações físicas da raiva: mobiliza o movimento de ataque –
movimento ascendente ao longo das costas (levanta, por exemplo, os
pêlos do cão), movimento da cabeça para a frente, ombros para baixo74.

b) O medo desenvolve-se quando a ameaça de dor é feita por uma força


aparentemente superior. A escolha entre lutar ou fugir depende do indivíduo e
da situação. A raiva serve para manter e proteger a integridade física e
psicológica do organismo.

c) Tal como chorar alivia a tristeza, também expressar a raiva alivia o medo. Não
expressar a raiva não é uma escolha, mas sinal de medo.
- A pessoa a quem não é permitido expressar a raiva fica fechada,
submissa, imobilizada numa posição de medo e de impotência. Pode
tentar superar essa situação através da manipulação do seu ambiente.

criança. A imobilização dos movimentos acarreta a despersonalização, a dissociação entre o ego


perceptivo e o corpo.
Manifestações físicas do terror na criança: estrutura do corpo tesa, contraída ou frouxa, com uma
tonicidade muscular fraca; superfície do corpo mal irrigada; olhos inexpressivos; a expressão
facial como uma máscara; respiração bloqueada por espasmos nos músculos da garganta e dos
brônquios, inspiração superficial; tórax na posição expiratória.
A fúria, enquanto contrapartida do terror, é o ódio sem remorso com efeito destruidor – é fria,
dura, representa o aspecto agressivo do ódio.
74
O impulso de morder é a primeira forma de manifestação da raiva. As inibições no morder são
parcialmente responsáveis por distúrbios na expressão da raiva. A incapacidade de ficar com raiva
manifesta-se por explosões histéricas e sentimentos persistentes de irritação (Lowen, 1984).

166
Psicologia e bioenergia – síntese:

1. O medo não pode ser categoricamente classificado como construtivo ou


destrutivo – tem instâncias positivas e construtivas.
2. O medo estabelece relações com outras emoções: com o ressentimento, a
ansiedade, a raiva, o pânico… – a ansiedade é intranquilidade desagradável; a
angústia é ansiedade sem desencadeantes claros; o terror é uma forma de
choque em situações sem esperança.
3. Sem o controlo do ego, o medo pode degenerar em pânico e a raiva pode
degenerar em furor.
4. Expressar a raiva alivia o medo.
5. Manifestações físicas do medo: ombros levantados, olhos arregalados, cabeça
para trás, parte traseira recolhida.
6. Manifestações físicas da raiva: cabeça para a frente, ombros para baixo.
7. Manifestações físicas da ansiedade: activação do sistema nervoso central,
sensações do sistema digestivo, respiratório ou cardiovascular.

• Criação de um terceiro cenário de fundo – a palavra feita


de muitas outras cores e tons

Posto que está criado um pano de fundo semântico, analógico, neurobiológico


psicológico e bioenergético, parece-me ser a hora de tentar construir um último cenário
(feito de outras perspectivas e cosmovisões), para contextualizar as várias cenas em
que esta pesquisa e os seus actores se movem. No entanto, e para não me alongar
demasiado, destacarei só o que considero serem as palavras ou ideias-chave que,
neste conjunto de definições e metáforas, explicam o que é o medo.

1. Palavras da bíblia

Livro do Génesis:
“Mas o Senhor Deus chamou o homem e disse-lhe: “Onde estás?” Ele respondeu: “Ouvi
a tua voz no jardim e, cheio de medo, escondi-me porque estou nu”. O Senhor Deus
perguntou: “Quem te disse que estás nu? Comeste, porventura, da árvore da qual te

167
proibi comer?” O homem respondeu: “Foi a mulher que trouxeste para junto de mim que
me ofereceu da árvore e eu comi.” O Senhor Deus perguntou à mulher: “Por que fizeste
isso?” A mulher respondeu: “A serpente enganou-me e eu comi” (Génesis 3, 9-13).
Palavras/Ideias-chave: o medo impedindo o desvelar da verdade de si mesmo; o medo
não deixando assumir as responsabilidades pelos próprios actos.

Livro dos Provérbios:


“O temor de Deus é o princípio da sabedoria” (Provérbios 9,10).
Palavras/Ideias-chave: o medo como respeito e reverência; o medo como
75
reconhecimento de Deus enquanto guia da nossa vida e o temor de O perder .

Evangelho de S. Mateus:
“Veio, finalmente, o que tinha recebido um só talento: «Senhor, disse ele, sempre te
conheci como homem duro, que ceifas onde não semeaste e recolhes onde não
espalhaste. Por isso, com medo, fui esconder o teu talento na terra. Aqui está o que te
pertence». O Senhor respondeu-lhe: «Servo mau e preguiçoso! Sabias que eu ceifo
onde não semeei e recolho onde não espalhei. Pois bem, devias ter levado o meu
dinheiro aos banqueiros e, no meu regresso, terias levantado o meu dinheiro com juros.
Tirai-lhe, pois, o talento e dai-o a quem tem dez talentos. Porque ao que tem será dado e
terá abundância; mas, ao que não tem, até o que tem lhe será tirado. A esse servo inútil,
lançai-o nas trevas exteriores; ali haverá choro e ranger de dentes” (Mt. 25, 24-30).
Palavras/Ideias-chave: o medo impedindo o desenvolvimento de capacidades pessoais;
o medo impedindo a capacidade de serviço.

2. Palavras de um professor de meditação vipassana

“O medo é normalmente descrito como uma resposta emocional a uma percepção de


perigo que provoca certas reacções neuromusculares e químicas no corpo. Sente-se
que ele surge em resposta a alguma coisa que se vê ou ouve, a sensações no corpo ou
a pensamentos e emoções que aparecem na mente. A presença do medo pode resultar
de uma percepção ajustada ou de uma percepção totalmente distorcida. De qualquer

75
www.loreto.org.br/mai2004_jovem.asp

168
modo, é o facto de se acreditar na percepção e na interpretação das suas implicações
76
no bem-estar que controla o nível de medo sentido” (Moffit, 2003b:2) .
Palavras/Ideias-chave: resposta emocional; percepção ajustada, percepção distorcida;
acreditar na interpretação.

3. Palavras de um psiquiatra que investiga no campo da parapsicologia

“O medo é uma dissipação da energia” (Weiss, 1992:124).


Palavras/Ideias-chave – dissipação da energia.

4. Palavras do esoterismo

“Medo – provém da influência de forças dos subníveis mais densos do nível astral
terrestre. Enquanto a pessoa se mantém polarizada nos planos materiais,
permanece susceptível a estes sentimentos. Os medos subconscientes são mais
numerosos que os conscientes e estão directa ou indirectamente vinculados ao
medo da morte, aos apegos e à incompreensão da verdadeira natureza do ser, que
é imortal. Nos animais o medo apresenta características diferentes das que se
notam no homem pois neste aumenta devido a elementos psicológicos e
imaginativos. Como o medo deriva do envolvimento com as forças da matéria e as
suas ilusões, o indivíduo unido à sua própria essência nada teme” (Trigueirinho,
1999:373).
Palavras/Ideias-chave: influência de forças; pessoa polarizada; medos subconscientes
mais numerosos que os medos conscientes; elementos imaginativos; o indivíduo unido
à sua própria essência nada teme.

5. Palavras de um médico citando Magdalena Chasles

“O medo, religiosamente falando, é a força satânica do “príncipe deste mundo” que se


iniciou no Éden e se estenderá até à grande tribulação apocalíptica. (…)

76
“Fear is usually described as an emotional response to a perception of danger, which elicits certain
neuromuscular and chemical reactions in the body. You feel it arise in response to something that you see
and that you hear, to sensations in your body, or to thoughts and emotions that appear in the mind. The
presence of fear may result of an accurate perception as well as a completely distorted one. Regardless, it
is your belief in the perception and your interpretation of its implications for your well-being that control
the level of fear you experience” (Moffit, 2003b:2).

169
O medo é a consequência imediata do Pecado Original: “a separação da consciência do
homem do seu fundamento sobrenatural”. O risco que (…) subjaz a todos os temores é o
da perda da individualidade” (Peña y Lillo, 1991:61).
Palavras/Ideias-chave – do Éden ao apocalipse; separação da consciência do homem
do seu fundamento sobrenatural; perda da individualidade.

6. Palavras de uma jornalista e perita em técnicas de auto-ajuda e


desenvolvimento pessoal

“O medo é a doença crónica da liberdade” (Olba, 1996:27).


Palavras/Ideias-chave – doença; liberdade.

7. Palavras da literatura universal

Siddhartha:
“Seguindo vagarosamente o seu caminho, o pensador estacou, de súbito, dominado por
esse pensamento, do qual outro emergiu imediatamente: “A razão por que não sei nada
a respeito de mim próprio, a razão por que Siddhartha me permaneceu estranho e
desconhecido, deve-se a uma coisa, a uma única coisa: tinha medo de mim próprio,
fugia de mim próprio. Procurava Brame, procurava Atman, desejava destruir-me de mim,
a fim de encontrar no âmago desconhecido de mim mesmo o núcleo de todas as coisas
– Atman, Vida, Divindade, Absoluto. Mas, ao proceder assim, perdi-me no caminho”
(Hesse, 1982:46).
Palavras/Ideias-chave: o medo como fonte de auto-desconhecimento; o medo como
causa de auto-destruição e perda do sentido da vida.

O Feiticeiro de Oz:
“No momento em que ele falava, saiu da floresta um rugido terrível e, logo de seguida,
um grande Leão saltou para a estrada. Com uma patada atirou o Espantalho pelo ar até
à berma da estrada e depois atirou-se ao Lenhador de Lata com as garras afiadas. (…)
O pequeno Totó, agora que tinha um inimigo pela frente, correu a ladrar para o Leão,
que abriu a boca para lhe morder. Dorothy, temendo que ele matasse Totó, sem mesmo
pensar no perigo, correu para diante e deu a palmada mais forte que conseguiu no
focinho do Leão, gritando-lhe:

170
“Não te atrevas a morder o Totó! Devias ter vergonha, grande como és, de querer
morder a um cãozinho pequenino!”
“Eu não lhe mordi”, respondeu o Leão, esfregando o docinho no sítio onde Dorothy lhe
dera a palmada.
“Não, mas tentaste”, retorquiu ela. “Não passas de um cobarde.”
“Bem sei”, disse o Leão, baixando a cabeça envergonhado. “Sempre soube isso. Mas
como hei-de evitar?” (Baum & Zwerger, 2002:27)
Palavras/Ideias-chave: o medo sob a forma de agressão e violência; o medo
impulsionador da acção de defesa de quem se ama; o medo evitando assumir a
responsabilidade das acções.

A cigarra e a formiga:
“Tendo cantado a cigarra durante o Verão,
Apavorou-se com o frio da estação.
Sem mosca ou verme para se alimentar,
Com fome, foi ter com a formiga, sua vizinha,
Pediu-lhe alguns grãos para se saciar,
Até vir a época mais quentinha!
“Eu pagarei”, disse ela,
“Antes do Verão, palavra de animal,
Com juros e o capital.”
A formiga não gosta de emprestar,
É um dos seus defeitos.
“O que fazia amiga cigarra no calor de outrora?”
Perguntou-lhe com alguma esperteza.
“Noite e dia, eu cantava,
Sem querer dar-lhe desgosto.”
“Cantava? Que beleza!
Pois, então, agora dance!” (La Fontaine, 2006)
Palavras/Ideias-chave: o medo, a focalização da vida exclusivamente no agir, o impedir
da compaixão.

E porque foi um cenário feito de muitas cores e tons, opto por uma imagem para fazer a
sua síntese:

171
O medo impedindo:
• a verdade de si mesmo
• a compaixão
• a capacidade de serviço
• assumir a responsabilidade

O medo criando:
• respeito e reverência
• a defesa de quem se ama

Ilustração II.4 – Síntese de definições de medo.

• Tentativa de enquadramento

Para terminar de forma integrada este ponto do capítulo a que chamei “omnipresença
do medo”, mas sem nenhuma pretensão de esgotar as possibilidades de análise, vou
BRINCAR COM AS PALAVRAS e numa tabela (tabela II.2):

a) apresentar algumas das relações que vejo existirem entre (1) as categorias
anteriormente construídas com as palavras e expressões dos dicionários lexical
e analógico e (2) as definições e atributos do medo expressos pelos diversos
autores referenciados;

b) identificar as capacidades humanas que mais imediatamente parecem ser


tocadas nesta fase de compreensão do sentido do medo – para não fragmentar
o humano e vincar a presença do todo na parte e da parte no todo.

172
Capacidades
Categorias de sentido
Definição e atributos do medo humanas
lexical e analógico
abrangidas
Relacionado com agitação / - Desagradável, inquietação (Marina) Emocionais
ausência de paz - Ressentimento, dor, raiva (Lowen)
- Ex: sobressalto; ódio; - Garras afiadas (Feiticeiro de Oz)
inquietação; angústia
Relacionado com vísceras e fluidos - Impacto fisiológico (Damásio, Lowen, Marina…) Energéticas do Corpo
corporais Físico
Ex: cagaço; assovacado; mijar
Relacionado com fuga à realidade - Fechamento, distanciamento do meio ambiente Étnico-Globais
Ex: enleio; fujão (Damásio) Do Pensamento
- Fechado, submisso (Lowen) Emocionais
- Percepção distorcida (Moffit)
- Foi a mulher; a serpente enganou-me (Génesis)
- Eu sei, mas que hei-de fazer (Feiticeiro de Oz)
Relacionado com perda de energia - Custo elevado na vida (Damásio) Projectivas Perceptivas
vital - Resposta reflexa (Damásio) Introspectivas
Ex: descriminado; estátua; - Impotente (Lowen) Emocionais
desalentado - Perda de talentos (S. Mateus) Do Pensamento
- Dissipação de energia (Weiss)
- Pessoa polarizada (Trigueirinho)
- Doença da liberdade (Olba)
- Auto-desconhecimento (Siddartha)
- Perda de individualidade (Peña y Lilli)
- Cantava? Que beleza, agora dance (La Fontaine)
Relacionado com o repor vida - Papel regulador (Damásio) Do Pensamento
Ex: Animar, refrescar, - Balanço consciente da situação (Marina) Projectivas
realentar - Libertação (Goleman) Emocionais
- Reverência (Livro Provérbios)
Tabela II.2 – Paralelos entre expressões e atributos do conceito de medo.

Em resumo, e porque:
a) autores de distintas disciplinas e distintas abordagens englobam muitas vezes
num único conceito de medo o que a neurociência e a psicologia diferenciam de
uma forma mais precisa;
b) parece não fazer sentido entrar numa reflexão-delimitação-eliminação
interminável sobre as variantes e sucedâneos possíveis do medo;
c) o que aqui se procura compreender são, com excepção das situações
patológicas, as várias ocorrências do(s) fenómeno(s) o mais próximo possível da
realidade vivida e falada pelos sujeitos que a enformam;
passo a colocar o que agora, e na sua complexidade, fica subjacente sempre que falar
do medo:

1. Na natureza, o medo é uma resposta a situações de perigo que tem como fim

173
criar um estado mais benéfico à auto-preservação dos organismos – está
associado ao princípio da dor (ao movimento de recuo, imobilização e
distanciamento do meio ambiente)
2. O medo serve aos propósitos de conservação da espécie, mas pode converter-
se numa emoção destrutiva – isto é, prejudicial para o próprio e para os outros.
3. O medo, com as suas correspondentes relações-variantes (ansiedade, angústia,
receio, inquietação, apreensão…), pode apresentar-se sob a forma genérica de
emoção, sentimento ou humor.
4. O medo é natural e, enquanto impulso emocional, mantém-se. O que se pode
alterar, de acordo com o significado da experiência, é a nossa maneira de agir.
5. O medo, enquanto produto do sistema homeostático, inscrito no âmago do
nosso organismo, afecta a pessoa em todas as suas dimensões.
6. O medo é um fenómeno transaccional (de influências recíprocas e causalidade
circular), é uma emoção individual mas contagiosa – por isso, social.
7. O medo, enquanto percepção (ajustada ou distorcida) do que atemoriza,
constrói-se na experiência e está directamente relacionado com a acção. Como
é uma representação única, individual e personalizada, pode ajudar ou
prejudicar o processo de construirmos o humano.

1.2 Vivendo com Medo


“Duas coisas, sobretudo, impedem que o homem saiba ao certo o que deve fazer: uma é a
vergonha, que cega a inteligência e arrefece a coragem; a outra é o medo, que, indicando o
perigo, obriga a preferir a inércia à acção” – Erasmo de Roterdão.

“Gostaria de ter trancado no quarto todas as humilhações, os choros engolidos, as mágoas,


os medos, as revoltas. Mas não foi capaz. Mergulhou com eles no cheiro da cidade, como
num mar sem ondas, denso de mistérios.
Carrega no peito a bravura dos grandes heróis e, juntamente com os sonhos de menina, um
cio de mulher” – Helena Magalhães.

Em 1980, numa análise crítica muito dura sobre tipo-ideais de educação familiar da
sociedade portuguesa, Moisés Espírito Santo faz uma comparação (talvez perturbadora
mas, por isso mesmo, também estimulante), entre o que chama modelo tradicional,
próprio de um tipo de sociedade em que predomina a empresa familiar e o
campesinato, e o modelo moderno, próprio de uma sociedade em que predomina o

174
assalariato. Com uma caracterização da personalidade de base da cultura portuguesa e
uma visão da educação das crianças e adolescentes que impressiona pela sua
capacidade de, nessa altura, ver o que hoje, em muitos aspectos, já é uma evidência, o
autor apresenta inúmeros exemplos de modos de ser e agir que, sob a aparência de um
contexto de mudança, vieram a desaguar no que ele considera ser “uma sociedade
imatura e não criativa marcada pelo desejo de protecção, pelo assistencialismo e pelo
medo do risco elevados ao grau de ideal” (Espírito Santo, 1985:141)77.

Segundo o autor, a diferença entre os dois modelos é abismal: “enquanto o modelo


tradicional visa a autonomia e a emancipação, o modelo moderno visa a
interdependência e conduz a um estado de dependência generalizada e de
complacência com situações de parasitismo” (Espírito Santo, 1985:135). E ainda que,
ao longo do seu trabalho, a palavra “medo” não surja muitas vezes de forma explícita,
entendo que o seu “espírito” está presente ao longo de todas as suas páginas. Quando,
em jeito de conclusão, escreve que
“…numa sociedade que deixou de ser predominantemente rural, a matriarcalidade
tradicional terá forçosamente de sofrer uma distorção. No meio urbano, na sociedade
baseada no assalariato, a mãe perde o controle da situação. Escapam-lhe os
mecanismos económicos e toda a vida social: diluem-se os laços de vizinhança, não
pode controlar os filhos desde que estes ponham o pé na rua, e até pode ficar reduzida à
humilde condição de doméstica. Ela vai investir toda a sua energia tradicional nos filhos
que são o seu único bem. Daí que ela se oponha, consciente ou inconscientemente, à
sua emancipação: o seu desejo seria que eles ficassem sempre crianças: ensinar-lhes a
serem autónomos seria apressar a sua própria solidão (…)” (Espírito Santo, 1985:146),
retrata também, a meu ver, o que depois, com uma distância de vinte anos, numa
abordagem bem diferente da realidade portuguesa, José Gil diz ser:
“[Um medo] que continua nos corpos e nos espíritos, mas já não se sente (…).
[Um medo] interiorizado, mais inconsciente do que consciente, [que] acaba por fazer
parte do «carácter dos portugueses» (…) passa de pais para filhos, de geração em
geração (...).
[Um medo que] nos tolhe e, directa e indirectamente, nos inibe de expandirmos a nossa
potência de vida, a nossa vontade de viver… [um medo que], enquanto dispositivo
mutilador do desejo, (…) predispõe à obediência. Amolece os corpos, sorve-lhes a

77
Em 1999, Moisés Espírito Santo republica este artigo e, com isso, actualiza e confirma a análise aqui
citada.

175
energia, cria um vazio nos espíritos que só as tarefas, deveres e obrigações da
submissão são supostos preencher” (Gil, 2005:40, 78, 84).

E se a isto, passado essencialmente nos círculos mais restritos da vida privada,


juntarmos o medo do terrorismo, da corrupção, do crime organizado, da violência
urbana, da violência contra crianças, da impunidade, dos desastres naturais, das
falências, do desemprego, do deficit, da inflação, do fisco, das dívidas, da fome, do
cancro, do HIV, do buraco do ozono, da gripe das aves, das vacas loucas…, não será
difícil perceber como (neste vaivém entre imprinting cultural* e mentalidades
individuais), “nos tornamos78 menos abertos a novas possibilidades, menos exigentes e
mais dispostos a desistir dos nossos direitos em prol de uma qualquer promessa de
segurança” (Moffit, 2003b:1).

Isto é, como isso modela a nossa cultura e afecta as decisões que tomamos como
pessoas, como cidadãos, como educadores,
- esquecendo que “a condição humana consiste em lutar constante e
permanentemente para mudar o mundo e melhorar a nossa própria existência,
no sentido de reduzir ou eliminar a exploração de uns seres humanos por outros,
em todas as frentes” (Garzón, 2006:10);
- ignorando que a “busca do ser mais (…) não pode realizar-se no isolamento, no
individualismo, mas na comunhão, na solidariedade dos existires” (Freire,
2003:75).

É, assim, preciso perceber como cada sistema social e, antes de tudo, como “cada eu-
educador”, pode, em cada momento em que a educação acontece, estar cultivando
condições que conduzam à forma(ta)ção de pessoas que (sob a aparência de
funcionarem bem no seu nicho social e de viverem felizes consigo mesmas e com o seu
lugar na sociedade), não deixam também de estar AJUSTADAS, encaixadas, violentadas
e podadas na sua individualidade por aquilo que alguém entendeu ser o melhor, ou
mais conveniente, para o bem-estar comum (Guenther & Combs, 1980:133).

78
O sublinhado é meu.

176
Então, se o propósito educativo de repetição se impuser e substituir o poder criador,
precisamos procurar reconhecer (por muito que isso nos custe aceitar no plano
individual), de que modo estaremos “CADA EU”:
- contribuindo para que “o sistema” mantenha as aspirações das pessoas ao nível
das necessidade mais básicas (Guenther & Combs, 1980), presas no princípio
da escassez e da mediocridade vistosa de quem se alegra com as magnânimas
empresas, com as festas e com os jogos (os “carnavais” até!) proporcionados
regularmente pelo(s) “Príncipe(s)” da política, da economia, da comunicação
social..., para distrair e divertir o seu povo;
- concorrendo para o que Erich Fromm já há muito referia ser a padronização dos
homens e a sua conveniência para o sistema (Neill, 1971:xviii), ou para o que
Morin (2002:32) refere ser a normalização que reforça o conformismo;
- revelando “a incapacidade da sociedade de acalentar e apoiar as imensas
possibilidades de uma vida humana” (Moore (2000:8).

Por tudo isto e com tudo isto (mas também porque o propósito desta pesquisa é a
construção de um conjunto de orientações didácticas em que o papel desempenhado
por “cada eu” é fundamental), é sobretudo com uma abordagem mais centrada no
individual e na educação pessoa a pessoa que, a seguir, procurarei trabalhar:
a) o modo como em cada um de nós o medo encontra e se faz face;
b) o terreno que propicia e como nos reconhecemos filhos do medo;
c) o mundo que assim estamos a construir e a transmitir.

• Rostos do Medo

Pouco tempo depois de ter dado início a esta pesquisa, e para tentar saber de que
temos medo, comecei a fazer uma lista de todos os medos que, com diferentes
enunciados, em contexto informal, ou como resultado das leituras que ia fazendo, visse
serem referidos. Não foi preciso esperar muito tempo para perceber que a lista crescia
rapidamente. Demasiado rapidamente até. Por isso, a certa altura, e porque achei que
poderia nunca mais ter fim, desisti.

177
Ilustração II.5 – A diversidade do medo.

Mais adiante reproduzo79, só a título de curiosidade, e simplesmente na ordem em que


foram registados, 241 dos medos que então recolhi. E são 241 por duas razões: a
primeira, muito pragmática, porque são os que consigo, de forma razoavelmente legível,
colocar em duas páginas; a segunda, de carácter mais simbólico, porque o somatório
dos algarismos deste número perfaz 7, o número que
“corresponde aos sete dias da semana, aos sete planetas, às sete pétalas de rosa (…)
aos sete ramos da árvore cósmica (…), a totalidade (…), a perfeição dinâmica (…), [o
número que] indica o sentido de uma mudança depois de um ciclo concluído e de uma
renovação positiva” (Chevalier, 1994:603).

Mas sete, também, porque (como aprendi numa aula com um aluno-professor, o Miguel
Costa), como muitas palavras mágicas têm sete letras (alegria, carinho, sorriso,
caminho, coração…), talvez possam ser, em si mesmas, fonte de inspiração para
processos de transformação de uma palavra de 4 (medo) numa palavra de 7 (coragem).

Sete, em resumo, porque, sendo o número da perfeição e da mudança, poderia ser


também símbolo de (dis)solução das muitas polaridades e dicotomias (vida-morte,
criação-destruição, mente-emoção, sombra-luz, MEDO-DESENVOLVIMENTO HUMANO…),
que, ao longo do percurso da pesquisa, tenho vindo a encontrar.

Então, à pergunta “de que temos medo?”, eu já posso responder: de tudo… ou de


quase tudo. Se, por um lado, os medos são “induzidos por experiências traumáticas
intensas ou repetidas” (Lelord & André, 2002:237), por outro, também:
“Vivemos entre a recordação e a imaginação, entre fantasmas do passado e fantasmas
do futuro, reavivando perigos velhos e inventando ameaças novas, confundindo
realidade e irrealidade, quer dizer, feitos numa confusão.
(...) Não há nada que seja um perigo em si (...). Todos os perigos são perigos-para.
Necessitam de um sujeito paciente cujos planos ou situação ou interesses ameaçam.

79
Ver lista de medos no final deste ponto do capítulo.

178
(...) Tudo o que um sujeito considera que pode causar-lhe um mal de qualquer tipo (...)
pode converter-se num perigo (Marina, 2006:13; 109-110).

Fica, por isso, uma outra pergunta: quem, de entre nós, poderá dizer, com toda a
sinceridade e consciência, que nunca sentiu (ou sente), pelo menos “dois ou três” (ou
sete… ou, talvez mesmo, “setenta vezes sete”80), dos medos daquela ou de outra lista?

Assim, e apesar de haver um tipo específico de pessoas com propensão para ter
medo81 e para se deixarem dominar pelas emoções (Martin & Boeck, 1999:57), a
reflexão que aqui procuro fazer não diz tanto respeito a um tipo específico de pessoas
de temperamento medroso e, muito menos, a doenças do medo. A reflexão que aqui
procuro fazer diz respeito, isso sim, a um outro tipo de medo – o medo com que muitas
mais pessoas se confrontam nas suas práticas quotidianas e na dinâmica da sua vida
interior, quer ele tenha, quer não, uma face exterior muito visível.

1. Tipos de medo

Medos normais e patológicos*; inatos e adquiridos; individuais e colectivos

A partir de uma classificação muito próxima das definições apresentadas por Damásio
de emoções e sentimentos universais e emoções e sentimentos secundários, Marina
descreve os seguintes tipos de medo (2006:21-30;101-103):

- MEDOS NORMAIS – adequados à gravidade do estímulo, não anulam a


capacidade de controlo e de resposta.
- MEDOS PATOLÓGICOS* – com um alarme desmesurado, tanto na sua activação
como na sua regulação.

80
Alusão a Mt. 18,22.
81
“As pessoas que têm propensão para ter medo (....) são frequentemente irritáveis e tímidas, andam
tensas e nervosas. Têm uma grande necessidade de ser amadas e aceites, mas sentem-se frequentemente
isoladas, dolorosamente diferentes das outras, e incompetentes. Por isso, preferem o conhecido ao
desconhecido, buscam de forma instintiva a segurança, e onde se sentem melhor é num ambiente com que
estão familiarizadas. Ao mesmo tempo são delicadas e sensíveis, têm muito tacto e muita fantasia” (Martin
& Boeck, 1999:57-58).

179
o Os critérios que os distinguem são muitas vezes encontrados numa
avaliação estatística.
- MEDOS INATOS – tenazes e universais, são provocados por desencadeantes não
aprendidos.
o Ex: um susto provocado por estímulos intensos e repentinos, pela perda
de orientação, etc.
- MEDOS ADQUIRIDOS – aprendem-se por condicionamento, por experiência
directa, por imitação e por transmissão de informação.
o Medos que resultam de acontecimentos traumáticos – acidente,
separação dolorosa...
o Medos que resultam de acontecimentos penosos e repetidos – pequenos
traumas sofridos de maneira regular, humilhações, agressões...
o Medos que resultam da aprendizagem social – imitação de modelos...
o Medos que resultam da assimilação de mensagens alarmantes – uma
educação centrada na ideia do perigo, o modo como na família se fala
dos problemas...
- MEDOS INDIVIDUAIS – porque o medo é uma emoção individual.
- MEDOS FAMILIARES E MEDOS SOCIAIS – porque o medo é uma emoção contagiosa.
o Por exemplo: medos do milénio, medos da peste, medos baseados em
crenças ou superstições, medo da perda da identidade nacional ou
religiosa, medo do fracasso em certos tipos de sociedade...

Medos naturais e medos culturais

Lelord & André (2002: 226-232):


- MEDOS NATURAIS: medo de certos animais, das alturas, de espaços fechados…
- MEDOS CULTURAIS: medo do fim do mundo, do diabo, das feiticeiras…
- MEDOS CULTURAIS LIGADOS A PERIGOS REAIS: medo de doenças infecciosas,
medos relativos a alguns alimentos…

Medos físicos e psicológicos

Krishnamurti (2002:17-36):
- MEDOS FÍSICOS – muitos destes medos são sinal de inteligência.

180
o Por exemplo: medo de uma serpente venenosa ou medo do fogo.
- MEDOS PSICOLÓGICOS – os que tiram a lucidez e a capacidade de ver em
profundidade e impedem viver no sentido de uma felicidade tranquila e profunda.
o Por exemplo: o medo que faz aceitar o condicionamento de uma
determinada cultura ou sociedade...
o Por exemplo: o medo que faz aceitar ser influenciado pelas pressões e
pelas tensões da vida de relação, por factores económicos, climáticos,
educativos, pelo conformismo religioso, etc.

2. Níveis de medo

Moffit (2003b):
- ESTADO NORMAL DE ALERTA
o Está-se atento a qualquer mudança no ambiente.
- VIGILÂNCIA
o Natural e saudável, ocorre no corpo-mente quando se percebe um
possível perigo. Termina quando o perigo passa.
- HIPERVIGILÂNCIA
o Quando há um estado prolongado de ansiedade ou medo. Cria um
efeito de visão-túnel – a experiência da vida é feita através das lentes
do medo ou da ansiedade.
o Se for repetidamente desafiada, pode tornar-se um padrão na vida. A
nossa sociedade actual apresenta sinais de viver num estado de
hipervigilância.
- REFLEXO TRAUMÁTICO CONGELADO
o Ocorre quando o perigo é constante ou quando o sistema nervoso
perde a capacidade de perceber que o perigo passou.
o Se as circunstâncias em que a pessoa vive a levam a evitar estar
atenta a si própria (ou se a pessoa repetidamente contrai os
músculos para se proteger contra abusos físicos e verbais), as
respostas podem ficar permanentemente congeladas no sistema
neuromuscular e podem ser activadas em situações de stress.

181
o Quase toda a gente tem algum grau de medo bloqueado que precisa
ser desobstruído.
o Estes padrões de medo congelado podem ser detectados através de
sensações de desconforto, da perda de sensações no corpo, da
sensação de desconexão mental, ou ainda de sensação de não se
estar no corpo.

Jeffers (1991:13-16):
- PRIMEIRO NÍVEL – o nível da superfície. Pode ser dividido em dois tipos:
o Medos do que acontece – ex: envelhecer; ficar sozinho, desastres
naturais, perda de segurança financeira, morrer…
o Medos que requerem acção – ex: tomar decisões, mudar de carreira,
fazer amigos, ser entrevistado, começar ou terminar uma relação…
- SEGUNDO NÍVEL – medos que envolvem o ego, mais relacionados com o estado
interior do que com situações exteriores. Reflectem um sentido do self e a
capacidade de lidar com o mundo.
o Medo da rejeição, do insucesso, do falhanço, da perda de imagem,
da desaprovação….
- TERCEIRO NÍVEL – o nível mais profundo, o maior medo de todos, o que bloqueia,
o medo que está subjacente a todos os outros medos.
o O medo de não se ser capaz de lidar com o que a vida trouxer.
Exemplos: medo de não ser capaz de lidar com a doença; medo de
não ser capaz de lidar com o insucesso; medo de não ser capaz de
lidar com a rejeição...

3. Alguns medos (brevemente) explicados

Para me manter em harmonia com a simbologia atrás referida, e ainda que “muitos dos
nossos medos tenham difícil explicação” (Marina, 2006:15), passo a apresentar 7 dos
medos que constam da lista dos 241 e parecem ser dos mais comuns:

a) MEDO DA SOLIDÃO – acontece em pessoas emocionalmente dependentes. É o


medo que faz com que, por exemplo, muitas situações de violência doméstica se

182
mantenham pois a pessoa sente-se incapaz de enfrentar o mundo sozinha
(Marina, 2006:121-122).
b) MEDO DE TOMAR UMA POSTURA FIRME – revela-se na incapacidade de afirmação e
defesa dos próprios direitos. A dependência da avaliação dos outros pode ser
tão exagerada que produz a anulação da própria identidade, integridade e
dignidade (Marina, 2006:126).
c) MEDO DO DESCONHECIDO E DA MUDANÇA – “mudança” significa viajar por águas
inexploradas e isso faz com que as inseguranças venham ao de cima (Maxwell,
1993:57).
d) MEDO DO SILÊNCIO – significa que se tem uma mente obsessiva, febril, que
continuamente pede que se esteja activo (Osho, 2001:23). É o que impede ser
capaz de estar sozinho, de explorar os próprios medos ou a dimensão interior
(Phillips, 2003:64).
e) MEDO DO PRAZER – é também o medo da dor, não apenas física. Ocorre quando
um impulso expansivo depara com uma área contraída e fechada do corpo que,
amortecendo contra a dor, amortece também contra o prazer (Lowen, 1984:67-
69).
f) MEDO DO MEDO – é o medo de acordar a tristeza dos insucessos do passado que
ainda vive no corpo e nas memórias (Phillips, 2003:20).
g) MEDO DE ACABAR – é o medo de se reconhecer o que se perdeu, ou o que se
está em vias de perder. É também o medo de começar, porque tudo é um
círculo (Phillips, 2003:189).

Em resumo, e porque nestes medos cabem todas as experiências de uma vida que, em
tantas situações, vive o conflito, o desespero, a solidão, o desencanto, a violência de
nos ajustarmos, imitarmos e seguirmos uma qualquer “moralidade” social ou a nossa
“moralidade” pessoal peculiar (Krishnamurti, 2002), julgo que fica claro por que foi
possível (e fácil) fazer uma interminável lista de “medos de tudo”. O que é o mesmo que
dizer, por que foi fácil fazer uma lista do MEDO DA VIDA.

183
• Outros rostos do medo

Mas tudo isto até poderia ser relativamente tranquilo e fácil de resolver se, para lá dos
medos de que, apesar de tudo, as pessoas falam (ou reconhecem) com alguma
facilidade, não houvesse muitos outros que (muitas vezes sob a auréola de uma falsa
força ou coragem), são frequentemente esquecidos, disfarçados, encapuçados,
encapotados.

“É o medo entranhado, o medo incorporado, o medo sem objecto (…) companheiro de


todos os instantes, doença que se agarra à pele do espírito e por isso não se vê,
podendo-se mesmo sentir como se em nós não estivesse inscrito” (Gil, 2005:77).

Ainda que brevemente, passo a apresentar exemplos de “medos disfarçados” que vi


referenciados por alguns autores, mas que, em contexto informal (provavelmente
porque, como tal, não são percepcionados), raramente vi enunciados.

a) A BRANDURA, A DOÇURA E A AMENIDADE – são transformação do medo da


violência (Gil, 2005:75-76) ou do medo de ser magoado (Lowen, 1997:53).
b) A VERGONHA – é não se atrever, é sentir medo de fazer alguma coisa que se
considera perigoso; deriva da necessidade de protecção do eu social (Marina,
2006:127-129).
c) OS ÁLIBIS DO MEDO – “dá muito trabalho”, “não se pode confiar”, “fica para a outra
vez”, “já é demasiado tarde”... (Albisetti, 2003: 39-40).
d) OS “DEVO”, OS “TENHO QUE”, A PERMANENTE ATITUDE DE VÍTIMA – são a outra face
do medo de assumir a responsabilidade pelo que acontece na própria vida
(Jeffers, 1991:40).
e) A PRUDÊNCIA – como antípoda da paixão, mantém a “chama vital” uma saudável
distância (Moore, 2000:26).
f) A PREGUIÇA – como uma forma de medo e o medo com uma das formas
assumidas pela preguiça (Peck, 2002:300).
g) O SENTIMENTO DE CULPA – baseado no medo e na supressão da raiva (Lowen,
1997:93).
h) O STRESS – uma forma de reagir ao medo da mudança e ao medo de assumir a
responsabilidade pelos próprios sentimentos (Hay, 1998:169).

184
i) OS VÍCIOS – formas de encobrir o medo das emoções (Hay, 1998:75).
j) A LUTA PELO PODER – nasce do medo de se sentir impotente (Lowen, 1984:76).
k) A MEGALOMANIA – de quem procura mais ser temido do que ser amado (Russel,
2001:22).
l) O EGOCENTRISMO, O ETNOCENTRISMO E O SOCIOCENTRISMO – de quem se coloca
no centro do mundo e considera como insignificante, secundário ou hostil tudo o
que é estranho ou afastado (Morin, 2002:102).
m) SENTIMENTO DE SOLIDÃO, SUSCEPTIBILIDADE, ESCRUPULOSIDADE, DESPOTISMO,
ARROGÂNCIA, IRRITABILIDADE, INVEJA – são os disfarces de um ego que se sente
ameaçado (Calle, in Olba, 1996:14).
n) E MUITOS OUTROS, como os preconceitos, o controlo de pessoas e situações, o
ciúme, o excesso de comida, a timidez, a vergonha, a agressividade, a
competição, a necessidade desmesurada de sucesso e de dinheiro, também
referidos por estes e outros autores.

Hennezel & Leloup (2001:68) escreviam: “Compreendo absolutamente S. João82


quando diz que o contrário do amor não é o ódio, mas o medo. O amor verdadeiro
afasta o receio, liberta-nos dele”. Estará aqui presente a ideia de que todos os nossos
actos ou são ditados pelo amor, ou pelo medo? Não será por isso que, sem muito
esforço, esta lista de medos disfarçados também poderia chegar rapidamente aos tais
simbólicos “241”?

• Filhos do Medo
O homem (qualquer homem) permanece na prisão durante muitos anos, mesmo que
as grades não estejam fechadas. Ele pode sair, mas durante a sua permanência
aprendeu a temer os possíveis perigos com que se poderia encontrar. Assim,
chegou a sentir uma espécie de segurança e protecção por detrás dos muros em
que esteve preso por vontade própria. A escuridão da prisão impede-o de ter uma
visão clara de si mesmo e não está seguro de como será recebido no mundo que vê
por detrás das suas grades – Powell.

É difícil colocar em poucas páginas tudo o que (tanto em desenvolvimentos bem


sistematizados, como em referências mais ou menos pontuais), aprendi com os
diversos autores sobre as causas e os efeitos do medo. A partir do momento em que se
considera que vivemos numa cultura baseada no medo e que os medos podem nunca
82
S. João. 4,8 – “O perfeito amor afasta o receio”.

185
mais ter fim, parece que nenhum campo de pesquisa, nem nenhuma dimensão
humana, ficam fora do seu estudo ou do alcance da sua influência.

Mas nem sempre é fácil distinguir causa e efeito. Será que sou tímido porque tenho
medo, ou tenho medo porque sou tímido? Será que sou preconceituoso porque tenho
medo, ou tenho medo porque sou preconceituoso? Tendo, por isso, presente o conceito
de medo como fenómeno TRANSACCIONAL83, coloco exemplos do que encontrei como
matéria de reflexão sobre causas individuais e sociais (e políticas) do medo.

1. O ovo e a galinha – causas do medo a nível social e político

Mecanismos de amedrontamento

Marina (2006:43-75) explica que existem mecanismos de amedrontamento que podem


ser utilizados pelo poder (por muitos tipos de poder!) para, pela apropriação da vontade
da vítima, fazer com que esta se submeta à vontade de outrem:

a) A AMEAÇA – demonstra a capacidade de uma pessoa ou instituição provocarem


algum tipo de prejuízo; o medo humilha e a humilhação deixa a vítima com
menos recursos.
- Ameaça de pena por não cumprir uma lei; ameaça de reprovação por não se
estudar para exame; chantagem; extorsão...
b) A SUSPENSÃO DA RECOMPENSA – facilita relações complicadas e destrutivas.
- Medo de uma criança de perder o afecto dos pais; medo de uma mulher que,
sofrendo de violência doméstica, sabe que tem de ser submissa para evitar
os maus-tratos...
c) A PERSEGUIÇÃO – é o poder de, pela repetição sistemática de humilhações,
ameaças e maus-tratos, tornar a vida impossível a outra pessoa.
- Perseguição de uma criança por colegas na escola; perseguição no
trabalho...

83
Com uma causalidade circular difícil de compreender. Ver também neste ponto do capítulo, “Criação de
um segundo cenário de fundo – a palavra da psicologia...”.

186
d) AS MÁSCARAS DE FÚRIA – feitas de gestos, de violência verbal e de gritos com o
intuito de amedrontar outros.
- A fúria como uma forma doméstica de impor o medo...
e) O ISOLAMENTO – obriga a pessoa a romper com os seus vínculos afectivos e
anula a sua possibilidade de comunicação.
- Muito comum em situações de violência de género...
f) A MANIPULAÇÃO DE EMOÇÕES – ridicularizando, suscitando sentimentos de culpa
ou de dependência amorosa; pode ser uma forma suave de intimidar.
- Todos os sedutores são manipuladores afectivos...
g) O MEDO REVERENCIAL – fonte de grandes sofrimentos, é um tipo de amor
misturado com medo por causa da grandeza do outro.
- Presente na religião, na majestade e na honra...

Patologias colectivas do medo

Max-Neef (1993:25) sugere quatro tipos de patologias colectivas do medo que, sendo
intencionalmente provocadas, conduzem ao ressentimento, à apatia e à perda da
autoestima:

a) A CONFUSÃO SEMÂNTICA E OS EUFEMISMOS – usados frequentemente no campo


político (chamando, por exemplo, liberdade e ordem àquilo que é prepotência),
fazem com que as pessoas deixem de compreender e se tornem cínicas,
alienadas ou impotentes, frente à realidade.
b) A VIOLÊNCIA – que perturba a necessidade de protecção e dá origem à
ansiedade.
c) O ISOLAMENTO, A MARGINALIZAÇÃO E O EXÍLIO POLÍTICO – que destroem a
identidade das pessoas e geram sentimentos de culpa.
d) A FRUSTRAÇÃO DE PROJECTO – que, devida a uma intolerância política, aniquila a
liberdade e destrói a capacidade criativa das pessoas.

2. O ovo e a galinha – causas do medo a nível individual

“Todos vivemos na mesma realidade, mas cada um de nós habita o seu próprio
mundo. Um valente e um cobarde não vêem o mesmo (...). Por isso, quando

187
dizemos que o medo é o sentimento desencadeado pela aparição do perigo,
estamos dizendo algo verdadeiro que acaba sendo falso pela sua singeleza (...). A
perigosidade do objecto depende da avaliação que faz o sujeito e esta pode estar
equivocada” (Marina, 2006:16-17).

Fundamentos psicológicos do medo

Num trabalho muito sugestivo sobre o medo e a felicidade, Peña y Lillo (1991:81-118),
apresenta os fundamentos psicológicos do medo que, não sendo mecanismos
totalmente conscientes, constituem as atitudes básicas erróneas responsáveis pela
maioria dos sofrimentos inúteis do homem.

a) ANTECIPAÇÃO IMAGINÁRIA – enquanto percepção antecipada do perigo, o medo é


produto e fruto da imaginação:
- Por vezes mais angustiante na pre-visão e pre-caução em relação à ameaça
do futuro, do que em relação a uma situação real do objecto do medo,
transforma-se num pre-viver e pre-ocupar com o futuro que se teme como se
ele tivesse a proximidade e a premência do presente.
- Tem um poder de auto-realização84 – na sua capacidade criadora de
expansão do espaço e do tempo, incorpora o imaginário no campo do real.
b) CONTAMINAÇÃO DO PRESENTE COM O PASSADO – a leitura do presente é feita
através da utilização ilegítima das experiências do passado. O exagero da
memória, particularmente da memória emocional, pode ser um factor limitador
da plenitude da experiência psíquica.
c) RESISTÊNCIA E RECUSA DO SOFRIMENTO – a infelicidade resulta, em grande parte,
de uma resistência em aceitar o risco e o lado difícil e precário da vida. Para que
o sofrimento e o medo se convertam numa experiência de maturidade, é preciso
aprender o sentido da dor.
d) DESEJO E AMBIÇÃO – o medo surge das falsas expectativas que aprisionam a
vida do homem e submetem a sua liberdade a um conjunto de deveres auto-
impostos.

84
São as profecias auto-realizáveis. Existem dois tipos: as auto-impostas, que ocorrem quando as próprias
expectativas influenciam o comportamento, e as impostas e comunicadas por outros (Adler & Towne,
1999:68).

188
- Apesar de o desejo (enquanto condição natural e necessária da vida), ser
necessário para uma conduta prepositiva e para a criatividade humana, os
desejos inferiores provêm de um eu imaginário e de uma invenção da
consciência que mascara o eu real e se apoia no mundo exterior e nas
expectativas do ego.

Avidyā (compreensão incorrecta)

No Yoga Sütra de Patañjali85 aparece o conceito de AVIDYĀ, um conceito importante


para a compreensão do medo. Significando literalmente “compreensão incorrecta” e
“ignorância”, a avidyā, profundamente enraizada em nós, está relacionada com a forma
como percebemos as coisas86. É composta por quatro ramos que, tanto actuam
individualmente, como em conjunto (Desikachar, 1995:9-11):
a) Asmitā: ego – conduz-nos a pensamentos do tipo “eu sei que tenho razão”,
“tenho de ser o melhor”.
b) Rāga: fazer exigências – queremos alguma coisa hoje porque ontem foi
agradável, não porque necessitemos hoje.
c) Dvesa: rejeitar coisas (o oposto de rāga) – tivemos uma experiência difícil e,
porque temos receio de a repetir, rejeitamos pessoas, pensamentos,
situações.
d) Abhinivesa: medo – estamos inseguros, temos dúvidas sobre a nossa
posição na vida, receamos o julgamento de outras pessoas…

Queremos aquilo com que nos identificamos ou que nos dá prazer (raga = paixão);
rejeitamos e pomos de lado o que consideramos que nos faz mal (dvesha = aversão);
por isso temos medo (ABHINIVESHA) das coisas que nos magoam e temos medo de
perder o que nos dá prazer. Se tivéssemos consciência de quem somos, não teríamos

85
Sistematizado pelo sábio Patañjali, é o texto mais universal sobre Yoga e o registo escrito mais antigo da
cultura da Índia. Está focado na mente, nas suas qualidades e na forma como a podemos influenciar.
86
Desikachar (1005:9-11) explica de que forma a avidyā actua e como faz com que tenhamos tantas
dificuldades na vida: (1) pode ser o resultado acumulado de muitos dos nossos modos de perceber e das
acções inconscientes que, mecanicamente, carregamos ao longo de anos; (2) faz com que a mente se torne
cada vez mais dependente, como se a claridade da consciência fosse coberta por um filtro; (3) confunde o
desagradável com o incorrecto; (4) vai até ao ponto em que as acções de ontem passam a ser as normas de
hoje.

189
medo de nada. A forma de resolver isto é resolver a ignorância – isto é, caminhar no
sentido de perceber quem somos.

Distorções cognitivas

Considerando que não são os acontecimentos que nos movem, mas a valoração que
fazemos deles, Marroquín & Villa (1995:61-70) apresentam as DISTORÇÕES COGNITIVAS87
da comunicação intrapessoal. Estas distorções, porque exageradas e fantasiosas (feitas
com pensamentos ou ideias irracionais, imagens, frases internas ou palavras soltas
que, conscientemente ou não, repetimos sem cessar), desenvolvem uma interpretação
da realidade capaz de gerar muito sofrimento inútil. Três exemplos:
a) FILTRO MENTAL – escolher e fixar-se num detalhe negativo de uma situação
escurecendo o resto da realidade.
b) LEITURA DO PENSAMENTO – julgar adivinhar o que os outros pensam, as suas
motivações profundas e prever os seus comportamentos em relação a nós.
c) ENUNCIADOS “DEVERIA” – tanto dirigidos à própria pessoa, como dirigidos aos
outros.

Estrutura do pensamento

Krishnamurti, além de argumentar que a nossa transformação em seres humanos livres


e diferentes não se faz pela compreensão verbal e intelectual88, considera que os
medos psicológicos têm origem na ESTRUTURA DO PENSAMENTO pois o lugar do

87
As outras distorções cognitivas apresentadas por Marroquín & Villa (1995:61-70):
- Polarização: avaliar as qualidades pessoais em categorias dicotómicas extremas (ou tudo ou nada –
base do perfeccionismo).
- Generalização Excessiva: chegar a uma conclusão a partir de um incidente num momento
determinado.
- Especulação Emocional: à falta de dados objectivos, tomar as nossas próprias emoções como prova
subjectiva.
- Personalização: situar-se no centro de uma qualquer problemática, assumindo a responsabilidade
perante um facto negativo, mesmo sem fundamento.
- Etiquetação: catalogar os outros, ou a si mesmo, de um modo simplista e rígido a partir de um
pormenor isolado ou parcial.
- Catastrofismo: expressar sempre o pior do futuro.
- Evasão de Controlo: perceber a vida como algo sobre o qual não se tem controlo.
88
Também a Bioenergia refere que “por mais que haja conversa ou compreensão, isso não aliviará
significativamente as graves tensões musculares que oprimem a maioria das pessoas. Essas tensões
bloqueiam a expressão dos sentimentos e só podem ser aliviadas através da plena expressão dos
sentimentos” (Lowen, 1997:174).

190
pensamento na vida é uma faca de dois gumes – se for lúcido, é indispensável à vida
quotidiana, à ciência e à tecnologia; mas, se não for, tece uma rede de enganos
(2002:23).

“A memória, a experiência e o conhecimento acumulado constituem o fundo, a base,


de onde surge o pensamento. Portanto, o pensamento nunca é novo, o pensamento
é sempre velho; o pensamento nunca pode ser livre, porque está preso ao passado
e é, portanto, incapaz de ver qualquer coisa realmente nova. Quando nos
apercebemos disto muito claramente, a mente torna-se serena, silenciosa. A vida é
movimento, um constante movimento em relação e quando o pensamento procura
impedir esse movimento, prendendo-se ao passado, como memória, fica com medo
da vida” (Krishnamurti, 2002:28).

Relação entre medo, percepção e organização do campo perceptual (auto-conceito,


relação com os outros, visão do mundo)

Premissas:
1. Os sentimentos permitem a percepção do objecto, a percepção do estado
corporal, a percepção das modificações de estilo e eficiência do pensamento
(Damásio, 2003).
2. “A PERCEPÇÃO é uma fonte primária de conhecimento do mundo” (Hacker,
1998:45).
3. A ORGANIZAÇÃO DO CAMPO PERCEPTUAL DA PESSOA, depende de dois conjuntos
de factores (Guenther & Combs, 1980:93ss):
a. De estímulos sensoriais, valores, necessidades, objectivos relevantes,
informação, conceitos, ideias, eventos passados guardados na memória
e evocados por serem pertinentes na situação actual.
b. Da orientação perceptual, isto é, da “maneira individual e única de
perceber que a pessoa desenvolveu através da sua experiência de vida”.
A orientação perceptual inclui:
i. as percepções que a pessoa tem DE SI MESMA (o AUTOCONCEITO);
ii. as percepções que a pessoa tem DAS OUTRAS PESSOAS;
iii. a percepção que a pessoa tem DA REALIDADE FÍSICA E SOCIAL.
4. “O COMPORTAMENTO é uma função do campo perceptual da pessoa no momento
em que é emitido como comportamento” (Guenther & Combs, 1980:93 ss).

191
Neste enquadramento, passo a apresentar algumas das muitas situações em que, de
forma directa ou indirecta, diversos autores estabelecem uma relação entre as causas e
vivências do medo e a percepção-sentimento-conceito de si mesmo, dos outros e do
mundo.

a) EXPOSIÇÃO PROLONGADA A UM AMBIENTE HOSTIL – traumas de infância e a


permanência numa relação psicológica ou fisicamente violenta, tanto no campo
pessoal como profissional, produzem uma hipervigilância que leva a
experimentar a vida através das lentes do medo e da ansiedade (Moffitt,
2003b:3).

b) DEFICIENTE AUTO-ESTIMA, CRENÇAS NEGATIVAS EM RELAÇÃO A SI MESMO,


LIMITAÇÕES APRENDIDAS NO PASSADO – evidenciam-se num crítico interno que
desvaloriza os próprios pontos de vista e utiliza estratégias de auto-
desvalorização, de adiamento e de perfeccionismo; consubstanciam-se em
dúvidas e medos da desaprovação, do fracasso e do erro (Aldana, 1996:60).

c) SENTIMENTOS DE ESTIGMATIZAÇÃO E A NECESSIDADE DE SER NORMAL – porque a


sociedade categoriza as pessoas e os atributos considerados comuns e normais
para os seus membros, a pessoa estigmatizada, não habilitada para a aceitação
social plena, sente muitas vezes que está em “exibição” e tem tendência a
tornar-se desconfiada, deprimida, hostil, confusa e ansiosa (Goffman,
1982:11;22).

d) A CULPA COMO SENTIMENTO DE NÃO TER O DIREITO DE SER LIVRE, COMO SENSAÇÃO
DE NÃO ESTAR À VONTADE NO PRÓPRIO CORPO – o comportamento é controlado
por um superego que, funcionando abaixo do nível de consciência, não permite
aperceber que as limitações das acções e dos sentimentos não decorrem do
livre-arbítrio, mas da interiorização do genitor ditatorial (Lowen, 1997:15).

e) ARQUÉTIPO DO GUERREIRO POUCO ACTIVADO – o “Guerreiro89” é o que defende os


limites dos “reinos” internos e externos; se estiver pouco activado, há mais

89
Enquanto símbolos com origem no inconsciente colectivo (conjunto herdado de todos os impulsos e
energias inconscientes partilhados pela humanidade), mas também enquanto modelos de desenvolvimento

192
dificuldade em perder o medo do conflito e em superar as desculpas com que
evita fazer frente às responsabilidades vitais (Aldana, 2000:79).

f) IGNORAR A CAPACIDADE DE RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS – uma das principais


causas do medo do novo, do desconhecido, da mudança e da liberdade é o
desconhecimento de que das crises surgem oportunidades de aprendizagem e
de abertura a novas possibilidades (Feitosa, 2006:62).

g) DETERMINISMO DAS CONVICÇÕES E CRENÇAS – impondo a força do sagrado, do


dogma e do tabu, tem uma força coerciva que suscita conformismo, rigidez,
bloqueios e medo (Morin, 2002:32).

h) PERDA DE CONTACTO COM A VIDA INTERIOR – a azáfama, o auto-desconhecimento,


o afastamento do self90 profundo, o viver exclusivamente para o exterior, a
prisão ao reino conhecido dos factos, a falta de familiaridade com os modos de
actuação da vida interior impedem a atribuição de sentido à vida e a descoberta
da segurança emocional (Moore, 2000:16-23).

3. O ovo e a galinha – efeitos do medo


“Podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real
tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz” – Platão91

O medo produz um TRIPLO ESTREITAMENTO NA CONSCIÊNCIA (Marina, 2006:24):


a) Um ESTREITAMENTO CORPORAL – o corpo é sempre sentido como uma vivência
opressiva; a palavra angústia, por exemplo, indica impossibilidade de respirar
com amplitude.
b) Um ESTREITAMENTO PSICOLÓGICO – o mundo é visto como um lugar de ameaça,
os estímulos neutros são percebidos como perigosos; dá-se uma visão de túnel,
a atenção está sempre dependente da ameaça.

pessoal, os arquétipos são facetas da personalidade que cada pessoa activa, em maior ou menor grau,
segundo as circunstâncias da sua história de vida (Aldana, 2000).
90
Self – expressão utilizada por Moore para significar as necessidades ou potencialidades internas da
pessoa; diferente do ego que está em contacto com a realidade externa e é dotado de consciência, intenções
e vontade de controlo (Moore, 2000:7)
91
www.pensador.info/p/resumo_livro_quem_tem_medo_do_escuro/1/

193
c) Um ESTREITAMENTO CONDUTIVO – todas as energias se concentram para,
estando em alerta máximo, poder fugir ou realizar rituais que,
momentaneamente, libertem da angústia.

Assim, e não esquecendo a PERSPECTIVA TRANSACCIONAL com que o fenómeno do


medo precisa ser entendido, retomo os três elementos da organização do campo
perceptual (auto-conceito, relação com os outros e visão do mundo), atrás colocados
nas causas do medo, para agora, também a partir deles, perceber o alcance dos seus
efeitos.

Autoconceito
O medo na relação da pessoa consigo
mesma
Relação Visão
do
com os
outros mundo
Para Lowen (1997:163), a tensão crónica
é a equivalente física do medo. Mesmo
que a pessoa não esteja disso consciente,
Ilustração II.6 – A ligação entre o medo qualquer músculo cronicamente tenso
e a organização perceptual.
está em estado de medo. É aquilo a que
normalmente se chama “estar petrificado de medo”, “estar morto de medo”, etc. Três
dos exemplos apresentados pelo autor:

a) O medo de se entregar provoca TENSÕES que prendem e restringem – boca


contraída, maxilar projectado, ombros erguidos, pescoço contraído, peito inflado,
ventre encolhido, pelve imóvel, pernas presas, pés estreitos (164).
b) A angústia emocional leva as pessoas a queixarem-se de DORES NA REGIÃO
LOMBAR e a apresentarem SITUAÇÕES DE DISSOCIAÇÃO DO CORPO, de refúgio na
cabeça e de INSENSIBILIDADE (168).
c) A raiva e o medo da raiva (que está no centro do medo de se entregar) dão
origem a TENSÕES NA BASE DA CABEÇA. Os impulsos emocionais sobem pelas
costas, são bloqueados na base do crânio e, para que o impulso não irrompa,
colocam como que uma tampa sobre o topo da cabeça (177).

194
De acordo com Neill (1971:123, 194), já Reich (de quem Lowen foi discípulo), tinha
chamado a atenção para o facto de que uma criança que viva numa situação
permanente de medo passa a vida a tomar o fôlego e a retê-lo. O medo de ser rejeitado
ou abandonado por chorar, gritar ou por ser muito exigente, cria a incapacidade de
RESPIRAR encontrada em muitos asmáticos. Pelo contrário, a respiração livre e fluida
indica que não se tem medo da vida.

E porque sou mulher, não quero deixar de também trazer aqui um extracto do livro
“Corpo de Mulher, Sabedoria de Mulher”, de Christiana Northrup, médica ginecologista-
obstreta. Trata-se de um livro em que a autora analisa as áreas do corpo feminino e em
que, cruzando os problemas de saúde com comportamentos e circunstâncias de vida,
explica a forma como aqueles podem ser afectadas pelo estado emocional e
espiritual92. E se é certo que em nenhum lugar do texto aqui transcrito se lê a palavra
“medo”, não será difícil perceber como ele está subjacente a todo o seu sentido:

92
Outros autores também estabelecem relações deste tipo. Bourbeau (2004), por exemplo, considera que
um mal-estar ou uma doença são uma advertência para que tomemos consciência de que se atingiu o limite
físico, emocional ou mental. Partindo de uma perspectiva holística que impede dissociar a pessoa, esta
autora apresenta as causas profundas (não orgânicas) de um número larguíssimo de doenças. São tantas as
referências relacionadas com o medo que me limito a colocar algumas das, aparentemente, mais comuns ou
mais conhecidas:
ANOREXIA E BULIMIA – a primeira está ligada ao medo da rejeição, a segunda está ligada ao medo de ser
abandonado; produzem-se muitas vezes em pessoas rígidas que não estão em contacto com as suas
necessidades e não se permitem realizar os seus desejos (79).
CÃIBRA – produz-se muito em quem, por medo, se quer agarrar a alguma coisa ou a alguém (88).
DIARREIA – relacionada com o medo de não ter alguma coisa, ou de não fazer o bastante, de fazer mal, ou
de fazer em demasia; a sensibilidade emotiva está desordenada e a pessoa tende a rejeitar uma dada
situação quando nela é confrontada com os seus medos (140).
DOR NO PESCOÇO – a rigidez do pescoço que impede voltar a cabeça denota a inflexibilidade de uma pessoa
que tem medo de ver ou ouvir o que se passa nas suas costas (311).
FADIGA – quando é frequente e sem razão aparente, está relacionada com situações de pensamentos cheios
de preocupações e de medos que bloqueiam e desgastam a energia. (180)
LARINGITE – leva à perda de voz e indica que a pessoa evita falar porque tem medo de não ser ouvida, ou
porque receia desagradar a alguém; a pessoa engole as palavras que ficam presas na garganta e podem
causar dores (238).
MAGREZA – a pessoa rejeita-se, sente-se pequena comparada com outros, tem medo de ser rejeitada e quer
muitas vezes desaparecer – é do género apagado e muito delicado com os outros (249).
OBSTIPAÇÃO – está relacionada com a abstenção de dizer ou fazer alguma coisa com medo de desagradar,
de perder alguém ou alguma coisa (276).
PESADELO – é a manifestação do inconsciente em relação a um medo que não é, ou não quer ser, consciente
(309).
PROBLEMAS DE ESTÔMAGO – estão relacionados com a intolerância e o medo perante o que não se gosta
(172).

195
“(…) Os fibromiomas* representam a nossa criatividade à qual nunca se deu asas,
incluindo imagens de “fantasia” de nós próprias que nunca alcançaram a luz do dia e
segredos criativos dos nossos outros “eus”. Os fibromiomas também se desenvolvem
quando gastamos energia de vida para fins inúteis como empregos ou relações que já
pusemos de parte. (…) Os fibromiomas estão frequentemente associados a conflitos
relacionados com criatividade, reprodução e relações. (…) O facto de tantas mulheres
apresentarem estes tumores é, talvez, uma evidência da nossa energia criativa
colectivamente bloqueada da nossa cultura” (Northrup, 2004:177).

Finalmente, e porque o medo é uma “violência da pessoa contra si mesma” (Moffit,


2003b), as suas influências não se circunscrevem ao corpo físico. Alguns exemplos de
outros efeitos que, aliás, até poderiam engrossar a lista de os “outros rostos do medo”:

a) ADIAR sistematicamente o agir, uma REDUÇÃO DOS MOVIMENTOS próprios da


exploração, do investimento afectivo, da liberdade corporal, da espontaneidade
e do desejo… (Gil, 2005:87,69).
b) Sentimento de INSEGURANÇA latente e um APEGO a coisas exteriores que o
dinheiro pode comprar (Chopra, 2005:68).
c) Inquietação, fadiga da vida quotidiana e AMOR DA AGITAÇÃO (Russel,
2001:73,76).
d) PERDA DE CONTACTO COM A VERDADEIRA NATUREZA, a substituição da auto-
referência (em que o ponto de referência interior é constituído pela nossa própria
alma), pela referência ao objecto (em que as influências vêm do que acontece
fora de nós – situações, circunstâncias, pessoas ou coisas) (Chopra, 2005:55).
e) IRRESPONSABILIZAÇÃO perante a própria vida (Trigo & Kon-Traste, 2001:24).
f) DIMINUIÇÃO DA CAPACIDADE DE VIVER e gozar a plenitude da vida (Peña y Lillo,
1991:23; Lowen, 1997:163 e ss).
g) Viver num ESTADO PERMANENTE DE DESAPONTAMENTO só porque se tem medo do
desapontamento (Moffit, 2000a).
h) DILEMA entre a necessidade profunda de comunicação interpessoal e o medo da
rejeição e da incompreensão que leva à SOLIDÃO e ISOLAMENTO profundo em que
tanto se vive (Marroquín & Villa, 1995:88).
i) PERTURBAÇÃO IRREMEDIÁVEL DA BUSCA DO SER MAIS (Freire, 2003:75).

196
O medo na relação com os outros

“Todas as pessoas que sentem medo, criam bem no fundo um grande ego à volta do
medo e estão sempre a bombear mais ar para esse balão do ego que se torna
demasiadamente grande. Adolfo Hitler, Idi Amin do Uganda – esse tipo de gente fica
muito inchada de orgulho. Depois começa a meter medo aos outros. Alguém que tenta
meter medo a alguém sabe que, bem no fundo de si, também tem medo, caso contrário
porquê? (…) As pessoas que têm medo metem medo aos outros para se sentirem bem”
(Osho, 2002b:143).

Os efeitos do medo na relação com os outros estão em grande consonância com os


efeitos do medo na relação da pessoa consigo mesma. Por isso, e sem mais
desenvolvimento, listo alguns dos efeitos do medo recolhidos em Dreher (2000), Jeffers
(1991) e Feitosa (2006):

- Acusação de outros - Intolerância da - Queixa permanente


- Ciúme independência dos - Relação de
- Comparação entre as outros dependência
pessoas - Inveja - Tentativa de controlo
- Exigência excessiva - Necessidade de de outras pessoas
- Intimidação aprovação - Vingança

O medo e a visão do mundo

A crise da utopia e da perda da capacidade de sonhar; o derrotismo e a desmobilização;


o individualismo exacerbado e o cinismo; o medo gerando a violência e a violência
gerando o medo (Max-Neef, 1993). São as pessoas que, sentindo-se vítimas de um
mundo hostil,
“ (...) não podem dar genuinamente. Estão imbuídas por um sentido profundo de
escassez no mundo, como se nada à sua volta fosse suficiente. Amor insuficiente,
dinheiro insuficiente, reconhecimento insuficiente, atenção insuficiente – simplesmente
93
insuficiente” (Jeffers, 1991:172) .

93
“People who fear can’t genuinely give. They are imbued with a deep-seated sense of scarcity in the
world, as if there wasn’t enough to go around. Not enough love, not enough praise, not enough attention –
simply not enough” (Jeffers, 1991:172).

197
Neill (1971:118) sentencia: “somente o ódio pode florescer numa atmosfera de medo”.

1.3 Síntese do medo

Ilustração II.7 – Do domínio do medo sobre a acção ao medo impulsionador da acção.

1.
O medo, estado psicológico e mecanismo natural, inscrito de forma indelével no mais
profundo do nosso ser, é nosso eterno companheiro de viagem – enquanto emoção, é
uma resposta reflexa a determinados estímulos; enquanto sentimento, permite a criação
de uma estratégia alargada de protecção (Damásio, 1995; 2000). Por isso, o medo,
quando saudável, pode ser uma chamada para a acção e o impulsionador dos nossos
maiores feitos.
Entendo que é exactamente isto o que, na sabedoria popular, significa “tirar o
medo", e se expressa como “refrescar”, “realentar”, “desenvolver” ou “animar”
(Bivar, 1948) – o que, há muitas páginas atrás, congreguei numa única categoria
que denominei “repor vida”.

