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Dissertação de Doutoramento
Área Científica – Educação
Palavras-
Palavras-chave: medo, desenvolvimento humano, educação de adultos,
criatividade, motricidade humana, ecologia de saberes.
Tendo como base esta preocupação e, como pressupostos, que o homem é um todo, a
realidade é múltipla e complexa e a subjectividade é característica essencial do
comportamento humano, esta tese assume e incorpora a necessidade de encarar a
pesquisa nas ciências sociais e humanas com um acto criador. Assim, e enquanto
Investigação Qualitativa que, em determinadas fases do processo, recorre à Pesquisa
Colaborativa, pode ser sumariamente explicada a partir da interacção sistémica das
quatro dimensões (os 4 P’s) da Criatividade.
Key Words:
Words fear, human development, adult education, creativity, human
motricity, “wisdoms” ecology.
With this in mind, and assuming that (1) man is a single entity, that (2) reality is
both multiple and complex and that (3) subjectivity is an essential feature of human
behaviour, then this thesis assumes and incorporates the need to view social and
human scientific research as an act of creation. Therefore, as Qualitative
Investigation (which, at some stages, uses Collaborative Research) it can be
explained by systemic interaction of the 4 dimensions of Creativity (the 4 P’s)
summarised as follows.
The Product, the thesis – aims to set out a number of procedures and educational
principles for dealing with fear to use in an adult education context. It
combines: different perspectives and visions of the universe and different
languages; a multidimensional concept of human development; the idea that
language is embodied in the person and that the researcher influences the
construction of the object of knowledge.
The Person, the researcher – given the purpose of creating a product with the above-
mentioned characteristics, it was necessary that the researcher (as
individual, or as a group, depending on the stages of the process) was able (1)
to conciliate the role of researcher with the role of object of research, (2) to be
not only an operator, but a reflexive subject who tries to transform knowledge
into consciousness.
The Pressure, or the nature of the research context – a climate which was intended
to be of living knowledge; with an attitude of “inhabiting the question”, and a
will to create its own research design.
The Process, the operations performed – links the different stages and phases of the
research process with the different components, stages and phases of the
Creative Problem Solving process. Consequently, the research process was
done in three different paths: the path of problem and challenging
understanding; the path of partial and global results production; the path of
process assessment which, simultaneously closes and reopens into a new
cycle of investigation.
Índice
Índice de Ilustrações iv
Índice de Quadros vii
Índice de Tabelas viii
Índice de Mapas Mentais ix
Índice de Gráficos ix
Índice de Anexos ix
I. PROCESSO DA PESQUISA
Introdução 3
1. Fundamento Epistémico da Tese 4
1.1 Na procura dos que constroem um saber encarnado e comprometido com o
mundo 5
1.2 Implicações para a pesquisa 8
2. O Tema 15
2.1. Os caminhos que foram dar ao medo 15
2.2. O problema 20
3. A Pesquisa 23
3.1 Caminhos, fases, actores e enquadramento da pesquisa 24
3.2 Propósito e perguntas de investigação 28
3.3 Categorias de análise 34
4. Organização da Tese 37
Capítulo 1 – Roteiro 43
1. Criação do desenho da investigação 49
1.1 Os desafios do desenho da Complementaridade e do processo de
Pesquisa Colaborativa no contexto metodológico da Investigação
Qualitativa 49
1.2 Modalidades da investigação 53
1.3 Critérios de credibilidade 54
2. Itinerário e crónicas do caminho 55
2.1 Cronograma 57
2.2 Descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas 59
2.2.1 Etapa 0 – por outros caminhos 61
2.2.2 Etapa 1 – na procura de caminhos 63
2.2.3 Etapa 2 – caminhando 72
2.2.4 Etapa 3 – achando luzes 90
i
2.2.5 Etapa 4 – novos caminhos 97
2.2.6 Correspondência entre processo criativo, processo da pesquisa e
relatório da pesquisa 99
2.3 Processo de orientação da tese 101
2.4 Processamento de dados 106
2.4.1 Mapa mental das categorias de análise 109
2.5 Aspectos éticos 113
II. CENTRAR
III. AGIR
ii
2. O que (faz com que uma vida seja serena, útil e corajosa)? 333
2.1 O disfarce do medo 333
2.2 Definição e caracterização do medo 337
2.3 Relação de medos e efeitos do medo 345
2.4 Síntese do “o quê” 353
2.5 O quê – excerto do mapa mental das categorias de análise 355
3. Como (pode o educador lidar com o seu medo e, por isso, ajudar as pessoas
a enfrentarem os seus medos e a terem uma vida serena, útil e corajosa)? 354
3.1 A vivência da totalidade 354
3.2 Formas de (não) lidar com o medo 360
3.3 Brincando com números 363
3.4 O processo de lidar com o medo 368
3.5 Síntese do “como” 373
3.6 Como – excerto do mapa mental das categorias de análise 375
4. Por que (razão o educador só pode ajudar outros a enfrentarem os seus
medos e a terem uma vida serena, útil e corajosa, depois de ele próprio ter
entrado no processo de enfrentar os seus)? 377
4.1 Passagem de testemunho e contágio 377
4.2 As causas do medo 379
4.3 As causas do não medo como um dado insignificante muito significativo 386
4.4 O velho, o rapaz... e o medo 388
4.5 Conjugando e formulando uma resposta 392
4.6 Síntese do “por quê” 394
4.7 Por quê – excerto do mapa mental das categorias de análise 397
5. Para que (serve uma vida serena, útil e corajosa)? 399
5.1 Ser parte do Universo 400
5.2 O medo para o desenvolvimento humano 401
5.3 O medo para a conservação social 403
5.4 O papel do medo na construção do humano 404
5.5 Ligações e reflexões 405
5.6 Lendo uma resposta para a pergunta da pesquisa 411
5.7 Síntese do “para quê” 412
5.8 Para quê – excerto do mapa mental das categorias de análise 414
IV. CELEBRAR
iii
Para abrir um novo caminho 436
Fechar o ciclo 437
Reabrir o ciclo 447
ILUSTRAÇÕES
I.1 Imagem que, ao ouvir a sua conferência no IV Congresso Internacional
de Motricidade Humana, o Prof. Manuel Sérgio (me) sugeriu sobre a
nova forma de fazer ciência. 8
I.2 Inter-relação entre educação, ciência e desenvolvimento humano. 10
I.3 Da dicotomia à sinergia. 12
I.4 Caminhos. 15
I.5 Interligação entre conteúdo conceptual, processo de investigação e
campo de criação. 34
I.6 Encadeamento das fases da pesquisa. 60
I.7 Primeira tentativa de definição do projecto de investigação. 62
I.8 Segunda tentativa de definição do projecto de investigação. 63
I.9 Objectivos e resultados da primeira fase das histórias de vida / escrita
do eu. 65
I.10 Objectivos e resultados da segunda fase das histórias de vida / escrita
do eu. 66
I.11 Construção do referencial interno. 67
I.12 Processo de revisão bibliográfica. 69
I.13 Linhas de orientação para a construção do itinerário da pesquisa e
observação do trabalho de campo. 70
I.14 A pergunta como morada: caminho de construção. 71
I.15 Fotografias da sessão de relaxamento e construção das “caixas do
medo”. 76
I.16 Fotografias da partilha da memória descritiva da “caixa do medo”. 77
I.17 Fotografias da partilha da aplicação da técnica ORA ao filme visualizado
“A Vila”. 78
I.18 Fotografias da sessão de construção dos mapas mentais. 79
I.19 Fotografias do fim de semana no Gerês – caminhada nocturna e subida
à serra. 80
I.20 Fotografias da preparação e da sessão do labirinto. 80
I.21 Fotografias da sessão de apresentação e discussão dos mapas
mentais. 81
I.22 Fotografias do trabalho de construção de subcategorias. 91
iv
I.23 Construção de Sentido. 95
I.24 Fotografias de Orientadores e Orientanda. 103
I.25 Exemplo de um dos slides utilizados no primeiro encontro do grupo de
pesquisa colaborativa. 114
II.1 Os próprios caminhos. 123
II.2 Querem ouvir uma história? 134
II.3 Compilação de títulos de jornais que diariamente modelam o nosso
pensar e sentir. 146
II.4 Síntese de definições de medo. 172
II.5 A diversidade do medo. 178
II.6 A ligação entre o medo e a organização perceptual. 194
II.7 Do domínio do medo sobre a acção ao medo impulsionador da acção. 198
II.8 “Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. A partir de Boff, 1998
e de Ribeiro Dias, 2000. 204
II.9 A dinâmica do Ser na perspectiva do Yoga Sutra. Adaptação de
Esteves, 1999. 208
II.10 Higher Self e Ego. Reprodução, adaptação e tradução de Jeffers
(1991:193). 210
II.11 Síntese de “Todos os nomes do Ser”. 213
II.12 A desumanização nas histórias dos homens. 214
II.13 A desumanização nas histórias dos homens. 217
II.14 A desumanização nas histórias dos homens. 219
II.15 Modelo ecológico de Bronfenbrenner. Reprodução de Papalia et al.
(2001:14). 220
II.16 O círculo dos três caminhos. 226
II.17 Dinâmica do desenvolvimento humano. 236
II.18 Campo de criação – interligação das três dimensões. 237
II.19 Educação de Adultos: síntese do conceito. 240
II.20 Criatividade: síntese do conceito. 244
II.21 A abordagem sistémica da Criatividade. Tradução e reprodução de
Isaksen, 1994. © The Creative Problem Solving Group, Inc. – Used with
permission. 245
II.22 Motricidade Humana: síntese do conceito. 249
II.23 Relação entre os pilares da motricidade humana e as características do
acto motrício. 250
II.24 Dimensões da corporeidade. Reprodução de Trigo, E. (2006). 253
II.25 Inter-relação dos conceitos de Educação de Adultos, Criatividade,
Motricidade Humana e Desenvolvimento Humano. 254
II.26 O espaço dado ao Ser no processo de enfrentar o medo. 256
II.27 Dimensões da Educação Criativo-Motrícia. 258
v
II.28 A pessoa-corporeidade. Reprodução de Trigo, E. (imagens de
conferências públicas). 259
II.29 O contexto/pressão-interacção da pessoa consigo mesma, com os
outros, com o cosmos. Reprodução de Trigo, E. (imagens de
conferências públicas). 262
II.30 O processo-momentos da acção e da mudança. Reprodução de Trigo,
E. (imagens de conferências públicas). 265
II.31 O produto – consciência de si, consciência dos outros, consciência do
mundo. 276
III.1 Passos 1 e 2 – análise e triangulação de actores e momentos da
pesquisa. 387
III.2 Fotografias de sessões do grupo de pesquisa. 290
III.3 Fotografias de sessões do grupo de pesquisa. 291
III.4 Fotografias de sessões do grupo de pesquisa. 291
III.5 Fotografias de sessões do grupo de pesquisa. 291
III.6 Fotografias de um encontro do grupo, três meses depois das sessões. 292
III.7 Perspectiva sistémica da criatividade. © The Creative Problem Solving
Group, Inc. – Used with permission. 302
III.8 A importância do clima. © The Creative Problem Solving Group, Inc. –
Used with permission. 302
III.9 Implicações do estilo de criação. © The Creative Problem Solving
Group, Inc. – Used with permission. 310
III.10 Influências no comportamento criativo. © The Creative Problem Solving
Group, Inc. – Used with permission. 310
III.11 Perspectiva sistémica das dimensões a considerar numa proposta de
um programa educativo sobre o medo e o desenvolvimento humano. 393
III.12 Sinergia dos movimentos horizontal e vertical das perguntas de
investigação. 400
III.13 Construção do binómio individuação-solidariedade. 407
IV.1 Passo 3 – construção de sentido. 420
IV.2 Predomínios da utilidade e do agir. 423
IV.3 O predomínio da serenidade e do centrar. 424
IV.4 Predomínios do celebrar, mas sem coragem. 425
IV.5 A inter-penetração da serenidade, da utilidade e da coragem. 426
IV.6 A dinâmica do desenvolvimento humano na educação criativo-motrícia. 427
IV.7 Interacção sistémica dos princípios educativos de um programa de
educação de adultos sobre o medo e o desenvolvimento humano. 429
IV.8 Componentes e estádios de um programa de educação de adultos
sobre o medo e o desenvolvimento humano. 432
IV.9 Um tempo para terminar, um tempo para começar. 436
vi
IV.10 Voltando aos próprios caminhos. 438
IV.11 Símbolos do meu processo de crescimento. 440
IV.12 Aprendizagem quântica. 441
IV.13 “Era a mesma velha luta, mas eu estava a começar a partir de um lugar
de maior liberdade do que antes” – Moffit (2001a:3) 447
QUADROS
I.1 Síntese geral da pesquisa. 24
I.2 Caminhos, actores e tempos da pesquisa. 25
I.3 Perguntas, propósitos e categorias de análise da pesquisa. 29
I.4 Categorias de análise da pesquisa. 34
I.5 Resumo do índice da tese. 37
I.6 Desenho da pesquisa. 49
I.7 Cronograma da pesquisa. 57
II.1 Conceito de emoções primárias. Destaques a partir de Damásio (1995,
2003). 156
II.2 Conceito de sentimentos de emoções universais básicas e subtis.
Destaques a partir de Damásio (1995, 2003). 157
II.3 Conceito de emoções secundárias. Destaques a partir de Damásio
(1995, 2003). 158
II.4 Conceito de emoções de fundo. Destaques a partir de Damásio (1995,
2003). 159
II.5 Conceito de sentimentos de fundo. Destaques a partir de Damásio
(1995, 2003). 160
II.6 Cartografia elementar do medo. Reprodução e tradução de Marina
(2006:33). 163
II.7 Propósitos do desenvolvimento humano. Reprodução de Trigo & Coego
(2003). 277
III.1 Aplicação do SOQ – tabela comparativa entre os resultados do grupo de
pesquisa e resultados de empresas inovadoras e de empresas
estagnadas. 308
III.2 Resultados da aplicação do SOQ ao grupo de pesquisa. 309
III.3A Parte B do SOQ – resultados da pergunta 1 (1ª parte). 318
III.3B Parte B do SOQ – resultados da pergunta 1 (2ª parte). 319
III.4A Parte B do SOQ – resultados da pergunta 2 (1ª parte). 322
III.4B Parte B do SOQ – resultados da pergunta 2 (2ª parte). 325
III.5A Parte B do SOQ – resultados da pergunta 3 (1ª parte). 328
III.5B Parte B do SOQ – resultados da pergunta 3 (2ª parte). 329
III.6 Relação entre “serenidade-utilidade-coragem” e o eixo central da
categoria “como”. 369
vii
TABELAS
I.1 O que é e o que não é “serenidade”. 31
I.2 O que é e o que não é “utilidade”. 31
I.3 O que é e o que não é “coragem”. 31
I.4 Interligação de conceitos. 32
I.5 Paralelos entre conteúdo conceptual, perguntas de investigação e campo
de criação. 33
II.6 Correspondência entre etapas e fases da pesquisa e as componentes e
estádios do processo de resolução criativa de problemas (versão 6.0 –
Isaksen, 2000). 48
I.7 Sessões do grupo – síntese por sessão dos resultados alcançados e das
perguntas e temas em aberto. 85
I.8 Correspondência entre o processo criativo e metodológico e o relatório da
pesquisa. 99
II.1 Categorias de sentidos presentes nos significados lexicais e analógicos
da palavra medo. 152
II.2 Paralelos entre expressões e atributos do conceito de medo. 173
II.3 Síntese de “Todos os nomes do Ser”. 213
II.4 Paralelos entre as condições-estados da vida plena sugeridos por
Csikszentmihalyi, Sturner e as Escrituras Hindus. 226
II.5 Estádios do processo de desenvolvimento espiritual de Sturner.
Reprodução, tradução e adaptação de Sturner (1994:57-58). 231
II.6 Paralelos entre diversas abordagens dos estádios de desenvolvimento
humano. 234
III.1 Razões para participar no grupo de pesquisa. 293
III.2 Comparação entre razões para participar e expectativas em relação do
trabalho de pesquisa. 296
III.3 Efeitos por participar no grupo de pesquisa. 298
III.4 Referências espontâneas ao clima do grupo de pesquisa. 303
III.5 Dimensões do clima: indicações de níveis altos, níveis baixos e
indicações neutras nas sessões do grupo de pesquisa. 305
III.6 Aplicação do SOQ - diferenças entre os valores médios do grupo de
pesquisa e das organizações inovadoras. 308
III.7 Aplicação do SOQ - comparação entre resultados das empresas
inovadoras e das organizações estagnadas e os valores da amplitude do
grupo de pesquisa. 307
III.8 Síntese dos resultados do grupo de pesquisa. 318
III.9 Correspondência dos sete corpos com tipos e efeitos de medo
identificados no grupo de pesquisa. 351
III.10 Percentagens de categorias de efeitos do medo identificados no grupo de 352
viii
pesquisa
III.11 Síntese da leitura. 354
III.12 Correspondência entre o eixo central da categoria “o quê” com o eixo
central da categoria “como”. 361
III.13 Número de referências a formas de lidar com o medo que promovem o
desenvolvimento humano em função dos momentos da acção e da
mudança. 364
III.14 Referências a formas de lidar com o medo que promovem o
desenvolvimento humano. 365
III.15 Razões para ter medo referidas no grupo de pesquisa. 382
III.16 Razões para não ter medo referidas no grupo de pesquisa. 387
III.17 O papel do medo na construção do humano. 405
IV.1 Paralelo entre perguntas da pesquisa, dimensões da criatividade,
elementos de um programa educativo e os princípios didácticos de um
programa de educação de adultos sobre o medo e o desenvolvimento
humano. 428
MAPAS MENTAIS
II.1 Mapa geral das categorias de análise. 111
III.1 Quem – excerto do mapa geral das categorias de análise. 331
III.2 O Quê – excerto do mapa geral das categorias de análise. 355
III.3 Como – excerto do mapa geral das categorias de análise. 375
III.4 Por Quê – excerto do mapa geral das categorias de análise. 397
III.5 Para Quê – excerto do mapa geral das categorias de análise. 414
GRÁFICOS
III.1 Aplicação do SOQ ao grupo de pesquisa – resultados médios. 307
III.2 Aplicação do VIEW ao grupo de pesquisa – resultados da orientação para
a mudança. 312
III.3 Aplicação do VIEW ao grupo de pesquisa – resultados da forma de
processar a informação. 314
III.4 Aplicação do VIEW ao grupo de pesquisa – resultados das formas de
decidir. 315
ix
2ª Secção
- Anexo 3 Transcrição das sessões do grupo de pesquisa com
marcação das categorias de análise
Sessão 1
Sessão 2
Sessão 3
Sessão 4
Sessão 5
Sessão 6
Sessão 7
Sessão 8
Sessão 9
Sessão 10
Sessão 11
Sessão 12
- Anexo 3A Mapas mentais construídos pelo grupo de pesquisa (sessões
8 e 11)
1 Categorias de medos
2 Estratégias para lidar com o medo
3 Medo e Desenvolvimento Humano
3ª Secção
- Anexo 4 Mapa mental das categorias de análise
1 Total
2 Parcelar – Categorias
3 Parcelar – Quem
4 Parcelar – O Quê1
5 Parcelar – O Quê2
6 Parcelar – Como
7 Parcelar – Por Quê
8 Parcelar – Para Quê
- Anexo 4A Descrição das categorias de análise
Introdução
1. Quem
1.1 As Pessoas
1.2 O Grupo
2 O Quê
2.1 Definição de medo
2.2 Relação e explicação de medos
2.3 Efeitos do medo
2.4 Perguntas do grupo que ficam em aberto
x
3. Porquê
3.1 Causas do medo
3.2 Causas do não ter medo
3.3 Perguntas do grupo que ficam em aberto
4.Como
4.1 Como os outros reagem aos nossos medos
4.2 Como se lida com o medo
4.3 Perguntas do grupo que ficam em aberto
5. Para Quê
5.1 Para a conservação social
5.2 Para o desenvolvimento humano
5.3 Perguntas do grupo que ficam em aberto
- Anexo 5 Análise de dados – tabelas das categorias e subcategorias de
análise
Quem
1 Pessoas – total
2 Pessoas – razões para participar
3 Pessoas – expectativas
4 Pessoas – efeitos por participar
5 Grupo – total
6 Grupo – dimensões do clima
O Quê
1 Total
2 Medos
3 Efeitos do medo
Como
1 Total
2 Como outros reagem
3 Centrado na Conservação
4 Centrado no Desenvolvimento Humano – clima
5 Centrado no Desenvolvimento Humano – tomada de
consciência
6 Centrado no Desenvolvimento Humano – assumir
7 Centrado no Desenvolvimento Humano – tomada de
decisão
7 Centrado no Desenvolvimento Humano – estratégias
Por Quê
1 Total
2 Causas do medo
3 Causas do não medo
xi
4 Pessoas/medo
5 Pessoas/não medo
Para Quê
1 Total
2 Conservação Social
3 Desenvolvimento Humano – Eu
4 Desenvolvimento Humano – Outros
5 Desenvolvimento Humano – Cosmos
- Anexo 6 Situational Outlook Questionnaire – resultados
SOQ Chart
SOQ Presentation
SOQ Qualitative Analysis
SOQ Themes for the verbatim responses
- Anexo 7 VEW – resultados
Group 1
Group
Introduction to VIEW Presentation
VIEW Group Results
VIEW Hand Score Report
VIEW Report Form
4ª Secção
- Anexo 8 Diário da tese
- Anexo 9 Diário de campo
5ª Secção
- Anexo 10 Certificados do The Creative Problem Solving Group, Inc.
CPS Advanced
CPS – Creative Problem Solving Facilitator
SOQ – Situational Outlook Questionnaire Administrator
VIEW Administrator
xii
I. PROCESSO DA PESQUISA
2
Introdução
I. PROCESSO DA PESQUISA
Introdução
1. Fundamento Epistémico da Tese
1.1 Na procura dos que constroem um saber encarnado e comprometido com o mundo
1.2 Implicações para a pesquisa
2. O Tema
2.1. Os caminhos que foram dar ao medo
2.2. Explicando o tema
3. A Pesquisa
3.1 Caminhos, fases, actores e enquadramento da pesquisa
3.2 Propósitos e perguntas de investigação
3.3 Categorias de análise
4. Organização da Tese
Capítulo 1 – Roteiro
II. CENTRAR
Capítulo 2 – Descobrir os próprios caminhos
Capítulo 3 – Descobrir caminhos de outros
III. AGIR
Capítulo 4 – Criar o caminho
IV. CELEBRAR
O sentido do caminho
Para abrir um novo caminho
3
1. Fundamento Epistémico da Tese
“A história é sobre uma pequena onda, a balançar pelo oceano fora,
divertindo-se à grande. Goza o vento e o ar fresco, até que repara nas
outras ondas à sua frente, a despenhar-se nas rochas.
- Meu Deus, isto é terrível – diz a pequena onda. Olha só o que me vai
acontecer!
Aí chega outra onda. Vê a primeira onda (…) e pergunta-lhe:
- Porque estás tão triste?
A primeira onda diz:
- Oh, não compreendes! Vamos todas despenhar-nos! Todas nós, ondas,
vamos transformar-nos em nada! Não é terrível?
A segunda onda diz:
- Não, quem não compreende és tu. Tu não és uma onda, tu és parte do
oceano”.
Mitch Albom
Mas as páginas seguintes resultam igualmente (eu diria, até, essencialmente), de mais
um exercício de procura de identidade, feito aqui no encalço de grandes investigadores
e pensadores. São aqueles a quem, carinhosamente, gostaria de chamar “os meus
heróis” no caminho da busca de sentido, que é o que, em última análise, significa fazer
investigação.
4
- Heróis, finalmente, porque, em coerência*1 e enamoramento comprometido, são
quem, em diversos espaços e tempos, se tem atrevido a pôr em causa o
estabelecido, a alargar fronteiras e a descortinar novas formas de pensar, de fazer
as coisas, de fazer ciência e ser parte do mundo.
Assim, e tal como a riqueza de uma nação passa pelo reconhecimento das suas
origens, dos seus feitos, dos seus valores, dos seus homens e mulheres, também neste
início do trabalho, para lá de uma prática académica de fundamentação-legitimação
epistémica da pesquisa, eu gostaria de tentar fazer um ritual de reconhecimento de
alguns daqueles que participaram na construção:
- deste projecto de investigação – o que é o mesmo que dizer, de uma certa forma de
ler o (meu-nosso) mundo;
- das relações que estabeleci com (muitos) outros – e, de uma forma especial, com
quem fez parte do trabalho de campo e da análise de dados – o grupo de pesquisa
colaborativa;
- daquilo que vou sendo – enquanto educadora, enquanto investigadora, enquanto
pessoa… enquanto “mais eu” a descobrir.
É, por isso que, com vontade de pertencer a uma grande família, procurarei apresentar
aqui alguns dos autores e conceitos que, em termos globais, inspiraram e justificam o
chão-caminho-método em que esta investigação se desenvolve.
1
* - Sinal que, ao longo da tese, remete para o glossário.
5
cada vez mais aprofundada sobre os limites do rigor científico combinada com os
perigos cada vez mais verosímeis da catástrofe ecológica ou da guerra nuclear fazem-
nos temer que o século XXI termine antes de começar.
(...) Qual das imagens é verdadeira? Ambas e nenhuma. É esta a ambiguidade e
complexidade da situação do tempo presente, um tempo de transição, síncrone com
muita coisa que está além ou aquém dele, mas descompassado em relação a tudo o que
o habita” (Sousa Santos, 1988: 6).
Estava pouco mais do que no início do meu curso de Sociologia (1989-94) quando, pela
primeira vez, li “Um Discurso sobre as Ciências” do Prof. Boaventura Sousa Santos.
Nessa altura andava lutando comigo mesma pelo entendimento das grandes questões
epistemológicas, um campo das ciências que me parecia muito árido, crítico e analítico,
distante de tudo o que era a simplicidade da minha experiência de vida e das minhas
preocupações essenciais e, por isso, também distante da minha capacidade de
compreender “por dentro” muito do que estava a estudar. Mas aquela leitura (não só
com o que aí pude encontrar de questionamento e interligação de campos e conceitos
mas, essencialmente, com tudo o que me fez reflectir sobre a ligação entre a ciência e o
sentido da existência e do desenvolvimento humano), trouxe-me também a
possibilidade de começar a entender o que, em muitos outros autores também, se pode
situar num continuum de matizes que represente as múltiplas formas da relação circular
entre fazer ciência e criar mundos.
- De um lado, uma forma de pensar o homem e de fazer mundo que separa corpo e
alma, que reduz e divide a complexidade* humana. Um mundo que tanto ocasiona
uma cultura materialista “do império dos sentidos”, como uma cultura espiritualista,
desenraizada, “pairando soberanamente por sobre a densidade do real (...), refém
das suas ideias, projecções e teorias” (Boff, 1998:61). Um mundo que se torna
responsável por um desenvolvimento unilateral, “ecologicamente predatório,
socialmente perverso e politicamente injusto” (Prieto, in Max-Neef, 1993:7). Uma
cultura que favorece “a auto-afirmação em vez da integração, a análise em vez da
síntese, o conhecimento racional em vez da sabedoria intuitiva, a competição em
vez da cooperação, a expansão em vez da conservação” (Capra, 1982:prefácio).
6
intersubjectividades, em que, por força da sua natureza dinâmica, da unidade e da
inter-relação de todos os fenómenos, “as descobertas científicas podem estar em
perfeita harmonia com os objectivos espirituais” (Capra, 1982:28). Uma forma de
entender e fazer ciência em que todo o conhecimento é local e total, em que todo o
conhecimento é auto-conhecimento, em que todo o conhecimento científico se pode
traduzir em sabedoria de vida (Sousa Santos, 1988, 2002). Uma forma de fazer
ciência que tem consciência* de que “os padrões que os cientistas observam na
natureza estão intimamente relacionados com os padrões das suas mentes, com os
seus conceitos, pensamentos e valores” (Capra, 1982:17).
2
Naquele mesmo texto acima referenciado, Saturnino de la Torre também escreve que “a perspectiva
objectiva, estática, coisificada, a que nos acostumou o realismo científico, começa a vacilar à luz dos
novos saberes que vão desde a neurociência à transpersonalidade e da física mecânica à teologia
quântica”. Argumenta, por isso, sobre a necessidade de um encontro de saberes que, fluindo através de
campos muito diversos, seja resposta à “ecologia dos saberes” de Moraes e à “religação dos saberes” de
Morin.
7
ruptura, em relação a um crescimento, apenas técnico e científico, onde as “razões do
coração” não se conhecem e onde a “religião dos fins” se substitui pela “religião dos
meios”; (…) ruptura em relação ao domínio exclusivo, ditatorial do quantitativo e do físico
(mesmo nas suas formas pedagógicas), que eliminou do desenvolvimento humano o
não-mensurável, o não-formalizável, o não-biológico e não atribui ao ser humano senão
funções sem referência a um projecto de vida; ruptura, por isso, em relação a políticas
onde a afectação de recursos contemple tão-só a inovação tecnológica, a
competitividade empresarial, a competência científica, sem outros valores, como a
justiça social (…)” (Sérgio, 2005b:53-55).
3
IV Congresso Internacional de Motricidade Humana, 2005, Porto do Son (A Coruña), Espanha.
8
estabelecer prioridades para esta pesquisa. Assim, e muito mais do que me colocar
frente a opções metodológicas que tenham em vista o conhecimento pelo
conhecimento, as minhas decisões passam a ser orientadas pelos propósitos que
definem uma investigação aplicada4 – para que o conhecimento possa “ajudar as
pessoas a compreenderem a natureza de um problema (...) e, por isso, possa permitir-
lhes uma maior capacidade de controlo sobre o seu próprio ambiente5” (Patton,
2002:217).
Procurando, por isso, começar a dar notícia do modo como, nesta pesquisa, PROCESSO
INVESTIGATIVO e PROCESSO EDUCATIVO se cruzam e interpenetram, utilizo, como primeira
referência, o que (de acordo com a Prof. Anna Feitosa, 1999:69) são as quatro
perguntas fundamentais que E.F. Schumacher propõe como condição necessária para
aceder à essência do DESENVOLVIMENTO HUMANO:
4
De acordo com Patton (2002) o trabalho dos investigadores na investigação qualitativa aplicada pode ser
assim, resumidamente, descrito:
- Trabalham com problemas humanos e societais.
- A fonte das questões está nos problemas e preocupações vividas pelas pessoas e articuladas pelos
“policymakers”.
- Conduzem estudos que testam as aplicações da teoria básica e do conhecimento disciplinar em
experiências e problemas do mundo real.
- Utilizam campos interdisciplinares mais orientados para os problemas do que para as disciplinas.
- Respondem a questões interdisciplinares do campo da economia antropológica, da psicologia
social, da geografia política, do desenvolvimento educacional e organizacional, etc.
- Apresentam as suas experiências e insights pessoais nas recomendações que possam emergir
porque, durante o trabalho de campo, se colocaram especialmente próximos dos problemas
estudados.
- Têm consciência de que os problemas surgem dentro das fronteiras de um tempo e espaço
específicos.
Tipologia de Propósitos da Investigação Qualitativa (Patton, 2002:213):
1. Pesquisa básica (basic research): contribuir para o conhecimento fundamental e para a teoria.
2. Pesquisa aplicada (applied research): esclarecer uma preocupação social.
3. Avaliação sumativa (summative evaluation): determinar a eficácia de um programa.
4. Avaliação formativa (formative evaluation): melhorar um programa.
5. Investigação-acção (action research): resolver um problema específico.
5
“The purpose of applied research is to contribute knowledge that will help understand the nature of a
problem in order to intervene, thereby allowing human beings to more effectively control their
environment” (Patton, 2002:217).
9
Isto é, perguntas fundamentais que, no processo de construção de conhecimento,
começam por ser perguntas de desconstrução de nós mesmos. Perguntas
fundamentais porque, muito mais do que descrever ou explicar o que se estuda,
permitem compreender o que se estuda porque disso se faz parte (Max-Neef, 1993).
Perguntas fundamentais para que, operando dentro de nós mesmos e não permitindo
incoerências e falsas separações de mentes e tempos de vida (Bohórquez & Trigo,
2006), se vá ganhando o direito de, em comunhão e respeito, aceder à observação do
“mundo interior de outros seres”.
Posto isto, e, primeiro, com o que aprendi com muitos daqueles a quem já chamei “os
meus heróis”; segundo, num paralelo com o simbolismo dos “desafios [da união de
opostos] que se colocam para a construção do humano” (Boff, 1998:119); terceiro, na
medida da minha capacidade de autoconsciência, de autocrítica e de maturidade
científica e de criação, passo a colocar os sete princípios-compromissos-intenções que
procurei se mantivessem ao leme de todo o processo desta pesquisa.
“Os resultados científicos que [os cientistas] obtêm e as aplicações tecnológicas que
investigam estarão condicionados pela estrutura das suas mentes. Embora grande parte
das suas pesquisas (...) não seja explicitamente dependente dos seus sistemas de
valores, a estrutura mais abrangente dentro da qual essas pesquisas são efectuadas
nunca será independente de valores. Os cientistas são, portanto, responsáveis, não
10
apenas intelectualmente, mas também moralmente, pelas suas pesquisas” (Capra,
1982:18).
Entendendo que o pensamento não emocional não existe, que é preciso atender às
emoções, pois são elas que permitem “escutar o que acontece na profundidade de
cada um de nós” e categorizar as experiências com a qualidade do “bem” e do “mal”
(Damásio, 2003:183).
2. Voltar às coisas simples, formular perguntas simples, escrever com palavras simples
► SIMPLES/COMPLEXO.
Tentando não só colocar, como Einstein costumava dizer, as perguntas que “só uma
criança pode fazer mas que, depois de feitas, são capazes de trazer uma nova luz à
nossa perplexidade” (Sousa Santos, 1988:6), mas também aí e, exactamente por
isso, procurando ver como somos directamente responsáveis pelo nosso destino e
pelo destino do nosso planeta (Berman, 1981).
11
sabores que ajudem a construir e interpretar a informação. Respondendo ao desafio
do diálogo da ciência com diferentes formas de conhecimento, reabilitando o senso
comum, a integração e a complementaridade (Sousa Santos, 1988, 2002; Feitosa,
1999). Não ficando amordaçada e prisioneira de um só lugar, por seguro que seja,
mas que, afinal, não pode dar senão uma visão restrita na hora de compreender a
complexidade do real.
“Não se pode pensar em objectividade sem subjectividade. (...) Nem objectivismo, nem
subjectivismo (...), mas subjectividade e objectividade em permanente dialecticidade.