2.
Enquanto que, por um lado, o medo produz um triplo estreitamento na consciência
(corporal, psicológico e condutivo) (Marina, 2006:24), por outro, “todo o acto
verdadeiramente humanizado deverá estar impregnado de intenção* e a sede da
intenção é a consciência” (Feitosa, 2006:58). Por isso, o medo, relacionado como está
com a forma como percebemos as coisas, pode desencadear um conjunto diversificado
de comportamentos que, por ausência de intencionalidade* operante (isto é, por não se
traduzir em consciência, inquietação, auto-orientação, expressão de si mesmo, abertura

198
à experiência da vida, aceitação dos outros e de si mesmo) são “acção sem sentido,
mera agitação ou capricho” (Sérgio, 2005b:19).
Julgo que é exactamente isto o que, na sabedoria popular, são outros nomes do
medo: “estreiteza”, “enleio”, “tremelica”, “atamento” (Bivar, 1948) – o que,
também há muitas páginas atrás, identifiquei na construção de categorias dos
sentidos lexical e analógico como “ausência de paz”, “perda de identidade” e
“perda de energia vital”.

3.
São múltiplas as formas com que o medo se manifesta:
- Manifesta-se na nossa cultura que, não sendo capaz de apoiar as imensas
possibilidades da vida humana, se empenha, porque convém ao seu sistema, em
padronizar os homens (Boff, 1998).
- Manifesta-se em todas as formas de poder coercivo (político, económico, intelectual,
hierárquico...) que detém o poder sem autoridade e que, por um lado, se gera
resistência, por outro, gera gente estúpida, apática e descomprometida (Moffit,
2003b).
- Manifesta-se no contentamento individual e social expresso na analogia do slogan
publicitário “rabinho seco, bebé feliz” (talvez o formato moderno do “pão e jogos” da
era romana), produzido por uma sociedade de consumo cheia de coisas e de
barulho, criadora de dependências, angariadora de multidões e de falsas
identidades, vivendo para a imagem, mas vazia de sentido de vida (Guenther &
Combs, 1980; Cashman, 2000).
- Manifesta-se na mentira, no insulto, no desprezo, na inveja, na indiferença e na
atitude blazé de quem acha nada ter a aprender e a receber (Gil, 2005).
- Manifesta-se na excessiva racionalização que evita a sensibilidade do corpo, das
emoções e do espírito (Lowen, 1997).
- Manifesta-se na saúde individual e colectiva, na rigidez, nas tensões e doenças
crónicas (Lowen, 1984; Bourbeau, 2004).
- Manifesta-se na atitude de queixa permanente, na mentalidade de vítima, mas
também na incapacidade de nos interessarmos suficientemente por nós próprios
(Aldana, 1996).
- Manifesta-se numa moral que gere, predominantemente, sentimentos de culpa, em
vez de gerar sentimentos de acção e criação (Lowen, 1997).

199
- Manifesta-se nos talentos não potenciados que ficam eternamente escondidos (Mt,
25, 24-30).
- Manifesta-se na busca desenfreada do “prazer”, do “curtir”, das sensações fortes e
das emoções superficiais.
- Manifesta-se..., manifesta-se…., manifesta-se….

4.
Não podemos mudar o que sentimos, mas, de acordo com o significado atribuído a
cada experiência, podemos mudar a nossa forma de agir (Goleman, 2005). Por isso, e
parafraseando Sartre, o importante, não é tanto procurar saber o que o medo nos faz a
nós, mas procurar descobrir o que somos capazes de fazer com aquilo que o medo fez
ou faz em nós. É o desafio de, percebendo quem verdadeiramente somos,
caminharmos no sentido da (dis)solução de mais um par de opostos: o encontro da
nossa horizontalidade, da nossa matéria, com a nossa verticalidade, a nossa
transcendência.

5.
Tentando relacionar a parte e o todo, no texto abaixo colocado encontro um exemplo do
paralelo que se possa estabelecer entre os movimentos de procura-exploração-
curiosidade e de recuo-imobilização-fechamento do nosso organismo (Damásio, 1995)
e o afã por se libertar do medo que está presente nos ciclos que traçam a história da
humanidade (Marina, 2006:9):

“Podia ver que a longa história da humanidade iria ser impelida por estes dois anseios
contraditórios. Por um lado, ultrapassaríamos os nossos medos devido à força das
nossas intuições, devido às nossas imagens mentais de que a vida se relacionava com o
atingir de uma determinada meta, com o fazer progredir a cultura numa direcção positiva
que apenas nós, como indivíduos, agindo com coragem e sabedoria, poderíamos
inspirar. (…) Por outro, seríamos amiúde dominados pelo outro anseio oposto, o anseio
de nos protegermos do Medo, por vezes perdendo de vista o objectivo, caindo na
angústia da separação e do abandono. Este Medo iria conduzir-nos a uma
autoprotecção receosa, lutando para mantermos as nossas posições de poder, roubando
energia uns aos outros e opondo sempre resistência à mudança e à evolução, sem
tomarmos em consideração as informações novas e melhores que pudessem estar ao
nosso dispor” (Redfiel, 2005:118).

200
1. medo do sofrimento 44. medo de expressar-se 88. medo de inscrever
2. medo de conhecer 45. medo da dor 89. medo de acreditar
3. medo de arriscar 46. medo da intimidade 90. medo de criar
4. medo de ter medo 47. medo da perda de amor 91. medo de perder o controlo da
5. medo de sofrer 48. medo da perda da segurança situação
6. medo de ser derrotado 49. medo da vida 92. medo do rival
7. medo do fracasso 50. medo de causar uma impressão 93. medo de ser apontado como
8. medo de ser criticado que não corresponda à auto- incompetente
9. medo da desilusão imagem 94. medo do poder
10. medo da perda 51. medo de parecer incapaz 95. medo da impotência própria
11. medo de si mesmo 52. medo do inesperado perante o poder
12. medo das pessoas que nos 53. medo de ser rejeitado 96. medo de ser desmascarado
desejam o mal 54. medo da represália 97. medo de parecer ter medo
13. medo do confronto 55. medo de um futuro colapso 98. medo do eu desconhecido
14. medo de dizer não 56. medo do desconhecido 99. medo de parecer fraco
15. medo de não conseguir levantar 57. medo do colega 100. medo de perder alguma coisa
16. medo de se envolver 58. medo do sucesso 101. medo de parecer ignorante
17. medo do silêncio 59. medo de cair 102. medo de “ir a exame”
18. medo de enfrentar a 60. medo da hierarquia 103. medo de ser julgado
interioridade 61. medo do castigo 104. medo de escolher
19. medo de parecer medíocre 62. medo da desaprovação 105. medo do vazio
20. medo de ser passivo 63. medo de Deus 106. medo de sair
21. medo de desiludir 64. medo da pobreza 107. medo de ser apontado a dedo
22. medo das minhas sombras 65. medo do ridículo 108. medo de ser punido
23. medo de ser activo 66. medo de ser eu 109. medo de fazer amigos
24. medo dos adultos 67. medo de fantasmas do passado 110. medo de perder o emprego
25. medo de ser o que não sou 68. medo de lutar 111. medo de não saber
26. medo de parecer ser 69. medo de ser despedido 112. medo da exclusão
27. medo de saber o que os outros 70. medo de morrer 113. medo de perder
pensam 71. medo de doenças 114. medo do medo vir à tona
28. medo da própria interioridade 72. medo de se abrir 115. medo de ser visto por todos
29. medo de não ser perdoado 73. medo dos começos 116. medo do aborrecimento
30. medo de envelhecer 74. medo dos fins das coisas 117. medo de “não estar à altura”
31. medo de se perder 75. medo de ficar parado 118. medo de ser descoberto
32. medo de não ter dinheiro 76. medo de falhar 119. medo de se tornar indesejável
33. medo do prazer 77. medo de viver 120. medo da opinião pública
34. medo de tomar decisões 78. medo de estar só 121. medo de ser considerado
35. medo da imaginação 79. medo de aborrecer perverso
36. medo da mudança 80. medo de decidir 122. medo do aborrecimento
37. medo do risco 81. medo de chorar 123. medo dos estranhos
38. medo da verdade 82. medo de rir 124. medo da liberdade
39. medo do abandono 83. medo de amar 125. medo de nós próprios
40. medo da solidão 84. medo de se comprometer 126. medo da luz
41. medo de ser avaliado 85. medo de sofrer uma decepção 127. medo da insegurança de amar
42. medo de perder a cabeça 86. medo da violência 128. medo de tomar uma postura
43. medo da entrega 87. medo de agir firme

201
129. medo de ver 172. medo de falar em público 206. medo de começar a nossa
130. medo de ouvir 173. medo de se magoar própria viagem
131. medo de sentir 174. medo de não ser aceite 207. medo de sermos espirituais
132. medo do compromisso 175. medo de não suportar algo que 208. medo de saber que somos
133. medo de ser feliz mata um pedaço dentro de nós amados por Deus
134. medo da responsabilidade 176. medo da angústia 209. medo de perder o outro
135. medo de ser livre 177. medo da saudade 210. medo de não me saber proteger
136. medo de que magoem quem 178. medo de não conseguir 211. medo de não ser valorizado
amo ultrapassar uma fase difícil 212. medo de não estar
137. medo de brincar 179. medo da novidade suficientemente seguro
138. medo de ter fé 180. medo de voar mais alto 213. medo do outro
139. medo de crescer 181. medo de mudar 214. medo de ficar só
140. medo de existir 182. medo de sair magoado 215. medo da possibilidade de
141. medo de experimentar 183. medo de não me rever no que acontecer
142. medo de sonhar mostro 216. medo de que os outros não
143. medo do que se sente 184. medo de ficar infeliz gostem
144. medo de pedir ajuda 185. medo de perguntar 217. medo da reacção dos outros
145. medo de ser diferente 186. medo de confiar 218. medo de me ouvir
146. medo de estragar 187. medo de reconhecer que não 219. medo de deitar para fora tudo o
147. medo de relaxar me conheço que sinto
148. medo de falar 188. medo de inovar 220. medo que me roubem os meus
149. medo de dizer o que se pensa 189. medo de renascer segredos
150. medo de se expor 190. medo de me sentir diminuído 221. medo de me exprimir perante
151. medo de ter tempo 191. medo de me expor muitas pessoas
152. medo de não estar à altura 192. medo de mudar da 222. medo da recriminação
153. medo do que vão dizer de nós superficialidade para um âmbito 223. medo de magoar
154. medo do nosso semelhante mais próximo do outro 224. medo de um caminho que não
155. medo da ameaça 193. medo de se implicar se sabe onde vai dar
156. medo de contar um segredo 194. medo de ser o que se é 225. medo de se perder o que se
157. medo do sobrenatural 195. medo do confronto cognitivo acredita ter
158. medo de viver em sociedade 196. medo de expor a minha criança 226. medo de se analisar a si mesmo
aberta indefesa 227. medo de fazer figura de parvo
159. medo de dizer o que sente 197. medo de não ser compreendido 228. medo das expectativas das
160. medo de falar dos medos 198. medo de ser gozado outras pessoas
161. medo de ser vítima 199. medo de mandar 229. medo do desapontamento
162. medo de reclamar os próprios 200. medo de sermos nós mesmos 230. medo do fim das coisas
direitos 201. medo do oculto 231. medo de ser estigmatizado
163. medo de falar a verdade 202. medo de tocar 232. medo de cenas violentas
164. medo de se desnudar 203. medo de sermos únicos e 233. medo do estranho
165. medo do conflito irrepetíveis 234. medo do aborrecimento
166. medo do novo 204. medo de assumir a 235. medo da instabilidade
167. medo do futuro responsabilidade de sermos 236. medo de expressar sentimentos
168. medo de se olhar ao espelho nós próprios 237. medo de protestar
169. medo de perder o que se 205. medo de aceitar as partes que 238. medo de defraudar
acredita ter estão na sombra, fracas, 239. medo de se sentir culpado
170. medo da humilhação miseráveis, de nós mesmos 240. medo de gritar
171. medo do desapontamento 241. medo de respirar

202
2. O Desenvolvimento Humano

2.1 A Inquietação do Ser


Viver é não ter vergonha de ser feliz
Cantar a beleza de ser um eterno aprendiz
Eu sei que a vida deveria
Ser bem melhor e será
Mas isto não impede que eu repita
É bonita, é bonita e é bonita.
Luís Gonzaga Jr.

Porque “eu sou eu mais as minhas circunstâncias” (Ortega y Gasset94), depois de ter
trabalhado o Medo, e de aí ter encontrado muitos dos factores que constantemente
condicionam e sugam os nossos pés para a terra das nossas vicissitudes, agora, para
trabalhar o Desenvolvimento Humano, preciso perceber “quem sou” e “de onde venho”
– para que, com os pés pisando firme na terra e mantendo os olhos postos no sol e no
céu95, possa, também na linha de Ortega, “salvar as minhas circunstâncias e salvar-me
a mim”. Volto, por isso, a colocar a pergunta que já atrás tinha colocado: Somos filhos
de quem ou do quê? Que outra filiação nos pode garantir um novo rumo e o sentido de
eternidade?

E procuro na mais simples lei da Física, a de Lavoisier (aquela, tantas vezes a única,
que muitos estudantes nunca esquecem, mas que, provavelmente, não
compreendem/os verdadeiramente em toda a sua extensão), uma explicação para as
nossas origens e para o nosso destino:

“NADA SE CRIA, NADA SE PERDE, TUDO SE TRANSFORMA”.

O que encontro a partir daqui? O fantástico BIG BANG do universo de há biliões de anos,
com uma natureza e razão de ser ainda não compreendidas... A nossa Via Láctea entre
milhares de milhões de outras galáxias... O SOL, o ar... o planeta TERRA, o magma, a

94
http://en.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Ortega_y_Gasset.
95
E, pela junção do céu e da terra, formar o sete da totalidade. Porque que a terra é simbolizada pelo
número 4 (dos pontos cardeais) e o três simboliza o céu (Chevalier, 1994). Aliás, mais adiante,
desenvolverei a ideia dos sete corpos, dimensões ou tons presentes no homem e que, de acordo com os
antigos, é reflexo da constituição septenária no homem e no Cosmos (Bohórquez & Trigo, 2006; Angel
Livraga, 1994).

203
água, as rochas... A VIDA, os dinossauros, os mamíferos, os primatas... E, há três
milhões de anos, O HOMO... (Boff, 1998; Ribeiro Dias, 2000).

Então, se dessa explosão inicial, e na imensa cadeia de transformação que se lhe


seguiu, nada mais se criou, nada mais se perdeu, mas tudo se transformou, “cada eu de
nós” já estava lá!

Mas, que “cada eu”? Que humano? Que Homo?

Big Bang

Milhares de Milhões de Galáxias

Estrelas – Sol – Planetas

Planeta Terra

Oceano de Água

Continentes

Diluição do manto de poeira e o nascer e o pôr do sol de cada dia

A VIDA

O primeiro Anfíbio

Os Mamíferos

A primeira ordem dos Primatas

O HOMO

Ilustração II.8 –“Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.


A partir de Boff, 1998 e Ribeiro Dias, 2000.

• Filhos do Sol

Em Maturana descubro a origem do humano no EMOCIONAR DO AMOR. “Nós somos


biologicamente diferentes dos chimpanzés (...) porque pertencemos a uma história de
conservação do amor como fundamento do nosso conviver” (Maturana, 2000:74). Isto é,
descubro os seres humanos, desde a sua origem:

- Vivendo em pequenos grupos, de cerca de cinco a oito indivíduos de todas as


idades.
Por isso ainda hoje vivemos na INTIMIDADE de pequenos grupos, mesmo quando
pertencemos a grandes comunidades.
- Compartilhando a comida numa transferência directa de um indivíduo para outro.

204
Por isso a nossa história de conservação do PARTILHAR como uma maneira de
viver.
- Participando nos cuidados dos filhos, brincando em contacto corporal,
carregando, dividindo com eles, estando atentos.
Por isso o prazer e a alegria de CUIDAR dos nossos filhos.
- Sendo animais sensuais, acariciando, tocando, desfrutando do CONTACTO
CORPORAL.

Por isso o bem-estar fisiológico que nos vem das carícias das mãos, da pele, da
voz, do olhar, das palavras.

Em Moltmann descubro a humanidade da vida numa VIDA INTERESSADA E PARTICIPANTE


NUMA OUTRA VIDA:

“A vida humana não será nunca vivida simplesmente à toa como vivem os animais. (...)
A pessoa estará viva na medida em que está interessada na vida e participa numa outra
vida, confirmando a vida comum e ABRINDO-SE COM TODOS OS SENTIDOS à aventura da
vida. (...) Quando não se ama mais, mesmo a si próprio, quando nos tornamos
indiferentes e não partilhamos nada com ninguém, morremos. Paralisa-se o corpo
vivente na apatia da alma (...) Enquanto estás interessado estás vivo. Amortece o teu
interesse pela vida, e começas a morrer.
(...) A vida humana é biológica, tal como outra vida que a si mesmo se reproduz. A
humanidade desta vida consiste no facto de que ela é recebida, afirmada e que ela é
enquanto tal uma vida interessada. A força para se ser pessoa reside na TOTAL
AFIRMAÇÃO e no AMOR SEM RESERVAS a esta frágil e mortal vida” (Moltmann, 2007:87).

E em Boff descubro o princípio da RECIPROCIDADE-COMPLEMENTARIDADE entre as


espécies, os ecossistemas e o universo inteiro – o que faz com que a nossa realização
pessoal também dependa da realização do nosso mundo:

“No universo todos os seres existem e vivem uns pelos outros, com os outros, nos outros
e para os outros. Ninguém está fora desta relação includente. Mais fundamental que o
princípio de sobrevivência do mais forte (Darwin) é o da SOLIDARIEDADE-AMOR de todos
para com todos (Bohr). É esse amor solidariedade que constitui a grande comunidade
cósmica, terrenal e humana. É ele que dá origem também ao princípio da
RECIPROCIDADE-COMPLEMENTARIDADE. Um ajuda reciprocamente o outro a existir e a se

205
desenvolver. Todos se complementam e crescem juntos: as espécies, os ecossistemas
e o universo inteiro” (Boff, 1998:92).

• Todos os nomes do SER

São muitos os termos utilizados pelos diferentes saberes para se referirem a esta
dimensão mais interior do homem que explica a sua capacidade de superação e de
criação de novos ciclos de vida e o sentido da sua transcendência. Escolhi apresentar
sete. Se foi este o número que usei para alinhar “todos os rostos do medo”, também
agora o vou usar para encontrar “todos os nomes do Ser”.

1. Eu Real – Self Interior – Pessoa Pública

Para a compreensão do nosso sentido de identidade, Phillip Moffit (2003a) explica a


relação que se estabelece entre Pessoa Pública, Self Interior e Eu Real:

A PESSOA PÚBLICA ou IDENTIDADE EXTERIOR:


- É uma necessidade psicológica e social que se desenvolve automaticamente desde
a infância e ao longo da idade adulta. Não é a identidade verdadeira, mas o
resultado da interacção, ou fricção, entre as nossas experiências interiores e
exteriores.
- Inclui o conjunto de qualidades que se apresenta aos outros como sendo “eu”
(simpático, competente, modesto…), e que exteriormente parece sólido, consistente
e imutável.
- Existe um filtro que (na medida do possível, e a partir dos milhares de pensamentos,
impulsos e sensações corporais que diariamente se experimentam), escolhe a
identidade que se quer revelar ao mundo.

O SELF PRIVADO ou IDENTIDADE INTERIOR:


- É tanto “o que conhece”, que reconhece e responde aos estímulos, como “o objecto”
do próprio conhecimento. Isto é, como cada um conhece e experimenta a vida
dentro de si mesmo.

206
- É parte do eu, uma interpretação da vida pessoal, subjectiva e única, mas, por isso,
também cria a separação entre as pessoas e é fonte de todo o sofrimento.
- Possui muitas características e sentimentos que podem entrar em conflito entre si e
que não são revelados na pessoa pública porque a tornam vulnerável, ou não são
aceites socialmente.
- Tal como a pessoa pública, é impermanente.

O EU REAL
- É a consciência da experiência de nos sentirmos um com o Absoluto – Deus,
Brahman, Vazio…
- É a capacidade de conhecer o Absoluto tal como este se manifesta na natureza e
em tudo o que está no mundo. É a experiência de um “coração desperto”. É a
experiência da vida sem medo ou vontades. É o sentimento de se estar vivo, ligado
à vida.

2. Ishvara – Purusha – Citta

O Yoga, com origem nos Vedas, tem fundamentos que, ainda que aqui muito
simplificados, vale a pena colocar (Desikachar, 1995):

Existe ISHVARA, o lugar privilegiado da nossa consciência:


- É fonte de conhecimento96, não é atingido pelo tempo, não está afectado à matéria e
não sofre os efeitos da ignorância.

Existe PURUSHA, o que observa e toma consciência da mudança:


- É o eu profundo, mas não está associado a um corpo; está dentro de nós e
podemos, ou não, tomar consciência dele. É Ishvara que dá origem aos nossos
purushas.

Existe CIT, a forma única de ver as coisas (VISHAYA):


- Quem chegar a cit tem um grau de humildade muito grande, não precisa provar
nada. O fim do caminho é a pessoa liberta, a clareza total.
Existe CITTA, o mental, o psiquismo, e purusha observa através de citta:

96
Tem correspondência com Deus, embora o conceito cristão contenha outros elementos.

207
- Se o mental estiver perturbado, a observação será perturbada; mas se o mental
estiver puro, a percepção não será deformada. O que torna as pessoas diferentes é
o mental (as experiências que tivemos e nos marcaram), mas, na essência, somos
todos iguais. O que é percebido é real (o que sinto, o que vejo, o que sonho…),
mesmo que as outras pessoas não vejam. O que é percebido muda e tudo está em
constante mudança.

Tudo o que muda é PRAKRITI – a natureza, os sentimentos, os pensamentos…


- O que não está bem pode ser transformado.

Existe, além disso, no fundo do esterno, um lugar privilegiado para encontrar purusha
ou cita. É KHA e, no centro desse
espaço, a fonte do cit, ishvara. É
por isso que, quando se diz “eu”, se
aponta para este ponto, não para a
cabeça (para o mental), pois, de
alguma maneira, temos consciência
de que o nosso eu se situa aí.

É também a partir de kha que surge


Ilustração II.9 – A dinâmica do Ser na perspectiva do Yoga Sutra. SUKHA (o bem-estar, a sensação de
Adaptação de Esteves, A. (1999) - imagem de conferência pública.
que algo se expande a partir daí),
ou DUHKHA (o mal-estar não físico, que aperta e dói)97. Embora ninguém escape a
dukha, o objectivo é passar de dukha a sukha, da contracção e aperto para a expansão.
A avidya98, a ignorância e causa de infelicidade, resulta de não sabermos quem somos
e de nos identificarmos com os nossos pensamentos, com a nossa maneira de ser, com
o nosso trabalho, com o nosso sucesso ou insucesso – isto é, de ignorarmos a nossa
verdadeira natureza.

97
Não está isto próximo do que Damásio refere como sendo a genealogia da nossa regulação vital, os dois
movimentos que revelam o estado de vida do nosso organismo (o movimento de recuo, de fechamento e o
movimento de exploração e curiosidade), que já tive oportunidade de referir no início do presente capítulo?
98
Tal como já foi antes explicado com a apresentação das causas do medo (ponto 1.2.3 deste capítulo), a
avidyã é composta por quatro ramos que, tanto actuam individualmente, como em conjunto: Asmitā: ego;
Rāga: fazer exigências; Dvesa: rejeitar coisas; Abhinivesa: medo.

208
3. Higher Self – Ego

Higher Self Ego

Este? ou Este?

Mente
Consciente

Subconsciente

Corrente de Corpo interior,


energia externa emoções e
do universo intelecto

Ilustração II.10 – Higher Self e Ego. Reprodução, adaptação e tradução de Jeffers (1991:193).

De acordo com Jeffers (1991:189), é na Psicologia Transpessoal* que surge o conceito


de Higher Self e que a autora explica estar posicionado em relação ao Ego tal como se
pode ver num modelo simplificado aqui reproduzido (ilustração 2.8). O Higher Self e Ego
representam diferentes experiências da vida: se se ouvir o primeiro, a experiência da
vida será plena de alegria, abundância e livre do medo; se se ouvir o segundo, a
experiência da vida produz medo e impede a expansão pessoal.

O HIGHER SELF:
- É a fonte de pensamentos e energia positivos, é o espaço da criatividade, intuição,
confiança, amor, doação… de tudo o que reside no “coração do coração”. É capaz
de um alto grau de sensibilidade e sintonia com a harmonia do universo.

O EGO
- É a fonte de pensamentos e energia negativos, é o depósito de todos os input
negativos, desde o tempo do nascimento até à actualidade.
- Precisa de uma atenção constante e não sabe dar.

A MENTE CONSCIENTE
- Envia ordens para o Subconsciente baseadas na informação que recebe do Higher
Self e do Ego.

209
- Pode escolher ouvir o Higher Self ou o Ego, mas, muitas vezes, não é consciente de
que está a ser conduzida pelo Ego. Mas, mesmo se existir essa consciência, a
mente consciente está tão habituada a ouvir o Ego que, nas práticas quotidianas, se
“esquece” de ouvir o Higher Self. Precisa por isso, de ser constantemente
recordada.

O SUBCONSCIENTE
- É o armazém de uma grande quantidade de informação. Tem acesso à Energia
Universal.
- Recebe ordens da mente consciente e acredita no que esta lhe diz, quer seja
verdade, ou não. Não questiona nem julga, não distingue o bem do mal.
- Utiliza a INTUIÇÃO99 para fazer a nossa ligação com o que procuramos.

CORPO INTERIOR, INTELECTO E EMOÇÕES


- O subconsciente cumpre as ordens que recebe da mente consciente através da
ligação que estabelece com o corpo, o intelecto e os sentimentos e repercutindo aí a
energia (positiva ou negativa) recebida.

A ENERGIA UNIVERSAL
- Sem a qual o mundo não existiria, produz a sensação de que não estamos sozinhos
e estamos ligados a coisas que são maiores do que nós.
- Aprender a confiar na energia universal assinala o fim do medo.

4. Eu e Eu, Eu Mesmo

Walt Whitman, poeta que celebra a natureza humana e a vida, distingue em si mesmo
três componentes – o Eu (self), a alma (soul), o Eu verdadeiro ou o Eu, Eu mesmo (real
me ou me myself) (Ribeiro Dias, 2000:125ss).

99
De acordo com Shallcross & Sisk (1989:3), a informação pode ser recebida por duas vias –
externamente, pela via dos sentidos, e internamente, pela via da intuição. Quando se usam os cinco
sentidos: presta-se atenção aos detalhes práticos e aos factos; está-se em ligação com as realidades físicas;
presta-se atenção ao momento presente, o que é dito ou feito; vêem-se os pormenores da vida quotidiana; as
experiências são realizadas passo a passo; deixa-se que os olhos digam à mente. Quanto se usa a intuição:
percebe-se com a memória e a associação; vêem-se padrões e significados; projectam-se possibilidades
para o futuro; usa-se a imaginação e lê-se nas entrelinhas; procura-se a imagem geral; têm-se palpites ou
ideias vindas de lado nenhum, deixa-se que a mente diga aos olhos.

210
O EU:
- É a personalidade, ou pathos – uma persona*, uma série infinitamente mutável de
identificações, revestida de uma couraça e com a máscara que o próprio escolhe.

A ALMA:
- Por oposição ao Eu, é o carácter ou ethos – a natureza desconhecida; o ser humano
como emergido do mundo das coisas.

O EU VERDADEIRO ou o EU, EU MESMO:


- É a faculdade de conhecer – próximo da capacidade gnóstica de conhecer
exactamente como se é conhecido.
- É a dimensão da relação com o Mistério, a centelha do divino que actua em nós.
- Vigia e conduz no caminho no sentido de vocação e de missão.

5. Carácter e Persona*

Num trabalho que estabelece a relação entre a capacidade de liderança* e a


capacidade de crescimento pessoal e de descoberta da identidade interior, Cashman
(2000:44-45), distingue entre CARÁCTER e PERSONA100.

CARÁCTER
- De presença pacífica, transforma e abre possibilidades e potencialidades.
- O ser suporta a acção.
- Guiado por: autenticidade, sentido, abertura, confiança, compaixão, coragem,
inclusão, equilíbrio/centração, vontade de criar valor; fluidez e adaptabilidade.
PERSONA
- De presença difícil, protege e limita possibilidades e potencialidades.
- O fazer suporta a acção.
- Guiado por: imagem, segurança, medo, interesse pessoal, fuga, exclusão, ganhar a
qualquer custo, distracção, resistência à mudança.

100
Persona era o nome da máscara que os actores do teatro grego usavam. Por extensão, designa um papel
social ou um papel interpretado por um actor - http://pt.wikipedia.org/wiki/Persona (24.04.08)

211
6. Ser Central e Centro do Nosso Centro

António Blay (1988:274-275), num livro sobre relaxamento consciente como técnica de
desenvolvimento de capacidades mentais e espirituais, ensina a capacidade de
aceitação pessoal, de abertura ao nosso Ser Central e ao Centro do nosso Centro. E
apresenta-os nos seguintes termos:

O SER CENTRAL
- É a evidência profunda de mim mesmo, a fonte inesgotável de energia, de amor, de
plenitude e de felicidade, a que se chega pela abertura da nossa dimensão
horizontal.

O CENTRO DO NOSSO CENTRO


- É donde recebemos a nossa força e o nosso sustento, a que se chega pela abertura
da nossa dimensão vertical.

7. Condutor-Pedagogo-Mestre

E Ribeiro Dias, depois de nos conduzir pelos caminhos de muitos dos que, na história
das ideias, têm procurado exprimir o fundamental da pessoa na descoberta do contexto,
do lugar, do tempo e do sentido do mistério da nossa realização como seres humanos,
escreve sobre o MESTRE no último parágrafo do seu livro “A Realização do Ser
Humano”:

“O CONDUTOR ou PEDAGOGO ou MESTRE não pode deixar de ser O EU do próprio ser


humano, não o eu dos acontecimentos a deixar-se levar por forças exteriores, nem o eu
das conjunturas a pretender guiar-se de acordo com projectos e estratégias meramente
pessoais, mas o EU ESTRUTURAL, PROFUNDO, VERDADEIRO, O EU, EU MESMO, que ao
reconhecer ter recebido tudo e ter-se recebido todo na sua Origem, quer tudo retribuir e
retribuir-se todo, como forma de se realizar ele próprio e participar, também, na
Realização do Universo” (Ribeiro Dias, 2000:141).

212
Sabendo agora que o nosso corpo pessoal se relaciona com o corpo do universo, que
o ego é a nossa máscara social e que o Ser é a essência do que somos (onde nem o
medo nem a ansiedade estão presentes), tudo indica, então, que o processo de
transformação de uma palavra de 4 letras (medo), numa palavra de 7 (coragem),
precisa de uma palavra de 3 – precisa do Ser. Procuro, por isso, traduzir na figura e
quadro seguintes o que encontro, leio, sinto e pressinto em comum nas reflexões
atrás desenvolvidas e que re-asseguram e desafiam para a descoberta e encontro da
nossa imanência com a nossa transcendência.

Energia Universal
Centro do nosso Centro
Ishvara
Deus

Eu Real
Higher Self
Purusha
Carácter
A Alma
Eu Verdadeiro
Eu, Eu Mesmo

Pessoa Pública + Eu Privado


Mente Consciente + Ego
O Eu
O Eu dos Acontecimentos
O Eu das Conjunturas

Ilustração II.11 – Síntese de “Todos os nomes do Ser”.

Energia Universal,
A Origem.
Centro do nosso Centro
A fonte do conhecimento.
Ishvara,
Donde recebemos a força e o sustento.
Deus
Transforma.
Consciência de ter recebido tudo e ter-se recebido todo na Origem.
Fonte de pensamentos e energia positivos – espaço da criatividade, intuição,
Eu Real
confiança, amor...
Higher Self
Conduz no caminho de vocação e missão.
Purusha
A faculdade de conhecer.
Carácter
Evidência profunda de mim mesmo.
A Alma
O que observa e toma consciência da mudança, a clareza total.
Eu Verdadeiro
Capaz de sintonia com o universo.
Eu Eu Mesmo
A experiência de um “coração desperto”.
A centelha do divino de actua em nós.
Deseja participar na realização do Universo.
Pessoa Pública Protege.
Eu Privado A personalidade – couraça e máscara.
Mente Consciente O mental, o psiquismo, uma interpretação da vida pessoal, subjectiva e única
Ego – é fonte de separação entre as pessoas; cria o sofrimento.
O Eu dos Resultado da interacção entre as nossas experiências interiores ou exteriores.
Acontecimentos O deixar-se levar por forças exteriores.
O Eu das Conjunturas Fonte de pensamento e energia negativos.
Tabela II.3 – Síntese de “Todos os nomes do Ser”.

213
2.2 Contornos do Desenvolvimento Humano

“Escuta-me bem, meu pequeno. Não te esqueças


que estás num campo de concentração. Aqui,
cada um tem de lutar por si próprio e não pensar
nos outros. Nem no próprio pai. Aqui, não há pais,
nem irmãos, nem amigos. Cada um vive e morre
para si, só. Dou-te um bom conselho: não dês
mais a tua ração de pão e de sopa ao teu velho
pai. Já nada podes fazer por ele. E assassinas-te
a ti mesmo. Pelo contrário, tu é que devias ficar
com a ração dele...”

Ellie Wiesel, “A Noite”.

Ilustração II.12 – A desumanização nas histórias dos homens.

“DESENVOLVIMENTO HUMANO – processo contínuo de construção do ser humano, como


espécie e como indivíduo, que ocorre na dialéctica entre natureza e cultura, referindo-se
à totalidade complexa que se expressa como motricidade, implicando, como constituinte,
a praxis orientada por valores como a busca de condições de existência material e
espiritual dignas para todos os seres humanos, a ampliação da liberdade de
pensamento, sentimento e expressão crítico-criativa, a promoção da solidariedade e do
respeito pela alteridade” (Kolyniak, 2005:33).

Citando Gilberto Gallopin, Max-Neef (1993:98) identifica três versões possíveis do futuro
da humanidade. A primeira, a da possibilidade de extinção total ou parcial da espécie
humana, como resultado da destruição do meio ambiente ou de um holocausto nuclear.
A segunda, de que já há tantos sinais, a da barbarização do mundo, como resultado de
uma distância que cada vez mais separe os poucos muito ricos (encerrados em
diversos tipos de espaços-fortalezas protectoras – legais, económicos, habitacionais,
comportamentais, etc.), dos imensos muito pobres que se estendam para lá dessas
defesas. A terceira, mas que implica uma mudança de racionalidade, a da possibilidade
da grande transição e transformação de uma dominante da competência económica a
princípios da solidariedade de quem aprende a viver junto.

214
É esta terceira versão do futuro aquela que aqui se quer sonhar, a que entendo estar
presente na definição de desenvolvimento humano acima colocada. Por isso (e embora
sejam como peças de puzzle que só fazem sentido pela relação que estabelecem com
todas as outras), vou utilizar as suas palavras e expressões-chave para melhor
perceber o alcance do desafio que provoca.

1. Desenvolvimento Humano

DESENVOLVIMENTO – “acto ou efeito de desenvolver”.


Desenvolver – “estender o que estava encolhido; tirar do invólucro; tirar a timidez a”
(Torrinha, 1990:399).

Isto é, procurar e encontrar dentro de si mesmo o que aí está escondido. Não um


acréscimo, não “uma engorda”, mas sim um descobrir, um desvelar da verdade de si
mesmo. É por isso que retrocessos, bloqueios, crises e tensões são parte da
construção do humano, pois, como nos ensina a teoria das estruturas dissipativas de
Prigogine (1983)101, podem encerrar possibilidades insuspeitas que conduzam a
estados mais elevados de desenvolvimento.

HUMANO – “próprio do homem”.


Humanidade – “natureza humana; compaixão; benevolência” (Torrinha, 1990:659).
Diferente de Hominização, que tem um “simples” sentido biológico (Trigo & Kon-Traste,
2001:35), Humanização tem um sentido relacional.

“A emoção fundamental ou o fundamento emotivo em que ocorre a vida da comunidade


humana é a cooperação, o saber, a confiança mútua e o respeito mútuo nas relações
interpessoais Os seres humanos ficam enfermos num ambiente de desconfiança,
manipulação e instrumentalização das relações” (Maturana, 2000: 61).

101
Para Prigogine, “as estruturas dissipativas são sistemas dinâmicos sujeitos a transformações que vão do
aparentemente caótico ao progressivamente mais ordenado a partir do momento em que tem lugar uma
nova situação. Todo o sistema aberto funciona nos limites entre a estabilidade e a instabilidade devido às
flutuações de energia. As estruturas dissipativas pressionam o sistema vivo para poder avançar mediante a
mudança que gera a instabilidade para chegar a conseguir uma nova estabilidade numa fase mais
avançada e complexa. Desse modo o sistema desenvolve-se mediante estádios de ordem, desordem e
reordenação permanente” (Torre, 2008:7).

215
É por isso que o melhor desenvolvimento é o que, elevando a qualidade de vida das
pessoas, consegue satisfazer adequada e harmonicamente as NECESSIDADES HUMANAS
102
FUNDAMENTAIS - um desenvolvimento que ultrapasse a racionalidade económica e
comprometa o ser humano na sua totalidade (Max-Neef, 1993).

2. Processo contínuo de construção do ser humano

Um processo não linear, não fragmentário, não somatório, não desagregado. Porque
cada indivíduo é um ser sempre incompleto (Freire, 2000).

Desenvolvimento humano implica, por isso, um ganhar (ou ir ganhando) consciência do


nosso eu (o nosso presente), e aceitar (ou ir aceitando) o risco de recriar a nossa
existência em direcção ao projecto de “ser mais” (a nossa possibilidade) – um processo
que não é de repetição de um qualquer modelo anteriormente (ou exteriormente)
desenhado, mas um processo de transformação constante, imprevisível, inacabado
(Kolyniak, 2005), num MOVIMENTO CÍCLICO E ESPIRALADO de nascimento-morte-
renascimento.

3. Como espécie e como indivíduo / na dialéctica entre natureza e cultura

Tanto na realidade objectiva do MUNDO SOCIAL institucionalizado, como na realidade


subjectiva do MUNDO PESSOAL e individual – porque desenvolvimento social e
desenvolvimento individual não acontecem de forma divorciada. É o desenvolvimento
humano a partir de uma perspectiva ecológica, numa interacção mútua, múltipla e
progressiva entre indivíduo e contexto. É o desenvolvimento humano que começa com
e dentro de mim mesmo, pensando-me e comprometendo-me como sujeito do
desenvolvimento – o único espaço onde tenho poder para mudar e, com isso, saber

102
De acordo com Max-Neef (1993: 21-23), as necessidades humanas são múltiplas e interdependentes,
mas são as mesmas em todas as culturas e em todos os tempos. O que muda são os “satisfactores” de
necessidades, não as necessidades humanas. Por exemplo, alimentação e abrigo não são necessidades, mas
satisfactores da necessidade fundamental de subsistência. Um dos aspectos que define uma cultura são as
escolhas dos seus satisfactores – quantidade, qualidade e/ou possibilidades de acesso.

216
que, pela na dinâmica das inter-relações de crescimento, o mundo pode mudar também
(Max-Neef, 1993; Azevedo & Gil da Costa, 2005).

4. Totalidade complexa

Um desenvolvimento humano que passa pelo corpo mas que, transpondo a dimensão
visível de tudo o que somos (Feitosa, 1999:70), INTEGRA POTENCIALIDADES ESPECÍFICAS
(o conhecimento, o emocional, o espiritual, o sensorial e o extra-sensorial, o
simbólico...) em equilíbrio e harmonia.

“Rafael solta um grito, um grito de terror, de raiva e desespero. As pernas


endireitam-se, os gritos tornam-se contínuos e espumantes. Desembesta,
rompe o matorral, vem a terreiro, gritando, arreganhando os dentes,
sangrando. Faz vacilar o pau e o selvagem rola pelo chão, mas já outros
vêm sobre ele, aos aulidos. (...) Esquece as feridas, a fome e a sede, e
torna-se o próprio medo, medo desesperançado em pés que voam,
precipitando-se pela floresta a caminho da praia escampada!
(...)
- Nós vimos o vosso fumo. Que têm estado vocês a fazer? Uma guerra?
Rafel anui com a cabeça. O oficial examina o pequeno espantalho que tem
diante de si.
- Não há mortos, pois não? Algum cadáver?
- Só dois e desapareceram.
- Dois? Mortos?
Rafael faz outra vez que sim com a cabeça (...). O oficial sabia, em regra,
quando alguém lhe dizia a verdade. Assobia de leve”.
William Golding, “O Deus das Moscas”.

Ilustração II.13 – A desumanização nas histórias dos homens.

5. Praxis orientada por valores: dignidade, liberdade, criatividade, solidariedade,


respeito pela alteridade.

Porque humanização tem um SENTIDO ÉTICO (o que implica a consciência de um destino


comum), desenvolvimento humano exige:
- a integração, a combinação e o diálogo permanente entre os processos
técnicos e económicos e as ideias da solidariedade e da responsabilidade;
e desenvolvimento humano rejeita:

217
- as vias usadas por uma mundialização baseada na dominação que, sob
múltiplas formas, levam a tantos tipos de colonização e escravidão;
- o conhecimento vindo de um certo tipo de alfabetização e/ou ciência que
leva à perda de outros saberes;
- a hiper-especialização que leva à perda de aptidões do ser humano e da sua
capacidade para enfrentar o destino;
- o individualismo, o egocentrismo e a diminuição da responsabilidade
individual que levam à destruição e perda de solidariedades e do respeito
pela alteridade (Morin, 2006).

6. Condições de existência material e espiritual

Porque implica termos qualitativos e factores da ordem do espírito (Ribeiro Dias,


2000:14), desenvolvimento humano não se constrói numa lógica de rentabilidade que
subordine o humano ao económico, que domestique os humanos ao serviço das
máquinas, ou a natureza ao serviço dos humanos (Morin, 2006; Max-Neef, 1993).

Desenvolvimento humano é caminho para alcançar NÍVEIS MATERIAIS DE VIDA que


permitam o acesso a uma gama crescente de bens cada vez mais diversificados, mas é
também QUALIDADE DE VIDA no que ela significa de DESENVOLVIMENTO MENTAL, PSÍQUICO
E MORAL… É Conhecimento do que significa a vida, a paixão, o sofrimento, de tudo
aquilo que escapa à quantificação e faz parte das características subjectivas da
Humanidade (Morin, 2006; Max-Neef, 1993).

7. Para todos os seres humanos

Não faria sentido de outra maneira.

“Espero que chegue o dia em que cada um de nós seja o suficientemente valente para
poder dizer com toda a honestidade: “Sou, e porque sou, tornei-me parte de…”. Parece-
me que este é o caminho correcto a seguir se queremos pôr fim a uma maneira estúpida
de viver” (Max-Neef, 1993:99).

218
“Os gastos reduziam-se ao mínimo, as meninas eram baratas e viajavam
no porão dos barcos em grandes caixotes acolchoados. Sobreviviam
assim durante semanas, sem saber para onde iam nem porquê, só viam a
luz do sol quando lhes calhava receber lições do seu ofício. Durante a
travessia, os marinheiros encarregavam-se de as treinar e, ao
desembarcarem em São Francisco, já tinham perdido toda a sua
inocência. Algumas morriam de disenteria, cólera ou desidratação; outras
conseguiam saltar para a água nos momentos em que as levavam à
coberta para as lavar com água do mar. As restantes ficavam presas, não
falavam inglês, não conheciam essa nova terra, não tinham a quem
recorrer (...). Eram recebidas no cais por uma antiga prostituta, a quem o
ofício deixara uma pedra negra em lugar do coração. Levava-as batendo-
lhes com uma varinha, como gado, pelo centro da cidade, diante dos olhos
de quem quisesse ver. Assim que atravessavam o umbral do bairro
chinês, desapareciam para sempre no labirinto subterrâneio de quartos
ocultos, corredores falsos, escadas sinuosas, portas dissimuladas e
paredes duplas”.
Isabel Allende, “Filha da Fortuna”.
Ilustração II.14 – A desumanização nas histórias dos homens.

• Conceitos adjacentes ao conceito de


desenvolvimento humano

Mas outras propostas e conceitos existem que (para além de perfeitamente


consentâneos com a definição aqui em causa e atrás desenvolvida), também explicam
o desenvolvimento humano. Vou, por isso, e mais uma vez, seleccionar sete.

1. O modelo ecológico de desenvolvimento

Em primeiro lugar, e para não perder de vista a nossa herança universal e o quanto
cada ser humano existe pela interacção com os outros seres humanos e com o mundo,
começo por uma breve referência ao Modelo Ecológico de Bronfenbrenner (Papalia et
al, 2001:14). Quebrando as barreiras entre as ciências sociais e criando pontes entre as
suas diferentes disciplinas, parte do indivíduo e identifica cinco contextos de
desenvolvimento, ou cinco níveis interligados de influência ambiental (ilustração II.15):

a) O MICROSSISTEMA – inclui relações pessoais face a face com influência interactiva.


b) O MESOSSISTEMA – é um sistema de vários microssistemas.

219
c) O EXOSSISTEMA – diz respeito a ligações entre dois ou mais contextos, sendo que
pelo menos um deles só afecta indirectamente porque o indivíduo não está nele
envolvido.
d) O MACROSSISTEMA – feito dos padrões culturais, engloba crenças dominantes,
ideologias, sistemas económicos e políticos.
e) O CRONOSSISTEMA – acrescenta a dimensão tempo e, com isso, a influência da
mudança, ou da estabilidade, no indivíduo e no meio.

Indivíduo

MICROSSISTEMA

MESOSSISTEMA

EXOSSISTEMA

MACROSSISTEMA

CRONOSSISTEMA

• Microssistema: casa, vizinhança, grupos de pares, escola, igreja, local de trabalho.


• Mesossistema: casa↔vizinhança↔grupos de pares↔escola↔igreja↔local de trabalho.
• Exossistema: sistema educativo, hierarquia religiosa, comércio e indústria, agências
governamentais, mass media, sistema de trânsito.
• Macrossistema: crenças ideológicas dominantes.
• Cronossistema (dimensão do tempo).
Ilustração II.15 – Modelo ecológico de Bronfenbrenner.
Reprodução e adaptação de Papalia et al, 2001:14.

2. Os conceitos de identidade, individualização e individuação

Distintas das sociedades de insectos (onde existe um máximo de eficácia e um mínimo


de individualidade), as sociedades humanas (no outro extremo da escala evolutiva do
agrupamento social e com uma imensa variabilidade de formas de organização),
possibilitam o surgimento da subjectividade, da consciência do valor e da autonomia do
indivíduo e da capacidade de enfrentar os interesses do grupo, bem como o
aparecimento da cooperação, do desvio e do conflito como características universais da
sua dinâmica (Abad Márquez, 1993:28). Assim, quando um novo membro ingressa num
grupo (qualquer grupo), tanto ele, como o grupo (e num processo de redefinição da
dinâmica das suas relações), passam por um processo de transacções e de negociação
que dá origem a uma nova situação social e a uma nova identidade. É por isso que a

220
IDENTIDADE, construída interactivamente a partir das relações sociais, não pode ser
definida como um núcleo estável e permanente da personalidade, mas como o
“conjunto das relações que o indivíduo mantém com os outros objectos sociais
(pessoas, grupos, instituições, valores, etc.)” (Abad Márquez, 1993:41).

Diferente de INDIVIDUALISMO, que indica a mera centração na vida privada, o conceito de


INDIVIDUAÇÃO remete para o “processo de assunção livre por cada uma das orientações
do mundo que dão sentido à existência” (Teixeira Fernandes, 2001:58). No mundo de
hoje, em que a sociedade moderna deixa de oferecer visões do mundo universalmente
aceites, a individuação surge como uma tendência cada vez mais forte de escape à
homogeneização. Neste processo (causa e efeito de mudanças no tecido social, mas
também ele construído no relacionamento da pessoa com a sociedade), passa a
pertencer cada vez mais ao indivíduo a escolha das suas pertenças sociais, das suas
actividades culturais e das suas crenças, a reconstrução dos valores, o gerir da situação
em que se encontra.

3. O conceito de pessoa

Mas, o que quer dizer “SER PESSOA”? Resumo, a partir de Viktor Frankl, algumas
daquelas que ele mesmo denomina serem “teses sobre a pessoa em busca de sentido”
(Frankl, 1994:106-115):

- A pessoa é um INDIVÍDUO – porque é uma unidade, não se pode subdividir.


- A pessoa não é só um in-dividuum, mas também in-summabile – porque é uma
TOTALIDADE.

- Cada pessoa é totalmente UM SER NOVO – porque em cada pessoa que nasce se
inscreve a existência de um novo ser.
- A pessoa é ESPIRITUAL – porque existe para lá do seu organismo psicofísico.
- A pessoa representa um ponto de INTERACÇÃO ENTRE TRÊS NÍVEIS DE EXISTÊNCIA
– o físico, o psíquico e o espiritual.
- A pessoa é DINÂMICA – porque é na sua capacidade de se distanciar do
psicofísico que se manifesta o espiritual.
- A pessoa é capaz de se TRANSCENDER e de se enfrentar a si mesma.

221
- A existência da pessoa é um existir de acordo com um SENTIDO, mesmo que
desconhecido.

4. O conceito de inteligências múltiplas e as mentes do futuro

Com uma concepção que reduz o elitismo e que, pela valorização e interpretação de
diferentes sociedades relativamente às aptidões humanas, enfatiza a vertente
intercultural, Gardner fez uma proposta de redefinição da cognição humana como
habilidade plural para resolver e criar produtos (Gardner, 1999, 2006; Sisk & Torrance,
2001; Goleman, 2006, Salgado Gama, 1998; Gáspari & Schwarts, 2007). É o conceito
de INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS (linguística, musical, lógico-matemática, espacial, corporal-
cinestésica, interpessoal, intrapessoal103) que, enquanto alternativa para o conceito de

103
Divididas em dois grupos (do primeiro fazem parte as inteligências linguística, musical, lógico-
matemática e espacial; do segundo, as inteligências corporal-cinestésica, interpessoal, e intrapessoal), as
inteligências múltiplas apresentam as seguintes características globais: são relativamente independentes
mas raramente funcionam de forma isolada; eventuais melhorias ocorridas numa das inteligências têm
efeitos positivos na globalidade das funções cognitivas; do desenvolvimento das faculdades individuais
pode decorrer o progresso do sujeito colectivo e da própria sociedade (Gáspari & Schwarts, 2007):
Inteligência linguística – capacidade de lidar com sons, ritmos e significados das palavras, percepção das
diferentes funções da linguagem; habilidade para usar a linguagem para convencer, agradar, estimular
ou transmitir ideias.
Inteligência musical – sensibilidade para ritmos, texturas e timbre; habilidade para apreciar, compor ou
reproduzir uma peça musical.
Inteligência lógico-matemática – capacidade para lidar com padrões, ordem e sistematização; habilidade
para explorar relações, lidar com séries de raciocínios, reconhecer problemas e resolvê-los.
Inteligência espacial – capacidade para perceber o mundo visual e espacial de forma precisa; habilidade
para manipular formas ou objectos mentalmente e para criar tensão, equilíbrio e composição numa
representação visual ou espacial.
Inteligência corporal-cinestésica – habilidade para resolver problemas ou criar produtos através do uso de
parte ou de todo o corpo, para controlar os movimentos do corpo e manipular objectos com destreza,
para usar a coordenação grossa ou fina em desportos, artes cénicas ou plásticas.
Inteligência interpessoal – capacidade para entender as necessidades e sentimentos dos outros; habilidade
para entender e responder adequadamente a humores, temperamentos, motivações e desejos de outras
pessoas.
Inteligência intrapessoal – correlativo interno da inteligência interpessoal; habilidade para ter acesso aos
próprios sentimentos, sonhos e ideias, discriminá-los e usá-los na solução de problemas pessoais;
habilidade para formular uma imagem precisa de si próprio e usar essa imagem para funcionar de
forma efectiva; só é observável através dos sistemas simbólicos das outras inteligências porque é a
mais pessoal de todas as inteligências.
Observação – Dorothy Sisk e Paul Torrance (2001) desenvolvem o conceito de INTELIGÊNCIA ESPIRITUAL
que definem como sendo a capacidade de auto-consciência profunda, das dimensões do self – não só
como corpo, mas como mente-corpo e espírito; habilidade para a reflexão sobre questões inerentes à
própria existência – finitude, transitoriedade, transcendência.

222
inteligência como capacidade inata, geral e única do tipo QI, o conceito de inteligências
múltiplas amplia a compreensão da pessoa total.

Contudo, mais recentemente, preocupado, não só com o tipo de mentes de que a


pessoas vão precisar no futuro, como com as mentes que ele acredita que as pessoas
deviam desenvolver no futuro (pois são o que lhes vai possibilitar lidar tanto com o que
se antecipa, como com o que não se pode prever), Gardner descreve cinco tipos de
mentes (2006):

- A MENTE DISCIPLINADA – domina, pelo menos uma forma de pensar, um modo


distinto de cognição que caracteriza uma disciplina académica, uma técnica ou
uma profissão.
- A MENTE SINTETIZADORA – recolhe informação a partir de fontes diversas,
compreende e avalia objectivamente a informação e coloca tudo de forma a
fazer sentido, tanto para o sintetizador, como para outras pessoas.
- A MENTE CRIADORA – desbrava terreno novo, apresenta novas ideias, coloca
questões não habituais, conjura novas maneira de pensar, chega a respostas
inesperadas.
- A MENTE RESPEITADORA – tem atenção e acolhe bem as diferenças entre os
indivíduos e os grupos, tenta compreender “os outros” e procura trabalhar
eficazmente com eles.
- A MENTE ÉTICA – pondera a natureza do trabalho que faz e as necessidades e
desejos da sociedade em que vive, pensa como é possível ter propósitos que
estão para lá do interesse pessoal e como se pode trabalhar de forma não
egoísta e ao serviço de todos.

5. O conceito de vida plena

Para Carl Rogers (1970:162ss), o funcionamento integral da pessoa é a expansão e a


maturação de todas as suas potencialidades, é a escolha de uma VIDA PLENA como
processo de transformação:

223
a) É UM PROCESSO, não um destino, seleccionado pelo organismo humano quando
é inteiramente livre para se mover em qualquer direcção.

b) Implica uma ABERTURA CRESCENTE À EXPERIÊNCIA – o pólo oposto da atitude


defensiva – a pessoa torna-se cada vez mais capaz de se ouvir a si mesma e de
experimentar o que se passa em si.

c) Implica a CORAGEM DE SER – não necessariamente a escolha de uma vida feliz,


satisfeita, agradável, mas de uma vida mais enriquecedora, apaixonante,
valiosa, estimulante, significativa.

d) Implica uma TENDÊNCIA PARA VIVER PLENAMENTE CADA MOMENTO – a pessoa não
é um controlador-adaptador a ideias pré-concebidas, mas um participante do
processo de vivência existencial.

e) Revela uma CONFIANÇA CRESCENTE NO SEU ORGANISMO enquanto guia


competente do comportamento que realmente satisfaz – uma capacidade de
apreensão intuitiva das reacções internas e das soluções de comportamento
frente a situações complexas e perturbadas.

f) Revela uma NOVA PERSPECTIVA SOBRE A LIBERDADE E O DETERMINISMO - a pessoa


experimenta maior liberdade de escolha do comportamento e do que o pode
satisfazer de um modo mais profundo.

6. O conceito de felicidade

De acordo com Peña y Lillo (1991), a felicidade, considerada por muitos como sendo o
objectivo último da existência humana, só por poucos é percebida como prémio da auto-
realização pessoal e da plenitude de uma vida. Utilizando os contributos de Ortega,
Julián Marias, Fromm, May e de muitos outros cientistas e filósofos que, ao longo da
história, se têm interrogado sobre este tema complexo e multifacetado, este autor
procura mostrar tanto o que dela nos aproxima como o que não nos permite alcançá-la.

224
- A felicidade é uma ATITUDE PERANTE A VIDA, coincide com o nosso próprio eu. Ser
feliz é uma aceitação de si mesmo e da vida, com as suas luzes e as suas sombras,
os seus dons e os seus limites.

- Os ACONTECIMENTOS EXTERIORES SÃO NEUTROS e somos nós mesmos que lhes


atribuímos um significado. A felicidade não depende dos acontecimentos e não
pertence à periferia reactiva da afectividade.

- A felicidade é um SENTIMENTO MAIS INTEGRAL QUE ABARCA O HOMEM POR INTEIRO, é


uma abertura da totalidade do psiquismo na sua dimensão mais profunda e reflecte
a vida autêntica. Não pertence ao campo restrito dos afectos como o gozo ou o
sofrimento, não se limita ao aqui e agora.

- A busca da felicidade não é a mesma ao longo da vida. A sua realização,


deslocando-se progressivamente do exterior para o interior, VAI-SE TORNADO MAIS
SUBTIL E REFINADA ao longo da maturação progressiva da individualidade.

- A felicidade não é um facto moral, mas TEM UMA CONOTAÇÃO ÉTICA. Somos
responsáveis pela nossa felicidade. Em última instância, aprender a ser feliz
significa saber viver.

- Existem DOIS TIPOS DE FELICIDADE, a felicidade negativa e a felicidade positiva.


Atinge-se a primeira quando se percebe o SENTIDO FORMADOR DO SOFRIMENTO e a
sua transformação em experiência e em plenitude humana. Obtém-se a segunda
por quatro vias fundamentais: a ESTÉTICA, através do gozo da beleza; a
INTELECTUAL, pela posse do conhecimento e da verdade; a VOLITIVA, na realização
de um ideal; a AFECTIVA, na percepção da bondade própria e dos outros.

7. O eterno círculo dos três caminhos de criação e de vida plena

Csikszentmihalyi, pioneiro da chamada psicologia do quotidiano, também se interroga


sobre o que significa “viver plenamente, sem desperdiçar tempo nem potencial,
expressando a nossa própria singularidade e, ao mesmo tempo e de forma íntima,

225
participando na complexidade do cosmos” (Csikszentmihalyi, 1998:10) 104. E argumenta
que o que fazemos durante um dia normal (o que absorve a nossa energia psíquica e
proporciona a informação que atravessa a mente em cada dia), pode dividir-se em três
grandes categorias de actividades – PRODUÇÃO, MANUTENÇÃO E ÓCIO. São as escolhas
feitas dentro destes parâmetros que determinam a configuração dos nossos dias – uma
massa indistinta e amorfa, ou, como diz o autor, uma obra de arte.

Relativamente a estes três parâmetros da vida plena, é possível encontrar noutras


abordagens alguma coisa muito similar. Sturner (1996), por exemplo, compreende a
vida criativa como uma sucessão dinâmica e contínua de três condições ou estados:
CENTRAR – o trabalho de atenção a si mesmo que leva à consciência de si mesmo;
AGIR – resultado da condição anterior, é o tempo da execução; CELEBRAR – um tempo e
modo de descansar, de fazer a festa e agradecer por todas as coisas que foram feitas
nas fases anteriores.

Csikszentmihalyi Sturner Escrituras Hindus

Manutenção Centrar Meditação Centrar Agir


Meditar Criar
Manutenção Produção

Produção Agir Criação


Celebrar
Ócio

Ócio Celebrar Celebração

Tabela II.4 – Paralelos entre as condições-estados da vida plena


Ilustração II.16 – O círculo dos três caminhos.
sugeridos por Csikszentmihalyi, Sturner e as Escrituras Hindus.

Mas também nas escrituras hindus há referências ao “eterno círculo” de meditação-


criação-celebração em que, num movimento de isolamento para a totalidade e da
alienação para a integração, a realidade se constrói (Nolan, 2001:96): na MEDITAÇÃO,
somos simplesmente, encontramos o nosso lugar na Criação e a Criação encontra o

104
Para este autor, poucas vezes sentimos a serenidade que se produz quando, havendo metas claras, o
coração, a vontade e a mente estão em harmonia. Estes momentos excepcionais são estados de fluidez,
aqueles que fazem com que uma vida seja plena: a pessoa está completamente centrada; a sensação de
tempo fica distorcida; desaparece a consciência de si; a pessoa sente-se mais forte que habitualmente e
sente a plenitude da experiência. É possível melhorar a qualidade de vida se nos assegurarmos de que
objectivos claros, capacidades à altura das oportunidades de acção e as restantes condições dos estados de
fluidez formam o mais possível parte da vida quotidiana.

226
seu lugar dentro de nós; na CRIAÇÃO, tornamo-nos activamente conscientes do nosso
eu constantemente criador e criativo; na CELEBRAÇÃO, gozamos o nosso ser unificado.

Em resumo:
- Cada ser humano (uno, total e pluridimensional) existe na e pela interacção
consigo mesmo, com os outros seres humanos e com o mundo.
- Pela satisfação das necessidade e pelo desenvolvimento das faculdades
individuais se gera o progresso do sujeito colectivo, se abrem possibilidades de
liberdade, auto-realização e auto-superação.
- A felicidade é abertura da consciência, aceitação de si mesmo e da vida.
- Viver plenamente é processo contínuo de descoberta de sentido, de abertura e
transformação, sinal duplo de distinção e de identificação com todos os outros e
com a humanidade.

• Níveis de Desenvolvimento Humano

Porque desenvolvimento humano é processo, nele é possível identificar diferentes


estágios ou níveis. Mas também sobre este tema são muitos os propósitos, os enfoques
e as nomenclaturas utilizadas. Vou apresentar um novo conjunto de sete, na convicção
de que, pesem embora as diferenças que entre eles existam, não será difícil encontrar
muitos mais pontos de contacto.

1. Níveis de desenvolvimento humano (Dabrowski)

Dabrowski (Sisk & Torrance, 2001:24), polaco, psicólogo e psiquiatra, foi prisioneiro dos
Nazis e dos Comunistas durante a segunda guerra mundial. Incapaz de compreender a
crueldade, a superficialidade e a falta de compaixão, estudou a biografia de pessoas
eminentes que manifestaram valores universais e que, em muitas circunstâncias,
experimentaram o sofrimento e a rejeição por causa dos seus valores e das suas
acções. Convencido de que os conflitos internos são parte da luta pessoal em direcção

227
ao desenvolvimento, sugere que os níveis mais altos implicam uma mudança no modo
de pensar e de estar no mundo.

Nível 1 – prevalece o EGOCENTRISMO, os indivíduos têm falta de empatia* e de auto-


conhecimento, tendem a culpar outros quando alguma coisa corre mal, podem
ser cruéis no seu desejo de poder.
Nível 2 – os indivíduos são influenciados pelo seu GRUPO SOCIAL, têm uma grande
relatividade moral sem uma visão clara sobre os valores que os determinam.
Nível 3 – os indivíduos desenvolveram uma HIERARQUIA DE VALORES e o seu conflito
interno é feito pela luta por viver padrões de vida mais elevados. Podem ficar
deprimidos ou ansiosos com a percepção de não terem atingido os objectivos
que tinham estabelecido para si mesmos.
Nível 4 – os indivíduos estão no caminho da AUTO-REALIZAÇÃO e descobriram a forma
de atingir os seus objectivos. São líderes eficazes e manifestam altos níveis de
responsabilidade, “juízo fundamentado”, empatia e autenticidade. São auto-
conscientes e autónomos no seu pensamento e acção.
Nível 5 – são pessoas que DOMINARAM A SUA LUTA EM RELAÇÃO AO SELF e cuja
desintegração foi ultrapassada pela INTEGRAÇÃO DE VALORES E IDEAIS. Vivem a
vida ao SERVIÇO DA HUMANIDADE e de acordo com os princípios mais elevados do
amor e da compaixão pelos outros. São os indivíduos que agem com
preocupações espirituais, ao serviço dos outros e tendo resolvido os seus
conflitos internos. Estão comprometidos com os princípios universais,
identificam-se com a humanidade e as suas vidas reflectem a compaixão e o
perdão que está no centro do seu ser.

2. Graus dinâmicos de auto-realização (Maslow)

Maslow, que, tal como ele próprio conta, tinha pensado em dar ao seu livro “Motivação
e Personalidade” o título de “Alturas Máximas da Natureza Humana” por ser a frase que
melhor condensaria a sua tese, estudou, por razões de ordem científica, ética, moral e

228
pessoal os problemas da saúde mental. Apresenta os seguintes graus dinâmicos de
auto-realização105 (Maslow, 1991; Guenther & Combs, 1980:137-142):

PESSOAS NÃO REALIZADAS: vivem pelo princípio da escassez, ao nível das necessidades
deficitárias (manutenção fisiológica, segurança; amor, afeição e pertença a
alguém ou a um grupo, auto-estima e estima pelos outros), em constante luta
para alcançar o que necessitam e lhes faz falta.
PESSOAS EM VIAS DE REALIZAÇÃO: vivem ao nível das metanecessidades (necessidades
de crescimento e necessidades do ser, necessidades de significação, sentido,
auto-suficiência, naturalidade, justiça, beleza, conhecimento, auto-realização).
OS AUTO-REALIZADOS: vivem princípio da fartura, parecem ter o suficiente para manter
os seus processos de vida, não precisam ocupar todo o seu tempo e esforço a
preencher lacunas na sua vida e são livres para crescer.
OS TRANSCENDENTES: vivem numa economia de excesso. São capazes de ver os
lugares e os momentos para as grandes mudanças e são capazes de as realizar
e desencadear.

3. Níveis de realização (D. Chopra)

Deepak Chopra (2001:28-29), numa redefinição dos conceitos de saúde e das relações
corpo-espírito, parte do princípio de que o sistema nervoso humano dispõe de sete
respostas biológicas que correspondem a sete níveis de experiência divina. Apresenta,
assim, sete níveis de realização:

Nível 1 – de perigo, ameaça e sobrevivência / RESPOSTA DE COMBATE OU FUGA: a vida é


realizada através da família, da comunidade, pelo sentimento de pertença e dos
confortos materiais.
Nível 2 – de esforço, competição e poder / RESPOSTA REACTIVA: a vida é realizada
através do sucesso, do poder e da influência.

105
De acordo com este autor, as necessidades humanas, que são inatas, podem ser representadas numa
hierarquia em termos da sua potência – quanto mais na base de situar a necessidade, maior é a sua força;
quanto mais alta se situar, menor a sua força, mas também mais distintamente humana se torna pois só os
seres humanos possuem as necessidades mais elevadas (Maslow, 1991; Guenther & Combs, 1980).

229
Nível 3 – de paz, tranquilidade e reflexão / RESPOSTA DO SERENO ENTENDIMENTO: a vida
é realizada através da paz, do equilíbrio, aceitação própria e silêncio interior.
Nível 4 – de introspecção, compreensão e perdão / RESPOSTA INTUITIVA: a vida é
realizada através de discernimento, empatia, tolerância e perdão.
Nível 5 – de aspiração, criatividade e descoberta / RESPOSTA CRIATIVA: a vida é
realizada através da inspiração, expansão da criatividade no campo das ciências
ou das artes e da descoberta sem limites.
Nível 6 – reverencial, de compaixão e amor / RESPOSTA VISIONÁRIA: a vida é realizada
através da veneração, compaixão, serviço devotado e amor universal.
Nível 7 – de unidade sem limites / RESPOSTA SAGRADA: a vida é realizada através da
totalidade e da unidade com o divino.

4. Níveis de desenvolvimento moral (Kohlberg)

Kohlberg (Patrício, 1993:144; wikipedia, 2007106) criador da teoria dos estágios morais,
postula uma sequência universal em que o nível mais alto, o da maturidade moral, só
pode ser muitas vezes alcançado pelo adulto.

1º nível – PRÉ-CONVENCIONAL: as regras morais derivam da autoridade.


Fase 1 – egocentrismo; obediência; exigência de evitar a culpa: a pessoa toma
uma decisão com referência a outro sujeito e obedece para evitar o castigo ou
para merecer uma recompensa; a justiça é definida em termos de poder e
status.
Fase 2 – intercâmbio instrumental; hedonismo; individualismo: inicia-se um
processo de descentração, a pessoa começa a perceber que outras pessoas
também têm os seus próprios interesses; a moral permanece individualista.
2º nível – CONVENCIONAL: compreensão racional, regra, regra universal, norma, o
estabelecido
Fase 3 – moralidade da normativa interpessoal: desejo de manter as relações
interpessoais e de obter o reconhecimento social; preocupação em ser
“bom menino” e “boa menina”; preocupação com as outras pessoas e os
seus sentimentos.

106
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lawrence_Kohlberg, 18.03.2007

230
Fase 4 – moralidade do sistema social: regência pela lei e pela autoridade legal.
3º Nível – PÓS-CONVENCIONAL: a pessoa é capaz de perceber que a norma existe para o
bem, age em função do bem e não da norma e começa a perceber os conflitos entra as
regras e o sistema.
Fase 5 – estágio da moralidade dos direitos humanos: regência pelos acordos
sociais e pelos direitos individuais; subordinação do indivíduo à sociedade.
Fase 6 – estágio dos princípios éticos universais: regência pelos princípios morais
que o próprio dá a si mesmo; perspectiva da posição moral do indivíduo
racional.

5. Estádios do processo de desenvolvimento espiritual (Sturner)

Estádios Necessidade Estado de Experiência Primária


Consciência
1. Fome, sede e segurança. Sobrevivência a Esperando: luta para assegurar a
Sobrevivência qualquer custo existência.
2. Projecção do ego; propagação através Alargamento das Gozando: o ego necessita satisfazer
Propagação do sexo, posse. próprias fronteiras as suas necessidades imediatas.
3. O poder de controlar os outros e os Expansão do sentido Auto-congratulando-se: expansão
Controlo acontecimentos. do ego/self da consciência das fronteiras do
ego-eu.
4. Relação e união com outros. Comunidade Em felicidade: união interior e
Ligação exterior.
5. Auto-estima, sentimento de bem estar Apreço Em alegria: aceitação da própria
Afirmação consigo mesmo, apreciação dos outros. palavra na relação com os outros.
6. Superação de velhos limites, risco e Vida como uma Celebrando: espalha energia da
Actualização aventura, exploração do próprio aventura vida.
potencial com sentido de propósito.
7. Expansão do sagrado e da experiência Encantamento Compreendendo: preenchida com a
Centração espiritual. maravilha, a identidade espiritual, a
centraçáo profunda e tranquila.
8. Junção de tudo, integração de crenças Mística na vida diária Fluindo: natural, serena,
Integração e acções, vivência de uma vida activa- interpenetração do interior e do
meditativa. exterior.
9. Amor da unidade com o Self, a força da Identidade inclusiva Amando: unidade interior, com
Transcendência vida. outros e com a vida, fronteiras
inclusivas.
10. Estar presente, o centro do estado de Totalidade, unicidade Brilhando: unidade, presença
Ser consciência. espiritual com a Essência, a Fonte.
Tabela II.5 – Estádios do processo de desenvolvimento espiritual de Sturner.
Reprodução, tradução e adaptação de Sturner (1994:57-58).

Sturner (1994:54-63) reconhece a existência de nove estádios no processo de


desenvolvimento espiritual, cada um dos quais pode ser descrito como sendo composto
por três partes: uma NECESSIDADE MOTIVACIONAL, que estimula uma actividade; uma
perspectiva ou ESTADO DE CONSCIÊNCIA, através do qual se entra na actividade; a

231
EXPERIÊNCIA CRIADA PELA ACTIVIDADE, através da fusão entre a necessidade
motivacional e a perspectiva. Assim, e utilizando o trabalho de diversas proveniências
(tal como o de Maslow e de William James, o sistema Hindu do Yoga Kundalini*, ou os
escritos de místicos como João da Cruz e Teresa de Ávila), apresenta um modelo
composto por dez estádios ou facetas do despertar da identidade do espírito humano
(tabela II.5).

6. Estádios do desenvolvimento humano espiritual (Scott Peck)

Scott Peck (Peck, 2002; wikipedia, 2007107) apresenta quatro estádios do


desenvolvimento humano espiritual que, correspondem a mudanças muito evidentes no
indivíduo e marcam diferenças significativas na sua personalidade. Enquanto que a
passagem do primeiro para o segundo estádio é muito clara, do terceiro para o quarto é
gradual:

Estádio 1 – é um ESTÁDIO CAÓTICO, desordenado e irresponsável. A pessoa tende a


desafiar e desobedecer, mas está disposta a aceitar uma vontade superior à
sua. É o estádio em que se situam as crianças e muitos criminosos que nunca
cresceram.
Estádio 2 – é o ESTÁDIO DA FÉ CEGA. Aqui aparece a humildade e a vontade de obedecer
e servir. Muitos dos “cumpridores da lei” nunca saíram deste estádio.
Estádio 3 – é o ESTÁDIO DO CEPTICISMO CIENTÍFICO. A pessoa só aceita as coisas depois
de convencida logicamente. Aqui se situam muitas pessoas ligadas à ciência e à
tecnologia.
Estádio 4 – é o ESTÁDIO EM QUE A PESSOA SE DEIXAR ENCANTAR com o mistério e a
beleza da natureza. Embora permanecendo céptico, é capaz de perceber
padrões na natureza. Não aceita as coisas por causa de uma fé cega, mas por
causa de uma fé genuína. Aqui se situam os místicos.

7. Níveis de desenvolvimento da humanidade (Cristo Martins)

Cristo Martins (1996), no seu trabalho “Pistas para a Realização do Humano”, explica
que só podemos usar o que conscientemente possuímos pois todo o potencial e riqueza

107
http://wikipedia.org/wiki/M_Scott_Peck (15.01.07)

232
latentes precisam ser despertos antes de poderem ser utilizados. Por isso, se, por um
lado, é na medida da consciência de si (reguladora da abertura e crescimentos
humanos) que o Homem evolui, também é pela intensidade da interacção dinâmica
entre o fisiológico, o psicológico e o espiritual que se determina o grau de
autoconsciência de cada pessoa e se marca o estádio da humanização. Desta matriz
resultam seis níveis de desenvolvimento da humanidade que correspondem também a
seis níveis de autoconhecimento:

HOMEM SENSITIVO – no alvor da humanidade (em que o medo era/é um estado


permanente) procura o agradável exigido pelos sentidos, age por impulsos, não
age mas reage; inconsciência de si – estado de meninice.
HOMEM EMOCIONAL – procura a satisfação das emoções, dependente dos
acontecimentos, dos ambientes e das outras pessoas; semiconsciência nublosa
– estado de criança desadaptada.
HOMEM INTELECTUAL – procura o útil (o ter, o poder e o prestígio), procura conhecer as
coisas, mas nada ou pouco sabe da Pessoa – desconhece que existem outras
possibilidades; semiconsciência luminosa – estado de criança rebelde.
HOMEM INTUITIVO – procura o Bem, o Verdadeiro e o Belo; confia e tem fé na pessoa,
começa a ter consciência de si e das suas potencialidades – estado de adulto.
HOMEM INTEGRAL – faz a descoberta da Unidade; vive no abraço da Ciência, da Arte e
da Fé; começa a revelar uma ampla consciência de si, da humanidade e do
universo; aqui se dá a verdadeira interacção do fisiológico, do psicológico e do
espiritual – adulto auto-realizado.
HOMEM CÓSMICO – intensifica-se a vivência da Unidade; pessoas e coisas são suas
irmãs; em todos e em tudo vê o positivo; cada pessoa é una e íntegra em si
mesma, em unidade com o Todo, e tem consciência disso; consciência cósmica
– pleniconsciência.

Porque em todas elas, se expressa a possibilidade de


- deixar de lado a ideia de desenvolvimento como mero desdobramento ou
concretização de modelos pré-existentes;
- deixar de lado o estado catatónico, paralisador de actos e do pensamento, em
que grande parte das pessoas vive;
- deixar de lado as máscaras e apresentarmo-nos como somos;

233
- deixar de lado a obrigação de nos comportarmos como os outros pensam que
nos deveríamos comportar;
- aceitar os outros e confiar em nós mesmos;
- nos abrirmos à própria experiência;
- expressar em cada momento a liberdade de sermos nós próprios;
e, em todas elas se distingue
- um movimento – da homogeneidade à unicidade;
- um caminho – do ego ao Ser, da não consciência à consciência; da reacção à
intencionalidade, do medo ao sentido da existência,
- um encontro – com o Eu, com os Outros, com o Universo, um encontro com a
própria transcendência,
procuro conjugar no quadro seguinte como entendo serem os paralelos entre as fases
níveis ou estágios sugeridos, estas diferentes abordagens.

Hierarquia de Serviço da
Egocentrismo Grupo Social Auto-realização
Dabrowski Valores Humanidade
Em vias de
Não Realizados Auto-realizados Transcendentes
Maslow Realização
R. Sereno Entendimento
R. Visionária
Chopra R. de Combate ou Fuga Resposta Reactiva Resposta Intuitiva
Resposta Sagrada
Resposta Criativa

Pré-Convencional Convencional Pós-Convencional


Kohlberg

Caótico Fé Cega Cepticismo Científico Encantamento


Peck
Sobrevivência Controlo Afirmação Centração Transcendência
Sturner Propagação Ligação Actualização Integração Ser

Caótico Fé Cega Cepticismo Científico Encantamento


Peck
Homem Sensitivo H. Intuitivo
Homem Intelectual Homem Cósmico
C.Martins Homem Emocional H. Integral
Tabela II.6 – Paralelos entre diversas abordagens dos estádios de desenvolvimento humano.

234
2.3 Síntese do desenvolvimento humano
“Imagine a woman who believes it is right and good she is a woman.
A woman who honors her experience and tells her stories.
Who refuses to carry the sins of others within her body and life.
Imagine a woman who believes she is good.
A woman who trusts and respects herself.
Who listens to her needs and desires, and meets them with tenderness and grace.
Imagine a woman who has acknowledge the past’s influence on the present.
Imagine a woman who has walked through her past.
Who has healed into the present.
Imagine a woman who authors her own life.
Who refuses to surrender except to her truest self and to her wisest voice.
Imagine a woman who names her own gods.
A woman who imagines the divine in her image and likeness.
Who designs her own spirituality and allows it to inform her daily life.
Imagine a woman in love with her own body.
A woman who believes her body is enough, just as it is.
Who celebrates her body and it rhythms and cycles as an exquisite resource.
Imagine a woman who honors the face of the Goddess in her own changing face.
A woman who celebrates the accumulation of her years and her wisdom.
Who refuses to use the precious energy disguising the changes in her body and life.
Imagine a woman who values the women in her life.
A woman who sits in circles of women.
Who is reminded of the truth about herself when she forgets.
Imagine yourself as this woman”.
Patricia Lynn Reilly, 1995108

1.
A inquietação do Ser é a percepção da própria transcendência – porque, apesar de
tudo, alguma coisa chama; porque, apesar de tudo, se sabe ser mais; porque, apesar
de tudo, existe a certeza interior (mesmo que não manifesta), de que as coisas e a vida
podem (e devem) ser diferentes. É o saber que, apesar de tudo, contra tudo e contra
todos, é urgente buscar o próprio caminho e que (quando se começar a fugir do
caminho “correcto”, “aprovado”, “normal”), muitas vezes vai ser preciso caminhar só. É o
sentir-se, e apesar de tudo também, um pouco D. Quixote que, desejando entregar-se
completamente a um sonho e sem se importar com o cepticismo ou a troça dos outros,
anseia por se despir de todas as coisas aprendidas e, com isso, chegar a descobrir e
conhecer o Ser (Ribeiro Dias, 2000; Boff, 1998; Moffit, 2003a; Blay, 1988; Jeffers,
1991). Assim, e utilizando a universalidade das explicações sobre a força dessa
transcendência, a inquietação do Ser acontece quando:

- se busca ser o que realmente se é (Rogers, 1970);

108
http://stacywest.com/newinspiration.html

235
- se sente o apelo das necessidades do ser (Maslow, 1991);
- se percebe que ser homem é estar preparado e orientado para algo que não é ele
mesmo (Frankl, 1994:37);
- se vislumbra o sentido de um destino criativo (Wechsler, 1996);
- se sente o “homem educável” dentro do próprio eu (Trigo & Kon-Traste, 2001);
- se sente a urgência da resposta ao convite “vai ao encontro de ti mesmo”
(Azevedo & Louro, 2006);
- se sabe ter talentos escondidos (Mt, 25, 24-30) que podem e só esperam por
serem trazidos à luz;
- (...)

2.
“Imagina uma mulher que é a autora da sua própria vida, que recusa rodear-se de
coisas que não sejam o seu próprio eu e a sua voz mais sábia”, diz o poema de Patricia
Lynn Reilly que acima transcrevi. Foi isso que tentei fazer ao longo da reflexão que
neste ponto do capítulo tenho vindo a fazer. Por isso agora, inspirada em Sérgio (2005),
Morin (2003; 2006), Frankl (1994), Bronfenbrenner (Papalia et al, 2001), Lowen (1984,
1997), Max-Neef (1993) e outros, e considerando que as mudanças globais começam
por ser mudanças pessoais, apresento a minha própria definição deste conceito:

DESENVOLVIMENTO HUMANO
Movimento em espiral, consciente e intencional, com
ondas de repercussão que flúem entre os contextos
micro e macro, em princípio acessível a qualquer
indivíduo que, por criação própria e em busca de sentido
na sua totalidade complexa, rompe as barreiras da gente
cinzenta, sem graça e com medo, alarga as fronteiras da
desconfiança, da apatia e da mediocridade feita norma e,
Ilustração II.17 – Dinâmica do com isso, assegura a possibilidade de construção de
Desenvolvimento Humano.
mundos de alegria e de paz.

Contudo, quando aquele mesmo poema nos diz “imagina-te como sendo esta mulher”,
preciso fazer um pouco mais – preciso começar a perguntar o que se pode começar a
fazer para se ser assim. É isso que tentarei fazer nos próximos movimentos desta etapa
da pesquisa.

236
3. Campo de Criação
You must give birth to your images
They are the future waiting to be born.
Fear not the strangeness you feel
The future must enter you long before it happens.
Just wait for the birth
For the hour of new clarity.
Rainer Marie Rilke

Diversas são as áreas do conhecimento que podem estudar esta ligação entre o Medo
e o Desenvolvimento Humano. Contudo, porque o propósito desta pesquisa é chegar a
um conjunto de princípios educativos para, em contexto de Educação de Adultos, lidar
com o que ficou genericamente definido como Medo da Vida, julgo que, antes de mais,
importa fundamentar o que considero serem as áreas estruturadoras do campo de
criação aqui em causa e que, pela sua interacção sistémica, são via de construção do
humano e constituem o terreno em que o trabalho de campo desta pesquisa decorreu: a
EDUCAÇÃO DE ADULTOS, a
CRIATIVIDADE e a MOTRICIDADE
HUMANA (ilustração II.18).

E porquê estas? Porque, pela


EDUCAÇÃO CRIATIVIDADE
DE
ADULTOS
sua inter-relação, é possível
encontrarmos vias de
intervenção (não só de
MOTRICIDADE
HUMANA reconhecimento), de rebeldia
(não de resignação), de
possibilidades (não de
Ilustração II.18 – Campo de criação – interligação das três dimensões.
determinação), de inserção (não
apenas de adaptação) (Freire, 2000)109.

1. A EDUCAÇÃO DE ADULTOS é o contexto que permite a “intervenção”, aquele que


consiste em:

109
Paulo Freire escreve: “é preciso (...) que tenhamos na resistência que nos preserva vivos, na
compreensão do futuro como problema e na vocação para o ser mais como expressão da natureza humana
em processo de estar sendo, fundamentos para a nossa rebeldia e não para a nossa resignação em face das
ofensas que nos destroem o ser. Não é na resignação mas na rebeldia em face das injustiças que nos
afirmamos” (Freire, 2000:87).

237
“Contribuir para criar condições para que todos os seres humanos, a começar
por cada um de nós, se desenvolvam em todas as suas capacidades, crescçam,
sejam, até à sua plena realização” (Ribeiro Dias, 2000:9).

2. A CRIATIVIDADE, é o alimento que permite a “rebeldia”, aquela que permite:


“Viver a humanidade total (...), é como se a criatividade fosse sinónimo de
autorealização, um aspecto sine qua non, ou uma característica definitória dessa
humanidade essencial” (Maslow, 1991:258).

3. A MOTRICIDADE HUMANA é o sujeito em relação, em “inserção” no mundo, com o


mundo e com os outros, aquele que precisa de:
“Sentir o corpo como a pele da alma porque é sobre essa pele sensível que, de
tarde em tarde, reclama um gesto amável, uma expressão de ternura ou um
abraço, onde se experimenta mais profundamente o amor, a solidariedade, a
possibilidade de que o abismo interior seja contido noutro corpo” (Cajiao,
1996:11).

Assim, e por força do carácter ambíguo ou, talvez, pol(iss)émico, com que muitas vezes
estes conceitos são utilizados, passo à definição mais detalhada da perspectiva que
está por detrás de cada um deles – para que fique clara a compreensão do papel que
aqui lhes é conferido; para que possa explicar como se interrelacionam e dão origem
àquilo que denomino “educação criativo-motrícia”.

3.1 Educação de Adultos

EDUCAÇÃO:
- “É um processo contínuo do berço à tumba, do ser homem, porque se nasceu filho
de mulher, ao Ser Homem, porque se construiu, ou se conquistou, ou se aceitou, a
plenitude da realização humana” (Azevedo, 1997:16).

EDUCAÇÃO DE ADULTOS:
- “A totalidade dos processos organizados de educação, qualquer que seja o
conteúdo, o nível ou o método, quer sejam formais ou não formais, quer prolonguem

238
ou substituam a educação inicial ministrada nas escolas e universidades, e sob a
forma de aprendizagem profissional, graças aos quais as pessoas consideradas
como adultos pela sociedade a que pertencem, desenvolvem as suas aptidões,
enriquecem os seus conhecimentos, melhoram as suas qualidades técnicas ou
profissionais, e fazem evoluir as suas atitudes ou o seu comportamento na dupla
perspectiva de um desenvolvimento integral do homem e de uma participação no
desenvolvimento social, económico e cultural, equilibrado e independente”
(Conferência Geral da UNESCO, Nairobi:1976, apud Rocha, 1988:199).
- “Os objectivos da educação de jovens e de adultos, vista como um processo ao
longo da vida, são o desenvolvimento da autonomia e o sentido de responsabilidade
das pessoas e das comunidades, de forma a reforçar a capacidade de lidar com as
transformações que ocorrem na economia, na cultura e na sociedade como um todo,
e a promover a coexistência, tolerância e a participação informada e criativa dos
cidadãos nas suas comunidades; isto é, para capacitar as pessoas e as
comunidades a assumirem o controlo do seu destino e da sociedade de forma a
enfrentar os desafios que se lhes colocarem. É essencial que as abordagens da
educação de adultos sejam baseadas na herança das próprias pessoas, cultura,
valores e anteriores experiências e que as diversas formas com que estas
abordagens são implementadas capacitem e encorajem cada cidadão a tornar-se
110
activamente envolvido e a ter uma voz” (Unesco, 2003).

Não tendo pretensão, espaço ou interesse em trazer aqui uma síntese da história e dos
grandes paradigmas em que a Educação se manifesta, procurarei antes:

- Por um lado, e porque “a nossa linguagem e as formas da nossa linguagem


moldam a nossa natureza, dão forma ao nosso pensamento e impregnam as
nossas vidas” (Hacker, 1998:14), chamar à consciência algumas das expressões
com que no quotidiano nos referimos à educação e que, pela força que as
palavras possuem, acabam (mesmo que subtilmente), por realizar o que
significam e corromper o sentido essencial do acto e do processo educativo.

110
(http://www.unesco.org/education/uie/confitea/declaeng.htm: 2003-02-04): “The objectives of youth and
adult education, viewed as a lifelong process, are to develop the autonomy and the sense of responsibility
of people and communities, to reinforce the capacity to deal with the transformations taking place in the
economy, in culture and in society as a whole, and to promote coexistence, tolerance and the informed and
creative participation of citizens in their communities, in short to enable people and communities to take
control of their destiny and society in order to face the challenges ahead. It is essential that approaches to
adult learning be based on people’s own heritage, culture, values and prior experiences and that the
diverse ways in which these approaches are implemented enable and encourage every citizen to be actively
involved and to have a voice”.

239
- Por outro, e a partir da contribuição de alguns autores que, de uma forma ou
outra, têm acompanhado o meu percurso, apontar o que considero serem alguns
dos eixos estruturadores desta área do campo de criação aqui em causa, bem
como da forma de pensar-sentir-agir com que procuro construir a matriz do
entendimento do que é ser educador.

UNESCO

• 1968 – Coombs: “A Crise Mundial da


Educação”.

• 1972 – Faure: “Aprender a Ser” – novos valores


educativos.

• 1976 – Dupla perspectiva da Educação de


Adultos: desenvolvimento integral do homem e
EDUCAÇÃO participação no desenvolvimento social,
CRIATIVIDADE
DE económico e cultural.
ADULTOS
• 1996 – Delors: “A Educação Encerra um
Tesouro” - pilares da Educação: aprender a ser,
aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender
a viver juntos.

Palavras-chave:

• Processo contínuo; autonomia;


responsabilidade; transformação; cultura; valores;
criatividade; controlo do próprio destino.
Fonte: Azevedo (1997); Trigo (2001)
Ilustração II.19 – Educação de Adultos: síntese do conceito.

Quer se trate de Educação em geral, ou de Educação de Adultos em particular, muitas


das expressões que lhes andam associadas colocam-se à volta do conceito de “forma”
– “ser formador”; “receber formação”; “ser formado”, “informar”. Tanto em termos
metafóricos, como reais, isto significa que, muitas vezes, se parte de uma forma (pré-
existente), que nela se coloca qualquer massa (onde até aí moravam todas as
possibilidades), se “aquece” e se espera o tempo devido (de acordo com a consistência
final que se deseja) e que, de qual cadeia de montagem, o produto sai “forma(ta)do”. E
o produto, tanto os educandos-educadores, como os educadores-educandos (pois
“quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser
formado” – Freire, 2000:25), são reconhecidos (e entre si se reconhecem), muito mais
pela forma do que pelo seu conteúdo original e único que, em tantos casos, se esbateu
com a pressão da forma. Isto é:

240
- reduzidos à condição de objecto pela pressão de um qualquer modelo, de uma
qualquer norma, de uma qualquer convenção, de um qualquer poder;
- com a pressão do que (ou de quem) recusa o que (ou quem) se situa nos limites
ou nas franjas do sistema;
- com a pressão do que (ou de quem) repudia também qualquer salto que abdique
das (in)certezas do passado, que procure desafiar o presente e corra o risco de
integrar o desconhecido e o inédito (Shallcross, 1996).

Em resumo, distantes do que, na sua essência e pelo compromisso com a acção,


projecte o futuro, permita a transformação e construa o humano.

A libertação* autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se


deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É praxis, que implica a
acção e a reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo (Freire, 2003: 67).

Estamos, desta maneira, muito longe do que há muito se vem sabendo (mas, talvez, só
no mental) ser a importância da imaginação e da criatividade para a vivência* e
consolidação do “APRENDER A SER”, do “APRENDER A CONHECER”, do “APRENDER A FAZER”
e do “APRENDER A VIVER JUNTOS” (Delors, 1996).

Numa sociedade marcada pelo valor da produção, do consumo, do ter e da competição,


em que
a ambição pode, ocasionalmente, levar à riqueza ou ao êxito individual, mas não leva à
transformação harmónica do mundo na sabedoria de uma convivência que não vai gerar
nem pobreza nem abuso (Maturana, 2006),
continuamos a ter uma educação marcada pelas notas, pelos créditos, pelos débitos;
continuamos a ter uma educação que se verga ao peso daquilo a que Paulo Freire
(2003) chamou “concepção bancária” – temos depósitos em vez de consciência
intencionada; temos passividade, em vez de transformação; temos informação(ões) em
vez de sabedoria; temos reprodução em vez de criação; temos competição em vez de
cooperação; temos “incomunicação” e distância em vez de inspiração e contágio; temos
demasiadas palavras em vez de expressão de nós mesmos; temos ruído em vez de
silêncio; temos sofrimento em vez de paz.

241
“A fórmula é conter-se dia após dia (...). Treinar o cérebro para treinar os músculos.
Conter as emoções, conter a palavra, baixar a voz (...). Treinar os músculos para não
revelar mais do que desejamos, manobrar o olhar e o gesto da boca para mostrar ou
deixar de mostrar. Um ser humano educado é um ser humano controlado. Assim, pouco
a pouco, com perseverança e esforço, se chegará à maturidade com almas parecidas
com esses corpos treinados colectivamente por uma cultura complexa e abarcadora que
ensina a manejar a linguagem corporal de que, muitas vezes, não temos nem
consciência” (Cajiao, 1996:32).

Um dia, num workshop de Doris Shallcross, professora do Master Internacional de


Creatividad Aplicada Total da Universidade de Santiago de Compostela (1996), ouvi-a
trazer a nós as palavras de um sábio: “se o trabalho de um professor não é mais do que
transmitir conhecimentos, então é melhor mandar os alunos para a biblioteca porque
está melhor equipada que qualquer professor”. Qual é, então, o sentido e a tarefa da
educação já que, acredito, esta não será nunca criadora-inspiradora-contagiadora de
pessoas-mundos-resultados que, de alguma maneira, não estejam de antemão
presentes, mesmo que só em génese, nos seus actores, nos seus processos, no ar que
se respira?

Numa tentativa, ainda que incompleta, de encontrar resposta(s), releio alguns autores.
E deles registo e realço o que, no campo da Educação, pode, não só estabelecer o
vínculo com as dimensões próprias da Criatividade e da Motricidade Humana111, como
também, e enquanto tal, servir de fundamento-interligação com o ponto de reflexão
seguinte:

- O sentido e a tarefa da educação encontram-se nas PESSOAS – “não é o ensino que


garante a aprendizagem, mas sim a vontade de aprender e a prontidão para mudar,
pelo que professor, que é educador112, é O QUE PARTILHA O PROCESSO DE
APRENDIZAGEM” (Feitosa, 1999:71).

- O sentido e a tarefa da educação corporizam-se no seu CONTEXTO – “os VALORES


não são para ser ensinados, mas PARA SER VIVIDOS” (Maturana, 2000:17).

111
Que adiante também serão explicitadas.
112
O sublinhado é meu.

242
- O sentido e a tarefa da educação realizam-se no seu PROCESSO – alfabetizar-
educar113, é CONSCIENTIZAR, é “estabelecer intimidade entre os saberes curriculares
e a experiência social”, é “aprender a escrever a própria vida como autor e como
testemunha da história”, é problematizar, é “correr o risco de pensar autenticamente”
(Freire, 2003:10-11; 61).

- O sentido e a tarefa da educação consubstanciam-se no seu PRODUTO – “se


considerarmos o desenvolvimento da pessoa como vector fundamental no processo
educativo, teremos de reconhecer que todas as capacidades do homem confluem
para a CONSTITUIÇÃO DO NÍVEL MÁXIMO DE CONSCIÊNCIA DA PRÓPRIA IDENTIDADE, DA
PRÓPRIA MISSÃO, DO PRÓPRIO DESTINO” (Ribeiro Dias, 2000:92). Educar é “educar
para a vida (...) é criar condições para a descoberta do núcleo da IDENTIDADE
PESSOAL e para a relação com OS OUTROS, com O MUNDO, com o Ser” (Azevedo,
2006:111).

3.2 Criatividade

CRIAR:
- “Inventar possibilidades” (Marina, 1993).
CRIATIVIDADE
- “Uma maneira especial de pensar, sentir e actuar que conduz a um resultado ou
produto original, funcional ou estético, quer seja para o próprio sujeito ou para o
grupo social a que pertence (Aldana, 1996).
- “Concepção da criatividade em termos de auto-organização e vibração quântica
transformadora - criatividade é deixar rasto: algo como uma energia vibracional que
flúi do nosso interior ao conjugar potenciais mentais, emocionais, corporeidade e
transpessoais (Torre, 2008:9).
PERSONALIDADE CRIADORA
- “Tenho a impressão de que o conceito de criatividade e o de pessoa sã, auto-
realizada e plenamente humana estão cada vez mais próximos um do outro e talvez
sejam o mesmo” (Maslow, Apud Moyer, 1995:84).

113
O sublinhado é meu.

243
UMA FÓRMULA PARA A CRIATIVIDADE:
- C = ƒa (c, i, a)
Criatividade é uma função de uma atitude interpessoal em direcção ao uso benéfico
e positivo da criatividade em combinação com três factores: conhecimento,
imaginação e avaliação” (Noller, Apud Isaksen, 1994:6).

Gerações no Estudo da Criatividade:


1ª - Ênfase no Pensamento Criativo
• Avaliação e estratégias para o seu
desenvolvimento
• Guilford e Torrance
2ª - Solução Criativa de Problemas
• Estratégias do hemisfério direito – analogias,
metáforas, visualização, sonhos

CRIATIVIDADE • Prince, Corvacho, de Bono, Isaksen


3ª - O Viver Criativo
• Atitude Criativa - muitos bloqueios da
criatividade são emocionais.
• Rogers, Maslow, May
Dimensões da Criatividade
• Pessoa
• Processo
• Produto
• Pressão
Fonte: Aldana (1996)
Ilustração II.20 – Criatividade: síntese do conceito.

Sendo, provavelmente, inerência biológica, um instinto tão básico como o comer ou o


lutar (Sousa et al, 1998:46), e podendo ser explicada, em termos globais, pela
interacção sistémica de quatro dimensões a que chamamos os 4 P’s114 - Pessoa,
Processo, Produto e Pressão - (Isaksen, 1994), a Criatividade é um conceito dinâmico
que muda à medida da nossa experiência. Tendo vindo a ser objecto de estudo ao
longo de uma sequência cumulativa de três gerações (Aldana, 1996), encontro em cada
uma delas um grande contributo para o desenvolvimento do nosso potencial humano
que aqui procuro também traduzir.

114
Porque nenhuma definição de criatividade é capaz de, por si só, cobrir toda a complexidade do conceito,
Mel Rhodes (1961), considerando que as diversas definições da criatividade não são mutuamente
exclusivas, procurou identificar os vários temas presentes. Mais recentemente, Scott Isaksen, pela
utilização de um diagrama de Venn, aqui reproduzido, procurou mostrar a relação existente entre eles. É
aquilo a que normalmente se chama os 4 P’s da Criatividade (Pessoa, Processo, Produto, Pressão) (Isaksen,
1994).

244
Na primeira, há mais de cinquenta anos, as principais preocupações centravam-se no
interesse em desmistificar o fenómeno a partir de uma PERSPECTIVA PSICOLÓGICA.
Autores como Guilford e Torrance enfatizaram a pesquisa sobre o pensamento criativo,
procuraram compreender as suas componentes e sistematizar a criação de um conjunto
de estratégias metodológicas que o pudessem estudar e estimular. Um dos
instrumentos mais conhecidos é o “brainstorming”115 que, tendo sido proposto por Alex
Osborn, encontrou em Sidney Parnes e em David de Prado a possibilidade de um
grande desenvolvimento e de utilização em contextos tão diversos como o do mundo
empresarial e da educação.

ANÁLISE SISTÉMICA DA CRIATIVIDADE

PESSOA PROCESSO
Características Operações Que
Das Pessoas Realizam

PRESSÃO
Clima, Cultura,
PRODUTO Contexto
Resultados

© The Creative Problem Solving Group - Buffalo, 2000.


(traduzido por Helena Gil da Costa – 2001)

Ilustração II.21 – A abordagem sistémica da Criatividade. Tradução e reprodução de Isaksen, 1994.


© The Creative Problem Solving Group, Inc. – Used with permission.

Na segunda geração do estudo da Criatividade, a da RESOLUÇÃO CRIATIVA DE


PROBLEMAS, com uma ênfase mais pragmática, autores como Edward de Bono, Prince
ou Scott Isaksen chamam a atenção para a necessidade de aprendermos a mudar de
perspectiva sobre o significado e o sentido dos problemas. Não mais vistos como
tragédias, mas como desafios e oportunidades para o desenvolvimento de novas
capacidades, competências e soluções (Aldana, 1996), entende-se que é necessário
equilibrar de forma dinâmica as estratégias do hemisfério direito (analogias, metáforas,
visualizações, sonhos, etc.), com as estratégias do hemisfério esquerdo (memória,
análise, comparação, crítica, etc.). Os autores desta geração procuram encontrar meios
que, através do uso de uma série de procedimentos, instrumentos e técnicas de

115
“Chuva de ideias” em Português e “torbellino de ideas” em Castelhano.

245
produção e de análise de opções, conduzam a soluções originais e eficazes em
diversas áreas da vida quotidiana.

“A actividade criativa apresenta-se… como sendo simplesmente um tipo especial de


resolução de problemas, caracterizado pela novidade, inconvencionalidade, persistência
e dificuldade na formulação do problema” (Newell, Shaw e Simon, 1962, Apud imagens
de conferências públicas, CPSB).

A terceira geração no estudo da Criatividade, que começa com a abordagem da


Criatividade feita pela Psicologia Humanista (Rogers, Maslow, May), chama a atenção
para a importância da auto-realização, de um auto-conceito positivo, do crescimento
saudável em direcção ao desenvolvimento máximo das potencialidades pessoais, das
questões motivacionais e da natureza das transacções que ocorrem nas relações
interpessoais e de grupo (Treffinger, 1996). Porque os valores e as formas sociais
vigentes (que amplamente enfatizam a aceitação e o conformismo) não fornecem mais
soluções satisfatórias, porque muitos dos bloqueios da criatividade não são racionais,
mas emocionais, chega-se à geração do VIVER CRIATIVO – que se consubstancia na
atitude criativa e na abordagem criativa da vida diária com respostas novas e
imaginativas (Aldana, 1996; Lowen, 1984; Wechsler, 1996).

“O meu conceito de criatividade na década de 70 estava imbuído pela concepção


positiva do saber psicopedagógico do momento. A criatividade era entendida como a
capacidade para encontrar múltiplas alternativas para os problemas. De facto, tinha que
ver com a capacidade divergente para resolver problemas, qualidade que hoje refiro ao
Pensamento Criativo. A conceptualização que hoje sustento é uma síntese holística do
cognitivo e do afectivo, um encontro entre pessoa, meio, processo e resultado. É isso
que procuro comunicar com a expressão “deixar marca”. (...) A marca pode ser desde o
impacto e empatia pessoal até à obra com ressonância institucional e social. Existe uma
considerável evolução entre o conceito de criatividade vinculado às potencialidades
cognitivas e o actual, carregado de conotações atitudinais e afectivas. Quer dizer, um
116
conceito aberto ao saber e à vida” (Saturnino de la Torre in PROCREA, 2006 ).

A criatividade integral, entendida, assim, como um modo de vida da pessoa que se vê


em permanente processo de transformação e descoberta, precisa de duas

116
http://www.manizales.unal.ed.co/procrea/saturnino1.php. 2006

246
componentes essenciais – de SENSIBILIDADE, isto é, da possibilidade de utilizar toda a
riqueza dos sentidos como ponto de partida para o contacto da pessoa consigo mesma,
com os outros e com o mundo; de COMPROMISSO COM A ACÇÃO, isto é, de ter como
propósito algum tipo de transformação da realidade (Aldana, 1996). E sensibilidade e
acção é, exactamente, o que é preciso para estabelecer a ponte com a terceira área do
campo de criação aqui presente, a Motricidade Humana.

3.3 Motricidade Humana

MOTRICIDADE HUMANA:
- “A energia para o movimento centrífugo e centrípeto da personalização. (...) É a
energia para o movimento intencional de superação (ou de transcendência)” (Sérgio,
Apud Sérgio & Toro, 2005:105).
- “Forma concreta de relação do ser humano com o mundo e com os seus
semelhantes (...). A motricidade refere-se (...) a sensações conscientes do ser
humano em movimento intencional e significativo no espaço-tempo objectivo e
representado, implicando percepção, memória, projecção, afectividade, emoção,
raciocínio. Evidencia-se em diferentes formas de expressão – gestual, verbal,
cénica, plástica, etc.” (Kolyniak, 2005:33).

A última área do campo de criação é a Motricidade Humana – aquela que, mais


recentemente, estou incorporando na minha consciência e nas minhas inquietudes de
construção do humano, mas também aquela que parece constituir a forma e a condição
concreta em que as outras duas se movimentam. Contudo, o facto de aqui lhe ser dado
um espaço um pouco mais alargado não corresponde a atribuição de uma maior
importância relativamente às outras. Simplesmente porque, no discurso académico, é o
conceito mais recente, talvez por isso o mais desconhecido, pareceu necessário
apresentar de forma bem clara alguns dos princípios e dos termos que a enformam.

247
• Breve história da construção do conceito de
motricidade humana

Herdeiros que somos de uma concepção do homem que, a partir dos sofistas e com os
pré-socráticos, Sócrates, Pitágoras e Platão, a era cristã, a Idade Média, Descartes...
faz a divisão entre corpo e espírito e acentua a ideia de “ter um corpo” como mero
instrumento da mente/espírito, é só com Husserl, em 1891, que se desenvolve o
conceito de “filosofia da fenomenologia” que, basicamente, posiciona o sujeito e o
mundo numa mesma situação e influenciando-se mutuamente. Recuperando, assim, a
concepção do ser humano como unicidade em comunhão com a natureza (própria das
antigas civilizações), é Merleau-Ponty, em 1945, e no desenvolvimento da
fenomenologia, que sublinha que a realidade corpórea do ser humano é a causa da
relação sujeito-mundo – o autor evolui para a ideia do “ser corpo” e para o entendimento
de que é na MOTRICIDADE HUMANA que operam todas as dimensões do ser humano.
Mais tarde, em 1986, Zubiri substitui o conceito de “sou corpo” pelo conceito de
“corporeidade” e introduz a noção de que a expressão não é algo que se tem, mas sim
consequência da corporeidade (Sérgio et al., s.d.).

“A pessoa manifesta-se através e com o seu corpo, mas essas manifestações –


emoções, sentimentos, pensamentos – são parte desse corpo (Damásio, 1995). Falar do
corpo em toda a sua amplitude é transcender o sistema orgânico, para entender e
compreender o próprio “humanes”. O ser possui um corpo, mas não é um corpo
exclusivamente objectal, é um corpo que vive, que é expressão. O Humanes já não só
“possui” um corpo (que só faz), mas a sua existência é corporeidade e a corporeidade da
existência humana implica fazer, saber, pensar, sentir, comunicar e querer” (Trigo &
Kon-Traste, 2001:75).

Bem perto de nós, e centrando-se no valor da ACÇÃO (enquanto componente do


comportamento humano e eixo do conhecimento), e no valor da cultura (enquanto
conhecimento vivido), Manuel Sérgio considera que ACÇÃO é um conceito que engloba
pensamento, intenção, consciência, emoção e energia. Isto significa que uma ideia é
uma acção, falar é uma acção, qualquer situação consciente é uma acção – não
somente a conduta em si, a execução. Porque a acção começa na percepção, fora da
acção há respostas imediatas, respostas reflexas.

248
História da Motricidade Humana
Husserl (1891)
• O sujeito constrói a realidade, a realidade
constrói o sujeito.
Merleau-Ponty (1945)
• “Ser corpo” – a motricidade do ser humano é a
configuração em que operam todas as dimensões
do ser humano.

MOTRICIDADE Varela, Chengeux, Damásio, Von Glaseferd


CRIATIVIDADE • Unicidade do ser humano, necessidade de
HUMANA
superar a departamentalização das ciências.
Manuel Sérgio (1986)
• Novo paradigma sobre o humano - conceito de
acção que engloba pensamento, intenção,
consciência, emoção, energia.
Rede Internacional de Motricidade Humana (1999,
2006)
• Corporeidade – 7 corpos

Fonte: Sérgio et al. (s.d.)


• Pilares da M.H. – ética, acção, complexidade,
política, ludismo, ecologia, transcendência, amor.
Ilustração II.22 – Motricidade Humana: síntese do conceito.

Finalmente, e ao mesmo tempo que, em outras áreas do saber, se produz o


desenvolvimento sistemático das neurociências, o reconhecimento da unicidade do ser
humano e o reconhecimento da necessidade superar a departamentalização das
ciências, com a constituição da Rede Internacional de Investigadores de Motricidade
Humana e, nomeadamente em 1999, com os resultados da investigação da Equipa
Kon-traste da Universidade da Corunha e da Equipa de Investigação da Universidade
do Cauca (2006), são feitas duas novas contribuições que, a seguir, se expõem e, na
ilustração 2.23, se sintetizam e se inter-relacionam – a identificação das características
do acto motrício (os pilares da motricidade humana); a proposta dos sete corpos da
identidade humana.

• Características do acto motrício e pilares da motricidade


humana

“Acção motrícia – evento de manifestações da motricidade que consiste em mudanças


da posição do corpo, na sua totalidade ou em partes, no espaço, configurando uma
sucessão de estados que pode ser percebida e interpretada como fenómeno objectivo e
subjectivo, quer dizer, como acção para que, tanto o seu sujeito como um observador
podem atribuir significado. A acção motrícia pode ser considerada na sua forma
genérica, em que expressa uma configuração e um significado que podem ser

249
percebidos em manifestações de diferentes indivíduos, e na sua forma singular, em que
se expressa uma configuração e um sentido específico, por isso único e irrepetível para
determinado indivíduo” (Kolyniak, 2005:33).

Corpo
Mental
Corpo
Emocional
Corpo
Cultural
Corporeidade(s)
Corpo
Físico

Motricidade
Corpo
Corpo
Mágico-Sensitivo
Inconsciente
Corpo
Transcendente

Ilustração II.23 – Relação entre os pilares da motricidade humana e as características do acto motrício.

As características que definem um acto motrício, PILARES DA MOTRICIDADE HUMANA, são


as seguintes (Trigo, 2006:64):

1. COMPLEXIDADE: pensamento crítico mais pensamento criativo e os sete


princípios* expostos por Morin – sistémico, hologramático, circular retroactivo,
circular recursivo, autonomia-dependência, dialógico, reintrodução do
conhecimento em todo o conhecimento.
2. LUDISMO: sentido lúdico da vida, viver o tempo, viver o momento e o processo,
fluir.
3. TRANSCENDÊNCIA: projectar-se e projectar, compromisso e pertença, caminhar
em direcção à experiência possível.
4. ÉTICA: construção, não destruição, respeito pelas identidades e individualidades.
5. POLÍTICA: o compromisso social com as pessoas e os povos, revolução dos
povos da terra em prol da sua emancipação.
6. ECOLOGIA: humana, planeta, universo numa relação intercomunicativa,
impossível de separar; a relação eu-outro-cosmos; o compromisso humano com
a vida.

250
7. ACÇÃO: qualquer acto intencional (interno e externo; observável e não
observável) – a interrelação entre pensamento, emoção, intenção, inquietude,
consciência, energia.
8. AMOR: o sentimento que nos integra, nos harmoniza, não só entre os seres
humanos, mas com Gaia e todo o sistema vivo planetário. Amar é encontrar na
felicidade do ser amado a própria felicidade.

• As sete dimensões da corporeidade

“A corporeidade é uma construção, não um mundo dado, [mas] um processo histórico


em que se vão gravando os sinais do tempo, por isso, um caminho pessoal, cultural,
ético, político e transcendente” (Bohórquez e Trigo, 2006).

À semelhança da sabedoria antiga dos hindus e dos lamas e do número sete como
símbolo de perfeição dinâmica nos egípcios, as dimensões da corporeidade
correspondem ao entendimento de que a identidade humana se sustenta em sete
corpos117. Enquanto DIMENSÕES QUE CONFIGURAM A CORPOREIDADE (pelo que se deveria

117
Outros autores apresentam também propostas deste tipo. Dois exemplos:
1) Considerando que o desenvolvimento humano se manifesta em aquisições progressivas e
aprendizagens específicas, Roldán Vargas (1997) identifica as seguintes esferas de desenvolvimento
das potencialidades humanas:
Esfera orgânica-maturativa – relacionada com as condições que, na ordem da interacção entre o
biológico e o ambiental (cultural), constituem o suporte do desenvolvimento nas outras esferas.
Implica desenvolvimentos de tipo físico e neurológico.
Esfera cognitiva – relaciona-se com aprendizagens de tipo intelectual. A meta coloca-se numa dupla
perspectiva: o desenvolvimento da capacidade de resolver problemas; o acesso a formas e
estruturas de pensamento que permitam ao ser humano compreender-se a si mesmo e ao mundo.
Esfera erótico-afectiva – em que se colocam aprendizagens ligadas à construção da identidade humana,
o autoconceito e em geral as relações vinculantes afectivas consigo mesmo e com os outros.
Esfero ético-moral – referida a aprendizagens que tocam com a construção de normas que permitam ao
indivíduo elaborar um projecto de vida e contribuir para o de outros. É o desenvolvimento do
sentido do bem próprio e do bem comum como requerimento para uma convivência sã e para o
desenvolvimento da autonomia, entendida como processo de auto-reflexão.
Esfera linguístico-comunicativa – que aponta para a aprendizagem e desenvolvimento da linguagem e
da comunicação, no plano oral e escrito, na pretensão de se aproximar do domínio dos processos
simbólicos, de diálogo e argumentação em que seja possível o entendimento e a compreensão.
Esfera política – que compromete a aprendizagem de formas de vida em comum. O desenvolvimento
desta esfera permite a construção de formas de organização da vida privada e da vida pública, a
construção da acção participativa com outros em áreas do bem comum e do bem próprio.
Esfera lúdica – nela se reconhece o sujeito da liberdade – liberdade de explorar, pensar, criar e
transformar. É o âmbito em que se inscreve o jogo, mas não se restringe a ele – é antes uma atitude
vital.

251
antes passar a falar de interacção de corproreidades), constituem uma complexidade
multidimensional que, tal como a música e a luz, se interpenetram e decompõem em
notas, cores ou tonalidades (Bohórquez e Trigo, 2006). São eles118:

1. CORPO FÍSICO – capacidades energéticas.


2. CORPO EMOCIONAL – capacidades emocionais.
3. CORPO MENTAL – capacidades do pensamento.
4. CORPO INCONSCIENTE – capacidades introspectivas.
5. CORPO CULTURAL – capacidades étnico-globais.
6. CORPO MÁGICO-SENSITIVO – capacidades perceptivas.
7. CORPO TRANSCENDENTE – capacidades projectivas.

Esfera produtivo-laboral – a essência desta esfera é o mundo do trabalho, as aprendizagens orientam


para a consolidação de uma existência criativa, produtiva e regeneradora.
2) Partindo de referências de tradições antigas, Angel Livraga (1994) indica a existência de sete
veículos para a realização do homem:
O físico.
O formal – a parte prânica ou energética, de vibração mais elevada que o anterior, não tem forma
em si mesmo.
O emocional – é a parte psíquica, altera as partes energética e física e, inclusive, os pensamentos.
A mente concreta – a mente racional, da vida corrente.
A mente superior – a mente do abstracto, do filosófico.
O da iluminação – intuição ou sabedoria que permite perceber directamente as coisas sem recurso
à razão.
O Espírito – a consciência que conhece todas as coisas, que conhece o Bem e o Mal.
118
Estes mesmos autores desenvolvem estes conceitos:
Corpo físico – o nosso corpo material, orgânico ou biológico; é palpável, tocante e tocado, receptor e
transmissor, a janela dos nossos sentidos e da alma; é presencialidade, carta de apresentação
perante nós mesmos, perante os outros e perante o mundo.
Corpo emocional – as emoções e os sentimentos que, entrelaçados com o nosso corpo racional, nos
fazem humanos; somos o resultado imediato das nossas emoções.
Corpo mental – cognição, pensamento, raciocínio, memória, análise, comparação, associação,
argumentação, memória, crítica, linguagem; o que manifestamos ao ser conscientes do mundo.
Mas nem o mental nem a linguagem são o cérebro, nem estão só no cérebro – a nossa mente é
orgânica, emocional e espiritual e distribui-se em cada uma das suas células e descobre-se na
interrelação entre o meio e o organismo.
Corpo inconsciente – depósito de recordações condensadas, desejos reprimidos e impulsos primitivos a
que não podemos aceder voluntariamente; é o responsável pelos nossos bloqueios, medos, sonhos,
actos falhados e comportamentos involuntários movidos pelos nossos juízos morais que co-
accionam a nossa possibilidade de ser.
Corpo cultural – o saber popular, o saber em construção, o contexto, o simbólico, o como fazer do
quotidiano, a nossa história, o imaginário colectivo; aproxima-se da ideia de inconsciente
colectivo de Jung que postula um conjunto de conteúdos psíquicos comuns à humanidade em
geral.
Corpo mágico-sensitivo – o extra-sensorial, o que nos conecta com o cosmos, a intuição, o mítico, a
lenda, os contos da nossa infância e a sabedoria que vamos ganhando com a maturidade.
Corpo imanente-transcendente – o caminho do aqui e agora para a projecção, o desde-onde e para
onde, os horizontes, as luzes que orientam no caminho, a criação, a espiritualidade.

252
Ilustração II.24 – Dimensões da corporeidade. Reprodução de Trigo (2006).

Em síntese, pode-se dizer que a motricidade se configura como


“processo cuja constituição implica a construção do MOVIMENTO INTENCIONAL a partir do
reflexo, da reacção mediada por REPRESENTAÇÕES a partir da reacção imediata, das
ACÇÕES PLANEADAS a partir das simples respostas a estímulos externos, da criação de
NOVAS FORMAS DE INTERACÇÃO a partir da reprodução de padrões aprendidos, da ACÇÃO
CONTEXTUALIZADA NA HISTÓRIA – por isso, relacionada com o passado vivido e com o
futuro projectado – a partir da acção limitada às contingências presente” (Kolyniak,
2005:33).

3.4 Inter-relação de Conceitos


“A CRIATIVIDADE é um eixo transversal na MOTRICIDADE do humano. Não existe
Motricidade sem criatividade, não existe Motricidade sem respeito pela capacidade
inerente à pessoa de se desenvolver plenamente como tal. Se eliminarmos a criatividade
das nossas sessões [de ACÇÃO EDUCATIVA], eliminamos a essência “humana” de
participar no projecto volitivo da auto-superação. Motricidade sem criatividade é
mecanismo de um corpo material que reproduz as ordens externas para conseguir
objectivos biológicos, de optimização do potencial “físico” (Rey Cao, 2000:129-130).

O que encontro, então, em comum entre estas três áreas – educação de adultos,
criatividade e motricidade humana –, como se interrelacionam e tornam campo de

253
criação da pesquisa, o que as torna “parceiros vitais” no processo do Desenvolvimento
Humano?

Cri
a
tiv
ida
de
na e
Hu cidad
ma
tri
Mo

Educação de Adultos

Ilustração II.25 – Inter-relação dos conceitos de


Educação de Adultos, Criatividade, Motricidade Humana e Desenvolvimento Humano.

1. As suas AFINIDADES:
- Uma mesma natureza dinâmica.
- Uma mesma rejeição da redução do humano a aspectos instrumentais,
estritamente biológicos ou economicistas.
- Uma mesma consciência de si mesmo, dos outros e do universo.
- Um mesmo sentido ecológico, imanente-transcendente da construção da
existência humana.
- Uma mesma vontade de sentido de coerência entre diferentes facetas da vida.
- Um mesmo propósito de transformação, de correr o rico de mudar, de ir contra o
estabelecido e de compromisso com a acção.

2. As suas ESPECIFICIDADES:
- A Educação de Adultos é o terreno que cria condições, o contexto, o “ONDE”.
- A Criatividade é o provocador, o motor, a possibilidade, o “COMO”.
- A Motricidade Humana é o sujeito em relação, a percepção-consciência, o “O
QUÊ”.

3. E o DESENVOLVIMENTO HUMANO? Como se posiciona e emerge neste campo de


criação?

254
- O Desenvolvimento Humano é o “PARA QUÊ” – é o sentido do movimento, a
autonomia-dependência, a transformação e a felicidade compartida.

Por isso, e de uma forma muito simples, é possível dizer que, para que o processo de
Desenvolvimento Humano seja desencadeado, é preciso a confluência de três factores:
um sujeito (o da Motricidade Humana), um terreno (o da Educação de Adultos), um
alimento e motor (o da Criatividade).

Em resumo, o campo de criação aqui em causa (aquele que pretende dar origem a um
conjunto de orientações didácticas para, em contexto de Educação de Adultos, lidar
com o medo) é, simultânea e redundantemente, o campo da educação criativo-motrícia
– isto é, da intervenção pedagógica a partir da criatividade e da motricidade. Por isso,
sempre que neste trabalho se fala em Educação de Adultos está-se a falar de (Trigo,
2006):

- EDUCAÇÃO PARA A EXPRESSÃO E PARA A VIDA, não uma educação para a


reprodução e legitimação dos sistemas estabelecidos.
- ESPAÇOS DE ENCONTRO (acção dialógica) para contribuir para a formação de
sujeitos autónomos e criadores, não sujeitos dependentes da autoridade.
- AULAS (FORMAIS E NÃO FORMAIS) PARA MOBILIZAR A REFLEXÃO PERMANENTE sobre
a pessoa e a sociedade, espaços de transformação (aulas inteligentes), não
aulas papagaio.
- UM ATREVER-SE A PROPOR OUTRAS FORMAS DE VER, DE SER E ESTAR NO MUNDO,
não continuar a apostar no modelo em que estamos inseridos.
- PROPOSTAS EM QUE O RIGOR, A COERÊNCIA, O COMPROMISSO, A

RESPONSABILIDADE, O OPTIMISMO E A ALEGRIA SEJAM O IDEÁRIO DA ACÇÃO dentro e


fora da aula.

255
4. Educação Criativo-Motrícia

“No princípio existia o Verbo; e o Verbo E eu diria:


estava em Deus; e o Verbo era Deus. No princípio existia o Ser; e o Ser estava na
No princípio Ele estava em Deus. Por Transcendência; e o Ser era a Transcendência. Ele
Ele é que tudo começou a existir; e estava na Transcendência. Por ele é que tudo
sem Ele nada veio à existência. Nele é começou a existir, e sem ele nada veio à existência.
que estava a Vida de tudo o que veio a Nele é que estava a energia de tudo o que veio a
existir. E a Vida era a Luz dos homens. existir. E a energia era a capacidade de
A Luz brilhou nas trevas, mas as transformação dos homens. A energia brilhou no
trevas não a receberam” (João 1, 1-5) medo, mas o medo não a recebeu.

Ouso começar esta reflexão recriando, como síntese do até aqui apresentado e mote
para o que se vai seguir, os primeiros versículos do Evangelho de S. João. Que me
perdoem os teólogos o atrevimento por assim fazer o sumário da minha leitura das
referências recolhidas em diversos campos do saber, mas pareceu apropriado – porque
aqui procuro vislumbrar como fazer a (re)descoberta do Ser que, mesmo que imerso em
múltiplas camadas de medo(s), continua residindo em cada um de nós; porque aqui
procuro juntar o que, junto de diversos autores, pude encontrar sobre o processo de
(re)conversão de “Filhos do Medo” em “Filhos do Sol”; porque, finalmente, aqui procuro
compreender o que, de tudo isso, pode ser sinergeticamente desencadeado.

Ilustração II.26 – O espaço dado ao Ser no processo de enfrentar o medo.

Vou dividir o texto em duas partes:

a) A primeira, “Enfrentando o Medo”, busca a compreensão do que precisa ser


accionado em quatro dimensões da educação criativo-motrícia para que se
possa lidar com o medo.

256
b) A segunda, em contraponto com a que anteriormente chamei “Vivendo com
Medo”, é aquela a que agora chamo “ConVIVENDO com o Medo”. Porque busca
o entendimento do que se (vai) conquista(ndo) em todo o processo que o
antecede, mas também lhe sucede, é a meta-caminho-meta sempre inacabada
do Desenvolvimento Humano, é a responsabilidade-compromisso ético do estar
no mundo, é a vocação ontológica para o ser mais – não feito, ou procurado,
como mera teoria, sonho ou ilusão, mas encontrado na experiência e na
sabedoria de quem já muito andou e sabe que não se é, mas se vai sendo.

4.1 Enfrentando o Medo


Mudar de vida? É tão fácil dizê-lo! Será um longo e fundo meditar;
Porém, quando o horizonte está cerrado, Com coragem, mirar-se no espelho
Passado com futuro enrodilhado, E ver como de novo começar;
Pior que refazer um mau novelo.
Cá dentro virá um só conselho,
Mudar de vida? Não chega apenas querê-lo! Palavra que jamais é de olvidar:
Dentro de nós, ao ser tudo mudado, Não pôr remendo novo em pano velho!
Quando na nossa vida há tanto errado
Teremos de pesar como fazê-lo. J. Gil da Costa

Considerando que o campo de criação da pesquisa está configurado pelo conceito de


EDUCAÇÃO CRIATIVO-MOTRÍCIA atrás explicitado, vou procurar organizar/co-criar o
pensamento de diversos autores119 que, de distintas maneiras também, se debruçaram
sobre “o medo e o desenvolvimento humano” na educação de adultos. Para tal,
apresento e trabalho a partir de uma proposta de intersecção entre os elementos
centrais explicativos da Criatividade e os da Motricidade Humana (Ilustração II.27):

1. A PESSOA na sua CORPOREIDADE e com tudo o que são as suas capacidades,


competências e motivações.
2. A PRESSÃO, o contexto, a área da interacção da RELAÇÃO da pessoa CONSIGO
MESMA, COM OS OUTROS e COM O UNIVERSO.
3. O PROCESSO que se desenvolve em MOMENTOS DA ACÇÃO E DA MUDANÇA.

119
Dado que, numa leitura mais abrangente, é imensa a quantidade de princípios-indicações-sugestões-
estratégias-exercícios sobre modos de promover o Desenvolvimento Humano que também podem ser
utilizados para lidar com o medo, vou sobretudo cingir a minha apresentação a autores que, explicitamente,
referem esses mesmos princípios-indicações-sugestões-estratégias-exercícios no contexto da inter-relação
entre o medo e o desenvolvimento humano.

257
4. O PRODUTO que, enquanto novo e com valor para todos e cada um, desemboca
na CONSCIÊNCIA DE SI, DO OUTRO, DO MUNDO.

Educação Criativo-Motrícia

PESSOA PROCESSO
Corporeidade Momentos da
Acção e da
Mudança

PRESSÃO
PRODUTO Eu-Outro-Cosmos
Consciência de Si,
Consciência do Outro
Consciência do Cosmos

Ilustração II.27 – Dimensões da Educação Criativo-Motrícia.

E sendo certo, primeiro, que só em termos de discurso é possível separar estas


dimensões; segundo, que muito embora cada uma valha por si mesma, cada uma está
relacionada e cria impacto com cada uma das outras; terceiro, que para compreender
toda a questão do “Medo e Desenvolvimento Humano”, é preciso olhar para o sistema
completo, passo à apresentação de alguns exemplos do que encontro como contributos
para este tema.

• Pessoa / Corporeidade

“Penso que podemos ensinar as pessoas a aliviarem o peso da preocupação e do


desespero e a encontrarem felicidade no momento presente. Podemos encontrar a
alegria, por muito difíceis que sejam as nossas circunstâncias. O cérebro é tanto uma
coroa de espinhos como uma varinha de condão – dependendo da forma como
escolhemos usá-lo. Nós decidimos quem queremos ser, nós decidimos que lentes
queremos usar para olhar a vida. Isto pode ser o paraíso, já agora, se soubermos

258
manejar o nosso próprio processo de pensamento. É possível encontrar serenidade
120
(Elaine de Beauport, Apud Sisk & Torrance, 2001:39-40) .

Tendo em conta, como já atrás foi referido121, que (1) causa e efeito se confundem, (2)
requisito é também resultado e que, neste caso, (3) “Pessoa” também é “Produto”, de
que se precisa e o que acontece,
na dimensão Pessoa-
EXTRA-SENSORIAL Corporeidade?
•Intuição
•“insight”
•Eureka!
•Corpo mágico
1. Competências emocionais
básicas

SENSORIAL
•Vista
•Ouvido Definindo-a como capacidade de
•Tacto
•Gosto
•Olfato
reconhecer os nossos
•Quinestésico
sentimentos e os dos outros, de
Ilustração II.28 – A pessoa-corporeidade. nos motivarmos e de gerirmos
Reprodução de Trigo, E. (imagens de conferências públicas).
bem as emoções em nós e nas
nossas relações, Goleman
(1999:323-324) indica cinco competências emocionais e sociais básicas da inteligência
emocional122:

a) AUTOCONSCIÊNCIA – Saber o que sentimos no momentos e usar essas


preferências para orientar a nossa tomada de decisões; possuir uma avaliação
realista das nossas próprias capacidades e um sentido bem fundamentado de
autoconfiança.

120
“I think we can teach people to remove the weight of worry and desperation and to find happiness in the
moment. We can reach out for joy, no matter how awful our circumstances. The Brain is either a crown of
thorns or an enchanted loom – depending on how you use it. You decide which one it’s going to be, you
choose what lens you want to use to look at life. This can be paradise, right now, if you know how to
manage your own thought process. It’s possible to find serenity” (Elaine de Beauport, Apud Sisk &
Torrance, 2001:39-40)
121
Ver no ponto 1 deste capítulo “Filhos do medo”, causas e efeitos do medo.
122
De acordo com Goleman (1999:335), cultivar uma competência ao nível neurológico significa extinguir
o velho hábito enquanto resposta automática do cérebro e substitui-lo pela nova. A fase final de mestria de
uma competência chega quando o velho hábito perde a sua condição de resposta por omissão e o novo
hábito toma o seu lugar. Regra geral é mais difícil mudar as atitudes profundas e os valores associados
subjacentes que mudar os hábitos de trabalho – a distância que medeia entre o comportamento de base da
pessoa e o novo comportamento tem uma enorme importância.

259
b) AUTOREGULAÇÃO – gerir as nossas emoções de modo que facilitem em vez de
interferirem com as tarefas que temos em mãos; ser consciencioso e protelar a
gratificação para atingir objectivos; recuperar bem da depressão emocional.
c) MOTIVAÇÃO – usar as nossas preferências mais profundas para avançar e nos
guiar para os nossos objectivos, para nos ajudar a tomar a iniciativa e sermos
altamente eficientes para perseverar face a contrariedades e frustrações.
d) EMPATIA – ter a percepção do que as pessoas sentem, ser capaz de adoptar a
sua perspectiva e cultivar laços e sintonia com uma grande diversidade de
pessoas.
e) APTIDÕES SOCIAIS – gerir bem as emoções nas relações e ler com precisão as
situações sociais; interagir com harmonia; usar essas competências para
persuadir e liderar, negociar e resolver disputas, para a cooperação e o trabalho
de equipa.

2. Inteligências múltiplas e possibilidades de auto-superação

Tendo utilizado um dos modelos de Gardner para estudar os efeitos de experiências-


vivências que estimulam o relacionamento da pessoa com o mundo, com os outros e
consigo mesma, Gáspari & Schwarts (2007) indicam serem estas as possibilidades de
liberdade, auto-superação e auto-realização que se abrem a partir de cada uma das
inteligências:

a) Inteligência lógico-matemática – permite descodificar, analisar, sintetizar,


compreender, avaliar e questionar modelos socialmente impostos e expressar
RESISTÊNCIA às possibilidades de manutenção ou transformação desses
modelos.
b) Inteligência linguística – permite o rompimento de barreiras, a SIMBIOSE e
integração.
c) Inteligência naturalista – permite o reconhecimento de que se é dotado de um
corpo, com espaço ECOLÓGICO integrante, integrado e integrador homem-
natureza e natureza-humana.
d) Inteligência interpessoal – permite mobilizar atitudes e valores no relacionamento
– cooperação, respeito, paciência solidariedade, empatia, criatividade,
encorajamento... – e imprimir às experiências um carácter de UNICIDADE.

260
e) Inteligência intrapessoal – permite a confiança, a intencionalidade, o auto-
controle, a curiosidade e denotar a INDIVIDUALIDADE humana.
f) Inteligência espacial – permite utilizar o modelo mental de espaços da realidade
ecológica na ORIENTAÇÃO DE VIVÊNCIAS, provocando a substituição do eu
determinado pelo eu espontâneo e favorecendo a canalização de energias
sublimadas.
g) Inteligência corporal-cinestésica – permite a expansão de limites, colocar à prova
sentimento e valores, SUPERAR a inibição de viver experiências com plenitude.
h) Inteligência musical – permite a SENSIBILIDADE e a comunicação do homem no e
com o mundo real e a representação simbólica do ver-ouvir-sentir dos ritmos
internos do corpo harmonizado com o exterior.
i) Inteligência espiritual-existencialista – permite a elevação para lá da realidade
quotidiana, a resistência e a extrapolação dos limites sociais, a conexão e o
sentido de comunidade, a libertação de restrições, a experiência de liberdade
interior e do sentido da vida.

• Pressão / Eu-Outros-Cosmos

Que condições devem existir no contexto de interacção da pessoa (consigo, com os


outros e com o mundo), para que o processo de mudança seja desencadeado? Maxwell
responde:

“As pessoas mudam quando já sofreram o suficiente para perceber que TÊM DE mudar,
quando já aprenderem o suficiente para perceber que QUEREM mudar; quando já
123
receberam o suficiente para perceber que SÃO CAPAZES de mudar” (Maxwell, 1993:63) .

Aparentemente simples, não é? Então, segundo Maxwell, para que haja mudança, é
necessário que exista: NECESSIDADE de mudar, VONTADE de mudar, CONFIANÇA na
possibilidade de mudar. Mas porque, relativamente às duas primeiras (necessidade de
mudar e vontade de mudar), já houve espaço para, nas dimensões anteriores,

123
“People change when they hurt enough they have to change; learn enough they want to change; receive
enough they are able to change” (Maxwell, 1993:63).

261
apresentar a respectiva fundamentação, vou agora centrar-me nas implicações da
terceira – a confiança na capacidade de mudar PORQUE se recebeu bastante.

OSMOS
EL C
YO

Ilustração II.29 – O contexto/pressão – interacção da pessoa consigo mesma, com os outros e com o cosmos.
Reprodução de Trigo, E. (imagens de conferências públicas).

1. A figura do educador

Volto a Leonardo Boff para compreender o que cria essa confiança na capacidade de
mudar e porque é possível mudar. E atrevo-me a recolher do que nele se encontra
disperso:
- porque existe um outro alguém que, dando-se conta da presença de uma
natureza singular que jaz escondida no seu discípulo, dando-se conta dos
pequenos sinais de inquietação pelo chamado do infinito, dando-se conta de
que o brilho dos olhos já contem a semente do renascer... não desiste e, com
firmeza, encontra forma de ajudar a superar o medo, de resgatar do cativeiro,
provocar e convocar, de despertar do que, afinal, é só um longo esquecimento
do caminho de uma vocação transcendente (Boff, 1998).