Confundir subjectividade com subjectivismo, com psicologismo, e negar-lhe a
importância que tem no processo de transformação do mundo, da história, é cair num
simplismo ingénuo. É admitir o impossível: um mundo sem homens, tal qual a outra
ingenuidade, a do subjectivismo, que implica homens sem mundo” (Freire, 2003:37).
12
5. Expor(-me) e ser parte do objecto de observação, conciliando a dualidade dos
papeis de investigador e de “investigado” ► OBSERVADOR/OBSERVADO.
Sendo honesta comigo mesma e com os outros e, com isso, revelando o que
sabemos estar muitas vezes a montante e a jusante das nossas investigações
(motivações, interesses, fragilidades, descobertas, necessidades de crescimento e
de amadurecimento …) (Bogdan & Biklen, 2006), mas que, por vezes, é tão difícil de
revelar.
Ganhando consciência de que a vida (e, por inerência esta pesquisa), não é uma
substância, mas um fenómeno de inter-relação com o universo e com o outros, um
fenómeno complexo que necessita de ser situado na interconexão do princípio
dialógico (que permite a dualidade no seio da unidade), do princípio da
recursividade (em que os produtos e os efeitos são, ao mesmo tempo, causas e
produtores daquilo que os produz) e do princípio hologramático (pois a parte está no
todo e o todo está na parte) (Morin, 2003).
13
aprendendo a fluir com ele e a correr riscos já que, como também (e tão bem)
ensina a sabedoria popular, o maior risco de todos seria não correr risco nenhum.
14
2. O Tema
15
que poderia ter acesso e que pudessem trazer algum contributo para o trabalho que
realizava, optei pela licenciatura em Sociologia.
Mas a sociologia (pelo menos como a percebia naquela altura), com a sua
abordagem tão mental e, de certa maneira, desapaixonada, com a sua objectividade
de análise e o seu espírito crítico, fazia-me ver que o mundo não era assim tão
facilmente mudável e mostrava-me, “pela explicação das regularidades sociais, que
havia uma multiplicidade de interferências em muitas das escolhas em que (...) eu
julgara6 exercer opções verdadeiramente livres” (Ferreira de Almeida, 1994:21).
Passei, por isso, a sentir que entre uma cabeça colocada nas nuvens, pela minha
formação como educadora, e os meus pés bem enterrados na terra, pela minha
formação como socióloga, havia um vazio que eu não sabia como preencher. E, por
muito valiosa que tivesse sido a experiência, na hora da conclusão do curso, o
cansaço era tanto que “só” me restava uma decisão: “aconteça o que acontecer,
venham os requisitos que vierem, estudante, nunca mais!”.
6
O sublinhado é meu.
16
Foi ao longo deste processo que conheci a Prof. Maria da Conceição Azevedo, que
também teve um papel importante no desenvolvimento e orientação desta tese.
Rapidamente percebemos que partilhávamos muitos sonhos e inquietações. Mas foi
(tantas vezes ainda é!) difícil perceber aonde ela queria chegar quando, em muitas
ocasiões, me dizia: “tudo contribui para o bem”.
E ela tinha razão. Um ano depois, num congresso de educação de infância em que
estive presente em Espanha, vi-me a assistir a uma conferência proferida pelo Prof.
David de Prado sobre o tema “Criatividade”. Foi, como é ele próprio, uma
conferência agitada e contundente. Mas, nesse momento, senti uma profunda
afinidade com o tema, como se ali pudesse vir a encontrar respostas para o meu
desassossego e para o reconhecimento das minhas próprias necessidades, um
meio de preencher e totalizar o espaço deixado vazio pelas duas formações e,
essencialmente, por aquele período de “semi-vida”.
Foi assim que encontrei muitas pessoas (colegas e professores), de vários pontos
do mundo, com muitos dos quais ainda hoje mantenho relações de trabalho e de
amizade, e que me fizeram perceber não estar sozinha na busca de novos conceitos
e novas formas de vida. Foi aí que conheci a Prof. Eugenia Trigo, Orientadora desta
Tese, pessoa inquieta e “desesperantemente perguntadora” que nunca me deixa
“jogar às escondidas”.
Não posso, e talvez não faça sentido, descrever aqui tudo o que representou a
minha passagem por terras de Santiago. Diria, porém, que foi o tempo em que me
compreendi peregrina do caminho de descoberta da minha vida: um caminho em
que se é (sou) eternamente aprendiz; um caminho em que se percebe que o mundo
(pelo menos o meu mundo) só muda se eu mudar – e que isso é que é urgente; um
caminho em que constantemente se procura não desistir de se ser quem se é; um
17
caminho de centração na própria interioridade e que, por isso, se faz só; mas
também um caminho que está cheio de bordões em que nos podermos (me posso)
apoiar – desde que seja capaz de os descobrir naquilo que são as oferendas e os
propósitos do universo.
Foi assim que, partindo da necessidade de uma consciência clara sobre a realidade
do presente, comecei a vislumbrar, na vida e também na ciência, um meio de
preencher o tal vazio. Tinha começado, mesmo sem o saber, a descobrir o
paradigma da mente corporizada (Varela, 2000; Trigo, 2005a, Toro, 2005a). Tinha
começado a descobrir que, para lá de todos os “devia” e dos “é preciso” do meu
tradicional compromisso com o mundo, e para lá dos “o quês” e do “porquês” da
ciência moderna, havia, também na vida, a urgência de aprender a perguntar pelos
“para quês” e pelos “comos” da ciência encarnada. Tinha começado a perceber que
ciência, porque é vida, é também poesia, é sonho, é sentir, é arte, é sabedoria, é
criação.
Talvez por isso (seguramente por tudo isto), muitas outras coisas mudaram. Foram
tempos de alguma... glória. Tão grande tinha sido já o caminho realizado que não
podia deixar de dar frutos. Inclusive na minha acção profissional:
Mas o problema do caminho é mesmo esse, ser caminho – isto é, ser dinâmica, ser
mudança. E se dele fazemos paragem ou estalagem, deixa de cumprir os seus
propósitos. Não passou, assim, tanto tempo que não começasse a sentir que estava
a ficar demasiado encantada, tranquila e segura com os resultados alcançados e
que, por isso, começava a repetir-me a mim mesma. E, quando se deixa de estar
vigilante, os velhos padrões de comportamento voltam a instalar-se. E eu estava (de
novo!) dando demasiado tempo para a acção, pouco para a centração, ainda menos
para a celebração – a também “velha fórmula” para evitar olhar honestamente para
18
dentro de mim mesma. Precisava, definitivamente, e sob pena de vir a revogar a
minha condição de mulher-peregrina, de voltar a pôr os pés ao caminho. Precisava,
ainda que paradoxalmente, de encontrar um meio de me “sentar” para tirar de mim o
que estava escondido.
O que foi, daí em diante, todo o processo de ler em mim o tema da tese e a forma de
o desenvolver, está descrito no “Capítulo 1 Roteiro – 2. Itinerário e crónicas do
caminho” e detalhadamente relatado no Diário da Tese (Anexo 8). Por agora, o que
pretendo deixar claro é que, se uma tese principia no dia em que se começa a
imaginar a possibilidade de a fazer, esse dia também não surge do nada. É essa a
razão porque aqui descrevi parte do percurso que contem algumas das suas
justificações mais profundas.
19
tornada consciente do fundo onto-teleológico do meu7 Ser” (Azevedo & Gil da Costa,
2005:245).
2.2. O Problema
EL MIEDO GLOBAL
Los que trabajan tienen miedo de perder el trabajo.
Los que no trabajan tienen miedo de no encontrar nunca trabajo.
Quien no tiene miedo al hambre, tiene miedo a la comida.
Los automovilistas tienen miedo de caminar y los peatones tienen miedo de
ser atropellados.
La democracia tiene miedo de recordar y el lenguaje tiene miedo de decir.
Los civiles tienen miedo a los militares, los militares tienen miedo a la falta de
armas, las armas tienen miedo a la falta de guerras.
Es el tiempo del miedo.
Miedo de la mujer a la violencia del hombre y miedo del hombre a la mujer
sin miedo.
Miedo a los ladrones, miedo a la policía.
Miedo a la puerta sin cerradura, al tiempo sin relojes, al niño sin televisión,
miedo a la noche sin pastillas para dormir y miedo al día sin pastillas para
despertar.
Miedo a la multitud, miedo a la soledad, miedo a lo que fue y a lo que puede
ser, miedo de morir, miedo de vivir.
Eduardo Galeano
O medo que, segundo Damásio (1995), é uma das cinco emoções básicas, é um
sinal valioso, a nossa resposta natural em situações de perigo. As suas reacções
automáticas desencadeiam tensão muscular, aceleração dos batimentos cardíacos,
alterações nos sistemas digestivo e imunitário, aumento da adrenalina e dos
corticorteróides para enfrentar a ameaça... (Dreher, 2000). Mas se o medo (e,
consequentemente, os seus efeitos) se torna crónico, afecta a nossa saúde, a nossa
capacidade de desenvolvimento e crescimento PESSOAL, a nossa relação COM OS
OUTROS, a nossa relação COM O UNIVERSO.
Na verdade, até no futebol quem joga à defesa é quem tem medo de perder. E,
muitas vezes, usa de violência. Mas o processo não produz os efeitos desejados
porque, muito embora possa haver um êxito fugaz, quem está demasiado
preocupado com a defesa da sua baliza no mínimo (ou no máximo), não ganha.
Pode não perder, mas não ganha. As grandes equipas não ganham por 1-0, ganham
por 4-2. Deixam entrar golos (aparentes derrotas) mas, mesmo assim, ganham.
Porque arriscam. A sua maior preocupação é o golo (construir) e isso resulta mais e
7
O sublinhado é meu.
20
melhor do que a simples defesa (destruir). E o espectáculo é muito mais bonito, mas
também muito mais raro.
Entendo que a violência do terrorismo (em qualquer das suas formas) é também
isto. Mas entendo também (e é aí que especificamente quero colocar o tom deste
trabalho) que viver nessa posição de excessiva defesa, e com a violência que lhe
está inerente e que tantas vezes usamos contra nós mesmos, também é isto.
A nossa capacidade de lidar com o medo pode, assim, definir muito da pessoa que
somos e do que viremos a ser como pessoas: ou ficamos presos numa situação de
constante MEDO DA VIDA (no que isso significa de bloqueios nas nossas relações intra e
interpessoais), ou podemos, numa relação-acção caracterizada por intencionalidade e
significado, ser construtores do nosso PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO HUMANO
(Kolyniak, 2005)16 – isto é, caminhando no sentido de uma “sociedade sinérgica,
16
“Desenvolvimento Humano: processo contínuo e imprevisível de construção do ser humano, como
espécie e como indivíduo, que ocorre na dialéctica entre natureza e cultura, referindo-se à totalidade
complexa que se expressa como motricidade, afectividade e cognição, envolvendo, como constituinte, a
praxis orientada por valores como busca de condições de existência material e espiritual dignas para
21
solidária e cooperante” (Sérgio, 2005a:21), no sentido do desenvolvimento máximo
das nossas possibilidades, na descoberta da nossa própria interioridade, na passagem
progressiva por aquilo que são, na perspectiva de Walt Whitman (Ribeiro Dias, 2000),
os diferentes níveis de si mesmo – eu, eu-mesmo, eu-eu mesmo.
Trata-se, então, de perceber que este MEDO DA VIDA não é fobia, não é patológico17,
não precisa obrigatoriamente de terapia. É “normal”, mas precisa, URGENTEMENTE, de
ser educado. Se assim não for, fica a tristeza, se para tal houver coragem, de perceber
(em termos pessoais e civilizacionais) a distância entre o que é e o que poderia ter
sido, mas não foi.
22
3. A Pesquisa
As coisas têm vida própria, é tudo uma questão de lhes
acordar a alma – Gabriel Garcia Marquez
Reconhecendo que
“todas as capacidades do homem confluem para a constituição do nível
máximo de consciência da própria identidade, da própria missão, do próprio
destino” (Ribeiro Dias, 2000:92);
perfilhando um conceito de Desenvolvimento Humano que vê a pessoa como
“ser transcendente (possibilidade de ser ele mesmo), como alguém que se
relaciona com o outro em posição de igualdade, sendo este outro parte
importante na construção da sua identidade, em relação dialéctica com o
mundo (o cosmos), criando e re-criando ambientes que o fazem cada vez
mais humano” (Jaramillo, 2005a:90);
considerando que
“a ciência pós-moderna sabe que nenhuma forma de conhecimento é, em si
mesma, racional; só a configuração de todas elas é racional. Tenta, pois,
dialogar com outras formas de conhecimento deixando-se penetrar por elas”
(Sousa Santos, 1988:55),
para conseguir uma melhor compreensão da realidade estudada, esta pesquisa
procurou: (1) deixar-se inquietar por diversas fontes de dados – dados objectivos,
subjectivos e inter-subjectivos; dados expressos por publicações científicas, jornais e
revistas; dados expressos com quem se partilham ideias; dados percebidos através
da relação com o mundo....; (2) indagar de várias maneiras e por muitos caminhos;
(3) utilizar a biografia da própria investigadora para, encarnando o projecto, não
fechar o saber num enquadramento teórico explicativo, mas, compreendendo os
processos e fazendo a descoberta de uma cultura que se concretiza na mente e nas
acções de quem investiga, buscar o sentido do conhecimento na construção da vida
(Patton, 2002; Morin, 2002; Torre, 2008; Zemelman, 1996; Jaramillo, 2006b).
23
- perguntas de investigação: “como?”; “o quê?”; “por quê?”; “para quê?”;
- categorias de análise: quem, o quê, por quê, como, para quê.
TR
▼
Eu Educadora
IA
Complementaridade-Pesquisa Colaborativa
NG
Com os Autores
UL
▼
AÇ
Procurando com Outros
Investigação Qualitativa
ÃO
Pessoa-Educadora-Autores-Outros
1. COMO pode o educador lidar com o seu Categorias de Análise
medo e ajudar as pessoas a enfrentarem os
seus medos e terem uma vida serena, útil e
corajosa? Quem
2. O QUE faz com que uma vida seja serena, O Quê
útil e corajosa?
3. POR QUE o educador só pode ajudar outros Por Quê Proposta
a enfrentarem os seus medos e a terem uma
vida serena, útil e corajosa depois de ele ter
Como Educativa
entrado no processo de enfrentar os seus? Para Quê
4. PARA QUE serve uma vida serena, útil e
corajosa?
EU – OUTROS – COSMOS
Quadro I.1 – Síntese geral da pesquisa.
24
- Construção do referencial interno.
a. Eu Pessoa ► Eu Educadora
- Revisão da literatura, perguntas de investigação, desenho da
investigação.
b. Eu Pessoa ► Eu Educadora ► Com os Autores
Etapa 2. Caminhando.
• Fase de aprofundamento.
- Trabalho com o grupo de pesquisa colaborativa – sessões do
grupo (segunda parte do trabalho de campo).
c. Eu Pessoa ► Eu Educadora ► Com os Autores ►
Procurando com Outros
Eu Pessoa
Complementaridade - PesquisaColaborativa
▼
TR
Investigação Qualitativa
Eu Educadora
IA
NG
▼
UL
Com os Autores
AÇ
▼
ÃO
25
g. Pessoa-Educadora-Autores-Outros ► Procurando com
Outros.
h. Pessoa-Educadora-Autores-Outros
18
Ver “Capítulo 1 Roteiro – 2.2 Descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas”.
26
investigação aponte como preferencial a participação de cada um dos
membros da equipa em todas as fases do projecto, neste caso, e por força
dos propósitos académicos em causa, desenvolveu-se mais numa
perspectiva de cooperação (Trigo & Kon-Traste, 2001:57). Isto é, mais
localizada no tempo de formação-educação de adultos e, na etapa seguinte
(na fase de “leitura da informação recebida”), com o grupo mais restrito de
informantes-chave.
27
maiores da sua/nossa própria existência19. Segundo, e porque o tempo ecológico é
uma via de dois sentidos, como sinal da crescente consciência de que aquilo que
fomos (e somos), aquilo que nos moveu (e move), está também imbuído das
energias que nos circundam - com elas precisamos ganhar sintonia e nelas ler os
propósitos.
“A partir do momento em que um indivíduo empreende uma acção, seja ela qual for,
esta começa a escapar às suas intenções. Esta acção entra num universo de
interacções e é finalmente o meio ambiente que a agarra num sentido que pode
tornar-se contrário à intenção inicial. Muitas vezes a acção retorna sobre a nossa
cabeça como um boomerang (…). A ecologia da acção é (…) ter em conta a sua
própria complexidade, isto é, risco, acaso, iniciativa, decisão, inesperado, imprevisto,
consciência das derivas e das transformações” (Morin, 2002:93).
• Propósito
A velha sabedoria oriental diz-nos que “quando o discípulo está pronto, o mestre
aparece” (Moffit, 2002b). O grande passo tem de ser dado pelo discípulo – porque
não há aprendizagem sem motivação e não há motivação sem consciência da
necessidade de aprendizagem; porque, mesmo tendo havido um empenho árduo em
forçar a consciência da necessidade, só se ensina quando o outro aprende; porque
o mestre é só aquele (ou aquilo) que facilita a criação das condições de
aprendizagem.
Por isso, e considerando que “adulto” não é alguém biologicamente maduro, mas
quem:
- é capaz de pesar os ganhos e as limitações-desafios do já vivido;
- tem a certeza de que pode fazer algo de único com a sua vida pois é possível
atingir patamares mais elevados na sua condição de ser humano;
19
Também por esta razão, e na medida da nossa consciência e autocrítica, todos os momentos da
pesquisa são descritos detalhada e “encarnadamente” no “Capítulo 1 Roteiro – 2.2 Descrição do
cronograma” e, em “IV – Reabrir um novo caminho” é feita uma reflexão sobre os efeitos (em mim e
no grupo de pesquisa colaborativa) do trabalho realizado.
28
- sabe (nas entranhas) que é pela sua actuação e compromisso que é possível
mudar;
- não matou a sensibilidade do olhar e a capacidade de projectar;
- conserva o sentido da urgência das coisas (da vida) e a paixão pelo porvir;
esta investigação teve como PROPÓSITO chegar a um conjunto de PROCEDIMENTOS E
PRINCÍPIOS EDUCATIVOS que possam ser aplicados, preferencialmente, em contexto
de EDUCAÇÃO DE ADULTOS – não pela eventual dificuldade “técnica” de aplicação ou
compreensão desses procedimentos e princípios, mas porque o seu uso (e eventual
sucesso na criação de novas formas de vida), depende da capacidade (e vontade)
do “discípulo” para (1) tomar CONSCIÊNCIA da presença dos seus medos e da
consequente necessidade de fazer alguma coisa que modifique o estabelecido, (2)
assumir a RESPONSABILIDADE, (3) tomar uma DECISÃO, (4) EXECUTAR o decidido.
“Habitar a pergunta, ver-se no meio dela, (...) vê-la por muitas arestas e perspectivas
que saem de tempos e lugares absolutos de uma cientificidade positiva; poderíamos
dizer que a pergunta emerge ao constituir ela própria o seu tempo e o seu lugar.
Deste modo, a pergunta faz-se presente enquanto é parte dos investigadores e não
só uma indagação que lhes é alheia. A pergunta chega, é percebida
constitutivamente, deixa de ser somente objectiva e teórica; poderíamos dizer,
fenomenologicamente, que se constitui Morada, em indagação original na qual o
29
investigador pode reconhecê-la e fazê-la sua, é co-dependente dela (e ela dele) e,
graças a isso, é livre para decidir como desejaria construir o itinerário metodológico
para resolvê-la” (Jaramillo, 2006b:xix).
20
Acção – “qualquer acto intencional (interno e externo; observável e não observável) – a
interrelação entre pensamento, emoção, intenção, inquietude, consciência, energia” (Trigo, 2006:64).
30
pensamento de Maslow (1991), Rogers (1970), Frankl (1994), Maturana (2000),
Freire (2003), Morin (2003, 2006), Max-Neef (1993) e outros, tais sinais podem, em
termos esquemáticos, ser caracterizados da seguinte maneira:
Centrar
Satisfação das necessidades básicas. Auto-realização.
Passividade. Silêncio-Harmonia-Paz – consigo mesmo, com os Outros,
com o Cosmos.
Consenso ou ausência de conflito. Unidade – descoberta de relação e sentido.
Tabela I.1 – O que é e o que não é “serenidade”.
expectativas sociais.
Agir
Ajustamento. Adequação.
Nível de vida. Qualidade de vida.
Níveis elevados de produtividade Uma mais valia (criatividade benéfica e positiva) para si e
económica. para os outros.
Tabela I.2 – O que é e o que não é “utilidade”.
Celebrar
Capacidade de transgredir e de ser diferente.
Capacidade de permitir que o futuro aconteça.
Arrogância. Capacidade de viver com o coração e de descobrir
significados.
Sabedoria – encontro do coração e do intelecto.
Força para desfazer dicotomias e viver na plenitude.
Tabela I.3 – O que é e o que não é “coragem”.
31
Ser não podem ser transmitidos senão pela utilização total do Ser. Não é a mente,
nem a emoção, nem o corpo, nem o espírito (que, por si só, são “retalhos” do Ser),
que podem substituir a acção do Ser.
32
como explicação de como vejo que tudo se liga, coloco na tabela I.4 a
correspondência entre o conteúdo conceptual das perguntas de investigação e:
- os caminhos de criação e de vida plena (Sturner, 1996, Csikszentmihalyi,
1998; Nolan, 2001);
- os movimentos centrífugo e centrípeto dos momentos da acção intencional e
do processo da mudança (Sérgio, 2005a);
- as ideias centrais do conceito de desenvolvimento humano aqui em causa
(Kolyniak, 2005);
- o “para quê” do desenvolvimento humano (Trigo & Coego, 2003).
33
- Porque, pelas perguntas de “O QUÊ” e do “PORQUÊ”, se possibilita uma atitude e
um clima de CENTRAÇÃO e SERENIDADE – e isso é EDUCAÇÃO e MOTRICIDADE
HUMANA, descoberta da complexidade multidimensional, da essência, do sentido
e da repercussão da própria existência do sujeito como Ser (Trigo, 2006;
Azevedo & Louro, 2006).
Categorias de Análise
Quem?
O Quê?
Como?
Por Quê?
Para Quê?
EU – OUTROS – COSMOS
Quadro I.4 – Categorias de análise da pesquisa.
34
a transcrição das sessões de trabalho desse mesmo grupo21. Compreendem
categorias, sub-categorias e sub-subcategorias criadas por via dedutiva (que emana
do referencial interno e da revisão da literatura), e por via indutiva (que emana das
transcrições das sessões e dos resultados da observação participante) que podem
ser assim muito sucintamente descritas:
a) Quem. Porque as relações que o ser humano estabelece consigo próprio, com
os outros e o com o mundo são determinadas pela consciência / percepção de si
mesmo (Guenther & Combs, 1980), (o que, por inerência, condiciona aqui o
conteúdo das restantes categorias de análise desta pesquisa), esta categoria
reúne todas as narrativas em que os participantes falam sobre si mesmos ou
sobre o grupo em que estão inseridos. Apresenta duas grandes sub-categorias:
a. As pessoas do grupo – caracterização geral, razões, expectativas e
efeitos por participar.
b. O grupo de pesquisa colaborativa – clima do grupo, dimensões do
Situational Outlook Questionnaire (Isaksen et al, 1995); estilos de
criação, dimensões do VIEW (Selby et al, 2003).
21
Ver “Capítulo 1 – 2.2 Descrição do cronograma; 2.4 Processamento de dados”, “Anexo 3 –
Transcrição das sessões do grupo de pesquisa” e “Anexo 4 – Descrição das categorias de análise”.
35
reacções das outras pessoas relativamente às suas atitudes,
sentimentos e comportamentos).
b. Processo de lidar com o medo centrado na conservação –, congrega
formas de reacção ao medo em que, muito embora haja consciência
da acção, são estratégias de disfarce, de evitamento e de fuga pois
pretendem a continuidade de uma dada situação através do auto-
engano e da paralisação de actos e de pensamento.
c. Processo de lidar com o medo centrado no desenvolvimento humano
– formas de acção sobre o medo apresentadas e, de alguma maneira,
experimentadas ou identificadas pelos participantes (por isso, não
normativas), que promovem o desenvolvimento humano: num
movimento duplo do exterior (universo) para o centro (nós), ou do
centro (tomada de consciência e tomada de decisão) para o exterior
(estratégias e execução) (Kolyniak, 2005; Sérgio, 1986).
36
4. Organização da Tese
I. Processo da Pesquisa
Introdução
Cap. 1 – Roteiro
II. Centrar
Cap. 2 – Descobrir os próprios caminhos
Cap. 3 – Descobrir caminhos de outros
III. Agir
Cap. 4 – Criar o caminho
IV. Celebrar
O Sentido do caminho
Reabrir um novo caminho
O relatório deste estudo exploratório tem quatro partes (quadro I.5). A primeira,
orientada para a explicação do PROCESSO DA PESQUISA, contém, para lá desta
Introdução, o Roteiro do caminho percorrido. Cada uma das restantes três, orientadas
para a apresentação dos RESULTADOS PARCIAIS E GLOBAIS da pesquisa, correspondem,
a um dos estados ou caminhos de criação (Sturner, 1996).
• I. Processo da Pesquisa
37
PRESSÃO, o contexto da pesquisa, que, matizado por um “conhecimento
saboreado-vivido”, incorpora uma atitude de “habitar a pergunta” e de “jogar a
inventar modelos” (Jaramillo, 2006b); (4) o PROCESSO, as fases e operações
realizadas que, num desenvolvimento não linear, mas cíclico, passam pela
compreensão do problema, pela produção de ideias e pela avaliação e
planeamento da acção (Isaksen et al, 1994).
São, por isso, duas as funções deste espaço. Por um lado, explicar a
interligação e o sentido da complementaridade e da pesquisa colaborativa no
contexto da investigação qualitativa. Por outro (e porque não procederam de
um desenho pré-estabelecido), descrever detalhadamente as etapas,
estratégias e actividades desenvolvidas ao longo de todo o processo para que,
também por esse meio, se cumpram critérios de aplicabilidade e
comparabilidade da pesquisa.
• II Centrar
A segunda parte da tese engloba o que, sob a égide dos caminhos de criação e de
vida plena (Sturner, 1996), foi construído num caminho de centração. Isto é, um
caminho que é feito no silêncio, na reflexão e na atenção da pessoa sobre si mesma e
que, por essa via, permite aceder a uma maior consciência de si, uma maior
consciência dos outros, uma maior consciência do mundo. Correspondendo à etapa 1
da pesquisa, “na procura de caminhos”, esta segunda parte compreende os dois
capítulos que, genericamente, ajudaram a compreender e situar o tema e o problema
da pesquisa.
38
numa perspectiva de ecologia de saberes* do que em função do estudo de
uma disciplina específica (Patton, 2002; Torre, 2008). Tendo como espinha
dorsal os principais temas da tese (medo e desenvolvimento humano) e a
compreensão e explicitação dos conceitos do campo de criação da pesquisa, é
resultado não só de um longo processo de revisão bibliográfica (que
antecedeu, acompanhou e sucedeu à segunda fase do trabalho de campo),
como também da interacção criativa entre o pensamento dos autores e a
minha introspecção como investigadora. Porque é fruto de um trabalho feito no
silêncio e na procura de compreensão do tema e do problema de investigação,
está integrado na segunda parte, “centrar”.
• III Agir
• IV Celebrar
39
encarnado, enraízado e subtil), é muito mais uma que, por criação própria e em busca de sentido na
forma de estar no mundo – não uma coisa que se sua totalidade complexa, rompe as barreiras da
tenha, mas uma condição em que se está e em que se gente cinzenta, sem graça e com medo, alarga as
vive e que, em causalidade circular, tem, no modo de fronteiras da desconfiança, da apatia e da
percepção do eu, a matéria prima da sua força e, na mediocridade feita norma e, com isso, assegura a
dualidade e infidelidade a nós mesmos, um dos seus possibilidade de construção de mundos de alegria e
efeitos mais desintegradores e limitadores. de paz.
Desembocando nas duas definições acima transcritas22, a última parte da tese retoma
todos os pontos anteriores e, à maneira de conclusão, por um lado, CONSTRÓI E
ENCONTRA SENTIDO, e, por outro, REABRE UM NOVO CAMINHO.
22
Ver “IV Celebrar – O sentido do caminho – Proposta educativa”.
40
corresponde, naturalmente, ao fim desta tese. Em jeito de “tempo da colheita”,
regressa às suas bases para olhar e pesar o fruto – do ponto de vista
epistemológico, ontológico, metodológico, mas também do ponto de vista do
grupo da pesquisa e do ponto de vista pessoal. O abrir de um novo ciclo é,
também ele, extensão da colheita feita. É o tempo dado para saborear as
conquistas e pesar as dificuldades e, com ambas, imaginar as possibilidades e
oportunidades futuras.
41
Capítulo 1
Roteiro
I. PROCESSO DA PESQUISA
Introdução
Capítulo 1 – Roteiro
1. Criação do desenho da investigação
1.1 Os desafios do desenho da Complementaridade e do processo de Pesquisa Colaborativa no contexto
metodológico da Investigação Qualitativa
1.2 Modalidades da investigação
1.3 Critérios de credibilidade
2. Itinerário e crónicas do caminho
2.1 Cronograma
2.2 Descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas
2.2.1 Etapa 0 – por outros caminhos
2.2.2 Etapa 1 – na procura de caminhos
2.2.3 Etapa 2 – caminhando
2.2.4 Etapa 3 – achando luzes
2.2.5 Etapa 4 – novos caminhos
2.2.6 Correspondência entre processo criativo, processo da pesquisa e relatório da pesquisa
2.3 Processo de orientação da tese
2.4 Processamento de dados
2.4.1 Mapa mental das categorias de análise
2.5 Aspectos éticos
II. CENTRAR
Capítulo 2 – Descobrir os próprios caminhos
Capítulo 3 – Descobrir caminhos de outros
III. AGIR
Capítulo 4 – Criar o caminho
IV. CELEBRAR
O sentido do caminho
Para abrir um novo caminho
43
“O conhecimento pós-moderno, sendo total, não é determinístico, sendo local,
não é descritivista. É um conhecimento sobre as condições de possibilidade.
(...) Um conhecimento deste tipo é relativamente imetódico, constitui-se a partir
de uma pluralidade metodológica. Cada método é uma linguagem e a
realidade responde na língua em que é perguntada. Só uma constelação de
métodos pode captar o silêncio que persiste entre cada língua que pergunta.
Numa fase de revolução científica como a que atravessamos, essa pluralidade
de métodos só é possível mediante transgressão metodológica. Sendo certo
que cada método só esclarece o que lhe convém e quando esclarece fá-lo sem
surpresas de maior, a inovação científica consiste em inventar contextos
persuasivos que conduzam à aplicação dos métodos fora do seu habitat
natural” (Sousa Santos, 1988: 48-49).
método // linguagem
linguagem da pergunta // linguagem da resposta
conhecimento pós-moderno // total-local // condições de possibilidade
revolução-inovação científica // pluralidade metodológica // transgressão metodológica
44
É por isso que, agora, para informar sobre o processo de investigação desta tese, não
posso dar só notícia das operações realizadas (etapas, métodos, estratégias e
actividades desenvolvidos), mas preciso primeiro de o enquadrar no conjunto do
sistema em que, como processo criativo que é, se integra e de que depende – o
sistema dos 4 P’s (pessoa, processo, produto e pressão) que, porque operam juntos,
definem a abordagem sistémica da criatividade (Isaksen et al, 1994:7).
1. O produto – a tese
23
Ver “Introdução – 1.2 Implicações para a pesquisa”.
45
2. A pessoa – os investigadores
46
- CONHECIMENTO SABOREADO – porque o conhecimento está inseparavelmente
entrelaçado com a minha/nossa história vivida, com o meu/nosso corpo, com a
minha/nossa linguagem, com a minha/nossa história social.
- HABITANDO A PERGUNTA – porque houve três contributos para que a pergunta fosse
sentida como algo que me pertence (como minha morada), em que estou implicada:
(1) o papel dos afectos e da biografia na adesão ao tema da investigação; (2) a
utilização de ferramentas distintas para ir buscar, não só dados objectivos nos livros,
mas também dados subjectivos e inter-subjectivos; (3) o dar forma à pergunta
indagando de várias maneiras e por múltiplos caminhos.
O processo, que raramente é linear, é a dimensão que diz respeito ao modo como o
acto criador tem lugar. Com correspondência entre as diferentes etapas e fases do
processo da pesquisa (também elas não lineares) e as componentes, estádios e fases
do Processo de Resolução Criativa de Problemas (CPS)24 (Isaksen et al, 1994; Isaksen
24
CPS – Creative Problem Solving, na sua versão original.
“A Resolução Criativa de Problemas é um processo, um método, um sistema de abordagem de um
problema de forma imaginativa que resulte numa acção eficaz” (Ruth Noller, Apud Isaksen, 1994:31). A
abordagem do processo de Resolução Criativa de Problemas usa, de forma complementar, o pensamento
criativo e o pensamento crítico para lidar com situações desconhecidas ou ambíguas.
A um nível global, a versão 6.0 do Processo de Resolução Criativa de Problemas (CPS) compreende três
componentes e seis fases:
- Compreensão do Problema – construção de oportunidades; exploração de dados; enunciar problemas.
- Produção de Ideias – produção de ideias.
- Planeamento da Acção – desenvolvimento de soluções; construção da aceitação.
A um nível mais específico, cada um dos estádios compreende duas fases que, no seu conjunto, enfatizam o
equilíbrio dinâmico entre o pensamento divergente e o pensamento convergente. A primeira fase, de
47
& Treffinger, 2004), o caminho percorrido, sintetizado na tabela II.6, é um dos caminhos
possíveis. Consciente, também por isso, que outros caminhos permitiriam outras
possibilidades (Feitosa, 1999:78), nos pontos seguintes deste capítulo apresentarei: em
primeiro lugar, a fundamentação das principais escolhas feitas; depois, os
procedimentos e aplicações práticas que configuraram o desenho da pesquisa.
produção, é utilizada para produzir opções diferentes e invulgares. A segunda, de análise, é utilizada para
analisar, desenvolver ou aperfeiçoar as opções anteriormente produzidas (Isaksen, 1994; 2000).
48
1. Criação do Desenho da Investigação
As pessoas crescidas gostam de números. Quando lhes falais de um novo
amigo nunca perguntam o essencial. Nunca vos dizem: “Como é a fala dele?