Não é essa a figura e a função de um Educador (de um Mentor, de um Líder, de um


Mestre), muito para lá de um contacto de um seminário breve ou de um manual de
procedimentos124? Não é isto o que faz o Pai quando o Filho Pródigo está a caminho de
casa (Lucas 15, 11-32)? Não é isto o que também contido no postulado da sabedoria
oriental, “quando o discípulo está pronto, o mestre aparece” (Moffit, 2002)?
124
De acordo com Goleman (2000), o desenvolvimento da inteligência emocional não pode ser feito dentro
dos espaços tradicionais de formação. Porque é preciso incluir o sistema límbico na formação, para ajudar
as pessoas a esquecerem velhos hábitos comportamentais, é preciso muito mais tempo, um desejo sincero,
um esforço intensivo e uma abordagem mais personalizada.

262
2. O papel do educador

São três os modos como, de acordo com Moffit (2002), o mestre pode contribuir para o
processo de mudança:

- Ser fonte de CONHECIMENTO, que não é o mesmo que instrução.


- Ser fonte de INSPIRAÇÃO, pelo seu amor e entusiasmo pela verdade espiritual,
pelo interesse e energia que mostra pelo trabalho do seu aprendiz.
- Ser veículo de criação de pequenos e tranquilos momentos de CLAREZA
INTERIOR, que quase passam desapercebidos, mas que são capazes de,
lentamente, reconfigurar uma vida.

3. Estratégias do educador

Ruth Noller (1997) apresenta como estratégias para a acção eficaz de um Mentor:

- Uma ATITUDE POSITIVA que encoraje a enfrentar a vida com entusiasmo e


humor...
- Uma VALORIZAÇÃO que encoraje a examinar as próprias crenças, a estabelecer
valores e objectivos pessoais, a acreditar em si mesmo...
- Um ESPÍRITO ABERTO que encoraje a considerar muitas alternativas antes de
fazer quaisquer juízos...
- Uma INTERACÇÃO que encoraje a partilha, o cuidado, o reforço positivo, o
estímulo, o aprender com os erros, a partilhar experiências, a celebrar os
sucessos...
- Uma COMUNICAÇÃO EFICAZ que encoraje uma escuta activa, perguntas
assertivas, respostas estimulantes, a consideração de outros pontos de vista...
- Uma ATITUDE DE DESCOBERTA que encoraje a pensar livremente, a ser curioso
sobre as outras pessoas, lugares e coisas, a aprender a perguntar...
- Uma FORÇA e uma SINGULARIDADE que encorajem a usar os talentos que se
possuem, a resistir à tentação da clonagem e da repetição...
- Uma atitude de CONFIANÇA que encoraje a assumir a responsabilidade pelos
próprios actos...

263
- Uma CONSCIÊNCIA que encoraje a ser consciente, intuitivo, sensível aos
problemas, a usar todos os sentidos...
- Uma FLEXIBILIDADE que encoraje a adaptação nas atitudes e nas acções, a
procurar alternativas, a ver as pessoas e as coisas a partir de diferentes
perspectivas...
- Uma capacidade de ASSUMIR RISCOS que encoraje a ser um participante activo e
não um espectador, a ser proactivo e não reactivo...

4. Quem dá o primeiro passo

Mas, que características tem o ambiente que não quer, ou não permite, a mudança?
Não será tudo isto também uma questão de sorte? Por que razão, esta figura de
Educador, plena de força, optimismo e coragem, é, para alguns, uma certeza e, para
outros, parece nunca surgir? Por que razão parece que muitos outros nunca “receberam
o suficiente para perceber que são capazes de mudar” (Maxwell, 1993:63)?

De acordo com Jeffers (1991: 89-108), é frequente que a pessoa que se dispõe a
enfrentar o medo esteja rodeada de figuras significativas que se começam a sentir
ameaçadas com a mudança e, por isso, desenvolvam estratégias de resistência e
sabotagem para manter os padrões de interacção e o clima de negatividade há muito
estabelecidos. São tentativas de preservar o contexto sobre o qual se construiu alguma
segurança, mas que, por si só, também podem dar origem ao aparecimento de novos
medos – o medo de continuar o processo de mudança, o medo de estar errado, o medo
de perder as relações estabelecidas.

E também em Jeffers, encontro a solução, a residir, uma vez mais, na consciência e na


responsabilidade – na consciência da energia negativa de que se está rodeado e com
que se está sendo contagiado; na responsabilidade de se perceber que outro mundo é
possível; na consciência de que não se está sozinho e que, saindo, procurando,
contactando, tentando, se pode também criar o tipo de sistema de apoio que se deseja
e precisa. É esse, afinal, o passo que o “filho pródigo” tem de dar para ir ao encontro do
“pai” que há muito já está à sua espera. É isso o que significa “estar preparado” e o que
faz com que “o mestre apareça”.

264
• Processo / Momentos da acção e da mudança

O que fazer para que o processo de mudança aconteça?

“A consciência é a principal força do universo (...). Toda a mudança começa pela


consciência – a consciência da situação existente, a consciência do potencial para algo
mais elevado e a consciência da criatividade ilimitada que existe em cada um de nós
para catalizar a transformação que queremos ver em nós próprios e nas gerações
vindouras” (Chopra, 2005:19).

Sensação Fantasia Querer /


Pensamento Energia
percepção
Imaginação não querer Cultura Desejos
Emoção memória Ética Desejos Medos
Desejos cultura conflitos Valores medos movimento
TOMADA DE CONSCIÊNCIA ASSUMIR TOMADA DE DECISÃO EXECUÇÃO

CENTRÍFUGO-CENTRÍPETO CENTRÍPETO-
CENRÍFUGO

TEMPO TEMPO TEMPO TEMPO

TIEMPO

pessoal cultural cósmico

TEMPOS SITUACIONAIS

TEMPO DE VIDA
Ilustração II.30 – Processo – momentos da acção e da mudança
Reprodução de Trigo. E. (imagens de conferências públicas).

A mudança acontece, e desenha-se uma espiral de crescimento, sempre que se foge


do círculo da repetição e se muda alguma coisa que é essencial para a definição do
nosso caminho, para o desenvolvimento da nossa humanidade e para a evolução da
espécie e do universo (Feitosa, 2006:77) – o círculo de repetição, em que nada se
acrescenta, é formado pela pouca consciência125; um novo círculo da espiral é

125
O homem pode viver num nível de consciência de um vegetal – gostar de estabilidade, de fixação de
segurança... – ou num nível de consciência de qualquer animal, desde o mais selvagem, manifestando
interesse apenas pela sobrevivência e protecção de si próprio e da sua prole a qualquer custo, até à
possibilidade de dedicar a sua vida, sua inteligência e seu trabalho para bem da humanidade e do planeta,
num total despojamento de si próprio (Feitosa, 2006:57).

265
desenhado quando se toma consciência da percepção, da responsabilidade, da decisão
ou da execução (Feitosa, Kolyniak & Kolyniak, 2006)126:

a) TOMADA DE CONSCIÊNCIA – o tempo da percepção, da inquietação, do dar-se


conta, da descoberta de sentido, em função do passado, do presente e do
futuro.
b) ASSUMIR – o tempo de se atribuir a responsabilidade pelo passado, pelo
presente e pelo futuro e, por isso, aceitar as implicações e os conflitos que daí
possam advir.
c) TOMADA DE DECISÃO – porque a decisão depende de valores, de desejos, da
cultura, dos medos, do pensamento, é o tempo de deliberar e da auto-criação
das condições da mudança.
d) EXECUÇÃO E ESTRATÉGIAS – o tempo da conduta.

1. Tomada de Consciência

“Não se pode escolher sabiamente uma vida a menos que a pessoa se atreva a escutar-
se a si mesma, ao seu próprio eu, em cada momento da vida” (Maslow, 1991:XLV).
Porque são humanos e naturais, não existem emoções e sentimentos bons e emoções
e sentimentos maus, mas é preciso que sejamos capazes de perceber da sua
adequação à situação em que ocorrem. De acordo com Marroquín (1995), isso depende
de dois factores: da apreciação realista das diversas circunstâncias, experiências ou
estímulos ambientais (o que pode ser difícil por causa do seu carácter subjectivo), e da
necessidade de distinguir entre preferências ou necessidades imperiosas (o que pode
ajudar a clarificar a subjectividade anterior).

126
De acordo com Moffit (2001a), Buda ensinou que existem cinco qualidades, ou capacidades espirituais,
que podem ser uma grande ajuda num processo de a mudança. São elas:
1. Fé (saddha) – envolve clareza e confiança e si mesmo e nos outros.
2. Esforço (viriya) – energia. Existem três tipos de esforço: o que vem da fé – se não houve fé nunca se
dá o movimento inicial em direcção à mudança; perseverança – durante os tempos difíceis que sempre
acompanham a mudança; esforço que surge do próprio momento de esforço quando há compromisso
com aquilo em que se acredita.
3. Estar alerta (sati) – que pode ser cultivada pela meditação.
4. Concentração (samadhi) – que reforça a intensidade do esforço.
5. Sabedoria (panna) – que permite redirigir o movimento da mudança sempre que se perceber que o
objectivo estava incorrecto ou que o caminho tomado não era o adequado.

266
O que fazer, então, para enfrentar o medo? É preciso que haja uma relação entre
pensar e sentir. A pessoa totalmente autoconsciente percebe como os seus
pensamentos se relacionam com os seus sentimentos e como estes condicionam os
primeiros. Conhecer-se é uma função tanto cognitiva como sensível e, se o sentimento
estiver divorciado do pensamento, a personalidade fica dividida – estar atento só a um
deles é uma espécie limitada de autopercepção (Torre, 2005 e 2008; Lowen, 1984, 216-
217). Como todas as sensações são sentidas no corpo, se se estiver conectado com as
sensações e tensões corporais, é possível ter um contacto directo com os sentimentos
e uma melhor capacidade de os identificar (Moffit, 2002a).

E porque isto é uma tarefa de descoberta pessoal, porque o caminho para o auto-
desenvolvimento é o auto-conhecimento, a pergunta “quem sou eu?” (com as suas
respectivas implicações, “o que sinto”, “o que penso”, “o que quero”...), é a primeira
questão para tratar o tema do auto-enfrentamento e, com isso, desmascarar o medo
(Feitosa, 2006:53 e ss). Logo, e porque não se pode mudar o que não se reconhece, se
se está completamente aberto à experiência, se não se nega nem se combate o medo
como um inimigo, estar consciente dele, olhá-lo de frente, é, em si mesmo,
transformador – não porque se fez com que o trauma ou as cicatrizes desaparecessem,
mas porque, lentamente, se transforma o medo em aliado e com ele se desenvolve uma
nova relação que deixa de exercer um poder controlador na vida (Moffit, 2002a).

“O verdadeiro e único antídoto eficaz contra o medo é alcançar a verdade profunda de si


mesmo (...). É o esquecimento do «pequeno eu» o que nos permite libertar do medo.
Aquele que só se ama a si mesmo viverá sempre no precário e no incerto. O que é
capaz de amar o mundo (...), vive na paz imutável da vida” (Peña y Lillo, 1991:113-114).

2. Assumir

“Se você continuar a atirar as responsabilidades para cima do outro, lembre-se que
permanecerá sempre um escravo, porquanto ninguém consegue mudar o outro” (Osho,
2002b:137).

Assumir não significa culpar-se pela situação que se vive, mas atribuir-se total
responsabilidade por aquilo que acontece e pelos desafios que se apresentam. É a

267
consciência da oportunidade, é compreender que todas as coisas que acontecem no
presente são resultado de escolhas feitas no passado, quer disso tenha havido, ou não,
consciência (Chopra, 2005:61,64).

Jeffers (1991:51-68) apresenta sete definições para a expressão “assumir a


responsabilidade”:
1. Nunca acusar ninguém por nada que se esteja a ser, fazer, ter ou sentir.
2. Não se acusar.
3. Ter consciência de onde e quando não se esteja a assumir a responsabilidade
para que, eventualmente, se possa mudar.
4. Estar familiarizado com as formas de intracomunicação.
5. Estar consciente das vantagens de se estar preso numa dada situação.
6. Perceber o que se quer na vida e agir de acordo com isso.
7. Estar consciente da quantidade de escolhas que se tem numa dada situação.

3. Tomada de Decisão

“Nada é tão fatigante como a indecisão e nada é tão fútil” (Russel, 2001:70).

“Educar para a decisão, para a responsabilidade pessoal e social é um objectivo


educacional que só pode ser alcançado mediante outros princípios norteadores da
educação, comprometidos com a construção de um homem novo, mais consciente de si
e do seu papel de construtor do mundo em que vive” (Feitosa, 2006:64).

Considerando que o erro é uma parte essencial da vida, que não é possível obter
sucesso em tudo o que se faz, que não cometer erros é sinal de que não se está a
aprender, nem a crescer, e que escolhas diferentes simplesmente produzem
experiências diferentes, Jeffers (1991:111-129) sumaria os passos que podem ser
dados para se tomarem decisões dentro de um “modelo ganhador”127:

1. Antes de tomar uma decisão:

127
“Non-Lose Model” no original.

268
a. Centrar no “modelo ganhador” – afastar os pensamentos de que se pode
perder e só permitir pensamentos sobre o que se pode ganhar.
b. Fazer o trabalho de casa – clarificar as intenções, ir buscar feedback a
outras fontes, desde que venha das pessoas certas; isto é, que sejam
pessoas que apoiam a aprendizagem e o crescimento em causa.
c. Estabelecer prioridades – dar-se tempo para pensar seriamente sobre o que
se quer da vida.
d. Confiar nos próprios impulsos – o corpo fornece muitas pistas que indicam
por onde ir.
e. Tornar tudo mais leve – qualquer que seja o resultado, é possível lidar com
ele.

2. Depois de tomar uma decisão:


a. Deitar fora a imagem antes criada – muitas oportunidades não esperadas
podem criar mais valor do que o previsto.
b. Aceitar total responsabilidade pelas decisões – faz com que se fique menos
zangado com o mundo e consigo próprio.
c. Não proteger, corrigir – estar atento aos sinais internos (confusão e falta de
satisfação) que ajudam a perceber que é tempo de mudar o rumo da decisão
tomada.

4. Execução

“Qualquer acção humana consciente integra e move o ser (a sua corporeidade) na e


com a realidade expressa em vivência. Vivenciar é um acto de compreensão que se dá
simultaneamente em todos os níveis do ser: físico, mental, emocional, energético,
cultural, político e espiritual. A motricidade é um terreno fértil para a vivenciação (viver
em acção) que actualiza e integra as dimensões do ser humano proporcionando-nos o
sentido do mundo” (Sérgio & Toro, 2004: 20).

Por último, o tempo de executar é, naturalmente, o tempo de passar à prática tudo o


que foi feito antes. Mas o tempo de executar é também o tempo que (pelo movimento
centrípeto que o enforma), pode provocar os que o antecedem – isto é, o tempo em
que, pela vivência, se pode potenciar a tomada de consciência, o assumir e a tomada

269
de decisão. É por isso que “enfrentar o medo” não significa lutar contra, nem fazer
frente, muito menos combater. Significa, sim, colocá-lo na frente e aprender a viver com
ele – o que Marina (2006:104) classifica como sendo dois tipos estratégias de
enfrentamento*, as estratégias dirigidas para enfrentar o problema, as estratégias
dirigidas para enfrentar a emoção provocada pelo problema128.

Finalmente, e antes de começar a apresentar alguns exemplos do que, não sendo


terapias, pode ser encontrado em diversas abordagens e autores, resta-me colocar os
critérios que estiveram na base da sua selecção:

a) Considerar a PESSOA EM TODA A SUA COMPLEXIDADE E DIMENSÃO – porque o ser


humano é corporeidade e o medo é uma emoção holística.
b) Permitir AUMENTAR CONSCIENTEMENTE A NOSSA ENERGIA – para que, enfrentando
o medo, seja possível “devolver ao ser humano o seu PODER SOBRE SI PRÓPRIO,
sobre a sua vida, sobre a sua oportunidade de construir o mundo” (Feitosa,
2006:31).

5. Estratégias para tomar consciência, assumir, decidir e executar.

“O que fazer para não ter medo?” foi a pergunta que, não há muito tempo, a Educadora
Margarida Sá, do Jardim-de-Infância da Portela (Barros, 2006), colocou ao seu grupo de
crianças que confessavam que “às vezes sentimos medo”. E elas, sabiamente,
responderam: “fazer caretas ao medo”, “mandá-lo embora”, “agarrar no peluche”,
“fechar a janela para o medo não entrar”, “chamar o pai e a mãe”, “dizer ao medo
«Olá!»”, “trancar a porta de casa”, ou, ainda, “acender a luz”.

- E nós, adultos, o que fazemos ou podemos também fazer? Será que as nossas
respostas ao medo são assim tão diferentes das das crianças, ou as delas são
já metáforas de tudo o que também fazemos?

128
Vejo aqui também subjacente o conceito de “aprendizagem significativa” (Rogers, 1970): é mais do que
uma acumulação de factos; provoca uma modificação - no comportamento do indivíduo, na orientação
futura que escolhe, nas suas atitudes e personalidade; é uma aprendizagem penetrante – não se limita a um
aumento de conhecimentos, mas que penetra profundamente todas as parcelas da sua existência.

270
- Que se sabe sobre estratégias de enfrentamento (Marina, 2006), sobre formas
de encarar o medo?
- Que outros conselhos nos chegam pela mão de outros sábios, os diferentes
autores que têm estudado esta questão?

Silêncio criativo e ligação com fontes mais altas

Thomas Merton (1997:57-64). SILÊNCIO CRIATIVO:


- Ajuda a reunir as energias dispersas e dissipadas por uma experiência
fragmentada.
- Dá a oportunidade de nos entendermos melhor a nós mesmos.
- Permite conseguir uma perspectiva mais equilibrada na relação com as vidas
dos outros (sintetizando, integrando, redescobrindo – além das palavras,
além da análise, além do pensamento consciente).

James Redfield (1994,126-129). Ganhar energia pela LIGAÇÃO COM FONTES MAIS
ALTAS:

- A COMIDA é a primeira forma de ganhar energia – para que seja absorvida,


deve ser apreciada, saboreada, precisa de TEMPO.
- LUGARES que aumentam mais a nossa energia – aprendermos a ser capazes
de nos abrimos, de nos ligarmos, de usar o sentido da apreciação.
- A BELEZA E A SINGULARIDADE DAS COISAS – quanta mais beleza formos
capazes de ver, mais evoluímos.

Não será isto “agarrar o peluche”,


como diziam as crianças do Jardim da Infância da Portela?

Implantar um pensamento consciente

Russel (2001:73-75). IMPLANTAR UM PENSAMENTO CONSCIENTE no inconsciente:


- A técnica errada de lutar contra o medo é procurar pensar em qualquer outra
coisa e distrair o pensamento.

271
- Porque o medo aumenta se for ignorado, o caminho é pensar nele com
calma, com concentração, até que ele se torne familiar, aborrecido, o que faz
com que os pensamentos se desviem dele.

Caroline Myss (Sisk & Torrance, 2001:45). MEDITAÇÃO diária sobre cada um dos
sete chakras129:
- Começando pelo primeiro chakra e subindo até ao sétimo – perguntar se se
está perdendo energia; se sim, identificar o medo que está a drenar o poder
dessa parte específica do corpo, fazer uma respiração profunda e,
conscientemente, desligar a energia desse medo.
- Procedimento muito similar com as práticas da sabedoria tradicional e do
misticismo oriental.

Não será isto “acender a luz”,


como diziam as crianças do Jardim da Infância da Portela?

Conselhos contra o medo

Marina (2006:183-187). Nove CONSELHOS CONTRA O MEDO:


- Distingue os medos amigos dos inimigos.
- Tu não és o teu medo.
- Deves declarar guerra aos medos inimigos que invadiram a tua intimidade.
- Tens que conhecer os teus inimigos e os seus aliados.
- Não podes colaborar com o inimigo.
- Tens que te fortalecer.
- Fala contigo mesmo como se fosses o teu treinador.
- Debilita o teu inimigo.
- Procura bons aliados.

129
Temos sete centros específicos de energia nos nossos corpos, os chakras e estes centros, que ligam os
nossos nervos, hormonas e emoções, têm uma localização paralela ao sistema imunoneuroendócrino e
fazem uma ligação entre a anatomia da nossa energia e a anatomia física. Cada um dos sete chakras do
corpo está associado a sistemas orgânicos e a estados emocionais específicos, cada um é reavivado ou
enfraquecido pelas nossas crenças e sentimentos, pelo que medos e emoções específicos atingem
determinadas áreas do corpo. Muito embora estas energias afectem simultaneamente todas as áreas do
corpo, podem-se manifestar em problemas de saúde na área que for mais vulnerável (Northrup, 2004:87-
89).

272
Não será isto “mandá-lo embora”,
como diziam as crianças do Jardim da Infância da Portela?

Diálogos e oficinas a partir da biologia do amor

Margaret Wheatley (2002). DIÁLOGOS que restauram a esperança no futuro:


- Quando nos ouvimos uns aos outros de uma forma simples e honesta, podemos
mudar o mundo.
- Aconselha a prática dos seguintes comportamentos: aceitar os outros como
iguais; sermos curiosos uns com os outros; reconhecer que precisamos da ajuda
dos outros para sermos melhores ouvintes; abrandar para ter tempo para pensar
e reflectir; lembrar que a conversa é o meio natural dos humanos pensarem
juntos; saber ficar confuso algumas vezes.

Humberto Maturana (2000:26). OFICINAS a partir da biologia do amor como dinâmica


constitutiva do ser humano:
- Criar condições experienciais a partir das quais se viva o que acontece no
campo das emoções.

Não será isto “chamar o pai e a mãe”,


como diziam as crianças do Jardim da Infância da Portela?

Afirmações positivas e bioenergia

Shallcross & Sisk (1989:20). AFIRMAÇÕES POSITIVAS E VISUALIZAÇÃO de um contexto


de sucesso.
- Permitem que as pessoas se tornem mais criativas e se sintam mais integradas
e positivas em relação a si mesmas - sentimos ansiedade e sentimentos de
inadequação quando fazemos afirmações negativas sobre nós mesmos.

Alexander Lowen (1984,1997). BIOENERGIA.


- As discussões racionais não ajudam a perder o medo que está estruturado no
corpo, mas, por si só, massagens em zonas de tensão crónica também não

273
trazem um alívio significativo que afecte o comportamento (pois este só pode ser
alcançado quando a pessoa encara o seu medo).
- Exercícios que se baseiam na identidade funcional entre mente e corpo, de
consciência do corpo130 - EXERCÍCIOS DE RESPIRAÇÃO que ajudam a perceber que
a vida é consequência da respiração (rir, gritar, chorar...); EXERCÍCIOS PARA
LIBERTAR A TENSÃO MUSCULAR que os conflitos estruturaram no corpo (expressar
a raiva, relaxar, correr, chutar, socar...).

Não será isto ““fazer caretas ao medo”,


como diziam as crianças do Jardim da Infância da Portela?

Passos e Técnicas

Morris (2006). Os CINCO PASSOS para alcançar a valentia.


- Preparar-se para o desafio – a valentia é uma virtude, a confiança é uma atitude.
- Rodear-se de apoio – o êxito tem um aspecto social, interpessoal e comunitário.
- Conversar consigo mesmo de forma positiva – o poder da mente.
- Concentrar-se no que está em jogo – os grandes valores expulsam o medo.
- Actuar adequadamente – o enfoque da acção em relação à atitude e à virtude.

David de Prado (1982:150-153; 1995:6-8; 2003; 2004). TI131 e RELAXAMENTO


CRIATIVO.

- TI – enquanto expressão livre, espontânea e incontrolada das ideias e das


reacções emocionais e afectivas, pode ser usado como diagnóstico e técnica
expressivo-projectiva da personalidade, da ansiedade, de problemas, gostos e
tendências do sujeito que responde.
- Relaxamento criativo - enquanto processo de recuperação do corpo alienado
(sentir-se corpo), permite, entre outros, uma maior integração psico-somática e
um maior equilíbrio emocional.

130
No Yoga existe uma série de posturas (asanas) que podem ajudar a abrir a caixa torácica, a alongar e
relaxar os ombros e o pescoço. São acompanhadas de uma respiração lenta e profunda e com a intenção de
relaxar a testa, os olhos, os maxilares e a língua. Alguns exemplos: tadasana (postura da montanha); setu
bandha (ponte); adho mukha svanasana (cão de cabeça para baixo); savasana (postura do cadáver) (Serber,
1999).
131
TI – “Torbellino de ideas”, em castelhano.

274
Saturnino de la Torre (2005, 2006, 2007). SENTIPENSAR, CINEMA E TÉCNICA ORA.
- Critica a prevalência do pensar sobre o sentir no campo da educação – chama a
atenção para a necessidade de educar em “sentipensar” (não com a finalidade
de instruir, mas sim de facilitar o bem estar pessoal e social) e para um conjunto
de estratégias criativas para a educação da dimensão emocional (por exemplo,
cinema e o modelo ORA.
- Cinema – porque as histórias de vida reais ou imaginárias dos filmes produzem
emoções e sentimentos fortes e de índole diversa no espectador, o cinema é
uma grande escola para o desenvolvimento das emoções.
- ORA (observar, relacionar, aplicar132) – como instrumento conceptual, facilita a
conversão da informação em formação; pode ser utilizado em climas e
ambientes criativos, filmes, música, diálogos analógicos, cartas analógicas,
textos poéticos ou literário, dramatizações, histórias de vida ou relatos, diários,
etc.

Graciela Aldana (2000: 286-321). SONHOS, ESCRITA CRIATIVA, TRABALHO EM GRUPO.


- Explora uma série de formas de trabalho para, enfrentando o medo do contacto
com o mundo interior, recuperar, canalizar e desfrutar da riqueza pessoal e
desenvolver uma atitude criativa em todos os espaços da vida.
- SONHOS – para detectar a presença simbólica e transformadora do inconsciente.
- ESCRITA CRIATIVA (escrita metafórica, diário, eventos significativos, diálogo
interno...) – como uma das ferramentas mais poderosas para organizar o
pensamento, expressar os sentimentos e criar novas possibilidades e
realidades.
- TRABALHO EM GRUPO (EXPRESSÃO GRÁFICA, MANDALAS, DRAMATIZAÇÃO, RITUAIS...)
– um cenário privilegiado para favorecer a aprendizagem em espelho, partilhar
vicissitudes e experiências do mundo interno.

Não será isto “dizer «olá» ao medo”,


como diziam as crianças do Jardim da Infância da Portela?

132
Observar a realidade prévia; relacionar as experiências ou vivências da vida quotidiana com algumas das
emoções e sentimentos que se procuram destacar; aplicar, ao nível pessoal, algumas das ideias partilhadas
em actividades concretas.

275
Ensinar a compreensão

Edgar Morin (2002: 99-111). ENSINAR A COMPREENSÃO.


- Para enfrentar os medos sociais que ganham a forma de egocentrismo,
etnocentrismo, sociocentrismo, espírito redutor e indiferença.
- Compreensão intelectual ou objectiva – inteligibilidade e explicação; “bem
pensar” para, apreendendo em conjunto o texto e o contexto, apreender o
complexo que são as condições do comportamento humano.
- Compreensão humana intersubjectiva – ultrapassa a primeira e inclui um
processo de empatia, de identificação e de projecção; introspecção que, como
prática mental de auto-exame permanente das próprias fraquezas, é a via para a
compreensão das fraquezas do próximo.

Não será isto “fechar a janela para o medo não entrar”,


como diziam as crianças do Jardim da Infância da Portela?

• Produto / Consciência de si, dos outros, do cosmos

Consciência Consciência
do Outro do Cosmos

Consciência
de Si

Ilustração II.31 – O produto – consciência de si, consciência dos outros, consciência do cosmos.

“É o seu medo que faz de si escravo (...). Quando deixar de ter medo, deixará de ser
escravo: na realidade, é o seu medo que o obriga a tornar os outros seus escravos antes
que eles o façam a si” (Osho, 2002b:15).

Que resultado se obtém pela intersecção da pessoa com o contexto e com o processo
atrás definidos? Um produto novo, com valor e em que todos ganham – o(s) produtos

276
do Desenvolvimento Humano (quadro II.7): os produtos da consciência de si, onde
cresce a autonomia, a vida autoconstrutiva, o pensar livre, o autocuidado, o
autotelismo*; os produtos da consciência do Outro, onde se coloca o comunicar, o
compartilhar, o respeitar, o espaço do Outro como Eu; os produtos da consciência do
Cosmos, donde, pela inteligência e pelo interactuar, surge o tempo de transformação e
de felicidade partilhada (Trigo & Coego, 2003).

Desenvolvimento Humano

Consciência de Si Consciência do Outro Consciência do


Cosmos
Autonomia O Outro como Eu Inteligência partilhada
Vida autoconstrutiva Comunicar Interactuar
Pensar livre Compartilhar Respeito
Autocuidado Respeitar
Autotelismo
OUTRO MUNDO É POSSÍVEL
Uma só raça
Democracia mundial
Ética Universal
Repartição de riqueza
Globalização socio-educativa-
económica-cultural

Quadro II.7 – Propósitos do desenvolvimento humano. Reprodução de Trigo & Coego (2003).

4.2 ConVIVENDO com o Medo

É o efeito da transformação interna por se ir enfrentado o medo. É o assumir da


condição humana e da complexidade do Ser. É o tempo em que o medo, deixando de
ser adversário, se torna companheiro de jornada. É o tempo de chegada e,
simultaneamente, o tempo de (nova) partida – porque nunca se chega e sempre se está
partindo. Mas também é o tempo da transformação externa: porque tendo trabalhado
“conscientemente na dimensão individual e no desenvolvimento da nossa humanidade,
necessariamente tocamos e contagiamos o outro, contribuímos para a evolução da
espécie e do Universo” (Feitosa: 2006:76).

277
E encontro na literatura para a infância um exemplo do que isto quer dizer:

“Como se pode engolir uma coisa que já está dentro de nós? Sim, porque o medo estava
dentro dele. Ele bem o sentia, a apertar-lhe a garganta por dentro, a causar-lhe dores de
barriga. Então, pelo contrário, tinha de o atirar todo para fora. Começou a encher os
pulmões de ar e de coragem e mandou um berro que fez estremecer a casa. Os gatos
fugiram, os canários calaram-se, o avô quase acordou, as plantas fecharam-se e as
louças tilintaram; e as telhas juntaram-se umas às outras como se fosse chegar a
tempestade. E o medo? O medo, embora não tenha tido medo, olhou para o João com
interesse. E o João olhou para o medo, também. Ficaram a olhar de frente um para o
outro, como se fossem dois velhos conhecidos que nunca se tinham visto. Silêncio e
respeito.
E depois o João falou, e disse: (...) Eu só tenho medo de ti, porque penso que tu não
fazer parte de mim. Mas tu fazes parte de mim, como os meus ossos e os meus
pulmões. Tu és o meu medo, por que é que não havias de fazer parte de mim? A
coragem não faz também parte de mim? E o riso e as lágrimas, não fazem? De maneira
que, olha, fica cá dentro e encontra um canto para te sentares. Mas cuidado: de cada
vez que começares a abusar, vai haver guerra. Vou saltar, correr, espernear, lutar, falar,
responder, perguntar, ou muito simplesmente, pensar.
Silêncio e respeito. O João estava cansado de todo aquele seu discurso. (...) Olhou à
volta e não viu medo nenhum. Talvez tivesse voado pela janela aberta. Ou ardesse para
sempre no cimo de um monte. Ou continuasse no fundo do mar, à espera de um polvo
que por ali nunca passará” (Godinho, 2002:43-46).

Já não mais o viver com medo, já não mais o ter medo do medo, mas o conVIVER com
o medo – lado a lado, em SILÊNCIO, em RESPEITO.

Se fossemos crianças, era capaz de chegar para compreender... Mas porque, quais
pessoas crescidas do “Principezinho” de Saint-Exupéry” (que, num desenho tão simples
- tão óbvio! -, não conseguiam ver a jibóia a digerir um elefante), precisam(os) sempre
de mais explicações, vou procurar um pouco mais para perceber o que é aquele
“silêncio” e aquele “respeito”. Ou o que, de alguma maneira, também são os
“quinhentos milhões de guizos”133, aqueles que, afinal, talvez possam ser o som (ou a
cor, ou o outro nome) de um mundo sem medo...

133
Mesmo no final do “Principezinho”, Saint-Exupéry (s.d.:91) escreve: “Agora já estou um pouco
consolado. Isto é... não de todo. Mas eu sei muito bem que ele voltou para o seu planeta porque, ao romper

278
• O silêncio

O cérebro esquerdo é PALAVRA e coordena a acção em sociedade; o cérebro direito é


SILÊNCIO e coordena o nosso património natural. Mas como, no homo sapiens moderno,
predomina a actividade do neocórtex e do hemisfério esquerdo, ficam reprimidas as
manifestações instintivas, intuitivas e emocionais – o ruído do cérebro frontal esquerdo
não deixa ouvir a sabedoria profunda do cérebro profundo e direito. Temos aqui um
problema de comunicação pois perdeu-se o contacto com o verdadeiro real e o sentido
da vida. Quando se recupera “a sabedoria profunda do cérebro profundo e direito”, o
que se tem é... silêncio. E o silêncio é quietude da alma, contemplação, encantamento,
âmago permanente, testemunha absoluta, sentimento de participar na criação
permanente, reencontro de todos os lugares que vivem em nós (Smedt, 2003:169).

• O respeito

ConVIVER com o medo com toda a riqueza dos nossos sentidos, é fazer a passagem do
olhar... ao ver, do ouvir… ao escutar, do tocar… ao acariciar, do cheirar... ao olfactar, do
gostar… ao degustar, do fazer... à acção. Ou, dito ainda de uma outra maneira, é viver
de acordo com o que (no respeito pela dignidade de si mesmo, dos outros e do
universo), em sânscrito está contido numa só palavra:
Namaste! - inclino-me perante ti134.

Tão simples. Tão óbvio.

do dia, não encontrei o corpo. Não era um corpo assim tão pesado... E, à noite, gosto de escutar as
estrelas. É como se quinhentos milhões de guizos...”.
134
“Para fazer ‘Namaste’, colocam-se as duas mãos unidas junto do chakra do coração, fecham-se os
olhos e inclina-se a cabeça ou então, como forma de profundo respeito, colocam-se as mãos unidas junto
do terceiro olho, inclina-se a cabeça e depois descem-se as mãos até ao coração. Este gesto, utilizado na
Índia, representa a crença de que existe uma chama divina dentro de cada um de nós e que essa chama
está localizada no chakra do coração – é o reconhecimento de que a alma é uma com a alma de outra
pessoa. Entre professor e aluno, tal como também é utilizada no Yoga, Namaste permite que dois
indivíduos se juntem energeticamente num lugar de conexão, para lá do tempo, livre das fronteiras do ego.
O professor inicia “Namaste” como símbolo de gratidão e respeito para com os seus alunos e para com os
seus próprios professores e convida os seus alunos a também se ligarem com a sua linhagem, permitindo
que a verdade flua – a verdade de que todos somos um quando vivemos a partir do coração” (Geno, R.
The Meaning of "Namaste", www.yogajournal.com/newtoyoga/822_1.cfm. 2005.)

279
Síntese:

1. As dimensões da Educação Criativo-Motrícia e o processo de enfrentar o medo:


- Pessoa: competências sociais e emocionais básicas – autoconsciência,
autoregulação, motivação, empatia, aptidões sociais.
- Pressão: presença de um educador, líder, mentor, mestre – que se dá conta, não
desiste e, com firmeza, encontra forma de ajudar/provocar/convocar/despertar.
- Processo: momentos/movimentos da acção – tomada de consciência, assumir,
tomada de decisão, execução.
- Produto: o desenvolvimento humano – consciência de si (autonomia, pensar livre,
autocuidado, autotelismo*); consciência do outro (comunicar, respeitar, o outro
como eu); consciência do cosmos (transformação, felicidade partilhada).

2. Critérios para a selecção de estratégias para lidar com o medo:


- Será que considera a pessoa em toda a sua dimensão e complexidade?
- Será que permite aumentar os níveis de energia vital?
- Será que devolve à pessoa o poder sobre a sua vida?
- Será que permite a realização de aprendizagens significativas?

3. Algumas estratégias para tomar consciência, assumir, decidir e executar:


- Silêncio criativo.
- Implantar um pensamento consciente.
- Meditação.
- Bioenergia
- Relaxamento Criativo.
- Sentipensar.
- Cinema Formativo.
- Escrita Criativa.
- Dramatizações
- (...)

Muitos outros autores poderiam ter sido trazidos, e neles encontradas outras respostas,
neste processo de interacção criativa entre a revisão da literatura, o trabalho de campo

280
e a minha introspecção como investigadora (Patton, 2002:226). O que significa que
bastaria outra pessoa, outro tempo ou outro lugar (outro Eu e outras circunstâncias,
segundo Ortega), para, seguramente, ser diferente. Embora atraída (porque isto
também é um processo de enamoramento), por todos aqueles que, mesmo
aparentemente distantes, me ajudassem a desenhar um quadro coerente para
compreender, transformar, transfigurar e transcender, fica sempre a certeza de que, tal
como lidar com o medo, também a revisão da literatura é permanente descobrimento,
em que o local de chegada é também de partida...

281
III. AGIR
284
Capítulo 4
Criar o caminho

I. PROCESSO DA PESQUISA
Introdução
Capítulo 1 – Roteiro

II. CENTRAR
Capítulo 2 – Descobrir os próprios caminhos
Capítulo 3 – Descobrir caminhos de outros

III. AGIR
Capítulo 4 – Criar o caminho
1. Quem (somos os que fizemos parte da Pesquisa Colaborativa e constituímos o universo de estudo sobre o qual
recai esta investigação)?
1.1 As pessoas 1.3 Conjugando os dados e descobrindo implicações
1.2 O grupo
2. O que (faz com que uma vida seja serena, útil e corajosa)?
2.1 O disfarce do medo 2.3 Relação de medos e efeitos do medo
2.2 Definição e caracterização do medo 2.4 Síntese do “o quê”
3. Como (pode o educador lidar com o seu medo e, por isso, ajudar as pessoas a enfrentarem os seus medos e a
terem uma vida serena, útil e corajosa)?
3.1 A vivência da totalidade 3.4 O processo de lidar com o medo
3.2 Formas de (não) lidar com o medo 3.5 Síntese do “como”
3.3 Brincando com números
4. Por que (razão o educador só pode ajudar outros a enfrentarem os seus medos e a terem uma vida serena, útil
e corajosa, depois de ele próprio ter entrado no processo de enfrentar os seus)?
4.1 Passagem de testemunho e contágio 4.4 O velho, o rapaz... e o medo
4.2 As causas do medo 4.5 Conjugando e formulando uma resposta
4.3 As causas do não medo como um dado 4.6 Síntese do “por quê”
insignificante muito significativo
5. Para que (serve uma vida serena, útil e corajosa)?
5.1 Ser parte do Universo
5.2 O medo para o desenvolvimento humano 5.5 Ligações e reflexões
5.3 O medo para a conservação social 5.6 Lendo uma resposta para a pergunta da pesquisa
5.4 O papel do medo na construção do humano 5.7 Síntese do “para quê”

IV. CELEBRAR
O sentido do caminho
Para abrir um novo caminho

285
You must give birth to your images
They are the future waiting to be born.
Fear not the strangeness you feel
The future must enter you
Long before it happens.
Just wait for the birth
For the hour of new clarity.
Rainer Maria Rilke

Sinto que cheguei agora ao ponto central deste trabalho, aquele para o qual tudo vem
sendo preparado e que congrega a participação-triangulação de todos os tempos e de
todos os intervenientes na pesquisa:

- O tempo dos membros do grupo que, durante meses, tiveram a coragem de,
expondo-se, fazer mexer em si mesmos o tema de “o medo e o desenvolvimento
humano”.

- O tempo de todos aqueles que, de uma forma ou outra, colaboraram na criação


da grelha de categorias de análise em que aqui me movo: os informantes-chave,
os especialistas consultados, os especialistas que ajudaram na aplicação dos
questionários SOQ e VIEW de caracterização do grupo de pesquisa e todos os
que (com os seus conselhos e mesmo que informalmente), tornaram mais claros
os caminhos a seguir.

- O tempo dos autores que ajudaram a configurar o quadro geral de referência,


em termos temáticos e em termos metodológicos.

- E o tempo em que, trabalhando “sozinha”, procurei, pelo princípio de rede que


nos interliga, romper com a dicotomia sujeito investigador / objecto do
conhecimento e, com isso, enfrentar o desafio proposto por Bohórquez & Trigo
(2006) de também levar o hologramático à vida académica.

É, por isso, com um sentimento de profundo respeito pelas contribuições de todos (“mas
também e simultaneamente”, com uma vontade-necessidade de, qual artista que se

286
descobre na mistura das cores, me sentir livre para interpretar), que agora me aproximo
de uma tarefa que procura aceder um pouco mais ao entendimento da complexidade
em que a nossa espécie humana se movimenta. É esta a forma, acredito, de, ganhando
fundamentação sem me deixar prender demasiado pela “norma” confortável e segura
do já feito, poder vir a ser criadora de uma leitura própria que possa construir caminho
novo – por pequeno que seja.

Análise da
Análise da
A+B Categoria
Categoria B
A

A+C B+C

Análise da
Legenda
Categoria
C Passo 1: A / B / C =
análise de categorias
Passo 2: A+B / B+C /
A+C = interpretação
Passo 3: A+B+C =
construção de sentido

Ilustração III.1 – Passos 1 e 2 – análise e triangulação de actores e momentos da pesquisa.

Assim, e procurando fazer um texto interpretativo em que dialoguem os vários actores e


tempos da pesquisa, vou dividir o capítulo em cinco partes, cada uma correspondendo a
uma categoria/pergunta específica. Na primeira parte, recorrendo mais a dados
quantitativos (por isso, com contornos um pouco diferentes das restantes), farei a
caracterização geral do grupo de pesquisa (“quem”). Em cada uma das outras quatro
(“o quê”, “como”, “por quê”, “para quê”), começarei por identificar o eixo central nelas
contido e, em função desse eixo, farei a (1) interpretação das respectivas subcategorias
e (2) estabelecerei a rede de relações que entre todas possa existir.

Mas isto não significa que pretenda fazer uma leitura unicamente linear ou isolada de
cada uma das perguntas e das categorias de análise – cada uma das partes atrás
referida é também construída pelo cruzamento e triangulação das categorias entre si,
das categorias com o referencial teórico, das categorias com os diários de campo e com
a própria história de vida (ilustração III.1).

Finalmente, e antes de avançar, preciso relembrar uma ideia já antes colocada. Muito
embora, e de acordo com o comentário de alguns participantes, as sessões de trabalho

287
com o grupo tivessem sido muitas vezes “terapêuticas”, nunca houve intenção de fazer
terapia, nem de, por qualquer meio, levar as pessoas a revelarem mais do que elas
próprias estivessem espontaneamente interessadas em revelar. O propósito deste
ponto do estudo situa-se na compreensão do que, num contexto muito específico, as
pessoas envolvidas estiveram (ou não estiveram) dispostas a dar a conhecer sob as
suas representações e vivências do medo.

288
“O homem se distingue não por aquilo que tem mas por aquilo que deseja ter”.
Raimundo Ferreira Ignácio

1. Quem somos, então, os que fizemos parte da Pesquisa


Colaborativa e constituímos o universo de estudo sobre
o qual recai esta investigação?135

Alguns dados sobre os membros do grupo foram já colocados no “Capítulo 1 Roteiro –


2.2.3 Etapa 2 – trabalho com o grupo” e podem ser relembrados e resumidos da
seguinte maneira: 5 mulheres e 5 homens, com idades compreendidas entre os 28 e os
61 anos, com profissões diversas, mas abrangendo todas elas, de forma mais ou
menos directa, a educação de adultos.

Mas o que aqui pretendo fazer é mais do que procurar saber o que somos, que pouco
muda, e pode ser descrito em termos demográficos e sociológicos. Porque os homens
constantemente mudam e as coisas não se repetem, vou procurar também ler quem
fomos enquanto o trabalho de campo decorreu – para que, pela caracterização do
enquadramento e do clima desta fase do trabalho, se possa também perceber e antever
o que condicionou o conteúdo das categorias de análise e, evidentemente, alguns dos
resultados obtidos na investigação.

Assim, e na sequência das sub-categorias que compõem a categoria “quem”, vou dividir
esta análise em duas partes:

- A primeira, “as pessoas”, procura reconhecer algumas das percepções e atribuições


de identidade pessoal que os membros do grupo revelam (ou não revelam) sobre si
mesmos, bem como fazer a sua caracterização geral em função das razões, das
expectativas e dos efeitos de participação que apresentam (ou não apresentam) e
dão (ou não dão) a conhecer.

- A segunda, “o grupo” (que não deixa, evidentemente, de estar relacionada com a


primeira), pretende olhar o grupo enquanto entidade colectiva e, pela conjugação

135
Ver excerto do mapa mental das categorias de análise no final deste ponto do capítulo.

289
dos dados das sessões com os resultados da aplicação do VIEW e do SOQ136,
compreender e, de alguma maneira, antecipar as características do produto que de
tal contexto nasceu.

1.1 As pessoas

• Esboços de uma apresentação

E começo por fazer a apresentação de cada um dos membros do grupo da pesquisa,


em que também me incluo. Não a nossa identificação formal mas, em jeito de esboço
rápido e só pela utilização das nossas próprias palavras (e com uma selecção que é da
minha inteira responsabilidade), dar um pouco a conhecer a nossa identidade-
individualidade-singularidade:

Ilustração III.2 – Fotografias de sessões do grupo de pesquisa.

- Uma das coisas que me fascina muito é a ordem. - Acredito que, em grande medida, as nossas vidas
(...) Facilmente me fascino por pessoas que se são regidas pelas nossas emoções. 1N1/2
apresentam bem organizadas, com raciocínios
bem conduzidos. 7K5/2; 7K10/2

136
Como já tive oportunidade de desenvolver, estes instrumentos caracterizam os estilos de criação e o
clima para a inovação e para a mudança (ver “II Roteiro – procedimentos, instrumentos e técnicas”).

290
Ilustração III.3 – Fotografias de sessões do grupo de pesquisa.

- Sou uma pessoa que sinto muito mais do que - Tinha a cabeça lá bem no meio da nuvens e (...)
penso. Vivo muito mais do que penso (...). O que os pés bem enterrados na terra e eu não
eu queria era a harmonia do mundo (...). Se cada conseguia fazer a ligação entre uma coisa e outra
um de nós tivesse a possibilidade de descobrir o (...). Depois comecei a perceber que era
bom que a pessoa tem e o desenvolvesse, o exactamente por força da criatividade que eu
mundo seria fabuloso. 7A7/1; 7A7/4 conseguia fazer essa ligação. 1U5/1-4

Ilustração III.4 – Fotografias de sessões do grupo de pesquisa.

- Fartei-me daquilo (...) percebi que isso não era a - Ponho tudo cá fora (...). Preciso muito de dizer
minha vida (...). Depois decidi deitar tudo fora (...) “gosto de ti, não gosto de ti, estou triste, estou
e começar do zero. 3J4/9; 2J1/6 feliz...”. Sou super agarrada às minhas raízes.
1O1/5; 6O3/2,4-6; 6O8/2

Ilustração III.5 – Fotografias de sessões do grupo de pesquisa.

291
- Tenho feito trabalho sobre mim mesma (...) e - Tenho vindo a fazer, de há alguns anos para cá,
achei que não era por acaso que as duas coisas algum trabalho de formação pessoal (...) que me
[o trabalho sobre mim mesma e esta pesquisa] se tem ajudado a crescer e a estar mais consciente e
encontravam. 1E1/4 mais lúcido... mais por dentro de mim próprio.
1L1/1-3

Ilustração III.6 – Fotografias de um encontro do grupo, três meses depois das sessões.

- Sou muito céptico. Sou muito condicionado pelo - Não sei dizer não e sou muito curiosa e tenho
lado do pensar (...). Acho que sou extremamente muita vontade de fazer muitas coisas e de
duro comigo mesmo, (...) extremamente analítico aprender muitas coisas (...). Sinto uma grande
e extremamente reflectido e, de certa maneira, necessidade de ser responsável pelos meus actos
acabo por dar muito mais valor a este pensar do mas, ao mesmo tempo, manter uma grande
que ao lado dos sentimentos. 6M1/6; 7M5/5 liberdade interna. Gosto muito de pensar por mim.
7I3/1; 7I17/3

Para quê este desvendar? Para, compatibilizando uma eventual homogeneidade de


pertença de classe e de capitais aqui presentes (escolar, social, talvez até cultural, num
certo sentido), com a diversidade de cada existência humana, tentar traduzir de alguma
maneira a riqueza de diferentes histórias de vida e de diferentes perspectivas que
constituem o universo desta pesquisa.

• Participação no grupo de pesquisa – razões,


expectativas e efeitos

1. Razões para participar

O que levou este grupo de pessoas a participar (tabela III.1) num trabalho de pesquisa
colaborativa sobre “o medo e o desenvolvimento humano”?

292
Genericamente, e sobretudo nas duas primeiras sessões de trabalho, foram
apresentados dois tipos de razões:
a) razões cujo foco está colocado no próprio – “razões do Eu”:
- “Interessa-me (...) pesquisar e compreender, ir à procura de resposta sobre o que tem
que ver com (...) o mundo emocional da pessoa” (1N1/2);
b) razões cujo foco está colocado nos outros – “razões dos Outros”:
- “(...) o desejo de (...) colaborar com o que se vier aqui a realizar” (1L1/4-5);
havendo, nestas últimas, e sem estranheza, alguma incidência nas razões relacionadas
com a actividade profissional dos participantes que, em quase todos os casos, diz
respeito a profissões de ajuda* no sentido rogeriano.

- “Interessa-me chegar a um conjunto de estratégias pedagógicas” (1I2/4).


- “Estou aqui para carregar baterias em mim para ajudar os outros” (2J1/7).

Razões para participar F %


Relacionadas com o Eu 12 43
Relacionadas com os Outros 16 57
Outras - -
Total 28 100
Tabela III.1 – Razões para participar no grupo de pesquisa.

Ao todo foram apresentadas 28 razões para participar, com uma maior ocorrência nas
razões relacionadas com os outros (16 = 57%) do que nas razões relacionadas com o
próprio (12 = 43%) e, dentro destas últimas, só metade são razões relacionadas com a
vontade, ou necessidade, de fazer um trabalho de desenvolvimento pessoal.

- “Porque nesta temática eu também tenho que me implicar, e tenho que ir ver quais são os meus
medos, e como é que tenho reagido perante eles, e como é que posso viver com eles, e como é
que posso, se é que posso, superá-los” (1E1/5).

Mas por que será que, apesar de cada um dos participantes ter aceite a proposta de
integrar uma pesquisa que colocava o desenvolvimento pessoal e a reflexão sobre si
mesmo como elemento central e irradiador de todo o projecto (o que implicava a
necessidade de reconhecer em si mesmo a presença do medo e de medos), isso não é
reconhecido publicamente com mais frequência? Por que será também que, na fase

293
reflexiva da pesquisa137 (e de uma forma muito mais privada), demorei tanto tempo a
escrever a minha história de vida e, ainda assim, com todo o “sofrimento” lhe esteve
associado? Por que será tão difícil reconhecer o medo em nós mesmos?

- Porque, apesar de possuidores de uma preparação escolar e profissional que


poderia promover e facilitar o contrário, a “Pessoa Pública” (Moffit, 2003a) continua
a fazer com que seja difícil encarnar o princípio de que “no campo da compreensão
(...) devemos enfrentar transformações que começam com e dentro de nós mesmos”
(Max-Neef, 1993:98)?

- Porque a couraça e a máscara do “Eu” de Walt Whitman (Ribeiro Dias, 2000) é tão
forte que, apesar de todas as circunstâncias, preferimos começar por
prudentemente nos resguardarmos com razões de “interesse” ou “curiosidade” do
que imediatamente nos confrontarmos e expormos com aquilo que consideramos
serem as nossas fragilidades?

- Porque o clima adequado ainda não estava criado?

- Porque o argueiro no olho dos outros parece sempre maior do que a trave no nosso
(Mateus 7, 3)?

- Porque, por muito que, do ponto de vista da neurobiologia, o medo comece por ser
resultado de mecanismos biologicamente determinados e dependentes de
dispositivos cerebrais inatos (Damásio, 2003), do ponto de vista cultural não deixa
de ser aquilo que, com uma certa sagacidade, Nicola Phillips (2003:2) retrata como
sendo “the other four letter ‘f’ word. The more unspoken of the two (...) the only four
letter word not allowed in business”?

Será também a “Pessoa Pública” a razão porque ainda nos é difícil entender e levar à
praxis o que Morin refere como sendo a necessidade de o investigador integrar o
observador e o conceptualizador na sua observação e na sua conceptualização e, com
isso, abandonar o “ponto de vista divino” (Morin, 2003:109) que nos impede perceber,
ou revelar, que estamos possuídos por toda a sociedade?

137
Ver “Capítulo 1 Roteiro – 2.2 Descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas”.

294
Não será também a dificuldade de abandonar esse ponto de vista (que, ironicamente,
até nunca se alcançou), que impede nos tornemos “especialistas de nós mesmos”
(Feitosa, 2006:25)?

Contudo, se (e como outra face da moeda), reunir a quantidade de medos que, ao longo
das sessões do grupo de pesquisa, acabaram por ser mencionados (186)138 com a
quantidade de medos encontrados nas obras de referência (inseridos no capítulo 3 sob
o simbolismo do número 241), julgo que tudo indica estarmos perante um tema delicado
e premente que (também no campo da educação de adultos), precisa de um
“tratamento assertivo”. Isto é, de um “tratamento” que considere a presença efectiva de
determinadas condições que, tal como é proposto pelas categorias de análise criadas,
facilite os movimentos centrífugo e centrípeto dos momentos de um processo de
mudança (Sérgio & Toro, 2005) centrado no desenvolvimento humano. Ou, dito ainda
de outra maneira e em menos palavras, de um conjunto de procedimentos didácticos
que permitam passar do conhecimento factual ao conhecimento pessoal, ou seja, ao
conhecimento encarnado.

“Uma pessoa estudiosa e consciente (...) sabe que só o conhecimento que transforma é
útil e pode converter-se em sabedoria” (Feitosa, 2006:88).

2. Expectativas dos participantes

Quando se trata das expectativas dos participantes relativamente ao trabalho de


pesquisa colaborativa (tabela III.2), a situação inverte-se – as que estão “relacionadas
com o Eu”, isto é, razões de desenvolvimento pessoal, passam a ter uma muito maior
incidência (17 = 61%) do que as que estão “relacionadas com os Outros” (7 = 25%).

Exemplos de expectativas relacionadas com o Eu:


- “As expectativas que tenho são pois obviamente estas: pronto a aprofundar mais, a entender
mais, a compreender mais” (1N1/4).
- “Ao longo das sessões, se calhar, vou ficar a conhecer-me um bocadinho melhor” (1M2/3).

138
Sobre este assunto, “relação e explicação de medos”, será desenvolvida reflexão detalhada no ponto 2.1
deste capítulo – “Definição e caracterização do medo”.

295
- “Pode ser uma experiência que contribua para um crescimento pessoal muito interessante, assim
como um descobrimento benéfico para todos, não só para o projecto” (2N1/2).

Expectativas em relação ao trabalho


Razões para participar
de pesquisa
F % F %
Relacionadas com o Eu 12 43 17 61
Relacionadas com os Outros 16 57 7 25
Outras - - 4 14
Total 28 100 28 100
Tabela III.2 – Comparação entre razões para participar e expectativas em relação do trabalho de pesquisa.

Então, e curiosamente, viemos para a pesquisa, em primeiro lugar, por causa dos
outros, mas desejamos que, no final, os resultados do processo nos beneficiem
particularmente. Que significa esta inversão?

- Será uma “distracção” da Pessoa Pública que revela o que gostaria de manter
escondido?
- Será um sinal da nossa dificuldade de integração e de congruência entre o que
está presente na nossa consciência e o que está presente na nossa
comunicação (Rogers, 1970)?
- Será a marca do quanto, muitas vezes, tendemos a colocar nos outros a
responsabilidade pelo que nos acontece e a entregar-lhes o poder de dirigir os
nossos próprios processos de mudança (Osho, 2002a:137)?
- Ou, com tudo isto, mais do que isto e para lá disto, o que está em causa é o
peso do clima na capacidade de produção e criação das equipas (Isaksen et al,
1995)?

O que esperamos dos outros, então, para que os resultados desejados sejam
atingidos? Confiança, confidencialidade, envolvimento – é o que está presente em
quase todas as situações identificadas como “expectativas relacionadas com os outros”.

- “Tem de haver uma relação de confiança entre todas as pessoas para se sentirem cómodas e à
vontade. O principal. Sem a confiança não sai nada” (2N1/2).

296
- “Levantei a questão da confidencialidade que o RP levantou aqui também, que achava que isto
devia ser explicitado – só porque não ganhamos nada em ser implícito e acho que isso pode dar
maior confiança a todos para fazermos aquilo a que nos propomos fazer aqui” (2I1/3).

- “E eu sentia que tinha estado a trabalhar durante muitos meses com um “filho” que agora está a
passar para uma idade mais madura, mais adulta, em que, por isso, já não é mais meu e passa a
ser de nós todos” (2U4/3).

Porém, quando se referem a “expectativas relacionadas com o eu”, alguns membros do


grupo parecem, não só revelar bastante mais de si próprios do que quando se referem
às razões que os levaram a participar na pesquisa, como também acabam por levantar
um pouco mais do véu sobre o grau de dificuldade com que encaram o desafio deste
trabalho em grupo.

- “Acho que é um desafio falar do medo... tratar este tema com tantas pessoas que eu não conheço
é um desafio interessante. As minhas expectativas... ultrapassar esse desafio” (1I2/3).

- “Muito do que eu também quero tirar deste grupo para mim é (...) encontrar a forma de eu passar
a sentir essas coisas [sentir o que sou]” (4U11/4).

- “De maneira que cá estou e acho que me vai fazer muito bem, apesar de não saber o que vai sair
daqui. Acho que só pode ser para crescer, para melhorar, mesmo que passe por algum mau
bocado” (1O1/4).

“Mesmo que passe por algum mau bocado” (1O1/4)! Sintetiza o que, estando provavelmente
presente no espírito de outros participantes, corresponde ao que Anna Feitosa indica
como sendo “a saída da zona de conforto implicada no pensar o novo e agir de outra
forma” (2006:75), isto é, o que também parece ocorrer a quem se coloca na posição de
aprender a lidar com o medo no contexto de um grupo.

Está, por isso, justificada a necessidade da atenção dada à problemática do clima – foi
o que levou à criação de uma sub-categoria específica para caracterização deste grupo;
foi o que motivou a aplicação do SOQ cujos resultados serão adiante analisados; foi o
que deu origem à sub-categoria “clima necessário num processo centrado no

297
desenvolvimento humano”, parte integrante e fundamental da proposta educativa para
lidar com o medo em contexto de educação de adultos.

E só depois, e inserida nas “Outras” expectativas (14%), surge uma única referência ao
trabalho de investigação propriamente dito.

- “Começarmos a construir algum conhecimento do grupo” (2I9/2).

3. Efeitos por participar

Para terminar esta primeira leitura, falta reflectir sobre os “efeitos por participar” (tabela
3.3). O que aconteceu a quem se colocou numa situação que implicou colocar o
desenvolvimento pessoal e a reflexão sobre si mesmo como elemento central e
irradiador de todo o projecto?

Deixando para espaço próprio a análise da avaliação feita por todo o grupo no final do
processo, procuro olhar aquilo que, de forma mais espontânea, foi sendo transmitido ao
longo das sessões:

Efeitos (no próprio) por participar F %


Interrogação-conhecimento sobre si mesmo 27 31.0
Prazer-alegria-confiança 27 31.0
Integração no grupo 12 13.8
Perturbação 12 13.8
Reconhecimento-gratidão 3 3.5
Interrogação sobre o processo de pesquisa 3 3.5
Desagrado 1 1.2
Outras 1 1.2
Total 87 99
Tabela III.3 – Efeitos por participar no grupo de pesquisa.

Considerando, como atrás referi, que as expectativas dos membros do grupo se


encontram especialmente centradas no desenvolvimento pessoal (“expectativas
relacionadas com o Eu”), parece que, de alguma forma, o trabalho correspondeu ao
esperado pois quase toda a gama dos efeitos produzidos pelo trabalho do grupo atinge,
de forma bastante directa, essa zona de interesses – “interrogação-conhecimento sobre
si mesmo” (31%), “prazer-alegria-confiança” (31%), “integração no grupo” (13.8%)...

298
Porém, se pensar que o maior número de razões por que as pessoas dizem ter aceite
fazer parte da pesquisa são razões do foro profissional (“razões relacionadas com os
Outros”), então os efeitos produzidos parecem, pelo menos à primeira vista, não
corresponder às razões enunciadas. Mas, quanto se considera que “todo o
conhecimento é auto-conhecimento” (Sousa Santos, 1988:50) e que “a cabeça pensa a
partir de onde os pés pisam” (Boff, 1998:9) e quando se recusam dualismos que
separam a pessoa do profissional, então (e apesar de ainda haver muito para
aprofundar nesta reflexão), a participação num trabalho deste tipo parece contribuir para
a consecução de efeitos adequados e necessários.

O que está, assim, contido nestes conjuntos de respostas e que leve a crer ter havido
tal correspondência com as expectativas e as razões apresentadas? Procurando fazer
uma “leitura optimista” dos dados recolhidos (que não pode também deixar de ser
encontrada na força e na beleza das palavras ditas), vale a pena fazer sobressair
alguns exemplos que mostram como, ao longo das sessões do grupo, se pôde também
chegar a uma comunicação mais pessoal e menos objectal* – para lá das “conversas
banais e de discursos impessoais que tantas vezes139 encobrem intentos medrosos e
subtis de uma comunicação mais profunda” (Marroquín, 1995:20):

Interrogação-conhecimento sobre si mesmo:


- “Como estava a centrar a minha atenção para o que tinham sido os meus medos, (...) eu visualizei
com uma certa ternura. Acho que olhei para mim mesmo com “estás a ir bem, estás a crescer”.
Foi uma experiência engraçada” (3M1/1,2).
- “Aprendi alguma coisa sobre os meus medos hoje” (9I1/4).
- “Depois de me sentar pensei na vida, nas voltas que dou para encontrar o centro e como o centro
está tão perto (às vezes, até se vê), mas ainda não se está lá, e é preciso continuar a caminhar
para o centro” (10L3/3).

Prazer-alegria-confiança:
- “Não sabia o que iria acontecer, mas não duvidei, em nenhum momento, que tinha de
experimentar. Não sabia se iria sentir medo. (…) Mas gostei imenso de ter conseguido fazer
aquilo” (9A1/14,16).

139
Os sublinhados são meus.

299
- “O mais interessante foi quando o L. cantou o Jorge Palma porque, apesar de ele não saber, o
Jorge Palma e as letras dele acompanharam-me em momentos muito importantes da minha vida e
aquela letra, em particular. (...) E começar uma caminhada nocturna, só com as estrelas, e depois
deitados naquele bocadinho… Foi mágico levantar-me e ter alguém que cantou aquilo naquele
momento. Se houve momentos bons na minha vida, aquele foi um” (9J1/3).

Integração no grupo:
- “Gostei imenso da sessão que tivemos. Não sei como é que a U. conseguiu arranjar um grupo
assim. Senti-me bem” (2A1/2).
- “O relaxamento permitiu essa integração neste tempo. No fim do relaxamento abri os olhos e disse
“ok, já faço parte da comunidade”. É muito mais simples do que se estivéssemos aqui a verbalizar
não sei quantas coisas – porque é a linguagem do corpo” (2J3/1).

Reconhecimento-gratidão:
- “Então, o sentimento que eu tive, ao aparecer aquela pergunta, foi um sentimento de gratidão.
Como uma pessoa que me fez reflectir numa situação muito séria que eu sempre esquivei
partilhar” (7K11/12).

Bonito, não é?

Mas será que o contido na sub-categoria “perturbação” (13.8%), (já para não falar nas
categorias “desagrado” que tem um valor percentual muito baixo – 1.2%), não põe em
causa a visão optimista acima apresentada (tabela III.1)? Alguns exemplos do que nela
está considerado:

Perturbação:
- “Isso deixou-me (...), devo confessar, que um bocadinho assustada… porque me perguntei, depois
de sair daqui, até onde eu própria estou disposta a ir neste processo” (2E1/4).
- “Congratulei-me porque não fui só eu que vinha com algum receio do que é que isto podia dar. (...)
Isto de virmos aqui para, a partir dos nossos medos, fazer alguma coisa! É preciso primeiro dar
conta deles e dar conta deles publicamente! E isso não é muito fácil” (2I1/4).
- “Eu usei os argumentos para me justificar, mas escondi o argumento da verdade que eu tinha, que
me levou a não falar daquela experiência. Mas, quando cheguei em casa, comecei a reflectir (...)”
(7E4/5-7).

300
- “Acordei com a dor nas pernas que acordo sempre quando somatizo as emoções vividas ao longo
do dia” (9J1/13).

Que reflexões a partir daqui?

a) Se o medo é uma emoção holística (Lowen, 1984, 1997), não pode ser “tratado”
exclusivamente no foro do mental. As referências aos efeitos sentidos no corpo
emocional e no corpo físico permitem ver que, pelo menos nalgumas situações,
o trabalho deste grupo ganhou distância de uma abordagem exclusivamente
teórica do tema.
- “Acordei com a dor nas pernas que acordo sempre quando somatizo as emoções” (9J1/13)

b) Se o conceito de acção é parte intrínseca de um processo centrado no


desenvolvimento humano, aqui existem indicações sobre a existência (ou
promessa de existência) de três dos seus momentos:
- Tomada de consciência – “é preciso dar conta deles” (2I1/4).
- Assumir a responsabilidade – “eu usei os argumentos para me justificar, mas escondi o
argumento da verdade que eu tinha” (7E4/5-7).
- Tomada de decisão – “porque me perguntei (...) até onde eu própria estou disposta a ir”
(2E1/4).

Julgo, por isso, que não fica em causa uma leitura (pelo menos moderadamente)
optimista dos efeitos, pois aquela “perturbação” parece fazer parte do que também já foi
identificado como sendo a saída do espaço de conforto inerente aos processos de
mudança (Feitosa, 2006).

Mas poder-se-á concluir que os efeitos produzidos ao longo do trabalho com o grupo (já
que, relembro, aqui está excluída a análise dos dados da última sessão), são todos
“positivos”? Será que o “não-dito”, certamente tão real para os participantes como o
“dito”, poderia dar origem a uma análise diferente? Será que foi criado o espaço-
abertura-clima-tempo necessários para confessar medos ou desagrados que as
sessões e o grupo possam ter provocado? Será que foi preciso defender a Pessoa
Pública, evitar o confronto, ou dar uma imagem adocicada que não pusesse em causa
os propósitos da investigação? Será?