Quais os seus jogos predilectos? Colecciona borboletas?” Perguntam: “Que
idade tem? Quantos irmãos são? Quanto pesa? Quanto é que o pai ganha?”
E só julgam que o conhecem depois disto. Se disserdes às pessoas
crescidas: “Vi uma bela casa de tijolos vermelhos, com gerânios nas janelas
e pombas no telhado…” elas não conseguem imaginar uma casa. É preciso
dizer-lhes: “Vi uma casa de quinhentos contos”. Então exclamam: “Ai, que
bonita!” – Saint-Exupéry, O Principezinho.
Modalidades de
Paradigmas Metodologia Investigação Educativa Credibilidade Instrumentos
INDICADORES
QUALITATIVOS Histórias de Vida
SISTÉMICOS QUALITATIVA FINALIDADE:
•Aplicada
VERACIDADE:
ALCANCE TEMPORAL: Triangulação - de Estudo de Caso
•Complementaridade
•Longitudinal pessoas, momentos,
especialistas e técnicas
PROFUNIDADE: Verificação do relatório Grupo
ECOLÓGICOS •Pesquisa Colaborativa •Exploratória final Colaborador
49
de variáveis, sendo, outrossim, formuladas com o objectivo de investigar os fenómenos
em toda a sua complexidade e em contexto natural. Ainda que os indivíduos que fazem
investigação qualitativa possam vir a seleccionar questões específicas à medida que
recolhem os dados, a abordagem à investigação não é feita com o objectivo de
responder a questões prévias ou de testar hipóteses. Privilegiam, essencialmente, a
compreensão dos comportamentos a partir da perspectiva dos sujeitos da investigação.
As causas exteriores são consideradas de importância secundária. Recolhem
normalmente os dados em função de um contacto aprofundado com os indivíduos, nos
seus contextos ecológicos naturais” (Bogdan & Biklen, 2006:16).
Tendo definido como PROPÓSITO, não a busca de leis gerais, mas a inovação educativa
e didáctica, e, como PRESSUPOSTOS, (1) que o homem é um todo, (2) que a
subjectividade é uma característica essencial do comportamento humano, (3) que a
realidade é múltipla e complexa, (4) que a conduta humana tem uma dimensão histórica
e social e (5) que não há forma de fazer ciência, ou de evoluir cientificamente, sem
pequenas ou grandes doses de criatividade capazes de romper com os paradigmas
estabelecidos (Sousa Santos, 1988, 2002¸ Bohm & Peat, 1988, Patton, 2002; Morin,
2003; Sérgio, 2005), considerei que a INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA era o caminho
adequado para a realização desta pesquisa.
50
c) que fosse sensível aos efeitos que produzia sobre as pessoas que eram objecto
do meu estudo;
d) que desse ênfase à validade na minha investigação.
Mas, além disso, a opção por uma metodologia qualitativa desencadeou duas outras
escolhas: a do desenho da Complementaridade e a do processo da Pesquisa
Colaborativa.
• Complementaridade
O desenho criado no estudo acabou, assim, por ser composto por cinco etapas e seis
fases que, como adiante será explicado25, se interpenetraram e cruzaram ao longo de
todo o processo de investigação: etapa 0 – por outros caminhos; etapa 1 – na procura
de caminhos (fase reflexiva e de aproximação à pesquisa); etapa 2 – caminhando (fase
de aprofundamento); etapa 3 – achando luzes (fase de leitura da informação recebida;
fase de construção de sentido; fase de apresentação e discussão dos significados
25
Ver ponto 2 deste capítulo, “2.2 descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas”.
51
encontrados); etapa 4 – novos caminhos (fase de apresentação e discussão dos
significados encontrados).
• Pesquisa Colaborativa
Assim, e apesar de, por força dos objectivos académicos deste tese (e como adiante
também será descrito), só ter sido usado numa perspectiva de cooperação nalgumas
fases do projecto26, a opção por um processo de Pesquisa Colaborativa fez(-nos)
enfrentar um TERCEIRO CONJUNTO DE DESAFIOS e compromissos (Trigo et al, 2001:57-
61):
26
De acordo com os autores, e baseando-se em Hord e Devís, embora a investigação colaborativa possa
também ser apelidada de “investigação cooperativa”, cooperação e colaboração são conceitos diferentes: A
“cooperação” remete para uma forma imperfeita de participação; a “colaboração” exige o compromisso de
cada um dos membros da equipa em todas as fases do projecto da pesquisa (Trigo & Kon-Traste, 2001:57).
52
c) o da criação de um espaço de assumir riscos, de criação colectiva e de
compromisso social;
d) o da abertura para a modificação das mentalidades dos intervenientes;
e) o da melhoria das práticas de ensino dos educadores envolvidos;
f) o da flexibilidade de desempenho, enquanto investigadora e de acordo com as
fases da investigação, de uma diversidade de papéis.
53
Estudo de caso.
- Segundo a ORIENTAÇÃO QUE ASSUMIU – INVESTIGAÇÃO APLICADA
Orientada para a aquisição de conhecimento com o propósito de dar
resposta a problemas concretos.
54
2. Itinerário e Crónicas do Caminho
Quando partires de regresso a Ítaca,
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências,
Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,
um Poseidon irado – não os temas,
jamais encontrarás tais coisas no caminho,
se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime
teu corpo toca e o espírito te habita.
Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,
Poseidon em fúria – nunca encontrarás,
se não é na tua alma que os transportes,
ou ela os não erguer perante ti.
Deves orar por uma viagem longa.
Que sejam muitas as manhãs de verão,
quando, com que prazer, com que deleite,
entrares em portos jamais antes vistos!
Em colónias fenícias deverás deter-te
para comprares mercadorias raras:
Ítaca
coral e madrepérola, âmbar e marfim,
e perfumes subtis de toda a espécie,
compra desses perfumes quanto possas.
E vai ver as cidades do Egipto,
para aprenderes com os que sabem muito.
Terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é o teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.
Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.
Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.
Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,
terás compreendido o sentido de Ítaca.
C. Cavafy (1911)
Tal como naquele, também aqui o testemunho do “meu regresso a Ítaca” é longo. Não
só porque pretendo fazer uma apresentação minuciosa de tudo o que esteve implicado
no processo metodológico da pesquisa, mas porque também aí descobri o meu
processo criativo. São caminhos paralelos (não duas coisas separadas), ambos parte
da minha natureza e da minha cultura.
- Cronograma da pesquisa.
- Descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas.
55
- Processo de orientação da tese.
- Processamento de dados.
- Aspectos éticos.
56
2.1 Cronograma
CONHECIMENTO SABOREADO
Fase de leitura da informação
Constituição do grupo de informantes-chaveAnálise de dados - categorias.
Interpretação/triangulação entre realidade empírica, realidade conceptual e
perspectiva da investigadora.
PLANEAMENTO DA ACÇÁO Fase de Construção de Sentido
Desenvolvimento de Soluções À maneira de conclusão e proposta educativa.
Fase de apresentação e discussão
dos significados encontrados
Construção da Aceitação Sugestões do grupo de pesquisa.
Afinação da análise.
NOVOS CAMINHOS
Fase de identificação de
COMPREENSÃO DO PROBLEMA (2) Construção de Oportunidades 2
novos projectos e novas
perguntas
HABITANDO A PERGUNTA
3) O tom de “JOGANDO A INVENTAR MODELOS” – criado por uma abertura criativa que
permitisse desenhar múltiplas formas de produzir aproximações, reflexões,
retrocessos e avanços na configuração do problema.
59
facilidade de discurso, não à existência de uma sequência rígida, ou desligada, entre
cada uma das suas etapas e fases.
27
Creative Problem Solving, na sua versão original (Isaksen et al., 2000).
60
2.2.1 Etapa 0 – Por outros caminhos
Com excepção do que diz respeito à redacção do diário da tese, a etapa 0 foi a única
etapa/fase da pesquisa que, pelo menos aparentemente, começou e terminou em si
mesma e, com isso, colocou uma fronteira (mais) definida com as restantes etapas e
fases. Foi o tempo de tentativas de criação de um projecto de investigação segundo o
modelo “clássico” da investigação quantitativa – definição de um problema a estudar,
perguntas de investigação, hipóteses, metodologia...
A partir das leituras feitas e das preocupações profissionais então sentidas, na primeira
tentativa estavam implícitas questões como estas:
61
- Relação entre autoconceito, relação com os outros, visão do mundo. Que autoconceito as
escolas/professores estão fomentando nos seus alunos?
- O aluno é uma pessoa. Que projectos educativos desenvolvem as escolas na formação de
professores? Que ideal prosseguem? Como partilham os professores/formadores esses ideais?
De que maneira as tradições e as rotinas das escolas se compatibilizam com esses ideais?
- Relação entre corpo e mente. Que experiências/vivências corporais são facultadas aos alunos
durante o tempo de formação?
PROCEDIMENTOS
1. Defino ideias e palavras-
chave que identificam os
meus contextos, interesses,
inquietações... RESULTADO
2. Relaciono tudo com Demasiado abrangente.
leituras. Pouco consistente
3. Construo um esquema com
todos esses elementos.
4. Defino hipóteses de
perguntas de partida.
Mas também este foi abandonado por não dar resposta adequada aos objectivos que
me tinha proposto para a realização da tese. Contudo, se agora o refiro (e embora
nessa altura tivesse ficado a sensação de trabalho perdido), é porque, tempos depois,
acabei por verificar que, embora numa dimensão bem mais profunda, ele também ficou
contido no projecto que se veio a definir.
62
2ª Tentativa de Criação do Projecto
Tema: Liderança Criativa através do Silêncio
PROCEDIMENTOS
1. Leio muito - recolho
muitas citações e RESULTADOS
“engordo” a minha Não traz nenhuma
estante. promessa de
2. Desenvolvo um novo contribuição nova.
esquema de tópicos de Continua a não conseguir
pesquisa. atingir os objectivos
3. Defino novas perguntas pessoais propostos.
de partida.
• Diário da tese
O diário da pesquisa (Anexo 8), onde desde este início fui registando os tempos,
lugares, circunstâncias, tarefas e as emoções associadas, tornou-se um instrumento-
testemunha fundamental, não só das fases e procedimentos da pesquisa, como do
processo criativo que lhe está associado, como ainda (e com todas as suas crises de
crescimento), do processo de desenvolvimento pessoal, enquadramento importante
para a definição e execução do próprio projecto.
63
• Fase reflexiva e de aproximação à pesquisa
A técnica de criação, embora por diversas vezes também utilize mais do que uma
linguagem, é, essencialmente, a ESCRITA DO EU. Utilizando a escrita livre, procuro deixar
fluir a mão e o pensamento para escrever (desenhar/pintar/dançar...) tudo o que surja,
com o mínimo de censura possível.
28
O primeiro dos três caminhos de criação referidos por Sturner (1996) – ver “Capítulo 3 Descobrir
caminhos de outros – 2.2 Contornos do desenvolvimento humano”.
64
“Quando usamos a expressão Escrita do Eu, referimo-nos a um exercício de
investigação existencial que permite à pessoa tomar partes da sua vida concreta e
analisá-las numa forma escrita com o objectivo de conseguir uma maior e mais
progressiva vigilância activa sobre si mesma. Ao escrevê-las, a pessoa tenta ver as
circunstâncias da vida de uma forma mais clara. A vida, tornada objectiva no texto
escrito, exige que a pessoa assuma a responsabilidade de fazer a ligação entre “o que
é” e “o que pode ser” (Azevedo & Gil da Costa, 2005:1329).
Ilustração I.9 – Objectivos e resultados da primeira fase das histórias de vida / escrita do eu.
65
Escrita do Eu / Histórias de Vida 2
(sobre o Medo)
PERGUNTAS
RESULTADOS
SUBJACENTES
• Começo a ficar envolvida
Onde está o meu medo?
e comprometida com o
Por que não quero entrar
que escrevo.
nele?
• Faço uma limpeza interior.
Qual é o verdadeiro medo?
• Dou-me ao direito de
Porquê?
chorar e rir.
Para que serve?
Afinal, não era assim
Como enfrentá-lo?
tão complicado!!!
Vale a pena enfrentá-lo?
Ilustração I.10 – Objectivos e resultados da segunda fase das histórias de vida / escrita do eu.
Fica, por isso, e a partir daqui, definido o propósito da pesquisa – dar resposta à
necessidade sentida de criar uma proposta educativa para lidar com o medo em
contexto de educação de adultos.
29
“Purpose is the controlling force in research. Decisions about design, measurement, analysis, and
reporting all flow from purpose.
66
2. Referencial Interno
RESULTADOS
• Começam a surgir temas e sub-temas da pesquisa
A partir das histórias de vida (e continuando a deixar de lado todo o trabalho de revisão
de literatura para que a análise indutiva não fique limitada – Bogdan & Biklen,
2006:105), escrevo um texto sobre o tema do Medo e do Desenvolvimento Humano30
sob a forma de uma METÁFORA. Com a redacção deste texto, com as interpretações e
explicações que aí vão emergindo, vou criando o meu REFERENCIAL INTERNO –
conhecimento extra-teórico, empírico, resultante do primeiro acesso ao campo do
estudo (Jaramillo, 2006b).
(…) The purpose of applied research is to contribute knowledge that will help people understand the nature
of a problem in order to intervene, thereby allowing human beings to more effectively control their
environment.
(…) Applied interdisciplinary fields are especially problem oriented rather than discipline oriented.
(…) Applied qualitative researchers are able to bring their personal insights and experiences into any
recommendations that may emerge because they get especially close to the problems under study during
fieldwork” (Patton, 2002: 213, 217).
30
Ver “Capítulo 2 Descobrir os próprios caminhos – 1. Eu Pessoa: Já alguma vez?”.
67
E, a partir do referencial interno assim criado, surge um CONJUNTO DE TEMAS E SUB-
TEMAS DE ESTUDO que há-de orientar a revisão da literatura:
- o medo enquanto facto natural inerente ao ser humano;
- o medo bloqueador;
- o lado positivo do medo;
- tipos de medo;
- consequências do medo;
- a inquietação do Ser;
- como enfrentar o medo;
- efeitos esperados depois do processo de intervenção dialógica: aproximação à
natureza do Ser; liderança; Paz.
“A revisão bibliográfica mais relevante pode ajudar a enfocar um estudo (...). Contudo,
essa revisão pode criar dificuldades num estudo qualitativo porque gera predisposições
no pensamento do investigador reduzindo a sua abertura para o que surja dentro do
campo. É por isso que, por vezes, a revisão da literatura pode não surgir senão depois
da colecta de dados. Alternativamente, a revisão da literatura pode ser simultânea ao
trabalho de campo, permitindo uma interacção criativa entre o processo de colecta de
dados, a revisão da literatura e a introspecção do investigador. Como em quaisquer
outras questões do desenho qualitativo, a qualquer momento podem aparecer “trade-
31
offs” , pelo que há sempre vantagens e desvantagens em que a revisão seja feita antes,
31
Expressão que designa uma situação em que há conflito de escolha, em que se perde uma qualidade em
troca de outra qualidade ou aspecto (http://pt.wikipedia.org/wiki/Trade-off - 28.04.08).
68
durante ou depois – ou num base contínua ao longo de todo o estudo” (Patton,
32
2002:226) .
Revisão Bibliográfica
Ler → Reflectir → Registar → Posicionar → Enlaçar
Tendo por base o conjunto de temas e sub-temas antes encontrado, dou início ao
trabalho de REVISÃO BIBLIOGRÁFICA (Ilustração I.12). Foi este o processo de leitura que,
33
COMBINANDO O REFERENCIAL INTERNO COM O CORPO TEÓRICO , permitiu escrever /
associar / escrever / projectar:
32
“Review of relevant literature can bring focus to a study (…). Yet, reviewing the literature can present a
quandary in qualitative inquiry because it may bias the researcher's thinking and reduce openness to
whatever emerges in the field. Thus, sometimes a literature review may not take place until after data
collection. Alternatively, the literature review may go on simultaneously with the fieldwork, permitting a
creative interplay among the process of data collection, literature review, and researcher introspection”
(Patton, 2002:226).
33
Ver “Cap. 3 Descobrir caminhos de outros”.
34
Ecologia dos saberes: um encontro de saberes que flúem através de campos como a física quântica, a
neurociência, a psicologia positiva, as organizações, a epistemologia e os escritos sobre transpersonalidade
e espiritualidade de alguns engenheiros como Deslauriers ou científicos como Goswami, Lazlo, Sheldrake,
Capra, Zancollo (Torre, 2007:1).
69
Aos poucos, a partir de PROCESSOS INDUTIVOS E DEDUTIVOS (e com o auxílio do
programa Visual Mind™ para construção de mapas mentais35), vou reformulando-
refinando os temas e sub-temas anteriores e, a partir deles, encontro as LINHAS DE
ORIENTAÇÃO GERAL que me vão permitir avançar na construção do itinerário da pesquisa
e, mais tarde, começar a observar e compreender o que vai ocorrendo na segunda fase
de acesso ao trabalho de campo (ilustração I.13).
No processo de construção das linhas de orientação geral atrás descrito (ou, dito de
outra maneira, das múltiplas interrogações suscitadas pela conjugação da base
35
Programa Visual Mind™, versão 6 business.
70
pessoal, com o que vai surgindo da base teórica), as perguntas de investigação vão
ganhando uma forma mais definida.
Primeiro, de uma forma mais lenta e subtil, vai-se instalando a PERGUNTA CENTRAL (a
indagação que dará directamente resposta ao propósito da investigação), a pergunta
processual (como...). Depois, para completar o círculo, a formulação das PERGUNTAS
DERIVADAS – a pergunta conceptual (o quê...), a pergunta da memória (porquê...), que
até já estava contida na pergunta processual, e a pergunta existencial (para quê...):
- Como pode o educador lidar com o seu medo e, por isso, ajudar as pessoas a enfrentarem os
seus medos e a terem uma vida serena, útil e corajosa?
- O que faz com que uma vida seja serena, útil e corajosa?
- Por que razão o educador só pode ajudar outros a enfrentarem os seus medos (e a terem uma
vida serena, útil e corajosa), depois de ele próprio ter entrado no processo de enfrentar os seus?
- Para que serve uma vida serena, útil e corajosa?
71
2.2.3 Etapa 2 – Caminhando
Concretizado que está o propósito, formulado que está o conjunto das perguntas de
investigação, novas opções devem ser feitas para que possa passar à
36
EXTERIORIZAÇÃO e segunda fase do TRABALHO DE CAMPO. Contudo, e antes disso,
dedico um tempo à formação e participo num “Seminário de Tesis Doctoral”, sobre
Investigação Qualitativa em Ciências da Educação, na Universidad del Cauca –
Popayán/Colômbia, orientado pelos Professores Eugenia Trigo e Luis Guillermo
Jaramillo, daquela Universidade, e pela Professora Maria da Conceição Azevedo, da
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.
36
O segundo dos três caminhos de criação referidos por Sturner (1996) – ver “Capítulo 3 Descobrir
caminhos de outros – 2.2 Contornos do desenvolvimento humano”.
72
medo. Nessa sequência, procuro que o trabalho do grupo se desenvolva ao longo de
um tempo e de um lugar que seja, simultaneamente, (1) de EDUCAÇÃO DE ADULTOS e (2)
de PESQUISA COLABORATIVA.
A primeira tarefa é formar esse grupo. São feitos contactos pessoais com potenciais
interessados de diferentes áreas, para apresentação do projecto e da proposta para
participar. Os critérios de escolha dos participantes são os seguintes:
73
Contudo, e porque, a partir da terceira sessão, há uma desistência, o grupo fica
constituído por: Maria da Conceição Barbosa da Cunha, Maria da Conceição Azevedo,
Joana Cunha e Costa, Mariana Salvador, André Vela, Ricardo Mota Leite, Rui Pedro
Pereira, Vítor Briga e eu própria37.
37
Apesar da identificação, com sua autorização e interesse, dos nomes dos membros do grupo de pesquisa
colaborativa, o anonimato do que foi dito nas sessões de trabalho está garantido pela utilização de códigos
(ver ponto 2.2.4 deste capítulo: etapa 3 – fase de leitura da informação recebida).
38
“Desde Dilthey, la investigación en las ciencias sociales es la transformación de experiencias en
vivencias, hecho que es resultado de una interpretación subjetiva y por tanto de un proceso
fenomenológico. Las experiencias no se pueden vivir desde afuera; aprehender la vivencia implica estar
dentro de ella, hacerlas inmanentes, encarnalas. Para ello, es preciso situarse en el plano donde el objeto
74
O tempo de formação/educação de adultos e da primeira parte da pesquisa colaborativa
é composto por:
- uma reunião semanal preparatória entre mim e cada uma das pessoas do grupo
que, rotativamente, se dispõe a orientar a sessão;
- onze encontros do grupo, em fim de tarde, ao longo de três meses;
- um encontro de fim de semana no Gerês, onde, confrontados com a natureza e
actividades de outdoor, podemos viver diferentes tipos de experiências pessoais
e grupais.
“Acredito que podemos mudar o mundo se nos começarmos a ouvir uns aos outros.
Conversas simples, honestas, com dimensão humana. Não são mediação, negociação,
resolução de problemas, debates ou reuniões públicas. Conversas simples, verdadeiras,
40
onde cada um tenha possibilidade de falar, onde cada um possa ouvir e ser ouvido”
(Wheatley, 2002:3).
y el sujeto resultan indisociables en una conexión de convergencia en el conocer, sentir y querer hacer”
(Córdoba, Bohórquez et al. 2005:210).
39
Ver “Capítulo 3 Descobrir caminhos de outros – 3. Campo de criação”.
40
“I believe we can change the world if we start listening to one another again. Simple, honest, human
conversations. Not mediation, negotiation, problem-solving, debate, or public meetings. Simple, truthful
conversation where we each have a chance to speak, we each feel heard, and we each listen well”
(Wheatley, 2002:3).
41
Ver também Anexo 3 – transcrição das sessões do grupo de pesquisa.
75
TAREFA FEITA
- Apresentação dos participantes – dados pessoais mais relevantes, razões para
participar, expectativas...
- Apresentação e discussão em grupo dos propósitos e caminhos da pesquisa,
formas de trabalho, condições, exigências, vantagens, cronograma...
- Distribuição de documentação de apoio.
- Organização do trabalho futuro – orientação voluntária e rotativa das sessões,
redacção rotativa das actas das sessões, diários de campo individuais…
- Proposta de um plano de acção com vista à apresentação de uma comunicação
no Congresso de Motricidade Humana, em Porto do Son, Espanha.
76
- Registo individual da experiência vivida e da memória descritiva da “caixa do
medo” (por quê, para quê...).
42
Cinema Formativo:
- “Emissão e recepção intencional de filmes portadores de valores culturais, humanos, técnico-
científicos ou artísticos com a finalidade de melhorar o conhecimento, as estratégias ou as atitudes e
comportamentos dos espectadores” (Saturnino de la Torre, citado por Briga, 2003).
43
Técnica O.R.A (Briga, 2003):
- Observação e Compreensão – descrição do contexto do filme; descrição do filme; compreensão do
tema em reflexão, “o medo no desenvolvimento humano”.
- Relacionar – destacar as (minhas) ideias principais do filme; relacionar as ideias com o tema em
reflexão; interpretar as ideias à luz do tema em reflexão e retirar conclusões.
- Aplicar – transferência para a realidade pessoal; inovação – aprendizagens para a vida: como aplicar as
conclusões à minha realidade? Reflexão sobre a aprendizagem.
77
- Visualização do Filme “A Vila” (de M. Night Shyamalan)44.
Ilustração I.17 – Fotografias da partilha da aplicação da técnica ORA ao filme visualizado “A Vila”.
PROPÓSITOS
- Fazer a ligação entre o filme “A Vila” e o medo na sua relação com o
desenvolvimento humano.
- Interpretar as ideias principais do filme à luz do tema de reflexão.
- Fazer uma transferência das ideias do filme para a realidade de cada um.
TAREFA FEITA
- Partilha da aplicação da técnica ORA (observar, relacionar, aplicar) ao filme
visualizado.
- Registo de ideias e palavras-chave.
44
Título Original – The Village. Ano de Lançamento (EUA) – 2004. Estúdio – Touchstone Pictures / Scott
Rudin Productions.
Sinopse do Filme: Em 1897, uma vila parece ser o local ideal para viver – tranquila e isolada e com
os moradores vivendo em harmonia. Porém, este local perfeito passa por mudanças quando os
habitantes descobrem que o bosque que o cerca esconde uma raça de misteriosas e perigosas
criaturas, por eles chamados “aqueles de quem não falamos”. O medo de ser a próxima vítima destas
criaturas faz com que nenhum habitante da vila se arrisque a entrar no bosque. Apesar dos constantes
avisos de Edward Walker (William Hurt), o líder local, e de sua mãe (Sigourney Weaver), o jovem
Lucius Hunt (Joaquin Phoenix) tem um grande desejo de ultrapassar os limites da vida rumo ao
desconhecido. Lucius é apaixonado por Ivy Walker (Bryce Dallas Howard), uma jovem cega que
também atrai a atenção do desequilibrado Noah Percy (Adrien Brody). O amor de Noah acaba por
colocar a vida de Ivy em perigo, fazendo com que verdades sejam reveladas e o caos tome conta da
vila.
78
- Trabalho em grupos – início da criação de mapas mentais a partir das áreas
identificadas nos registos das sessões anteriores.
45
As actividades de marcha nocturna, rapel e paralelas foram realizadas com o apoio de monitores da
Javsport, especializados e certificados pelo ICN e pelo IEPF.
79
Ilustração I.19 – Fotografias do fim de semana no Gerês – caminhada nocturna e subida à serra.
46
“A forma do labirinto é um arquétipo que se encontra por todo o mundo. No Ocidente, está associado ao
palácio cretense de Minos onde estava encerrado o Minotauro. Contudo, encontramos formas semelhantes
em outros locais como na China, no Egipto e mesmo nos corredores de acesso a certas grutas pré-
históricas. Os labirintos foram muito populares na Idade Média, havendo vários nas catedrais góticas, dos
quais o mais conhecido é, por certo, o de Chartres, que data do século XII. Uma enorme carga simbólica
está associado à forma do labirinto, facto que não é alheio ao seu uso no âmbito da educação espiritual
que recentemente tem aumentado.
(...) Nos dias de hoje, muitas comunidades e grupos vêm redescobrindo os labirintos como forma de
experiência espiritual: pelo facto de confiar no caminho, perdendo a necessidade de ter um controlo
consciente sobre as coisas exteriores, as pessoas tornam-se mais receptivas aos seus estados interiores e
abrem-se à surpresa e aceitação da realidade que as rodeia. Caminhando em direcção ao centro,
aproximam-se também do centro de si mesmas e dispõem-se a receber como um presente a experiência que
é atingir o centro do labirinto” (Azevedo, no prelo).
80
11ª SESSÃO - 20 JUNHO 2005
PROPÓSITOS
- Sintetizar as ideias gerais das sessões anteriores.
- Construir conhecimento.
TAREFA FEITA
- Trabalho em grupos – conclusão dos mapas mentais iniciados na 8ª sessão
(Anexo 3A).
3. Observação participante
81
segundo, ficar-se-ia só com a lista de eventos (acções e interacções) sem
transcendência no plano real de significado” (Murcia & Jaramillo, 2003:92).
- sendo discreta, procurando deixar que as coisas fluam, mas também estimulando
experiências diferentes e o contacto das pessoas umas com as outras, numa atitude
de “esforço prazenteiro” capaz de, também aqui, ultrapassar dicotomias;
- só ajudando, se necessário, a centrar os temas, procurando participar com o que
sou, não com o que sei ou estudei;
- deixando que o processo e os temas demorem se isso corresponder às
preocupações das pessoas;
- aprendendo a viver na lentidão dos processos – dando tempo para escutar,
processar, dialogar;
- procurando ajudar a tomar consciência, mas respeitando o ritmo de cada um;
- estando atenta aos meus próprios sentimentos e utilizando-os, tanto como fonte de
partilha com o grupo, como fonte de reflexão sobre a pesquisa;
- recorrendo à intuição para, em cada momento, decidir o que fazer, como fazer, até
que ponto ser parte, até que ponto ser observador – muito “fácil” porque o clima do
grupo permite e estimula a ser parte, a estar dentro, mas também “difícil” porque o
propósito do trabalho obriga a ser “observador”, a estar fora...;
- tratando de nunca esquecer que as pessoas são mais importantes do que os
projectos (a tese é consequência, não objectivo, do trabalho que estamos a fazer –
ela nos reuniu, mas não se sobrepõe a nós), mas também que há que ter projectos
para implicar as pessoas.
82
páginas que, à medida que vão sendo compostas, e para garantir a sua exactidão, são
enviadas a todos os participantes para correcção.
47
SOQ – Situational Outlook Questionnaire. Dimensões do SOQ:
- Desafio e Envolvimento – o nível em que as pessoas estão envolvidas nas tarefas diárias, nos
objectivos a longo prazo e na visão do futuro.
- Liberdade – a independência de comportamento exercida pelas pessoas do grupo.
- Confiança e Abertura – a segurança emocional nas relações.
- Tempo para as Ideias – a quantidade de tempo que as pessoas podem ocupar (e ocupam efectivamente)
na elaboração de novas ideias.
- Alegria e Humor – a espontaneidade e o à vontade dentro do espaço de trabalho.
- Conflitos – a presença de tensões pessoais e emocionais (em contraste com a tensão de ideias na
dimensão “debates”).
- Apoio às Ideias – o modo como são tratadas as ideias novas.
- Debates – a ocorrência de acordos e desacordos entre pontos de vista, ideias, diferentes experiências e
diferentes conhecimentos.
- Riscos Assumidos – a tolerância da incerteza e da ambiguidade presentes no local de trabalho.
48
Em 1997, e trabalhando com Ken Lauer, na altura Director de Investigação do Creative Problem Solving
Group, Inc., fiz a primeira tradução do SOQ. Em 2004, Maria Oliveira juntou-se a esta equipa e a versão
que, neste momento, está disponível on line tem a assinatura de nós as duas.
49
O “Creative Problem Solving Group, Inc., CPSB, é uma organização que se dedica à pesquisa e ao
desenvolvimento que congrega um conjunto internacional de facilitadores, formadores e consultores
altamente especializados no uso do Processo de Resolução Criativa de Problemas. Tem como missão:
83
Ao mesmo tempo, e sabendo que, para além de implicações nas relações interpessoais
e na dinâmica do grupo, os ESTILOS DE RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS (individuais e do
grupo no seu todo), também influenciam os resultados obtidos, é feita a aplicação do
VIEW50 (Anexo 7), pois permite caracterizar a forma como as pessoas percebem,
processam e fazem escolhas e avaliar o estilo de criação presente no grupo (Selby et
al, 2003). Aplicado também on-line, mas na sua versão inglesa (porque a portuguesa
ainda não está disponível), os resultados são apurados por Don Treffinger, um dos
autores do instrumento, com quem também trabalho desde há anos.
Assim que recebo os resultados, e porque estou credenciada para tal pelo Creative
Problem Solving, Inc.51 (Anexo 10), faço um novo encontro com o grupo de pesquisa
para apresentação e discussão dos respectivos resultados e reflexão sobre o modo
como as características agora reveladas podem ter afectado o desenrolar do trabalho
da equipa.
A tabela abaixo colocada (tabela I.7) foi construída a partir dos seguintes documentos:
ajudar as pessoas a compreenderem e usarem os seus talentos criativos em desafios novos, importantes e
complexos: ajudar as pessoas a promoverem sinergias, a diversidade e o trabalho de equipa; aumentar o uso
produtivo do talento humano dentro das organizações de modo a melhorar a qualidade de vida numa
sociedade (www.cpsb.com).
50
Dimensões do VIEW:
- Orientação para a Mudança – descreve as preferências de resposta e de formas de lidar com a estrutura,
a novidade e a autoridade quando se enfrenta a mudança ou a resolução de problemas.
- Processamento da Informação – descreve as preferências sobre o como e o tempo em que a pessoa usa
a suas energia interna e os seus recursos, e a energia e os recursos dos outros e do ambiente.
- Formas de Decidir – descreve as preferências sobre o modo como, na análise de opções, na tomada de
decisão e na execução, se equilibram e se enfatizam as preocupações com a tarefa e as necessidades
pessoais ou interpessoais.
51
SOQ Certification Program (1997) e VIEW Certification Program (2003) do Creative Problem Solving
Group, Inc (Buffalo – NY / USA).
84
RESULTADOS ALCANÇADOS ALGUMAS PERGUNTAS E TEMAS EM ABERTO E SUA RELAÇÃO
ORGANIZADOS EM FUNÇÃO DOS 4 P’S COM CATEGORIAS DE ANÁLISE DA PESQUISA
1ª Sessão - 4 Abril 2005
1) Ao nível do clima/pressão: 1) Como se lida com o medo – processo centrado no
Início da construção da identidade do grupo – “nós”. desenvolvimento humano:
Criação de um clima informal de abertura, motivação, Como vai ser estruturado o trabalho?
boa disposição, tranquilidade e disponibilidade. Como fazer com que o trabalho seja produtivo no
tempo que lhe está destinado?
2ª Sessão - 11 Abril 2005
1) Ao nível do clima/pressão:
Compromisso de confidencialidade no grupo.
Integração-construção do sentido de grupo a partir da
experiência do relaxamento, da disponibilização do
corpo e da linguagem das emoções.
Diário de Campo – “sinto que, no final de uma
segunda sessão, não poderíamos estar mais longe
do que estamos. É como se, pelo interesse e
compromisso das pessoas, tivéssemos passado por
cima do tempo de entrosamento e constrangimento
inicial”.
3ª e 4ª Sessões - 18 Abril e 2 Maio 2005
1) Ao nível da pessoa: 1) Definição de medo:
Identificação de medos pessoais e de figuras As polaridades do medo – realismo-fuga; construtor-
significativas a eles ligadas – histórias, causas, bloqueador; imperceptível-atrapalhador; utilidade-
efeitos, estratégias, formas de ultrapassar. inutilidade; força-fraqueza; ameaça-tentação, um
2) Ao nível do clima/pressão: tudo e um nada...
Integração no grupo a partir da forma como se fala 2) Como se lida com o medo – processo centrado no
dos medos. desenvolvimento humano:
Acta da 4ª sessão: “o debate foi particularmente A importância da presença de uma figura significativa
animado – o que começou com uma partilha tornou- que seja testemunho de fortaleza.
se motivo para outros elementos do grupo (por causa Distinção entre medo e objecto de medo – a
da identificação) também falarem dos seus medos e necessidade de enfrentar o medo eliminando o
de formas de os controlar/curar”. (...) “As pessoas objecto do medo.
despediram-se e foram felizes, e inquietas, para A importância de saber viver bem com os medos.
casa...”. Como ganhar consciência das próprias limitações-
3) Ao nível do processo: possibilidades?