301
Julgo, por isso, estar na hora de começar a examinar com cuidado os dados recolhidos
na sub-categoria “o grupo de pesquisa colaborativa – clima do grupo e estilos de
criação”, bem como os resultados da aplicação do SOQ e do VIEW.

1.2 O grupo

• O clima do grupo

PERSPECTIVA SISTÉMICA DA CRIATIVIDADE A IMPORTÂNCIA DO CLIMA

PESSOA PROCESSO
Características Operações
das Pssoas Que realizam

Liderança Clima Produtividade


PRESSÃO
Clima, Cultura,
PRODUTO Contexto
Resultados

Source: Ekvall and Arvonen, 1999.

© The Creative Problem Solving Group - Buffalo, 1999


© Selby, Treffinger, Isaksen, 2003. (traduzido por Helena Gil da Costa – 2000).

Ilustração III.7 – Perspectiva sistémica da criatividade. Ilustração III.8 – A importância do clima.


© The Creative Problem Solving Group, Inc. – Used with permission.

Vou utilizar como sub-categorias de análise do clima do grupo as dimensões


identificadas por Göran Ekvall e Scott Isaksen140 para a compreensão da influência do

140
Definição de Clima segundo Ekvall – “padrões habituais de comportamento, atitudes e sentimentos
que caracterizam a vida no grupo tal como são experimentados, compreendidos e interpretados pelas
pessoas” (Isaksen et al, 1995:1.8-ss).
As dimensões do SOQ descrevem nove características importantes do clima para a criatividade e inovação
(Isaksen et al, 2000:12-16):
- Desafio e Envolvimento: o nível em que as pessoas estão envolvidas nas tarefas diárias, nos objectivos
a longo prazo e na visão do futuro.
- Confiança e Abertura: a segurança emocional nas relações.
- Liberdade: a independência de comportamento exercida pelas pessoas da organização.
- Tempo para as Ideias: a quantidade de tempo que as pessoas podem ocupar (e ocupam efectivamente)
na elaboração de novas ideias.
- Conflito: a presença de tensões pessoais e emocionais (em contraste com a tensão de ideias na
dimensão “debates”).
- Debates: a ocorrência de acordos e desacordos entre pontos de vista, ideias, diferentes experiências e
diferentes conhecimentos.
- Alegria e Humor: a espontaneidade e o à vontade dentro do espaço de trabalho.
- Apoio a Ideias: o modo como são tratadas as ideias novas.

302
contexto na capacidade de inovar das equipas (Isaksen et al, 1995). Procurarei, assim,
perceber (primeiro, a partir da análise do discurso espontâneo dos participantes e,
depois, a partir dos resultados da aplicação do SOQ), as características do clima
(PRESSÃO) gerado pelo grupo de investigação colaborativa (PESSOA’S) para,
posteriormente, procurar antever e compreender algumas das possíveis influências
produzidas nos resultados da pesquisa (PRODUTO).

1. As dimensões do clima no discurso espontâneo dos participantes

De acordo com a síntese dos resultados apresentada na tabela III.4, as 111 menções
espontâneas ao clima do grupo que foram identificadas nas transcrições das sessões
cobrem as nove dimensões definidas por aqueles autores. Entre eles vale a pena
destacar:

Dimensões do Clima Referências %


Confiança e Abertura 34 30.6
Desafio e Envolvimento 20 18.0
Alegria e Humor 18 16.2
Liberdade 11 09.9
Debates 10 09.0
Tempo para as Ideias 08 07.2
Apoio às Ideias 06 05.4
Conflitos 03 02.7
Riscos Assumidos 01 00.9
TOTAL 111 99.9
Tabela III.4 – Referências espontâneas ao clima do grupo de pesquisa.

a) CONFIANÇA E ABERTURA é a dimensão mais vezes mencionada, com uma


percentagem de 30.6% (Ex: Acho que agora já me converti. Os dois medos que eu escondi,
já os partilhei – 7K10/4) e uma grande diferença relativamente às outras – mais
12.6% que DESAFIO E ENVOLVIMENTO, que se situa em segundo lugar (Ex: Estou
apta a tudo. Estou com gás, para o que der e vier – 2O1/3) e mais 14.4% que ALEGRIA E
HUMOR (Ex: Gostei particularmente do clima informal que aqui vivemos, das partilhas e da
informalidade com que tudo foi acontecendo – 2L1/2).

b) RISCOS ASSUMIDOS, no outro extremo, apresenta uma única referência e uma


percentagem de 0.9% (Ex: Posso dar uma explicação. Nestas circunstâncias, sem eu

- Riscos Assumidos: a tolerância da incerteza e da ambiguidade presentes no local de trabalho.

303
conhecer as pessoas, um relaxamento demasiado longo sobre um tema que pode ser… não fácil,
tem riscos que eu não posso correr – 2I11/1).

c) A soma da percentagem das três dimensões com maior ocorrência, DESAFIO E


ENVOLVIMENTO, CONFIANÇA E ABERTURA e ALEGRIA E HUMOR apresenta um valor
de 64.2% - o que deixa 35.7% para o conjunto das restantes seis dimensões.

Mas é preciso destrinçar um pouco mais o sentido dos discursos dos participantes e,
também de acordo com a terminologia utilizada por aqueles autores, procurar distinguir
se as referências apontam para níveis altos ou baixos141 de cada uma destas
dimensões.
Assim, olhando para a síntese colocada na tabela III.5, é possível verificar que:

141
Para fazer a distinção entre “níveis altos” e “níveis baixos” das dimensões do clima, continuo a ter como
referência o trabalho de Ekvall e Scott Isaksen atrás indicado (Isaksen et al, 1995). Destaco, a partir daí, as
palavras-chave da caracterização de cada um desses níveis em cada uma das dimensões.
Desafio e Envolvimento.
Níveis altos – motivação intrínseca; compromisso com o sucesso do grupo; dinamismo; energia.
Níveis baixos - falta de compromisso; alienação; indiferença; apatia; interacção amorfa.
Confiança e abertura.
Níveis altos - abertura; franqueza; apoio pessoal; respeito.
Níveis baixos – desconfiança; protecção; comunicação difícil.
Liberdade.
Níveis altos – autonomia para a definição do trabalho; actuação prudente; iniciativa; planeamento;
tomada de decisão.
Níveis baixos – linhas orientadoras; papéis definidos.
Tempo para as Ideias.
Níveis altos – discutir e testar ideias; prazos flexíveis; exploração de novas alternativas.
Níveis baixos – pressão do tempo; rotinas planeadas; instruções.
Conflito.
Níveis altos – maturidade; introspecção psicológica; controlo de impulso; aceitação da diversidade.
Níveis baixos – guerra interpessoal; conspirações; lutas de território; mexericos.
Debates
Níveis altos – perspectivas diversas; estímulo à apresentação de ideias.
Níveis baixos – padrões autoritários; ausência de questionamento.
Alegria e Humor.
Níveis altos – atmosfera leve e descontraída; bom humor.
Níveis baixos – gravidade; seriedade; atmosfera triste, tensa e sorumbática.
Apoio a Ideias.
Níveis altos – sugestões recebidas de forma atenta; oportunidades para experimentar novas ideias;
atmosfera construtiva e positiva.
Níveis baixos – “não” automático; contra-argumentos destrutivos; procura de falhas; criação de
obstáculos.
Riscos Assumidos.
Níveis altos – iniciativas audaciosas; “andar no arame”.
Níveis baixos – mentalidade prudente e hesitante; “lado seguro”; “dormir sobre o assunto.

304
Indicações de Indicações de Indicações
Dimensões do Clima níveis altos níveis baixos neutras
F % F % F % TOTAL
Confiança e Abertura 31 91.2 1 2.9 2 5.9 34 100
Alegria e Humor 18 100.0 0 0 0 0 18 100
Desafio e Envolvimento 17 85.0 3 15.0 0 0 20 100
Liberdade 11 100.0 0 0 0 0 11 100
Debates 8 80.0 0 0 2 20.0 10 100
Apoio às Ideias 6 100 0 0 0 0 06 100
Tempo para as Ideias 1 12.5 6 75.0 1 12.5 8 100
Conflitos 0 0 3 100 0 0 03 100
Riscos Assumidos 0 0 1 100 0 0 1 100
TOTAL 92 82.9 14 12.6 5 4.5 111 100
Tabela III.5 – Dimensões do clima: indicações de níveis altos, níveis baixos e
indicações neutras nas sessões do grupo de pesquisa.

a) No conjunto total das dimensões existem 92 (82.9%) indicações de níveis altos


(Ex. CONFIANÇA E ABERTURA: Acredito muito em toda a gente. São todos pessoas fiáveis.
Existe uma transparência grande entre as pessoas – 2A1/4), e 14 (12.6%) indicações de
níveis baixos (Ex. DESAFIO E ENVOLVIMENTO: Mas senti que me distraí muito – 10I1/2).
Existem também 4 (3.6%) referências neutras já que, mais do que caracterizar
ou avaliar o contexto, se apresentaram como opiniões sobre o rumo a seguir
numa dada situação (Ex. TEMPO PARA AS IDEIAS: Num trabalho deste tipo parece-me
que, andando rápido, podemos perder coisas preciosas – 3J1/1).

b) ALEGRIA E HUMOR, LIBERDADE e APOIO A IDEIAS só apresentam indicações de


níveis altos.

c) TEMPO PARA AS IDEIAS tem uma das percentagens mais elevadas de indicações
de níveis baixos – 75% (Ex: Mas senti que tinha sido pouco e eu precisava de mais tempo
do que aquele que, efectivamente, tinha acontecido – 9U4/8).

d) A única referência a RISCOS ASSUMIDOS, tal como se pode comprovar pelo


exemplo já acima colocado, indica níveis baixos nesta dimensão.

e) Muito embora tenham sido encontradas três referências a CONFLITOS, foram


feitas em relação a alguém que não fez parte do grupo de pesquisa (Ex. Depois o
JR diz “estou a ver que não temos homem” já não sei a propósito de quem. E eu disparo ali e
disse “não preciso fazer rappel para ser homem” (...). Por que é que, até agora, fiquei em silêncio
e hoje disparei com toda a assertividade, ou até agressividade, aquilo que estava a pensar? Ah,

305
ok, se calhar já estou a defender-me a priori” – 9J1/15). Assim, porque se trata de
referências ao grupo, a dimensão CONFLITOS passa a ser a única sobre a qual
não existe nenhum tipo de indicação – nem relativamente a um nível alto, nem,
na sua versão oposta, aquele que indica (como os extractos acima colocados
são um bom exemplo), “capacidade de introspecção psicológica” (Isaksen,
1995).

Contudo, e apesar do que já foi dito e pode ser motivo de reflexão, é preciso também
fazer notar que uma maior ou menor ocorrência de referências a cada uma das
dimensões pode não ser, em si mesma, muito significativa por não fazer uma
caracterização geral do grupo mas, eventualmente, só indicar a consciência verbalizada
de cada uma das dimensões. É preciso completar com outros dados.

2. As dimensões do clima nos resultados quantitativos da aplicação do SOQ

Considerando que: (1) o SOQ foi aplicado, depois do encerramento das sessões, a
todos os membros do grupo de pesquisa que chegaram ao final do projecto (nove dos
dez iniciais); (2) as respostas ao questionário foram dadas on-line e os resultados foram
calculados e preparados pelo The Creative Solving Problem Group, Inc.142, detentor do
copyright deste questionário143; (3) num encontro posterior, a cada pessoa foram dados
a conhecer os seus resultados individuais bem como os resultados globais do grupo; (4)
este grupo se apresenta com uma especificidade e limitação temporal de propósitos
que, de certa maneira, o diferenciam dos grupos sobre os quais estão construídos os
dados de referência144, parece ser interessante distinguir (gráfico III.1 e quadro III.1):

142
A razão por que os quadros com os resultados do SOQ se encontram em Inglês.
143
Ver também Anexo 6.
144
De acordo com os estudos que, a partir de Ekvall, têm vindo a ser conduzidos sobre o clima para a
criatividade e para a mudança, as organizações distinguem-se em função da performance dos seus produtos
e das percepções que as pessoas têm sobre o clima organizacional (Isaksen et al, 1995):
- as organizações inovadoras são capazes de desenvolver rapidamente novos produtos e serviços e
de os colocar no mercado;
- as organizações estagnadas são incapazes de lidar eficazmente com a novidade e tendem a
desaparecer rapidamente.

306
Climate Chart
Challenge &
Involvement
300
Risk-Taking 250 Freedom
200
150
100
Debates 50 Trust & Openness
0

Idea Support Idea Time

Conflicts Playfulness/Humor
Inno Companies Stag. Companies Thesis

© The Creative Problem Solving Group, Inc. 2005.

Gráfico III.1 – Aplicação do SOQ ao grupo de pesquisa – resultados médios.

a) As médias obtidas pelo grupo de pesquisa colaborativa têm, em todas as


dimensões positivas, um valor superior às médias das organizações inovadoras
e, na única dimensão negativa (CONFLITOS), um valor inferior.

b) Porque só a partir dos 25 pontos se considera haver uma diferença significativa


nos resultados (Isaksen, 1995), as dimensões APOIO A IDEIAS, ALEGRIA E HUMOR,
DESAFIO E ENVOLVIMENTO e CONFIANÇA E ABERTURA são as que constituem os
pontos fortes do grupo. A única diferença relativamente aos resultados das
organizações inovadoras é que nestas o conjunto mais forte inclui a dimensão
LIBERDADE em vez da dimensão APOIO A IDEIAS.

c) A diferença entre as médias do grupo de pesquisa relativamente às médias das


organizações inovadoras (tabela III.6) apresenta, em quase todas as dimensões,
valores superiores a 25 pontos. A excepção é RISCOS ASSUMIDOS, com uma
diferença de 23 pontos. Contudo, só TEMPO PARA AS IDEIAS, CONFIANÇA E
ABERTURA, DEBATES e APOIO A IDEIAS apresentam uma diferença superior a 2 x
25 pontos. As restantes, ALEGRIA E HUMOR, DESAFIO E ENVOLVIMENTO e
LIBERDADE, estão abaixo dessa diferença.

307
Averages
Innovative Stagnated
Company Thesis Company
Climate Variables Averages Averages Averages

Challenge & Involvement 238 275 163


Freedom 210 241 153
Trust & Openness 178 264 128
Idea Time 148 252 97
Playfulness/Humor 230 276 140
Conflicts 78 11 140
Idea Support 183 278 108
Debates 158 235 105
Risk-Taking 195 218 53
Number of Comps. or Inds. 10 Companies 9 5 Companies

© The Creative Problem Solving Group, Inc. 2005.

Quadro III.1 – Aplicação do SOQ – tabela comparativa entre os resultados do grupo de pesquisa e
resultados de organizações inovadoras e de organizações estagnadas.

Médias das
Médias do Grupo de
Dimensões do Clima Organizações Diferença
Pesquisa
Inovadoras
Tempo para as Ideias 252 148 + 104
Confiança e Abertura 264 178 + 86
Debates 235 158 + 77
Apoio a Ideias 278 183 + 65
Alegria e Humor 276 230 + 46
Desafio e Envolvimento 275 238 + 37
Liberdade 241 210 + 31
Riscos Assumidos 218 195 + 23
Conflitos 11 78 - 67
Tabela III.6 – Aplicação do SOQ – diferenças entre os valores médios do grupo de pesquisa e das organizações
inovadoras.

Mas porque cada uma das dimensões apresenta uma grande amplitude (quadro III.2) e,
por isso, valores extremos muito distanciados dos valores médios, fica, por um lado, a
indicação da não existência de consenso quanto à forma como o grupo é avaliado, mas
também, por outro lado, a possibilidade de uma maior variedade e riqueza de
perspectivas. É preciso, então, ir um pouco mais longe e, pela conjugação dos
diferentes dados disponíveis (quadro III.2 e tabela III.7), procurar fazer outras leituras:

a) Nos seus valores mais altos, os resultados do grupo de pesquisa atingem, em


quase todas as dimensões positivas (com excepção de DEBATES), o valor
máximo (300), enquanto que na única dimensão negativa (CONFLITOS), o valor
mais baixo é também o valor mínimo (0). Se entre o grupo de pesquisa e os

308
grupos de referência não houvesse a tal diferença de propósitos, com estes
valores estaria constituído o grupo “quase-mais-que-perfeito”.

b) As dimensões CONFIANÇA E ABERTURA, ALEGRIA E HUMOR, APOIO A IDEIAS e


DEBATES continuam a apresentar, mesmo nos seus piores casos, resultados
mais altos que as organizações inovadoras.

Std. Deviation and Range

Thesis
Climate Variables Averages Std. Dev. Range

Challenge & Involvement 275 32 200 –300


Freedom 241 75 100 –300
Trust & Openness 264 42 180 –300
Idea Time 252 44 167 –300
Playfulness/Humor 276 28 233 –300
Conflicts 11 14 0 –33
Idea Support 278 34 220 –300
Debates 235 38 183 –283
Risk-Taking 218 64 120 –300
Number of Individuals 9

© The Creative Problem Solving Group, Inc. 2005.

Quadro III.2 - Resultados da aplicação do SOQ ao grupo de pesquisa.

Médias das Amplitude do Grupo de Pesquisa Médias das


Dimensões do Clima Organizações Diferença entre Organizações
Inovadoras valores max. e mín. Estagnadas
Desafio e Envolvimento 238 200-300 100 163
Liberdade 210 100-300 200 153
Confiança e Abertura 178 180-300 120 128
Tempo para as Ideias 148 167-300 133 97
Alegria e Humor 230 233-300 67 140
Conflitos 78 0-33 33 140
Apoio às Ideias 183 220-300 80 108
Debates 158 183-283 100 105
Riscos Assumidos 195 120-300 180 53
Tabela III.7 – Aplicação do SOQ - comparação entre resultados das organizações inovadoras e das organizações
estagnadas e os valores de amplitude do grupo de pesquisa.

c) Mesmo no seu pior caso (33), a única dimensão negativa (CONFLITOS),


apresenta uma diferença bastante grande relativamente à média das
organizações inovadoras (-45).

309
d) Nos seus piores casos, as dimensões DESAFIO E ENVOLVIMENTO, LIBERDADE e
RISCOS ASSUMIDOS apresentam valores abaixo das médias das organizações
inovadoras.
- O valor mais baixo de LIBERDADE está mais próximo das organizações
estagnadas (+53) do que das organizações inovadoras (-110).
- RISCOS ASSUMIDOS está, no seu pior caso (120), quase equidistante das
organizações estagnadas (+67) e das organizações inovadoras (-75). É,
contudo, a penúltima dimensão dentro do conjunto de todas as dimensões
(tal como as organizações estagnadas), enquanto que, nas organizações
inovadoras, RISCOS ASSUMIDOS se situa no quarto lugar.

e) Com uma amplitude >25 em todas as dimensões, LIBERDADE e RISCOS


ASSUMIDOS surgem com a maior diferença entre os valores extremos (200 e 180,
respectivamente), logo seguidas de TEMPO PARA AS IDEIAS, CONFIANÇA E
ABERTURA, DESAFIO E ENVOLVIMENTO e DEBATES (133, 120, 100 e 100,
respectivamente). Só relativamente a CONFLITOS, ALEGRIA E HUMOR e DEBATES
parece existir alguma semelhança de percepções dentro do grupo.

• Os estilos de criação presentes no grupo

INFLUÊNCIAS NO COMPORTAMENTO
IMPLICAÇÕES DO ESTILO
CRIATIVO
Tarefa Capacidades
PROCESSO Contexto Estilo
Como pensa e se
comporta
Motivações Skills Outros

Estilo PRODUTOS
Preferido Resultados que
prefere

Pressão Comportamento Criativo


Onde trabalha melhor

© Selby, Treffinger, Isaksen, 2003.


© Selby, Treffinger, Isaksen, 2003.

Ilustração III.9 – Implicações do estilo de criação. Ilustração III.10 – Influências no comportamento criativo.
© The Creative Problem Solving Group, Inc – Used with permission.

Continuando a ter subjacente que um processo de investigação é um processo criador,


vou aqui utilizar como sub-categorias de análise as dimensões identificadas por Edwin

310
Selby, Don Treffinger e Scott Isaksen para a compreensão do estilo com que as
pessoas resolvem problemas ou lidam com a mudança – isto é, para a compreensão de
alguns dos traços que caracterizam a(s) PESSOA(s) dentro do sistema dos 4 P’s (Selby
et al, 2003). Procurarei, assim, perceber (a partir da análise das sessões e dos
resultados da aplicação do VIEW145), que estilos de criação estão presentes e qual o
desenho produzido pela conjugação desses diferentes estilos para, a partir daí, poder
fazer uma aproximação à compreensão do impacto desse desenho no processo de
investigação (PROCESSO), no clima gerado no grupo de investigação colaborativa
(PRESSÃO) e nos resultados da pesquisa (PRODUTO).

“Vou ler tudo porque falo muito pouco” (2K1/3), “em termos profissionais, a minha atenção é na tarefa”
(4M3/2) e “o K. é muito organizado” (3I7/1) são as três únicas referências a estilos de criação
que puderam ser identificadas nos relatos das sessões do grupo de pesquisa
colaborativa. Bem longe das 111 referências ao clima! Dá, de facto, a sensação de que,
enquanto sobre este último, existe uma grande consciência da sua importância, sobre
aqueles a sua influência é bastante mais desconhecida – o que, naturalmente, não lhes
retira importância. Resta, por isso, encontrar nos resultados do VIEW os diferentes
olhares presentes no grupo e o modo como, congregando diversos tipos de
capacidades criativas, energias e interacções, adicionaram valor ao processo de
pesquisa.

Assim, e tendo em consideração que (Selby et al, 2003):


- este instrumento não mede o nível de capacidade criativa, mas sim preferências
no estilo de resolução de problemas;
- os resultados da maior parte das pessoas, em cada um dos estilos, se situam a
meio de um continuum e que, à medida que se avança em direcção aos
extremos, se encontram cada vez menos pessoas;
- o estilo não indica o que a pessoa, ou o grupo, podem, ou não, ser, mas sim as
suas preferências;
- os resultados individuais são sempre relativos e ganham maior significado
quando vistos no contexto de um grupo;
- não há resultados melhores ou piores, certos ou errados; a diversidade é
enriquecedora, mas precisa de ser bem gerida,

145
Ver também Anexo 7.

311
passo à análise dos resultados do grupo de pesquisa em função das três dimensões
independentes e dos dois estilos que, em cada uma delas, estão incluídos: 1.
Orientação para a Mudança – Explorador e Incrementador (E/I), 2. Formas de
Processar a Informação – Externamente e Internamente (E/I); 3. Formas de Decidir –
Centrada nas Pessoas e Centrada na Tarefa (P/T).

1. Orientação para a Mudança

“Gosto de fazer as coisas de uma forma radical” e “gosto de fazer com que as coisas
funcionem melhor” (Selby et al, 2003:8-9) podem ser frases caracterizadoras dos dois
estilos de resposta à autoridade, à novidade e à estrutura aqui presentes. Numa
dimensão que tem uma escala que vai de 18 (forte preferência pelo estilo EXPLORADOR)
a 126 (forte preferência pelo estilo INCREMENTADOR) e uma média teórica de 72, o grupo
de pesquisa apresenta os seguintes resultados (gráfico III.2):

RESULTADOS DA ORIENTAÇAO PARA A


MUDANÇA

2
Count

0
18 23 28 33 38 43 48 53 58 63 68 73 78 83 88 93 98 103 108 113 118 123
Range

Explorador Incrementador

N=9 X = 72,22 R = 51-86


© Selby, Treffinger, Isaksen, 2002.
Preparado e traduzido por Helena Gil da Costa, 2005

Gráfico III.2 – Aplicação do VIEW ao grupo de pesquisa– resultados da orientação para a mudança.

a) Uma amplitude de 51-86 que abrange as duas direcções do continuum, mas


sem se aproximar demasiado de nenhum dos extremos.

312
b) Uma média de 72.22, muito perto da média teórica, mas com uma ligeira
acentuação na direcção do estilo INCREMENTADOR, onde se situam cinco dos
nove membros da equipa – isto é, com uma pequena preferência em termos
médios por fazer melhor e trabalhar de uma forma precisa, metódica e
consistente.

c) Na direcção oposta, situam-se quatro membros do grupo, sendo que um destes


EXPLORADORES apresenta um resultado muito mais acentuado e distante da
média teórica (-21) do que o Incrementador mais acentuado (+14) do outro lado
do continuum. Aqui se colocam os que gostam de fazer diferente e se sentem
limitados dentro das estruturas, os que desafiam a autoridade e dão ênfase à
originalidade.

d) Em resumo: em termos médios e desde que em boa gestão (com evidentes


repercussões no clima, no processo e no produto), este grupo apresenta-se
como “INCREMENTADOR MODERADO” – isto é, como um grupo flexível, com
facilidade de compreensão e capacidade de, percorrendo os dois estilos,
encontrar valor nas diferentes abordagens.

2. Formas de Processar a Informação

“Discutir ideias com outras pessoas ajuda-me a pensar” e “penso melhor sozinho”
(Selby et al, 2003:11-12) podem ser as frases caracterizadoras dos dois estilos de
processar a informação durante a resolução de problemas – através da gestão da
energia pessoal (trabalhando as ideias internamente), ou através da energia dos outros
(trabalhando as ideias externamente). Numa dimensão que tem uma escala que vai de
8 (forte preferência pelo estilo EXTERNO) a 56 (forte preferência pelo estilo INTERNO) e
uma média teórica de 32, o grupo de pesquisa apresenta os seguintes resultados
(gráfico III.3):

a) Uma amplitude de 19-45 que abrange as duas direcções do continuum.

313
b) Uma média de 32.67, muito perto da média teórica, mas com uma ligeira
acentuação na direcção do estilo INTERNO, onde se situam cinco dos nove
membros da equipa – isto é, com uma pequena preferência, em termos médios,
por se ser cauteloso na discussão de ideias, por esperar por partilhar uma opção
até que ela esteja bem elaborada.

RESULTADOS DA FORMA DE PROCESSAR A


INFORMAÇÃO

2
Count

0
8 10 12 14 16 18 20 22 24 26 28 30 32 34 36 38 40 42 44 46 48 50 52 54 56
Range

Externamente Internamente

N=9 X = 32,67 R = 19-45


© Selby, Treffinger, Isaksen, 2002.
Preparado e traduzido por Helena Gil da Costa, 2005

Gráfico III.3 – Aplicação do VIEW ao grupo de pesquisa – resultados da forma de processar a informação.

c) Na direcção oposta, situam-se quatro membros do grupo. Aqui se colocam os


que preferem processar a informação EXTERNAMENTE – são os que expõem as
suas ideias antes de as terem pensado cuidadosamente, os que confiam que
elas podem ser bem trabalhadas na e pela interacção com o grupo de pessoas
que os rodeia.

d) Os pontos extremos do continuum são equidistantes em relação ao centro (13)


e, se bem que mais distantes entre si do que na dimensão anterior, não chegam
ainda a colocar-se em posições demasiado marcadas.

e) Seis dos nove membros da equipa de pesquisa apresentam resultados que,


para além de muito próximos uns dos outros, estão também muito perto da
média do grupo e da média teórica. Essa consistência de posições pode ter
dado o tom ao trabalho da equipa e, pelas competências que lhe estão

314
associadas, pode também ter desempenhado um papel de “ponte” entre as
preferências mais extremas.

f) Em resumo: em termos médios e desde que em “boa gestão” (e com evidentes


repercussões no clima, no processo e no produto criados), este grupo
apresenta-se como “INTERNO MODERADO” – isto é, como um grupo flexível, com
facilidade de compreensão e capacidade de, percorrendo os dois estilos,
encontrar valor nas diferentes abordagens em presença.

3. Formas de Decidir

“Gosto de ter a certeza de que estamos todos no mesmo barco” e “gosto de garantir um
resultado lógico” (Selby et al, 2003:14-15) podem ser as frases caracterizadoras dos
dois estilos que traduzem o primeiro impulso e a primeira referência quando é preciso
tomar uma decisão. Numa dimensão que tem uma escala que vai de 8 (forte preferência
pelo estilo CENTRADO NAS PESSOAS) a 56 (forte preferência pelo estilo CENTRADO NA
TAREFA) e uma média teórica de 32, o grupo de pesquisa apresenta os seguintes
resultados (gráfico III.4):

RESULTADOS DAS FORMAS DE DECIDIR

2
Count

0
8 10 12 14 16 18 20 22 24 26 28 30 32 34 36 38 40 42 44 46 48 50 52 54 56
Range

Pessoas Tarefa

N=9 X = 28,67 R = 13-45


© Selby, Treffinger, Isaksen, 2002.
Preparado e traduzido por Helena Gil da Costa, 2005

Gráfico III.4 – Aplicação do VIEW ao grupo de pesquisa – resultados das formas de decidir.

315
a) Uma amplitude bastante grande de 13-45 que abrange as duas direcções do
continuum.

b) Uma dispersão bastante grande de resultados individuais, com uma quase


concentração em dois blocos distintos que, se em boa gestão, podem ser fonte
de riqueza e se, mal geridos, podem ser fonte de conflito. Como, neste caso, a
“tarefa” também são as “pessoas”, diminui o potencial de conflito.

c) Uma média de 28.67, não tão perto da média teórica como nas dimensões
anteriores, mas com um peso maior na direcção do estilo CENTRADO NAS
PESSOAS – isto é, com uma preferência algo marcada por pensar primeiro no
impacto das decisões nos sentimentos das pessoas e por procurar criar
harmonia e relacionamentos positivos. Aqui se situam quatro dos nove membros
da equipa, sendo que, especialmente um deles, apresenta uma forte preferência
por este estilo – -19 que a média teórica, enquanto que, no outro extremo, a
distância é de +13.

d) Quatro membros do grupo situam-se na direcção oposta. Aqui se encontram os


que têm um estilo CENTRADO NA TAREFA, os que preferem as escolhas e as
decisões lógicas que podem ser objectivamente justificadas; aqui se encontram
os que, quando se tomam decisões, têm mais interesse nos resultados e nos
padrões de qualidade do que no impacto que causam nas pessoas.

e) Com um resultado igual ao da média teórica, encontra-se um membro do grupo


– o que, pelas competências que também tinha associadas, lhe deu, em
diversas circunstâncias, a possibilidade de desempenhar um papel social de
“ponte” entre as preferências mais extremas.

f) Em resumo: ainda que este grupo apresente uma grande variedade de


perspectivas (e com evidentes repercussões no clima, no processo e produto
criados), em termos médios caracteriza-se como “CENTRADO NAS PESSOAS” –
isto é, colocando as prioridades nas pessoas e num tratamento personalizado e
atencioso, com preferência por apresentar os pontos positivos das opções; com

316
uma maior preocupação com as relações do que com os resultados; com
tendência para evitar conflitos ou situações tensas.

1.3 Conjugando os dados e descobrindo implicações

Que ler, então, em tudo isto? Que implicações, enredos e lições descobrir nesta
primeira fase de análise dos dados, aquela que, caracterizando o universo em que
decorreu o trabalho de campo, antecede, mas também acompanha, a procura de
respostas às perguntas da investigação?

Nesta tentativa de composição do retrato do grupo (e ainda que sem querer fazê-lo de
um modo exaustivo que julgo aqui não se justificar), continuarei a utilizar as
contribuições de Scott Isaksen, Brian Dorval e Don Treffinger (1994), mas agora pelo
emprego (um pouco adaptado) de um instrumento de análise e desenvolvimento de
opções146, que, pela utilização uma abordagem estruturada, me permite:

a) Identificar as Vantagens (pontos fortes), as Limitações (pontos fracos ou desafios


futuros) e as Qualidades Únicas (elementos novos ou úteis) deste grupo de
pesquisa para, logo a seguir (e, de alguma maneira, abrindo já espaço para a
síntese da pesquisa), sublinhar, a partir de dados do SOQ, algumas formas de
ultrapassar as principais limitações (Ultrapassar as Limitações).

b) Retomar alguns dos dados dos relatos das sessões, dos resultados quantitativos do
SOQ e dos valores do VIEW (tabela III.8).

c) Conjugando isso com a descoberta dos significados das palavras que estão para lá
dos números (CONTEÚDO DAS TRANSCRIÇÕES das sessões e RESPOSTAS NARRATIVAS
do SOQ – quadros III.3.AeB; III.4AeB; III.5AeB) e com a reflexão de quem, como
OBSERVADOR PARTICIPANTE, registou o que nem nos números nem nas palavras está
contido.

146
ALUo, na versão original – Advantages, Limitations, Unique Qualities, Overcome Limitations (Isaksen
et al, 1995).

317
TRANSCRIÇÕES DAS SESSÕES RESULTADOS DO SOQ
1. Confiança e Abertura 31 1. Apoio às Ideias 278
2. Alegria e Humor 18 2. Alegria e Humor 276
3. Desafio e Envolvimento 17 3. Desafio e Envolvimento 275
4. Liberdade 11 4. Confiança e Abertura 264
5. Debates 08 5. Tempo para as Ideias 252
6. Apoio às Ideias 06 6. Liberdade 241
7. Tempo para as Ideias 01 7. Debates 235
8. Conflitos 01 8. Riscos Assumidos 218
9. Riscos Assumidos 00 9. Conflitos 11

ESTILOS (MÉDIOS) DE CRIAÇÃO


Incrementador Moderado (I) – 72.22 Interno Moderado (I) – 32.67 Centrado nas Pessoas (P) – 28.67

Tabela III.8 – Síntese dos resultados do grupo de pesquisa.

• Vantagens – pontos fortes

Respostas Narrativas à Pergunta #1


Partilha, confiança e abertura
1. Humor, confiança, ausência de julgamento.
2. O anonimato e ouvir os outros.
3. A confiança e o respeito que existem entre todos os elementos do
grupo. A partilha de experiências profissionais diferentes (…).
4. (…) O ambiente é feito de pessoas muito diferentes e com uma dose
de sinceridade muito grande.
5. A disponibilidade e abertura do grupo.
6. A abertura e o tempo disponível para ouvir e pensar.

O à vontade
7. Trabalhar sentados no chão em forma circular, num lugar semi-
fechado. O gesto de sentar no chão para mim é sinal de estar à vontade e
confiante com os meus: amigos ou familiares. E com os meus eu sou
criativo sem medo de errar porque ainda que eu erre e (…) Não foi
recebida a resposta completa
8. Sentir que estou “em casa” (…).
© The Creative Problem Solving Group, Inc. 2005.

Quadro III.3A – Parte B do SOQ – resultados da pergunta 1 (1ª parte).

1. Desafio e envolvimento

Quando nove pessoas, em regime de total voluntariado, aceitam fazer parte de um


projecto em que os únicos interesses são o projecto em si mesmo e o desenvolvimento
pessoal de cada um; quando essas nove pessoas se mantêm a trabalhar
semanalmente, ao longo de doze semanas, em sessões que, quase sempre, se
prolongaram bastante para lá da hora estipulada; quando nove pessoas, assumindo

318
pessoalmente todas as despesas, se dispõem a passar um fim de semana fora de suas
casas para, num enquadramento diferente, se deixarem mexer pelo tema do projecto...
tudo parece confirmar, e mesmo sem os resultados do SOQ, o alto nível de motivação,
de profissionalismo e de compromisso pessoal (de DESAFIO E ENVOLVIMENTO), com a
participação e o sucesso do que, em certa medida, passou a ser um propósito comum.

- Sessão 2 - L1/2: Estou motivado a estar neste grupo da forma que melhor contribua para que
todo o processo se desenrole de acordo com aquilo a que nos propusemos.

- Sessão 2 – K1/7: Outra coisa que vinha comigo era a noção de que vinha para um desafio,
onde certamente podia saber como começar, mas que não sabia como ia terminar. Um grande
desafio mesmo. Lançar-se ao mar e saber como se lançar nele e não saber talvez como sair do
mar.

- Sessão 10 – L3/2: Não me senti sozinho, senti que éramos todos a fazer a situação.

- Respostas narrativas do SOQ (quadros III.3A e III.3B: Que aspectos do seu


ambiente de trabalho mais estimulam a sua criatividade?) – 8. sentir que (…) seja
qual for o desafio proposto, é acolhido e posto em acção.

Respostas Narrativas à Pergunta #1 cont.

Compromisso e envolvimento
9. (…) compromisso e envolvimento das pessoas do grupo.

Apoio a ideias
8. Sentir que (…) seja qual for o desafio proposto, é acolhido e posto em
acção.
3. (…) a solidariedade na implementação das decisões.
4. O facto de trabalhar com um grupo extremamente aberto a tudo o que
é novo e diferente (…)
9. Receptividade (…)

© The Creative Problem Solving Group, Inc. 2005.

Quadro III.3B – Parte B do SOQ – resultados da pergunta 1 (2ª parte).

319
2. Alegria e humor

Parece confirmado o ambiente de informalidade, espontaneidade e à vontade (de


ALEGRIA E HUMOR) com que decorreu o encontro do grupo.

- Sessão 2 - K1/8: Posto no local vivi uma outra sensação - aumentou o grau de alegria que
trazia ao entrar em contacto com o grupo. Achei que estava num grupo muito simples, com o qual
me podia identificar facilmente. E também um grupo tranquilo. A tranquilidade expressou-se pelos
nossos gestos. Estávamos sentados no chão e depois cada um à sua maneira – uns deitados, uns
não sei quantos mais.

- Respostas narrativas do SOQ (quadros III.3A e III.3B: Que aspectos do seu


ambiente de trabalho mais estimulam a sua criatividade?) – 8. sentir que estou em
casa.

3. Confiança e abertura

Embora, nos resultados do SOQ, CONFIANÇA E ABERTURA perca o lugar destacado em


que estava colocado nas transcrições das sessões, continua a ser forte e a não
apresentar uma diferença muito significativa (≤25 pontos) relativamente a “Apoio a
Ideias”, “Alegria e Humor” e “Desafio e Envolvimento” que apresentam valores mais
altos.

- Sessão 2 – E1/4: Fiquei, posso dizer, deslumbrada com o clima de abertura e disponibilidade
que senti em todas as pessoas.

- Sessão 7 – I2/8: Não sei se querem fazer perguntas, se calhar ajudava um bocadinho.

- Sessão 9 – L1/23 - Fundamentalmente foi isso, o desejo de, ontem e hoje, procurar estar numa
atitude de confiança e de proximidade relativamente às pessoas do grupo.

- Respostas narrativas do SOQ (quadros III.3A e III.3B: Que aspectos do seu


ambiente de trabalho mais estimulam a sua criatividade?) – 4. o ambiente é feito de

320
pessoas muito diferentes e com uma dose de sinceridade muito grande; 3. a confiança e o
respeito que existem entre todos os elementos do grupo.

Mas, além disso, fica também a impressão de que, por causa de “um tema que pode ser…
não fácil” (2I11/1), algumas das referências à confiança e abertura existentes também se
deveram à vontade-necessidade-preocupação de cuidar de alguns, de confirmar que
todos se podiam sentir seguros e protegidos.

- Sessão 2 – A1/3: acho que neste clima senti que estaria sempre implícito a confidencialidade.
Está explícito hoje, mas acho que estava implícito em todos, porque tenho a impressão que existiu
este eco, digamos assim, de clareza entre todas as pessoas.

4. Apoio a ideias

Muito interessante a diferença tão significativa entre os resultados das transcrições das
sessões e os do SOQ relativamente a APOIO A IDEIAS já que, de seis únicas ocorrências
no primeiro, se passa para o topo da “classificação” no segundo. Tudo parece indicar o
quanto, através da comunicação não verbal, a atmosfera foi construtiva e positiva e a
capacidade de suspensão de juízo crítico e de escuta activa estiveram presentes.

- Respostas narrativas do SOQ (quadros III.3A e III.3B: Que aspectos do seu


ambiente de trabalho mais estimulam a sua criatividade?) – 1. ausência de
julgamento.

- Sessão 2 – E7/1: Acho que isso também é positivo (...).

5. Incrementador-Interno-Pessoas

Uma configuração “Incrementador-Interno-Pessoas” (tal como no VIEW apontam os


resultados médios do grupo e, como se verá, se confirma por algumas das respostas
narrativas do SOQ), é potencialmente portadora de diversos benefícios num projecto
de pesquisa desta natureza. Ser INCREMENTADOR é ter o gosto e a capacidade de

321
persistência, estabilidade, ordem e continuidade; ser INTERNO é ter o gosto e a
capacidade de reflectir e de trabalhar uma tarefa em profundidade, bem como de criar
um ambiente de tranquilidade e concentração; ser CENTRADO NAS PESSOAS é ser-se
sensível em relação aos outros, é ter-se capacidade de se ser mais afirmativo quando
são apresentadas novas formas de pensar (Selby et al, 2003).

- Respostas narrativas do SOQ (quadros III.3A e III.3B: Que aspectos do seu


ambiente de trabalho mais estimulam a sua criatividade?): – 8. sentir que (…) seja
qual for o desafio proposto, é acolhido e posto em acção; 3. a solidariedade na implementação
das decisões.

- Respostas narrativas do SOQ (quadros III.4A e III.4B: Que aspectos do seu


ambiente de trabalho mais inibem a sua criatividade?) – 8. no trabalho proposto e na
empatia conseguida entre todos os elementos “todos por um e um por todos” não existiu nada que
retraísse a minha criatividade.

• Limitações – pontos fracos e desafios

Que aspectos do seu ambiente de trabalho mais inibem a sua criatividade?

Respostas Narrativas à Pergunta #2


Falta de tempo
1. Ter que dividir o tempo e o pensamento com outros projectos
paralelos.
9. Limitação de tempo.

Evitar o risco do confronto


2. O relacionamento inter-pessoal, cuidado com os outros, (…).
5. Pensar nas expectativas que os outros elementos do grupo têm a meu
respeito.
6. Não é muito assumido o risco pessoal; a divergência é evitada para
não se correr o risco do confronto.

Actividades específicas
7. O ambiente de desporto radical: não sou muito adepto do desporto
radical e nele eu não sou criativo. Fico muito retraído se assim posso
dizer. Às vezes gosto de assisti-lo mas não praticá-lo.

© The Creative Problem Solving Group, Inc. 2005.

Quadro III.4A – Parte B do SOQ – resultados da pergunta 2 (1ª parte).

322
1. Riscos assumidos

Ainda que, como se viu atrás (tabela III.6 e III.7), os valores de RISCOS ASSUMIDOS
obtidos no SOQ (218) sejam bastante positivos se unicamente comparados com os
valores das organizações inovadoras (195), numa análise mais cuidadosa é possível
perceber que: (1) esta dimensão tem o penúltimo valor mais baixo no conjunto das nove
dimensões (contra o quinto lugar das organizações inovadoras), só acima de “conflitos”;
(2) as respostas narrativas do SOQ indicam claramente a existência de uma atitude
algo prudente e de resguardo que não terá permitido iniciativas muito audaciosas.

- Respostas narrativas do SOQ (quadros III.4A e III.4B: Que aspectos do seu


ambiente de trabalho mais inibem a sua criatividade?) – 6. não é muito assumido o
risco pessoal; 5. pensar nas expectativas que os outros elementos do grupo têm a meu respeito.

É este um dos riscos que corre quem, ao ser INCREMENTADOR, tende a cingir-se
demasiado às regras estabelecidas, a tornar a estrutura e os propósitos da pesquisa
mais um fim em si mesmos do que um meio para procurar opções radicalmente
diferentes.

- Respostas narrativas do SOQ (quadros III.4A e III.4B: Que aspectos do seu


ambiente de trabalho mais inibem a sua criatividade?) – 2. não me afastar do
objectivo; 11. excessiva preocupação com o resultado final da pesquisa.

De resto, pensar que, ao longo de tantas horas de trabalho conjunto, imperou um clima
de “Alegria e Humor” sem que, em contrapartida e pelo equilíbrio dinâmico que só é
gerado pelos opostos, tivesse havido espaço para as lágrimas (num tema tão sensível,
quanto pessoal, emotivo e... “não fácil”147), parece confirmar a existência de poucos
riscos assumidos – o risco que corre quem se permite revelar os sentimentos mais
profundos (de medo, tristeza, raiva, dor, ou quer que seja) (Lowen, 1984, 1997); o risco
que corre quem se permite expor para lá do que o discurso das palavras guarda e do
que a “compostura” da Pessoa Pública e o refúgio no mental protegem.

147
Sessão 2 – “(...) um relaxamento demasiado longo sobre um tema que pode ser… não fácil (...)”
(2I11/1).

323
2. Conflitos

Tanto nos resultados do SOQ, como nos relatos das sessões, a dimensão CONFLITOS
parece apresentar valores demasiado baixos – o que, aliás, se confirma nas respostas
narrativas e pode ser um dos efeitos dos poucos riscos assumidos.

- Respostas narrativas do SOQ (quadros III.4A e III.4B: Que aspectos do seu


ambiente de trabalho mais inibem a sua criatividade?) – 2. o relacionamento inter-
pessoal, o cuidado com os outros; 6. a divergência é evitada para não se correr o risco do
confronto.

É este o risco que corre quem, por estar tão CENTRADO NAS PESSOAS e na harmonia
(Selby et al, 2003), evita as situações mais tensas e, por isso, pode também
negligenciar outro tipo de resultados que os assuntos difíceis são capazes de
proporcionar. É como se, por causa do medo do conflito, também se eliminassem os
DEBATES (que, aliás, apresenta um dos valores mais baixos no SOQ); é como se, em
vez de se formar um coro a muitas e diferentes vozes, o grupo se tivesse contentado
em ouvir, mesmo que atentamente, muitos solos.

Não será por esta razão que a sub-categoria “caracterização das pessoas do grupo –
feita pelos outros” ficou uma sub-categoria quase vazia?

Não estará aqui um sinal de que, apesar dos níveis de “confiança e abertura”, e porque
o conflito intragrupal não ocorreu, não se atingiu o desenvolvimento de uma maior
coesão e maturidade do grupo (Sacadura, 1992, wikipedia, 2007148)? Por falta de tempo
(para as ideias)? Por falta de desafio e envolvimento já que, em si mesmos, os

148
http://en.wikipedia.org/wiki/M_Scott_Peck (15.01.07) - Com base na sua experiência, Scott Peck refere
que a construção de uma comunidade passa, tipicamente, por 4 fases:
A pseudocomunidade – os membros fingem sentir-se à vontade uns com os outros e disfarçam as suas
diferenças agindo como se elas não existissem.
Caos – depois da pseudocomunidade ter falhado, as pessoas questionam-se umas às outras e revelam as
suas diferenças e os seus desacordos.
Vazio – as pessoas aprendem a esvaziar-se dos seus ego quando eles impedem a formação da comunidade;
é um passo difícil porque envolve a morte de uma parte do indivíduo.
Verdadeira comunidade – as pessoas estão em completa empatia umas com as outras; é um nível de grande
compreensão tácita; as discussões, mesmo quando acesas, nunca se tornam desagradáveis e os
motivos não são questionados.

324
resultados do projecto de pesquisa só produziam efeitos na vida das pessoas na
medida em que cada um assim o permitisse ou desejasse?

- Sessão 1 – U18/1: “Um dos objectivos que deixamos presente sempre é o do desenvolvimento
pessoal de cada um. O desenvolvimento vai até ao ponto que cada um quiser”.

Que aspectos do seu ambiente de trabalho mais inibem a sua criatividade?

Respostas Narrativas à Pergunta #2 cont.

Redução de objectivos
2. (…) não me afastar do objectivo.
11. Excessiva preocupação com o resultado final da pesquisa.

Nada
3. Nenhum.
4. Nenhum.
8. No trabalho proposto e na empatia conseguida entre todos os
elementos “todos por um e um por todos” não existiu nada que retraísse
a minha criatividade.
10. -

© The Creative Problem Solving Group, Inc. 2005.

Quadro III.4B – Parte B do SOQ – resultados da pergunta 2 (2ª parte).

3. Se calhar...

Uma curiosidade: ao longo dos relatos das sessões, a expressão “se calhar” surge mais
de 200 vezes.

- Sessão 2 – U2/1 – “Se calhar vamos tratar dessa questão da supervisão, talvez cooperação,
vamos ver...”
- Sessão 3 – J4/5 – “Este, se calhar, é o primeiro dos medos que existe com quem trabalha com
muita gente, que é o medo das primeiras impressões”.

Moda? Vício de linguagem? Insegurança? Dificuldade em fazer afirmações mais


audaciosas? Medo de afirmação perante o grupo? Se calhar...

325
4. Reflexão sobre as limitações

Primeiro, porque houve riscos que não foram assumidos; segundo, porque o conflito foi
evitado; terceiro, porque talvez se tenha optado mais pelo desenvolvimento de
esquemas de continuidade em relação aos planos estabelecidos do que pela liberdade
de criar, pode também ter-se perdido um olhar radicalmente novo e alguma da
sabedoria que está para além do que nasce do mental, do consenso e do seguro.

Posto isto, e porque numa atitude criativa (que recusa a atitude de queixa e a crítica que
paralisa), os problemas devem ser encarados como convites da vida para descobrirmos
o melhor de nós mesmos (Aldana, 1996), passo a sintetizar sob a forma de perguntas, e
tal como também aprendi com Scott Isaksen, Brian Dorval e Don Treffinger149, alguns
dos desafios à transformação que aqui ficam sugeridos:

a) Como criar um ambiente seguro que permita iniciativas audaciosas?


b) Como criar mais espaço para o fluir das emoções?
c) Como ganhar coragem para lidar com o confronto?
d) Como melhorar a capacidade de aceitar e lidar com a diversidade?
e) Como tornar as pessoas mais seguras em relação ao seu papel e à sua posição
dentro do grupo?

• Qualidades Únicas

E porque a originalidade é sempre relativa, vou procurar nas palavras dos membros do
grupo o que, por eles, foi sentido enquanto tal.

149
Referência à forma de enunciar limitações durante a aplicação do ALUo: ser enunciada sobre a forma de
uma pergunta; ter potencial para a produção de ideias; fazer a pergunta para que realmente se quer novas
ideias; ser conciso; indicar propriedade; ser independente de critérios de avaliação; conter os seguintes
elementos – um apoio de partida (Como...?; De que maneira...?), um verbo de acção, um complemento
directo (Isaksen et al, 1994).

326
1. Possibilidade de discutir o que não estava planeado

- “Isto faz-me lembrar os problemas que encontramos na formação. Em que, tendo de ficar sujeito
ao programado, acabamos por perder coisas muito importantes. A vantagem de um programa
destes é essa – não temos programa e podemos ir ao fundo” (3J3/1).

Ou seja, a possibilidade de não estar sujeito a linhas orientadoras e a papéis restritos. A


possibilidade de discutir e de testar ideias e sugestões novas que não estavam
planeadas nem incluídas no programa.

2. Questionamento

- “Não entendi a sua pergunta no sentido de provocação. Mas acabou por ser uma pergunta que me
levou a uma reflexão muito profunda” (7K2/1).

Ou seja, o estímulo de ideias, o questionamento, a discussão de diferentes pontos de


vista.

3. Comunicação interpessoal

- “Estava encantado com estes dois momentos porque, de facto, são momentos únicos - pessoas
que mal se conhecem partilharem desta forma o medo, ou aquilo que é a sua vivência (2J4/1).
- “É a primeira vez que estou a partilhar esse medo” (2K6/2).
- “Coisa engraçada, nunca pensei que iria dizer isto tudo. (...) nunca pensei que iria pôr aqui em
comum. Mas somos todos um bocado sacerdotes – guardamos tudo cá dentro. Isto é uma
partilha” (3A5/2).
- “E começámos a caminhar. E começámos a falar da vida - falámos da vida, falámos de amizade.
Não quis que a caminhada terminasse… A conversa estava sendo muito divertida - não em
termos superficiais. E foi mesmo uma conversa muito profunda para mim. Falei de algumas coisas
de que já não falava há três anos com pessoas assim” (9K1/11).

Ou seja, a abertura e a franqueza, o respeito e o apoio do grupo, a capacidade de ir


para lá do habitualmente estabelecido, a possibilidade de falar de si mesmo, isto é, o
espaço para uma verdadeira comunicação interpessoal.

327
4. Reflexão sobre as qualidades únicas

Curioso, não é? É como se a confiança-resguardo, o acordo-desentendimento, o


atrevimento-cautela fossem, simultânea e paradoxalmente, os pontos mais fortes e os
pontos mais frágeis de como o grupo se percepciona. Será possível? Estará aí, até
nesse deficit, a sua originalidade? Mas por que não? Não é isso também um dos
padrões distintivos de quem, porque muito se quer e na busca inquieta do “processo
contínuo de construção do (...) humano”, (Kolyniak, 2005), só com um amoroso
“contentamento descontente”150 camoniano se contenta?

• Formas de Ultrapassar as Limitações

Qual a acção mais importante que implementaria no seu ambiente de trabalho


para melhorar o clima da criatividade?

Respostas Narrativas à Pergunta #3


Mais tempo
6. Aumentar o tempo de trabalho (…).
8. Abolia o trabalho profissional de todos os participantes.

Mais debate e confronto


1. Fomentar a abertura mais profunda de todos os elementos. Estar preparado
para o conflito que pode ser útil para a maturidade do grupo.
2. Maior confronto de ideias entre os participantes, aprofundar os
pensamentos de cada um sem inibições.
5. Partilhar com os participantes os dados deste questionário e aferir com eles
as finalidades e a organização do grupo.

Mais espaço de vivência


7. Organizaria um piquenique na praia. A praia para mim é símbolo de
imensidão e diversidade. No mar encontramos águas numerosas, no mar
encontramos muitas espécies, o mar leva-nos à profundidade no pensamento,
enfim, o mar para mim é e será sempre uma novidade (?).
9. Menos espaço para verbalização; maior espaço para vivência.

© The Creative Problem Solving Group, Inc. 2005.

Quadro III.5A – Parte B do SOQ – resultados da pergunta 3 (1ª parte).

- Como criar um ambiente seguro que permita iniciativas audaciosas?


- Como criar mais espaço para o fluir das emoções?
- Como ganhar coragem para lidar com o confronto?

150
http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/Vds/camoes.html

328
- Como melhorar a capacidade de aceitar e lidar com a diversidade?

Foram estas as perguntas com que, atrás, procurei sintetizar as limitações recolhidas
nos diferentes documentos em análise. Muitas outras poderiam ser colocadas. Contudo,
e qual jogo de puzzle em que todas as peças se encaixam, estas poderiam ser também
as perguntas a colocar a montante e a jusante das respostas dadas pelos membros do
grupo à terceira pergunta narrativa do SOQ (Quadros III.5A e III.5B):

“Qual a acção mais importante que implementaria no seu ambiente de trabalho para
melhorar o clima de criatividade?”

Qual a acção mais importante que implementaria no seu ambiente de trabalho


para melhorar o clima da criatividade?

Respostas Narrativas à Pergunta #3 cont.

Mais fundamentação teórica


3. Promover tempos de debate sobre os aspectos teóricos em que assenta o
trabalho.

Mais aprofundamento dos temas


6. (…) utilizar um modo de comunicação mais aprofundado no tratamento dos
temas propostos.

Nada
4. Nenhuma. O clima é de total abertura, criatividade, liberdade individual.

© The Creative Problem Solving Group, Inc. 2005.

Quadro III.5B – Parte B do SOQ – resultados da pergunta 3 (2ªparte).

E, simplesmente, selecciono, de entre todas as respostas do grupo, as opções mais


concretas:
- 5. Partilhar com os participantes os dados deste questionário e aferir com eles as finalidades e a
organização do grupo.
- 6. Aumentar o tempo de trabalho.
- 7. Organizaria um piquenique na praia. (...) o mar leva-nos à profundidade no pensamento (...).
- 9. Menos espaço para verbalização; mais espaço para vivência.

329
Muito haveria a dizer a partir daqui e, seguramente, muitas outras opções haveria que
procurar. Mas agora não é, nem o tempo, nem o espaço, para o fazer. Mas talvez as
venha a encontrar quando, mais adiante, procurar responder àquela que é também uma
das perguntas da pesquisa – “Como pode o educar lidar com o seu medo e, por isso,
ajudar as pessoas a enfrentarem os seus medos?”

Qual movimento de espiral que sempre “regressa a um ponto novo”, com toda a riqueza
do hologramático aqui presente, parece que, mais uma vez, “tudo começa no sujeito e
pelo sujeito do conhecimento, singular e plural consciente de si e do grupo, interessado
na construção do conhecimento e do mundo compreensível. A saída da zona de
conforto implica pensar o novo e agir de outra forma” (Feitosa, 2006: 77).

330
331
332
caracterização geral de feita pelo próprio
cada uma das pessoas do
grupo feita pelos outros
as pessoas do grupo de
razões para participar
pesquisa colaborativa
expectativas em relação ao trabalho

efeitos (no próprio) por participar

desafio e envolvimento

confiança e abertura

liberdade

tempo para as ideias


QUEM
clima do grupo - dimensões (SOQ) conflito

debates

1.4 Categorias de Análise o grupo de pesquisa colaborativa alegria e humor

apoio a ideias

riscos assumidos

orientação para a mudança

estilos de criação - dimensões (VIEW) formas de processar informação

formas de decidir

O QUÊ
COMO
POR QUÊ
PARA QUÊ
A alma não tem segredo que o comportamento não revele.
Lao-Tsé

2. O que faz com que uma vida seja serena, útil e corajosa?151

Esta é a pergunta conceptual da pesquisa para que quero encontrar resposta.


Congregando o pensamento de Csikszentmihalyi (1998), Sturner (1994, 1996, 1997),
Nolan (2001), Maslow (1991), Frankl (1994), Maturana (2000), Freire (2000, 2003),
Morin (2002, 2003, 2006), Max-Neef (1993) e outros, são três os sinais que, na sua
mútua implicação e enquanto antagónicos dos atributos do medo, dão forma a esta
questão152:
- a SERENIDADE – construída pela consciência de quem se é e do para que se
existe;
- a UTILIDADE – construída pelo valor e coerência em diversos campos da vida;
- a CORAGEM – construída na ligação entre a serenidade e a utilidade, o que leva a
fazer a paz e a felicidade partilhada.

Contudo, quando olho para os resultados da análise dos dados correspondente (a


categoria “o quê), e para tudo o que aí colocámos de medos e seus efeitos153, a
resposta que fica mais evidente é à sua negação – “o que faz com que uma vida não
seja serena, útil e corajosa?”. Vou, por isso, procurar no medos (nas suas múltiplas
expressões, símbolos e formas) o que depois, através de um processo de
transformação, me possa indicar o que seja tal vida.

2.1 O disfarce do medo

No início do trabalho com os informantes-chave (e porque isso correspondia ao sentido


de uma das actividades realizadas pelo grupo de pesquisa154), havia a intenção de criar

151
Ver excerto do mapa mental das categorias de análise no final deste ponto do capítulo.
152
Ver também “Introdução – 3.2 Propósitos e perguntas de investigação””.
153
Ver “Capítulo 1 Roteiro – 2.4.1 Mapa mental das categorias de análise”.
154
Sessão 2 – trabalho de relaxamento em que, a partir da consideração de diversos períodos da vida, se
procurou retomar memórias de experiências pessoais que suscitaram medo.

333
uma primeira subdivisão dos medos colectados nos relatos das sessões, que os
organizasse como “medos da infância”, “medos da adolescência” e “medos da idade
adulta”. Porém, quando, por força da pouca clareza de alguns discursos, se tornou
impossível afirmar, para lá de qualquer dúvida razoável, a que período da vida muitos
deles diziam respeito155, abandonámos essa pretensão.

Mas a interrogação sobre as razões dessa impossibilidade foi ficando em aberto. Por
esse motivo, ao longo do trabalho de análise, ficámos também mais disponíveis para
identificar alguns tipos de subterfúgios que, subtilmente e enquanto ESTRATÉGIAS DE
ENCOBRIMENTO, davam indicação das dificuldades sentidas em situar, compreender,
encarar ou mesmo ter consciência dos próprios medos.

Algumas dessas estratégias estavam presentes na nossa COMUNICAÇÃO VERBAL. Por


exemplo:

a) Considerar que os medos são “normais”.


- “É o primeiro dos medos que existe com quem trabalha com muita gente, que é o medo das
primeiras impressões” (3J4/5).

b) Não distinguir com clareza se os medos são do passado ou do presente.


- “Estes outros medos de que falei também, da rejeição, de ficar sozinha (...). Ou pelo menos
assim aconteceu em algum momento” (3E7/1).
- “Mas a matrícula nunca mais vou esquecer. Nunca mais. Se eu vejo uma matrícula começada
por A, eu lembro-me logo da matrícula. Se vejo um carro, lembro-me logo daquele carro. (...)
Depois são aquelas coisas: a gente cresce, chegamos à puberdade” (3O4/9-10).

c) Negar os medos.
- “E não tenho medo da morte. Tinha se ficasse à mercê de uma pessoa que me fizesse mal.
Mas a morte, acho que é inevitável e não tenho medo” (3M2/9).

155
Tal como também é explicado na descrição das categorias de análise (Anexo 4), nos relatos das sessões
muitas vezes não fica claro se os medos existiram na infância e adolescência e persistiam na idade adulta,
se existiram na infância e adolescência, mas já não existiam na idade adulta, ou se só surgiram na idade
adulta.

334
d) “Impessoalizar” o discurso.
- “Queremos uma coisa, ou um sentimento de amor, ou qualquer tipo de sentimento que não
sou capaz de expressar por medo” (1N1/3).
- “Os medos maiores são quando a gente decide enveredar por um caminho sem retorno”
(10M1/3).

e) Encontrar razões para não enfrentar os medos.


- “Evito os medos que não incomodam os meus sonhos” (6K7/2).

f) Pactuar com o medo e com o sistema que o provoca.


- “Não tem medo porque aprendeu a viver com medo” (4M19/1).

g) Falar antes dos medos dos outros.


- “Eu também já as virei e acho que acaba por ser muito positivo. Outro dia, uma amiga minha
(...)” (7I23/1).
- Ou quando, depois da visualização do filme “A Vila”, fazendo a aplicação da
técnica ORA na 6ª sessão156, centrámos muito mais a nossa atenção em
“observar” (os outros) e muito menos em “aplicar”, isto é, a falar sobre a
própria experiência.

Outras estratégias, menos verbais e mais do campo das ATITUDES E COMPORTAMENTOS


(por isso com uma forma ainda mais subtil de comunicar, mas também, provavelmente,
mais marcante), deram origem ao que foi sentido e expresso noutros tempos ou
aspectos do trabalho feito:

a) Situar o discurso mais no cognitivo e menos no afectivo ou vivencial.


- Extracto de um diário de campo da 6ª sessão – “Sinto que, muitas vezes, não
estamos a abordar os nossos sentires, mas os nossos saberes sobre o tema do medo
(...). Sinto que assim estamos perdendo experiências de vida”.

b) Centrar a atenção no profissional ou no passado.

156
Ver “Capítulo 1 Roteiro – 2.2 Descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas”.

335
- Extracto de um diário de campo da 3ª sessão – “Muito daquilo que as pessoas
estão trazendo são «revelações» de factos passados ou, essencialmente, de factos
profissionais (...) deixando de lado aspectos mais pessoais da sua actualidade”.

c) Esquecer-resguardar experiências de interioridade.


- Extracto da 12ª sessão – avaliação das sessões do grupo - “O trabalho do
grupo não correspondia em nada à minha expectativa e eu achava que não estávamos
nada... nem a atingir o que podíamos, nem a pôr na mesa aquilo que devíamos”
(12I34/5).

d) Centrar a atenção no exterior.


- Extracto de um diário de campo da 9ª sessão – “As conversas andavam à volta
de ter medo [físico] de fazer aquele percurso. Mas ninguém tinha medo. Também não
havia por que ter medo!...”.

e) Revelar uma “face luminosa” e esconder as “sombras”.


- Ao longo da quarta sessão, por exemplo, foram categorizadas 28 formas
de lidar com o medo: 26 centradas no desenvolvimento humano,
“positivas” (“Na medida em que eu for capaz de perceber, por dentro de mim, que
posso continuar vivendo, existindo e sendo eu para além disso [do que tenho receio de
perder], sou capaz de me ir libertando do medo” – 4E16/1) e 2 centradas na
conservação, “negativas” (“Uma estratégia que a gente fica tentado a fazer é ficar
tudo morno (...) E há muita gente que prefere o nada para evitar o sofrimento 4J24). E,
destas últimas, só uma foi apresentada na primeira pessoa.

f) Experimentar níveis baixos de riscos assumidos, de conflitos e de debates.


- Exemplo: resultados do SOQ já apresentados em ponto anterior.

Por tudo isto considero que o eixo central da categoria “o quê”, que procura responder à
pergunta “o que faz com que uma vida não seja serena, útil e corajosa”, é o DISFARCE
DO MEDO e que o sentido profundo desse disfarce é a NEGAÇÃO DE SI MESMO. O que isto
implica, os seus fundamentos e formas utilizadas é o que procurarei desenvolver em
seguida.

336
2.2 Definição e caracterização do medo

- “Defini o medo como a mobilização da energia para o recuo. E a mesma energia que mobilizamos
para o recuo pode ser mobilizada para avançar. Porque há pessoas que, aparentemente, são
fracas, mas descobrimos que não são assim tão fracas pela força que nos mostram ao recuarem
em determinadas situações. Isto porque no medo canalizam muita energia para se protegerem.
Aquela energia que andaram a esconder pode ser mobilizada para avançar” (3K2/14).

Não são muitas as DEFINIÇÕES e as CARACTERIZAÇÕES DO MEDO que se encontram


presentes nos relatos das VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES dos membros do grupo de
pesquisa colaborativa. A que acima está colocada é, aliás, das muito poucas
absolutamente explícitas. Como se as pessoas, porque o “medo é uma coisa muito abstracta,
não é possível explicar-se o medo” (1N1/3), fugissem de definir alguma coisa que, mesmo
dentro de si mesmas e certamente por força de todos os factores envolvidos, têm
dificuldade em compreender.

- “O medo, para guardar na tal caixa, ou a tal caixa para guardar o medo, é ambas as coisas e é
também o que me conduz a elas. Por um lado, um nada a que me apego e que se avoluma, um
nada que se esconde atrás da aparência de espaços preenchidos, um nada que eu avolumo, que
me recuso a olhar de frente e escondo em espaços sucessivamente mais vastos. O medo é
também uma energia “ocupada”, bloqueada, que se revela finalmente inútil e vazia. (…) o medo
vai junto com as coisas boas, o medo de as perder. No mesmo sítio onde se escondem as coisas
boas, esconde-se o medo” (3E3/4,5).

Contudo, tanto nas definições que enquanto tal existem, como nas situações em que o
medo é explicado a partir das suas representações simbólicas (como é o caso desta
última definição acima transcrita157), não é difícil perceber a profunda AMBIVALÊNCIA que
nele é sentida e que, aliás, tem paralelos com outros pares de opostos básicos
identificados por alguns autores. Por exemplo:

157
Ver “Capítulo 1 Roteiro – 2.2.3 Etapa 2, sessões 2 e 3, construção de «caixas para guardar o medo»”.

337
- com os sentimentos de PRAZER e DOR como genealogias da regulação vital do
distanciamento e da aproximação e do fechamento e da curiosidade, explicados
por Damásio (1995, 2000, 2003);

- com os ritmos de CONTRACÇÃO e DISTENSÃO como movimentos de manifestação


da vida, apresentados por Blay (1988);

- com aquilo a que, numa linguagem mais poética, mas não menos precisa,
Gibran (1995) chamou a ALEGRIA e a TRISTEZA como pratos inseparáveis de uma
balança que pesa o ouro e a prata com que o nosso coração se enche.