Extracto do relato da 3ª sessão – “Num trabalho “Sei que sou [capaz, inteligente, corajoso...], mas não
deste tipo parece-me que, andando rápido, podemos sinto que sou”.
perder coisas preciosas” (colocar referência). - Por que é tudo tão claro no pensar, mas não
Decisão do grupo – as coisas valem por si mesmas, no sentir?
trabalha-se com a profundidade que o grupo precisar, - Como reconhecer e trabalhar as emoções?
demore o que demorar; não há programa para Como passar do pensar ao sentir? Como
cumprir, não é preciso chegar a nenhum lugar evitar estratégias exclusivamente ligadas à
previamente definido. razão?
Extracto de um diário de campo (3ª sessão) – Não De que sentires reais estamos a fugir?
estou ainda convencida de que tenhamos ido às - Como utilizar vivências que nos ponham a
«profundezas» do tema (...).” sentir coisas não sentidas? Como sentir o que
Extracto de um diário de campo (3ª sessão) – “Foi está colado na pele?
uma sessão muito intensa. Não conseguimos mais - Como mexer, de verdade, com os medos
do que ouvir sete pessoas. Isto é, ficámos pelo ligados à pele, ao toque, ao corpo?
primeiro passo da sessão e, mesmo assim, não 3) Para quê – o lado positivo do medo:
terminámos. O medo como factor de maior consciência e
aprendizagem; o medo que ajuda a superar
objectivos.
85
5ª Sessão - 9 Maio 2005
1) Ao nível do clima/pressão:
Extracto de um diário de campo – “No final do filme,
que é intenso, o silêncio era total. Foram precisos
minutos para começarmos a reagir. Toda a gente
ficou mexida com o que vimos”.
Acta da 5ª sessão: “Após uma brevíssima reflexão
conjunta sobre o filme (que a todos tinha deixado
uma forte impressão), o nosso encontro terminou
pelas 20.20 horas e, como se vem tornando hábito,
as pessoas despediram-se e foram felizes e inquietas
para casa...”.
6ª e 7ª Sessões - 16 e 23 Maio 2005
1) Ao nível do clima/pressão: 1) O quê – efeitos do medo:
Extracto de um diário de campo – “(...) sinto as Relação entre medo e mentira, fantasia e criação de
pessoas muito interessadas; mas sinto também (pelo mundos.
menos nalgumas situações), que não abordam os Quais as consequências de viver “congelado-
seus sentires, mas os seus saberes, sobre o tema do paralisado ” no medo? Vive-se melhor, ou pior, sendo
medo – em termos individuais e em termos sociais. alienado?
(...) Mas também sinto que as pessoas estão bem O medo entranhado (como parte de si, do corpo, do
umas com as outras, desfrutam da companhia e que sentir, do viver), que leva a ter medo mesmo daquilo
este trabalho está a fazer bem a todos”. que se sabe não ser real.
2) Ao nível do produto: 2) Porquê – causas do medo:
Extracto de um diário de campo – “Pelo caminho, de Relação entre medo, sentimento de culpa e
regresso a casa, conversei muito com a A. sobre os religiosidade.
nossos trabalhos, sobretudo sobre o bem que nos 3) Para quê – o medo para a conservação social:
têm proporcionado – contribuem muito para aliviar o Relação entre controlo social e medo. O medo como
stress do dia. Também nos interrogamos se, na alavanca ao controlo social; o medo como factor de
verdade, estamos a ajudar (...) a alcançar o objectivo coesão e isolamento; a utilização da mentira para
porque, às vezes, pode-se correr o risco de nos deter o poder e governar.
esquecermos que estamos no grupo para uma 4) Como se lida com o medo – processo centrado no
investigação!” desenvolvimento humano:
De tanto pensar, de tanto analisar, de tanto
raciocinar, o que estou a esconder de mim mesmo?
O que estou a evitar?
A importância dos processos interiores para superar
o medo. A necessidade-capacidade de entrar em
contacto consigo mesmo, com os valores profundos,
para ter força para enfrentar os medos.
Se não houvesse limitações, se não houvesse medo,
o que poderia ser feito?
9ª Sessão - 4 e 5 Junho 2005
1) Ao nível da pessoa: 1) Porquê – causas do medo:
Sentimento de identificação e fusão com o universo – O papel do pensamento na construção do medo.
pacificação interior. 2) Como se lida com o medo – processo centrado no
Somatização de emoções. desenvolvimento humano:
Experiência de ir até ao próprio limite num momento Como explicar o que são medos interiores a quem só
dado. é capaz de entender os físicos-exteriores?
Extracto de um diário de campo – “(...) na vida há Como permitir o soltar das emoções e evitar o elogio
momentos tão profundos que, por serem tão fácil que as faz conter?
profundos, sentimos medos de os partilhar! Sentimos Como aprender a não duvidar de si mesmo e a ter a
medo, sim, porque às vezes as nossas palavras são força e a confiança suficientes quando, contra todos,
ineficazes para expressar o verdadeiramente se intui estar no caminho certo?
profundo que uma pessoa possa sentir!” A importância do sentido de missão como forma de
2) Ao nível do clima/pressão: lidar com o medo – “faz o que tem de ser feito sem te
Sentimento de protecção, de segurança e de preocupares com as consequências, se isso fizer
86
pertença que nasceu da sintonia do grupo no silêncio parte da tua missão”.
e nas passadas do caminho.
Extracto de um diário de campo – “Com a sua
sensibilidade, o K. soube tornar aquele momento
num momento mágico de relação entre as pessoas.
E no final alguma coisa tinha mudado. Posso dizer
que foi um momento essencial de comunicação de
almas e entrosamento das pessoas. Por tudo o que
em conjunto vivemos, a serenidade e a paz que ali
estavam presentes, tornámo-nos companheiros de
viagem”.
3) Ao nível do processo:
Consciência da necessidade de dar tempo para que
as vivências ganhem maior sentido.
10ª Sessão - 13 Junho 2005
1) Porquê – causas do medo:
O medo e o desejo da liberdade. O medo de falhar
nas escolhas e de não chegar tão longe como se
poderia.
2) Como se lida com o medo – processo centrado no
desenvolvimento humano:
Qual é o labirinto da minha vida? Qual o monstro que
hoje está lá no centro à minha espera?
O que se consegue no centro é uma conquista
dolorosa.
O caminho que vai desde “pensar” o meu centro a
“sentir” o meu centro.
A confiança de quando se acredita numa coisa muito
forte e se sente que essa coisa muito forte está a
indicar o caminho.
Deixando acontecer o não planeado recebe-se mais
do que o sonhado.
11ª Sessão - 20 Junho 2005
1) Ao nível do produto:
Mapas mentais dos seguintes temas (Anexo 3A)
- Medo – categorias de medos.
- Estratégias para lidar com o medo.
- Medo e Desenvolvimento Humano – medo
destrutivo/bloqueador; medo impulsionador.
2) Ao nível do clima/pressão:
Extracto de um diário de campo: “Ao nosso grupo
juntou-se o J. Foi bonito o seu contributo.
Trabalhámos em harmonia. Trabalhámos e
conversámos.
12ª Sessão - 27 Junho 2005
1) Como se lida com o medo – processo centrado no
desenvolvimento humano:
Lidar com o medo e transformá-lo em energia
positiva. Distinção entre medo bloqueador e medo
impulsionador:
- O medo bloqueador provoca: tensão,
ansiedade, angústia, perda da noção do real,
aumento do medo de nós próprios, viver para
o exterior, excesso de projectos, viver em
função da imagem, afastamento da própria
87
essência.
- O medo impulsionador possibilita:
consciência, novas energias, auto-
conhecimento, paz de espírito, viver no
presente, liderança.
Não gostamos das pessoas por aquilo que temos em
comum, mas por aquilo que vivemos em comum.
Tabela I.7 – Sessões do grupo – síntese por sessão dos resultados alcançados e das perguntas e temas em aberto.
88
Perguntas e temas em aberto – organizados em função das categorias de análise da
pesquisa.
1. O quê.
As polaridades do medo.
O medo entranhado que leva a ter medo mesmo daquilo que se sabe não
ser real.
2. Como.
Como se lida com o medo – processo centrado no desenvolvimento humano.
- A importância de saber viver bem com os medos.
- A importância dos processos interiores para superar os medos.
- A importância do sentido de missão como forma de lidar com o medo.
- Lidar com o medo e transformá-lo em energia positiva.
- De tanto pensar e analisar, o que estou a esconder de mim mesmo?
- Como ganhar consciência das próprias limitações-possibilidades?
- Como passar do pensar ao sentir?
- Como utilizar vivências que nos ponham a sentir coisas não sentidas?
Como sentir o que está colado à pele?
- Como mexer, de verdade, com os medos ligados à pele, ao toque, ao
corpo?
3. Porquê.
A importância da presença de uma figura significativa que seja testemunho
de fortaleza.
O papel do pensamento na construção do medo.
Relação entre medo, sentimento de culpa e religiosidade.
4. Para quê.
O medo para o controlo social – o medo como factor de coesão e
isolamento; a utilização do medo para deter o poder e governar
O medo para o desenvolvimento humano - o medo como factor de maior
consciência e aprendizagem; o medo que ajuda a superar objectivos.
89
2.2.4 Etapa 3 – Achando Luzes
A terceira etapa pode ser dividida em três fases distintas – leitura da informação
recebida, construção de sentido e apresentação e discussão dos significados
encontrados. A pesquisa colaborativa, embora ainda ocorra no início da primeira fase,
sofre depois uma interrupção para só voltar a ser retomada na realização da última.
1. Análise de dados
90
As transcrições das sessões são divididas por pequenos grupos de colaboradores para
um trabalho preparatório de identificação-criação de categorias e sub-categorias.
Depois reúnem-se e discutem-se os resultados parcelares e os dados são
recategorizados até, em CONSENSO e por uma SATURAÇÃO DOS DADOS que garanta a
neutralidade na análise, chegarmos ao conjunto final das categorias52. O desenho de
uma proposta educativa para lidar com o medo em contexto de educação de adultos
(propósito da pesquisa) está contido neste conjunto final.
Em termos gerais (e com mais ou menos detalhe de acordo com a necessidade sentida,
e conforme se pode ver nos documentos contidos no Anexo 5, os passos dados para a
construção das CATEGORIAS DE ANÁLISE foram os seguintes:
52
O ponto 2.4 deste capítulo, sobre processamento de dados, relata o modo como as categorias de análise
emergiram a partir dos resultados empíricos e dos estudos conceptuais.
91
2V1/4
A) E, nestes 9 anos, todas as semanas estou a ser avaliado, porque todas as A) O quê, relação de
semanas estou a trabalhar com grupos diferentes e todas as semanas (e já medos
são algumas centenas de grupos), mas todas as semanas tenho medo
quando vou começar um trabalho. B) Os meus amigos dizem-me: “Já andas B) Como, como reagem as
nisso há tantos anos… Como é que é possível?”. outras pessoas
9I9/1
Gostava de dizer uma coisa – eu tenho um bocado a ideia que, A) se eu hoje Por Quê, razões para não
não tive medo no rappel, em grande medida era porque tinha que chegar lá em ter medo CONTINUA EM
baixo rapidamente. 9J2/1; 9I10/1
9J2/1
A’) Tinhas uma missão, tinhas um valor muito grande. CONTINUAÇÃO DE 9I9/1
9I10/1
A’’) Nem hesitei, só tinha que descer. CONTINUAÇÃO DE 9I9/1
92
2V1/4 – E, nestes 9 anos, todas as semanas estou a ser avaliado 4. Medo de ser avaliado
(...), mas todas as semanas tenho medo quando vou começar um
trabalho.
53
Ver “Capítulo 1 Roteiro – 2.4 Processamento de dados” e “Anexo 4 – Descrição das categorias de
análise”.
54
Ver “Anexo 4 – Descrição das categorias de análise”.
93
Universidade del Cauca, o Prof. Doutor Manuel Sérgio, da Universidade Técnica de
Lisboa e a Prof. Doutora Clara Costa Oliveira, da Universidade do Minho.
“Bertraux recorda que os "objectos" que as ciências sociais examinam são falantes, mais
do que isso, são pensantes e o que dizem tem significado; além disso, o investigador é
um deles, um ser humano entre seres humanos. Com frequência as pessoas que ele
estuda sabem mais do que se passa do que o investigador mesmo; contudo, este último
tem algo a acrescentar, porque cada pessoa tem um campo de percepção limitado e é aí
que começa o desafio da investigação: trata-se de dizer algo mais sobre o todo de que
forma parte o grupo em estudo, de unir os fragmentos do conhecimento que encontrou
por um e outro lado. É este o sentido que o autor reconhece à frase "análise da
informação": um processo não só de análise, mas de síntese, um processo contínuo de
concentração no âmbito tanto invisível como omnipresente das relações sociais”
(Martínez Salgado, 1996:48).
Tentando sentir-me livre para interpretar, são estes os passos que dou para cada uma
das perguntas e categorias de análise:
94
em processo de triangulação, e a partir da minha subjectividade de investigadora,
dialogo com as pessoas do grupo, com os autores, com o meu diário de campo.
Análise da
Análise da
A+B Categoria
Categoria B
A
A+C B+C
Análise da
Categoria
C
Legenda
A+B / B+C / A+C = interpretação
A+B+C = construção de sentido
95
de muitos meses, compreendendo o que é essencial, concretizando a proposta
educativa – para cumprir os propósitos. Para fazer (e encontrar o) sentido.
Com tudo escrito, volto a convocar o grupo de pesquisa para apresentação e discussão
da proposta educativa e dos significados encontrados no quadro de leitura da pesquisa.
Dos nove, estávamos sete. Os outros dois estavam geograficamente muito longe.
É tempo de dar conta da tarefa feita, das decisões tomadas e das soluções
encontradas. É, essencialmente, tempo para escutar e estar disponível para mudar o
96
que, a partir daí, precise de ser mudado. Mas foi também, e de alguma maneira, tempo
de festa, porque foi tempo de encontro.
97
extremos encontram-se os modos formais até aos produtos finais. (...) Podem ajudá-
ou tradicionais de organizar uma lo a resumir o seu pensamento,
apresentação. (...) No extremo oposto permitindo-lhe apresentar mais facilmente
podem encontrar-se os modos de escrita os seus resultados a outras pessoas”
mais informais ou não tradicionais” (Bogdan & Biklen, 2006:217).
(Bogdan & Biklen, 2006:256).
É também um tempo que demora tempo – porque é tempo de ler e reler e de dar a ler –
ganhando distância, olhando o detalhe, confirmando a coerência.
55
O terceiro dos três caminhos de criação referidos por Sturner (1996) – ver “Capítulo 3 Descobrir
caminhos de outros – 2.2 Contornos do desenvolvimento humano”.
98
2.2.6 Correspondência entre processo criativo (CPS), processo da pesquisa e relatório da pesquisa
Problema
Cap. 3
- O desenvolvimento humano
Compreensão do
Descobrir caminhos
Perguntas da Investigação - Campo de criação
de outros
- Educação criativo-motrícia
Etapa 2 – Caminhando Cap. 1 Roteiro – 2.4.1 Mapa das categorias de análise
Fase de aprofundamento. Observação-participação no Anexo 3 – Transcrição das sessões do grupo de pesquisa
1. Sessões de trabalho com o grupo de trabalho de campo Anexo 4 – Descrição das categorias de análise
pesquisa colaborativa (trabalho de campo Anexo 5 – Análise de dados
II) III Anexo9 – Diário de campo
Etapa 3 – Achando luzes Agir
Categorias de Análise
Fase de leitura da informação recebida. - Quem...?
Cap. 4 - Por que .....?
Produção de Ideias
1. Análise de dados (c/ informantes-chave) - O que .....?
Quadro de Leitura da Criar o caminho - Para que .....?
2. Interpretação/triangulação - Como…?
Informação Recolhida
Fase de construção de sentido.
3. Síntese e proposta educativa
Síntese
Fase de apresentação e discussão dos O sentido do caminho
+
da Acção
significados encontrados. - À maneira de conclusão
Planeamento
Princípios Educativos
4. Sessão com o grupo de pesquisa IV - Princípios de Educação de Adultos
Etapa 4 – Novos caminhos Celebrar Para abrir um novo caminho
Fase de identificação de novos projectos e - Fechar o ciclo
novas perguntas. - Reabrir o ciclo
Novas perguntas
Compreensão
do Problema 2
Tabela I.8 – Correspondência entre o processo criativo e metodológico e o relatório da pesquisa.
99
100
2.3 Processo de Orientação da Tese
Mentor
É, por isso (e, ao mesmo tempo, apesar disso), que, quando atrás fiz a descrição dos
procedimentos e técnicas desta tese, não fiz a explicação do processo da sua
orientação. Mas, é porque se trata também, e fundamentalmente, de um acto criador,
que, sob o risco de omitir um elemento vital da pesquisa, não posso deixar de a fazer
agora. Nessa continuidade, vou colocar esta descrição na mesma matriz (a matriz dos 4
P’s), já antes utilizada para situar o processo metodológico. Assim (e na medida das
possibilidades de uma descrição que não deve tornar-se demasiado extensa), começo
pela repetição do que, noutras ocasiões58, já serviu para a caracterização do produto
desejado para que, também aqui, possa perceber-se como implicou e se conjugou com
restantes partes do sistema.
58
Ver “Introdução – 1.2 Implicações para a pesquisa” e início do “Capítulo 1 Roteiro”.
101
• Produto
• Pessoa(s) e Pressão-Clima
Tal como já tive oportunidade de referir na Introdução desta tese, ao longo da pesquisa
pude contar (num trabalho feito em parceria), com a orientação de três Professores com
formações, sistemas e, até, nacionalidades diferentes. De uma forma continuada, com a
orientação da Prof. Doutora Eugenia Trigo (da Galiza, Espanha, vinculada à
Universidade del Cauca, na Colômbia); no início e escolha do tema e na fase da
pesquisa colaborativa, com a Prof. Doutora Maria da Conceição Azevedo (Portugal,
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro); em momentos pontuais de assessoria
metodológica, com a orientação do Prof. Doutor Luís Guillermo Jaramillo (Colômbia,
Universidade del Cauca).
102
Orientadora(es) e Orientada, com papeis e responsabilidades diferentes, mas que, na
complexidade e pela intercomunicação, se tornaram, à maneira dialógica de Freire,
orientadora(es)-orientada(os) e orientada-orientadora – “porque a educação autêntica
(...) não se faz de A para B ou de A sobre B, mas de A com B, mediatizados pelo
mundo” (Freire, 2003:84).
Não quero, por isso, mas também por uma economia de palavras, separar aqui a
descrição da dimensão pessoa da dimensão clima. Aliás, se tivesse de escolher uma
única palavra que caracterizasse ambas, escolhia “cumplicidade” – pelo que pressupõe
de confiança, discrição e compromisso; pelo que integra de comportamentos de escuta,
de comunicação, de permanente trabalho de equipa.
103
- Exigir tudo o que acreditaram ser possível – não numa atitude de quem aponta o
errado (nem de quem corrige e faz pelo outro o que só ele deve fazer), mas
ajudando a encontrar em mim aquilo que se acreditou ser possível encontrar.
• Processo
104
Tempos de tutoria virtual
Inicialmente encarados, pela minha parte, com alguma preocupação, vieram a
revelar-se uma forma diferente, mas também produtiva e eficaz, de ser orientada no
processo da pesquisa. Com uma frequência que, em diversas épocas, chegou a ser
diária, a tutoria virtual (tanto escrita, como falada), teve, inclusive, a vantagem de
obrigar a uma maior disciplina, organização e estruturação do plano conjunto de
trabalho.
Tempos de formação
Integrados em contextos variados, e com o envolvimento de outros investigadores e
especialistas, os tempos de formação incluíram: acções de formação no
Departamento de Doutorado da Universidade del Cauca, em Popayán59; a presença
em congressos, painéis e mesas redondas (em Portugal, Espanha e Colômbia)60,
para que, a partir da experiência de apresentação e discussão pública do projecto
da pesquisa, fosse possível repensar e/ou dar resposta às questões e situações que
ali fossem colocadas.
59
105
Tempos de tutoria colectiva
Conduzidos pelos Orientadores, e no prolongamento dos programas de formação,
foram oportunidades de conhecer e reflectir com outros colegas de doutoramento
sobre os diversos projectos envolvidos.
61
Ver ponto 2.2 deste capítulo, “Descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas”.
62
Ver ponto 2.4.1 deste capítulo, “Mapa mental das categorias de análise”.
106
Depois, e a partir delas (e da categoria “quem” que caracteriza a população em estudo),
foi um processo de criação feito de permanente agrupamento/desagrupamento,
construção/desconstrução/reorganização, que levou à emergência de um novo conjunto
de sub-categorias que, em muitos casos, o grupo nem imaginava que lá estivessem
contidas.
- A VIA INDUTIVA – a da criação a partir das (novas) “sugestões” que emanavam das
narrativas do grupo de pesquisa e de que a participação activa no trabalho do grupo
permitiu fazer uma leitura.
107
2. As sub-categorias constituídas pelas dimensões do Situational Outlook
Questionnaire - SOQ (Quem – 1.2.1) e do VIEW (Quem – 1.2.2) para que se
pudesse fazer a ligação entre duas fontes de dados – a espontânea, dos relatos dos
participantes, e a formal, dos resultados da aplicação destes questionários ao grupo
de pesquisa e, com isso conseguir melhor compreender:
a) a percepção que os participantes tinham sobre o clima para a criatividade e
inovação gerado no grupo (SOQ), respectivas implicações no tipo de resultados
obtidos na pesquisa e onde, por isso, se colocam novos caminhos-desafios de
investigação;
b) os estilos de resolução de problemas presentes no grupo (VIEW) e, também
aqui, as respectivas implicações no tipo de resultados obtidos na pesquisa e
onde, também por isso, se colocam novos caminhos-desafios de investigação.
108
2.4.1 Mapa mental das categorias de análise
109
110
111
112
2.5 Aspectos Éticos
“Ao assumir uma postura ética, um indivíduo tenta compreender o seu papel como
trabalhador e o seu papel como cidadão de uma região, de uma nação, do planeta. No
meu caso, eu pergunto: quais são as minhas obrigações como investigador científico,
como escritor, como líder? Se estivesse sentado do outro lado da mesa, se ocupasse
um nicho diferente na sociedade, que direito teria a esperar daqueles outros que
pesquisam, escrevem, gerem, lideram? E, para ter uma perspectiva ainda mais
alargada, em que tipo de mundo eu gostaria de viver (....)? Qual é a minha
responsabilidade em fazer com que esse mundo aconteça? Qualquer [pessoa] deveria
ser capaz de se colocar (ou de responder) este conjunto de perguntas relacionadas com
63
o seu nicho ocupacional e cívico” (Gardner, 2006:8) .
- Vou começando (...) a preparar o primeiro encontro. Queria que a primeira reunião fosse um tempo de
apresentação e de “tirar dúvidas”, mas também um exemplo do esforço prazenteiro que deverá definir
a nossa forma de trabalho em equipa.
- Tento ter tudo muito em ordem – sinal de que não me sinto completamente segura? (...) Até que ponto
devo dar informação? Dar muita, incomoda com dados e condiciona o trabalho; dar demasiado pouca,
pode fazer dispersar por caminhos que não são os que interessam...
63
“As I use the term, “ethics” also relates to other persons, but in a more abstract way. In taking ethical
stances, an individual tries to understand his or her role as a worker and his or her role as a citizen of a
region, a nation, and the planet. In my own case, I ask: What are my obligations as a scientific researcher,
a writer, a manager, a leader? If I were sitting on the other side of the table, if I occupied a different nich
in society, what would I have the right to expect from those “others” who research,, write, manage, lead?
And, to take an even wider perspective, what kind of a world would I like to live in, if (…) I were cloaked in
a “veil of ignorance” with respect to my ultimate position in the world? What is my responsibility in
bringing such a world into being? Every reader should be able to pose, in not answer, the same set of
questions with respect to his or her occupational and civic niche” (Gardner, 2006:8).
113
- Preparo diversos ficheiros em powerpoint para levar para a reunião e começo a sentir que estão
concisos e claros. Alguns servirão de apoio à discussão durante o encontro; outros são para que cada
um leve para sua casa e, a seu tempo, vá tomando contacto com eles.
- Faço cópias do desdobrável do IV Congresso Internacional de Motricidade e Desenvolvimento
Humano que, em Julho, se vai realizar em Porto de Som, na Galiza. É uma oportunidade
interessantíssima para nos apresentarmos como equipa de pesquisa e darmos a conhecer o nosso
trabalho perante um grupo de investigadores internacionais (...).
Ilustração I.25 – Exemplo de um dos slides utilizados no primeiro encontro do grupo de pesquisa colaborativa.
- Tendo em conta o meu próprio processo, preciso lembrar-me da importância de não contaminar –
pedir ao grupo o seu conceito de medo e de desenvolvimento humano antes de colocar definições de
autores …
- Foi abordada a questão da confidencialidade do nosso trabalho (...). Julgo que isso tanto passa por
alguma insegurança relativamente ao resto das pessoas, que ainda são desconhecidas, como também
pelas nossas próprias inseguranças relativamente ao tema. Mas todos assumimos esse compromisso.
- Todo o trabalho se desenvolveu com seriedade. Sinto que, no final de uma segunda sessão, não
poderíamos estar mais longe do que estamos. É como se, pelo interesse e compromisso das pessoas,
tivéssemos passado por cima do tempo habitual de entrosamento e de constrangimento inicial.
114
- (...) A descoberta de que vivemos um permanente deixarmo-nos conduzir e envolver pelo tema que
nos congregou (que faz com que tudo demore mais tempo do que o previsto), um ir muito mais a fundo
do que aquilo que alguma vez supusemos ser possível num grupo que, enquanto tal, nunca antes se
tinha encontrado.
- Muitas vezes nos colocamos esta pergunta: “será que, com este ritmo, conseguimos chegar onde
queremos?”. (...) Aos poucos vamos percebendo que é tudo parte da dinâmica de um grupo – há que
deixar que flua. Uma coisa é a tese, a outra, as necessidades das pessoas com um tema que também
é delas.
- Estou a aprender a levar os dois ritmos em paralelo – a tese é o pretexto para o que está a acontecer.
Em pesquisa colaborativa não é preciso chegar a lugar nenhum previamente estipulado. Trabalha-se
com a profundidade que o grupo precisa, demore o que demorar. Só tenho de fazer o grupo andar
para a frente se ele estiver parado.
- Quanto à minha forma de estar e sentir ao longo das primeiras sessões – oscilo entre a necessidade-
vontade de estar completamente engajada e presente no trabalho que estamos a fazer, e a
consciência de que me cabe um papel especial: uma visão mais ampla, uma atenção de observador
constante e a responsabilidade com a logística, a atenção ao gravador, o fazer fotografias, etc.
- As minhas sempre inquietações interiores – Até que ponto sou parte do grupo? Até que ponto,
participando “demasiado” (isto é, fazendo muitas perguntas ou comentários), posso estar a arrastar o
grupo para o trabalho que eu já fiz (por exemplo, induzindo-os para as categorias que eu, há tempos,
construí)? Porque, na verdade, à medida que vamos avançando, falando e vivendo, eu não consigo
deixar de, mentalmente, ir fazendo a triangulação com os outros momentos da pesquisa. Opto, por
isso e em princípio, por uma posição mais discreta – deixar que as coisas fluam para, posteriormente,
melhor poder triangular. Mas, procuro, também, ter sempre presente os princípios de uma investigação
colaborativa – as coisas vão-se construindo entre todos, mas eu também sou parte e é justo e
importante que coloque as minhas aportações. O grupo só agora começou, mas a tese já está a ser
feita há muito tempo e o meu ponto de vista é mais um ponto no grupo. Preciso de me deixar levar
pelas minhas intuições e pela minha experiência.
Julgo, então, estar em condições de dizer que foram cumpridos os princípios éticos de
uma investigação qualitativa:
115
1. Foram apresentadas e cumpridas as condições estipuladas para o funcionamento
do grupo.
2. Cada pessoa do grupo aderiu voluntariamente e soube de antemão em que projecto
se estava a envolver.
3. Cada pessoa tinha consciência do meu papel de observadora participante. Procurei
sempre manter a minha posição como membro do grupo, não como líder, nem como
orientadora, nem como quem já estudou ou “sabe tudo”.
4. Foi pedida autorização para fazer a gravação áudio das sessões e fazer uso das
suas transcrições.
5. Foi pedida autorização para fazer e utilizar as fotografias do grupo.
6. Sem embargo de, com o seu consentimento e interesse, ser feita a apresentação
dos nomes dos participantes no grupo como colaboradores no projecto da pesquisa,
está garantido o anonimato do que foi dito em cada sessão.
7. Os resultados do trabalho foram apresentados ao grupo e as suas sugestões foram
utilizadas para fazer a afinação da análise.
116
1.1.1.1 feita pelo próprio
1.1.1 caracterização geral de
cada uma das pessoas do grupo 1.1.1.2 feita pelos outros
4.2.1.2.1 corpo mental 4.2.1.2 percepção dos Outros 4.2.1 razões para não ter medo 2.3.2.1.1 corpo cultural
2.3.2.1 anulação da diferença
4.2 causas do não ter medo 2.3.2.1.2 corpo emocional
4.2.1.3.1 corpo emocional
4.2.1.3.2 corpo físico 4.2.1.3 percepção do Cosmos 2.3.2.2 criação de dependências 2.3.2.2.1 corpo emocional
I. PROCESSO DA PESQUISA
Introdução
Capítulo 1 – Roteiro
II. CENTRAR
Capítulo 2 – Descobrir os próprios caminhos
1. Eu Pessoa – Já alguma vez?
2. Eu Educadora – Memórias
Capítulo 3 – Descobrir caminhos de outros
III. AGIR
Capítulo 4 – Criar o caminho
IV. CELEBRAR
O sentido do caminho
Para abrir um novo caminho
119
“Entre em si mesmo e examine as profundidades de que brota a sua vida.
Neste manancial encontrará as respostas às suas perguntas. Tome-as como
são, sem interpretações” – Rainer Maria Rilke.
Este capítulo, o meu referencial interno na pesquisa, é uma das respostas dadas neste
trabalho a três desafios diferentes mas, aqui, também complementares: o desafio de
revelar os interesses, motivações e descobertas que estão a montante do processo de
investigação; o desafio de conciliar a dualidade dos papéis de observador e
observado/objecto de observação; o desafio de não limitar a análise indutiva na escolha
dos temas e, por isso, entrar no mundo dos sujeitos (de ir ao campo), sem nenhuma, ou
quase nenhuma, revisão da literatura (Bogdan & Biklen, 2006, Martínez Salgado, 2006;
Jaramillo, 2006b). Foi, por isso, composto com os saberes e sabores (conhecimentos
extra-teóricos e empíricos), que resultaram dessa primeira fase do trabalho de campo64.
Dele também nasceram os temas que começaram por orientar a leitura dos autores e
que depois (e numa perspectiva de ecologia de saberes), vieram a constituir as linhas
de orientação da pesquisa – em função do seu desenho metodológico; em função da
abordagem e observação da segunda fase do trabalho de campo.
É dos capítulos mais pequenos desta tese, mas, porque é resultado de um processo de
busca interior, também é o que demorou mais tempo a redigir. Integra dois textos
diferentes. “Eu Educadora – memórias”, de construção mais fácil, foi, como o nome
indica, um trabalho feito a partir de uma selecção de recordações da minha vida de
educadora. O outro, “Eu Pessoa – já alguma vez?”, de muito mais difícil construção, foi
o primeiro de todos os textos públicos que escrevi. Parte das minhas histórias de vida e
está escrito sob a forma de uma metáfora. Para explicar o que e como foi esse
processo de criação, refaço algumas “folhas soltas” do meu diário da pesquisa:
64
A razão por que nos dois textos deste capítulo, quando há alusão a alguns autores, não estão colocadas
quaisquer referências bibliográficas. Quis manter na apresentação dos textos o mesmo princípio que
norteou a sua redacção.
120
e “medrosos” – dão notícias do sabido, do já alcançado, não se aventuram em terrenos
desconhecidos ou difíceis. A (minha) mente, por si só, é capaz de encontrar 1.000 explicações
para evitar ir muito mais a fundo. É tão fácil enganar-nos(me) a nós(mim) mesmos(a)! Mas,
quando me permito, timidamente, ouvir a mim mesma, os resultados começam a ser espelho da
minha alma.
(...) Há dias em que as páginas escritas se sucedem umas às outras. Há dias em que é
muito duro confrontar-me com as minhas sombras – e o estômago aperta. E, nesses dias, surge a
dúvida: “Não estarei a exagerar? Não são todas as pessoas assim? Até parece que não sou uma
pessoa normal”. Mas depois, e mais uma vez, confronto-me com a necessidade de fazer o que
tantas vezes digo aos meus alunos: “Se queremos dar luz a um quadro, temos de lhe colocar a
sombra. Temos de encarar as nossas Sombras para descobrir a nossa Luz”. Só me resta uma
saída – continuar.
(...) Começo a ficar envolvida e comprometida com o que escrevo. Dou-me ao direito de
chorar e rir.
Sobre a metáfora
Continuando a esquecer todas as leituras de autores, preciso escrever um texto sobre o
tema do medo a partir das minhas histórias de vida. Devo recorrer a metáforas, à poesia, a
desenhos. É-me sempre tão difícil começar uma nova etapa! E o pior é que preciso passar dos
textos íntimos de descoberta e sofrimento para um texto de metáforas – e que vai ser tornado
público!
(...) Dou-me muito tempo para incubação. Já que não me organizo por dentro, ponho em
ordem o que está fora: arrumo prateleiras, reordeno a minha biblioteca, classifico dossiers... Os
dias vão-se sucedendo e não acontece nada. Não consigo encontrar a ideia ou o fio condutor do
trabalho. Os dias vão passando.
Quando já não sei mais como fazer, sento-me e releio, mais uma vez, as minhas histórias
de vida e, simplesmente, sublinho o que considero serem as palavras e as ideias fundamentais.
Organizo essas ideias e palavras em categorias, ordeno-as numa sequência que corresponda à
minha experiência de vida e dou um título a cada uma delas. Procuro símbolos para cada uma das
categorias: alguns, encontro-os nos meus textos; outros, vou buscá-los ao espaço da casa em que
habito – a imagens, objectos, brinquedos... Começo a escrever o texto.
Mas nem todos os dias são dias de produção – preciso de tempo, de silêncio, de não ser
interrompida... Algumas partes saem “a ferros” (há dias em que passo toda a tarde à volta de duas
121
páginas; às vezes até são mesmo dois parágrafos) – remoo e não avanço. Outras são escritas de
um só fôlego.
Saiu aos arranques – como quem vomita. A imagem pode não ser muito bonita ou
elegante, mas é a que vem. Não me lembro de um texto que me tivesse sido tão difícil organizar.
Mas é o que consegui fazer até agora. A primeira leitura final é inquietante. Sinto que há ainda
muito para fazer – está cheio de repetições e de ideias desorganizadas. Também acho que tem
algumas coisas interessantes. Deixo, por isso, passar alguns dias antes de o voltar a ler. Dou-o
também a ler a quem me pode ajudar.
Com a distância criada, a segunda leitura traz satisfação. Sinto que o trabalho, de facto,
jorrou de dentro. É por isso que ele custou tanto. É o resultado de um processo muito longo. Ainda
que não esteja completo, para já, está pronto.
Espero que façam sentido para quem as lê, como fizeram para mim depois de as ter
escrito.
122
1. Eu Pessoa: Já alguma vez?
The Te of Piglet
Já alguma vez ouviu dizer que é nos frascos pequeninos que se guardam os
melhores perfumes e os piores venenos? Tal como com perfumes e venenos,
também as coisas mais importantes da vida se revestem muitas vezes de uma
aparência quase insignificante mas, no entanto, poderosa – para o melhor, e para o
pior.
Contudo, e no que diz respeito aos venenos, nem sempre é fácil distinguir até que
ponto um veneno é um veneno. Todos sabemos que, quando usado na medida
certa, também pode ser capaz de curar. Por isso, o que o torna perigoso não é tanto
o conjunto dos ingredientes da sua composição, mas a nossa ignorância em lidar
com eles. A fronteira entre o seu poder curativo e o seu poder destruidor só será
ultrapassada se não soubermos como doseá-los.
123
Tenho 1.50 m de altura. Quando era criança só em casa me diziam “que grande tu
estás!”. Em todos os outros locais da minha vida de menina sempre fui dos mais
pequenos – dos que se sentavam nas primeiras filas da sala de aula para poderem
ver para o quadro; dos que precisavam de ajuda para chegar aos locais mais altos;
dos que sentiam a bola passar por cima quando se jogava ao volley ou ao “mata”;
dos que se sentiam meio engolidos no meio de uma multidão... Mas sempre me
disseram: “Não te preocupes, a altura não é o importante. Pode ser-se grande de
outras maneiras”.
À medida que fui “crescendo”, fui deixando de acreditar nos contos de fadas – tornei-
me mais realista, mais adulta, “maior”. Mas demorei algum tempo a perceber que “as
outras maneiras” também queriam dizer que a sabedoria e o encanto desses contos
não se encontravam na chegada mais ou menos gloriosa da fada que, de um
momento para o outro, tudo muda, tudo resolve e a todos deixa “felizes para
sempre”, mas antes na sua capacidade de antever o potencial de coche que existe
em cada abóbora.
Assim, e num tempo em que o peso dos media é enorme; num tempo em que tanta
gente nova quer a fama pela fama e, por causa disso, é capaz de se expor para lá
dos limites da sua intimidade e integridade; num tempo em que a importância dos
países, das instituições e das pessoas e das coisas, se pauta pelo PIB, pelos
orçamentos, pelos sinais exteriores de riqueza, pelo seu valor de troca, julgo que é
tempo de trabalhar o escondido, o desconhecido, o esquecido, o que não tem preço.
É por tudo isto que hoje quero reflectir sobre a importância das coisas pequenas e
das coisas simples: são elas que mais vezes fazem parte da nossa vida; é delas que
mais precisamos cuidar; é nelas que mais precisamos encontrar sentido – para que
a vida se não torne, agora sim, demasiado pequena, demasiado simples, demasiado
banal.
Mas, muito embora as coisas pequeninas não me obriguem a olhar para cima, não
me abafem, não me façam sentir (ainda) mais pequena; muito embora eu seja capaz
de as olhar nos olhos (sem erros de paralaxe!) e, com elas, ser capaz de descobrir
potenciais e, aí sim, transformar, nem sempre é fácil. Diria mesmo, é para as coisas
pequeninas de que mais coragem se torna necessária – porque são as que mais se
124
escondem; porque são as que estão dentro de nós; porque exigem uma capacidade
de abertura ao desconhecido que, muitas vezes, nos é difícil e tememos encontrar.
Há duas expressões de Cristo que me atraem. Uma é “não temais”; a outra é “a paz
seja convosco”. E, curiosamente ou não, as duas são insistentemente repetidas
após a ressurreição. Isto é, após um tempo de vida que leva à morte, e após uma
morte que leva, de novo, à vida.
É nisto, então, que gosto de pensar. A vida é feita de ciclos e cada ciclo contém em
si mesmo a sua morte e a sua ressurreição. E, para que tal aconteça, é preciso não
temer e, com isso, ganhar a paz.
Já alguma vez viu uma criança a aprender a andar? Quando ela começa a ser capaz
de largar a mão da mãe, a ser capaz de deixar de se agarrar às coisas e, por isso,
conseguir dar alguns passos sozinha? É tão bonito e entusiasmante. A sua cara de
alegria e, ao mesmo tempo, de aflição; os seus passos que surgem como que
delicadamente arrancados; o seu andar simultaneamente audacioso e
“tremelicante”. Não deixa ninguém indiferente.
Mas também termina sempre da mesma maneira, não é? Por muito que consiga
avançar, há um momento em que encontra um obstáculo, uma cadeira por exemplo,
não consegue desviar-se e cai... e chora.
Já alguma vez reparou no que os adultos muitas vezes lhe dizem? “Bate na cadeira,
a cadeira é má!”. Como se a culpa fosse da cadeira. Como se a responsabilidade
não fosse sua. Tão só porque não se soube desviar. Como se houvesse
necessidade de alguma coisa ter culpa por a criança (ainda) não saber andar. É tão
mais fácil! O mal não está em não saber andar, em ainda se estar a aprender. O
problema é buscar culpados fora de nós mesmos, querer evitar reconhecer que a
única responsabilidade (que não é culpa!) está dentro de nós.
125
Também quem tem de se sujeitar a exames médicos melindrosos e com resultados
duvidosos sabe bem que, pior que uma má notícia, é o tempo de espera por essa
notícia. A expressão “pelo menos digam-me alguma coisa” já terá sido dita por
alguns de nós e, se assim foi, somos certamente ainda capazes de sentir no nosso
corpo a ansiedade e angústia então vividas. No entanto, e nas outras situações de
vida mais banais, muitas vezes optamos por atitudes bem diferentes. Procuramos
fugir e não ver aquilo que até está entrando pelos olhos dentro. Como se assim
pudéssemos escapar ao sofrimento.
É o fazer da nossa vida um estado de limbo – não é céu, não é inferno – é uma
espécie mista de quem está à porta, mas, por medo, não entra no paraíso, mas
também dele se não afasta.
Estou a falar do medo que está presente nas coisas banais. Estou a falar daquele
medo, bem mais escondido (ou inconfessável), e, por isso, também mais esquecido
e disfarçável – aquele que faz com que nos demos ao fracasso, aquele que nos
coloca barreiras, limites e impossíveis, aquele que nos faz optar pelo que, na
verdade, não queríamos. Aquele medo que existe em cada um de nós e que só é
perigoso quando, exactamente, escolhemos não o olhar nos olhos, não o enfrentar
disfarçando-o e, com isso, o deixamos comandar o nosso próprio destino.
O que terá acontecido? Mudei de opinião? Para melhor? Ou tive azar e “não me
deixaram”, “a vida não me deu oportunidade”?
126
Terá sido que alguém não me deixou, ou terei sido eu que não me permiti? Terá sido
azar, ou terei eu mesmo escolhido ser assim?
Não será que tantas vezes se tem medo daquilo que mais se quer? Não será que
tantas vezes se escolhe exactamente aquilo de que menos se gosta?
Já alguma vez viu um rato, daqueles que nos roem as roupas nas casas antigas?
Mas já pensou também na diferença que existe entre um rato “de verdade” e um rato
dos desenhos animados? Do primeiro, ninguém quer ouvir falar – a não ser para
cobaia de laboratório. Do segundo, não há quem diga que não é “bonitinho”,
“riquinho”, “engraçadinho” – tantas vezes o verdadeiro herói que nem pelo gato se
deixa enganar.
Acho que raras vezes na vida terei visto um rato (“de verdade”) passeando-se
calmamente no jardim ou na rua. Parece que anda sempre correndo afogueado.
Afinal, fugindo! De que maneira me sinto também rato?
Sempre que vivo sobrecarregada de coisas – às vezes parece que a vida nos engole
com trabalhos, projectos e responsabilidades... Outras vezes carrego literal e
fisicamente tudo nas costas – as nossas pastas e carteiras estão sempre demasiado
cheias. E tudo coisas imprescindíveis!
Sempre que vivo sobrecarregada com o peso do sentido do dever – a agenda cheia
de compromissos, as eternas e imensas listas de coisas para fazer, a caixa de
127
correio electrónico atafulhada de emails para responder... Tanta coisa que TENHO
que fazer! Tão poucas aquelas que QUERO fazer, que tenho PRAZER em fazer!
Sempre que só me permito viver quando tudo o resto termina, quando os outros e as
coisas me dão licença para viver. E depois queixo-me: “o barulho é tanto... não dá
para fazer!”, “estou tão cansada!”, “não me apetece!”...
Sempre que vivo demasiado presa aos dez mandamentos e desligada do sentido do
amor. Aquele que é, afinal, o grande mandamento do tempo novo. E amor, primeiro,
a mim própria.
Outras vezes até parece que a vida vai correndo de feição. Tudo tranquilo, o
sucesso está lá, nada parece perturbar demasiado a existência e fazer pensar muito
sobre o assunto. No entanto, um descontentamento contente (o oposto do amor de
Camões e do sentido da existência criativa) fala baixinho do mais profundo do Ser.
E a pergunta permanece: não será que, como professora, como educadora, estou a
ensinar aquilo que, afinal, preciso de aprender? Não será que sei todas as receitas,
que conheço todas as mezinhas mas, no fundo, não as sei usar ou, pelo menos, não
as consigo aplicar em mim? Onde fica a congruência de se ser professor quando, no
mais íntimo de nós mesmos, sabemos estar a ensinar, ou a exigir, o que nós não
fazemos ou não tentamos fazer?
Em suma, ser rato significa fugir ao esforço de mudança, evitar o confronto com o
passo doloroso de buscar novos caminhos; significa evitar o assunto procurando
desculpas.
É fácil. Primeiro faça um círculo de giz no chão. Depois pegue numa galinha,
coloque-a dentro do círculo de giz, agarre-a pelo pescoço e obrigue-a a olhar para o
128
círculo durante alguns minutos – não é preciso muito. Largue o pescoço da galinha.
Observe: ela não foge, permanece olhando o círculo de giz. Dê agora um safanão à
galinha – ela acorda e segue a sua vida.
Não sei se é muito adequado colocar aqui uma história de galinhas. Mas parece-me
que há nela algumas palavras e ideias sobre as quais vale a pena reflectir. E vou só
enunciar três:
Estar hipnotizado no círculo de giz é ter o medo espelhado no corpo, é ter um corpo
em permanente crispação: um corpo rígido de quem tem medo de se libertar; um
corpo fechado de quem tem medo de enfrentar o desconhecido e se agarra ao que
domina; um corpo que não pisa o chão com firmeza, que parece estar sempre uns
palmos acima da terra; um corpo encolhido, em permanente posição de defesa; um
corpo passivo, carente de energia e luz; um corpo duramente silencioso de quem
tem medo de verbalizar, medo da própria voz, medo, afinal, de existir.
Estar no círculo de giz é ser boneco abanado pelo vento de quem parece ter
controlo sobre tudo, excepto sobre a própria vida. É engolir a própria vida. É o
isolamento e a solidão de quem não se atreve a passar o risco, de quem não se
aproxima das coisas, das situações e da vida e fica, apenas, olhando. É a
afectividade escondida e esquecida, não comprometedora, não sofredora, mas
também não vivificadora.
129
Estar no círculo de giz é ser feito de celofane – transparente, invisível, não
reconhecido, não lembrado. É esquecer os sonhos perdidos, os sonhos que se
situam para lá do círculo. É ignorar que o risco de giz em que nos colocámos pode
ser um mundo, mas não é O mundo.
Tão tranquilo, tão deslizante, tão harmonioso. Parece ser todo ele a imagem e o
símbolo da paz.
Mas já pensou que o que permite esse movimento e essa tranquilidade não é mais
do que a permanente agitação das suas patas no interior das águas? Será que paz
e inquietude não são, cada uma delas, condição para a existência da outra?
Às vezes ser pato que nada revela-se no sentir da presença de uma bola dentro do
peito. Como se estivesse pronta a rebentar, mas que não rebenta... ainda. Regressa
para dentro do meu peito.
Outras vezes revela-se numa atracção, em dois sentidos, pela loucura. É o sentirmo-
nos atraídos pelas coisas ou pessoas com vidas diferentes, ou sentir que se atrai
tais coisas ou pessoas. Como se, no íntimo, se soubesse que é exactamente aí que
mais se é.
Outras vezes também é uma ânsia imensa de sair e viajar – de dar o salto para o
desconhecido, para aquilo que é inequivocamente diferente do que se é (ou do que
se vive); talvez porque se pressente ser exactamente aí que se é igual.
Outras vezes, ainda, é o sentido angustiante do tempo perdido. É o sentir que a vida
nos está dando presentes e que nos limitamos a tocá-los, talvez a abaná-los, mas
nunca a abri-los – por falta de coragem em tirar-lhes a fita, rasgar-lhes o papel e
enfrentá-los.
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Outras vezes, finalmente, e quando todos os outros falharam, é a vida que nos dá o
safanão – como à galinha – e nos obriga, contra tudo, contra todos, contra nós
mesmos, a mudar.
Mas é que às vezes desconhecemos tanto da nossa História que talvez valha a
pena lembrar que “Vasco da Gama” não é só nome de ponte, mas nome de quem
descobriu caminhos. Caminhos que levavam onde outros já tinham chegado;
caminhos que se julgava levarem a lugares sem retorno; caminhos que poucos
quereriam, ou sonhariam, sequer, ser possível descobrir.
Mas porque ele descobriu esse caminho, o seu caminho, Portugal ficou mais rico, a
Humanidade ficou mais rica, o mundo ganhou a capacidade de se sentir mais perto.
E, se não fosse por isso, pela descoberta do seu caminho (o nosso, Português),
talvez nunca ninguém tivesse algum dia ouvido falar dele.
Ser Vasco da Gama é o não se ficar pelo que já se sabe. Ser Vasco da Gama é
estar-se disponível para partir – ainda que não se saiba qual é o caminho; ainda que
seja o caminho que, exactamente, é preciso descobrir.
É, por isso, estar aberto e ter coragem de fazer um trabalho sobre mim mesma, um
trabalho de criação pessoal – com tudo o que isso implica de descoberta da luz e de
aceitação das sombras. É aceitar abrir espaços interiores de privacidade e
intimidade. É aceitação (com carinho) das debilidades pessoais. É a capacidade de
compreender que as fraquezas e as fragilidades se podem tornar forças se houver,
pelo menos, a disponibilidade e a coragem de enfrentar.
131
Ser Vasco da Gama é também ter a coragem e a ousadia de deitar fora – o que já
não presta, o que já serviu mas não serve mais: ideias, preconceitos, atitudes,
comportamentos. É estar preparado para mudar – deixar para trás, deixar ir, não
reter, avançar e ficar livre.
É o dar-se tempo para pousar e repousar, pois é o dar-se o tempo que permite
aceder ao espaço interior de riquezas por descobrir. Mas é também o saber que
nenhum tesouro pode ser descoberto sem que se suje as mãos para o desenterrar.
É perceber que o esconder faz gastar mais energia do que o deixar que as coisas
venham à luz.
É não ficar à espera; é aprender a dizer não. É ser pirata na própria vida, ganhar
coragem de ir contra convenções e contra leis, inclusive contra aquelas que mais
satisfazem o nosso ego.
É perceber que nem sempre tudo vai correr de feição. É saber que há que estar
preparado para todos os “Adamastores” – os que vivem dentro de nós, mas também
os que vivem fora. Mas é saber também que sempre haverá muitos “Velhos do
Restelo” – que vivem dentro, e também fora de nós.
Mas é também correr o risco de não se ser Vasco da Gama, mas Cristóvão
Colombo. Isto é, de percebermos que os nossos companheiros e a viagem não são
aqueles que pensámos que seriam, mas que, com eles, podemos acabar por
descobrir coisas diferentes do que procurávamos, podemos acabar por descobrir o
que (talvez) nem sonhássemos existir.
Mas também é a convicção, sempre presente, ainda que também escondida ou por
vezes esquecida, de que vale a pena e que nada nos pode impedir porque, muito
simplesmente, “eu sou capaz!”.
132
Resultado – ser David Copperfield
Então, ser David Copperfield é ser o actor principal do livro da nossa vida. Tão
simples como isso. Julgo que temos todos gasto demasiado tempo à procura e na
construção dos papéis sociais que nos dizem que temos de desempenhar. Raras
vezes temos a coragem de perceber que nada no meu exterior se altera se a
mudança não começa no meu interior.
Gandhi dizia que “cada um dos nossos actos é ditado por uma de duas coisas – ou
pelo Amor, ou pelo Medo”. Não é o ódio que é o oposto do amor, mas o medo. Ódio
não é mais que ausência de amor. O medo é o seu oposto.
“Não temais”; “A Paz seja convosco” – são, afinal, uma só e a mesma saudação. A
única forma de VIVER!
133
2. Eu Educadora: Memórias
Pois bem, ainda que pareça mentira, existiu, em tempos, um ser
humano que não tinha medo pela simples razão de nunca o ter
experimentado. O rapaz, chamado João, costumava perguntar ao pai:
- Diz-me lá, papá… que é que se sente quando se tem medo? Sente-
se um formigueiro…? É como quando se dorme e não se vê nada? E
que forma tem o medo? É volúvel, como o fumo? Ou é pesado, como
uma pedra?...
- Mais cedo ou mais tarde saberás como é – respondia-lhe o pai – e,
então, veremos se és tão valente como agora…
À medida que passavam os anos, a curiosidade de João foi crescendo
e, quando teve idade para viajar pelo mundo, não quis esperar mais.
Pôs uma trouxa às costas e abandonou a povoação, disposto a
conhecer o medo, onde quer que ele estivesse.
Da história do “João sem Medo”
“Querem ouvir uma história?” É assim que começam alguns dos momentos mais
mágicos que um educador vive com as crianças. E ouvimos as cores e vemos os
sons e tocamos nos cheiros...
Queria contar aqui algumas histórias. É assim que agora eu queria começar. Não
serão assim tão mágicas. Ou serão? Têm a magia da vida e das memórias do
vivido. São histórias de vida de que, de algum modo, também fui protagonista em
diferentes contextos e tempos da minha vida profissional. Nalgumas como
impulsionadora dos acontecimentos; noutras como mera observadora. Nalgumas em
que o tema do medo está bem explícito; noutras em que ele aparece um pouco mais
“disfarçado”. Mas em todas encontro os seus sinais. E é isso que me tem vindo a dar
a certeza de que, como educadores, precisamos encarar o medo como um
“companheiro de percurso” que precisa da nossa atenção.
134
A Paz
Há mais de vinte anos atrás, numa escola da cidade do Porto, foi proposto a um
grupo de crianças de 5 anos que fizessem desenhos sobre a Paz. Entre todos os
desenhos que a educadora desse grupo me mostrou na altura, lembro
especialmente três. As legendas ditadas pelas crianças eram estas:
A criança tinha oito anos. Era uma menina alta, esguia, uma cara “mistura de anjo e
de boneca sofisticada”, filha de médicos. Tudo contribuía para que fosse inteligente,
bem relacionada, com imenso poder de persuasão e de comando.
Muitas das outras meninas esvoaçavam constantemente à sua volta. Muitos dos
meninos se perdiam de amores e paixão. Todos eles capazes de “dar um braço”
para serem aceites, ou se manterem, no seu círculo privilegiado de amigos pois
poucos eram os que aí conseguiam ter “lugar cativo”. De acordo com a sua
capacidade de cumprirem as “tarefas” que lhes fossem designadas, tanto podiam
ser parte, como, no dia seguinte, excluídos e, com isso, desprezados e humilhados.
135
Poucos, muito poucos, escapavam à sua influência e viviam, sem sofrimento,
distantes do seu “território”.
Foram muitas as tentativas para mudar a situação. Primeiro, com as crianças – mas
não houve grandes resultados. Depois, com os pais da menina a quem, numa
conversa convocada pela professora, foi exposto, com a maior delicadeza de que se
foi capaz, tudo o que estava a acontecer.
Ida ao telhado
A aula decorria no primeiro e último piso de um edifício antigo. Fiz-lhes, por isso,
uma proposta: “se assim é, desafio uma das alunas desta turma a sair pela varanda
desta sala e ir ao telhado da escola”.
“Está a brincar”, disseram muitas. “Não, é uma proposta para levar a sério”,
respondi. “Desafio uma das alunas desta turma a sair por aquela varanda e ir ao
telhado da escola”.
136
Fui escrevendo no quadro estes comentários à medida que eles foram sendo feitos.
E, como eu continuava a insistir na proposta, uma das alunas disse: “Eu vou!”
Relemos as frases que tinham sido escritas antes no quadro e tivemos um bom
momento de reflexão. De facto, era fácil; de facto, qualquer um poderia ter feito; de
facto, ninguém tinha especificado de que telhado se estava a falar; de facto...
Mas a verdade é que, num grupo de 50 pessoas, só uma se atreveu a tentar. Mais
do que isso, num grupo de 50 pessoas, só uma saiu do seu lugar para ir ver como
se poderia ir ao telhado. Todas as outras se tinham posto a “conjugar os verbos no
imperfeito do conjuntivo”, sem se darem ao trabalho de verificar quão difícil,
impossível ou perigoso era o desafio que lhes tinha sido colocado.
Como tinham mudado! Se, no primeiro ano, era clara a sua imaturidade,
ingenuidade e indisciplina, também era bem patente a vontade de trabalhar para dar
vida aos seus sonhos. E muito embora fossem poucos, até então, os seus contactos
137
com as crianças, havia sempre um encantamento e uma capacidade crítica (às
vezes até demasiado apurada), frente a qualquer situação que considerassem
menos adequada – pelo menos relativamente aos seus próprios padrões de
exigência. Talvez por isso sempre me fascinou trabalhar com os alunos nesta fase
da sua formação – é um tempo de descoberta em que nada parece impedir que se
venha a acertar.
Confiança
Acontece tantas vezes! Demora muito tempo para que os alunos deixem a posição
de recostados nas cadeiras, pernas esticadas e braços cruzados sobre o peito
(ganhando distância e “defendendo-se” do professor) e sejam capazes de se inclinar
para a frente, com os olhos a brilhar, apaixonados por um projecto que, afinal, nos é
comum!
Especialmente se nos aproximamos deles com propostas que saem um pouco fora
dos padrões estabelecidos, a primeira reacção é desconfiar, criar muros, esperar
para ver. Mas o pior é que, às vezes, alguns demoram mesmo demasiado tempo. E,
por isso, quando, finalmente, “baixam a guarda”, quando se deixam entusiasmar e
se comprometem, já muito se perdeu num tempo que é irrecuperável e nunca pode
voltar para trás. Como se não entendessem(os) que entre a confiança cega (própria
dos néscios ou de relações muito fortes e antigas) e a desconfiança total (própria de
quem sempre suspeita e tem medo) há muitas outras matizes por que se poderia
optar na relação entre as pessoas.
138
Vista-se da pessoa que quer ser
Foi dos exercícios difíceis que propus a um grupo de alunos. Até porque, pouco
mais que adolescentes, a preocupação com a imagem era muito grande.
Na aula seguinte havia de tudo. Gente que tinha vindo vestida daquilo que queria
ser. Gente que tinha trazido objectos. Gente que, pura e simplesmente, tinha vindo
“assistir à aula”.
Começamos a aula a dançar, para nos sentirmos à vontade, para soltar, para que,
entre todos, nos pudéssemos ver bem, para ganharmos energia. Depois sugeri que
nos juntássemos em grupos de dois ou três e que cada um, num espaço de maior
privacidade, contasse as suas razões e os seus projectos. E depois juntámo-nos
todos e continuámos a conversar. E a conversa foi animada.
No fim fiz só uma pergunta: “se os nossos objectivos são assim tão claros (e isso já
é MUITO bom), o que nos impede, então, de alcançá-los?” E um aluno respondeu:
“o medo que tenho”. E perguntei: “É isso que nos impede de sermos quem somos?
Temos medo de quê?”
O que se seguiu foi de uma “tranquilidade electrizante” que qualquer professor sabe
que não acontece todos os dias. Num momento estávamos fazendo um
brainstorming espontâneo, em que se partilhava, já não o que eram os objectivos de
vida, mas aquilo que é bem mais difícil de partilhar: o que nos impede, ou nos limita,
no revelar da nossa inteira humanidade.
139
São estas algumas das minhas histórias de educadora. Serão, talvez, “histórias
tristes”, mas, porque são histórias de inquietação, não deixarão, talvez, de ser
mágicas. Não é daí que nasce a Paz?
E, para finalizar o infindável, talvez valha a pena uma reflexão muito breve, feita de
pensamentos dispersos, sobre outros efeitos do medo na educação (na transmissão
e na vivência de saberes), e que, por isso, corre o risco de se tornar uma caricatura
de si mesma:
- Não estaremos ainda demasiado próximos daquilo que Freinet, há já tantos anos,
assinalava como sendo uma escola preocupada em formar alunos, mas
esquecida de educar pessoas?
- Não será que muitas vezes estamos simplesmente substituindo a velha fotocópia
de estudo pelo novo “site” da disciplina, ou pela “banda larga” nas escolas, e,
com isso, a querer(em) convencer-nos de que nos modernizamos e
correspondemos ao apelo dos novos tempos?
- Quantas vezes não somos como os professores a que Churchill se referia, mais
interessados em encontrar o que ele não sabia do que aquilo que ele sabia?
140
Não será fácil ver, também aqui, os efeitos do medo? Do medo de errar, do medo de
ser chamado incompetente, do medo de experimentar, do medo de ser chamado
sonhador, utópico ou ultrapassado, do medo de fazer diferente, do medo de ir contra
a corrente, do medo de ir contra os poderes estabelecidos?
Não será que, enquanto docente, tenho medo de falar de mim mesmo, do que se
sinto, do que me emociona, do que vivo (não do que faço, do que li ou do que sei)
evitando a real comunicação interpessoal a que um novo paradigma (também)
docente inevitavelmente tem de conduzir?
E se assim é, talvez valha a pena que nos comecemos também a perguntar se não
estaremos a transformar o equilíbrio dinâmico dos pilares da educação, tal como em
1996 foram formulados pela Unesco (ser, saber, fazer, viver juntos), num
“desequilíbrio resistente” de certas políticas e práticas educativas que, à custa da
determinação em atingir, a qualquer preço, um também qualquer desenvolvimento
técnico e económico e um pseudo rigor científico, promovem sim o desalento, o
individualismo e a competição, destroem o ser humano e comprometem o nosso
destino planetário.
141
Capítulo 3
Descobrir caminhos de outros
I. PROCESSO DA PESQUISA
Introdução
Capítulo 1 – Roteiro
II. CENTRAR
Capítulo 2 – Descobrir os próprios caminhos
Capítulo 3 – Descobrir caminhos de outros
1. O Medo
1.1 Omnipresença do medo
1.2 Vivendo com medo
1.3 Síntese do medo
2. O Desenvolvimento Humano
2.1 A inquietação do Ser
2.2 Contornos do desenvolvimento humano
2.3 Síntese do desenvolvimento humano
3. Campo de Criação
3.1 Educação de Adultos
3.2 Criatividade
3.3 Motricidade Humana
3.4 Inter-relação de conceitos
4. Educação Criativo-Motrícia
3.1 Enfrentando o medo
3.2 ConVIVENDO com o medo
III. AGIR
Capítulo 4 – Criar o caminho
IV. CELEBRAR
O sentido do caminho
Para abrir um novo caminho
143
Quem se contenta com o que sabe, não sabe com o que se contenta – J. Gil da Costa
Depois de ter passado pelo processo de reflexão e escrita pessoal, que constituiu a
primeira etapa do trabalho de campo e deu origem ao Capítulo 2 que inclui o texto “Eu
pessoa: já alguma vez?”65, entrei numa fase de revisão da literatura que, não sendo
fechada em si mesma, acompanhou, cresceu e se diversificou ao longo de todo o
restante processo da investigação. Foi, por isso, uma fase de encontro com um grande
número de autores a quem, na minha qualidade de simples aprendiz, me atrevo a
chamar aliados, pois aclararam, fundamentaram e alargaram as minhas descobertas
pessoais e, por via da ligação assim criada, ajudaram a criar caminhos e a ler o que se
passou nas fases subsequentes da pesquisa (Patton, 2002, Bogdan & Biklen, 2006).
Por isso digo ter sido um trabalho feito em parceria: tendo sido gerado na comunicação
da imensidade de possibilidades que se abrem a partir das folhas dos livros, é fruto de
uma relação de transcendência que ultrapassa os limites estreitos das grelhas do
espaço e do tempo.
65
Tal como está referido no “Capítulo 1 Roteiro – 2.2 Descrição do cronograma”, este trabalho foi
realizado sem qualquer enquadramento teórico para não limitar a abertura ao que aí pudesse aí surgir
(Patton, 2002).
66
Tal como já tive oportunidade de colocar no “Capítulo 1 Roteiro – 2.2.2 Etapa 1”, Patton escreve o
seguinte sobre o processo de revisão da literatura:
“A revisão da literatura mais relevante pode ajudar a enfocar um estudo (...). Contudo, rever a
literatura pode criar dificuldades num estudo qualitativo porque, criando predisposições no
pensamento do investigador, pode reduzir a sua abertura para o que surja dentro do campo. É por
isso que, por vezes, a revisão da literatura pode não surgir senão depois da colecta de dados.
144
esse processo de interacção com a leitura-triangulação dos dados recolhidos na
segunda etapa do trabalho de campo.
1. O Medo
Omnipresença do Medo
Vivendo com Medo
2. O Desenvolvimento Humano
A Inquietação do Ser
3. Campo de Criação
Educação de Adultos
Criatividade
Motricidade Humana
4. Educação Criativo-Motrícia
Enfrentando o Medo
ConVIVENDO com o Medo.
Alternativamente, a revisão da literatura pode ser simultânea ao trabalho de campo, permitindo uma
interacção criativa entre o processo de colecta de dados, a revisão da literatura e a introspecção do
investigador” (Patton, 2002:226).
145
1. O Medo
“A maior falta do apóstolo é o medo. O que desencadeia o medo é a falta de confiança na força do Mestre; é esta que oprime o
coração e aperta a garganta. O apóstolo pára então de professar. Permanece apóstolo? Os discípulos que abandonaram o Mestre
aumentaram a coragem dos algozes. Quem se cala perante os inimigos de uma causa fortalece-os. O temor do apóstolo é o
primeiro aliado dos inimigos da causa. “Obrigar a calar através do medo” é o primeiro passo da estratégia dos ímpios. O terror que
se utiliza nas ditaduras é baseado no medo dos apóstolos. O silêncio possui a sua eloquência apostólica apenas quando não vira o
rosto a quem nele bate. Assim, calando, fez Cristo. Mas com aquele gesto demonstrou a própria fortaleza. Cristo não se deixou
atemorizar pelos homens. Saindo ao encontro da multidão disse com coragem: «Sou eu.»” - Cardeal Wyszyński.
Ilustração II.3 – Compilação de títulos de jornais que diariamente modelam o nosso pensar e o nosso sentir.
Quando todos os dias nos vemos imersos em notícias dos horrores que, pelo mundo, o
homem inflige ao homem; quando, todos os dias, nos confrontamos com situações de
violência, mesmo que simbólica, nas nossas relações de
homem↔mulher
adulto↔adolescente↔criança
chefe↔subordinado↔colegas
professores↔alunos↔colegas↔famílias
serviços↔utente-cliente-beneficiário-consumidor
Estado↔contribuinte-cidadãos...;
quando, todos os dias, nos vemos aflitos ao antever as consequências de notícias como
aquelas cujos títulos aqui reproduzi (ilustração II.3); quando, todos os dias, em tantas
áreas (na educação, inclusive), encontramos quem sempre esteja interessado ou seja
só capaz de, secamente, descortinar e revelar as nossas falhas, mais do que
146
interessado ou capaz de reconhecer, estimular e divulgar o nosso valor; quando, todos
os dias, vemos quem (qual vampiro de energia), julgue ser essa a única (e estranha)
forma de resolver problemas e de encontrar o alimento de que, em si mesmo, carece,
que herança nos está a ser transmitida e que herança estamos nós a transmitir? Somos
e criamos filhos de quem, ou do quê?
São muitos os autores que nos dizem que vivemos numa cultura baseada no medo
(Jeffers, 1991; Livsey & Palmer, 1999; Albisetti, 2003; Moffit, 2003a; Gil, 2005). E este
medo, não sendo mais visto como uma activação emocional (isto é, pontual), em função
de um sinal de perigo, mas sendo antes um PERMANENTE ESTADO DE ALERTA (Machado,
2004:77), permite, pela sua manipulação, a obtenção de vantagens aos mais diversos
níveis – desde o nível dos círculos restritos da vida privada, até ao nível da legitimação,
controlo e reprodução de uma qualquer estrutura social, política e económica por alguns
desejada (Machado, 2004:165).
“É melhor ser amado que temido ou o inverso? Respondo que seria preferível ser ambas
as coisas, mas, como é muito difícil conciliá-las, parece-me muito mais seguro ser
temido do que amado, se só se puder ser uma delas. (…) Os homens hesitam menos
em prejudicar um homem que se torna amado do que outro que se torna temido, pois o
amor mantém-se por um laço de obrigações que, em virtude de os homens serem maus,
se quebra quando surge ocasião de melhor proveito. Mas o medo mantém-se por um
temor do castigo que nunca nos abandona” (Maquiavel, 1976:89-90).