E porque aquela ambivalência, mesmo que nem sempre tão claramente verbalizada, é
um atributo que se encontra presente nas diversas definições de medo do trabalho do
grupo de pesquisa, é a partir da sua análise que procurarei começar por construir uma
aproximação ao entendimento do que no medo está contido.

1. A universalidade e a particularidade do medo

- “Uma pessoa tem medo, tem receios, acho que há medos que são universais (...), há outros que,
se calhar, têm a ver com o nosso percurso pessoal” (1M2/3).
- “Tenho angústias que, umas vezes, não me perturbam a minha vida no dia-a-dia, mas que, outras
vezes, perturbam. De maneira que essas angústias são os medos que nós temos e que, quer
queiramos quer não, toda a gente tem” (1A1/10).
- “O medo é o reflexo das expectativas que criámos” (6M15/1).

Três ideias estão especialmente presentes nos excertos aqui escolhidos para
exemplificar esta ambivalência do medo.

A primeira, e a que mais claramente a explica, é que se o medo (enquanto emoção


básica), é uma reacção pré-organizada do nosso organismo biológico a certos tipos de
estímulos sobre a amígdala do sistema límbico, enquanto emoção secundária (e
embora continue a ser resultado de disposições inatas), tem subjacente a experiência
individual. Aí cabem, por isso, todos os condicionamentos, conflitos, desesperos,

338
violências e desencantos de uma vida que fazem com que o medo também seja único e
personalizado (Damásio, 1995; Krishnamurti, 2002).

A segunda é que, apesar de serem diversas as variantes das expressões que se


referem a este impulso emocional que “toda a gente tem” (e que está associado ao
princípio da dor e “perturba no dia-a-dia”) (Damásio, 1995; Marina, 2006), é pela forma
como é usado que se faz a distinção entre os covardes e os heróis (Neill 1971).

A terceira é que se o desejo é condição necessária da vida (por isso, universal), já “as
expectativas que criámos”, os desejos inferiores (Peña y Lillo, 1991), são resultado de uma
criação social ou individual. São, por isso e muitas vezes, necessidades deficitárias
falsas que desfiguram a verdade profunda da realidade do Ser e aprisionam no medo a
vida do homem (Peña y Lillo,199; Guenther & Combs, 1980).

“O medo está relacionado com a perda do objectivo ou o objecto desejado. Estamos


convencidos que, se falharmos, não conseguiremos obter aquilo que queríamos.
Passaremos a ser uns falhados, uns perdedores. Seremos rejeitados. Sentiremos
desprezo por nós próprios.
(...) Ter esperança é bom, mas criar expectativas já não é. Onde existe a expectativa, a
desilusão anda sempre a rondar por perto” (Weiss, 2000:100).

2. A evidência e a opacidade do medo

- “A minha caixa é um misto de vazio e de preenchimento. Na verdade são 1, 2, 3 4, 5 caixas que


se metem umas dentro das outras como uma Matrioska, as bonecas que se metem umas dentro
das outras. E o medo está lá, na última” (3E3/5).
- “Então pus esta cor, que achei muito colorida e muito alegre, e que acho que é a minha fachada
do medo – em certas alturas que estou com medo não o mostrar” (3M2/14).
- “Acho que as bocas guardam os medos… pelo menos no meu caso, nunca falei muito sobre os
meus medos às pessoas” (4L9/5).
- “Este seria um peixe-balão, estes arames pretendiam ser aquelas espinhas e, ao mesmo tempo, a
situação de engolir os medos (...). Dos medos se fazerem maiores (...), mais fortes, mais
agressivos, mas de estarem lá dentro” (4L9/6).

339
- “É como quem procura tapar buracos, colocando um tapete em cima para disfarçar. Numa hora de
distracção pomos-lhe o pé em cima e caímos. O que será que eu guardo na minha caixa dos
medos e que não quero recordar?” (6U7/13).

E nestas histórias de vida (porque as representações simbólicas do medo também


foram representações de nós mesmos), leio outra ambivalência do medo – um medo
que se revela quando, por medo, se esconde. Dissimulado de brandura, de prudência,
de preguiça, de azáfama, de culpa, de poder, de tensão, de dogma... (Gil, 2005; Moore,
2000; Peck, 2002; Lowen, 1984; Russel, 2001, Morin, 2002), é um medo “tapado”,
“guardado”, “escondido”, “silenciado”, “engolido” (por isso cada vez “maior, mais forte, mais agressivo”)
que se perpetua num círculo de repetição e mora na pouca consciência das
possibilidades de definição de novos caminhos (Feitosa, 2006; Trigo, 2006):

- na não consciência – porque a pessoa nem o reconhece;


- na não responsabilização – porque a pessoa não o assume;
- na não decisão – porque a pessoa não se resolve;
- na não execução – porque a pessoa não faz e não cria a mudança.

É, por isso, e muitas vezes também, um medo “colorido”, “alegre” e fingidor que finge tão
completamente que (talvez) nem chegue a fingir que é dor a dor que até (já) não
sente158.

“Nosso medo pode ser paralisante, de modo que só podemos funcionar reprimindo e
negando o medo. Eliminamos o sentimento tensionando o corpo e restringindo a nossa
respiração, mas ao fazer isso eliminamos também a possibilidade da alegria” (Lowen,
1997:59).

3. A pluralidade e a singularidade do medo

- “Os medos eram sempre o mesmo medo” (3O4/4).

158
Alusão a Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente, que chega a fingir que é
dor a dor que deveras sente...” http://www.tanto.com.br/fernandopessoa-autopsicografia.htm (2007).

340
Se, em capítulo anterior159, já foi possível apresentar uma relação simbólica de 241
medos diferentes recolhidos em diversas leituras e situações, nas transcrições das
sessões do grupo de pesquisa foram identificados mais 186 – o que perfaz um total de
427 exemplos de medos aqui apresentados. Contudo, esta frase tão simples, “os medos
eram sempre o mesmo medo”, faz-me reconhecer o que considero ser a segunda
ambivalência do medo.

À medida que se procura avançar para níveis mais profundos de classificação, vai
ficando claro que, na parafernália de medos com que diariamente lidamos (e nas
imensas caras e máscaras com que ele se cobre e disfarça), reside um único medo que
está subjacente a todos os outros medos, o medo de não sermos suficiente. Aquilo que
Jeffers (1991) identifica como sendo o nível de medo mais profundo, o medo de não ser
capaz de lidar com o que a vida trouxer – “Tinha medo de me deparar com uma situação que
depois não tivesse maneira de escapar, nem de fugir, nem de pedir ajuda” (3O4/4).

Por isso, e muito embora estas duas frases tenham sido ditas, certamente, em relação a
uma situação de vida muito particular, esta ambivalência de pluralidade/singularidade
do medo tanto pode ajudar (sem preocupações de carácter teórico-metodológico), a pôr
um termo na construção de uma lista que se afigura como interminável, como a
acreditar (porque assim é possível circunscrever o medo), que alguma coisa pode ser
feita no sentido de apaziguar com alguma eficácia o que de tanta dor se reveste.

4. O realismo e o irrealismo do medo

- “O medo é também parte de realismo. Agora até que ponto é que é realismo, e até que ponto é
não querer ir lá... Mas os dois princípios são muito activos. O medo é princípio de realismo. Quem
não tem medo é doido!” (4I1/2).

Tal como em Goleman (2005), também aqui podem ser identificadas duas espécies de
medo – o medo construtivo, positivo, apropriado que, enquanto chamada para a acção,
ajuda a sobreviver; e o medo destrutivo, negativo, desadequado que, sendo prejudicial
para o próprio e para os outros, impede o processo de desenvolvimento humano.

159
Ver “Capítulo 3 Descobrir caminhos de outros”.

341
Mas o que marca a fronteira entre os dois? De acordo com Moffitt (2003b), não é o
impulso emocional em si mesmo, mas a percepção-interpretação, ajustada ou
distorcida, da situação em causa.

- “Outros medos (...) da rejeição, de ficar sozinha... também gestos que podem não significar nada,
mas que eu interpreto como de rejeição” (3E6/1).

E isto deixa no ar uma outra pergunta, a mesma feita por Paul Watzlawick (1991) – será
que “a realidade é real?”. Se, conforme este autor, existe uma realidade de primeira
ordem (aquela cujas propriedades físicas e objectivas são acessíveis a um consenso de
percepção e a uma prova verificável e científica), e uma realidade de segunda ordem
(aquela que atribuindo um significado e valor a essa realidade, é constituída pelas
percepções subjectivas, muitas vezes contraditórias), só no reino da ilusão e do
absurdo se pode aceitar a existência neste campo de uma perspectiva única, de uma
verdade eterna e... “real”.

Como, então, frente a uma realidade tão plural, criar condições para um discernimento
que permita que o indivíduo não perca, por causa do medo, “a união com a sua própria
essência” (Trigueirinho, 1999:373)? Em Lowen (1997:42) encontro uma resposta – é a
capacidade de acção da pessoa que o sente que cria essas condições. Aquilo que, no
conceito de ACÇÃO INTENCIONAL, implica “o verdadeiro agir do ser” (Sérgio, 2005:22) e
nos remete para a ambivalência seguinte.

5. A força e a fraqueza do medo

- “Quis fazer a caixa de um material que facilmente pudesse amarfanhar, porque não quero viver
com medo, porque sei que o medo perturba a vida” (3A2/16).
- “Eu gosto dos meus medos. Na verdade chateiam-me imenso quando os tenho, mas depois,
quando me ajudam a superar, a atingir objectivos, são fantásticos porque percebo que eles
também foram importantes para isso. Eu não quero que eles fiquem aprisionados, quero que eles
se transformem em algo. Então, aqui, nesta parte da caixa, entra “o medo que mete medo”; e, por
aqui, sai “só medo”. (...) Aqui entra o medo que bloqueia, o medo que não permite avançar (“o
medo que mete medo”), mas depois de ser filtrado pelas memórias, pela razão, pela ideia de que

342
o medo é meu, e que é importante e que faz parte de mim, sai “só medo”. E “só medo” é a ideia de
que é um medo que eu posso dominar, e que posso usá-lo a meu favor. Porque “medo que mete
medo” não é “só medo” (3J4/24-25).
- “Eu construí uma mão (...) pelo profundo simbolismo que lhe está associada: mão aberta ou mão
fechada; a mão que me foi dada, a mão que me foi recusada; a mão que tenho contraída, a mão
que tenho relaxada; a mão que dá e recebe (semi-aberta, disponível, que afaga) é a mesma mão
que agride e que recusa; a mão que esconde, a mão que revela. Com todas elas eu estou, mas a
mão é minha, é do meu poder e de mais ninguém” (4U6/2,4).
- “A caixa que eu gostava de fazer para os medos era uma daquelas caixas dos três R’s, reduzir,
reciclar e recuperar – (...) a tentativa de reduzir os medos, de os reciclar, de os reeducar e de os
transformar em coisas positivas, de conseguir servir-me deles um pouco para o meu crescimento”
(4L9/7).

“Porque «medo que mete medo» não é «só medo»”, a escolha entre “amarfanhar” ou “viver
perturbado”, entre “ser dominado” ou “usá-lo a favor de si mesmo”, entre lutar ou fugir, depende
da pessoa e da situação (Lowen, 1997) – porque “a mão é minha, é do meu poder, e de mais
ninguém”. Por isso, quando a ACÇÃO se revela plena de sentido ou intencionalidade
(Sérgio, 2005), revela também a bravura (talvez o segredo) de quem é capaz de
transformar o medo em energia positiva (Neill, 1971) – “reduzindo”, “reciclando”, “recuperando”,
isto é, “reeducando”.

Será por causa deste movimento oscilante entre força e fraqueza que o Sermão da
Montanha me vem insistentemente à memória?

“Felizes os pobres em espírito porque deles é o Reino do Céu. Felizes os que choram
porque serão consolados. Felizes os mansos porque possuirão a terra. Felizes os que
têm fome e sede de justiça porque serão saciados” (Mateus 5, 3-6).

6. A ameaça e o desafio do medo

- “Nunca tinha reflectido sobre o medo desde a sua perspectiva positiva! (...) Tive de reflectir em
mim mesmo, nas minhas capacidades, nas minhas forças, buscá-las ou rebuscá-las para vencer

343
certos medos (...) quando os considerasse verdadeiros obstáculos para singrar nos meus sonhos”
(Extracto de um diário de campo da 1ª Sessão).
- “Deixem que alguns dos meus medos continuem (...). Eles são um desafio para mim. Destes
medos que são desafios eu não devo sentir medo. Ao contrário, são a minha força. Permitem que
eu canalize a minha “energia de recuo” para avançar” (Extracto de um diário de campo da
12ª Sessão).

Muito ligada com a anterior, está esta sexta ambivalência. A fraqueza ou a força dos
medos depende da forma como se olha para eles – enquanto ameaças ou enquanto
desafios – e a forma como se olha para eles depende, em última análise, da forma
como olhámos para nós mesmos, isto é, do nosso autoconceito (Guenther & Combs,
1980).

7. A permanência e a mutabilidade do medo

- “Eu não sei quantas vezes já fiz este exercício. Tenho sempre a mesma sensação de que, a meio,
me perdi, que me enganei. Não sei como é. Faço isto quase todos os anos (...) e acontece-me
sempre isto” (10E6/1).
- “Qual é hoje o meu monstro que está lá no centro à minha espera?” (10E7/2).

Dizem os budistas que, na prática do Zen, o difícil (mas também o alvo da prática), é
manter a “mente do principiante” – a mente que, sendo rica e suficiente em si mesma, é,
ao mesmo tempo, uma mente vazia e uma mente pronta.

“Na mente do principiante há muitas possibilidades; na mente do perito há poucas. (...)


Esse é também o verdadeiro segredo das artes: ser-se sempre um principiante”
(Bercholz & Kohn, 1993:242-243)

Assim, tal como o segredo da prática Zazen não reside numa grande compreensão,
mas numa mente aberta (já que só sabe quem não sabe, sabendo) também este
atributo do medo nos faz compreender que qualquer ponto de chegada é ponto de
partida pois o medo só deixa de o ser quando o é – porque não se é, mas se vai sendo.

344
2.3 Relação de medos e efeitos do medo

Tendo como pano de fundo um conceito de desenvolvimento humano que vê a pessoa


“como ser transcendente (possibilidade de si mesmo), como alguém que se relaciona
com o outro em posição de igualdade (...) e numa relação dialéctica com o mundo (...)
criando e re-criando ambientes que o tornam cada vez mais humano” (Jaramillo,
2005a:90), os 186 MEDOS e seus EFEITOS experimentados ou percepcionados pelos
membros do grupo de pesquisa e identificados nas transcrições das sessões, foram
organizados em função160:

a) da relação da pessoa consigo mesma, com os outros e com o cosmos;


b) do significado intrínseco que lhes foi atribuído no contexto de análise,
c) da dimensão da corporeidade que aparece como mais visível.

E esta triple categorização, vista agora à luz dos disfarces e das dualidades do medo,
também revela o que nos pode fazer perder na negação de nós mesmos e das nossas
possibilidades humanas.

1. Os medos, nós e os outros... no mundo

Enquanto que os “medos do mundo” identificados na análise das nossas sessões estão,
na sua quase totalidade, relacionados com medos físicos exteriores (medo do escuro,
dos bichos, das alturas...), muitos dos “medos da pessoa consigo mesma” e dos “medos
com os outros” sugerem dificuldades de comunicação intra e interpessoal – medo da
loucura, da decisão, da avaliação, da dependência, do compromisso, de ser diferente,
do conflito, da intimidade consigo mesmo e com os outros... – “temos medo da solidão
estando sós, e temos medo de continuar sós, estando com outros. E que os outros nos deixem sós”
(4E20/1).

“A comunicação interpessoal (...) é um veículo de configuração da nossa humanidade e


daqueles que nos rodeiam. (...) A autêntica comunicação interpessoal parte de uma

160
Ver Anexo 4 – Descrição das Categorias de Análise.

345
interiorização que (...) supõe um encontro comigo mesmo - numa reflexão sobre as
grandes interrogações da minha natureza e da minha missão relacional no mundo. Só
assim a minha comunicação será rica e geradora de vida humana nos outros”.
(Marroquin, 1995:21).

a) Temos medo de nós mesmos, mas também temos medo dos outros.
- “Acho que um dos grandes medos que tenho é de mim própria e é da loucura. Esta coisa de
não fazer o que devo… Sempre tive muito medo” (7I16/2).
- “[Tenho] medo das amizades falsas” (3K1/16).
- “Tenho medo da confusão, tenho medo dos conflitos” (7I2/4).

b) Temos medo da solidão, temos medo de estar ou de ser deixados sós, mas
também temos medo de estar acompanhados e de partilhar a vida.
- “O medo de estar deslocada, o medo de ser abandonada” (4U6/7).
- “Medo de ficar só, ou medo de perder o controlo sobre o outro. (...) o medo de perder o filho”
(6J33/2).
- “Às vezes não fazemos coisas porque não queremos que os outros saibam que nós sentimos
determinadas coisas” (6J31/2).
- “O medo de tocar e de ser tocado” (6E11/10).
- “Chegou a minha vez, que é enfrentar um dos meus medos, que é falar sobre as minhas
vivências” (9L1/1).

2. Os medos e as necessidades básicas*

Vivemos preocupados com os efeitos que as palavras e os gestos têm, amedrontados


connosco, com as pessoas e com o mundo porque não somos, ou não nos sentirmos,
(suficientemente) amados, porque não nos amamos tal como somos. Por isso, a divisão
dos medos em categorias independentes de “eu-outros-mundo” também é, em si
mesma, uma ilusão. Dado que a relação com os outros e a visão do mundo são
projecção do nosso auto-conceito (Guenther & Combs, 1980), ter medo dos “outros” ou
do “mundo” é uma projecção do medo de nós mesmos, da nossa falta de auto-estima,
das nossas inseguranças, nos nossos falhanços.

346
- “A maneira de olhar o exercício físico, que acaba por ser, de algum modo, o olhar o meu corpo”
(3E8/1).
- “Temos medo do mal que nós podemos fazer as nós mesmos e aos outros. E temos outro medo,
que é o mal que as outras pessoas nos façam a nós. De certa maneira, é um pouco o medo da
solidão – o medo do relacionamento interpessoal e de querer agradar e de querer ser amado.
Acho que é quase um denominador comum de quase todas as conversas” (4M16).

Por isso, muitos dos medos identificados também indicam que, em diversas áreas da
nossa vida, vivemos nos primeiros níveis das necessidades humanas – de manutenção
fisiológica, de segurança, de pertença a alguém, de auto-estima e estima pelos outros
(Maslow, 1991; Guenther & Combs, 1980).

- “Medos mais... comezinhos: o medo de cair, de me magoar fisicamente (associado a tudo quanto
é exercício físico)...” (3E5/1).
- “Tenho medo de que não gostem de mim” (7I2/6).
- “Tenho (...) algum receio do que os outros vão pensar, do que os outros vão dizer” (4L9/12).

Prisioneiros, por isso, do princípio da escassez (de segurança, de confiança, de


amor....), que nos impede arriscar, avançar e crescer, precisamos muitas vezes de um
“alimento” tão constante que temos de o ir buscar à permanente aprovação, apoio e
bênção que (em constante movimento de causa-efeito), os outros possam dar à nossa
existência.

- “Porque eu tinha que ter a responsabilidade de fazer com que as coisas corressem bem. (...) Mas
o objectivo era as pessoas ficarem a achar que eu sou o máximo (4U22/1; 23/1)161.

3. Os medos e as necessidades do Ser

Mas, em “contraponto”, aparecem OUTROS MEDOS muito diferentes, os “medos de não


ser”, que poderíamos chamar “medos de gente madura”. São medos que correspondem
às necessidades de crescimento, de significação, de sentido, de auto-suficiência, de
justiça, beleza, criatividade... – as metanecessidades, aquelas que, sendo as

161
Categorizado como “porquê – causas do medo”.

347
necessidades mais elevadas, também são muito mais distintamente humanas (Maslow,
1991):

a) O “medo da dependência” que, nalgumas situações, é o medo de quem ama.


- “E, neste momento, qual é o medo que eu tenho? É o de, na minha velhice, ficar assim
mesmo e ter de viver na dependência dos meus filhos” (3A2/11).

b) O “medo de não corresponder aos próprios valores”.


- “[Medo de] não fazer aquilo que devo” (7I17/3).
- ”(...) Esse tem sido um dos grandes medos meus de, às vezes, não conseguir ser uma flor
para aqueles que cruzam a minha história” (10K1/9).

c) O “medo de não corresponder às próprias expectativas”.


- “Medo de (...) falhar profissionalmente” (3M1/10).
- “Um medo que eu tenho constantemente é o medo da normalidade (...) o medo de ter uma
vida comum. (...) Não me interessa muito a vida normal” (3J4/19).

Mas será que são medos, ou são desejos e sonhos? O medo pode ser tão difícil de
interpretar quanto o sonho. Se o medo surge e não sabemos, muitas vezes, como nos
possui, não poderá confundir-se com o sonho que nos surpreende e não sabemos,
também muitas vezes, de onde vem e de que modo nos toma? Mas se os dois nos
apoquentam, a diferença é que o medo nos limita e o sonho tantas vezes nos eleva.
Então, se assim é, estes “medos de gente madura” não serão medos, mas desejos e
sonhos.

4. Efeitos do medo – o sofrimento e a negação da acção

Se olhar a categorização dos EFEITOS DOS MEDOS A PARTIR DO SEU SIGNIFICADO


INTRÍNSECO, é possível ver que quase todas estas sub-categorias reúnem efeitos do
medo que foram apresentados como sendo negativos e, dentro deles, muitos
congregam efeitos que, de uma forma ou outra, são portadores de algum tipo de
sofrimento:

348
a) Sofrimento – “O medo em mim (...) é uma coisa incomodativa e é uma coisa que acaba por
estar sempre presente de uma forma fininha” (4L9/6).

b) Somatização – “Deu-me um problema nas costas que eu fiquei lá parado” (3J4/15).

c) Sentimento de culpa / avaliação – “Culpava-me por não fazer o que devia” (7I3/1).

Por outro lado, quase todas as subcategorias dos efeitos do medo também podem ser
vistas como tendo subjacente a negação de um ou mais dos movimentos da acção:

a) A não consciência.
- “Criação de um mundo irreal” – “perturba a nossa realidade e, quando uma coisa nos
ofusca os olhos, perdemos a noção do real” (3A1/16).

b) A não responsabilização.
- “Criação de dependências”: “estava a precisar que me dissessem «pronto, não vai mais
acontecer...»” (3O4/6).

c) A não consciência / Não responsabilização.


- “Anulação da diferença” – “torna-nos todos iguais” (6U7/16).

d) A não execução.
- “Paralisação” – “fiquei paralisada, sem saber o que havia de fazer” (6E13/4).
- “Dificuldade de comunicação” – “atrapalha a vida em alguns aspectos, particularmente
(....) os aspectos de relacionamento pessoal” (4L9/6).

São, por isso, efeitos que nos distanciam da possibilidade de aproximação à vivência
como pessoas adequadas e, consequentemente de padrões de vida mais elevados:

“Pessoas adequadas (...) [são] pessoas, capazes de pensar por si, de examinar todos os
dados presentes em cada situação e tomar ali as decisões mais acertadas e mais
eficientes possíveis e de viver em conformidade” (Guenther & Combs, 1980:130).

349
A única subcategoria de efeitos que tem subjacente um, ou mais, dos movimentos da
acção e da mudança é aquela que denominámos “estimulação da acção”, a que
congrega efeitos que podem ser considerados positivos e nos aproxima daquela
adequação:

- “[São] positivos quando aprendo a enfrentar aquilo que me faz medo” (6I2/2).
- “[Por causa do medo da normalidade] sou patrão de mim próprio” (3J4/17).

5. Medos e efeitos do medo – uma percepção holística

Reconhecendo que, embora não se pretendesse rígida, a CORRESPONDÊNCIA DOS


MEDOS E EFEITOS DO MEDO COM OS SETE CORPOS (tabela III.9) é, em si mesma, uma
artificialidade (já que a nossa identidade corpórea não é constituída por corpos
independentes mas por uma complexidade multidimensional – Bohórquez & Trigo,
2006), pela interpretação geral dos resultados aí obtidos fica evidente que a dinâmica
do medo, embora comece e acabe numa emoção e tenha no corpo físico o seu palco
(Damásio, 2000), afecta o ser humano em todas as suas dimensões.

Assim, e apesar de quase não apresentarmos resultados que digam respeito ao corpo
sensitivo e às nossas capacidades perceptivas (extra-sensoriais, intuitivas e místicas),
fica claro que o medo, afectando cada um dos corpos constituintes da nossa
corporeidade, afecta a nossa totalidade humana.

E se poucas são as referências ao corpo sensitivo, acredito que isso não se deve, muito
pelo contrário, ao facto de esta nossa dimensão não ser afectada, mas ao
desconhecimento e à nossa falta de consciência e sensibilidade em relação às
potencialidades que nesse campo existem. É que, sendo quase todo o grupo de
pesquisa constituído por pessoas portadoras de uma cosmovisão ocidental e de uma
cultura urbana e com uma formação escolar de nível superior, terão, por “norma”, muito
mais prática de utilização e aquisição de conhecimento a partir do hemisfério cerebral
esquerdo, racional e lógico, do que do direito, intuitivo, holístico, integrador, emocional
(Sisk & Torrance, 2001; Shalcross & Sisk, 1989; Sousa et al, 1998). Contudo, também
por isto, tudo indica que, estando o todo presente na parte e a parte no todo, existe a

350
possibilidade de através do todo(s), consciencializar-assumir-sair-transcender a
situação da parte.

Tipos de Medo Efeitos do Medo


Corpo físico Medo de me afogar (4E17/1) Lembro-me de (...) ver a fotografia de um rapaz
(...) e sentir enjoo, sentir náusea (3O4/6).
Corpo emocional O medo que tem a ver (...) com os O medo às vezes tira a nossa alegria, a nossa
relacionamentos afectivos (4L8/6). felicidade (6K4/4)
Corpo mental Medo de perder o controlo sobre a nossa Planeava tudo (...) e, chegada a altura, surgia
razão (6J31/2) sempre uma razão, ou um pretexto, qualquer
coisa (7I3/1).
Corpo transcendente Medo de morrer em pecado mortal O medo rouba a liberdade (6L1/2).
(3A2/7).
Corpo cultural Medo de não estar à altura (2J1/5). Tapamo-nos da cabeça aos pés, numa capa
(...) que nos torna todos iguais (6U7/13).
Corpo inconsciente Medo de alguns sonhos (3M1/4). O meu problema é das coisas que eu nem
tenho consciência que poderia fazer mas que
não faço porque tenho medo (4U38/2).
Corpo sensitivo Medo da minha experiência [intuitiva] de
= exemplo não significativo =
Deus (7K4/3).
Tabela III.9 – Correspondência dos sete corpos com tipos e efeitos de medo identificados no grupo de pesquisa.

6. O sentido dos efeitos do medo: a negação de nós mesmos

- “E lembro-me de todas as semanas ter de me ir confessar. Havia perguntas que os padres faziam
que eu nem sabia o que aquilo era mas, pelo sim pelo não, eu dizia sempre que sim (...). E eu
nem sabia o que eram maus pensamentos ou maus desejos, com sete ou com oito anos nesse
tempo. Mas eu pensava (...) «pelo menos já me livro de tudo; levo alguma penitência, eu rezo tudo
e a coisa fica»” (3A2/7).
- “Seja o que for, eu, pelo sim pelo não, digo «desculpa». É absolutamente automático. Nem que
não tenha nada a ver comigo muitas vezes. E depois é muito difícil retirar um pedido de
desculpas” (7I16/1).

Quatro são as sessões que distanciam as situações relatadas que aqui coloco. Acredito,
por isso, que os dois discursos não se influenciaram – mas, além daquela distância e de
terem sido proferidos por pessoas diferentes, referem-se também a épocas, contextos,
idades e estados da vida muito distintos.

351
Contudo, a semelhança entre as duas frases salta à vista pela ligação que estabelecem
entre o medo e a culpa: um mesmo desconfiar de si mesmo; um mesmo assumir, “pelo
sim pelo não”, de uma falta ou erro que não é seu; um mesmo querer libertar desse peso,
nem que isso acarrete algum tipo de expiação. Em suma, um mesmo permitir que, pela
fricção entre as nossas experiências interiores e exteriores, o eu dos acontecimentos se
deixe levar por forças que, em última análise, desvirtuam ou impedem a verdade do Ser
(Moffit, 2003b; Ribeiro Dias, 2000:141).

Categorias de Efeitos do Medo Referências %


Alterações da vida quotidiana 6 4.26
Anulação da diferença 3 2.13
Criação de dependências 9 6.38
Criação de um mundo irreal 11 7.80
Desistência do Eu 20 14.18
Dificuldade de comunicação 18 12.77
Estimulação da acção 4 2.84
Fuga das situações 12 8.51
Não consciência 3 2.13
Paralisação 14 2.93
Resistência ao compromisso 4 2.84
Sentimento de culpa / avaliação 8 5.67
Sofrimento 14 9.93
Somatização 15 10.64
Total 141
Tabela III.10 – Percentagens de categorias de efeitos do medo identificados no grupo de pesquisa.

Por outro lado, se olharmos os EFEITOS DO MEDO a partir do PONTO DE VISTA


QUANTITATIVO (tabela III.10), a subcategoria que apresenta uma maior percentagem de
ocorrências é aquela que denominámos “desistência do eu” (14.18%):

- “Não me importava nada de, de repente, aparecer com 60/70 anos” (3O4/13).
- “O meu «mais eu» desconhecido porque nem me atrevo a olhar para ele” (4U38/4).
- “O medo pode fazer com que abandonemos coisas que dantes gostávamos” (6K7/3).

Mas se esta subcategoria é aquela que congrega relatos em que, de uma forma mais
directa, fica evidente a perda do sentido de identidade, entendo que esta perda também
está subjacente em todas as outras – perde-se consciência do “eu real” de cada vez
que se anulam as diferenças, de cada vez que se criam dependências, de cada vez que
se foge das situações, de cada vez que se limita a comunicação, de cada vez que se
sofre “sem sentido”, etc.
- “O sofrimento “com sentido” é capaz de enfrentar o medo e permite chegar até à medida das
nossas possibilidades. A verdadeira aprendizagem é a que nos possibilita descobrir o porquê,

352
para quê, de toda a realidade. Só o “porquê” e o “para quê” unidos formam a ponte que nos
permite superar o medo e depois vencer o “sem sentido” e tornar a realidade inteligível, com
sentido e amada (6L1/2c).

Julgo, por tudo isto, que se quiser encontrar um denominador comum para os efeitos
“negativos” do medo, o posso encontrar, exactamente, na “negação de si mesmo”.

7. Outra face dos medos e dos efeitos do medo – nós e os outros... no mundo

Mas se os medos, por si, só provocam efeitos, “mexer nos medos”, reflectir e trabalhar
sobre eles, também os provoca. Em mais do que uma sessão do grupo, os redactores
da acta concluíram-na assim:

- “O nosso encontro terminou pelas 20.20 horas e, como se vem tornando hábito, as pessoas
despediram-se e foram felizes e inquietas para casa...” (acta da 5ª sessão).

Contudo, pelo menos neste caso, mexer nos medos em contexto de formação também
levou a entender que estes, ao invés de sempre nos limitarem e separarem das outras
pessoas e da nossa essência, também nos podem ajudar a ganhar consciência de que
somos seres em relação, a perceber o que nos é comum e que todos estamos ligados:

- “O medo faz-me recordar que sou um ser finito, não suficiente e que preciso do outro (o próximo)
e do Outro (o transcendente) para enfrentar a vida” – extracto de um diário de campo.

2.4 Síntese do “o quê”

Apesar de, em si mesmo, não ser coisa boa nem má, mas circunstância da própria
existência humana, o medo afecta a nossa vida pela forma como é olhado e sentido.

1. Os medos, com os seus múltiplos DISFARCES, encontram “legitimidade” (força e


espaço) nas ambivalências do medo. Com a justificação, consciente ou não, de que

353
uma coisa pode ser (só) a outra, perdemos de vista a riqueza contida na totalidade
dessa ambivalência e atribuímos os medos e suas motivações às circunstâncias ou
a outros. Deste modo, e utilizando muitas vezes RESPOSTAS REFLEXAS em vez dos
movimentos da acção e da mudança, DESCONHECEMOS, RECUSAMOS ou NEGAMOS
também parte da VERDADE DE NÓS MESMOS e permitimos que o medo se converta
num disparador de DUALIDADES desintegradoras e limitadoras e se revele, por isso,
como INFIDELIDADE A NÓS MESMOS. Aí, e enquanto separação do “verdadeiro agir do
ser” (Sérgio, 2005b:22), o medo mora na pouca consciência das possibilidades de
definição de novos caminhos.

2. O que é, então, uma vida seja serena, útil e corajosa? Na introdução a esta
pesquisa, defini uma vida SERENA como sendo de descoberta de relação e de
sentido dos diversos tempos de vida, uma vida ÚTIL como sendo portadora de valor
e uma vida CORAJOSA como sendo uma vida de plenitude. Agora, frente ao medo e à
forma como pode ser olhado e sentido, posso dizer que uma vida assim é uma vida
em que: em vez da negação de si mesmo, se reconhece a própria essência; em vez
do disfarce, se vive a integridade; e em vez da dualidade, se constrói a totalidade.

“o que faz com que uma vida “o que faz com que uma vida
não seja seja
serena, útil e corajosa?”. serena, útil e corajosa?”.
Disfarce Integridade
Desconhecimento e Negação de si mesmo Reconhecimento e Unidade de si mesmo
Dualidade Totalidade
Tabela III.11 – Síntese da leitura.

3. Como se faz, neste caso, a passagem do “não ser” ao “ser” de uma vida assim?
Faz-se pela ACÇÃO. Este é o eixo central e o propósito do ponto seguinte.

354
355
356
QUEM
definições e caracterizações do medo
definição de medo
representações simbólicas do medo

corpo emocional-mental
medo da decisão corpo emocional-mental-espiritual
ou transcendente

corpo físico
medo da intimidade-comunicação
consigo mesmo corpo físico-emocional-cultural

corpo mental

medo da loucura corpo emocional-mental

corpo físico-emocional

corpo cultural
medo de não corresponder
aos próprios valores corpo cultural-mental

relacionados com o Eu corpo espiritual ou transcendente


medo de não corresponder corpo emocional
às próprias expectativas
corpo mental

corpo espiritual ou transcendente

corpo mágico ou místico


medo do existencial
corpo espiritual ou
transcendente-cultural

medo do medo corpo mental

corpo físico

1. O QUÊ relação e explicação dos medos corpo inconsciente


medo do sofrimento físico
corpo físico-espiritual ou transcendente
2.5 Categorias de Análise
corpo cultural
medo da avaliação dos outros
corpo cultural-emocional

corpo físico

medo da dependência corpo emocional

corpo físico-emocional

medo da intimidade-comunicação corpo emocional


com os outros

relacionados com os Outros medo de ficar só corpo emocional

medo de mitos corpo cultural

medo de ser diferente corpo cultural

medo do compromisso corpo cultural

corpo emocional
medo do conflito
corpo emocional-mental

medo do desconhecido corpo emocional

corpo físico
relacionados com o Cosmos medo do cosmos
corpo transcendente

efeitos do medo
perguntas do grupo que ficam em aberto

COMO
POR QUÊ
PARA QUÊ
1. QUEM
2.1 definição de medo
2.2 relação e explicação dos medos
2.3.1.1.1 corpo mental

2.3.1.1 alteração da vida quotidiana 2.3.1.1.2 corpo físico

2.3.1.1.3 corpo físico-emocional

2.3.1.2.1 corpo emocional

2.3.1.2.2 corpo transcendente

2.3.1.2.3 corpo mental

2.3.1.2.4 corpo inconsciente


2.3.1.2 desistência do eu
2.3.1.2.5 corpo emocional-mental

2.3.1.2.6 corpo físico-emocional

2.3.1.2.7 corpo
mental-emocional-transcendente

2.3.1.3 estimulação da acção 2.3.1.3.1 corpo mental

2.3.1 na relação com o EU 2.3.1.4 não consciência 2.3.1.4.1 corpo mental

2.3.1.5.1 corpo emocional

2.3.1.5.2 corpo mental


2.3.1.5 paralisação
2.3.1.5.3 corpo físico-emocional

2.3.1.5.4 corpo emocional-mental

2.3.1.6.1 corpo mental


2.3.1.6 sentimento de culpa / avaliação
2.3.1.6.2 corpo emocional-mental

2.3.1.7.1 corpo emocional


2. O QUÊ 2.3 efeitos do medo
2.3.1.7.2 corpo físico
2.3.1.7 sofrimento
Categorias de Análise 2.3.1.7.3 corpo físico-emocional

2.3.1.7.4 corpo emocional-mental

2.3.1.8 somatização 2.3.1.8.1 corpo físico

2.3.2.1.1 corpo cultural


2.3.2.1 anulação da diferença
2.3.2.1.2 corpo emocional

2.3.2.2 criação de dependências 2.3.2.2.1 corpo emocional

2.3.2.3.1 corpo mental

2.3.2.3.2 corpo emocional

2.3.2.3 dificuldade de comunicação 2.3.2.3.3 corpo emocional-mental

2.3.2 na relação os Outros 2.3.2.3.4 corpo físico-emocional

2.3.2.3.5 corpo emocional-cultural

2.3.2.4.1 corpo emocional

2.3.2.4.2 corpo mental


2.3.2.4 fuga das situações
2.3.2.4.3 corpo físico

2.3.2.4.4 corpo físico-emocional

2.3.2.5 resistência ao compromisso 2.3.2.5.1 corpo cultural

2.3.3.1.1 corpo cultural


2.3.3 na relação com o Cosmos 2.3.3.1 criação de um mundo irreal
2.3.3.1.2 corpo mágico

2.4 perguntas do grupo


que ficam em aberto

3. COMO
4. POR QUÊ
5. PARA QUÊ
Os mestres da Índia relatam um conto muito significativo.
Um leão estava sedento. Dirigiu-se a um lago que havia na selva com a intenção de aí
saciar a sua sede. Quando ia beber nas suas águas, viu nelas reflectido o seu próprio
rosto. Atemorizado, pensou: “Este leão deve ser o guardião do lago! É melhor não
confiar!” E foi-se embora a correr. Mas como tinha muita sede, voltou pouco depois. Ao
ver o leão na água, rugiu para o assustar e então viu o rosto feroz do guardião do lago.
Aterrorizado, saiu a correr. Mas tinha tanta sede que não conseguiu resistir. Por isso
voltou de novo ao lago, disposto a morrer por ele. Aproximou-se das águas. Ali
continuava o guardião. Enfureceu-se, mas o leão do lago também. O leão estava
aterrado, mas era tanta a sua sede, que rapidamente meteu a cabeça na água,
esperando ser devorado pelo leão do lago. Então, a imagem desapareceu.
O leão tinha confrontado o terror e o fantasma do medo tinha-se desfeito.
Ramiro Calle

3. Como pode o educador lidar com o seu medo e, por isso,


ajudar as pessoas a enfrentarem os seus medos e a
terem uma vida serena, útil e corajosa?162

Com base na leitura dos dados da pesquisa, procuro agora responder à pergunta
central desta investigação, aquela que (tendo subjacente a ideia da interligação entre o
crescimento do educador e o crescimento do educando), procura perceber de que
maneira se podem criar competências que, no processo de desenvolvimento humano,
possibilitem lidar com o medo.

3.1 A vivência da totalidade

De entre o conjunto das cinco categorias-base que desenham os resultados da análise


de dados, a categoria processual (“como”) é aquela que congrega uma maior
concentração de sub-categorias criadas com base em referências da revisão
bibliográfica do tema da investigação. Neste contexto e na distinção entre:
a) formas de lidar com o medo que se centram na CONSERVAÇÃO porque, embora
conscientes, se revelam muitas vezes “sem sentido e não passam163 de mera
agitação ou capricho” (Sérgio, 2005b:19);
b) formas de lidar com o medo que se centram no DESENVOLVIMENTO HUMANO
porque são “o resultado (...) do nível de consciência que orienta o movimento e
do poder da mudança” (Feitosa, 2006:89),
162
Ver excerto do mapa mental das categorias de análise no final deste ponto do capítulo.
163
Os sublinhados são meus.

357
o conceito de ACÇÃO e, nomeadamente, de ACÇÃO INTENCIONAL, aparece como central.
No seu sentido profundo implica TOTALIDADE e, por extensão e afinidade, COERÊNCIA.

Entre as várias manifestações que esta tríade ACÇÃO-COERÊNCIA-TOTALIDADE assume,


quero começar por realçar especialmente uma que, trespassando várias das categorias-
base, foi vivida como uma preocupação repetida ao longo do trabalho do grupo de
pesquisa – a necessidade de perceber e encontrar a forma de, em contexto de
educação de adultos, fazer uma ligação dinâmica entre o pensar e o sentir. Presente
também em trabalhos de autores como Saturnino de la Torre e Maria Candida Moraes
(2007)164 (e que eles sintetizam no neologismo sentipensar), esta preocupação ficou
expressa nos relatos das sessões em situações como estas que aqui se colocam:

- “O que é que eu tenho que fazer para passar do saber ao sentir?165 / (....) O meu corpo mental
pensa para um lado e o corpo emocional sente para outro. E o corpo emocional ainda não se
livrou destes medos, destes abandonos, destes falhanços e dessas coisas …166 (...) (4U11/3 /
4UH12/1).

- “Por que é que eu nunca fui capaz de aprender a nadar? (...) À medida que for sendo capaz de
perceber que as minhas forças são suficientes para me manter à superfície, sou capaz de lidar
[com o meu medo de nadar, de me afogar, de perder o pé, de não controlar a situação]. É não
pensar nisso” 167(4E17/1).

- “Uma das coisas mais perturbadoras destas sessões, entre muitas que aqui foram ditas, de ir para
casa a pensar na questão, para mim foi esta do sentir e do pensar. E de pensar e tentar
compreender onde está o equilíbrio em tudo isso”168 (7M5/1).

164
Tendo como referencial uma perspectiva integrada da realidade (o que sucede no nosso microcosmos é
uma projecção do que existe no universo), de autores que, como Morin, Maturana, Varela, Capra, Damásio,
Csikszentmihalyi e Prigogine e outros, configuram o paradigma eco-sistémico, Saturnino de la Torre e
Maria Candida Moraes usam a expressão sentipensar para “ilustrar a mudança de paradigma na ciência e
algumas das suas consequências na educação”. Pela fusão dos processos de perceber, sentir, pensar e
actuar e pela promoção do desenvolvimento de estratégias adequadas na formação de professores, o
projecto sentipensar, integrado no programa “Educando para a Vida”, procura diminuir a distância entre os
saberes académicos e a vida real (www.sentipensar.net).
165
Categorização: como, pergunta em aberto.
166
Categorização: porquê, razões do medo.
167
Categorização: como, desenvolvimento humano, o que aprender.
168
Categorização: quem, efeitos por participar.

358
Relacionando o contido nestas frases, isto significa que se “o corpo mental pensa para um
lado e o corpo emocional sente para outro” (isto é, se existe dualidade e incoerência entre o
pensar e o sentir), podemos deparar com duas situações: (1) a questão de que ser
“capaz de perceber que as minhas forças são suficientes” não é perceber no mental, mas é sentir
– no mental já percebe, já sabe, mas isso não leva a nadar; (2) questão de que, “para
entender onde está o equilíbrio em tudo isso”, não basta que, no campo dos sentimentos, tenha
sido vivido como “uma das coisas mais perturbadoras” – é preciso que também seja percebido
no campo do mental. Estamos perante a necessidade de dois tipos de conhecimento –
o conhecimento do pensar, que, tradicionalmente, tem sido privilegiado pela cultura
ocidental; o conhecimento do sentir, que, tradicionalmente, tem sido privilegiado pela
cultura oriental. “Enquanto os Ocidentais se apoiam em métodos de cariz científico, os
Orientais apoiam-se nos factos básicos vividos, na experiência assimilada” (Sousa,
1998:126).

- “É interessante a distinção que se está a fazer entre o saber e o sentir. Só quem vive mesmo isso
pode entender o que se passa aí. Saber que “eu sou inteligente” e “sentir que sou inteligente”.
Quando falámos de nós mesmos, falamos do que sabemos. Falar do que eu sei de mim é muito
diferente de falar do que eu sinto de mim” (4K1/1).

- “Será que se sabe o que não se sente?” / “Acho que eu posso saber e sentir o que sei. Mas nem
sempre vou sentir o que sei!” (4J21/1; 4K2/1).

Assim, e muito embora esta questão do sentir-pensar não tenha sido dado por
encerrada nas sessões do grupo, nem, na análise de dados, tenha ficado expressa
numa subcategoria única e distinta (pois, como disse atrás, atravessa várias das
categorias-base), ela está presente em toda a toda a proposta que aqui se desenvolve
através da categoria/conceito de “acção”. Sendo ACÇÃO “qualquer acto intencional,
interno e externo, observável e não observável” (Trigo, 2006:64), este
conceito/categoria incorpora dois grupos de movimentos e dimensões (conceitos/sub-
categorias dele derivados) que, afectando-se mutuamente, se podem transformar em
“expressão da natureza humana em processo de estar sendo” (Freire, 2000:87):

359
a) Os “movimentos centrífugo e centrípeto em direcção à transcendência” (Sérgio,
Apud Sérgio & Toro, 2005:105) que, na sua perspectiva de TOTALIDADE, animam
as dimensões da corporeidade humana.
b) Os movimentos de tomada de consciência, de assumir, de tomada de decisão,
de decidir e de execução que, quando em COERÊNCIA, configuram a mudança
(Trigo, 2006; Feitosa, 2006).

Neste enquadramento, e tal como não é (só) lendo livros que se aprende a subir à
montanha, mas subindo e estudando a montanha, também aqui se mostra que não é
fazendo um caminho isolado que se aprende a lidar com o medo – “não é só o caminho da
testa para cima, mas é o caminho que envolve o meu ser total” (4U48/1).

Por isso e porque, confirmando o atrás já dito, o todo está presente na parte e a parte
no todo, importa que a dinâmica da relação do pensar-sentir se faça presente no e pelo
MÉTODO VIVENCIAL para que, utilizando a parte, se possa aceder às certezas, forças e
coragem do todo – isto é, às certezas, forças e coragem do Eu-eu mesmo de Whitman
(Ribeiro Dias, 2000), das dimensões da minha identidade e dos laços de ser que
estabeleço com os outros no mundo.

“Homem e mulher não são seres isolados, mas integrados na cultura, na natureza e no
cosmos. Em consequência, existe uma estreita vinculação entre as operações mentais
de perceber, sentir, pensar e actuar. Assim, pois, o Sentipensar não é mais do que uma
proposta operacional de uma nova concepção na construção do conhecimento que
169
melhor expressa o funcionamento da vida e da realidade” (Torre & Moraes, 2007) .

3.2 Formas de (não) lidar com o medo

Encontro uma ligação muito estreita entre os resultados anteriormente apresentados na


caracterização do medo e dos seus efeitos170 e as formas de lidar (ou de não lidar) com
o medo que agora surgem na leitura dos dados – de algum modo, é o sentir que o eixo
central da categoria “o quê” se converte no “modus operandi” que resulta da categoria
169
www.sentipensar.net/presentacion.html (01.10.07).
170
Ver 2.2 deste capítulo – “Definição e caracterização do medo”.

360
“como” (tabela III.12). É pela VIVÊNCIA da TOTALIDADE (do reconhecimento de si mesmo
e da coerência), ou da DUALIDADE (da negação de si mesmo e do disfarce), que se vai
sendo, ou não sendo, tal vida.

“O medo é uma emoção natural que todas as criaturas compartilham. Se a pessoa nega
o seu medo, está negando a sua humanidade” (Lowen, 1997:236)

UMA VIDA SERENA, ÚTIL E CORAJOSA


SIM NÃO
Integridade = reconhecimento de si mesmo / Disfarce = negação de si mesmo / dualidade
O Quê
totalidade
ACÇÃO
Como
Desenvolvimento Humano = coerência / totalidade Conservação = disfarce / dualidade
Tabela III.12 – Correspondência entre o eixo central da categoria “o quê” com o eixo central da categoria “como”.

E para melhor explicar o que encontro nos dados, começo por também reformular a
pergunta da investigação agora em causa:

“Como pode o educador não lidar com o seu medo


e, por isso, não ajudar as pessoas a enfrentarem os seus medos
e terem uma vida serena, útil e corajosa?”

Os resultados da análise fazem entender que, qual cão que morde a sua própria cauda,
não lidar com o medo é, muitas vezes, alimentarmo-nos daquilo que nos faz sofrer. Isto
é, mantendo, também aqui, ESTRATÉGIAS DE DISFARCE E DE NEGAÇÃO DE NÓS MESMOS, é
pela paralisação de actos e do pensamento, pela continuidade e CONSERVAÇÃO das
situações criadas, que deixámos que “os medos [sejam] maiores que os sonhos” (4J23/1):

a) Não tomando consciência, mas FINGINDO ou AUTO-ENGANANDO-nos.


- “Eu sei que, cá dentro, há qualquer coisa que é capaz de acordar um bocadinho o tal
medo. Prefiro que esteja bem... desconhecido (3O5/1).
- “Sou muito analítica e (...), às tantas, de tanto se pensar e analisar, fico sempre a pensar
o que é que estou a esconder de mim própria - no que aquela razão toda, o que é que
aquele raciocínio todo evita” (7I14/2).

b) Não assumindo, mas RELATIVIZANDO ou USANDO “POÇÕES MÁGICAS”.

361
- “Tenho esses medos que acho que são medos universais” (3M1/17).
- “E ando sempre com xanax na carteira (...). Mas também é por uma questão de
segurança” (3O4/20).

c) Não decidindo, mas FUGINDO ou EVITANDO.


- “E durante esse exercício de relaxamento, eu dormi muitas vezes. A sério!!! Dormi muitas
vezes… Mas sabe… talvez... foi uma forma de eu evitar o contacto com um certo medo
da fase da minha adolescência” (2K3/3).

d) Não executando, mas ACEITANDO VIVER NA MEDIOCRIDADE.


- “Uma estratégia que a gente fica tentado a fazer é ficar tudo morno (…). E há muita gente
que prefere o nada para evitar o sofrimento” (4J24/1).
- “Ao ter medo de ser abandonada então prefiro ficar só. (...) Aquilo de que eu tenho medo
é exactamente a estratégia que eu uso para o evitar” (4U55/1;56/1).

Contudo, e da mesma maneira que atrás identificava “medos de gente madura” como
marcas das necessidades do ser (e, por isso, não os considerava medos, mas desejos
e sonhos)171, também um certo tipo de fuga, apesar de permitir a continuidade de uma
dada situação, pode ser uma acção que, ao nível do não observável, promova o
movimento e o poder da mudança (Feitosa, 2006:89).

- “Uso a fuga quando acho que não possuo força suficiente para vencer o objecto do medo,
nem com a ajuda dos outros. Mas isso está na linha de algo que vejo que não interfere nos
meus sonhos” (3K2/11).

- “Quando uma pessoa decide experimentar uma vez, e outra, uma determinada acção, (…) e
resolve dizer «Não! Eu vou desistir disto, isto não é para mim» e, então «vou fazer outra coisa
em que seja mais feliz!». Até que ponto é que isto é deixar para trás? Se calhar, o caminho,
que não parece ser o caminho certo, é dizer «Não! Vou procurar qualquer coisa onde eu seja
mais eu» (...). É sempre difícil avaliar aqui qual é o acto de coragem” (4M12/1).

O que distingue uma “fuga” da outra? Como se distingue o que é “fugir” ou “não fugir”?
Também aqui são os SONHOS, INTENÇÕES e ANSEIOS que, sob a forma de consciência e

171
Ver 2.3 deste capítulo – “Relação de medos e efeitos do medo”.

362
COMPREENSÃO DO SENTIDO DE VIDA, fazem com que “fugir, ou não fugir?” deixe de ser a
questão. E porque “perante uma [mesma] situação quem está no exterior pode chamar imensas coisas
– coragem, cobardia...” (6M20/1), só cada um, dentro de si mesmo, na sua interioridade, no
conhecimento de si mesmo, o pode diferenciar.

“Poucas coisas acontecem sem um sonho. E para acontecerem grandes coisas, é


preciso que haja grandes sonhos. Por trás de uma grande conquista existe um sonhador
de grandes sonhos. São precisas muitas mais coisas do que um sonhador para fazer
com que as coisas se tornem reais; mas o sonho tem de ser a primeira de todas”
(Greenleaf, 1991:9).

3.3 Brincando com números

“Há uma nítida tendência em direcção a um conhecimento mais vivido, a um


conhecimento mais visceral, mais próprio ao ser humano. Neste nível de conhecimento,
estamos num terreno onde não falamos simplesmente de aprendizagens cognitivas e
intelectuais, que sempre podem ser comunicadas em termos verbais. Ao contrário,
estamo-nos referindo a algo mais «vivencial», algo que abrange a pessoa inteira, tanto
as reacções viscerais e os sentimentos como os pensamentos e as palavras” (Rogers,
1983:4)

Nas nossas sessões de trabalho, identificámos 186 referências a “tipos de medos”172 e


193 indicações de “formas de lidar com o medo que promovem o desenvolvimento
humano” (tabela 3.13). Assim, e ainda que, pela falta de elementos para comparação,
não saiba se, em si mesmos e/ou num contexto de trabalho deste tipo, os valores são
altos, médios ou baixos, não deixa de ser curioso notar que as pessoas têm (ou
revelam) tantos “padecimentos” quantos “remédios” ou “processos de cura”. Será que
não ter revelado mais medos é outro sinal dos níveis baixos de riscos assumidos pelo
grupo173?

172
Ver Anexo 5 – “2. O quê”.
173
Ver resultados da análise do clima do grupo – 1.2 deste capítulo.

363
Tomada de consciência, o que aprender
Exemplo – “Se eu tenho medo de perder alguma coisa, o meu medo é tanto mais
forte quanto mais me parece que eu sou e existo nisso que receio perder. (...) Na 116
medida em que eu for capaz de perceber, por dentro de mim, que posso continuar
vivendo, existindo e sendo eu para além disso, sou capaz de me ir libertando do
medo. Agora, esse caminho, fazer esse caminho, isso é que é o difícil” (4E16/1).
Assumir a responsabilidade
Exemplo – “Assumir que a responsabilidade é minha, isso é que é o difícil” 1
(6U21/1).
Tomada de decisão, condições da mudança
Exemplo – “Fica depois a possibilidade de uma escolha (...): ou retomar toda 33
aquela aparente tranquilidade, ou decidir mudar toda essa situação” (6U7/12).
Estratégias e execução
Exemplo – “Ia com os sentidos o mais alerta possível, por uma questão de 43
precaução” (9L1/11).
TOTAL 193
Tabela III.13 – Número de referências a formas de lidar com o medo que
promovem o desenvolvimento humano em função dos momentos da acção e da mudança.

E se a esta incerteza sobre o número aparentemente elevado de “remédios”


identificados nas sessões (pelo menos face ao número de “padecimentos”), acrescentar
que, em todo o processo de análise, só foram categorizadas 17 situações em que os
participantes apresentaram “razões para não terem medo”174?

Exemplos de razões para não ter medo:


- “Eu estou na mão de Alguém que é superior a mim e que conduz a minha vida” (3A2/12).
- “É o passar por essa experiência que nos fortalece e, se calhar, nos ajuda a vencer o medo e
deitá-lo para trás das costas” (4M14/1).

Não confirma isto, como se dizia no exemplo de “tomada de consciência” acima


transcrito (tabela 3.13), que “fazer esse caminho, isso é que é o difícil” (4EC16/1), ou, dito de
outra maneira, que não é o “saber” que garante a “cura”? Como refere Marina, citando
Richard S. Lazarus, as estratégias de enfrentamento são “esforços cognitivos e de
conduta que se desenvolvem para lidar com solicitações externas ou internas que o
sujeito avalia como superiores aos seus próprios recursos” (Marina, 2006:39).

Mas, mais do que (pelo menos para já), procurar encontrar outras respostas, talvez
valha a pena continuar a brincar com os números da tabela III.13 para calcular e

174
Anexo 5 – “4. Porquê” – causas do não medo.

364
comparar os valores percentuais das referências aos “movimentos e momentos da
acção e da mudança” aí referidos (tabela III.14).

Movimento e Momentos da Mudança Referências %


Movimento Centrífugo
a) tomada de consciência, o que aprender 116 60.10
b) assumir a responsabilidade 1 0.52
c) tomada de decisão, condições da mudança 33 17.10
Subtotal 150 77.72
Movimento Centrípeto
d) estratégias de execução 43 22.28
Subtotal 43 22.38
Total 193 100,00
Tabela III.14 – Referências a formas de lidar com o medo que promovem o desenvolvimento humano.

Também aqui a disparidade encontrada é muito grande.

a) Parece reflectir, por um lado, a atenção e importância dadas à necessidade


de “tomar consciência” do que com a pessoa e com os seus medos se passa
(60.10%) e, por outro, a quase nula atenção ou conhecimento da
necessidade de “assumir a responsabilidade” por aquilo que nela se passa
(0.52%).

b) Mas parece reflectir também alguma tendência para se ficar preso nos níveis
não observáveis da acção, os do “movimento centrífugo” (77.72%), e para se
ter dificuldade em passar à sua exteriorização, o do “movimento centrípeto”
(22.28%). Correr-se-á o risco de se perder a dinâmica da totalidade, de se
desperdiçar a força e o élan do movimento centrífugo da acção (Sérgio,
1999) e, com isso, de se ganhar a fragilidade e rigidez da dualidade?

E se, quem tem esta dificuldade assumir a responsabilidade de passar à exteriorização,


for educador? Que riscos corre a sua capacidade de educar, a sua capacidade de
liderança? Terá de se esquivar e dizer (como o coelho da história de “Alice através do
Espelho”, de Lewis Carroll), “geralmente até sou muito corajoso, (...) mas o que
acontece é que hoje estou com uma dor de cabeça” (Apud Sturner, 1997:159)?

Será isto só especulação? Será que, porque estes dados não foram criados para este
fim, é abusivo fazer estas leituras? Talvez. Mas os números são curiosos e continuam a

365
desafiar a (minha) imaginação. Atrevo-me, por isso, e ainda só olhando para os
números, a colocar outras interrogações, mesmo que também elas especulativas:

c) Será que, se aqueles resultados correspondessem (ou corresponderem?...)


ao modo como as pessoas efectivamente lidam com os seus medos,
poderíamos criar o cenário de que, apesar da consciência do terreno que se
pisa, isto é, do/s medo/s que se vive/m (mas porque não se assume como
responsabilidade pessoal o que nesse terreno existe), A PROBABILIDADE DE
DECIDIR E EXECUTAR A MUDANÇA É RELATIVAMENTE BAIXA (17.1 e 22.28%,
respectivamente), em relação ao que se poderia esperar frente à consciência
do que existe?

d) Será que aquela disparidade é, em si mesma, um outro exemplo de


ESTRATÉGIAS DE DISFARCE que (por não se assumir a responsabilidade
daquilo de que se ganhou consciência), permitem alguma continuidade das
situações criadas e limitam o acesso a níveis mais elevados de
desenvolvimento humano? Será que aquela disparidade também pode
corresponder ao que José Gil identifica como sendo “toda essa actividade
saltitante do «toca e foge», esse constante desassossego dos portugueses”
que constitui o “medo de inscrever, (...) de existir, de afrontar as forças do
mundo desencadeando as suas próprias forças de vida”? (Gil, 2005:84;78)

e) Será que uma das razões para uma percentagem tão baixa de “assumir a
responsabilidade” reside nalguma CONFUSÃO ENTRE SER CULPADO E SER
RESPONSÁVEL? Enquanto a culpa, especialmente “quando não é reacção à
voz da consciência, mas compreensão da desobediência contra a autoridade
e medo da represália” (Neill, 1971:xxi), pode tender para a imobilização (e a
culpa é, só por si, um dos efeitos do medo), o assumir dinâmico de uma
responsabilidade (pelo movimento centrífugo que desencadeia e pelo que de
maturidade comporta) pode fazer “sair do círculo vicioso da culpabilidade (...)
para adoptar uma postura mais activa: que posso fazer com os meus
medos?” (Marina, 2006:23). Estaremos tão dependentes de “subsídios”
alheios que não encaramos as possibilidades contidas na nossa própria
autonomia para, assumindo como nossa a responsabilidade pela resolução

366
das situações criadas, sermos capazes de avançar para outras fases da
mudança (Espírito Santo, 1985)?

f) Dado que “normalmente [quando] outros se acostumaram a interagir de uma


certa maneira e esse padrão é quebrado, surgem conflitos em diferentes
graus” (Jeffers, 1991:89), será que o importante não é saber o que os outros
fizeram de nós, ou saber o que fazer com o que os outros fizeram de nós,
mas aprender o que fazer com o medo daquilo que os outros ainda vão
tentar fazer de nós?

g) Será que aquela disparidade confirma que lidar em profundidade com o


medo é, de facto, TAREFA PARA GENTE MADURA? Será que isso justifica que,
no propósito desta pesquisa, se tivesse definido como preferencial o
contexto de educação de adultos para aplicação dos procedimentos e
estratégias didácticas?

h) Ou será que aquela disparidade-dualidade-incoerência é sinal da (sempre)


DIFÍCIL RELAÇÃO TEORIA-PRAXIS? “A práxis (...) é reflexão e acção dos homens
sobre o mundo para transformá-lo (...). O mero reconhecimento de uma
realidade que não leve a esta inserção crítica (acção já) não conduz a
nenhuma transformação da realidade objectiva, precisamente porque não é
reconhecimento verdadeiro” (Freire, 2003:38). Sendo o grupo constituído por
pessoas de elevado grau de formação académica (“intelectuais/mentais”?),
maioritariamente professores-educadores, teremos mais facilidade em gerir
mentalmente o conhecimento do que em encarnar (pensar-sentir) esse
mesmo conhecimento?

Estas são algumas reflexões e perguntas por ter brincado com os números. Não obtive,
talvez, muitas respostas, mas obtive, seguramente, mais inquietações. Preciso, por
isso, ver agora para lá dos números e retomar as ideias que estão contidas nas
categorias que lhes deram origem.

367
Assim, e deixando para momento próprio a descrição detalhada dos princípios
educativos que podem servir de base a um programa de educação de adultos 175, passo
a fazer a leitura do que, só em termos do PROCESSO, são as suas interligações com o
que foi considerado como cerne desta categoria.

3.4 O processo de lidar com o medo

Depois de termos distribuído as “formas de lidar com o medo” identificadas pelos quatro
momentos da acção e da mudança176, vimo-nos na necessidade de avançar para a
produção de novas subcategorias que, esmiuçando a variedade de ideias e sugestões
aí contidas, criassem a estrutura de uma proposta didáctica para lidar com o medo. E
um dos momentos mais gratificantes da análise de dados aconteceu quando, já no seu
final, nos pudemos distanciar do trabalho feito e olhar a imagem geral do quadro de
categorização assim criado. Mais do que reunir, inter-relacionava o disperso nos
diálogos do grupo e, nessa nova expressão da sua experiência e do seu saber, não só
congregava e potenciava contribuições de diversos autores e quadrantes, mas também
se tornava naquilo que Paulo Freire refere ser “uma devolução organizada,
sistematizada e acrescentada”:

“Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo programático da


educação não é uma doação ou uma imposição – um conjunto de informes a ser
depositado nos educandos – mas a devolução organizada, sistematizada e
acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma
desestruturada” (Freire, 2003:84).

É essa nova estrutura-expressão da experiência e do saber do grupo que agora passo a


apresentar e comentar.

175
Ver “IV CO sentido do caminho – 2. Proposta educativa”.
176
Ver “Capítulo 2 Roteiro – 2.4.1 Mapa mental das categorias de análise”.

368
Tal como “os valores não são para ser ensinados, mas para ser vividos” (Maturana,
2000:17), também o eixo central da categoria processual (“como”), “ACÇÃO-TOTALIDADE-
COERÊNCIA”, não é apenas o sustentáculo da metodologia a utilizar na aplicação da
proposta educativa para lidar com o medo, mas tem uma relação profunda com o
propósito de “serenidade-utilidade-coragem” desses mesmos procedimentos (quadro
III.6).

COMO LIDAR COM O MEDO


Movimento Centrífugo Movimento Centrípeto

Tomar Consciência ⊳ Assumir ⊳ Decidir ⊳ Executar

Centrar Agir Celebrar


  
Serenidade Utilidade Coragem

Acção-Coerência-Totalidade
TRANSCENDÊNCIA

Quadro III.6 – Relação entre “serenidade-utilidade-coragem” e o eixo central da categoria “como”.

Em primeiro lugar, porque falar de ACÇÃO é falar da necessidade de criar condições e


espaços para lidar INTERNAMENTE com o medo e, com isso (e tal como fica plasmado
nas subcategorias a seguir exemplificadas), estimular o desenvolvimento de um
movimento centrífugo em que, no silêncio e na serenidade do centrar, se pode fazer a
descoberta da utilidade e do sentido do agir:

a) Reconhecer o que se é.
- SABER QUEM SOU – “Tenho noção que não sabia nada de mim. Nunca [tinha olhado]
para dentro, nunca [tinha feito] uma retrospectiva da minha vida e da maneira como
encarei as coisas – nem sabia fazer isto. E é fundamental para aprender a crescer,
conhecendo-nos. Só assim ultrapassei mil obstáculos que nunca imaginei ultrapassar”
(3O4/14).
- PERCEBER QUE POSSO – “Nós encontramos forças e passamos pelas coisas (...).
Passei a saber que passava a maré. E isso faz-me ir andando de outra maneira – porque
há ali algo importante que já sabemos e que dantes não sabíamos (7I23/1).
- (...)

369
b) Descobrir o que se pode ser.
- VER DE OUTRA PERSPECTIVA – “Por favor deixem que alguns dos meus medos
continuem. Eles, sim, fazem parar a minha vida, mas é para reflectir nas minhas forças,
buscá-las ou rebuscá-las, preparar-me melhor, fazer coligações, se for preciso, para
enfrentar os objectos dos meus medos! Enfrentar e vencer. (...) Deixem que alguns dos
meus medos continuem. Eles são um desafio para mim. Destes medos que são desafios
eu não devo sentir medo. Ao contrário, são a minha força. Permitem que eu canalize a
minha «energia de recuo» para avançar” (Extracto de um diário de campo – 12ª
sessão).
- COMPREENDER O SENTIDO DA MISSÃO177– “Se a pessoa não tiver sido treinada
nessa capacidade de entrar em contacto consigo, com os valores profundos, com aquilo
que é realmente o que se quer guardar até ao fim, a pessoa não vai ter força para
enfrentar os medos” (7L14/3B).
- (...)
c) Aprender como se passa do que se é ao que se pode ser.
- GANHAR CONSCIÊNCIA DO MEDO – “Verificar se o meu medo é real. Há muitos
momentos em que (...) ela diz “não é real, não é real”. Verificar se o medo, afinal, está só
dentro de mim, se o medo sou eu, ou se é algo que me está a ser atirado” (6J34/4).
- APRENDER A CONFIANÇA – “[O medo] pode ser transformado em confiança, em
esperança. Não vale a pena ter medo” (3A3/1).
- APRENDER QUE É UM PROCESSO DEMORADO E DIFÍCIL – “Em relação ao labirinto,
a primeira coisa que pensei foi ele parecer tão pequenino e tão longo ao mesmo tempo.
E pensar (...) que, às vezes, é assim na vida. Parece que está ali ao lado e nós temos de
percorrer, percorrer. Mas (...) as coisas têm mais beleza assim. Se calhar não tinha piada
nenhuma saltar logo ali ao centro e ir buscar a flor” (10M1/1).
- (...)
d) Assumir a responsabilidade nas próprias mãos, reconhecer o valor em
causa, perceber a necessidade da mudança, preparar, acreditar e pensar
positivo.
- “É uma coisa que tem de fazer sozinha. (...) Há decisões que a pessoa tem de tomar
sozinha” (6E17/1).