Sendo visto por muitos como o manual prático do déspota, mas sendo vivido, por
muitos outros, como uma difícil realidade com que é preciso gerir o quotidiano, “O
Príncipe”, de Maquiavel, apesar dos quase cinco séculos de distância com que foi
escrito, parece continuar a ser fonte de inspiração – tanto para detentores do poder
político, como para a manutenção do poder, e dos poderes, em torno das classes e
posições dominantes. Não foi, por isso, por acaso que escolhi aqui colocar este excerto.
De uma forma muito directa, Maquiavel explica por que é melhor ser temido do que
amado e como o medo de ser prejudicado pelos homens (que se considera serem
maus), se disfarça na autoridade de um castigo infligido, ou na possibilidade e ameaça
147
de o vir a infligir. Ou, dito de uma outra maneira, como Maquiavel explica como medo
gera medo.
Contudo, usá-lo aqui não significa que me pretenda circunscrever a uma reflexão de
cariz estritamente político e social, tal como não significa que o procure usar para
colocar só dentro da ordem das coisas públicas os eventuais beneficiários das
vantagens da manipulação do medo. Muito embora acredite que os poderes mundiais,
políticos e económicos (de muitos tipos e quadrantes), têm interesse em manter o ser
humano naquilo a que Boff (1998:118) chamou a “situação de galinha (…) e no apagar
da sua consciência a vocação sacrossanta de águia”66, entendo também que público e
privado se espelham mutuamente e que, em qualquer sistema de interacção humana e
social (por mais escondida que ocorra no espaço dos afazeres domésticos), não há
algozes e vítimas, nem ganhadores e perdedores – do ponto de vista ecológico da
dignificação e da construção do humano que aqui interessa considerar, quando alguém
perde, todos perdemos e, mesmo que isso só se revele a longo prazo, as maiores
vítimas dos algozes são os próprios algozes.
Prefiro, então, continuar a procurar referências que, do ponto de vista individual (e, por
isso, também social), possam ajudar a reflectir sobre a responsabilidade de cada um em
todo este processo; e se, ao longo deste texto, surgem conceitos como os de
“sociedade”, “fenómeno social”, “controlo social*”, “constrangimento social”, etc.,
compreender que tais conceitos não têm só implícita a imputação de responsabilidades
a um qualquer sistema ou grupo mais ou menos anónimos e indefinidos – como “a
instituição e a norma só existem na medida em que os actores as praticam e
reproduzem” (Ferreira de Almeida, 1994:218), como os sistemas e os grupos são
gerados (ou, pelo menos, alimentados) nos contextos sinérgicos do privado, também
implicam a responsabilidade e a capacidade do fazer diferente de “cada eu”.
Deste modo, e porque acredito que uma investigação aplicada (ainda para mais
desenvolvida na área da Educação de Adultos) precisa criar espaços de reflexão sobre
a responsabilidade, decisão, e mudança individuais, procuro reforçar e manter presente
66
Para Boff (1998:113), a “galinha” expressa a situação humana no seu quotidiano, na dimensão de
limitações e sombras que marcam a vida, enquanto que a águia representa a mesma vida humana na sua
criatividade, na sua capacidade de romper barreiras, nos seus sonhos, na sua luz.
148
uma das maiores lições que as Ciências Sociais me têm dado: o entendimento de que
sou e como sou simultaneamente livre e condicionada, mas também o entendimento de
que, quanto maior for a consciência do meu condicionamento, mais livre me posso
tornar e, por isso, mais capaz de ser co-criadora da própria existência.
Assim, e apesar de, pela multiplicidade das interferências, não ser possível apresentar
um quadro que cubra todas as situações, definições e relações do fenómeno do medo e
do desenvolvimento humano, passo à apresentação das contribuições de alguns dos
autores que mais me ajudaram a construir e situar esta questão nessa oscilação entre
mentalidades individuais e imprinting cultural* – mesmo que, às vezes, esta distinção
não queira significar mais do que o espírito com que, no momento, foi estabelecida.
Relembrando, como já tive oportunidade de dizer na introdução desta tese, que estou a
deixar de lado as situações patológicas de medo – tanto as que dão origem ao pânico e
às fobias, como aquelas que, sob qualquer forma ou dimensão, movem quem exerce
violência com o firme propósito de fazer mal (agressores, torturadores, violadores,
assassinos…); relembrando também que só pretendo estudar aquilo a que chamei
“medo da vida”, isto é, “medos muito correntes mas que dificultam a vida de quem os
sofre” (Marina, 2006:111), começo pelo princípio, isto é, começo pela consulta dos
sentidos lexical e analógico da palavra medo.
Medo – PERTURBAÇÃO ANGUSTIOSA DO ÂNIMO por um risco ou mal que ameaça ou que se
imagina; temor; susto violento. Receio ou apreensão de que aconteça algo contrário ao que
se deseja (1992: 751).
149
3. Nova Enciclopédia Larousse
150
Acaipirar-se, acanhar, acobardar, apoltronar-se, arrecear-se, assolhar, assombrar-se,
assovacar-se, atemorizar-se, bisonhar, debilitar, entoar, esperdigotar, estarrecer,
estremecer, palpitar, pejar, poltronear, recear, respeitar, respeitar, saltear, tataranhar,
tremelicar, tremer, amedrontado, acaipirado, acanhado, acobardado, alarmado,
apreensivo, arisco, arrolhado, arrolhador, assomado, assombradiço, assovacado,
assustadiço, assustado, atadinho, aterrado, borrado, cagão, canhenho, coado, curto,
débil, desanimado, desconfiado, duvidoso, efeminado, empachoso, encolhido,
enconchado, entanguido, envergonhado, espantadiço, espantado, esperdigotado,
formidoloso, fraco, imbecil, imbele, mafião, manco, matuto, medroso, meticuloso,
partista, pávido, pejado, peludo, pusilâmine, receável, receoso, semetidinho, temeroso,
temido, tímido, timorato, torpe, trémulo, trepidante, vergonhoso, zopeiro, cagarola,
acanhadão, bandarrinha, bandurrinha, bicidódio, bisonharia, bisonhice, cagão, cagarrão,
caguinça, caguinchas, cismador, cobarde, cobardia, cobardice, curteza, ecmofobia,
ecmófobo, envergonhação, envergonhaço, estátua, fracalhão, fujão, galucho, manicaca,
mãos-atadas, medrica, mijota, mirocha, molúria, ningresmingeres, panhão, peança,
poltranaz, poltrão, poltronice, tabaréu, tabarca, tararaca, tataranha, tímido, tremelicação,
tremelica, trengo, xoninhas (Bivar, 1948:1481-1483).
151
acaipirado; cagão; acanhado… perturbação, angústia…
Sentidos relacionados com a perda de identidade ou Sentidos relacionados com as vísceras e fluidos
de estatura: corporais:
Encolhimento; pequeninez; curtamente; encolha; Cagaço; cagueira; cólicas; cagaçar; mijar; borrado;
estreiteza; encolher; retrair; curto; encolhido; cagão; cagarrão; caguinça; mijota; purgativa;
enconchado; semetidinho; curteza; vício de vontade… assovacado, cafunfa...
Sentidos relacionados com a perda de segurança: Sentidos relacionados com a fuga da realidade:
Estremecer; tremer; varar; palpitar; apreensivo; trémulo; Enleio; floreio; cismador; fujão; arisco…
trepidante; estremecer; tremelicação; tremelica…
Sentidos relacionados com o impacto interpessoal e Sentidos relacionados com a perda de energia vital:
formas de lidar com as situações:
Meticuloso; respeitar; timidez; vergonha; bisonhice, Enregelar; debilitar; débil; desanimado; estátua; afogar;
atamento… fraco…
Correndo o risco de ter feito uma análise demasiado simples (talvez mesmo simplória e
de senso comum), mas também aqui sem outra pretensão que não seja a de revelar o
impacto e as interrogações que as palavras (me) provocam, não posso deixar de
comentar o quanto me parece que, por si só, estes quadros ajudam a construir uma
imagem bastante completa do conceito de medo. Mais do que isso, e atrevo-me a dizer,
parece-me que estas categorias são, em si mesmas (e tal como noutros pontos deste
capítulo terei oportunidade de referir67), uma certa forma de “validação” dos resultados
da própria investigação científica. É como se a sabedoria popular, que é experiência de
vida, se tivesse adiantado (inclusive ou, sobretudo (?), na sua versão mais “vernácula”),
na compreensão daquilo que a pesquisa precisou de muitos anos para demonstrar. É
como se, e mais uma vez, a relação entre a ciência e o saber popular não fosse
67
Ver ponto 1.3 deste capítulo (síntese do medo).
152
mutuamente exclusiva, mas, sim, mutuamente inclusiva e, por isso, complementar
(Sousa Santos, 1998, 2002).
Mas, porque não quero deter-me, pelo menos por agora, numa reflexão demorada
sobre esta minha “análise”, passo à apresentação dos resultados obtidos no estudo de
outros enfoques sobre a relação do ser humano com o medo (bem diferentes destes e
também entre si distintos), para que, no final, e pela identificação das ideias
153
consideradas mais pertinentes, possa fazer uma reflexão global, síntese integradora de
todas as abordagens apresentadas.
Damásio (1995), considerando que os sentimentos são o que revela quem somos e o
que constrói a nossa humanidade, explica que a nossa mente está alicerçada nos
sentimentos de DOR e de PRAZER como genealogias da regulação vital e que somos
impelidos para dois tipos de movimentos – o movimento de procura e o movimento de
recuo.
154
1. Mecanismos automáticos de sobrevivência
Emoções universais
= medo, zanga/cólera, nojo/aversão, felicidade/alegria, surpresa, tristeza =
155
As EMOÇÕES, que se situam nos ramos próximos do cume, significam, literalmente,
movimento para fora (Damásio, 1995:144ss; 2000:72ss; 2004,75ss):
Sentimentos universais
= de medo, de cólera, de nojo, de felicidade, de tristeza =
156
a) A percepção do objecto – a sensação da emoção em relação ao objecto que a
desencadeou.
b) A percepção do estado corporal – a relação objecto/estado emocional do corpo.
c) A percepção das modificações de estilo e eficiência do pensamento – a criação,
para lá da resposta automática, de uma estratégia de protecção alargada.
2. Educação e Aculturação
157
1. Avaliação cognitiva do acontecimento – considerações deliberadas e
conscientes em relação a uma determinada pessoa ou situação.
2. A um nível não consciente – reacção automática e involuntária das redes do
córtex pré-frontal aos sinais resultantes do processamento de imagens mentais,
tem subjacente o conhecimento de como, na experiência individual, certo tipo de
situações tem dado origem a certo tipo de respostas emocionais.
3. De uma forma não consciente, automática e involuntária – sinalização à
amígdala da resposta destas disposições pré-frontais. Afectam o organismo de
duas maneiras:
a. Causando um estado emocional do corpo – as vísceras ficam
colocadas no estado associado ao tipo de estímulo e provocam
mudanças nos estados do corpo e do cérebro; a musculatura
esquelética (expressões faciais e posturas corporais) completa o
quadro externo da emoção.
b. Causando um impacto importante no estilo e eficiência dos processos
cognitivos.
Emoções de fundo
= bem-estar/mal-estar; calma/tensão; irritação/relaxamento;
letargia/entusiasmo; desânimo/esperança; bom-humor/mau-humor;
fadiga/energia; dor/prazer, esperança/desencorajamento;
estabilidade/instabilidade; equilíbrio/desequilíbrio; harmonia/discórdia… =
158
As EMOÇÕES DE FUNDO estão mais próximas do núcleo interior da vida e têm um alvo
mais interno do que externo. São causadas por um ou mais dos seguintes elementos:
processos de regulação da vida; certas condições de natureza interna; processos de
conflito mental manifesto ou escondido; processos fisiológicos; interacções do
organismo com o meio ambiente.
Emoções de Fundo
Dor/prazer, bem-estar/mal-estar; calma/tensão; irritação/relaxamento;
letargia/entusiasmo; desânimo/esperança; bom-humor/mau-humor; fadiga/energia;
esperança/desencorajamento; estabilidade/instabilidade; equilíbrio/desequilíbrio;
harmonia/discórdia…
- Correspondem ao estado do corpo que ocorre entre emoções.
- Apresentam manifestações subtis do corpo, linguagem e expressões faciais.
Quadro II.4 – Conceito de emoções de fundo. Destaques a partir de Damásio (1995, 2003).
Sentimentos de fundo
= sentimento de dor / prazer; bem-estar / mal-estar;
calma / tensão; irritação / entusiasmo… =
68
“A consciência consiste na construção do conhecimento sobre dois factores: que o organismos está
envolvido numa relação com um objecto e que o objecto presente nessa relação provoca uma modificação
no organismo” (Damásio, 2003:40).
159
c) Ajudam-nos a definir o nosso estado mental.
d) São o sentimento da própria vida, a sensação de existir.
Sentimentos de Fundo
Sentimento de dor / prazer; bem-estar / mal-estar; calma / tensão; irritação / entusiasmo …
- Têm origem em estados corporais de “fundo” e não em estados emocionais.
- Não são nem demasiado positivos, nem demasiado negativos.
- Não se encontram no primeiro plano da nossa mente.
- Permitem apreciar o tom físico geral do nosso ser.
Quadro II.5 – Conceito de sentimentos de fundo. Destaques a partir de Damásio (1995, 2003).
Humores
Os HUMORES (mood)69, ainda que quase só tratado em nota de rodapé, são um outro
tipo de estados emocionais referenciado por Damásio (2004) que me parece também
ser relevante colocar.
69
Em Daniel Goleman (2005:180-181) também encontramos algumas considerações sobre o conceito de
humor:
1. O humor está relacionado com as emoções, mas é diferente delas, especialmente na duração – as
emoções podem aparecer e desaparecer numa questão de segundos ou de minutos, mas um humor
pode durar todo o dia.
2. Quando temos uma emoção, conseguimos identificar o que a produziu, especificar o evento que a
desencadeou e aquilo que a fez emergir. Mas não conseguimos fazer o mesmo com um humor.
3. Um humor pode ser provocado por três tipos de situações:
- alterações internas não relacionadas com o que está a acontecer no exterior;
- uma experiência emocional muito densa;
- pensamentos subtis que decorrem em segundo plano na mente e de cujo controlo não nos
conseguimos libertar só pela consciência da sua existência.
4. O humor intensifica as emoções e influencia e restringe a forma como pensamos.
160
elevado na vida do indivíduo afectado, pode, inclusive, tornar-se patológico*70. Os
humores ocorrem nas seguintes situações:
Neurobiologia – síntese:
1. O medo está associado ao sentimento de dor e pode desencadear movimentos de
recuo, imobilização, fechamento, retracção e levar ao distanciamento do meio
ambiente.
2. O medo pode apresentar-se sob diferentes configurações e expressões: emoção e
70
A depressão é um dos exemplos típicos de humores – a emoção-tristeza que se prolonga durante dias e
meses: o choro, a perda de apetite, os pensamentos melancólicos “tornam-se um permanente modo de ser,
físico e mental” (Damásio, 2003:388).
161
sentimento primários (medo); sentimento de emoções universais subtis (pânico,
timidez); emoção e sentimento secundários (embaraço, vergonha, culpa); emoção
e sentimento de fundo (dor, mal-estar...); humor.
3. Enquanto emoção, o medo é uma resposta reflexa. Enquanto sentimento, o medo
permite a criação de uma estratégia de protecção alargada – desempenha, por
isso, um papel regulador que conduz à criação de circunstâncias vantajosas para
o organismo.
4. O medo é responsável por modificações na paisagem corporal (sistema visceral,
vestibular e músculo-esquelético) e na paisagem cerebral (circuitos cerebrais).
Pode ser detectado através de manifestações (mesmo que subtis) na (1) postura
corporal (perfil dos movimentos, precisão, frequência e amplitude dos membros ou
do corpo inteiro); nas (2) expressões faciais (quantidade e velocidade dos
movimentos oculares e grau de contracção dos músculos faciais); e na (3)
linguagem (música da voz, prosódia e cadência do discurso).
5. Por força da aprendizagem e da cultura, o medo pode sofrer alterações nas suas
formas de expressão e no seu significado – pode ser accionado pela exposição a
um estímulo específico ou por razões e situações dependentes da experiência
individual e cultural. Constitui, por isso, uma representação única, individual e
personalizada.
6. Se o medo se desenvolver de forma persistente e não adequada durante um longo
período de tempo, para além de ter um custo elevado na vida do indivíduo, pode,
inclusive, tornar-se patológico*.
7. Ser humano é emocionar-se.
1. Da psicologia
Por considerar que, no léxico do medo, existe um conjunto de expressões que não
estão bem definidas, José António Marina (2006:30-36) apresenta uma cartografia
elementar para precisar os diversos sentidos dessas expressões (quadro 2.6). Assim, e
162
a partir dos termos “inquietação” e “intranquilidade” (ou agitação, desassossego,
nervosismo, etc.), que considera serem características afectivas partilhadas por
diversas emoções, o autor define:
Agradável:
EXCITAÇÃO
INQUIETAÇÃO
OU
INTRANQUILIDADE Sem causa conhecida:
ANGÚSTIA
Desagradável:
ANSIEDADE
Com causa conhecida:
MEDO
71
Estratégias de enfrentamento – “os procedimentos com que enfrentamos as situações de stress,
ansiedade, angústia ou medo” (Marina, 2006:39).
Stress – “um sujeito experimenta stress quando a presença de acontecimentos, que exigem dele um esforço
que ultrapassa os seus recursos mentais ou físicos, lhe provoca um sentimento desagradável,
inquieto, debilitador, com sinais de activação fisiológica e incapacidade de controlar a situação”
(Morin, 2006:38).
Coping – “modo e maneiras de lutar contra os conflitos, problemas, angústias. Richard S. Lazarus (...)
define-o como ‘os esforços cognitivos e comportamentais que se desenvolvem para lidar com
exigências externas ou internas que o sujeito avalia como superiores aos seus próprios recursos”
(Marina, 2006:40).
163
Com esta distinção base, e considerando que os SENTIMENTOS (enquanto balanço
consciente da situação vivida) indicam o modo como os nossos desejos ou expectativas
se comportam perante a realidade, Marina faz uma ampla caracterização e reflexão
sobre o medo. Porque vou voltar mais vezes a este autor, limito-me, para já, a destacar
alguns desses atributos:
72
Este conceito é apresentado no livro “Emoções destrutivas e como dominá-las” que, com narração de
Daniel Goleman (2005), junta nomes como o de Francisco Varela, Richard Davidson, Paul Ekman, Alan
Wallace e do Dalai Lama. É um diálogo entre o conhecimento ocidental e a sabedoria oriental para,
compreendendo o papel das emoções destrutivas no sofrimento humano, se encontrem caminhos de
construção da paz.
164
1. Porque não pode ser categoricamente classificado como construtivo ou
destrutivo, o medo tem instâncias negativas e instâncias positivas – o medo de
ficar preso de angústias negativas pode, por exemplo, desenvolver a aspiração
de libertação e dar azo a um estado espiritual de aspiração.
2. Uma pessoa não altera os seus sentimentos, mas pode alterar a sua acção –
embora continuem a ter o mesmo impulso emocional, as pessoas são capazes
de alterar a maneira como reagem a esse impulso.
2. Da bioenergia*
Mas, além disso, também existem emoções que se constituem em PARES ANTAGÓNICOS.
São pares de emoções em que existe uma correspondência tão grande que facilmente
uma das emoções se transforma na outra. É o caso, por exemplo, do par RAIVA-MEDO73
(Lowen, 1984:163SS):
73
Lowen (1984:163SS) descreve outros dois pares antagónicos (pânico-furor e terror-fúria) que completam
a compreensão do medo.
Pânico-furor: Sem o controlo do ego, o medo pode degenerar em pânico pois precisa que aquele
acrescente um elemento racional e limite o comportamento dentro de determinados padrões. A
raiva pode transformar-se em furor quando a identificação do ego com o corpo diminui e o seu
controlo é enfraquecido. Pânico e furor baseiam-se na sensação de estar numa armadilha.
Manifestações físicas do pânico – corpo tenso, como em posição de fuga; peito inchado; garganta
fechada, dificuldade de respiração, com sobrecarga na inspiração e incapacidade de expelir
completamente o ar. O grito reprimido está subjacente à dificuldade de respirar.
Manifestações física do furor: excitação muscular excessiva; perda de controlo das acções. O furor
é normalmente destrutivo para a pessoa e para o seu ambiente.
Terror-Fúria: O terror é uma forma de choque. Desenvolve-se em situações onde qualquer esforço para
resistir ou escapar surge sem esperança. Manifestações físicas do terror: redução da sensibilidade
do organismo; incapacidade de inspirar; sistema muscular paralisado com impossibilidade de fuga
ou de luta. O terror representa a fuga para dentro. O terror é o efeito do furor dos pais sobre a
165
a) O medo e a raiva activam o sistema simpático-supra-renal para que forneça
energia para a luta ou para a fuga. O sistema muscular encontra-se carregado e
mobilizado para agir.
- Manifestações físicas do medo: mobiliza o movimento de fuga –
movimento descendente ao longo das costas (ex: encolhimento da cauda
do cão); carregamento para fugir. Se a fuga for impossível, a excitação
fica presa no pescoço e nas costas, os ombros ficam levantados, os
olhos arregalados, a cabeça para trás, a parte traseira recolhida, numa
atitude que mostra que a pessoa se encontra num constante estado de
medo, quer disso tenha, ou não, consciência.
- Manifestações físicas da raiva: mobiliza o movimento de ataque –
movimento ascendente ao longo das costas (levanta, por exemplo, os
pêlos do cão), movimento da cabeça para a frente, ombros para baixo74.
c) Tal como chorar alivia a tristeza, também expressar a raiva alivia o medo. Não
expressar a raiva não é uma escolha, mas sinal de medo.
- A pessoa a quem não é permitido expressar a raiva fica fechada,
submissa, imobilizada numa posição de medo e de impotência. Pode
tentar superar essa situação através da manipulação do seu ambiente.
166
Psicologia e bioenergia – síntese:
1. Palavras da bíblia
Livro do Génesis:
“Mas o Senhor Deus chamou o homem e disse-lhe: “Onde estás?” Ele respondeu: “Ouvi
a tua voz no jardim e, cheio de medo, escondi-me porque estou nu”. O Senhor Deus
perguntou: “Quem te disse que estás nu? Comeste, porventura, da árvore da qual te
167
proibi comer?” O homem respondeu: “Foi a mulher que trouxeste para junto de mim que
me ofereceu da árvore e eu comi.” O Senhor Deus perguntou à mulher: “Por que fizeste
isso?” A mulher respondeu: “A serpente enganou-me e eu comi” (Génesis 3, 9-13).
Palavras/Ideias-chave: o medo impedindo o desvelar da verdade de si mesmo; o medo
não deixando assumir as responsabilidades pelos próprios actos.
Evangelho de S. Mateus:
“Veio, finalmente, o que tinha recebido um só talento: «Senhor, disse ele, sempre te
conheci como homem duro, que ceifas onde não semeaste e recolhes onde não
espalhaste. Por isso, com medo, fui esconder o teu talento na terra. Aqui está o que te
pertence». O Senhor respondeu-lhe: «Servo mau e preguiçoso! Sabias que eu ceifo
onde não semeei e recolho onde não espalhei. Pois bem, devias ter levado o meu
dinheiro aos banqueiros e, no meu regresso, terias levantado o meu dinheiro com juros.
Tirai-lhe, pois, o talento e dai-o a quem tem dez talentos. Porque ao que tem será dado e
terá abundância; mas, ao que não tem, até o que tem lhe será tirado. A esse servo inútil,
lançai-o nas trevas exteriores; ali haverá choro e ranger de dentes” (Mt. 25, 24-30).
Palavras/Ideias-chave: o medo impedindo o desenvolvimento de capacidades pessoais;
o medo impedindo a capacidade de serviço.
75
www.loreto.org.br/mai2004_jovem.asp
168
modo, é o facto de se acreditar na percepção e na interpretação das suas implicações
76
no bem-estar que controla o nível de medo sentido” (Moffit, 2003b:2) .
Palavras/Ideias-chave: resposta emocional; percepção ajustada, percepção distorcida;
acreditar na interpretação.
4. Palavras do esoterismo
“Medo – provém da influência de forças dos subníveis mais densos do nível astral
terrestre. Enquanto a pessoa se mantém polarizada nos planos materiais,
permanece susceptível a estes sentimentos. Os medos subconscientes são mais
numerosos que os conscientes e estão directa ou indirectamente vinculados ao
medo da morte, aos apegos e à incompreensão da verdadeira natureza do ser, que
é imortal. Nos animais o medo apresenta características diferentes das que se
notam no homem pois neste aumenta devido a elementos psicológicos e
imaginativos. Como o medo deriva do envolvimento com as forças da matéria e as
suas ilusões, o indivíduo unido à sua própria essência nada teme” (Trigueirinho,
1999:373).
Palavras/Ideias-chave: influência de forças; pessoa polarizada; medos subconscientes
mais numerosos que os medos conscientes; elementos imaginativos; o indivíduo unido
à sua própria essência nada teme.
76
“Fear is usually described as an emotional response to a perception of danger, which elicits certain
neuromuscular and chemical reactions in the body. You feel it arise in response to something that you see
and that you hear, to sensations in your body, or to thoughts and emotions that appear in the mind. The
presence of fear may result of an accurate perception as well as a completely distorted one. Regardless, it
is your belief in the perception and your interpretation of its implications for your well-being that control
the level of fear you experience” (Moffit, 2003b:2).
169
O medo é a consequência imediata do Pecado Original: “a separação da consciência do
homem do seu fundamento sobrenatural”. O risco que (…) subjaz a todos os temores é o
da perda da individualidade” (Peña y Lillo, 1991:61).
Palavras/Ideias-chave – do Éden ao apocalipse; separação da consciência do homem
do seu fundamento sobrenatural; perda da individualidade.
Siddhartha:
“Seguindo vagarosamente o seu caminho, o pensador estacou, de súbito, dominado por
esse pensamento, do qual outro emergiu imediatamente: “A razão por que não sei nada
a respeito de mim próprio, a razão por que Siddhartha me permaneceu estranho e
desconhecido, deve-se a uma coisa, a uma única coisa: tinha medo de mim próprio,
fugia de mim próprio. Procurava Brame, procurava Atman, desejava destruir-me de mim,
a fim de encontrar no âmago desconhecido de mim mesmo o núcleo de todas as coisas
– Atman, Vida, Divindade, Absoluto. Mas, ao proceder assim, perdi-me no caminho”
(Hesse, 1982:46).
Palavras/Ideias-chave: o medo como fonte de auto-desconhecimento; o medo como
causa de auto-destruição e perda do sentido da vida.
O Feiticeiro de Oz:
“No momento em que ele falava, saiu da floresta um rugido terrível e, logo de seguida,
um grande Leão saltou para a estrada. Com uma patada atirou o Espantalho pelo ar até
à berma da estrada e depois atirou-se ao Lenhador de Lata com as garras afiadas. (…)
O pequeno Totó, agora que tinha um inimigo pela frente, correu a ladrar para o Leão,
que abriu a boca para lhe morder. Dorothy, temendo que ele matasse Totó, sem mesmo
pensar no perigo, correu para diante e deu a palmada mais forte que conseguiu no
focinho do Leão, gritando-lhe:
170
“Não te atrevas a morder o Totó! Devias ter vergonha, grande como és, de querer
morder a um cãozinho pequenino!”
“Eu não lhe mordi”, respondeu o Leão, esfregando o docinho no sítio onde Dorothy lhe
dera a palmada.
“Não, mas tentaste”, retorquiu ela. “Não passas de um cobarde.”
“Bem sei”, disse o Leão, baixando a cabeça envergonhado. “Sempre soube isso. Mas
como hei-de evitar?” (Baum & Zwerger, 2002:27)
Palavras/Ideias-chave: o medo sob a forma de agressão e violência; o medo
impulsionador da acção de defesa de quem se ama; o medo evitando assumir a
responsabilidade das acções.
A cigarra e a formiga:
“Tendo cantado a cigarra durante o Verão,
Apavorou-se com o frio da estação.
Sem mosca ou verme para se alimentar,
Com fome, foi ter com a formiga, sua vizinha,
Pediu-lhe alguns grãos para se saciar,
Até vir a época mais quentinha!
“Eu pagarei”, disse ela,
“Antes do Verão, palavra de animal,
Com juros e o capital.”
A formiga não gosta de emprestar,
É um dos seus defeitos.
“O que fazia amiga cigarra no calor de outrora?”
Perguntou-lhe com alguma esperteza.
“Noite e dia, eu cantava,
Sem querer dar-lhe desgosto.”
“Cantava? Que beleza!
Pois, então, agora dance!” (La Fontaine, 2006)
Palavras/Ideias-chave: o medo, a focalização da vida exclusivamente no agir, o impedir
da compaixão.
E porque foi um cenário feito de muitas cores e tons, opto por uma imagem para fazer a
sua síntese:
171
O medo impedindo:
• a verdade de si mesmo
• a compaixão
• a capacidade de serviço
• assumir a responsabilidade
O medo criando:
• respeito e reverência
• a defesa de quem se ama
• Tentativa de enquadramento
Para terminar de forma integrada este ponto do capítulo a que chamei “omnipresença
do medo”, mas sem nenhuma pretensão de esgotar as possibilidades de análise, vou
BRINCAR COM AS PALAVRAS e numa tabela (tabela II.2):
a) apresentar algumas das relações que vejo existirem entre (1) as categorias
anteriormente construídas com as palavras e expressões dos dicionários lexical
e analógico e (2) as definições e atributos do medo expressos pelos diversos
autores referenciados;
172
Capacidades
Categorias de sentido
Definição e atributos do medo humanas
lexical e analógico
abrangidas
Relacionado com agitação / - Desagradável, inquietação (Marina) Emocionais
ausência de paz - Ressentimento, dor, raiva (Lowen)
- Ex: sobressalto; ódio; - Garras afiadas (Feiticeiro de Oz)
inquietação; angústia
Relacionado com vísceras e fluidos - Impacto fisiológico (Damásio, Lowen, Marina…) Energéticas do Corpo
corporais Físico
Ex: cagaço; assovacado; mijar
Relacionado com fuga à realidade - Fechamento, distanciamento do meio ambiente Étnico-Globais
Ex: enleio; fujão (Damásio) Do Pensamento
- Fechado, submisso (Lowen) Emocionais
- Percepção distorcida (Moffit)
- Foi a mulher; a serpente enganou-me (Génesis)
- Eu sei, mas que hei-de fazer (Feiticeiro de Oz)
Relacionado com perda de energia - Custo elevado na vida (Damásio) Projectivas Perceptivas
vital - Resposta reflexa (Damásio) Introspectivas
Ex: descriminado; estátua; - Impotente (Lowen) Emocionais
desalentado - Perda de talentos (S. Mateus) Do Pensamento
- Dissipação de energia (Weiss)
- Pessoa polarizada (Trigueirinho)
- Doença da liberdade (Olba)
- Auto-desconhecimento (Siddartha)
- Perda de individualidade (Peña y Lilli)
- Cantava? Que beleza, agora dance (La Fontaine)
Relacionado com o repor vida - Papel regulador (Damásio) Do Pensamento
Ex: Animar, refrescar, - Balanço consciente da situação (Marina) Projectivas
realentar - Libertação (Goleman) Emocionais
- Reverência (Livro Provérbios)
Tabela II.2 – Paralelos entre expressões e atributos do conceito de medo.
Em resumo, e porque:
a) autores de distintas disciplinas e distintas abordagens englobam muitas vezes
num único conceito de medo o que a neurociência e a psicologia diferenciam de
uma forma mais precisa;
b) parece não fazer sentido entrar numa reflexão-delimitação-eliminação
interminável sobre as variantes e sucedâneos possíveis do medo;
c) o que aqui se procura compreender são, com excepção das situações
patológicas, as várias ocorrências do(s) fenómeno(s) o mais próximo possível da
realidade vivida e falada pelos sujeitos que a enformam;
passo a colocar o que agora, e na sua complexidade, fica subjacente sempre que falar
do medo:
1. Na natureza, o medo é uma resposta a situações de perigo que tem como fim
173
criar um estado mais benéfico à auto-preservação dos organismos – está
associado ao princípio da dor (ao movimento de recuo, imobilização e
distanciamento do meio ambiente)
2. O medo serve aos propósitos de conservação da espécie, mas pode converter-
se numa emoção destrutiva – isto é, prejudicial para o próprio e para os outros.
3. O medo, com as suas correspondentes relações-variantes (ansiedade, angústia,
receio, inquietação, apreensão…), pode apresentar-se sob a forma genérica de
emoção, sentimento ou humor.
4. O medo é natural e, enquanto impulso emocional, mantém-se. O que se pode
alterar, de acordo com o significado da experiência, é a nossa maneira de agir.
5. O medo, enquanto produto do sistema homeostático, inscrito no âmago do
nosso organismo, afecta a pessoa em todas as suas dimensões.
6. O medo é um fenómeno transaccional (de influências recíprocas e causalidade
circular), é uma emoção individual mas contagiosa – por isso, social.
7. O medo, enquanto percepção (ajustada ou distorcida) do que atemoriza,
constrói-se na experiência e está directamente relacionado com a acção. Como
é uma representação única, individual e personalizada, pode ajudar ou
prejudicar o processo de construirmos o humano.
Em 1980, numa análise crítica muito dura sobre tipo-ideais de educação familiar da
sociedade portuguesa, Moisés Espírito Santo faz uma comparação (talvez perturbadora
mas, por isso mesmo, também estimulante), entre o que chama modelo tradicional,
próprio de um tipo de sociedade em que predomina a empresa familiar e o
campesinato, e o modelo moderno, próprio de uma sociedade em que predomina o
174
assalariato. Com uma caracterização da personalidade de base da cultura portuguesa e
uma visão da educação das crianças e adolescentes que impressiona pela sua
capacidade de, nessa altura, ver o que hoje, em muitos aspectos, já é uma evidência, o
autor apresenta inúmeros exemplos de modos de ser e agir que, sob a aparência de um
contexto de mudança, vieram a desaguar no que ele considera ser “uma sociedade
imatura e não criativa marcada pelo desejo de protecção, pelo assistencialismo e pelo
medo do risco elevados ao grau de ideal” (Espírito Santo, 1985:141)77.
77
Em 1999, Moisés Espírito Santo republica este artigo e, com isso, actualiza e confirma a análise aqui
citada.
175
energia, cria um vazio nos espíritos que só as tarefas, deveres e obrigações da
submissão são supostos preencher” (Gil, 2005:40, 78, 84).
Isto é, como isso modela a nossa cultura e afecta as decisões que tomamos como
pessoas, como cidadãos, como educadores,
- esquecendo que “a condição humana consiste em lutar constante e
permanentemente para mudar o mundo e melhorar a nossa própria existência,
no sentido de reduzir ou eliminar a exploração de uns seres humanos por outros,
em todas as frentes” (Garzón, 2006:10);
- ignorando que a “busca do ser mais (…) não pode realizar-se no isolamento, no
individualismo, mas na comunhão, na solidariedade dos existires” (Freire,
2003:75).
É, assim, preciso perceber como cada sistema social e, antes de tudo, como “cada eu-
educador”, pode, em cada momento em que a educação acontece, estar cultivando
condições que conduzam à forma(ta)ção de pessoas que (sob a aparência de
funcionarem bem no seu nicho social e de viverem felizes consigo mesmas e com o seu
lugar na sociedade), não deixam também de estar AJUSTADAS, encaixadas, violentadas
e podadas na sua individualidade por aquilo que alguém entendeu ser o melhor, ou
mais conveniente, para o bem-estar comum (Guenther & Combs, 1980:133).
78
O sublinhado é meu.
176
Então, se o propósito educativo de repetição se impuser e substituir o poder criador,
precisamos procurar reconhecer (por muito que isso nos custe aceitar no plano
individual), de que modo estaremos “CADA EU”:
- contribuindo para que “o sistema” mantenha as aspirações das pessoas ao nível
das necessidade mais básicas (Guenther & Combs, 1980), presas no princípio
da escassez e da mediocridade vistosa de quem se alegra com as magnânimas
empresas, com as festas e com os jogos (os “carnavais” até!) proporcionados
regularmente pelo(s) “Príncipe(s)” da política, da economia, da comunicação
social..., para distrair e divertir o seu povo;
- concorrendo para o que Erich Fromm já há muito referia ser a padronização dos
homens e a sua conveniência para o sistema (Neill, 1971:xviii), ou para o que
Morin (2002:32) refere ser a normalização que reforça o conformismo;
- revelando “a incapacidade da sociedade de acalentar e apoiar as imensas
possibilidades de uma vida humana” (Moore (2000:8).
Por tudo isto e com tudo isto (mas também porque o propósito desta pesquisa é a
construção de um conjunto de orientações didácticas em que o papel desempenhado
por “cada eu” é fundamental), é sobretudo com uma abordagem mais centrada no
individual e na educação pessoa a pessoa que, a seguir, procurarei trabalhar:
a) o modo como em cada um de nós o medo encontra e se faz face;
b) o terreno que propicia e como nos reconhecemos filhos do medo;
c) o mundo que assim estamos a construir e a transmitir.
• Rostos do Medo
Pouco tempo depois de ter dado início a esta pesquisa, e para tentar saber de que
temos medo, comecei a fazer uma lista de todos os medos que, com diferentes
enunciados, em contexto informal, ou como resultado das leituras que ia fazendo, visse
serem referidos. Não foi preciso esperar muito tempo para perceber que a lista crescia
rapidamente. Demasiado rapidamente até. Por isso, a certa altura, e porque achei que
poderia nunca mais ter fim, desisti.
177
Ilustração II.5 – A diversidade do medo.
Mas sete, também, porque (como aprendi numa aula com um aluno-professor, o Miguel
Costa), como muitas palavras mágicas têm sete letras (alegria, carinho, sorriso,
caminho, coração…), talvez possam ser, em si mesmas, fonte de inspiração para
processos de transformação de uma palavra de 4 (medo) numa palavra de 7 (coragem).
79
Ver lista de medos no final deste ponto do capítulo.
178
(...) Tudo o que um sujeito considera que pode causar-lhe um mal de qualquer tipo (...)
pode converter-se num perigo (Marina, 2006:13; 109-110).
Fica, por isso, uma outra pergunta: quem, de entre nós, poderá dizer, com toda a
sinceridade e consciência, que nunca sentiu (ou sente), pelo menos “dois ou três” (ou
sete… ou, talvez mesmo, “setenta vezes sete”80), dos medos daquela ou de outra lista?
Assim, e apesar de haver um tipo específico de pessoas com propensão para ter
medo81 e para se deixarem dominar pelas emoções (Martin & Boeck, 1999:57), a
reflexão que aqui procuro fazer não diz tanto respeito a um tipo específico de pessoas
de temperamento medroso e, muito menos, a doenças do medo. A reflexão que aqui
procuro fazer diz respeito, isso sim, a um outro tipo de medo – o medo com que muitas
mais pessoas se confrontam nas suas práticas quotidianas e na dinâmica da sua vida
interior, quer ele tenha, quer não, uma face exterior muito visível.
1. Tipos de medo
A partir de uma classificação muito próxima das definições apresentadas por Damásio
de emoções e sentimentos universais e emoções e sentimentos secundários, Marina
descreve os seguintes tipos de medo (2006:21-30;101-103):
80
Alusão a Mt. 18,22.
81
“As pessoas que têm propensão para ter medo (....) são frequentemente irritáveis e tímidas, andam
tensas e nervosas. Têm uma grande necessidade de ser amadas e aceites, mas sentem-se frequentemente
isoladas, dolorosamente diferentes das outras, e incompetentes. Por isso, preferem o conhecido ao
desconhecido, buscam de forma instintiva a segurança, e onde se sentem melhor é num ambiente com que
estão familiarizadas. Ao mesmo tempo são delicadas e sensíveis, têm muito tacto e muita fantasia” (Martin
& Boeck, 1999:57-58).
179
o Os critérios que os distinguem são muitas vezes encontrados numa
avaliação estatística.
- MEDOS INATOS – tenazes e universais, são provocados por desencadeantes não
aprendidos.
o Ex: um susto provocado por estímulos intensos e repentinos, pela perda
de orientação, etc.
- MEDOS ADQUIRIDOS – aprendem-se por condicionamento, por experiência
directa, por imitação e por transmissão de informação.
o Medos que resultam de acontecimentos traumáticos – acidente,
separação dolorosa...
o Medos que resultam de acontecimentos penosos e repetidos – pequenos
traumas sofridos de maneira regular, humilhações, agressões...
o Medos que resultam da aprendizagem social – imitação de modelos...
o Medos que resultam da assimilação de mensagens alarmantes – uma
educação centrada na ideia do perigo, o modo como na família se fala
dos problemas...
- MEDOS INDIVIDUAIS – porque o medo é uma emoção individual.
- MEDOS FAMILIARES E MEDOS SOCIAIS – porque o medo é uma emoção contagiosa.
o Por exemplo: medos do milénio, medos da peste, medos baseados em
crenças ou superstições, medo da perda da identidade nacional ou
religiosa, medo do fracasso em certos tipos de sociedade...
Krishnamurti (2002:17-36):
- MEDOS FÍSICOS – muitos destes medos são sinal de inteligência.
180
o Por exemplo: medo de uma serpente venenosa ou medo do fogo.
- MEDOS PSICOLÓGICOS – os que tiram a lucidez e a capacidade de ver em
profundidade e impedem viver no sentido de uma felicidade tranquila e profunda.
o Por exemplo: o medo que faz aceitar o condicionamento de uma
determinada cultura ou sociedade...
o Por exemplo: o medo que faz aceitar ser influenciado pelas pressões e
pelas tensões da vida de relação, por factores económicos, climáticos,
educativos, pelo conformismo religioso, etc.
2. Níveis de medo
Moffit (2003b):
- ESTADO NORMAL DE ALERTA
o Está-se atento a qualquer mudança no ambiente.
- VIGILÂNCIA
o Natural e saudável, ocorre no corpo-mente quando se percebe um
possível perigo. Termina quando o perigo passa.
- HIPERVIGILÂNCIA
o Quando há um estado prolongado de ansiedade ou medo. Cria um
efeito de visão-túnel – a experiência da vida é feita através das lentes
do medo ou da ansiedade.
o Se for repetidamente desafiada, pode tornar-se um padrão na vida. A
nossa sociedade actual apresenta sinais de viver num estado de
hipervigilância.
- REFLEXO TRAUMÁTICO CONGELADO
o Ocorre quando o perigo é constante ou quando o sistema nervoso
perde a capacidade de perceber que o perigo passou.
o Se as circunstâncias em que a pessoa vive a levam a evitar estar
atenta a si própria (ou se a pessoa repetidamente contrai os
músculos para se proteger contra abusos físicos e verbais), as
respostas podem ficar permanentemente congeladas no sistema
neuromuscular e podem ser activadas em situações de stress.
181
o Quase toda a gente tem algum grau de medo bloqueado que precisa
ser desobstruído.
o Estes padrões de medo congelado podem ser detectados através de
sensações de desconforto, da perda de sensações no corpo, da
sensação de desconexão mental, ou ainda de sensação de não se
estar no corpo.
Jeffers (1991:13-16):
- PRIMEIRO NÍVEL – o nível da superfície. Pode ser dividido em dois tipos:
o Medos do que acontece – ex: envelhecer; ficar sozinho, desastres
naturais, perda de segurança financeira, morrer…
o Medos que requerem acção – ex: tomar decisões, mudar de carreira,
fazer amigos, ser entrevistado, começar ou terminar uma relação…
- SEGUNDO NÍVEL – medos que envolvem o ego, mais relacionados com o estado
interior do que com situações exteriores. Reflectem um sentido do self e a
capacidade de lidar com o mundo.
o Medo da rejeição, do insucesso, do falhanço, da perda de imagem,
da desaprovação….
- TERCEIRO NÍVEL – o nível mais profundo, o maior medo de todos, o que bloqueia,
o medo que está subjacente a todos os outros medos.
o O medo de não se ser capaz de lidar com o que a vida trouxer.
Exemplos: medo de não ser capaz de lidar com a doença; medo de
não ser capaz de lidar com o insucesso; medo de não ser capaz de
lidar com a rejeição...
Para me manter em harmonia com a simbologia atrás referida, e ainda que “muitos dos
nossos medos tenham difícil explicação” (Marina, 2006:15), passo a apresentar 7 dos
medos que constam da lista dos 241 e parecem ser dos mais comuns:
182
mantenham pois a pessoa sente-se incapaz de enfrentar o mundo sozinha
(Marina, 2006:121-122).
b) MEDO DE TOMAR UMA POSTURA FIRME – revela-se na incapacidade de afirmação e
defesa dos próprios direitos. A dependência da avaliação dos outros pode ser
tão exagerada que produz a anulação da própria identidade, integridade e
dignidade (Marina, 2006:126).
c) MEDO DO DESCONHECIDO E DA MUDANÇA – “mudança” significa viajar por águas
inexploradas e isso faz com que as inseguranças venham ao de cima (Maxwell,
1993:57).
d) MEDO DO SILÊNCIO – significa que se tem uma mente obsessiva, febril, que
continuamente pede que se esteja activo (Osho, 2001:23). É o que impede ser
capaz de estar sozinho, de explorar os próprios medos ou a dimensão interior
(Phillips, 2003:64).
e) MEDO DO PRAZER – é também o medo da dor, não apenas física. Ocorre quando
um impulso expansivo depara com uma área contraída e fechada do corpo que,
amortecendo contra a dor, amortece também contra o prazer (Lowen, 1984:67-
69).
f) MEDO DO MEDO – é o medo de acordar a tristeza dos insucessos do passado que
ainda vive no corpo e nas memórias (Phillips, 2003:20).
g) MEDO DE ACABAR – é o medo de se reconhecer o que se perdeu, ou o que se
está em vias de perder. É também o medo de começar, porque tudo é um
círculo (Phillips, 2003:189).
Em resumo, e porque nestes medos cabem todas as experiências de uma vida que, em
tantas situações, vive o conflito, o desespero, a solidão, o desencanto, a violência de
nos ajustarmos, imitarmos e seguirmos uma qualquer “moralidade” social ou a nossa
“moralidade” pessoal peculiar (Krishnamurti, 2002), julgo que fica claro por que foi
possível (e fácil) fazer uma interminável lista de “medos de tudo”. O que é o mesmo que
dizer, por que foi fácil fazer uma lista do MEDO DA VIDA.
183
• Outros rostos do medo
Mas tudo isto até poderia ser relativamente tranquilo e fácil de resolver se, para lá dos
medos de que, apesar de tudo, as pessoas falam (ou reconhecem) com alguma
facilidade, não houvesse muitos outros que (muitas vezes sob a auréola de uma falsa
força ou coragem), são frequentemente esquecidos, disfarçados, encapuçados,
encapotados.
184
i) OS VÍCIOS – formas de encobrir o medo das emoções (Hay, 1998:75).
j) A LUTA PELO PODER – nasce do medo de se sentir impotente (Lowen, 1984:76).
k) A MEGALOMANIA – de quem procura mais ser temido do que ser amado (Russel,
2001:22).
l) O EGOCENTRISMO, O ETNOCENTRISMO E O SOCIOCENTRISMO – de quem se coloca
no centro do mundo e considera como insignificante, secundário ou hostil tudo o
que é estranho ou afastado (Morin, 2002:102).
m) SENTIMENTO DE SOLIDÃO, SUSCEPTIBILIDADE, ESCRUPULOSIDADE, DESPOTISMO,
ARROGÂNCIA, IRRITABILIDADE, INVEJA – são os disfarces de um ego que se sente
ameaçado (Calle, in Olba, 1996:14).
n) E MUITOS OUTROS, como os preconceitos, o controlo de pessoas e situações, o
ciúme, o excesso de comida, a timidez, a vergonha, a agressividade, a
competição, a necessidade desmesurada de sucesso e de dinheiro, também
referidos por estes e outros autores.
• Filhos do Medo
O homem (qualquer homem) permanece na prisão durante muitos anos, mesmo que
as grades não estejam fechadas. Ele pode sair, mas durante a sua permanência
aprendeu a temer os possíveis perigos com que se poderia encontrar. Assim,
chegou a sentir uma espécie de segurança e protecção por detrás dos muros em
que esteve preso por vontade própria. A escuridão da prisão impede-o de ter uma
visão clara de si mesmo e não está seguro de como será recebido no mundo que vê
por detrás das suas grades – Powell.
185
mais ter fim, parece que nenhum campo de pesquisa, nem nenhuma dimensão
humana, ficam fora do seu estudo ou do alcance da sua influência.
Mas nem sempre é fácil distinguir causa e efeito. Será que sou tímido porque tenho
medo, ou tenho medo porque sou tímido? Será que sou preconceituoso porque tenho
medo, ou tenho medo porque sou preconceituoso? Tendo, por isso, presente o conceito
de medo como fenómeno TRANSACCIONAL83, coloco exemplos do que encontrei como
matéria de reflexão sobre causas individuais e sociais (e políticas) do medo.
Mecanismos de amedrontamento
83
Com uma causalidade circular difícil de compreender. Ver também neste ponto do capítulo, “Criação de
um segundo cenário de fundo – a palavra da psicologia...”.
186
d) AS MÁSCARAS DE FÚRIA – feitas de gestos, de violência verbal e de gritos com o
intuito de amedrontar outros.
- A fúria como uma forma doméstica de impor o medo...
e) O ISOLAMENTO – obriga a pessoa a romper com os seus vínculos afectivos e
anula a sua possibilidade de comunicação.
- Muito comum em situações de violência de género...
f) A MANIPULAÇÃO DE EMOÇÕES – ridicularizando, suscitando sentimentos de culpa
ou de dependência amorosa; pode ser uma forma suave de intimidar.
- Todos os sedutores são manipuladores afectivos...
g) O MEDO REVERENCIAL – fonte de grandes sofrimentos, é um tipo de amor
misturado com medo por causa da grandeza do outro.
- Presente na religião, na majestade e na honra...
Max-Neef (1993:25) sugere quatro tipos de patologias colectivas do medo que, sendo
intencionalmente provocadas, conduzem ao ressentimento, à apatia e à perda da
autoestima:
“Todos vivemos na mesma realidade, mas cada um de nós habita o seu próprio
mundo. Um valente e um cobarde não vêem o mesmo (...). Por isso, quando
187
dizemos que o medo é o sentimento desencadeado pela aparição do perigo,
estamos dizendo algo verdadeiro que acaba sendo falso pela sua singeleza (...). A
perigosidade do objecto depende da avaliação que faz o sujeito e esta pode estar
equivocada” (Marina, 2006:16-17).
Num trabalho muito sugestivo sobre o medo e a felicidade, Peña y Lillo (1991:81-118),
apresenta os fundamentos psicológicos do medo que, não sendo mecanismos
totalmente conscientes, constituem as atitudes básicas erróneas responsáveis pela
maioria dos sofrimentos inúteis do homem.
84
São as profecias auto-realizáveis. Existem dois tipos: as auto-impostas, que ocorrem quando as próprias
expectativas influenciam o comportamento, e as impostas e comunicadas por outros (Adler & Towne,
1999:68).
188
- Apesar de o desejo (enquanto condição natural e necessária da vida), ser
necessário para uma conduta prepositiva e para a criatividade humana, os
desejos inferiores provêm de um eu imaginário e de uma invenção da
consciência que mascara o eu real e se apoia no mundo exterior e nas
expectativas do ego.
Queremos aquilo com que nos identificamos ou que nos dá prazer (raga = paixão);
rejeitamos e pomos de lado o que consideramos que nos faz mal (dvesha = aversão);
por isso temos medo (ABHINIVESHA) das coisas que nos magoam e temos medo de
perder o que nos dá prazer. Se tivéssemos consciência de quem somos, não teríamos
85
Sistematizado pelo sábio Patañjali, é o texto mais universal sobre Yoga e o registo escrito mais antigo da
cultura da Índia. Está focado na mente, nas suas qualidades e na forma como a podemos influenciar.
86
Desikachar (1005:9-11) explica de que forma a avidyā actua e como faz com que tenhamos tantas
dificuldades na vida: (1) pode ser o resultado acumulado de muitos dos nossos modos de perceber e das
acções inconscientes que, mecanicamente, carregamos ao longo de anos; (2) faz com que a mente se torne
cada vez mais dependente, como se a claridade da consciência fosse coberta por um filtro; (3) confunde o
desagradável com o incorrecto; (4) vai até ao ponto em que as acções de ontem passam a ser as normas de
hoje.
189
medo de nada. A forma de resolver isto é resolver a ignorância – isto é, caminhar no
sentido de perceber quem somos.
Distorções cognitivas
Considerando que não são os acontecimentos que nos movem, mas a valoração que
fazemos deles, Marroquín & Villa (1995:61-70) apresentam as DISTORÇÕES COGNITIVAS87
da comunicação intrapessoal. Estas distorções, porque exageradas e fantasiosas (feitas
com pensamentos ou ideias irracionais, imagens, frases internas ou palavras soltas
que, conscientemente ou não, repetimos sem cessar), desenvolvem uma interpretação
da realidade capaz de gerar muito sofrimento inútil. Três exemplos:
a) FILTRO MENTAL – escolher e fixar-se num detalhe negativo de uma situação
escurecendo o resto da realidade.
b) LEITURA DO PENSAMENTO – julgar adivinhar o que os outros pensam, as suas
motivações profundas e prever os seus comportamentos em relação a nós.
c) ENUNCIADOS “DEVERIA” – tanto dirigidos à própria pessoa, como dirigidos aos
outros.
Estrutura do pensamento
87
As outras distorções cognitivas apresentadas por Marroquín & Villa (1995:61-70):
- Polarização: avaliar as qualidades pessoais em categorias dicotómicas extremas (ou tudo ou nada –
base do perfeccionismo).
- Generalização Excessiva: chegar a uma conclusão a partir de um incidente num momento
determinado.
- Especulação Emocional: à falta de dados objectivos, tomar as nossas próprias emoções como prova
subjectiva.
- Personalização: situar-se no centro de uma qualquer problemática, assumindo a responsabilidade
perante um facto negativo, mesmo sem fundamento.
- Etiquetação: catalogar os outros, ou a si mesmo, de um modo simplista e rígido a partir de um
pormenor isolado ou parcial.
- Catastrofismo: expressar sempre o pior do futuro.
- Evasão de Controlo: perceber a vida como algo sobre o qual não se tem controlo.
88
Também a Bioenergia refere que “por mais que haja conversa ou compreensão, isso não aliviará
significativamente as graves tensões musculares que oprimem a maioria das pessoas. Essas tensões
bloqueiam a expressão dos sentimentos e só podem ser aliviadas através da plena expressão dos
sentimentos” (Lowen, 1997:174).
190
pensamento na vida é uma faca de dois gumes – se for lúcido, é indispensável à vida
quotidiana, à ciência e à tecnologia; mas, se não for, tece uma rede de enganos
(2002:23).
Premissas:
1. Os sentimentos permitem a percepção do objecto, a percepção do estado
corporal, a percepção das modificações de estilo e eficiência do pensamento
(Damásio, 2003).
2. “A PERCEPÇÃO é uma fonte primária de conhecimento do mundo” (Hacker,
1998:45).
3. A ORGANIZAÇÃO DO CAMPO PERCEPTUAL DA PESSOA, depende de dois conjuntos
de factores (Guenther & Combs, 1980:93ss):
a. De estímulos sensoriais, valores, necessidades, objectivos relevantes,
informação, conceitos, ideias, eventos passados guardados na memória
e evocados por serem pertinentes na situação actual.
b. Da orientação perceptual, isto é, da “maneira individual e única de
perceber que a pessoa desenvolveu através da sua experiência de vida”.
A orientação perceptual inclui:
i. as percepções que a pessoa tem DE SI MESMA (o AUTOCONCEITO);
ii. as percepções que a pessoa tem DAS OUTRAS PESSOAS;
iii. a percepção que a pessoa tem DA REALIDADE FÍSICA E SOCIAL.
4. “O COMPORTAMENTO é uma função do campo perceptual da pessoa no momento
em que é emitido como comportamento” (Guenther & Combs, 1980:93 ss).
191
Neste enquadramento, passo a apresentar algumas das muitas situações em que, de
forma directa ou indirecta, diversos autores estabelecem uma relação entre as causas e
vivências do medo e a percepção-sentimento-conceito de si mesmo, dos outros e do
mundo.
d) A CULPA COMO SENTIMENTO DE NÃO TER O DIREITO DE SER LIVRE, COMO SENSAÇÃO
DE NÃO ESTAR À VONTADE NO PRÓPRIO CORPO – o comportamento é controlado
por um superego que, funcionando abaixo do nível de consciência, não permite
aperceber que as limitações das acções e dos sentimentos não decorrem do
livre-arbítrio, mas da interiorização do genitor ditatorial (Lowen, 1997:15).
89
Enquanto símbolos com origem no inconsciente colectivo (conjunto herdado de todos os impulsos e
energias inconscientes partilhados pela humanidade), mas também enquanto modelos de desenvolvimento
192
dificuldade em perder o medo do conflito e em superar as desculpas com que
evita fazer frente às responsabilidades vitais (Aldana, 2000:79).
pessoal, os arquétipos são facetas da personalidade que cada pessoa activa, em maior ou menor grau,
segundo as circunstâncias da sua história de vida (Aldana, 2000).
90
Self – expressão utilizada por Moore para significar as necessidades ou potencialidades internas da
pessoa; diferente do ego que está em contacto com a realidade externa e é dotado de consciência, intenções
e vontade de controlo (Moore, 2000:7)
91
www.pensador.info/p/resumo_livro_quem_tem_medo_do_escuro/1/
193
c) Um ESTREITAMENTO CONDUTIVO – todas as energias se concentram para,
estando em alerta máximo, poder fugir ou realizar rituais que,
momentaneamente, libertem da angústia.
Autoconceito
O medo na relação da pessoa consigo
mesma
Relação Visão
do
com os
outros mundo
Para Lowen (1997:163), a tensão crónica
é a equivalente física do medo. Mesmo
que a pessoa não esteja disso consciente,
Ilustração II.6 – A ligação entre o medo qualquer músculo cronicamente tenso
e a organização perceptual.
está em estado de medo. É aquilo a que
normalmente se chama “estar petrificado de medo”, “estar morto de medo”, etc. Três
dos exemplos apresentados pelo autor:
194
De acordo com Neill (1971:123, 194), já Reich (de quem Lowen foi discípulo), tinha
chamado a atenção para o facto de que uma criança que viva numa situação
permanente de medo passa a vida a tomar o fôlego e a retê-lo. O medo de ser rejeitado
ou abandonado por chorar, gritar ou por ser muito exigente, cria a incapacidade de
RESPIRAR encontrada em muitos asmáticos. Pelo contrário, a respiração livre e fluida
indica que não se tem medo da vida.
E porque sou mulher, não quero deixar de também trazer aqui um extracto do livro
“Corpo de Mulher, Sabedoria de Mulher”, de Christiana Northrup, médica ginecologista-
obstreta. Trata-se de um livro em que a autora analisa as áreas do corpo feminino e em
que, cruzando os problemas de saúde com comportamentos e circunstâncias de vida,
explica a forma como aqueles podem ser afectadas pelo estado emocional e
espiritual92. E se é certo que em nenhum lugar do texto aqui transcrito se lê a palavra
“medo”, não será difícil perceber como ele está subjacente a todo o seu sentido:
92
Outros autores também estabelecem relações deste tipo. Bourbeau (2004), por exemplo, considera que
um mal-estar ou uma doença são uma advertência para que tomemos consciência de que se atingiu o limite
físico, emocional ou mental. Partindo de uma perspectiva holística que impede dissociar a pessoa, esta
autora apresenta as causas profundas (não orgânicas) de um número larguíssimo de doenças. São tantas as
referências relacionadas com o medo que me limito a colocar algumas das, aparentemente, mais comuns ou
mais conhecidas:
ANOREXIA E BULIMIA – a primeira está ligada ao medo da rejeição, a segunda está ligada ao medo de ser
abandonado; produzem-se muitas vezes em pessoas rígidas que não estão em contacto com as suas
necessidades e não se permitem realizar os seus desejos (79).
CÃIBRA – produz-se muito em quem, por medo, se quer agarrar a alguma coisa ou a alguém (88).
DIARREIA – relacionada com o medo de não ter alguma coisa, ou de não fazer o bastante, de fazer mal, ou
de fazer em demasia; a sensibilidade emotiva está desordenada e a pessoa tende a rejeitar uma dada
situação quando nela é confrontada com os seus medos (140).
DOR NO PESCOÇO – a rigidez do pescoço que impede voltar a cabeça denota a inflexibilidade de uma pessoa
que tem medo de ver ou ouvir o que se passa nas suas costas (311).
FADIGA – quando é frequente e sem razão aparente, está relacionada com situações de pensamentos cheios
de preocupações e de medos que bloqueiam e desgastam a energia. (180)
LARINGITE – leva à perda de voz e indica que a pessoa evita falar porque tem medo de não ser ouvida, ou
porque receia desagradar a alguém; a pessoa engole as palavras que ficam presas na garganta e podem
causar dores (238).
MAGREZA – a pessoa rejeita-se, sente-se pequena comparada com outros, tem medo de ser rejeitada e quer
muitas vezes desaparecer – é do género apagado e muito delicado com os outros (249).
OBSTIPAÇÃO – está relacionada com a abstenção de dizer ou fazer alguma coisa com medo de desagradar,
de perder alguém ou alguma coisa (276).
PESADELO – é a manifestação do inconsciente em relação a um medo que não é, ou não quer ser, consciente
(309).
PROBLEMAS DE ESTÔMAGO – estão relacionados com a intolerância e o medo perante o que não se gosta
(172).
195
“(…) Os fibromiomas* representam a nossa criatividade à qual nunca se deu asas,
incluindo imagens de “fantasia” de nós próprias que nunca alcançaram a luz do dia e
segredos criativos dos nossos outros “eus”. Os fibromiomas também se desenvolvem
quando gastamos energia de vida para fins inúteis como empregos ou relações que já
pusemos de parte. (…) Os fibromiomas estão frequentemente associados a conflitos
relacionados com criatividade, reprodução e relações. (…) O facto de tantas mulheres
apresentarem estes tumores é, talvez, uma evidência da nossa energia criativa
colectivamente bloqueada da nossa cultura” (Northrup, 2004:177).
196
O medo na relação com os outros
“Todas as pessoas que sentem medo, criam bem no fundo um grande ego à volta do
medo e estão sempre a bombear mais ar para esse balão do ego que se torna
demasiadamente grande. Adolfo Hitler, Idi Amin do Uganda – esse tipo de gente fica
muito inchada de orgulho. Depois começa a meter medo aos outros. Alguém que tenta
meter medo a alguém sabe que, bem no fundo de si, também tem medo, caso contrário
porquê? (…) As pessoas que têm medo metem medo aos outros para se sentirem bem”
(Osho, 2002b:143).
93
“People who fear can’t genuinely give. They are imbued with a deep-seated sense of scarcity in the
world, as if there wasn’t enough to go around. Not enough love, not enough praise, not enough attention –
simply not enough” (Jeffers, 1991:172).
197
Neill (1971:118) sentencia: “somente o ódio pode florescer numa atmosfera de medo”.
1.
O medo, estado psicológico e mecanismo natural, inscrito de forma indelével no mais
profundo do nosso ser, é nosso eterno companheiro de viagem – enquanto emoção, é
uma resposta reflexa a determinados estímulos; enquanto sentimento, permite a criação
de uma estratégia alargada de protecção (Damásio, 1995; 2000). Por isso, o medo,
quando saudável, pode ser uma chamada para a acção e o impulsionador dos nossos
maiores feitos.
Entendo que é exactamente isto o que, na sabedoria popular, significa “tirar o
medo", e se expressa como “refrescar”, “realentar”, “desenvolver” ou “animar”
(Bivar, 1948) – o que, há muitas páginas atrás, congreguei numa única categoria
que denominei “repor vida”.
2.
Enquanto que, por um lado, o medo produz um triplo estreitamento na consciência
(corporal, psicológico e condutivo) (Marina, 2006:24), por outro, “todo o acto
verdadeiramente humanizado deverá estar impregnado de intenção* e a sede da
intenção é a consciência” (Feitosa, 2006:58). Por isso, o medo, relacionado como está
com a forma como percebemos as coisas, pode desencadear um conjunto diversificado
de comportamentos que, por ausência de intencionalidade* operante (isto é, por não se
traduzir em consciência, inquietação, auto-orientação, expressão de si mesmo, abertura
198
à experiência da vida, aceitação dos outros e de si mesmo) são “acção sem sentido,
mera agitação ou capricho” (Sérgio, 2005b:19).
Julgo que é exactamente isto o que, na sabedoria popular, são outros nomes do
medo: “estreiteza”, “enleio”, “tremelica”, “atamento” (Bivar, 1948) – o que,
também há muitas páginas atrás, identifiquei na construção de categorias dos
sentidos lexical e analógico como “ausência de paz”, “perda de identidade” e
“perda de energia vital”.
3.
São múltiplas as formas com que o medo se manifesta:
- Manifesta-se na nossa cultura que, não sendo capaz de apoiar as imensas
possibilidades da vida humana, se empenha, porque convém ao seu sistema, em
padronizar os homens (Boff, 1998).
- Manifesta-se em todas as formas de poder coercivo (político, económico, intelectual,
hierárquico...) que detém o poder sem autoridade e que, por um lado, se gera
resistência, por outro, gera gente estúpida, apática e descomprometida (Moffit,
2003b).
- Manifesta-se no contentamento individual e social expresso na analogia do slogan
publicitário “rabinho seco, bebé feliz” (talvez o formato moderno do “pão e jogos” da
era romana), produzido por uma sociedade de consumo cheia de coisas e de
barulho, criadora de dependências, angariadora de multidões e de falsas
identidades, vivendo para a imagem, mas vazia de sentido de vida (Guenther &
Combs, 1980; Cashman, 2000).
- Manifesta-se na mentira, no insulto, no desprezo, na inveja, na indiferença e na
atitude blazé de quem acha nada ter a aprender e a receber (Gil, 2005).
- Manifesta-se na excessiva racionalização que evita a sensibilidade do corpo, das
emoções e do espírito (Lowen, 1997).
- Manifesta-se na saúde individual e colectiva, na rigidez, nas tensões e doenças
crónicas (Lowen, 1984; Bourbeau, 2004).
- Manifesta-se na atitude de queixa permanente, na mentalidade de vítima, mas
também na incapacidade de nos interessarmos suficientemente por nós próprios
(Aldana, 1996).
- Manifesta-se numa moral que gere, predominantemente, sentimentos de culpa, em
vez de gerar sentimentos de acção e criação (Lowen, 1997).
199
- Manifesta-se nos talentos não potenciados que ficam eternamente escondidos (Mt,
25, 24-30).
- Manifesta-se na busca desenfreada do “prazer”, do “curtir”, das sensações fortes e
das emoções superficiais.
- Manifesta-se..., manifesta-se…., manifesta-se….
4.
Não podemos mudar o que sentimos, mas, de acordo com o significado atribuído a
cada experiência, podemos mudar a nossa forma de agir (Goleman, 2005). Por isso, e
parafraseando Sartre, o importante, não é tanto procurar saber o que o medo nos faz a
nós, mas procurar descobrir o que somos capazes de fazer com aquilo que o medo fez
ou faz em nós. É o desafio de, percebendo quem verdadeiramente somos,
caminharmos no sentido da (dis)solução de mais um par de opostos: o encontro da
nossa horizontalidade, da nossa matéria, com a nossa verticalidade, a nossa
transcendência.
5.
Tentando relacionar a parte e o todo, no texto abaixo colocado encontro um exemplo do
paralelo que se possa estabelecer entre os movimentos de procura-exploração-
curiosidade e de recuo-imobilização-fechamento do nosso organismo (Damásio, 1995)
e o afã por se libertar do medo que está presente nos ciclos que traçam a história da
humanidade (Marina, 2006:9):
“Podia ver que a longa história da humanidade iria ser impelida por estes dois anseios
contraditórios. Por um lado, ultrapassaríamos os nossos medos devido à força das
nossas intuições, devido às nossas imagens mentais de que a vida se relacionava com o
atingir de uma determinada meta, com o fazer progredir a cultura numa direcção positiva
que apenas nós, como indivíduos, agindo com coragem e sabedoria, poderíamos
inspirar. (…) Por outro, seríamos amiúde dominados pelo outro anseio oposto, o anseio
de nos protegermos do Medo, por vezes perdendo de vista o objectivo, caindo na
angústia da separação e do abandono. Este Medo iria conduzir-nos a uma
autoprotecção receosa, lutando para mantermos as nossas posições de poder, roubando
energia uns aos outros e opondo sempre resistência à mudança e à evolução, sem
tomarmos em consideração as informações novas e melhores que pudessem estar ao
nosso dispor” (Redfiel, 2005:118).