177
No seu livro “Si Harry Potter dirigiera General Electric”, Morris (2006:71) escreve que “algumas das
pessoas mais corajosas da história da humanidade contaram depois que não se sentiram especialmente
valentes nos momentos dos seus grandes feitos, mas que simplesmente sabiam qual era a tarefa que deviam
realizar e levar a cabo (...). Os seus valores impulsionaram a acção”.

370
- “O amor, a justiça, a verdade, a convicção profunda, como os grandes pontos de apoio
para superar o medo e vencer o sofrimento” (6L1/1).
- “Tento buscar uma confiança também na ajuda dos outros à minha volta” (3K2/8).
- (...)

Em segundo lugar, porque falar de ACÇÃO também é falar da necessidade de criar


condições e espaços para lidar EXTERNAMENTE com o medo e, com isso (e tal como
também fica plasmado nas subcategorias a seguir exemplificadas), estimular o
desenvolvimento de um movimento centrípeto em que no sentido do agir se encontra a
serenidade e o desafio de se ser o que se é:

e) “O tempo do meu mundo” que permite estabelecer e compreender a relação


consigo mesmo, com os outros e com o universo.
- RELAXAMENTO – “O relaxamento teve essa intenção de apelar, por um lado, ao
sentido do corpo, um corpo relaxado, mas um corpo também disponível para se lembrar,
para trazer as suas memórias do medo, pessoais (...). Achamos que essa era a maneira
de podermos ser um pouco mais livres, uma forma de nos trazermos a nós próprios para
aqui” (2I9/1).
- BIOENERGIA – “E chegámos à conclusão que havia várias pessoas que não podiam
gritar (...). Vamos aproveitar, já que estamos aqui, para tentar gritar. Tem de vir tudo da
barriga e do estômago – para vir” (9A3/1).
- UTILIZAÇÃO DA ARTE E DA FANTASIA – “Foi nessa altura que a fantasia começou a
ajudar-me a viver melhor. E agora é o cinema e o teatro” (3J4/9).
- A PELE DA ALMA – “Era mais importante que nós aproveitássemos a noite e que
fôssemos fazer este passeio (...) deixando-nos tomar pelo entrosamento da nossa
relação que está num contexto diferente” (9U4/5).
- SILÊNCIO – “Isto [a actividade proposta] não é para eu sentir medo, ou para perceber
quais são os meus medos desconhecidos. Isto é para me preparar para lidar com os
meus medos conhecidos. Não venho à descoberta do medo, venho à descoberta da
minha interioridade, da minha forma para lidar com os medos que eu sei que tenho. E
ficou claro que a paz era resultado e meio para lidar com os meus medos” (Extracto de
um diário de campo – 9ª sessão).
- (...)

371
f) “O tempo no mundo” que permite ir em frente em função da missão, com
riscos, com esforço, com atenção e prudência, mas também com apoios e
confiança:
- “Se tens medo, não tens mais que fazer senão pôr-te a trabalhar para ver se o assunto
se resolve” (7I2/6).
- “Deixei-me estar no meu sítio e, quando chegou a hora, fui e pronto, passou” (9M1/8).
- “E depois também havia uma certa confiança nos instrutores. Os que estavam em baixo
também ajudaram. Apoiei-me muito na vossa instrução aí em baixo” (9K3a/2).
- “E fiz por ser prudente” (9L1/5).
- (...)

Em terceiro lugar, porque falar da COERÊNCIA que entre os dois tempos assim existe é
falar da importância de criar condições e espaços que desafiem a coragem de manter
os dois movimentos numa força única capaz de desfazer a tentação da dualidade. É o
que os exemplos seguintes procuram mostrar: as inquietações e reflexões de duas
pessoas que, perante a mesma situação e pela mesma razão (a missão de cada um),
tomam decisões diferentes.

- “Até àquela altura ainda não tinha decidido (...). Mas, depois de algum tempo, tentei buscar os
motivos. Por que é que eu ia descer? Por que é que eu ia fazer rappel? Eram doze horas (...)
e a essa hora eu devia estar a (...). E entrei num conflito. E tentei buscar a causa Por que
estava aqui? Por causa de umas pessoas (...). E deu-me um consolo. «Eu não vim fazer um
piquenique. Não vim divertir-me em termos directos. Vim fazer um trabalho. Esse trabalho vai-
me dar uma diversão, mas eu vim fazer um trabalho». (...) Esse problema ficou arrumado.
(...). Quando enfrento os medos? Quando vejo que, por detrás do medo, está um valor. E qual
o valor que encontrei? (...) «Pela (...) eu vou fazer rappel!»” (9K2/12;3/1,3).

- “Quando cheguei lá em cima, eu pensei logo: «Eu não faço, porque não tenho que provar que
consigo vencer o meu medo através do esforço físico (...)». E depois comecei a pensar:
«Então, o que é que me faz vencer o meu medo? É uma missão. É ter missão para o fazer
(...)». E, então, há aquela frase, que eu tenho no meu quadro de cortiça desde que vimos o
filme (...): «Faz o que tem de ser feito sem te preocupares com as consequências». Eu, logo à
noite, quando chegar a casa, vou pôr: «Faz o que tem de ser feito, sem te preocupares com
as consequências, se isso fizer parte da tua missão»” (9J1/18).

372
Finalmente, porque falar de TOTALIDADE é falar da importância de criar condições e
espaços que, no seu apelo para a unificação das dimensões humanas, sejam
oportunidade de celebração da própria TRANSCENDÊNCIA, “o mergulho no insondável
Mistério de vida, de consciência, de comunhão e de amor” (Boff, 1998:110).

- “Quando parámos, ficámos em silêncio – gostei imenso de ter estado deitada a olhar para as
estrelas. O sentir-me identificada com o universo é assim qualquer coisa de fantástico”
(9A1/2).
- “O K. soube tornar aquele momento num momento mágico de relação entre as pessoas. E,
no final, alguma coisa tinha mudado. Posso dizer que foi um momento essencial de
comunicação de almas e entrosamento das pessoas. Tudo o que em conjunto vivemos, a
serenidade e a paz que ali estavam presentes tornaram-nos companheiros de viagem. (...) E
demos beijos e abraços. E a proximidade de pele tornou-se maior” (Extracto de um diário
de campo – 9ª sessão).
- “Depois, houve um segundo momento [mágico], que foi o momento do caminhar sozinho.
Isso, para mim, foi completamente mágico. Houve uma fase em que parei, abri os braços e
agradeci mesmo. (...) E, naquele momento, senti uma sintonia muito forte com o universo e
agradeci por estar vivo e por tudo” (9J1/3-4).

3.5 Síntese do “como”

É pela utilização de uma metodologia centrada na ACÇÃO que se encontra a forma de,
fazendo uma ligação dinâmica entre o pensar e o sentir, passar do mero
reconhecimento de uma realidade à transformação dessa realidade:
1. Criando condições e espaços para LIDAR INTERNAMENTE com o medo que também
estimulem um movimento centrífugo de mudança.
2. Criando condições e espaços para LIDAR EXTERNAMENTE com o medo que também
estimulem um movimento centrípeto de mudança.
3. Buscando a COERÊNCIA entre os espaços internos e externos.
4. Reconhecendo nos dois movimentos a capacidade de TOTALIDADE e transcendência
humanas.

373
Deste modo, a tríade “totalidade-acção-coerência” não constitui só o sustentáculo da
METODOLOGIA de um programa de educação de adultos para lidar com o medo, mas
estabelece uma relação profunda com a outra tríade, “serenidade-utilidade-coragem”
que, enquanto sustentáculo de uma vida plena, constitui o PROPÓSITO desse mesmo
programa:
1. Porque a serenidade pode ser encontrada no espaço interno do centrar.
2. Porque a utilidade pode ser descoberta no espaço externo do agir.
3. Porque a coragem de ligar o centrar e o agir numa força única celebra a
possibilidade de uma síntese que construa o humano.

374
375
376
QUEM
O QUÊ
como os outros reagem aos nossos medos
processo centrado na conservação

liderança

amor
clima necessário
confiança

autonomia e responsabilidade

a) saber quem sou

b) ser diferente

1. Ser c) perceber que posso

d) do pensar / falar ao sentir

e) a minha consciência de ser educador

a) ver de outra perspectiva


2. Poder Ser
b) sentido da missão
tomada de consciência / o que aprender a) ganhar consciência do medo

b) aprender a confiança

d) aprender a errar

c) aprender a resolver problemas


movimento centrífugo 3.Processo de Aprendizagem
e) aprender que é um
processo demorado e difícil

f) viver aqui e agora

g) não preocupar com as consequências

3.6 Categorias de Análise COMO como se lida com o medo processo centrado no assumir assumir a responsabilidade
desenvolvimento humano
a) auto-responsabilidade

acção b) reconhecimento do valor em causa

c) sentido da necessidade de mudança


tomada de decisão / condições da mudança
d) confiança

e) método

f) pensar em positivo

relaxamento

bioenergia
com o Eu
meditação

utilização da arte e da fantasia


1. O Tempo do Meu Mundo
com os Outros a pele da alma

harmonia com o universo


movimento centrípeto execução e estratégias com o Cosmos
silêncio

esforço

ir em frente em função da missão

2. O Tempo no Mundo procurar apoios e confiar

assumir riscos e responsabilidades

atenção e prudência

perguntas do grupo que ficam em aberto

POR QUÊ
PARA QUÊ
“Baú de Memórias - Que tipo de diário eu gostaria de ter? Preferia um que
se assemelhasse a uma arca velha, funda, ou a um armário espaçoso no
qual guardamos, indiscriminadamente, todo o tipo de coisas. Gostaria,
depois, de voltar a ver que as coisas fizeram a sua própria triagem,
refinando-se e aglutinando-se, como misteriosamente acontece com os
sedimentos, de uma forma suficientemente transparente para reflectir a
nossa vida, mas estável, tranquila, compondo-se com o alheamento de uma
obra de arte”- Virginia Woolf.

4. Por que razão o educador só pode ajudar outros a


enfrentarem os seus medos e a terem uma vida
serena, útil e corajosa, depois de ele próprio ter entrado no processo de enfrentar
os seus?178

É na memória, no presente do passado, que procuro saber se existem razões que


justifiquem que (para além de “não ser o que apenas educa, mas o que, enquanto
educa, é educador em diálogo com o educando que, ao ser educando, também educa” -
Freire, 2003:68), o educador precise ter dado início ao seu próprio processo de lidar
com o medo, e de procurar o equilíbrio e harmonia de vida, antes de se colocar na
posição de estimular e desenvolver esse mesmo processo junto do seu educando.

Para isso (e se bem que não seja possível, nem procure, estabelecer uma relação
termo a termo entre os diversos tipos de medos e de causas apresentados), vou centrar
a minha atenção, não só no que nas narrativas do grupo de pesquisa foi identificado
como sendo as subcategorias “causas do medo” e “causas do não ter medo”, mas
também no cruzamento destas com quaisquer outras que ajudem a construir uma visão
mais ampla.

4.1 Passagem de testemunho e contágio

“Querido Pai,
Perguntaste-me recentemente por que razão eu afirmo que tenho medo de ti. Como é
habitual, não sabia o que responder, em parte justamente por causa do medo que tenho
de ti, em parte porque são tantos os pormenores que justificam esse medo que eu não

178
Ver excerto do mapa mental das categorias de análise no final deste ponto do capítulo.

377
seria capaz de os manter minimamente coesos ao falar. E se procuro responder-te agora
por escrito, só o conseguirei fazer de forma muito incompleta, porque também na escrita
o medo e as suas consequências me embaraçam face a ti e porque a importância do
assunto ultrapassa largamente a minha memória e o meu entendimento” (Kakfa 1993:7).

São muitas as referências presentes nos relatos que servem para justificar a presença
do medo na vida dos participantes. Não são tantas, mas são muito diversas, as que
justificam a ausência do medo. Contudo, e apesar de muito escassas (5 no total),
quando se trata de identificar “pessoas que influenciaram o medo” e “pessoas que
influenciaram o não medo”, as experiências de vida convergem – em cada uma das
subcategorias, entre as duas subcategorias, em comparação, inclusive, com o que é
descrito no texto da carta de Kafka a seu Pai, acima reproduzido.

a) Medo – pessoas que influenciaram.


- “Mas a figura do medo foi a figura paternal, sempre. O meu pai sempre foi um obstáculo àquilo
que eu fazia como objectivo pessoal. Por exemplo, a primeira vez quando eu saio de casa, saio de
casa com muito pouco dinheiro (...), não tinha trabalho certo. Lá ganhei coragem, arranjei um
apartamento, fui viver sozinho e o meu pai disse logo «tens a certeza que és capaz?». E eu fui.
Depois, passado um ano ou dois, tive que comprar um carro para ir trabalhar para fora. Decidi
comprar um carro novo. O meu pai disse-me «achas que tens cabedal para comprar um carro
novo?». Sempre que eu ia ter com ele, ele não me dava força. Dizia sempre «tu não és capaz»”
(3J4/10).
- “A minha mãe tratava os filhos como ignorantes se não tivessem sucesso escolar” (3K1/11).
- “Há medos que eu não sei de onde vêm. Mas penso que há uma figura na minha vida que me
incutiu muito medo, que é a minha mãe (...). Porque era alguém que vivia muito esse sentimento
de culpa (...) e que nos incutia muito a culpa” (7I14/3).

b) Não medo – pessoas que influenciaram.


- “Eu sempre tive uns pais que me incentivaram a fazer tudo o que eu queria (…) E eles disseram-
me «faz o que queres, és senhor da tua vida»” (3M1/11).
- “A minha mãe foi a mulher coragem, a mulher forte do evangelho que sempre deu testemunho de
uma fortaleza muito grande (...). Todos vivemos unidos a doença do pai com uma força e uma
coragem muito grandes porque a mãe era o testemunho da força e da coragem (...).Talvez aquele
modelo forte nos tenha sido transmitido” (3A4/3).

378
São três as razões que me levam a considerar haver convergência de experiências de
vida nestas situações. Em primeiro lugar, porque em todas existe um “querido pai”, isto
é, alguém que, sendo um outro significante, é uma pessoa com quem se tem uma
interacção importante. Em segundo lugar, porque o que nelas levou ao medo, ou ao não
medo, não foram tanto os eventos distintos, dramáticos ou especialmente intensos, mas
sobretudo os “tantos pormenores”, os “sempre”, que, acontecendo subtil e repetidamente,
se acumularam durante longos períodos da vida. Em terceiro lugar, porque constituindo-
se como um conjunto de referências muito reduzido, podem ser excepção de algum
“embaraço frente a ti” (Kakfa, 1993:7) que a outros não permitirá assumi-las
publicamente.

Assim, e num contexto em que, por diversas vezes, o que falta e não está expresso em
palavras é tão, ou mais, significativo do que aquilo que está patente, considero a ideia
de PASSAGEM DE TESTEMUNHO e CONTÁGIO (com aquilo que comporta de liderança e de
criação de um clima propício para a mudança), como sendo o pensamento central da
categoria “por quê” que vai orientar a direcção da resposta à pergunta da pesquisa aqui
em causa.

“A moral não deve somente ontologizar-se, mas também existencializar-se. Não


podemos ensinar valores, devemos viver valores. Não podemos dar um sentido à vida
dos outros: o que podemos oferecer-lhes no seu caminho para a vida é, melhor e
unicamente, um exemplo: o exemplo do que somos. A resposta para o problema do
sentido final do sofrimento humano, da vida humana, não pode ser intelectual, mas só
existencial: não respondemos com palavras, mas toda a nossa existência é a nossa
resposta” (Frankl, 1994:32).

4.2 As causas do medo

Da mesma maneira que são muitos e diferentes os enfoques teóricos sobre as causas
do medo179, também os relatos dos participantes apresentam uma variedade
considerável de situações (65 no total), em que se identificam “razões do medo”. Numa

179
Ver “Capítulo 3 Descobrir caminhos de outros – Filhos do Medo”.

379
leitura linear dos dados (e porque já foram reconhecidos 186 medos180), poder-se-ia
dizer que, estatisticamente, e apesar de “a importância do assunto ultrapassar
largamente a nossa memória e o nosso181 entendimento” (Kafka:1993:7), “ainda” somos
capazes de reconhecer 1 razão por cada 2.86 medos. Porém, mais do que fazer uma
interpretação deste tipo, que precisaria de dados comparativos para ganhar maior
significado, quisemos organizá-las de modo a que, na variedade das razões
encontradas, estas se pudessem tornar inteligíveis e “minimamente coesas” (Kafka,
1993:7) sem que se perdesse a riqueza da sua diversidade.

Assim, e numa categorização dessas razões com base numa concepção do medo como
fenómeno transaccional182 (Marina 2006:16), o conceito de percepção e os conceitos
que fazem parte dos níveis de categorização subsequentes integram referências
oriundas de pensadores e cosmovisões distintos. Alguns exemplos:

1. Primeiro nível

a) À semelhança de Bronfenbrenner (Papalia, 2001), Morin (2002), Freire (2003),


Ribeiro Dias (2000), Sérgio (2005b), Kolyniak (2005), Guenther & Combs(1980) e
outros, congregam razões que, no seu conjunto, revelam a nossa dimensão
ecológica.

- Percepção do Eu – “Acho que sou mais ambiciosa do que devia porque as minhas ambições
não correspondem às minhas capacidades. E depois tenho de ser muito formiguinha (...) para
depois não falhar totalmente” (7I2/5).
- Percepção dos outros – “Senti nessa altura (...) o medo do ridículo. O estremecer por confiar
nos outros, por acreditar” (6E13/1).
- Percepção do cosmos – “Segundo os mitos da aldeia, os que estavam em idade ainda fértil
(...) tinham de apanhar água onde ela desaguava (...). Diziam que uma pessoa em idade fértil, se
fosse até à água da nascente podia ter um filho ou uma filha sereia” (6K4/10).

180
Ver ponto 2 deste capítulo.
181
Os sublinhados são meus.
182
Para Marina, os sentimentos, e especialmente o medo, são fenómenos que apresentam uma causalidade
circular: causa e efeito sofrem influências recíprocas. O “mundo” é o modo como a realidade surge perante
o sujeito –“todos vivemos a mesma realidade, mas cada um de nós habita no seu próprio mundo” (Marina,
2006:16).

380
2. Segundo nível

b) À semelhança de Peña y Lillo (1991), Marroquín (1995), Krishnamurti (2002) e


outros, congregam razões de cariz psicológico.

- Imaginação: “O medo vem de uma amplificação, de uma imaginação do que pode acontecer. E,
porque pode acontecer, se transforma na convicção de que vai acontecer. E é essa crença de que
vai acontecer (que pode ter ou não fundamento) que paralisa as pessoas, que perpetua a própria
crença e perpetua o medo” (6E11/5).
- Desejo: “Preso a um determinado tipo de sonhos pessoais” (4MP13/1).

c) À semelhança de Max-Neef (1993), Goffman (1982), Marina (2006) e outros,


congregam razões de cariz social e cultural:

- Experiências de não integração / abandono: “Quando a gente deixa de ter o poder, os


amigos desaparecem” (4U9/1).
- Experiências de violência / desrespeito: “Isto ficou, isto foi contado como história de
família. A raiva que eu senti das vezes que isto foi contado como história de família! – «Parece
impossível! Por um lado, as pessoas crescidas contaram-me a história e agora acham estranho
que eu tivesse acreditado?». (…) Não havia a intenção de ridicularizar, mas iam brincando com a
situação” (6E12/3, 13/1).
- Práticas culturais: “Eu tenho a idade que tenho e antigamente (...) abusava-se de Deus. E uma
maneira de fazer com que as pessoas fossem boas era pregar este Deus Papão que leva os
meninos para o inferno” (3A2/6).
- Dependência de pessoas ou coisas: “Presos a um determinado tipo de sonhos (...)
impostos pela sociedade, [por] um pai, [por] uma mãe, [por] um tio...” (4M13/1).

d) À semelhança de Frankl (1994), Desikachar (1995), Moffit (2003b), Aldana (1996) e


outros, congregam razões de dimensão transcendente e espiritual.

- Ausência de unificação do Eu: “A maior parte dos meus medos agora reflectem o meu ego.
(...) É ego, é vaidade, é preocupação social. O mundo é mais do que eu, é mais do que isso”
(3J4/20).

381
- Morte e finitude: “Não há mais nada do que ser agarrado à própria vida. Daí ser esse tal medo
supremo, o medo da morte” (6M10/1).

3. Terceiro nível

e) E à semelhança de todos eles, especialmente de Morin (2003), Lowen (1997) e


outros, potenciam o entendimento de que, na sua complexidade, a dinâmica
emocional do medo pode ser desencadeada por qualquer área da identidade-
corporeidade humana.

- Corpo mental – “Vivo na base das obrigações” (4U19/2).


- Corpo cultural – “Os pais protegiam muito as crianças para que não se misturassem com
pessoas estranhas” (3K1/8).
- Corpo transcendente-cultural – “Tudo era pecado” (3A2/7).

Neste contexto, e com as mesmas reservas anteriormente apresentadas183, é possível


fazer algumas reflexões a partir da leitura de alguns dados quantitativos (tabela III.15).

Razões do Medo Referências %


Percepção do Eu
Ausência de unificação do Eu 10 15.38
Desejo 2 3.08
Imaginação 4 6.15
Noção do dever 7 10.77
Subtotal 23 35.38
Percepção dos Outros
Dependência de pessoas ou coisas 8 12.31
Experiências de não integração / abandono 7 10.77
Experiências de violência / desrespeito 9 13.85
Experiências ou previsão de fracasso 3 4.61
Mundo afectivo 3 4.61
Práticas culturais 3 4.61
Subtotal 33 50.76
Percepção do Cosmos
Mitos 7 10.77
Morte / finitude 2 3.08
Subtotal 9 13.85
Total 65 99.99
Tabela III.15 – Razões para ter medo referidas no grupo de pesquisa.

183
Ver pontos 2 e 3 deste capítulo.

382
1. Os outros como causa do medo

Em termos gerais, as razões para ter medo que mais vezes são referidas ao longo das
sessões prendem-se com a “percepção que se tem dos outros” (50.76%) – isto é,
razões que colocam o locus de causalidade no exterior da pessoa e fazem com que a
capacidade e o poder de fazer sentir medo estejam, de algum modo, em mãos alheias.

- “Sempre pensei que ele era capaz de fazer mal à minha mãe, aos meus irmãos e a mim mesmo”
(2K3/3).

- “Sabemos que, se não gostarem de nós, por muitas técnicas que usemos para tentar racionalizar
a situação, a verdade é que alguém não gostou de nós” (2J1/5).

2. A ausência de unificação do Eu como causa do medo

Contudo, olhando as subcategorias derivadas da “percepção do eu”, vê-se que as


razões de “ausência de unificação do Eu” (15.38%) têm um peso ligeiramente superior a
qualquer uma das subcategorias derivadas da “percepção dos outros”. São razões que
nascem da distância existente entre o higher self e o ego referidos pela psicologia
transpessoal (Jeffers, 1991), entre o eu real e a pessoa pública descritos por Moffit
(2003b), entre o eu e o eu-eu mesmo dos versos de Whitman (Ribeiro Dias, 2000:125),
ou entre purusha e citta que, na linguagem aparentemente distante dos Yoga Sutra, o
sábio Patañjali nos dá a conhecer (Desikachar, 1995).

- “Passei muito por isso, por desconfiar de mim própria. Quando fazia algo que, à partida, achava
que fazia para os outros, depois via nisso utilidades para mim própria. E isso fazia-me desconfiar
muito de mim” (7I17/2).

- “E não sei porquê, sem nenhuma razão aparente, eu senti um grande medo” (1O1/3).

- “E, de repente, comecei a dar conta que, para mim, era muito difícil perceber o que é que eu
queria [efectivamente] fazer // porque estava habituada a pensar [só] naquilo que tinha de fazer”
(7U9/2).

383
3. O dever e os sentimentos de culpa como causas do medo

Na sequência do discurso, como já se nota no último extracto das sessões acima


colocado, as razões de “ausência de unificação do Eu” (15.38%) estão muitas vezes
associadas a razões de “noção de dever” (10.77%) – o que faz com que, no seu
conjunto, estas duas subcategorias representem mais de 25% das razões
apresentadas.

Mas as razões de “noção de dever” não contêm só o que se considera ser obrigação.
Em diversas situações apresentam-se associadas a sentimentos de culpa e/ou a uma
certa imagem de Deus e um certo tipo de concepção religiosa.

- “Ainda aqui há tempos alguém me dizia «achas que tens sempre culpa de alguma coisa». E eu
tenho, de facto, muitas culpas” (...). Tenho medo de não fazer bem feito, mas, quando acho que
não faço como acho que devia fazer, fico com a culpa” (7I5/1;6/1).

- “Tenho medo de me sentir culpado. Há opções que tomo na vida que, às vezes, tenho receio de
não estar a fazer a melhor opção. Sinto-me culpado por causa disso. De não estar a fazer a
vontade de Deus, ou de não estar a fazer a leitura correcta do que seria a vontade de Deus. E não
é bem um medo, ou, se calhar, o medo de ser responsabilizado por isso. Mas vivo isso” (7L1/1).

Mas que culpa é esta a que está tão presente nas nossas narrativas e de que modo se
torna visível nos resultados do processo de análise? Será a culpa, consciente ou não,
um dos traços distintivos da nossa cultura? Lowen diz que sim:

“A maioria dos indivíduos na nossa cultura sofre de consideráveis tensões crónicas na


sua musculatura (...). A tensão muscular crónica é o lado físico da culpa, porque
representa as injunções do ego contra certos sentimentos e actos (...). A maioria [dos
indivíduos] não tem consciência de sentir-se culpado nem do motivo da sua culpa. (...) A
culpa é o sentimento de não ter o direito de ser livre, de fazer o que se quer (...) é a
sensação de não estar à vontade no seu próprio corpo, de não se sentir bem” (Lowen,
1997:22).

No contexto desta pesquisa, e qual “pescadinha de rabo na boca”, a ideia de culpa,


para lá de surgir com bastante frequência nos diálogos do grupo, surge também nos

384
diversos pontos da interpretação dos dados. Surge, por exemplo, na categoria “o quê”,
nos “efeitos do medo”, no que foi identificado como sendo a “negação de nós mesmos”.
Surge também na categoria “como”, nos “tempos do processo de mudança”, no que foi
classificado como sendo a dificuldade em “assumir a responsabilidade” dinâmica por
aquilo que se é e por aquilo que se quer ser. Surge agora na categoria “porquê”, entre
as “causas do medo” que impedem “o direito de ser livre” referido por Lowen. É, em
suma, uma culpa feita de auto-condenação e de auto-punição, porque se desconhece,
se descrê e/ou não se aceita o que se é.

4. Primeira síntese

Com tudo isto em mente, volto a olhar os resultados globais da categorização das
causas do medo para daí tentar tirar o primeiro conjunto de ilações:

a) Se se entende que o auto-conceito, para além de conceito único e pessoal que cada
um tem de si, também é o “quadro referencial a partir do qual [a pessoa] vê o
mundo” (Guenther & Combs, 1980:97), então, e em última análise, todas as causas
do medo (incluindo as da “percepção dos outros” e as da “percepção do cosmos”)
dependem da “percepção do eu” (Moffit, 2003a).

b) Se se entende que a “percepção do eu” é a causa do medo, então, se a percepção


da pessoa sobre si mesma for alterada, o medo pode desaparecer.

c) Se se entende que o medo pode desaparecer se a percepção da pessoa sobre si


mesma for alterada, então, e porque pessoa é unidade, totalidade, transcendência...
(Frankl, 1994:106-115), é preciso que vá conhecendo cada vez mais, não o eu da
“não unificação”, ou “o eu dos acontecimentos a deixar-se levar por forças
exteriores” (Ribeiro Dias, 2000:141), mas o Eu que conduz no sentido da missão – o
Eu da evidência profunda de si mesmo, o Eu da sensibilidade e da sintonia com o
universo, o Eu da consciência de se sentir um com o Absoluto (Desikachar, 1995;
Moffit, 2003a; Blay, 1988).

385
5. Um último comentário antes de avançar

Não posso, nem quero, com a orientação desta leitura de dados, ignorar ou diluir a
importância do que, nos resultados da análise, ficou registado sobre casos de “não
integração ou abandono” e de “desrespeito ou violência” vividos em contexto social
(familiar, escolar, urbano, ou outros) e relatados pelos participantes do grupo de
pesquisa. Representam, no seu conjunto, quase 25% das razões do medo
apresentadas e são factos do passado que fazem parte das suas vidas. Contudo, o que
também aí está em causa é a percepção que se tem sobre essas experiências, ou
sobre outras bem mais graves que aconteceram na vida de muitas outras pessoas
também. Mas, mesmo assim, o passado pode ser mudado quando quem o viveu,
aprendendo com as circunstâncias, se torna capaz de as resignificar, olhar e sentir
essas experiências a partir de outras perspectivas.

4.3 As causas do não medo como um dado


insignificante muito significativo

Por força da dispersão do tipo de ideias aqui em análise, depois de uma primeira
categorização das “causas do não medo” também em função da percepção pessoal,
relacional e cósmica, optámos por passar directamente ao estabelecimento de
correspondências com as “dimensões da identidade-corporeidade” que apareciam como
mais evidentes. Porém, o que nesta categorização ganha mais visibilidade, não é tanto
o que está presente e se manifesta nos resultados escritos assim obtidos, mas o que
neles está ausente – enquanto que a listagem das “causas do medo” apresenta 65
razões do medo e ocupa 12 páginas, a listagem das “causas do não medo” apresenta
17 razões e reduz-se a 2 páginas184.

Será este um dos aspectos mais significativos desta pesquisa? Porém, e apesar do
número reduzido e da dispersão de ideias que engloba, o conjunto de dados explícitos
mostra resultados que, inclusive quando trabalhados em termos quantitativos (tabela
III.16), permitem o paralelo com alguns dos dados precedentes.

184
Ver Anexo 5 – “4. Porquê”.

386
1. A percepção do eu e o corpo transcendente como causas do não medo

Enquanto que, nos resultados anteriores, os participantes referiam mais vezes de forma
explícita que as “causas do medo” se situavam fora de si mesmos (“percepção dos
outros”), no caso das “causas do não medo” são as razões da “percepção do eu”
(64.71%) e, dentro destas, as razões do “corpo transcendente” (que incluem razões de
cariz espiritual e religioso) (52.94%), as que surgem nos diálogos do grupo com um
peso mais elevado.

- “Desde que eu deixei de fazer projectos, acho que tenho confiado que as coisas que acontecem e
que há uma mão que vai conduzindo a minha vida” (3A2/12).
- “Eu nunca senti medo de Deus porque acredito que Deus é amor. E acredito também que Deus
acredita nas minhas limitações” (7K4/3).

Razões para não ter medo Referências %


Percepção do Eu
Corpo emocional 1 5.88
Corpo emocional-mental 1 5.88
Corpo transcendente 9 52.94
Sub-total 11 64.71
Percepção dos Outros
Corpo mental 2 11.76
Sub-total 2 11.76
Percepção do Cosmos
Corpo transcendente 1 5.88
Corpo físico 1 5.88
Corpo emocional 2 11.76
Sub-total 4 23.53
Total 17 100
Tabela III.16 – Razões para não ter medo referidas no grupo de pesquisa.

2. A passagem do medo ao não medo

Neste mesmo grupo de subcategorias (“percepção do eu / corpo transcendente”), são


igualmente significativas as razões com que se explica a passagem do medo ao não
medo.

- “Quando fiz o curso de (...), até porque estudávamos religião com bastante profundidade, (...) não
me ajudou a desfazer o medo do deus-papão. Esse medo desaparece quando sou mãe (...).

387
Aquilo que eu começo a pensar é: «se eu sou imperfeita, gosto tanto dos meus filhos (...) Deus só
pode ser amor. E, como amor que é, não há razão de existir o deus-papão” (3A2/14).

- “É o passar por essa experiência que nos fortalece e (...) nos ajuda a vencer o medo” (4M14/1).

O medo desaparece pela vivência, não pelo saber feito de informações e interacções
verbais, e precisa de tempo de amadurecimento.

3. Segunda síntese

Ao mesmo tempo que as “causas do não medo” revelam menos necessidade de


defesas e uma visão mais positiva e uma maior aceitação de si mesmo e do mundo,
vão também consolidando a tese da importância da descoberta do sentido pessoal nas
experiências de vida como meio para lidar com o medo e atingir um nível de
consciência mais elevado.

Com tudo isto em mente, ficam-me algumas inquietações-lições que procuro enunciar
sob a forma de perguntas:
a) O que tem a nossa cultura que tanto nos provoca medo?
b) De que precisam os educadores para que possam, de facto, ajudar outros a
enfrentarem os seus medos?
c) O que falta no ar social que respiramos para que sejamos capazes de enfrentar
a vida de forma “serena, útil e corajosa”?

4.4 O velho, o rapaz... e o medo

- “Quando alguém me diz que vá, que vou conseguir, eu avanço” (9K3a/4).

Mas, como se distinguem, pelas suas atitudes e comportamentos, aqueles que nos
podem levar ao medo dos que nos ajudam a ver de outra perspectiva, a passar do
medo à coragem, da dependência das circunstâncias exteriores ao sentido de vida?

388
1. Como os outros reagem aos nossos medos

Quando olho o que, na categoria “como”, foi identificado como sendo o modo “como as
pessoas reagem” aos nossos medos, encontro:

- Reacções de surpresa – “Os meus amigos dizem-me: «Já andas nisso há tantos anos…
Como é que é possível?»” (2J1/4).
- Relativização –- “A minha mãe sempre relativizou muito, não gosta de ir ao fundo de nada,
acha que tudo passa...” (3O4/12).
- Não compreensão – “Até a minha irmã me perguntava: «Por que é que tens tanto medo do
insucesso escolar se nunca o tens?»” (3K2/7).
- Confirmação da razão dos medos – “Uma vez, quando desabafei com a minha mãe, a
minha mãe disse-me: «Oh filha, disso ninguém está livre, não é?». (...) Eu estava à espera que a
minha mãe dissesse: «Tem juízo! Nem pensar!». E, realmente, quando a minha mãe me pôs a
hipótese em aberto, eu não estava preparada para receber aquela informação” (3O4/5).
- Ajuda – “Meti-me numa casa (...) até que apareceram uns amigos nossos de mota. Eu expliquei-
lhes o que se passava e eles foram atrás do homem…” (3O4/7).

Isto é, em cinco tipos de respostas, só uma, aparentemente, é adequada e corresponde


às expectativas. Que efeitos produzem estes tipos de resposta? Será também por isso
que temos tanta dificuldade em falar dos nossos medos?

Mamoru Itoh (1996) em “Quero falar contigo sobre os meus sentimentos”, uma metáfora
de uma beleza e simplicidade muito grandes, como só as metáforas muitas vezes
conseguem ter, escreve sobre a necessidade e os obstáculos à comunicação
comparando-os com o jogo da bola:

“Se a pessoa a quem atiraste a bola do coração a apanha (...) então uma fase da
comunicação foi preenchida. Mas algumas vezes nós sentimos que «Ele não a apanhou
da maneira que eu queria!» (...). Nós temos muitas formas como estas de falta de
comunicação. Quando se acumulam momentos de falta de comunicação, as nossas
emoções ficam instáveis. Nós ficamos aborrecidos, preocupados, zangados, com
preconceitos, hostis. De vez em quando, explodimos... Depois, aos poucos e poucos,
começamos a não sentir nada... E, mais cedo ou mais tarde, estamos sozinhos” (Itoh:
1996: 30).

389
Continuo, por isso, fazendo-me perguntas. Como será que educa quem “começa a não
sentir nada” e se habituou a calar? Como será que educa quem viveu e foi educado
com e pelo medo? Como será que educa quem tem medo? Continuamos legando-o ou,
tentando inverter o processo, mas conservando os medos (e sempre contagiando),
educamos os nossos filhos sem eles mas, no seu lugar, não somos capazes de
oferecer valores alternativos pelos quais eles sintam valer a pena lutar?

“A actual obsessão pelo divertimento é uma reacção à vida horrível que somos
obrigados a levar (...). A busca de entretenimentos surge da necessidade de fugir dos
problemas, conflitos e sentimentos que parecem intoleráveis e avassaladores (...). A
diversão como uma fuga relaciona-se com a ideia da escapada. Esta é a rejeição da
realidade social, da realidade de propriedade de uma outra pessoa, dos seus
sentimentos e até da sua própria vida” (Lowen, 1984:16-17).

Se assim é, tudo é fácil, tudo tem de ser imediato, tudo tem de ser já. Talvez já não
tenha medo de nada, mas sou, seguramente, dependente de tudo – o que quer dizer
que tenho medo de tudo. Não será que também é assim que o medo (ainda mais
disfarçado, poderoso, hostil e... medroso), continua sendo herdado, passado “de pais
para filhos, de geração em geração” (Gil, 2005:78), e que assim se fecha um novo
círculo vicioso?

2. Liderança e clima como factores importantes para aprender a lidar com o medo

Em contrapartida, quando, na categoria “por quê”, olho como se descrevem os


educadores que influenciaram o não medo, encontro o que não depende de quem seja
“a incarnação abstracta de uma experiência escolar” ou “uma fachada, um papel ou
uma ficção”, mas o que depende de quem é pessoa “unificada, integrada, congruente”
(Rogers, 1970:255).

Pela impressionante proximidade que entre os dois existe, coloco em paralelo um


extracto das sessões do grupo de pesquisa com um texto de Dorothy Sisk e Paul
Torrance em que, com linguagens e a partir de contextos muito diferentes, descrevem
esses educadores.

390
“A minha mãe foi a mulher coragem, a mulher “Muitos grandes professores e líderes apresentaram
muitos comportamentos e crenças que também nós
forte do evangelho que sempre deu estamos a propor como sendo inteligência espiritual
ao falarem e agirem de acordo com as suas
testemunho de uma fortaleza muito grande. percepções e valores que reflectem uma perspectiva
Todos vivemos unidos a doença do pai com mais ampla; e, como resultado, as suas palavras e
acções despertaram em nós o reconhecimento de
uma forma e uma coragem muito grande verdades universais (...). Muitos deles estavam em
situações desesperadas, e, mesmo assim,
porque a mãe era o testemunho da força e da encontraram maneiras de fazer a diferença. Através
coragem. E, se calhar, ela também passou de uma vida de serviço e descoberta, utilizaram a
inteligência espiritual para transformar realidades
esse testemunho (...) para nós” (3C4/3). biológicas em transformação do espírito”185. (Sisk &
Torrance, 2001:X).

E mais: quando olho o que, na categoria “como”, foi identificado como sendo parte do
clima necessário para aprender a lidar com o medo, encontro:

- Amor – “O amor (...) ajuda-nos a passar melhor” (6J34/4).


- Autonomia e responsabilidade – “Gostei mais quando ela me liderou indo eu à frente.
Porque isso significava que eu tinha liberdade nos meus movimentos” (10J3/3).
- Confiança – “O que me ajudou a vencer o medo (...) foi o confiar, confiar nas pessoas que
tinham organizado isto” (9L1/13).
- Liderança – “Como ela me deu segurança, procurei pôr os meus passos pelos passos dela.
Senti-me também bem quando houve uma altura em que eu caminhei à frente, porque, só por me
fazer assim para um lado ou para outro, ela estava-me a indicar o caminho certo” (10A5/1).

Porque clima se define como “padrões habituais de comportamento, atitudes e


sentimentos que caracterizam a vida num determinado contexto” (Isaksen et al,
1994:18), é evidente que também é fruto das reacções e acções dos outros ou, pelo
menos, de “alguns outros”, daqueles com quem se tem uma interacção importante. Por
isso é que, e embora o tema da formação de educadores não seja presentemente o
foco central de atenção, não quero deixar de colocar um texto que, na ligação que pode
estabelecer com esta análise, pode também vir a servir de mote para uma outra fase da
pesquisa:

185
“Many great teachers and leaders demonstrate behaviors and beliefs that we are proposing as spiritual
intelligence by speaking and acting in accordance with perceptions and values reflecting a larger
perspective, and as a resulta, their words and actions awaken within us the recognition of universal truths.
(…) Many of them were in hopeless situations, and still they found ways to make a difference. Through
lives of service and inquiry, they employed spiritual intelligence to transform biological reality into a
transformation of the spirit” (Sisk & Torrance, 2001:X).

391
“A melhoria da qualidade da educação tem como um dos seus pilares estratégicos a
formação de professores. Sem embargo, esta formação não pode ser reduzida à
capacitação de procura desenvolver saberes, habilidades e destrezas que o qualifiquem
de um ponto de vista exclusivamente técnico (...). A formação implica processos
educativos que transcendam esta dimensão do fazer do professor e penetrem a sua
própria prática vital como sujeito de desenvolvimento” (Roldán Vargas, 1997:1).

3. Terceira síntese

Procuro, também daqui, e antes de passar à resposta da pergunta da pesquisa, tentar


tirar um outro conjunto de ilações:

a) São muitas e variadas as reacções das pessoas perante as situações de medo dos
outros; nem todas revelam a experiência, a sensibilidade ou a empatia necessárias
para se ser capaz de entender o que sente quem enfrenta essas situações.

b) Quem vive com medo, educa com medo.

c) Educador e líder não é quem não tem a coragem de ser o que é, mas quem,
consciente das suas limitações, procura viver de acordo com as suas percepções e
valores e, por isso, também é capaz de testemunhar e despertar para a experiência
de vida plena.

4.5 Conjugando e formulando uma resposta

Relembro a pergunta da pesquisa aqui em causa – “por que razão o educador só pode
ajudar outros a enfrentarem os seus medos e a terem uma vida serena, útil e corajosa,
depois de ele próprio ter entrado no processo de enfrentar os seus?” E encontro as
seguintes respostas:

392
a) Por causa do CONTÁGIO. Um educador que tente ajudar outros naquilo que ignora
em si mesmo, pode, pela força da “não unificação do eu” que demonstra e
transmite, tornar-se ele mesmo uma das causa do medo.

b) Por causa da PASSAGEM DO TESTEMUNHO. Algumas das extensões do “ama ao


próximo como a ti mesmo” (Mateus 25, 31) são: vês o próximo como te vês a ti
mesmo; vives com o próximo como vives contigo mesmo; ajudas o próximo como te
ajudas a ti mesmo; educas o próximo como te educas a ti mesmo.

c) Porque precisamos de LÍDERES que, procurando o seu sentido de vida na unidade e


totalidade do seu eu, sejam capazes de criar uma atmosfera de calor humano e de
compreensão, um CLIMA de autenticidade, sinceridade e congruência. “Aquilo que tu
és fala tão alto que não consigo ouvir o que tu dizes” (Ralph Waldo Emerson, Apud,
CPSB, slides de conferências públicas).

d) Porque assim se completa o quadro das dimensões que, numa perspectiva


sistémica, podem fazer a diferença entre a futilidade-inutilidade ou a grandeza-
sucesso (a serenidade, utilidade e coragem) de um trabalho educativo sobre o medo
e o desenvolvimento humano (ilustração III.11):

i. Um propósito de realização Dimensões a considerar numa proposta de um programa


educativo sobre o medo e o desenvolvimento humano
humana.
ii. Uma metodologia que permite
a acção. O A
Educador Metodologia
iii. Um clima que contagia e
estimula solidariedade, a O
Os Contexto/Clima
diversidade e a mudança. Propósitos

iv. Um educador que testemunha


a possibilidade de
transformação. Ilustração III.11 – Perspectiva sistémica das dimensões a
considerar numa proposta de um programa educativo sobre o
medo e o desenvolvimento humano.

Então, e da mesma maneira que, para dançar uma pirouette, se precisa olhar um ponto
fixo para não perder o equilíbrio e manter a direcção, também tudo isto vai levando a

393
entender que, para se fazer um movimento de transformação, se precisa de uma âncora
que sustenha. Não de uma âncora, de alguém, que prenda ou amarre, mas de alguém
que, pela sua referência e testemunho e pelo que de Bem inspira e contagia, permita
fluir livre e espontaneamente na descoberta e construção daquilo que se é – consigo
mesmo, com os outros, com o mundo e, por isso, com as gerações vindouras.

4.6 Síntese do “por quê”

1. Síntese

a) Quando os participantes no grupo de pesquisa indicam quem influenciou o seu


medo ou o seu não medo, indicam sempre uma pessoa com quem tiveram uma
interacção importante durante um período longo da vida.
b) Quando justificam a presença do medo nas suas vidas, fazem-no essencialmente
com razões que se prendem com a “percepção dos outros”.
c) Quando encontram em si mesmos razões para terem medo, identificam, antes de
mais, razões de “ausência de unificação do eu”.
d) Quando dizem por que não têm medo, indicam não só razões centradas na
percepção de si mesmos, como também razões que estão ligadas com o seu
sentido de crescimento e de transcendência.
e) Quando se referem ao clima adequado para aprender a lidar com o medo, referem a
necessidade de amor, autonomia e responsabilidade, confiança e liderança.

2. Ser educador é ajudar outros a irem à descoberta de si próprios.

Então, e para que o trabalho de um educador seja honesto (o que também é a maneira
de ser eficaz), é necessário que aquilo que ele “ensina” esteja também sendo
trabalhado e fundamentado dentro de si próprio. Isto não é, obviamente, encher-se de
conhecimentos e informações, mas sim experimentar e activar continuamente em si
mesmo o processo de desenvolvimento humano que procura estimular nos outros. Não
sendo assim, acredito, tornar-se-á num risível (e bem perigoso) guia que julga ser capaz

394
de conduzir alguém só porque leu e decorou atentamente o roteiro de uma montanha.

Por isso, só tem direito de educar outros quem se educa a si mesmo. Nós educadores
(professores, formadores, facilitadores, adultos com responsabilidades na formação de
outras pessoas, quaisquer que sejam as suas idades), SÓ ganhamos o direito de educar
quando somos capazes de nos desvelar (pelo menos perante nós próprios) e de nos
encararmos na lisura da nossa integridade e totalidade; quando somos capazes de
começar a deixar para trás as roupagens, os disfarces, com que quotidianamente nos
cobrimos; quando percebemos que tais roupagens não dão senão a nós mesmos (não
aos outros) a imagem daquilo que gostaríamos de ser; quando percebemos que essa
máscara só desvirtua o que, de facto, somos e que, afinal, é o que de mais bonito e
convincente temos e podemos transmitir.

E como ilustração, trago à reflexão uma das pessoas mais respeitadas em todo o
mundo, uma das figuras que melhor encarnou os valores essenciais da realização
humana – a figura “serena, útil e corajosa” de S. Francisco de Assis, símbolo da paz e
da fraternidade. Tendo descoberto (desvelado) o seu caminho, só fica definitivamente
preparado e pronto para o começar quando, contra tudo e contra todos, deixa para trás
todas as suas roupagens e, nu, se põe ao caminho.

3. O desafio de uma pesquisa em educação.

Transformar os problemas em oportunidades, aprender a transcender certo tipo de


experiências, passar do auto-conhecimento ao auto-aperfeiçoamento, é o grande
desafio que a criatividade pessoal coloca em todas as áreas do processo de viver.
Acredito, por isso que, ir além do conhecimento “do que é” para, nos dados, descortinar
vias de transformação em direcção ao que “pode ser”, também é o grande desafio de
uma pesquisa em educação.

395
396
397
398
QUEM
O QUÊ
COMO
corpo emocional
ausência de unificação do Eu
corpo mental

corpo emocional
desejo
percepção do Eu corpo mental

corpo mental
imaginação
corpo emocional

noção do dever corpo mental

corpo cultural

dependência de pessoas ou coisas corpo mental

corpo emocional

experiências de não corpo emocional


integração / abandono
razões do medo
causas do medo corpo emocional

experiências de violência / desrespeito corpo físico


percepção dos Outros
corpo físico-emocional

corpo cultural
4.7 Categorias de Análise experiências ou previsão de fracasso corpo mental

POR QUÊ corpo emocional

experiências do mundo afectivo corpo emocional

práticas culturais corpo cultural

corpo cultural
mitos
percepção do Cosmos corpo transcendente-cultural

morte / finitude corpo espiritual ou transcendente

pessoas que influenciaram

corpo emocional

percepção do Eu corpo emocional-mental

corpo transcendente

razões para não ter medo percepção dos Outros corpo mental
causas do não ter medo
corpo emocional

percepção do Cosmos corpo físico

corpo transcendente

pessoas que influenciaram

perguntas do grupo que ficam em aberto

PARA QUÊ
Lembrei-me de quanto tempo passei a lutar para conseguir uma coisa que não queria.
Por que o fizera? Não conseguia encontrar uma explicação. Talvez porque tinha
preguiça de pensar noutros caminhos. Talvez pelo medo do que os outros iriam pensar.
Talvez porque ser diferente desse muito trabalho. Talvez porque o ser humano está
condenado a repetir os passos da geração anterior, até que (...) um determinado
número de pessoas comece a comportar-se de uma outra maneira. Então, o mundo
muda, e nós mudamos com ele. Mas eu não queria mais ser assim. O destino
devolvera-me o que era meu e agora dava-me a possibilidade de me mudar a mim
mesmo, e de ajudar a transformar o mundo - Paulo Coelho

Paz não é só o oposto da guerra, nem só o espaço de tempo entre duas guerras – paz
é mais do que isso. Paz é quando agimos de forma certa e quando há justiça entre
todos os seres humanos e todas as nações – Pensamento Índio.

5. Para que serve uma vida serena, útil e corajosa?186

Perante aquela que é, na sua formulação, a pergunta mais simples da pesquisa, tento
traduzir, na linguagem simbólica do movimento corporal, o significado intrínseco do
processo de trabalho sobre cada uma das perguntas que presidem a esta investigação.
E o que logo me vejo fazendo é:

- abrindo os braços, como quem quer abarcar (ou abraçar?) o mundo – quando
procuro as respostas para o “o quê” e o “como”;
- esgaravatando e metendo os pés e as mãos na terra, como quem quer buscar
nas profundezas as raízes que sustentam – quando quero saber o “por quê”;
- crescendo em bicos de pés e levantando os braços para o alto, como quem quer
criar asas e levantar voo em direcção ao que é maior e que transcende –
quando me interrogo sobre o “para quê”.

Se ficasse só pelo movimento horizontal (do “o quê” e do “como”), correria o risco de


ficar pela produção-consumo de informação, perdendo a visão da formação humana
que um educador-investigador precisa ter (Trigo, 2005b) . Se ficasse só pelo movimento
vertical (do “por quê” e do “para quê”), correria o risco de perder a visão ampla que só
quem se entranha no quotidiano pode ter. Contudo, quando os dois movimentos se
encontram, cruzam e interpenetram (e porque são muitas as variações e combinações
que a partir deles podem ser criadas), é possível partir à descoberta da teia de
movimentos que são os caminhos da condição humana e da complexidade do Ser.

186
Ver excerto do mapa mental das categorias de análise no final deste ponto do capítulo.

399
Ilustração III.12 – Sinergia dos movimentos horizontal e vertical das perguntas de investigação.

É, então, neste cruzamento que me coloco perante a pergunta que, procurando


contrariar o vazio existencial de quem não se interrogue sobre o sentido das coisas,
remete para o plano espiritual, para a auto-responsabilização e para o compromisso.

5.1 Ser parte do Universo

Porque (con)sequência de classificações anteriores, nas narrativas do grupo de


pesquisa foram identificados, sem grande surpresa, dois tipos distintos de referências
sobre o “para quê” do medo – o medo “para a conservação social” e o medo “para o
desenvolvimento humano”.

O primeiro pretende reunir todas as situações que, apontando para a dependência,


paralisia, conformismo, isolamento, imobilidade pessoal e social, possibilitam a
utilização do medo com um objectivo muito preciso – a dominação, o controlo, o
totalitarismo (Marina, 2006; Max-Neef, 1993).

- “Naquela comunidade o medo funcionava como factor de coesão, mas isolava-a de todas as
outras comunidades, das outras cidades” (6L1/1).

400
O segundo tipo pretende apontar, através da relação tridimensional eu-outros-cosmos,
para aquilo que são propósitos de vida autoconstrutiva, de comunicação interpessoal e
de possibilidade de construção de um mundo melhor (Trigo & Coego, 2003).
- “Uma coisa que os medos nos podem ajudar a encontrar é aquilo que nós realmente valorizamos”
(4L5/1).
- “Hoje em dia, quando trabalho, gosto de trabalhar com pessoas que me dizem exactamente
aquilo que pensam, mesmo que eu não goste de ouvir” (3M2/4).

Nesta classificação, e num conjunto de referências em que, como adiante se verá e já


antes também tinha acontecido, muito do mais significativo não é tanto o que está
explícito, mas o que, pelo menos aparentemente, fica esquecido, a expressão SER
PARTE DO UNIVERSO (com o que implica de fortaleza por se saber em interacção com os
outros e com o mundo), representa o pensamento central desta categoria de análise.

5.2 O medo para o desenvolvimento humano

Para começar a vislumbrar o sentido de uma “vida serena, útil e corajosa”, vou procurar
perceber o que está contido no que foi genericamente classificado como sendo o papel
do “medo para o desenvolvimento humano”. Aí as referências à “relação com o Eu” são
bastante amplas (41 no total), e podem ser divididas em quatro novos sub-tipos:

a) Auto-conhecimento e/ou auto-aperfeiçoamento – “Sentir medo pode levar-me a reflectir


nas minhas forças, buscá-las, ou rebuscá-las, preparar-me melhor, fazer tudo o que for preciso
para lidar com o seu objecto, os objectos dos meus medos” (3K2/12).

b) Consciência do que se valoriza – “Por detrás de um medo pode haver alguma coisa que eu
valorize muito” (4L5/1).

c) Construção de uma nova realidade – “Os medos que impedem certos sonhos podem ter
alguma razão de ser, podem-nos estar a avisar que alguma coisa tem de ser bem levada a sério e
que não vale a pena insistir em determinado tipo de situações” (4M13/3).

401
d) Realização de objectivos – “Sempre que eu tenho um medo, ele depois é compensado (...)
quando supero o objectivo para o qual eu tinha medo” (3J4/14).

Quanto às referências ao papel do medo na “relação com os outros”, e apesar de serem


sendo bem mais escassas (8 no total), também podem ser divididas em quatro novos
sub-grupos:

a) Capacidade de empatia -“Por tudo isto eu ganhei sensibilidade e empatia, capacidade de


acolher e de fazer com que os outros se sintam integrados” (4U6/9).

b) Descobrir o desconhecido – “Porque se atreveu a enfrentar (...), descobriu que, no outro


lado, havia o inimaginável” (6U7/15).

c) Menor dependência / melhor relação – “Neste momento a relação com (...) é muito
interessante (...). Ele está no seu espaço e eu estou no meu. E sempre que vou estar com ele, eu
estou saudável, sou independente, não preciso dele. Quanto menos eu precisei dele, mais gostei
dele” (3J4/12).

d) Sofrimento – “Ele sofreu muito com isso porque era criticado por toda a gente, por ter essa
necessidade de ser diferente” (6J4/1).

Contudo, no que diz respeito à dimensão mais ampla do sentido do medo no


desenvolvimento humano, a da “relação com o mundo” – porque “todos se
complementam e crescem juntos: as espécies, os ecossistemas e o universo inteiro”
(Boff, 1998:92) –, não existe qualquer referência, nem nos relatos das sessões, nem
nos diários de campo dos membros do grupo. A verbalização (pois não é possível
afirmar se também a consciência), ficou limitada à importância das relações micro e
foram resguardadas (ou ignoradas) as relações e as sinergias desencadeadas ao nível
de sistemas mais amplos.

“A Humanidade deixou de ser apenas uma noção ideal, tornou-se uma comunidade de
destino, e só a consciência desta comunidade pode conduzi-la a uma comunidade de
vida; a Humanidade é, desde agora, sobretudo uma noção ética: é o que deve ser
realizado por todos e em cada um. Enquanto a espécie humana continua a sua aventura

402
sob a ameaça da autodestruição, o imperativo tornou-se: salvar a Humanidade
realizando-a” (Morin, 2002:123

Preciso, por isso, ver se, no “medo para a conservação social”, enquanto negação ou
impedimento ao desenvolvimento humano, estão presentes elementos que completem
o quadro das reflexões e das experiências do grupo e ajudem à leitura do que ocorre ao
nível do macro e do cronosistema.

5.3 O medo para a conservação social

“Cada vez que me perguntam como explico que se possa chegar a um estado de vazio
existencial, procuro assinalar o seguinte facto: contrariamente ao animal, os instintos já
não indicam ao homem o que tem que fazer, e as tradições não lhe dizem o que deve
fazer e, muitas vezes, nem sequer já parece saber o que quer. É por isso que se inclina
tanto para querer o que fazem os outros, como para fazer só o que os outros querem.
No primeiro caso trata-se de conformismo, no segundo de totalitarismo” (Frankl,
1994:16).

Em termos globais, e embora escassas (11 no total), as referências que constituem a


subcategoria “medo para a conservação social” apresentam características curiosas:
todas elas foram identificadas na sessão 6 do grupo de pesquisa colaborativa, a sessão
em que foi feita a análise de um filme através da aplicação da técnica ORA187; todas
dizem respeito à primeira e segunda fases de aplicação da técnica (observar e
relacionar) e nenhuma à fase de aplicação do observado ao próprio contexto de vida.

- “O medo naquele filme é tratado, sobretudo, em termos sociais (...). Eu ali relaciono o medo com a
fuga e com o controlo (...). Ele serve de alavanca ao controlo social” (6I1/1,2).

Algumas poucas referências também indicam que o medo começou, ou foi instigado,
por “uma boa causa” (6V32/2), por se considerar que podia desempenhar um papel
positivo no desenvolvimento e estabilidade social.

187
Ver “Capítulo 1 Roteiro – 2.2.3 Etapa 2 caminhando”.

403
- “Naquela comunidade o medo funcionava como factor de coesão” (6L1/1).

- “O mito servia para o controlo social. Era para não turvarmos a água e, assim, os mais velhos,
apanhando a água na fonte, levavam para suas casas água limpa” (6K4/12).

Noutras, porém, incluindo alguns dos casos “bem intencionados”, as referências


indicam que o medo deu origem a situações ambíguas e/ou serviu para fins menos
claros.

a) Criação de aparências/dualidades – “O fugir só leva a uma aparente tranquilidade”


(6U7/11).

b) Criação de dependências – “Quando um pai e um filho (...), quando provocamos medo para
controlar o outro, fazemos por uma boa causa. Só que, a certa altura, esquecemo-nos que o outro
já consegue “andar no bosque” sozinho e, portanto, escusamos de continuar a insistir esse medo”
(6J32/2).

c) Isolamento - “Naquela comunidade o medo funcionava como factor de coesão, mas isolava-a
de todas as outras comunidades, das outras cidades” (6L1/1).

d) Legitimação do poder e controlo social – “[O medo] serve de alavanca ao controlo social
(...). Na sociedade de hoje (...) há sempre o papão (...), chame-se ele comunismo, capitalismo,
terrorismo (...). Há sempre um papão que serve para justificar, legitimar, uma via de maior
imposição, de maior controlo social. O mesmo acontece muitas vezes nas famílias” (6I1/2).

5.4 O papel do medo na construção do humano

Considerando que o que consta do ponto anterior não diz tanto respeito a experiências
individuais, mas a observações dos participantes do grupo de pesquisa sobre o que se
passa em níveis mais amplos do sistema de interacção humana, começo por fazer um
esquema de transformação e correspondência directa dos resultados aí obtidos com o

404
que possa ser o sentido do “medo para o desenvolvimento humano na relação com o
mundo”:

a) No lugar da dualidade, a coerência.


b) No lugar da dependência, a responsabilidade e a criação.
c) No lugar do isolamento, a abertura e a fraternidade.
d) No lugar do poder e do controlo, a autoridade, a liberdade e a paz de quem se
coloca ao serviço daqueles que são as muitas vítimas do medo.

A partir daqui, e conjugando com todos os restantes resultados, crio um quadro síntese
da perspectiva do grupo de pesquisa sobre as três dimensões do medo na construção
do humano (tabela III.17):

O papel do medo na construção do humano


Auto-conhecimento e auto-aperfeiçoamento.
Consciência do que se valoriza.
Na relação com o Eu
Realização de objectivos.
Construção de uma nova realidade.
Capacidade de empatia.
Descobrir o desconhecido.
Na relação com os outros
Menor dependência / melhor relação.
Crítica e sofrimento.
Coerência
Responsabilidade e criação.
Na relação com o mundo
Abertura e fraternidade.
Serviço, autoridade, liberdade e paz.
Tabela III.17 – O papel do medo na construção do humano.

5.5 Ligações e reflexões

Em triangulação com outros autores (nomeadamente com Viktor Frankl, pelo quanto,
desde a sua própria experiência e em situações limite, comprovou a essência e a
possibilidade de se ser humano), e relembrando que o eixo central da categoria aqui em

405
análise é SER PARTE DO UNIVERSO, tento reflectir sobre algumas das ideias e
observações até aqui apresentadas para que, a partir delas e da descoberta dos
desafios que lhes estão implícitos, possa depois formular uma resposta para a última
pergunta da pesquisa.

1. O desafio da CONSCIÊNCIA de que se é parte de um todo

Primeira observação: o entendimento da missão que cada um tem no mundo foi


apontado, noutros pontos da análise188 das narrativas do grupo, como uma das
componentes fundamentais do processo de lidar com o medo “centrado no
desenvolvimento humano”. Contudo, quando se procura o sentido do “medo para o
desenvolvimento humano” em esferas mais amplas do que as das relações e
circunstâncias imediatas, a consciência do que aí acontece e do papel que cada pessoa
aí desempenha parece começar a diluir-se. É preciso, por isso, pensar sobre as
implicações dessa (pelo menos aparente), falta de sintonia e de coerência. Encontro em
Frankl uma preocupação muito clara:

“Quem se fixa na auto-realização como meta, passa por alto e esquece que, em última
análise, o homem só se pode realizar na medida em que atinge a plenitude de um
sentido fora no mundo e não dentro de si mesmo. Por outras palavras, a autorealização
foge da meta escolhida já que se apresenta como um efeito colateral, que defini como
189
“autotranscendência” da existência humana” (Frankl, 1994:21).

Segunda observação: mesmo quando, nas narrativas do grupo, não se encontra o


“medo para a conservação social” a desembocar directamente em situações ambíguas
e/ou a servir fins menos claros, também é preciso pensar (apesar das “boas intenções”
dos valores sociais que lhe sirvam de justificação), que espécie de homens e de
sociedade assim estão sendo produzidos. Ribeiro Dias coloca a questão:

188
Ver ponto 3 deste capítulo.
189
“Quien se fija tal autorrealización como meta, pasa por alto y olvida que el hombre en último término
puede realizarse sólo en la medida en que logra la plenitud de un sentido fuera en el mundo no dentro de sí
mesmo. En otras palabras la autorrealización se escapa de la meta eligida en tanto se presenta como un
efecto colateral, que yo defino como “autotranscendencia” de la existencia humana” (Frankl, 1994:21).

406
“A realização do ser humano (...) exige ser conduzida por quem? Pela liberdade e força
de vontade do «Eu pessoal» correndo o risco de chocar com a orientação oposta dos
outros eus, ou pela sabedoria de um «Eu supra-pessoal», tantas vezes confundido, por
si ou por outros, com o Eu do Grupo, do Partido, do Estado ou até da Humanidade ou da
Realidade, «fácies» do Duce, do Führer, do Big Brother ou mesmo do rosto intratável do
próprio Deus, presentes em todas as formas de autoritarismos, ditaduras e
fundamentalismos, capazes de conjugar as vontades individuais mas também de as
contrariar, esmagar e destruir?” (Ribeiro Dias, 2000:19).

Não parece, por isso, possível fazer uma ilação directa dos resultados aqui obtidos.
Apesar de oriundos de sub-categorias distintas, o “para quê” do medo assim
encontrado, seria “classificado” num continuum entre dois extremos – de um lado, o do
INDIVIDUALISMO, com aquilo que ele significa de focalização na vida privada e
fragmentação dos espaços da vida (Teixeira Fernandes, 2001:58); do outro, o
AJUSTAMENTO, com aquilo que ele
se traduz em contribuição para o
bem-estar comum a partir de um
encaixe num nicho pré-existente
(Guenther & Combs, 1980). Isto
é, em última análise, os dois
extremos representariam o medo
para a conservação social.

Porém, se (pela harmonia e


Ilustração III.13 – Construção do binómio individuação-solidariedade
integração das polaridades), cada
extremo se tornar no seu oposto, é possível encontrar um novo continuum. O continuum
da INDIVIDUAÇÃO190/ SOLIDARIEDADE191 que, partindo do Eu Profundo, possa encontrar
numa missão e no mundo a plenitude da existência humana (Teixeira Fernandes,
2001:58; Frankl, 1994:21; Ribeiro Dias, 2000:141).

190
Teixeira Fernandes define individuação como “processo de assunção livre por cada uma das
orientações do mundo que dão sentido à existência” (Teixeira Fernandes, 2001:58).
191
Corresponde ao binómio autonomia-dependência do princípio da complexidade de Morin (2003, 2006).

407
2. O desafio da RESPONSABILIDADE por se ser parte de um todo

Quando, nas narrativas do grupo, se analisa o tema do “medo para a conservação


social”, o discurso do “medo para o desenvolvimento humano”, em que o sujeito se
revela na primeira pessoa, é substituído por um discurso em que o sujeito se torna
indefinido.

- “Eu ali relaciono o medo com a fuga e com o controlo. (…) ele serve de alavanca ao controlo
social. (...). Na sociedade de hoje também há sempre o papão – qualquer regime mais autoritário,
mas, mesmo o regime democrático que assuma uma via mais autoritária tem sempre um papão”
(6I1/2).

Deste modo, e deixando implícito que “alguém”, não identificado e longínquo, muitas
vezes plural, “social”, é o responsável-causador das situações assim criadas, ficam
também em aberto duas outras questões:
- o papel desempenhado pelo sujeito individual no “medo para a conservação
social”;
- o papel desempenhado pelo sistema social no “medo para o desenvolvimento
humano”.

Será isto uma outra marca192 da nossa dificuldade em “assumir a responsabilidade” (ou,
pelo menos, a co-responsabilidade pela omissão) por aquilo que se vive? Será isto uma
outra forma de inibição-limitação do “movimento centrífugo da mudança”, mas agora em
termos sociais? Também em Frankl encontro para estas questões uma provocação aos
educadores:

“Na nossa época, a educação deveria ocupar-se não só em transmitir conhecimentos, mas
também de refinar a consciência para que o homem seja capaz de escutar em cada situação
a exigência que contém. Numa época em que os dez mandamentos parecem perder a sua
vigência para tanta gente, o homem deve estar preparado para perceber os 10.000
mandamentos que estão encerrados nas 10.000 situações com que enfrenta a vida. Então
não só esta vida apareceria cheia de sentido, mas ele mesmo estaria imunizado contra o
conformismo e o totalitarismo – ambos consequência do vazio existencial – pois uma

192
Ver ponto 3 deste capítulo.

408
consciência alerta torna-o capaz de «resistir» de maneira que não se entregue facilmente ao
conformismo nem se desobrigue tão pouco do totalitarismo” (Frankl, 1994:31).

3. O desafio de se DECIDIR e REVELAR como único no todo

Por último, uma reflexão a partir do conteúdo de uma das subcategorias atrás
identificadas, a subcategoria “sofrimento”, que, com uma só referência, indicia a
presença da dor na descoberta do sentido do “medo para o desenvolvimento humano”.

- “Ele sofreu muito com isso porque era criticado por toda a gente, por ter essa necessidade de ser
diferente” (6J4/1).

Estando o medo, na sua génese, ligado com o princípio da dor (Damásio, 1995),
poderia supor-se que, pela capacidade de o superar e/ou de nele se encontrar um
sentido, o pêndulo da regulação vital do organismo oscilaria “automaticamente” para o
lado do princípio do prazer. É, aliás, o que, em princípio, parece acontecer com outras
subcategorias atrás identificadas193 – por exemplo, com a “construção de uma nova
realidade”, a “realização de objectivos”, a “capacidade de empatia”, o “auto-
conhecimento e/ou auto-aperfeiçoamento”, etc.

- “Isso depois dá-me uma grande auto-estima, porque eu penso: “Ok, estou a dar a volta a isto” (...).
E sinto-me outra vez forte porque aprendi com aquilo. (...) Já não sou dominado, eu continuo a
dominar” (4J6/3).

Contudo, o que a referência da subcategoria “sofrimento” exprime com clareza (e que


outras subcategorias também têm implícito), é que, qual grão de mostarda deitado à
terra (Marcos 4,30-32), para que a transformação-criação aconteça e cada um se revele
na sua unicidade e grandeza, é preciso aceitar que fazer essa escolha também é morrer
para todos os outros possíveis:

Primeiro, porque é preciso perceber que dizer sim também é dizer não.

193
Ver tabela III.16.

409
- “«Pensar é morrer» (...) porque, quando penso demasiado numa coisa, e quando esse
pensamento provoca uma mudança, provoca avançar num sentido diferente daquele em que
vivíamos. E eu compreendo esse sentido de pensar é morrer, ou seja, deixar para trás uma coisa
que éramos e começar a construir outra” (7M5/2) 194.

Segundo, porque é preciso deixarmo-nos tomar pela inquietação e perder o


contentamento e a calmaria dos “mornos”.
- “Seriam os mais alienados. Se calhar eram os que viviam melhor. (...) Às tantas, são os ignorantes
– que passam ao lado e não questionam, aceitam… mais felizes; eventualmente são mais felizes”
(6I3/1)195.

Terceiro, porque é preciso conviver com a incerteza, com a resistência, com a


incompreensão, até mesmo com o distanciamento e ressentimento.
- “Quem luta fica mais forte, quem foge, em princípio, fica mais fraco, porque não enfrentou e,
portanto, interioriza a sua incapacidade; ainda que os que lutam só ficam mais fortes se ganharem
ou não se magoarem – porque, às vezes, lutam e perdem, ou magoam-se e podem morrer,
inclusivamente. No entanto, às vezes, perder é bom... Aquilo fez-me sempre andar como um
pêndulo” (6I2/5).

Quarto, porque é preciso perceber que o medo não é o essencial, mas o circunstancial
da pessoa, mas que isso provoca o vazio de quem fecha uma etapa para dar espaço a
outra.
- “Todos os labirintos na minha vida: (...) sempre que estou lá, penso “que chatice!”. (...) E depois,
quando saio, digo “que chatice”!” – fico com a sensação de perda. Às vezes parece que estou
farto de estar lá e, depois, quando saio, fico com sensação de perda” (10J2/4)196.

Olhar o medo de frente, buscar o sentido da existência, construir uma vida “serena, útil
e corajosa”, é comprometer-se num processo permanente de mudança. A busca de
sentido não se resume à procura da felicidade, nem pode, enquanto processo criativo
de quem se atreve a escrever a própria história, confundir-se com o anseio por um
tranquilo e definitivo porto de chegada. Pelo contrário, é entregar-se ao entendimento

194
Classificado como “para quê, desenvolvimento humano, eu”.
195
Classificado como “o quê, efeitos do medo”.
196
Classificado como “para quê, desenvolvimento humano, eu”.

410
encarnado de que o prazer não se encontra só nos resultados, mas, sobretudo, no
desfrute e valorização de cada momento do processo.

“Precisamos superar a ideia de que o homem busca fundamentalmente a felicidade; o que


quer, na realidade, é encontrar uma razão para ele. E quando encontra essa razão, o
sentimento de felicidade apresenta-se por si só. Contudo, na medida em que a procura
directamente, perde de vista o fundamento em que se baseava e o sentimento de felicidade
desmorona-se. Por outras palavras, a felicidade deve ser uma consequência e não se atinge
197
só pela vontade ” (Frankl, 1994:25).

5.6 Lendo uma resposta para a pergunta da pesquisa

Retomo e resumo o que já foi explicado sobre o essência das perguntas da pesquisa: a
SERENIDADE da vida é tempo e fruto do centrar-alimentar; a UTILIDADE da vida é tempo e
fruto do agir; a CORAGEM é tempo e fruto do celebrar e do abençoar a unidade do Ser.
Contudo, e neste momento da pesquisa, dou-me conta de que tal vida também
representa o que Viktor Frankl diz serem os três caminhos da descoberta de sentido.

“O homem, por força da sua vontade de sentido, não só busca um sentido, mas também
(...) o encontra por três caminhos. Antes de tudo, encontra um sentido em fazer e
produzir algo. Além disso, encontra um sentido em vivenciar algo, em amar alguém.
Mas, mesmo numa situação sem saída, com que se enfrenta inerme, pode, sob certas
circunstâncias, encontrar um sentido; o que importa é a atitude e a firmeza com que
enfrenta o destino inevitável e fatal. A firmeza e a atitude permitem-lhe dar testemunho
de algo de que só o homem é capaz: converter um sofrimento numa conquista” (Frankl,
1994:33).

No caminho DO QUE SE FAZ E SE PRODUZ, descobre-se a utilidade; no caminho da


VIVÊNCIA E DO AMOR, descobre-se a serenidade; no caminho da TRANSFORMAÇÃO DO
SOFRIMENTO NUMA BÊNÇÃO, descobre-se a coragem.

197
Texto original: “… y no se puede lograr a voluntad” (Frankl, 1994:25).

411
Para que serve, então, uma vida serena, útil e corajosa,
para que serve uma vida sem medo?

“Para recuperar essa harmonia fundamental que não destrói, que não explora, que não
abusa, que não pretende dominar o mundo natural, mas que deseja conhecê-lo na
aceitação e respeito para que o bem-estar humano se dê no bem-estar da natureza em
que se vive. Para isso é preciso aprender a olhar e escutar sem medo de deixar de ser,
198
sem medo de deixar os outros ser harmonia – sem submissão” (Maturana, 2006) .

Tal como, quando perdidos numa estrada, precisamos orientações simples para
encontrar a direcção do nosso destino, também agora, para esta pergunta de
formulação simples, quereria formular uma resposta simples – serve para a realização
de uma utopia realizável199. Uma utopia realista, segundo Morin (1998 e 2006). Serve
para que a pessoa seja capaz de ser o que o mundo precisa.

5.7 Síntese do “para quê”

Nas narrativas do grupo de pesquisa foram inicialmente identificados dois tipos de


sentidos para o medo – o “medo para a conservação social” e o “medo para o
desenvolvimento humano”.

Contudo, ao longo do processo de interpretação dos dados, fica muito mais clara a ideia
de que os sentidos do medo não se separam em blocos distintos, mas antes podem ser
encontrados num continuum entre dois pólos – de um lado, o pólo do individualismo e
do outro, o pólo do ajustamento. É, contudo, com a integração destas duas polaridades,
numa dinâmica de individuação-solidariedade, que se encontra o desenvolvimento
humano, se responde ao seu desafio e se encontra a fortaleza de se ser e sentir parte
do todo.

198
www.angu.net/feijao/edu_maturana.htm.
199
Utopia realizável – “um conceito utópico em que acreditamos e vemos como possibilidade de realização
no tempo” (Trigo et al., 2001:31)

412
Uma vida serena, útil e corajosa, uma vida sem medo, enquanto conceito utópico de
uma realidade que se acredita possível, traduz-se, por isso, da seguinte maneira:

- Na relação com o Eu – auto-conhecimento e auto-aperfeiçoamento,


consciência do que se valoriza, realização de objectivos, construção de uma
nova realidade.
- Na relação com os outros – capacidade de empatia, descobrir o desconhecido,
menor dependência / melhor relação, sofrimento.
- Na relação com o mundo – coerência; responsabilidade e criação; abertura e
fraternidade; serviço, autoridade, liberdade e paz.

Pela interacção entre as três dimensões se dá a resposta de que o mundo precisa.

413
414
415
416
QUEM
O QUÊ
COMO
POR QUÊ
5.8 Categorias de Análise para a conservação social
na relação com o Eu

para o desenvolvimento humano na relação com o Outro


PARA QUÊ
na relação com o Cosmos

perguntas do grupo que ficam em aberto


IV. CELEBRAR
418
I. PROCESSO DA PESQUISA
Introdução
Capítulo 1 – Roteiro

II. CENTRAR
Capítulo 2 – Descobrir os próprios caminhos
Capítulo 3 – Descobrir caminhos de outros

III. AGIR
Capítulo 4 – Criar o caminho

IV. CELEBRAR
O sentido do caminho
À maneira de conclusão
Proposta educativa
Para abrir um novo caminho
Fechar o ciclo
Reabrir o ciclo

419
O Sentido do Caminho
Verdade

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.


A porta da verdade estava aberta, Chegaram ao lugar luminoso
Mas só deixava passar, Onde a verdade esplendia seus fogos.
Meia pessoa de cada vez. Era dividida em metades
Diferentes uma da outra.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
Porque a meia pessoa que entrava Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Só trazia o perfil de meia verdade Nenhuma das duas era totalmente bela.
E a segunda metade E carecia optar. Cada um optou conforme
Voltava igualmente com meio perfil. Seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
C. Drummond de Andrade

O caminho foi feito. Ou, melhor, foi feito um certo caminho – um caminho possível, o da
“meia verdade” da sabedoria do poeta, “conforme meu capricho, minha ilusão, minha
miopia200” (Drummond de Andrade, 2005). Agora, sete anos decorridos, é tempo de
parar, de recuar um pouco e
de semicerrar os olhos para,
do ponto em que me encontro,
e sob uma certa luz, procurar
Análise da
Análise da
Categoria A+B Categoria
B
descortinar os contornos do
A
caminho ou do desenho feito –
A+C B+C
analisando, avaliando,
Análise da
Categoria
Legenda escolhendo, compreendendo,
C Passo 1: A / B / C =
análise de categorias
Passo 2: A+B / B+C /
fortalecendo.
A+C = interpretação
Passo 3: A+B+C =
construção de sentido

Ilustração IV.1 – Passo 3 – construção de sentido. Perceber é, assim, dar um


sentido ao mundo e à vida; a
um mundo e a uma vida que este trabalho construiu. Procuro, por isso, conjugar e ler,
em duas partes distintas, a essência do que, ao longo da investigação, foi sendo
colocado:

- Na primeira, e à maneira de conclusão, recapitulando/recriando alguns dos


elementos mais significativos da tese.

200
Os sublinhados são meus.

420
- Na segunda, e numa proposta educativa, criando/enquadrando os princípios a
ter em conta na educação de adultos – aquilo que é, afinal, o propósito da
pesquisa.

• À maneira de conclusão
One of my uncles passed on to me a great story of a Cherokee grandfather
talking to his grandson. The Grandfather explains, “there are two wolves that
live within each of us. One is filled with anger, hate, lust, envy, jealousy and
outrage at the injustices done to him. The other is filled with compassion,
kindness, humility and understanding”. The grandson asked him
“Grandfather, which is the stronger?”, and the Grandfather answered: “the
one wee feed” – Autor desconhecido

Há algumas semanas atrás, ouvi contar que, entre os utentes de uma das linhas de
autocarro da cidade, se discutia apaixonadamente a ideia de fazer circular um abaixo-
assinado para que fosse pedida a criação de uma nova “lei” que proibisse os
reformados (os “velhos que andam para cima e para baixo a passear”), de utilizarem
aquele transporte público nas horas de ponta e, assim, de ocuparem “o lugar de quem
trabalha”.

Fiquei a pensar, não só no que este episódio significa em termos sociais e culturais,
mas também no que ele significa no contexto desta pesquisa, já que o senti como
símbolo de tantas das coisas que foram objecto de reflexão e análise ao longo do
processo investigativo:

1. Um conceito de valor e de direitos humanos que se mede por cálculos


economicistas e rejeita o que não se encaixa nos padrões vigentes.
2. A focalização nos próprios problemas, com a consequente perda do sentido de
identificação, de empatia pelos outros e de afinidade humana.
3. Um sentimento de ameaça do desconhecido e de não aceitação da própria
natureza (ou das próprias sombras), aliado a uma vontade de impunidade de
quem vive como se aquilo que não aceita (ou de que tem medo) fosse algo
descartável de todos os possíveis.

421
4. Uma não consciência do papel que se tem na construção da realidade e do
quanto, a partir do nível micro, se é co-responsável pelo que se vive ao nível
macro.
5. O resultado de políticas que entendem que o tecnológico se sobrepõe ao
humano, ou que o humano se resolve através do tecnológico.
6. Uma atitude de controlo e dominação, em muito semelhante à que leva à criação
de guetos e/ou à colocação de carimbos, de estrelas amarelas (rosas, azuis, ou
o quer que seja), para mais fácil identificação dos não desejados.
7. Uma necessidade de sobrevivência a qualquer custo que, por causa do medo,
do interesse pessoal e do vazio que tudo rodeia, está ameaçando destruir o que
em cada um é humanidade.

O medo afecta a nossa vida pela forma como é olhado e sentido – se for um medo
construtivo e apropriado, constitui uma chamada para a acção; se for um medo
destrutivo e desadequado, é prejudicial para o próprio e para os outros e impede o
desenvolvimento humano. A grande dificuldade é que, como naquele episódio antes
citado, o medo se disfarça repetidamente de muitas caras e máscaras (de indiferença
ou de abnegação, de poder ou de brandura, de preguiça ou de azáfama, de tensão ou
de euforia...) e, pelo seu desconhecimento ou negação, pode converter-se num
disparador de dualidades desintegradoras e limitadoras da unidade, totalidade e
interacção da pessoa consigo mesma, com os outros e com o mundo.

Com esta preocupação em mente, e a partir das imagens que me suscitam o desafio da
imanência e transcendência da nossa condição humana, retomo e sintetizo o que, à luz
da complementaridade e na interpretação dos resultados da pesquisa, explica as
diversas interrogações e dinâmicas que rodeiam uma vida que se quer serena, útil e
corajosa.

Assim, e porque é resultado de um estudo exploratório, procuro apresentar o que


poderá ser um subsídio para uma futura construção de tipos-ideais que conjuguem os
atributos comuns à média das distintas formas de lidar com o medo. São QUATRO
MODELOS DISTINTOS que, enquanto modelos (ou pré-modelos), não existem puros na
realidade, mas que, como tal, podem facilitar a compreensão das situações

422
intermediárias que vivemos e que, no campo da Educação de Adultos, precisam de um
olhar atento.

Os primeiros três, sintetizando formas de viver com um medo desintegrador,


representam respostas condicionadas pelo auto-desconhecimento, pelo disfarce e
negação de si mesmo, pela dualidade, pela fragmentação do humano. O último,
símbolo de uma vida destemida e com sentido, representa respostas de totalidade e
unicidade.

1. Viver com os pés pisando firme na terra – o predomínio da utilidade e do agir.

Tão firme que, às vezes, os pés se enterram e ficam atolados; tão firme que só se
consegue descortinar o sentido da utilidade e dos deveres da vida. Sem consciência de
que pode ser de outra maneira, é o viver para o agir, ignorando (temendo) a consciência
de si mesmo, as experiências e o sentido de interioridade e transcendência.

Ilustração IV.2 – Predomínios da utilidade e do agir.

Privilegiando as potencialidades do corpo mental e do corpo cultural, colocam-se aqui, e


entre outros, os seguintes comportamentos e atitudes:

- centrar a atenção no profissional, no exterior, na matéria e no empírico;


- situar o pensamento e o discurso mais no racional, lógico e analítico;
- buscar o sentido da vida no fazer e no produzir.

423
Num mundo sem espírito, de desistência do eu, de anulação das diferenças, de
limitação da comunicação e de sofrimento sem sentido, são exemplos de medos: o
medo do existencial, o medo da intimidade-comunicação consigo mesmo, o medo da
solidão, o medo de ser diferente, o medo do desconhecido...

2. Viver com os olhos postos no sol – o predomínio da serenidade e do centrar.

Olhando tão só para o alto que o corpo fica a pairar sobre a terra; tão distante da
realidade física que só se consegue descortinar o sentido da luz, do sonho e do
espiritual da vida. Sem consciência de que pode ser de outra maneira, é o viver para o
centrar e para a serenidade, ignorando (temendo) as experiências e o desafio do
quotidiano, das limitações e da matéria.

Ilustração IV.3 – O predomínio da serenidade e do centrar.

Privilegiando as potencialidades do corpo transcendente e do corpo intuitivo, colocam-


se aqui, e entre outros, os seguintes comportamentos e atitudes:

- revelar uma “face luminosa” e esconder o que se acredita serem as “sombras”


da matéria;
- acreditar que no eu solitário se descobre a essência humana;
- sonhar e projectar, mas não executar;
- buscar o sentido da vida numa interioridade e num amor sem objecto.

Num espírito sem mundo em que se foge dos outros e se foge do mundo, são exemplos
de medos: o medo do próprio corpo, o medo da decisão, o medo do compromisso, o
medo da avaliação, o medo do conflito...

424
3. Viver sem os pés pisando firme na terra, nem os olhos postos no sol – o
predomínio do celebrar, mas sem coragem.

Desligado da terra e distante do sol; tão longe de um e do outro que só se procura viver
em função daquilo que são os interesses imediatos. Sem consciência de que pode ser
de outra maneira, é o viver para o celebrar, desvirtuando, ignorando (temendo) tanto as
exigências do quotidiano, como as reais necessidades de si mesmo, como ainda as
demandas do espírito.

Ilustração IV.4 – Predomínios do celebrar, mas sem coragem.

Privilegiando as potencialidades do corpo físico e do corpo emocional, colocam-se aqui,


e entre outros, os seguintes comportamentos e atitudes:

- fugir dos problemas, ignorar os próprios sentimentos e necessidades reais, criar


dependências;
- procurar a satisfação de necessidades deficitárias falsas, ser insaciável de
emoções, de comida, de afectos, de dinheiro, de entretenimento, de segurança,
de aprovação...
- buscar o sentido da vida no individualismo, no facilitismo e no imediatismo.

Sem espírito e sem mundo, vivendo na paralisia e no conformismo, rejeitando a


realidade e os desafios da vida e do Ser, são exemplos de medos: o medo dos outros e
do mundo enquanto projecção do medo de si mesmo.

425
4. Viver com os pés pisando firme na terra, os olhos postos no céu e no sol e todo
o resto do corpo fazendo a ligação entre os dois – a inter-penetração da
serenidade, da utilidade e da coragem.

Enquanto conceito utópico de uma realidade que se acredita possível, a construção de


uma vida “serena, útil e corajosa” é processo criativo de quem se atreve a escrever a
própria história na unificação de todas as dimensões humanas, na coerência entre o
tempo de interioridade e o tempo de exterioridade, na consciência da dependência entre
a realização pessoal e a realização do mundo.

É comprometer-se num processo permanente de mudança, permitindo-se percorrer o


caminho da missão, da integração da sabedoria de dois mundos e do testemunho de
que outro modo de vida é possível. É compreender que, no caminho do que se faz e se
produz se descobre a utilidade; no caminho da vivência e do amor, se descobre a
serenidade; no caminho da unificação dos opostos se descobre e celebra a coragem.

Ilustração IV.5 – A inter-penetração da serenidade, da utilidade e da coragem.

Os medos de(sta) gente madura, que se confundem com desejos e sonhos, são os
medos das necessidades de crescimento, de significação, de sentido, de justiça, de
beleza, de criatividade – são, por isso, os medos e os desafios de quem ama.

• Proposta educativa

O objectivo deste ponto do trabalho é congregar um conjunto de princípios que, a partir


da interacção de três áreas estruturadoras da construção do humano – Educação,

426
Criatividade e Motricidade Humana –, orientem a construção de um programa de
Educação de Adultos sobre “o Medo e o
Desenvolvimento Humano”.

Cri A Educação de Adultos é o terreno de


ativ
ida
de
intervenção num tempo e num lugar. A
Criatividade é o projecto de auto-
superação. A Motricidade Humana é o
na e
Hu cidad

sujeito em relação, a forma e expressão


ma
tri
Mo

Educação de Adultos
concreta da natureza humana estar no
Ilustração IV.6 – A dinâmica do desenvolvimento humano mundo. Os vínculos que entre elas
na educação criativo-motrícia.
existem, e que dão origem à EDUCAÇÃO
CRIATIVO-MOTRÍCIA, tornam-nas parceiros privilegiados, vitais, no processo de
Desenvolvimento Humano:

a) porque têm uma mesma natureza dinâmica;


b) porque manifestam uma mesma recusa da simplificação do humano a aspectos
instrumentais, estritamente biológicos ou economicistas;
c) porque pressupõem uma mesma ânsia de crescimento e de transformação;
d) porque assumem um mesmo compromisso com a acção;
e) porque apontam para um mesmo sentido ecológico, imanente e transcendente
da construção da existência humana.

Além disso, considera-se que:

a) O MEDO, enquanto emoção, é uma resposta reflexa a determinados estímulos;


enquanto sentimento, permite a criação de uma estatégia de protecção; mas,
enquanto estado de alma (não patológico, mas encarnado, enraízado e subtil), é
muito mais uma forma de estar no mundo – não uma coisa que se tenha, mas
uma condição em que se está e em que se vive e que, em causalidade circular,
tem, no modo de percepção do eu, a matéria prima da sua força e, na dualidade
e infidelidade a nós mesmos, um dos seus efeitos mais desintegradores e
limitadores.

427
b) O DESENVOLVIMENTO HUMANO é um movimento em espiral, consciente e
intencional, com ondas de repercussão que flúem entre os contextos micro e
macro, em princípio acessível a qualquer indivíduo que, por criação própria e em
busca de sentido na sua totalidade complexa, rompe as barreiras da gente
cinzenta, sem graça e com medo, alarga as fronteiras da desconfiança, da
apatia e da mediocridade feita norma e, com isso, assegura a possibilidade de
construção de mundos de alegria e de paz.

Neste duplo enquadramento, defino QUATRO PRINCÍPIOS GERAIS que, a partir do paralelo
entre os resultados das perguntas da pesquisa, as dimensões da Educação Criativo-
Motrícia e palavras clássicas de um Programa Educativo (tabela IV.1), e em interacção
sistémica (ilustração IV.6), sustentam a planificação e aplicação de um programa sobre
“o medo e o desenvolvimento humano”:

Perguntas da Dimensões da Educação Programa


PRINCÍPIOS EDUCATIVOS
Pesquisa Criativo-Motrícia Educativo
Produto / Consciência de si,
Para quê Propósitos 1. O princípio da individuação-integração.
dos outros, do cosmos
Quem Pessoa / Corporeidade Destinatários 2. O princípio da inquietação.
Como Processo / Tempos da
Metodologia 3. O princípio da coerência da acção e do
O Quê201 Mudança reconhecimento de si mesmo.
Pressão / Relação Eu-Outros-
Porquê Ideário 4. O princípio do testemunho e do contágio.
Cosmos
Tabela IV.1 – Paralelo entre perguntas da pesquisa, dimensões da educação criativo-motrícia, elementos de um programa
educativo e os princípios didácticos de um programa de educação de adultos sobre o medo e o desenvolvimento humano.

1. PARA QUÊ – O princípio da individuação-integração (o sentido da mudança).

Com o intuito global de proporcionar ocasiões de consciência e vivência que permitam


(1) RECONHECER dualidades, disfarces e sentimentos de escassez que levam à perda
do sentido de identidade, à paralisia e imobilidade pessoal e social, ao isolamento e
controlo, ao conformismo e totalitarismo e (2) COMPREENDER e CONSTRUIR um processo
de humanização em busca da emancipação do Ser Humano na sua relação consigo

201
Reúnem-se aqui os resultados de duas perguntas da pesquisa pois é pelo “como” que se tem acesso ao “o
quê”.

428
mesmo, com os outros e com o mundo, um programa educativo sobre “o medo e o
desenvolvimento humano” pode orientar-se em função da mobilização e
aperfeiçoamento de três propósitos que se interpenetram numa mesma realidade da
vida:

a) SERENIDADE – TOMAR CONSCIÊNCIA de que se é parte de um todo.


- Centrar e aprender o silêncio.
- Perceber quem se é e para que se existe – entender a missão, ter clareza de
metas, descobrir o motivo da vida para se ser capaz de ser a pessoa de que
o mundo precisa.

b) UTILIDADE – ASSUMIR A RESPONSABILIDADE por se ser parte de um todo.


- Descobrir o valor e a coerência em diversos campos de vida.
- Conhecer e explorar capacidades ocultas e potenciais criadores.
- Construir projectos de intervenção pessoal e comunitária.

c) CORAGEM – DECIDIR-SE e REVELAR-SE como único no todo.


- Celebrar o ser único e unificado, sem o qual o mundo seria diferente.
- Descobrir ocasiões para valorizar e desfrutar os processos.
- Aplicar projectos de intervenção pessoal e comunitária.

QUEM O QUÊ/COMO
Inquietação Reconhecimento
Coerência

POR QUÊ
Testemunho PARA QUÊ
Contágio Individuação
Integração

Ilustração IV.7 – Interacção sistémica dos princípios educativos


de um programa de educação de adultos sobre o medo e o desenvolvimento humano.

429
2. QUEM – O princípio da inquietação (a percepção-consciência do sujeito em
relação)

Simultaneamente princípio e fim, os destinatários de um programa educativo deste tipo


são ADULTOS, com necessidade e vontade de reconhecerem em si mesmos a presença
do medo e de acederem a um nível de consciência e de desenvolvimento mais elevado.

Contudo, porque se trata de um processo em que dar e receber se confundem (porque


ensinamos e aprendemos simultaneamente), não existe uma separação rígida entre
destinatários-educandos e destinatários-educadores – as condições que se colocam
para os educandos são, simultaneamente (mas com a responsabilidade acrescida que,
adiante, é explicitada), as condições que se colocam para os educadores. Os primeiros
são educandos-educadores e os segundos educadores-educandos.

Isto não impede que, no desenrolar de um programa sobre “o medo e o


desenvolvimento humano” (como, aliás, em qualquer outro programa educativo), haja
papéis, competências e compromissos distintos. Neste caso, por exemplo, é necessário
que o educador tenha capacidade de perceber os múltiplos subterfúgios, formas e
expressões que fazem com que seja tão difícil situar, compreender, encarar, lidar ou até
do medo ter consciência. Porque, como atrás foi dito, é encarnado, enraizado e subtil, é
preciso:

a) Estar atento às ambivalências do medo.


- A universalidade e a particularidade do medo.
- A evidência e a opacidade do medo.
- A pluralidade e a singularidade do medo.
- O realismo e o irrealismo do medo.
- A força e a fraqueza do medo.
- A ameaça e o desafio do medo.
- A permanência e a mutabilidade do medo.

b) Estar atento às estratégias verbais de encobrimento do medo.


- Considerar que os medos são “normais”.
- Não distinguir com clareza se os medos são do passado ou do presente.

430
- Negar os medos:
- “Impessoalizar” o discurso.
- Encontrar razões para não enfrentar os medos.
- Pactuar com o medo e com o sistema que o provoca.
- Falar antes dos medos dos outros.

c) Estar atento às estratégias não verbais de encobrimento do medo.


- Situar o discurso mais no cognitivo e menos no afectivo ou vivencial.
- Centrar a atenção no profissional ou no passado.
- Esquecer-resguardar experiências de interioridade.
- Centrar a atenção no exterior.
- Revelar uma “face luminosa” e esconder as “sombras”.
- Experimentar níveis baixos de riscos assumidos, de conflitos e de debates.

São, por isso, CONDIÇÕES PARA O EXERCÍCIO DO PAPEL DE EDUCADOR:


- Experimentar e activar continuamente em si mesmo o processo de
desenvolvimento humano que se procura estimular nos outros.
- Ter a experiência, a sensibilidade e a empatia necessárias para ser capaz de
entender o que sente quem enfrenta os problemas-desafios da mudança.
- Estar consciente das suas limitações, mas procurar viver de acordo as suas
percepções e valores.

É também por isso que um programa de educação de adultos baseado nos princípios
que aqui se colocam é um PROGRAMA PARA LÍDERES* COMUNITÁRIOS – aqueles que lidam
consigo próprios e lidam com os outros para fazerem transformações sociais.

3. O QUÊ / COMO – O princípio da coerência da acção e do reconhecimento de si


mesmo (o motor, o provocador do movimento).

A partir de todo o tipo de situações e problemas reais (da vida e do mundo), em


espaços educativos formais e não formais, utilizando as diferentes identidades-
manifestações do potencial humano (sensorial, mental, emocional, cultural, espiritual,
intuitiva e inconsciente), um programa de educação de adultos sobre “o medo e o

431
desenvolvimento humano” deve orientar-se por um caminho que, numa profunda
interacção com a sua finalidade, permita fazer a passagem:

a) Do aprender ao apreender – porque o medo desaparece pela vivência, não pelo


saber feito só de informações e de capacitação técnica.

b) Do “não sou/onde estou”, ao “sou-posso ser/aonde posso chegar” – porque,


estando o todo presente na parte e a parte no todo, utilizando a parte se pode
aceder às certezas, forças e coragem do todo.

c) Do mosaico à conexão – porque os processos de criação e transformação que


implicam a harmonia entre o saber, o fazer, o ser e o viver juntos precisam de
tempo de revitalização e de amadurecimento.

do medo ao desenvolvimento humano


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O TEMPO DO MEU MUNDO


O que é / O que pode ser /
Do que é ao que pode ser
Assumir / Decidir

Ilustração IV.8 – Componentes e estádios de um programa de Educação de Adultos


sobre o medo e o desenvolvimento humano

Deste modo, a ESTRUTURA DE UM PROGRAMA, com base na contínua inter-relação dos


movimentos centrífugo e centrípeto de humanização e transcendência, pode
compreender três COMPONENTES e sete ESTÁDIOS (ilustração IV.8):

432
1. NECESSIDADE E VONTADE.
Ponto de partida, meio e fim da mudança, é a componente de que tudo depende
e a que ajuda a fazer opções na construção de um programa específico.
I. Sentidas em, pelo menos, uma das dimensões da corporeidade –
emocional, mental, sensorial, intuitiva, cultural, espiritual ou inconsciente.

2. O TEMPO DO MEU MUNDO.


Processos internos de criação de condições e espaços que, no silêncio, na
serenidade e na harmonia do centrar, permitam aceder à descoberta da utilidade
e do sentido do agir.
II. Reconhecer o que se é – saber quem sou, descobrir o que sou com as
coisas que sinto (do que gosto, o que me faz bem; do que não gosto, o
que me faz mal)...
III. Descobrir o que se pode ser – ver de outra perspectiva, perceber que
posso e sou capaz, entender a exigência do que está contido em cada
situação, compreender o sentido da missão...
IV. Aprender como se passa do que se é ao que se pode ser – aprender a
confiança, aprender a errar, aprender a resignificar, aprender a resolver
problemas, aprender a viver aqui e agora...
V. Assumir a responsabilidade nas próprias mãos – reconhecer o valor em
causa, aceitar o para quê daquilo que se vive, perceber e atribuir-se a
diferença e a necessidade da mudança...
VI. Decidir a mudança – encontrar clareza de metas, criar as condições
internas da mudança.

3. O TEMPO NO MUNDO.
Processos externos de criação de condições e espaços que, no sentido do agir e
indo em frente em função da missão, permitam encontrar o desafio e a
serenidade de ser e celebrar o que se é fazendo a transformação da
convivência.
VII. Compreender, produzir e planear formas de relação consigo mesmo,
com os outros e com o mundo.

433
Contudo, esta estrutura funciona como um menu de possibilidades – isto é, sem uma
ordem específica para a sua utilização, já que as escolhas e aplicações dependem da
abordagem que, em função dos participantes e dos propósitos específicos de cada
situação, for considerada mais adequada. Isto não significa, porém, que não apresente
uma lógica interna. Tal como não é possível resolver de forma eficaz um problema se
não existe uma compreensão clara do que nele está implícito, também aqui é preciso
assegurar que se avançou nos processos internos (o mais difícil), antes de se querer
encarar os processos externos (aquilo que, muitas vezes, porque mais evidente, as
pessoas querem resolver em primeiro lugar).

Na PLANIFICAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DE UM PROGRAMA EDUCATIVO ESPECÍFICO, e


porque podem ser empregues instrumentos e técnicas de origem muito diversa (de
relaxamento, de bioenergia, da pele da alma, de criatividade, da arte e fantasia, de
dinâmicas de grupo, de comunicação, etc.), devem ser aplicados CRITÉRIOS claros que
orientem a SELECÇÃO DAS ESTRATÉGIAS DE ENSINO-APRENDIZAGEM e que garantam a
aplicação e coerência dos princípios. Alguns exemplos de critérios-tipo de avaliação:

- Será que considera a pessoa em toda a sua dimensão e complexidade?


- Será que permite aumentar os níveis de energia vital?
- Será que permite a realização de aprendizagens significativas?
- Será que permite a diversidade de respostas?
- Será que permite que a pessoa assuma o poder sobre a sua própria vida?

4. PORQUÊ – O princípio do testemunho e do contágio (as condições do terreno)

Um programa educativo sobre “o medo e o desenvolvimento humano” deve criar o


CLIMA que melhor se ajuste aos seus destinatários e propósitos específicos. Contudo,
na sua particularidade, tal clima não deve contradizer o que, em termos globais, se
caracteriza pela presença dos seguintes PADRÕES DE COMPORTAMENTOS, ATITUDES E
SENTIMENTOS:

434
- Um espaço de encontro para a reflexão permanente, para a diversidade de
perspectivas e formas de ser e estar no mundo, evitando um clima demasiado
adocicado e/ou artificialmente consensual.
- Níveis altos de autenticidade, sinceridade e congruência, de solidariedade,
confiança e respeito pela dignidade, privacidade e liberdade de cada
participante.
- Um ambiente de esforço prazenteiro, de rigor, seriedade e compromisso, aliados
à alegria, ao calor humano, à informalidade e à espontaneidade.
- Uma comunicação pessoal, não objectal, centrada nas pessoas e num
tratamento personalizado e atento às necessidades, autonomia e
responsabilidade de cada um.
- Abertura e tempo para assumir desafios e correr riscos, para revelar sentimentos
mais profundos (de medo, alegria, raiva, optimismo, encantamento, dor...), para
procurar e aplicar opções radicalmente diferentes, nem que o sejam só para os
seus criadores.

Para a criação deste contexto, e uma vez mais, assume especial importância a FIGURA
DO EDUCADOR que, tendo coberto as condições atrás expostas, não pode ser uma
imagem-função-abstracção de uma competência técnica. Tem de ser, sim, um
facilitador, um mentor, um mestre, um líder que dá conta, que não desiste e que, com
firmeza, encontra forma de ajudar/provocar/convocar/testemunhar/contagiar o
reconhecimento e a capacidade de caminhar em direcção àqueles que são os
propósitos do programa.

435
Para um novo caminho
Todas as coisas têm o seu tempo, e tudo o que existe debaixo
dos céus tem a sua hora.
Há tempo para nascer, e tempo para morrer;
Tempo para plantar, e tempo para arrancar o que se plantou;
Tempo para matar, tempo para dar vida;
Tempo para destruir, e tempo para edificar;
Tempo para chorar, e tempo para rir;
Tempo para se afligir, e tempo para dançar;
Tempo para espalhar pedras, e tempo para as ajuntar;
Tempo para dar abraços, e tempo para se afastar deles;
Tempo para adquirir, e tempo para perder;
Tempo para guardar, e tempo para atirar fora;
Tempo para rasgar, e tempo para coser;
Tempo para calar, e tempo para falar;
Ilustração IV.9 – Um tempo para terminar, Tempo para amar, e tempo para odiar;
um tempo para começar. Tempo para a guerra, e tempo para a paz.
Eclesiastes 3, 1-8

Li numa revista, que já não consigo identificar, a seguinte anedota: durante um


naufrágio, enquanto todos procuravam desesperados arranjar lugar nos barcos salva-
vidas, alguém, estendendo um embrulho a um dos marinheiros que ajudava as pessoas
a entrarem para um desses barcos, implorava – “Por favor, salve a minha tese! Eu não
importo, mas, por favor, salve a minha tese!”.

E, apesar do risível da história, imediatamente me perguntei até que ponto eu


compreendia ou me poderia sentir identificada com tal personagem. É que, posto de
lado o caricato da situação, a tese, em que tanto se trabalhou, durante tanto tempo, é
como um filho – pois é um trabalho a que demos a vida. O que resta saber é se lhe
demos literalmente a vida (e, por causa dela, qual filho tirano que nos esvazia, nos
deixámos morrer), ou se, dando-lhe vida, criámos vida e dela saímos fortalecidos e com
vontade de dançar.

Preciso, por isso, e nesta etapa final, de olhar o que está para trás para aí ler o que
possa estar para a frente. Ou, dito de outra maneira (e porque, também aqui, e como no
início202, “nada se cria, nada se perde, mas tudo se transforma”), procuro agora, não só
descortinar as NOVAS PERGUNTAS e os NOVOS CAMINHOS que são deixados em aberto,
mas também (e através da utilização de uma NOVA METÁFORA e de um outro olhar de
vida), enfrentar um último desafio de coerência – o de uma tese que começou, mas
também termina (e, por isso, renasce e se transforma), no trabalho interior.
202
Ver “Capítulo 3 Descobrir caminhos de outros – 2. Desenvolvimento humano”.

436
• Fechar o ciclo

Numa das primeiras fases da pesquisa, perguntaram-me se, na lista de medos que
então estava a compilar, já incluíra o “medo de terminar uma tese”. E explicavam-me
que esse medo que muita gente enfrenta (e que também é o “medo do que virá
depois”), faz com que algumas teses se arrastem durante demasiados anos e só com
muita dificuldade (ou sob pressão), sejam dadas por concluídas. Talvez também tenha
sido o que aqui aconteceu... Contudo, e se assim foi, o que agora procuro é encarar
esses (ou outros) medos e reflectir, mesmo que de forma breve, sobre a experiência
vivida ao longo do processo investigativo.

Será este um exercício de auto-conhecimento? Acredito que também. Como diz


Boaventura Sousa Santos, não é possível separar sujeito e objecto de estudo, nem
separar processo e produto do conhecimento – sendo “o objecto a continuação do
sujeito por outros meios, (...) todo o conhecimento científico é auto-conhecimento”
(1988:52) que não pode, por isso, acontecer numa esfera desencarnada, mas na
realidade diária do (meu) próprio existir.

Mas, além disto, reflectir e dar notícia de como investigadora e grupo de investigação
cresceram à luz da pesquisa, é também um exercício de coerência – porque uma tese
que começa no trabalho interior tem de terminar no trabalho interior; porque é
necessária a coerência entre o que se investiga e o que essa investigação representa
como opção de mudança e de transformação social.

Mas é também um imperativo do próprio tema da pesquisa. Se a pergunta central e os


resultados obtidos indicam que o educador só pode ajudar outros a enfrentarem os seus
medos se ele próprio estiver no processo de enfrentar os seus, então, como
investigadores-educadores, não nos podemos desobrigar deste último exercício, nem,
de alguma maneira, dele dar testemunho. Vou dividir a resposta em duas partes. Na
primeira, está contida a minha reflexão pessoal; na segunda, a reflexão do grupo e
sobre o grupo de pesquisa colaborativa.

437
1. De novo eu – Já alguma vez? Sim, muitas vezes...

Pegou na carteira e saiu.


Dissera pouco mais que nada. Responderam-lhe nada. Para trás, naquela
tarde, ficavam anos. Já não lhe pertenciam.
Há muito que quase não falava. Sem o saber, tinha decidido que se eles
sozinhos não tinham sido capazes de compreender, também ela não precisava, nem
podia, explicar. Tinha preferido estar e ser só transparência, como formiga não
visível em imensa escultura de metal.
Naquela tarde, ela sabia, tinha
morrido um pouco. Não, tinha morrido
muito. Mas sabia que, naquela mesma
tarde, também estava em vias de
nascer.
Tinha-se preparado com um
enorme cuidado. Era como se o chuveiro
que demoradamente tomara, como se o
Ilustração IV.10 – Voltando aos próprios caminhos.
cabelo que delicadamente esticara e
como se o traço dos olhos com que realçara o tom intenso, fossem sinal e final dos
dias e das horas que até aí vivera. O que usava era emprestado: o fato, da irmã; o
colar, da vizinha; o perfume era seu, mas tinha sido oferecido - um presente de
outros tempos. Também aqui o sinal e o final do que tudo passa, do que nada em
definitivo lhe pertence - tal como ela que passa, mas não fica, se sente, mas ninguém
segura.
Pegou na carteira e saiu.
O que pensavam de si os seus amigos, não sabia. Aliás, não lhe interessava
nada, mesmo nada. Era como se, durante anos, tivessem estado todos fechados no
mesmo quarto e, afinal, nunca tivessem falado a mesma língua. Era a destruição da
completa ilusão dos que juntos julgavam ter rido, chorado e amado.
Agora sabia que só tinha sido e existido verdadeiramente nos precisos
instantes em que de manhã despertava. Aí, o que pensava era seu e só seu. Sentia,
mas não entendia, que era aí onde estavam os seus infernos e os seus paraísos.
Depois esquecia, mas eles, silenciosos, permaneciam.

438
Como vultos ao fundo de uma sala, os seus sonhos, agora descobertos, tinham
vindo a prepará-la para esta tarde em que, só a si, ousava revelar os seus prazeres e
os seus vícios mais ocultos. E, como mãe de criança por nascer, perguntava-se: Como
será quando for grande? Tempestade ou calmaria? Ternura que seduz pela frescura
ou força da natureza que nada segura?
Assim, naquela tarde, Maria do Vento pegou na carteira e saiu.

A vida é a tese, a tese é a vida – nada pode ser deitado fora.

Foi este um dos primeiros desafios. A tese não podia ficar à margem da vida, nem a
vida podia ficar esquecida, ou em compasso de espera, à margem da tese. Assim, e
perante a vontade de um conhecimento que ensine a viver, fica a pergunta: como, ao
longo da pesquisa, me tornei uma pessoa mais serena, útil e corajosa? Ou, dito de
outra maneira, e no final de um tempo que foi tempo para aprender-lembrar-
reencontrar-sentir-viver-ser coisas importantes, o que aconteceu ou mudou desde que
escrevi o primeiro texto da pesquisa, “Eu pessoa – já alguma vez?”?

Fui mordida por dois cães pretos.

Literalmente. Na montanha, em Puracé, junto de uma casa, mas longe de qualquer


povoado. Vi-os, “são cães domésticos, não há problema”, avancei no seu território. Eles
correram para mim e rosnaram. Eu tive medo e quis sair dali. Virei-lhes as costas. Fui
mordida. Quem disse que “se rosnam, não mordem”? Mas eu tinha-lhes virado as
costas. Por isso, fui mordida. Corri para junto dos meus amigos. Eles lavaram e
espremeram a ferida, para sair o que pudesse contaminar. Deram-me a mão, o ombro,
o colo, para, pelos afectos, aliviar a dor... e o medo. A ferida física não infectou, mas
doeu durante várias semanas – curou, mas a marca ainda lá está. A outra, a das
emoções, essa fortaleceu.

O que tem esta história a ver com a tese? Tudo. Ao longo da tese, muitas vezes, de
muitas e diferentes maneiras, fui revisitada por outros cães. Às vezes até parecia que a
tese tinha vida própria e, com isso, me obrigava a ganhar o direito de a defender.

439
Porque a tese é a vida e a vida é a tese. E tive de fazer opções. Umas vezes afastei-os
(aos cães, aos medos), mas não os coloquei em lugar nenhum – e eles voltaram, ou eu
sei que hão-de voltar. Outras vezes a vida surpreendeu de uma tal maneira que a opção
foi mesmo parar, enfrentar, perceber que o perigo (o medo) não está fora, mas dentro e,
com isso, transformar e avançar.

Assim, e perguntando-me se, também aqui, a ordem dos factores não pode ser
arbitrária, o que encontro agora na minha frente?

Para uma vida útil, o desafio da inquietação da coerência.

Figura 1 – Organizado, higiénico, seguro Figura 2 – Em expansão Figura 3 – Em expansão e coerência


Ilustração IV.11 – Símbolos do meu processo de crescimento.

Há treze anos, durante o meu Master de Criatividade, simbolizei-me (a mim e ao


processo do meu crescimento) entre a passagem da figura 1 para a figura 2. O fazer
coexistir o organizado, higiénico e seguro com a necessidade de expansão e da
aventura – o lado dos pés descalços, dos horizontes largos, do silêncio, dos
entusiasmos, da certeza que há coisas loucas ou difíceis que valem a pena, mesmo
quando, aparentemente, não se conseguem entender.

Hoje, por causa deste trabalho, acrescento a figura 3. É a vontade de decidir quem sou
através da inquietação da coerência e interligação entre vários espaços de vida – dentro
de mim mesma, com os outros, com o mundo.

Para uma vida corajosa, o desafio da alegria.

Para que perceba que somos destinados à alegria. Às vezes, tantas vezes, teimamos
em viver miseravelmente. Estamos sempre a tentar provar que a nossa vida é a mais

440
difícil, que somos nós os que estamos mais cansados, os que temos mais problemas,
os que temos mais obrigações a cumprir. Gostamos de insistir nas nossas misérias.
Mas estou e estamos destinados à alegria. É bom que não o esqueça.

Para uma vida serena, o desafio da


esperança.

Frente a problemas e medos que


tantas e tantas vezes se repetem,
perceber que, nesse aparente
eterno retorno dos ciclos de vida, é
a imagem da espiral que se
constrói – é a passagem para
Ilustração IV.12 – Aprendizagem quântica. novos patamares, (re)significados
que se acrescentam, coisas pequeninas que mudam, lentes (re/des)coloridas que se
tornam coisas grandes e são salto quântico que colocam outro olhar na vida.

2. De novo nós – O caminho da vivência das sessões.

Foram dois os tempos de balanço realizados pelo grupo de investigação colaborativa


sobre os efeitos da fase formativa da pesquisa. O primeiro, logo no final dessa fase (na
segunda parte da 12ª e última sessão do grupo), antes do início da análise de dados. O
segundo, dois anos e meio depois, quando o grupo se voltou a reunir – para a
apresentação e discussão dos significados encontrados na interpretação dos dados da
pesquisa; para, re-avaliando e repensando o processo vivido, fundamentar nessa
distância temporal as orientações curriculares atrás expostas; para, e ainda que tal não
estivesse previsto, decidir sobre o seu futuro como grupo.
Procurarei colocar, no cruzamento de dois vectores, o que nas duas ocasiões foi posto
à reflexão – no primeiro vector, colocarei as vantagens e limitações encontradas; no
segundo, os efeitos produzidos e sentidos ao nível das quatro dimensões envolvidas
(pessoa, processo, produto e pressão).

Porém, e considerando que a fase formativa:

441
a) tem características específicas que fazem com que “pessoa” e “produto” se
confundam;
b) englobou algum trabalho de sistematização do conhecimento em função dos
propósitos da pesquisa,
colocarei na dimensão “pessoa” as reflexões sobre os efeitos da fase formativa
propriamente dita e, tanto quanto é possível fazer a distinção, reservarei para a
dimensão “produto” as observações que possam estar mais directamente ligadas com o
propósito específico da pesquisa.

Vantagens / Pessoa

Foram identificadas mudanças ao nível da TOMADA DE CONSCIÊNCIA – consciência da


existência de alguns medos, melhor consciência daquilo que se é, maior consciência
sobre a importância e necessidade de assumir responsabilidade por aquilo que se quer
ser.

- “Identifiquei alguns dos meus medos” (E).


Final da
- “Descobri que tenho muito que aprender sobre mim (…). Aprendi que há medos
fase
que só nós os podemos enfrentar. Aprendi também que nunca os irei enfrentar de
formativa
uma só vez” (O).
- “Fiz descobertas, vi coisas em retrospectiva” (K).
2,5 Anos
- “Foi uma experiência importante em termos pessoais. Reflecti no que, de outra
depois
maneira, não faria, sobretudo no confronto comigo mesmo” (M).

Existe também indicação de que certos efeitos da fase formativa ultrapassaram a


tomada de consciência e tiveram algum IMPACTO EXTERIOR.

- “Há uma frase que (…) para mim faz um sentido corporal. Foi uma frase que foi
construída ao longo deste processo (…): “se fizer parte da tua missão (se fizer
Final da
parte da minha missão), faz o que tem de ser feito sem te preocupares com as
fase
consequências” (J).
formativa
- “Cada semana, cada encontro com o grupo, era psicoterapia para mim. Eu ia em
paz, relaxada, feliz por ter estado «em casa»” (A).

442
- “Já partilhei (…) que um dos meus medos é algum receio que tenho sempre de
expor, de falar de mim e do que sinto. Neste grupo, esse receio, ou esse pouco à
vontade, foi-se dissolvendo com o passar o tempo e com as sessões que fomos
tendo e com a aproximação que se foi criando entre os elementos do grupo” (L).
2,5 Anos - “Vivi o relacionamento com as pessoas. Disse às pessoas que gostava delas. Não
depois tinha feito isso até aí. É uma revolução na minha parte” (K).

Existe, finalmente, também indicação de que, como em muitos processos de mudança,


A TRANSFORMAÇÃO NÃO FOI (NÃO É FÁCIL), nem pacífica.

- “E estes encontros aqui (…) nutriram os meus passeios da noite e levaram-me a


Final da
questionar muitas coisas da minha vida e a fazer várias avaliações. E, em relação
fase
a alguns desses pormenores, exerceram o que eu sinto como que uma revolução
formativa
dolorosa nalguns aspectos” (M).

Vantagens / Clima

Confirmam-se os resultados obtidos na análise de dados anterior – níveis altos de


ESPONTANEIDADE, de À VONTADE e de SEGURANÇA EMOCIONAL nas relações.

- “Esta possibilidade de podermos falar sem sermos julgados – isto é uma dádiva.
Eu não vinha à espera de tanto” (J).
- “Tem sido uma experiência incomparável (…). Desde a primeira sessão senti-me
Final da
confortável para partilhar o mais profundo de mim” (O).
fase
- “Relativamente a este grupo e a esta pesquisa, isto foi das coisas que mais me
formativa
tocou desde o início – foi a forma informal com que as sessões foram
acontecendo. Acho que foi um dos aspectos que me ajudou a sentir à vontade e
liberto para me manifestar” (L).
2,5 Anos - “O termo-nos encontrado todos tão diferentes, mas sentindo-nos em casa uns com
depois os outros, para mim foi a maior riqueza que eu pude ter” (A).

443
Vantagens / Processo

Por um lado, a experiência da ida ao Gerês é exemplo do que teve impacto nas
pessoas e na vida do grupo, pois reflecte a importância e a necessidade de uma
formação que, muito mais do que circunscrita ao mental e conceptual, englobe
VIVÊNCIAS EM TODOS OS NÍVEIS DO SER (físico, mental, emocional, cultural…). Por outro, a
importância de uma formação que é processo, que DEMORA E SE CONSTRÓI COM O
TEMPO.

- “Outro ponto importante para mim foi a ida ao Gerês e a experiência aí vivida de ir
até ao limite das minhas forças, das minhas capacidades. Aceitar tentar e aceitar
desistir. E ambas as coisas por mim mesma – sem recear o juízo de ninguém, sem
Final da recear o juízo de mim mesma, isto é, sem recear o fracasso” (E).
fase - “A gente não gosta das pessoas por aquilo que tem em comum. Gosta das
formativa pessoas por aquilo que vive em comum, aquilo que vivemos em comum. Nós, de
facto, somos muito diferentes (…), mas aquilo que vivemos em comum aproxima-
nos, principalmente quando vivemos sem as defesas. E isso também foi uma
aprendizagem muito importante para mim” (J).
2,5 Anos - “Sinto-me no caminho de conciliação dos opostos. O aproveitamento das sessões
depois é alguma coisa que só é feita ao longo de um caminho” (L).

Cômputo geral das vantagens identificadas


= justificação da proposta educativa (1) =

Estão justificados os princípios educativos atrás apresentados, nomeadamente no que


diz respeito ao “princípio da individuação-integração” e ao “princípio da coerência da
acção e do reconhecimento de si mesmo” 203.

Fica também reconhecida a importância de:


- Desenvolver programas e propostas de trabalho que, enquanto parte de projectos
de auto-superação, integrem e permitam viver em acção as diferentes identidades-

203
Ver “IV O sentido do caminho – Proposta educativa”.

444
manifestações do potencial humano.
- Criar um clima com níveis altos (1) de esforço e compromisso aliados à alegria,
informalidade e espontaneidade; (2) de autenticidade, sinceridade, congruência,
solidariedade e repeito pela dignidade, privacidade e liberdade de cada participante.

Limitações / Pessoa

Mas, sobre o trabalho da fase formativa, foram também apresentadas diversas


limitações que se, por um lado, e em situações futuras, precisam ser equacionadas, por
outro, também reforçam a importância dos princípios curriculares atrás apresentados.

Neste primeiro conjunto de reflexões aqui colocado, identificam-se situações em que a


capacidade de aproveitar as ocasiões para “ir ao fundo da questão” ficou limitada por
questões de ordem pessoal – tanto relacionadas com a FORMA DE ESTAR NO PROCESSO
FORMATIVO, como com as RAZÕES POR QUE A ELE SE ADERIU.

- “O trabalho do grupo não correspondia em nada à minha expectativa e eu achava


Final da
que não estávamos nada... nem a atingir o que podíamos, nem a pôr na mesa
fase
aquilo que devíamos (…). Precisava de outra disponibilidade pessoal para
formativa
aprender o que tenho para aprender” (I).
- “Viemos pela ... [investigadora-investigação], não pelo tema” (I).
2,5 Anos
- “Hoje tenho pena de não termos arriscado mais. Não aproveitei para ir ao fundo da
depois
questão, não me expus, não fui ao fundo” (I).

Limitações / Processo-Produto

Existe também a indicação de dificuldades relacionadas com o processo e com o


produto da pesquisa, nomeadamente por causa de alguma inibição perante a
UTILIZAÇÃO FUTURA das coisas ditas.

2,5 Anos - “Coibição… saber que o que se vai dizer vai ser interpretado. Sem ir para a tese
depois poderia ser mais aprofundado” (M).

445
Limitações / Pessoa-liderança

Finalmente, mas não menos importante, foram apresentadas limitações que (estando
relacionadas com uma certa PREOCUPAÇÃO-CONFUSÃO-MISTURA entre os tempos e
propósitos específicos da FORMAÇÃO e os tempos e propósitos específicos da ANÁLISE
DE DADOS e da construção do conhecimento), têm origem nos PROCESSOS DE
COMUNICAÇÃO E LIDERANÇA. Assim, e ainda que algumas das observações que aqui
servem de exemplo até estejam justificadas pelos princípios metodológicos dos
procedimentos e técnicos da pesquisa, na verdade foram sentidas como limitações por
participantes do grupo e, como tal, precisam ser consideradas204.

Final da - “A sensação que tenho é que isto está tudo no começo. Foi feito algum caminho,
fase mas não sei se era exactamente este o ponto a que se pretendia chegar” (L).
formativa
- “Tínhamos falado que isso poderia acontecer, mas depois as entrevistas
individuais não foram feitas. Aí poderíamos ter feito uma recolha de dados muito
maior” (K).
- “Era preciso a colocação de mais exercícios reais” (L).
2,5 Anos
- “Eu acho que não havia objectivos. Havia um ponto de partida, mas ficou a
depois
sensação de que nalgumas das sessões andávamos à deriva” (M).
- “Eu introduziria algumas provocações – levar a estrebuchar, mais directividade,
maior provocação, maior confronto; fazer questões interessantes, perguntas
perturbadoras” (I).

Cômputo geral das limitações identificadas


= justificação da proposta educativa (2) =

Ficam globalmente justificados os princípios “da inquietação” e “do testemunho e do


contágio” da proposta educativa. Fica especificamente reconhecida a importância de
algumas anotações contidas nesses princípios 205. Por exemplo:

204
Ver “IV Para um novo caminho”.
205
Ver “IV O sentido do caminho – Proposta educativa”.

446
- Os destinatários de um programa educativo deste tipo são ADULTOS, com
NECESSIDADE e VONTADE de reconhecerem EM SI MESMOS a presença do medo e de
acederem a um nível de consciência e de desenvolvimento mais elevado.

- Enquanto espaço de encontro e de reflexão, um programa educativo precisa (1) dar


abertura e tempo para CORRER RISCOS e REVELAR SENTIMENTOS MAIS PROFUNDOS de
medo, alegria, raiva, optimismo, encantamento, dor...; (2) EVITAR UM CLIMA
DEMASIADO ADOCICADO E/OU ARTIFICIALMENTE CONSENSUAL; (3) contar com a
presença de um facilitador-educador que se dá conta, não desiste e, com firmeza,
encontra forma de ajudar-provocar-contagiar o reconhecimento e a capacidade de
caminhar em direcção a níveis mais altos de criação-superação e desenvolvimento
humano.

• Reabrir o ciclo

Cumpre-me agora, e para terminar, não só apresentar um conjunto de PERGUNTAS E


PROJECTOS que sinto terem
ficado em aberto, mas
SERENIDADE
também fazer os últimos
comentários sobre as
principais CONQUISTAS E
UTILIDADE CORAGEM UTILIDADE DIFICULDADES dos vários
planos da pesquisa que, ao
longo do PROCESSO DE

CRIAÇÃO, se encontraram em
SERENIDADE permanente cruzamento e
interacção – o plano
Ilustração IV.13
“Era a mesma velha luta, mas eu estava a começar epistemológico, o plano
a partir de um lugar de maior liberdade do que antes” – Moffit (2001a:3) metodológico, o plano
pedagógico e o plano ontológico.

447
Assim, e porque a obra também é imagem de quem a produz (dos seus valores e
motivações, do seu contexto, das suas capacidades e do seu estilo), posso começar por
dizer que, em termos gerais (mas com implicações bem visíveis na análise mais
específica que a seguir desenvolvo), considero que o percurso realizado e os resultados
alcançados naqueles quatro planos reflectem e são consequência de três grandes
tendências206: uma tendência para alguma oscilação entre opções que procuram a
liberdade de criar as próprias regras e linhas de orientação e opções que procuram o
detalhe, a estrutura e a organização; uma tendência para considerar o impacto das
decisões e das escolhas nos sentimentos das pessoas e na necessidade de harmonia e
relações positivas; uma tendência para ganhar energia em situações de reflexão
tranquila e de procura dos próprios pensamentos internos (Selby et al, 2003).

No plano epistémico e metodológico

Porque, além de tudo, se trata de uma investigação aplicada na área da Educação de


Adultos (que, para promover o sentido da autonomia e da responsabilidade dos
cidadãos e das comunidades, se baseia na reflexão das pessoas envolvidas sobre a
sua própria experiência – Unesco, 2003)207, vejo como especialmente significativa a
coerência que existe entre:

a) o conteúdo das perguntas de partida208 – que pressupõem a necessidade de um


educador que se faça educando (Freire, 2003);
b) o processo da investigação209 – que, concebendo a investigação como fonte de
transformação pessoal e colectiva, fez com que o observador, ao investigar
também sobre a sua própria experiência, se tornasse sujeito-objecto de
observação (Morin, 2003; Jaramillo, 2006b);

206
Estas tendências correspondem às dimensões de análise do VIEW sobre os estilos de criação (ver ponto
1 do Capítulo 4, “Criar o caminho”). Como os meus resultados individuais estão muito próximos das
médias obtidas pelo grupo de pesquisa, não houve grande descontinuidade de estilos (pelo menos em
termos estatísticos), entre os meus tempos de trabalho independente e os tempos de trabalho com o grupo.
207
“É essencial que as abordagens da educação de adultos sejam baseadas na herança das próprias
pessoas, cultura, valores e anteriores experiências e que as diversas formas com que estas abordagens são
implementadas capacitem e encorajem cada cidadão a tornar-se activamente envolvido e a ter uma voz”
(http://www.unesco.org/education/uie/confitea/declaeng.htm: 2003-02-04).
208
Ver “Introdução – 3. A pesquisa”.
209
Ver “Capítulo 1 Roteiro – 2.2 Descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas”.

448
c) os resultados obtidos na investigação210 – que demonstram a importância do
papel de educador que, consciente e intencionalmente, active dentro de si
mesmo o processo de desenvolvimento humano que procura estimular nos
outros.

É nesta coerência entre planos que, aliás, entendo residir grande parte da legitimidade
da pesquisa. Nenhum dos intervenientes (e na diversidade de papéis desempenhados),
ficou de fora, mas, de dentro, teve de se expor (quando não, comprometer), aos
processos de transformação que advoga. Mas é também essa a razão (ou, pelo menos,
uma das razões), por que o processo demorou tanto – tendo feito experiência(s) de
vida, foi preciso dar tempo para ganhar consciência dessa mesma experiência.

Contudo, e ainda fruto de um estilo criativo que se sente mais confortável perante
soluções moderadas e flexíveis (não se revendo, por isso, numa estrutura demasiado
definida, mas também não se aventurando muito a fugir ao estabelecido), ficam outras
possibilidades em aberto:

a) O desenvolvimento de uma pesquisa que, do ponto de vista da metodologia


qualitativa, se atreva a ir mais longe – em que as etapas e fases sejam mais
simultâneas e, por isso, e por exemplo, não precise separar a leitura dos autores
da leitura da informação recolhida no trabalho de campo.
b) A utilização das virtualidades e das dinâmicas própria da pesquisa colaborativa
em todas as fases do processo da pesquisa.
c) O aprofundamento do paralelo entre as etapas da pesquisa e as componentes e
estádios do processo de resolução criativa de problemas, inclusive através da
utilização mais explícita das dinâmicas e dos instrumentos próprios desse
processo.

No plano pedagógico

Considero como mérito desta investigação o facto de, a partir de um conceito de


educação criativo-motrícia, ter conseguido congregar e integrar dinamicamente o que,
até aqui, andava disperso por diversos autores e por diversas abordagens. Isto significa

210
Ver ponto 4 do “Capítulo 4, Criar o caminho”.

449
que, embora não apresentem elementos muito diferentes ou inovadores, os princípios
educativos enunciados potenciam o desencadeamento de uma grande variedade de
combinações e sinergias entre os diferentes princípios, componentes e fases que as
integram. Porém, o que considero ser o grande êxito desta investigação é que o grupo
de pesquisa, dois anos e meio depois do programa realizado, quer voltar a trabalhar
junto.

Fica, todavia, por descobrir (e é esse o desafio que o grupo de pesquisa agora se
coloca), o que poderia ter trazido ao tema uma visão radicalmente diferente. Fica,
também por isso, em aberto a necessidade de desenvolver um novo projecto de
investigação que (continuando a conjugar educação de adultos e pesquisa
colaborativa), possa dar origem a soluções mais audaciosas:

a) Vivenciando mais – com actividades ou exercícios que impliquem (muito mais)


todos os níveis do ser.
b) Debatendo mais – com mais diversidade e mais provocação, desestabilizando
mais.
c) Garantindo que as razões da participação dos actores envolvidos se situam mais
no processo de formação do que nos resultados da pesquisa.
d) Colocando a figura de um educador (facilitador, orientador, líder) que,
continuando a ser parte, mas exigindo mais, também consiga criar um espaço
seguro para o fluir das emoções, para aceitar e lidar com a diversidade, a
adversidade e o confronto.

Além disso, e porque este foi um estudo exploratório, confronto-me agora também com
a necessidade e vontade de:

a) Aprofundar a compreensão do que existe na nossa cultura escolar, académica,


estudantil... que tanto medo nos provoca ou, dito de outra maneira, compreender
o que falta no ar social que respiramos para que sejamos capazes de enfrentar a
vida de forma “serena, útil e corajosa”.
b) Estudar a relação entre medo e poder e, com isso, aprofundar o tema do medo
na liderança e na formação de líderes.

450
c) Estudar o medo no contexto de formação inicial e contínua de educadores e
professores para, a partir daí, ajudar a melhorar planos educativos e programas
que ultrapassem as dimensões do saber e do saber fazer do professor e
possam, por isso, propiciar as condições que o ajudem a tornar-se sujeito de
desenvolvimento.
d) Utilizar a proposta educativa aqui construída aqui construída para, num contexto
concreto (educativo ou organizacional) e frente a um problema específico, fazer
investigação-acção.

Entretanto, e muito embora o que há ainda que fazer, também muito já ficou definido
como linhas de acção na valorização do ser humano para que se possa vencer o medo
em tantas das suas formas e espaços.

No plano ontológico

Foi um exercício de revisão e mudança de olhar para compreender os fenómenos em


que, enquanto observadora(es) e observada(os) estamos imersos – como
investigadora, como grupo de pesquisa colaborativa.

Foi um exercício de reflexão sobre a própria experiência – passando de um primeiro


projecto “técnico”, só focalizado na análise da experiência dos outros, para um projecto
de quem, investigando e inovando a partir de si mesmo, procura dar sentido ao mundo
e à vida.

Foi um exercício de incorporação, num conjunto que procurei coerente, das minhas
diferentes áreas de formação académica e humana – enquanto educadora, enquanto
socióloga, enquanto magister em criatividade.

Foi um exercício de passagem para um outro ciclo de vida – já que, neste momento, e
em outros espaços de acção pessoal e profissional, são já visíveis importantes
resultados.

451
Quando partires de regresso a Ítaca,
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências... (....)

Que sejam muitas as manhãs de verão,


quando, com que prazer, com que deleite,
entrares em portos jamais antes vistos! (...)
Entre o medo e o
desenvolvimento humano
Terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é o teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem. (....)

Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.


Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.
C. Cavafy (1911)

Este é parte do texto com que, há muitas páginas atrás, dei início à apresentação
daquele que foi aqui o meu regresso a Ítaca – a descrição dos procedimentos e técnicas
desta pesquisa. Retomo-o agora, no fim dessa viagem, para (me) lembrar que, muito
mais importante do que chegar, o importante foi fazer a experiência do caminho –
aprendendo a viver com a lentidão dos processos; apropriando e ganhando consciência
da experiência; dando tempo para escutar, para processar, para dialogar; não
repetindo, nem me repetindo, mas fazendo pela primeira vez e aprendendo a ser
aprendiz do meu próprio horizonte.

Tão simples foi. Talvez, por isso, tão complicado e doloroso muitas vezes também. Mas
essa é, acredito, bênção da paz.

Obrigada
Maria Helena Gil da Costa
Porto, 9/12 de Maio 2008

452
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