200
1. medo do sofrimento 44. medo de expressar-se 88. medo de inscrever
2. medo de conhecer 45. medo da dor 89. medo de acreditar
3. medo de arriscar 46. medo da intimidade 90. medo de criar
4. medo de ter medo 47. medo da perda de amor 91. medo de perder o controlo da
5. medo de sofrer 48. medo da perda da segurança situação
6. medo de ser derrotado 49. medo da vida 92. medo do rival
7. medo do fracasso 50. medo de causar uma impressão 93. medo de ser apontado como
8. medo de ser criticado que não corresponda à auto- incompetente
9. medo da desilusão imagem 94. medo do poder
10. medo da perda 51. medo de parecer incapaz 95. medo da impotência própria
11. medo de si mesmo 52. medo do inesperado perante o poder
12. medo das pessoas que nos 53. medo de ser rejeitado 96. medo de ser desmascarado
desejam o mal 54. medo da represália 97. medo de parecer ter medo
13. medo do confronto 55. medo de um futuro colapso 98. medo do eu desconhecido
14. medo de dizer não 56. medo do desconhecido 99. medo de parecer fraco
15. medo de não conseguir levantar 57. medo do colega 100. medo de perder alguma coisa
16. medo de se envolver 58. medo do sucesso 101. medo de parecer ignorante
17. medo do silêncio 59. medo de cair 102. medo de “ir a exame”
18. medo de enfrentar a 60. medo da hierarquia 103. medo de ser julgado
interioridade 61. medo do castigo 104. medo de escolher
19. medo de parecer medíocre 62. medo da desaprovação 105. medo do vazio
20. medo de ser passivo 63. medo de Deus 106. medo de sair
21. medo de desiludir 64. medo da pobreza 107. medo de ser apontado a dedo
22. medo das minhas sombras 65. medo do ridículo 108. medo de ser punido
23. medo de ser activo 66. medo de ser eu 109. medo de fazer amigos
24. medo dos adultos 67. medo de fantasmas do passado 110. medo de perder o emprego
25. medo de ser o que não sou 68. medo de lutar 111. medo de não saber
26. medo de parecer ser 69. medo de ser despedido 112. medo da exclusão
27. medo de saber o que os outros 70. medo de morrer 113. medo de perder
pensam 71. medo de doenças 114. medo do medo vir à tona
28. medo da própria interioridade 72. medo de se abrir 115. medo de ser visto por todos
29. medo de não ser perdoado 73. medo dos começos 116. medo do aborrecimento
30. medo de envelhecer 74. medo dos fins das coisas 117. medo de “não estar à altura”
31. medo de se perder 75. medo de ficar parado 118. medo de ser descoberto
32. medo de não ter dinheiro 76. medo de falhar 119. medo de se tornar indesejável
33. medo do prazer 77. medo de viver 120. medo da opinião pública
34. medo de tomar decisões 78. medo de estar só 121. medo de ser considerado
35. medo da imaginação 79. medo de aborrecer perverso
36. medo da mudança 80. medo de decidir 122. medo do aborrecimento
37. medo do risco 81. medo de chorar 123. medo dos estranhos
38. medo da verdade 82. medo de rir 124. medo da liberdade
39. medo do abandono 83. medo de amar 125. medo de nós próprios
40. medo da solidão 84. medo de se comprometer 126. medo da luz
41. medo de ser avaliado 85. medo de sofrer uma decepção 127. medo da insegurança de amar
42. medo de perder a cabeça 86. medo da violência 128. medo de tomar uma postura
43. medo da entrega 87. medo de agir firme
201
129. medo de ver 172. medo de falar em público 206. medo de começar a nossa
130. medo de ouvir 173. medo de se magoar própria viagem
131. medo de sentir 174. medo de não ser aceite 207. medo de sermos espirituais
132. medo do compromisso 175. medo de não suportar algo que 208. medo de saber que somos
133. medo de ser feliz mata um pedaço dentro de nós amados por Deus
134. medo da responsabilidade 176. medo da angústia 209. medo de perder o outro
135. medo de ser livre 177. medo da saudade 210. medo de não me saber proteger
136. medo de que magoem quem 178. medo de não conseguir 211. medo de não ser valorizado
amo ultrapassar uma fase difícil 212. medo de não estar
137. medo de brincar 179. medo da novidade suficientemente seguro
138. medo de ter fé 180. medo de voar mais alto 213. medo do outro
139. medo de crescer 181. medo de mudar 214. medo de ficar só
140. medo de existir 182. medo de sair magoado 215. medo da possibilidade de
141. medo de experimentar 183. medo de não me rever no que acontecer
142. medo de sonhar mostro 216. medo de que os outros não
143. medo do que se sente 184. medo de ficar infeliz gostem
144. medo de pedir ajuda 185. medo de perguntar 217. medo da reacção dos outros
145. medo de ser diferente 186. medo de confiar 218. medo de me ouvir
146. medo de estragar 187. medo de reconhecer que não 219. medo de deitar para fora tudo o
147. medo de relaxar me conheço que sinto
148. medo de falar 188. medo de inovar 220. medo que me roubem os meus
149. medo de dizer o que se pensa 189. medo de renascer segredos
150. medo de se expor 190. medo de me sentir diminuído 221. medo de me exprimir perante
151. medo de ter tempo 191. medo de me expor muitas pessoas
152. medo de não estar à altura 192. medo de mudar da 222. medo da recriminação
153. medo do que vão dizer de nós superficialidade para um âmbito 223. medo de magoar
154. medo do nosso semelhante mais próximo do outro 224. medo de um caminho que não
155. medo da ameaça 193. medo de se implicar se sabe onde vai dar
156. medo de contar um segredo 194. medo de ser o que se é 225. medo de se perder o que se
157. medo do sobrenatural 195. medo do confronto cognitivo acredita ter
158. medo de viver em sociedade 196. medo de expor a minha criança 226. medo de se analisar a si mesmo
aberta indefesa 227. medo de fazer figura de parvo
159. medo de dizer o que sente 197. medo de não ser compreendido 228. medo das expectativas das
160. medo de falar dos medos 198. medo de ser gozado outras pessoas
161. medo de ser vítima 199. medo de mandar 229. medo do desapontamento
162. medo de reclamar os próprios 200. medo de sermos nós mesmos 230. medo do fim das coisas
direitos 201. medo do oculto 231. medo de ser estigmatizado
163. medo de falar a verdade 202. medo de tocar 232. medo de cenas violentas
164. medo de se desnudar 203. medo de sermos únicos e 233. medo do estranho
165. medo do conflito irrepetíveis 234. medo do aborrecimento
166. medo do novo 204. medo de assumir a 235. medo da instabilidade
167. medo do futuro responsabilidade de sermos 236. medo de expressar sentimentos
168. medo de se olhar ao espelho nós próprios 237. medo de protestar
169. medo de perder o que se 205. medo de aceitar as partes que 238. medo de defraudar
acredita ter estão na sombra, fracas, 239. medo de se sentir culpado
170. medo da humilhação miseráveis, de nós mesmos 240. medo de gritar
171. medo do desapontamento 241. medo de respirar
202
2. O Desenvolvimento Humano
Porque “eu sou eu mais as minhas circunstâncias” (Ortega y Gasset94), depois de ter
trabalhado o Medo, e de aí ter encontrado muitos dos factores que constantemente
condicionam e sugam os nossos pés para a terra das nossas vicissitudes, agora, para
trabalhar o Desenvolvimento Humano, preciso perceber “quem sou” e “de onde venho”
– para que, com os pés pisando firme na terra e mantendo os olhos postos no sol e no
céu95, possa, também na linha de Ortega, “salvar as minhas circunstâncias e salvar-me
a mim”. Volto, por isso, a colocar a pergunta que já atrás tinha colocado: Somos filhos
de quem ou do quê? Que outra filiação nos pode garantir um novo rumo e o sentido de
eternidade?
E procuro na mais simples lei da Física, a de Lavoisier (aquela, tantas vezes a única,
que muitos estudantes nunca esquecem, mas que, provavelmente, não
compreendem/os verdadeiramente em toda a sua extensão), uma explicação para as
nossas origens e para o nosso destino:
O que encontro a partir daqui? O fantástico BIG BANG do universo de há biliões de anos,
com uma natureza e razão de ser ainda não compreendidas... A nossa Via Láctea entre
milhares de milhões de outras galáxias... O SOL, o ar... o planeta TERRA, o magma, a
94
http://en.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Ortega_y_Gasset.
95
E, pela junção do céu e da terra, formar o sete da totalidade. Porque que a terra é simbolizada pelo
número 4 (dos pontos cardeais) e o três simboliza o céu (Chevalier, 1994). Aliás, mais adiante,
desenvolverei a ideia dos sete corpos, dimensões ou tons presentes no homem e que, de acordo com os
antigos, é reflexo da constituição septenária no homem e no Cosmos (Bohórquez & Trigo, 2006; Angel
Livraga, 1994).
203
água, as rochas... A VIDA, os dinossauros, os mamíferos, os primatas... E, há três
milhões de anos, O HOMO... (Boff, 1998; Ribeiro Dias, 2000).
Big Bang
Milhares de Milhões de Galáxias
Estrelas – Sol – Planetas
Planeta Terra
Oceano de Água
Continentes
Diluição do manto de poeira e o nascer e o pôr do sol de cada dia
A VIDA
O primeiro Anfíbio
Os Mamíferos
A primeira ordem dos Primatas
O HOMO
• Filhos do Sol
204
Por isso a nossa história de conservação do PARTILHAR como uma maneira de
viver.
- Participando nos cuidados dos filhos, brincando em contacto corporal,
carregando, dividindo com eles, estando atentos.
Por isso o prazer e a alegria de CUIDAR dos nossos filhos.
- Sendo animais sensuais, acariciando, tocando, desfrutando do CONTACTO
CORPORAL.
Por isso o bem-estar fisiológico que nos vem das carícias das mãos, da pele, da
voz, do olhar, das palavras.
“A vida humana não será nunca vivida simplesmente à toa como vivem os animais. (...)
A pessoa estará viva na medida em que está interessada na vida e participa numa outra
vida, confirmando a vida comum e ABRINDO-SE COM TODOS OS SENTIDOS à aventura da
vida. (...) Quando não se ama mais, mesmo a si próprio, quando nos tornamos
indiferentes e não partilhamos nada com ninguém, morremos. Paralisa-se o corpo
vivente na apatia da alma (...) Enquanto estás interessado estás vivo. Amortece o teu
interesse pela vida, e começas a morrer.
(...) A vida humana é biológica, tal como outra vida que a si mesmo se reproduz. A
humanidade desta vida consiste no facto de que ela é recebida, afirmada e que ela é
enquanto tal uma vida interessada. A força para se ser pessoa reside na TOTAL
AFIRMAÇÃO e no AMOR SEM RESERVAS a esta frágil e mortal vida” (Moltmann, 2007:87).
“No universo todos os seres existem e vivem uns pelos outros, com os outros, nos outros
e para os outros. Ninguém está fora desta relação includente. Mais fundamental que o
princípio de sobrevivência do mais forte (Darwin) é o da SOLIDARIEDADE-AMOR de todos
para com todos (Bohr). É esse amor solidariedade que constitui a grande comunidade
cósmica, terrenal e humana. É ele que dá origem também ao princípio da
RECIPROCIDADE-COMPLEMENTARIDADE. Um ajuda reciprocamente o outro a existir e a se
205
desenvolver. Todos se complementam e crescem juntos: as espécies, os ecossistemas
e o universo inteiro” (Boff, 1998:92).
São muitos os termos utilizados pelos diferentes saberes para se referirem a esta
dimensão mais interior do homem que explica a sua capacidade de superação e de
criação de novos ciclos de vida e o sentido da sua transcendência. Escolhi apresentar
sete. Se foi este o número que usei para alinhar “todos os rostos do medo”, também
agora o vou usar para encontrar “todos os nomes do Ser”.
206
- É parte do eu, uma interpretação da vida pessoal, subjectiva e única, mas, por isso,
também cria a separação entre as pessoas e é fonte de todo o sofrimento.
- Possui muitas características e sentimentos que podem entrar em conflito entre si e
que não são revelados na pessoa pública porque a tornam vulnerável, ou não são
aceites socialmente.
- Tal como a pessoa pública, é impermanente.
O EU REAL
- É a consciência da experiência de nos sentirmos um com o Absoluto – Deus,
Brahman, Vazio…
- É a capacidade de conhecer o Absoluto tal como este se manifesta na natureza e
em tudo o que está no mundo. É a experiência de um “coração desperto”. É a
experiência da vida sem medo ou vontades. É o sentimento de se estar vivo, ligado
à vida.
O Yoga, com origem nos Vedas, tem fundamentos que, ainda que aqui muito
simplificados, vale a pena colocar (Desikachar, 1995):
96
Tem correspondência com Deus, embora o conceito cristão contenha outros elementos.
207
- Se o mental estiver perturbado, a observação será perturbada; mas se o mental
estiver puro, a percepção não será deformada. O que torna as pessoas diferentes é
o mental (as experiências que tivemos e nos marcaram), mas, na essência, somos
todos iguais. O que é percebido é real (o que sinto, o que vejo, o que sonho…),
mesmo que as outras pessoas não vejam. O que é percebido muda e tudo está em
constante mudança.
Existe, além disso, no fundo do esterno, um lugar privilegiado para encontrar purusha
ou cita. É KHA e, no centro desse
espaço, a fonte do cit, ishvara. É
por isso que, quando se diz “eu”, se
aponta para este ponto, não para a
cabeça (para o mental), pois, de
alguma maneira, temos consciência
de que o nosso eu se situa aí.
97
Não está isto próximo do que Damásio refere como sendo a genealogia da nossa regulação vital, os dois
movimentos que revelam o estado de vida do nosso organismo (o movimento de recuo, de fechamento e o
movimento de exploração e curiosidade), que já tive oportunidade de referir no início do presente capítulo?
98
Tal como já foi antes explicado com a apresentação das causas do medo (ponto 1.2.3 deste capítulo), a
avidyã é composta por quatro ramos que, tanto actuam individualmente, como em conjunto: Asmitā: ego;
Rāga: fazer exigências; Dvesa: rejeitar coisas; Abhinivesa: medo.
208
3. Higher Self – Ego
Este? ou Este?
Mente
Consciente
Subconsciente
Ilustração II.10 – Higher Self e Ego. Reprodução, adaptação e tradução de Jeffers (1991:193).
O HIGHER SELF:
- É a fonte de pensamentos e energia positivos, é o espaço da criatividade, intuição,
confiança, amor, doação… de tudo o que reside no “coração do coração”. É capaz
de um alto grau de sensibilidade e sintonia com a harmonia do universo.
O EGO
- É a fonte de pensamentos e energia negativos, é o depósito de todos os input
negativos, desde o tempo do nascimento até à actualidade.
- Precisa de uma atenção constante e não sabe dar.
A MENTE CONSCIENTE
- Envia ordens para o Subconsciente baseadas na informação que recebe do Higher
Self e do Ego.
209
- Pode escolher ouvir o Higher Self ou o Ego, mas, muitas vezes, não é consciente de
que está a ser conduzida pelo Ego. Mas, mesmo se existir essa consciência, a
mente consciente está tão habituada a ouvir o Ego que, nas práticas quotidianas, se
“esquece” de ouvir o Higher Self. Precisa por isso, de ser constantemente
recordada.
O SUBCONSCIENTE
- É o armazém de uma grande quantidade de informação. Tem acesso à Energia
Universal.
- Recebe ordens da mente consciente e acredita no que esta lhe diz, quer seja
verdade, ou não. Não questiona nem julga, não distingue o bem do mal.
- Utiliza a INTUIÇÃO99 para fazer a nossa ligação com o que procuramos.
A ENERGIA UNIVERSAL
- Sem a qual o mundo não existiria, produz a sensação de que não estamos sozinhos
e estamos ligados a coisas que são maiores do que nós.
- Aprender a confiar na energia universal assinala o fim do medo.
4. Eu e Eu, Eu Mesmo
Walt Whitman, poeta que celebra a natureza humana e a vida, distingue em si mesmo
três componentes – o Eu (self), a alma (soul), o Eu verdadeiro ou o Eu, Eu mesmo (real
me ou me myself) (Ribeiro Dias, 2000:125ss).
99
De acordo com Shallcross & Sisk (1989:3), a informação pode ser recebida por duas vias –
externamente, pela via dos sentidos, e internamente, pela via da intuição. Quando se usam os cinco
sentidos: presta-se atenção aos detalhes práticos e aos factos; está-se em ligação com as realidades físicas;
presta-se atenção ao momento presente, o que é dito ou feito; vêem-se os pormenores da vida quotidiana; as
experiências são realizadas passo a passo; deixa-se que os olhos digam à mente. Quanto se usa a intuição:
percebe-se com a memória e a associação; vêem-se padrões e significados; projectam-se possibilidades
para o futuro; usa-se a imaginação e lê-se nas entrelinhas; procura-se a imagem geral; têm-se palpites ou
ideias vindas de lado nenhum, deixa-se que a mente diga aos olhos.
210
O EU:
- É a personalidade, ou pathos – uma persona*, uma série infinitamente mutável de
identificações, revestida de uma couraça e com a máscara que o próprio escolhe.
A ALMA:
- Por oposição ao Eu, é o carácter ou ethos – a natureza desconhecida; o ser humano
como emergido do mundo das coisas.
5. Carácter e Persona*
CARÁCTER
- De presença pacífica, transforma e abre possibilidades e potencialidades.
- O ser suporta a acção.
- Guiado por: autenticidade, sentido, abertura, confiança, compaixão, coragem,
inclusão, equilíbrio/centração, vontade de criar valor; fluidez e adaptabilidade.
PERSONA
- De presença difícil, protege e limita possibilidades e potencialidades.
- O fazer suporta a acção.
- Guiado por: imagem, segurança, medo, interesse pessoal, fuga, exclusão, ganhar a
qualquer custo, distracção, resistência à mudança.
100
Persona era o nome da máscara que os actores do teatro grego usavam. Por extensão, designa um papel
social ou um papel interpretado por um actor - http://pt.wikipedia.org/wiki/Persona (24.04.08)
211
6. Ser Central e Centro do Nosso Centro
António Blay (1988:274-275), num livro sobre relaxamento consciente como técnica de
desenvolvimento de capacidades mentais e espirituais, ensina a capacidade de
aceitação pessoal, de abertura ao nosso Ser Central e ao Centro do nosso Centro. E
apresenta-os nos seguintes termos:
O SER CENTRAL
- É a evidência profunda de mim mesmo, a fonte inesgotável de energia, de amor, de
plenitude e de felicidade, a que se chega pela abertura da nossa dimensão
horizontal.
7. Condutor-Pedagogo-Mestre
E Ribeiro Dias, depois de nos conduzir pelos caminhos de muitos dos que, na história
das ideias, têm procurado exprimir o fundamental da pessoa na descoberta do contexto,
do lugar, do tempo e do sentido do mistério da nossa realização como seres humanos,
escreve sobre o MESTRE no último parágrafo do seu livro “A Realização do Ser
Humano”:
212
Sabendo agora que o nosso corpo pessoal se relaciona com o corpo do universo, que
o ego é a nossa máscara social e que o Ser é a essência do que somos (onde nem o
medo nem a ansiedade estão presentes), tudo indica, então, que o processo de
transformação de uma palavra de 4 letras (medo), numa palavra de 7 (coragem),
precisa de uma palavra de 3 – precisa do Ser. Procuro, por isso, traduzir na figura e
quadro seguintes o que encontro, leio, sinto e pressinto em comum nas reflexões
atrás desenvolvidas e que re-asseguram e desafiam para a descoberta e encontro da
nossa imanência com a nossa transcendência.
Energia Universal
Centro do nosso Centro
Ishvara
Deus
Eu Real
Higher Self
Purusha
Carácter
A Alma
Eu Verdadeiro
Eu, Eu Mesmo
Energia Universal,
A Origem.
Centro do nosso Centro
A fonte do conhecimento.
Ishvara,
Donde recebemos a força e o sustento.
Deus
Transforma.
Consciência de ter recebido tudo e ter-se recebido todo na Origem.
Fonte de pensamentos e energia positivos – espaço da criatividade, intuição,
Eu Real
confiança, amor...
Higher Self
Conduz no caminho de vocação e missão.
Purusha
A faculdade de conhecer.
Carácter
Evidência profunda de mim mesmo.
A Alma
O que observa e toma consciência da mudança, a clareza total.
Eu Verdadeiro
Capaz de sintonia com o universo.
Eu Eu Mesmo
A experiência de um “coração desperto”.
A centelha do divino de actua em nós.
Deseja participar na realização do Universo.
Pessoa Pública Protege.
Eu Privado A personalidade – couraça e máscara.
Mente Consciente O mental, o psiquismo, uma interpretação da vida pessoal, subjectiva e única
Ego – é fonte de separação entre as pessoas; cria o sofrimento.
O Eu dos Resultado da interacção entre as nossas experiências interiores ou exteriores.
Acontecimentos O deixar-se levar por forças exteriores.
O Eu das Conjunturas Fonte de pensamento e energia negativos.
Tabela II.3 – Síntese de “Todos os nomes do Ser”.
213
2.2 Contornos do Desenvolvimento Humano
Citando Gilberto Gallopin, Max-Neef (1993:98) identifica três versões possíveis do futuro
da humanidade. A primeira, a da possibilidade de extinção total ou parcial da espécie
humana, como resultado da destruição do meio ambiente ou de um holocausto nuclear.
A segunda, de que já há tantos sinais, a da barbarização do mundo, como resultado de
uma distância que cada vez mais separe os poucos muito ricos (encerrados em
diversos tipos de espaços-fortalezas protectoras – legais, económicos, habitacionais,
comportamentais, etc.), dos imensos muito pobres que se estendam para lá dessas
defesas. A terceira, mas que implica uma mudança de racionalidade, a da possibilidade
da grande transição e transformação de uma dominante da competência económica a
princípios da solidariedade de quem aprende a viver junto.
214
É esta terceira versão do futuro aquela que aqui se quer sonhar, a que entendo estar
presente na definição de desenvolvimento humano acima colocada. Por isso (e embora
sejam como peças de puzzle que só fazem sentido pela relação que estabelecem com
todas as outras), vou utilizar as suas palavras e expressões-chave para melhor
perceber o alcance do desafio que provoca.
1. Desenvolvimento Humano
101
Para Prigogine, “as estruturas dissipativas são sistemas dinâmicos sujeitos a transformações que vão do
aparentemente caótico ao progressivamente mais ordenado a partir do momento em que tem lugar uma
nova situação. Todo o sistema aberto funciona nos limites entre a estabilidade e a instabilidade devido às
flutuações de energia. As estruturas dissipativas pressionam o sistema vivo para poder avançar mediante a
mudança que gera a instabilidade para chegar a conseguir uma nova estabilidade numa fase mais
avançada e complexa. Desse modo o sistema desenvolve-se mediante estádios de ordem, desordem e
reordenação permanente” (Torre, 2008:7).
215
É por isso que o melhor desenvolvimento é o que, elevando a qualidade de vida das
pessoas, consegue satisfazer adequada e harmonicamente as NECESSIDADES HUMANAS
102
FUNDAMENTAIS - um desenvolvimento que ultrapasse a racionalidade económica e
comprometa o ser humano na sua totalidade (Max-Neef, 1993).
Um processo não linear, não fragmentário, não somatório, não desagregado. Porque
cada indivíduo é um ser sempre incompleto (Freire, 2000).
102
De acordo com Max-Neef (1993: 21-23), as necessidades humanas são múltiplas e interdependentes,
mas são as mesmas em todas as culturas e em todos os tempos. O que muda são os “satisfactores” de
necessidades, não as necessidades humanas. Por exemplo, alimentação e abrigo não são necessidades, mas
satisfactores da necessidade fundamental de subsistência. Um dos aspectos que define uma cultura são as
escolhas dos seus satisfactores – quantidade, qualidade e/ou possibilidades de acesso.
216
que, pela na dinâmica das inter-relações de crescimento, o mundo pode mudar também
(Max-Neef, 1993; Azevedo & Gil da Costa, 2005).
4. Totalidade complexa
Um desenvolvimento humano que passa pelo corpo mas que, transpondo a dimensão
visível de tudo o que somos (Feitosa, 1999:70), INTEGRA POTENCIALIDADES ESPECÍFICAS
(o conhecimento, o emocional, o espiritual, o sensorial e o extra-sensorial, o
simbólico...) em equilíbrio e harmonia.
217
- as vias usadas por uma mundialização baseada na dominação que, sob
múltiplas formas, levam a tantos tipos de colonização e escravidão;
- o conhecimento vindo de um certo tipo de alfabetização e/ou ciência que
leva à perda de outros saberes;
- a hiper-especialização que leva à perda de aptidões do ser humano e da sua
capacidade para enfrentar o destino;
- o individualismo, o egocentrismo e a diminuição da responsabilidade
individual que levam à destruição e perda de solidariedades e do respeito
pela alteridade (Morin, 2006).
“Espero que chegue o dia em que cada um de nós seja o suficientemente valente para
poder dizer com toda a honestidade: “Sou, e porque sou, tornei-me parte de…”. Parece-
me que este é o caminho correcto a seguir se queremos pôr fim a uma maneira estúpida
de viver” (Max-Neef, 1993:99).
218
“Os gastos reduziam-se ao mínimo, as meninas eram baratas e viajavam
no porão dos barcos em grandes caixotes acolchoados. Sobreviviam
assim durante semanas, sem saber para onde iam nem porquê, só viam a
luz do sol quando lhes calhava receber lições do seu ofício. Durante a
travessia, os marinheiros encarregavam-se de as treinar e, ao
desembarcarem em São Francisco, já tinham perdido toda a sua
inocência. Algumas morriam de disenteria, cólera ou desidratação; outras
conseguiam saltar para a água nos momentos em que as levavam à
coberta para as lavar com água do mar. As restantes ficavam presas, não
falavam inglês, não conheciam essa nova terra, não tinham a quem
recorrer (...). Eram recebidas no cais por uma antiga prostituta, a quem o
ofício deixara uma pedra negra em lugar do coração. Levava-as batendo-
lhes com uma varinha, como gado, pelo centro da cidade, diante dos olhos
de quem quisesse ver. Assim que atravessavam o umbral do bairro
chinês, desapareciam para sempre no labirinto subterrâneio de quartos
ocultos, corredores falsos, escadas sinuosas, portas dissimuladas e
paredes duplas”.
Isabel Allende, “Filha da Fortuna”.
Ilustração II.14 – A desumanização nas histórias dos homens.
Em primeiro lugar, e para não perder de vista a nossa herança universal e o quanto
cada ser humano existe pela interacção com os outros seres humanos e com o mundo,
começo por uma breve referência ao Modelo Ecológico de Bronfenbrenner (Papalia et
al, 2001:14). Quebrando as barreiras entre as ciências sociais e criando pontes entre as
suas diferentes disciplinas, parte do indivíduo e identifica cinco contextos de
desenvolvimento, ou cinco níveis interligados de influência ambiental (ilustração II.15):
219
c) O EXOSSISTEMA – diz respeito a ligações entre dois ou mais contextos, sendo que
pelo menos um deles só afecta indirectamente porque o indivíduo não está nele
envolvido.
d) O MACROSSISTEMA – feito dos padrões culturais, engloba crenças dominantes,
ideologias, sistemas económicos e políticos.
e) O CRONOSSISTEMA – acrescenta a dimensão tempo e, com isso, a influência da
mudança, ou da estabilidade, no indivíduo e no meio.
Indivíduo
MICROSSISTEMA
MESOSSISTEMA
EXOSSISTEMA
MACROSSISTEMA
CRONOSSISTEMA
220
IDENTIDADE, construída interactivamente a partir das relações sociais, não pode ser
definida como um núcleo estável e permanente da personalidade, mas como o
“conjunto das relações que o indivíduo mantém com os outros objectos sociais
(pessoas, grupos, instituições, valores, etc.)” (Abad Márquez, 1993:41).
3. O conceito de pessoa
Mas, o que quer dizer “SER PESSOA”? Resumo, a partir de Viktor Frankl, algumas
daquelas que ele mesmo denomina serem “teses sobre a pessoa em busca de sentido”
(Frankl, 1994:106-115):
- Cada pessoa é totalmente UM SER NOVO – porque em cada pessoa que nasce se
inscreve a existência de um novo ser.
- A pessoa é ESPIRITUAL – porque existe para lá do seu organismo psicofísico.
- A pessoa representa um ponto de INTERACÇÃO ENTRE TRÊS NÍVEIS DE EXISTÊNCIA
– o físico, o psíquico e o espiritual.
- A pessoa é DINÂMICA – porque é na sua capacidade de se distanciar do
psicofísico que se manifesta o espiritual.
- A pessoa é capaz de se TRANSCENDER e de se enfrentar a si mesma.
221
- A existência da pessoa é um existir de acordo com um SENTIDO, mesmo que
desconhecido.
Com uma concepção que reduz o elitismo e que, pela valorização e interpretação de
diferentes sociedades relativamente às aptidões humanas, enfatiza a vertente
intercultural, Gardner fez uma proposta de redefinição da cognição humana como
habilidade plural para resolver e criar produtos (Gardner, 1999, 2006; Sisk & Torrance,
2001; Goleman, 2006, Salgado Gama, 1998; Gáspari & Schwarts, 2007). É o conceito
de INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS (linguística, musical, lógico-matemática, espacial, corporal-
cinestésica, interpessoal, intrapessoal103) que, enquanto alternativa para o conceito de
103
Divididas em dois grupos (do primeiro fazem parte as inteligências linguística, musical, lógico-
matemática e espacial; do segundo, as inteligências corporal-cinestésica, interpessoal, e intrapessoal), as
inteligências múltiplas apresentam as seguintes características globais: são relativamente independentes
mas raramente funcionam de forma isolada; eventuais melhorias ocorridas numa das inteligências têm
efeitos positivos na globalidade das funções cognitivas; do desenvolvimento das faculdades individuais
pode decorrer o progresso do sujeito colectivo e da própria sociedade (Gáspari & Schwarts, 2007):
Inteligência linguística – capacidade de lidar com sons, ritmos e significados das palavras, percepção das
diferentes funções da linguagem; habilidade para usar a linguagem para convencer, agradar, estimular
ou transmitir ideias.
Inteligência musical – sensibilidade para ritmos, texturas e timbre; habilidade para apreciar, compor ou
reproduzir uma peça musical.
Inteligência lógico-matemática – capacidade para lidar com padrões, ordem e sistematização; habilidade
para explorar relações, lidar com séries de raciocínios, reconhecer problemas e resolvê-los.
Inteligência espacial – capacidade para perceber o mundo visual e espacial de forma precisa; habilidade
para manipular formas ou objectos mentalmente e para criar tensão, equilíbrio e composição numa
representação visual ou espacial.
Inteligência corporal-cinestésica – habilidade para resolver problemas ou criar produtos através do uso de
parte ou de todo o corpo, para controlar os movimentos do corpo e manipular objectos com destreza,
para usar a coordenação grossa ou fina em desportos, artes cénicas ou plásticas.
Inteligência interpessoal – capacidade para entender as necessidades e sentimentos dos outros; habilidade
para entender e responder adequadamente a humores, temperamentos, motivações e desejos de outras
pessoas.
Inteligência intrapessoal – correlativo interno da inteligência interpessoal; habilidade para ter acesso aos
próprios sentimentos, sonhos e ideias, discriminá-los e usá-los na solução de problemas pessoais;
habilidade para formular uma imagem precisa de si próprio e usar essa imagem para funcionar de
forma efectiva; só é observável através dos sistemas simbólicos das outras inteligências porque é a
mais pessoal de todas as inteligências.
Observação – Dorothy Sisk e Paul Torrance (2001) desenvolvem o conceito de INTELIGÊNCIA ESPIRITUAL
que definem como sendo a capacidade de auto-consciência profunda, das dimensões do self – não só
como corpo, mas como mente-corpo e espírito; habilidade para a reflexão sobre questões inerentes à
própria existência – finitude, transitoriedade, transcendência.
222
inteligência como capacidade inata, geral e única do tipo QI, o conceito de inteligências
múltiplas amplia a compreensão da pessoa total.
223
a) É UM PROCESSO, não um destino, seleccionado pelo organismo humano quando
é inteiramente livre para se mover em qualquer direcção.
d) Implica uma TENDÊNCIA PARA VIVER PLENAMENTE CADA MOMENTO – a pessoa não
é um controlador-adaptador a ideias pré-concebidas, mas um participante do
processo de vivência existencial.
6. O conceito de felicidade
De acordo com Peña y Lillo (1991), a felicidade, considerada por muitos como sendo o
objectivo último da existência humana, só por poucos é percebida como prémio da auto-
realização pessoal e da plenitude de uma vida. Utilizando os contributos de Ortega,
Julián Marias, Fromm, May e de muitos outros cientistas e filósofos que, ao longo da
história, se têm interrogado sobre este tema complexo e multifacetado, este autor
procura mostrar tanto o que dela nos aproxima como o que não nos permite alcançá-la.
224
- A felicidade é uma ATITUDE PERANTE A VIDA, coincide com o nosso próprio eu. Ser
feliz é uma aceitação de si mesmo e da vida, com as suas luzes e as suas sombras,
os seus dons e os seus limites.
- A felicidade não é um facto moral, mas TEM UMA CONOTAÇÃO ÉTICA. Somos
responsáveis pela nossa felicidade. Em última instância, aprender a ser feliz
significa saber viver.
225
participando na complexidade do cosmos” (Csikszentmihalyi, 1998:10) 104. E argumenta
que o que fazemos durante um dia normal (o que absorve a nossa energia psíquica e
proporciona a informação que atravessa a mente em cada dia), pode dividir-se em três
grandes categorias de actividades – PRODUÇÃO, MANUTENÇÃO E ÓCIO. São as escolhas
feitas dentro destes parâmetros que determinam a configuração dos nossos dias – uma
massa indistinta e amorfa, ou, como diz o autor, uma obra de arte.
104
Para este autor, poucas vezes sentimos a serenidade que se produz quando, havendo metas claras, o
coração, a vontade e a mente estão em harmonia. Estes momentos excepcionais são estados de fluidez,
aqueles que fazem com que uma vida seja plena: a pessoa está completamente centrada; a sensação de
tempo fica distorcida; desaparece a consciência de si; a pessoa sente-se mais forte que habitualmente e
sente a plenitude da experiência. É possível melhorar a qualidade de vida se nos assegurarmos de que
objectivos claros, capacidades à altura das oportunidades de acção e as restantes condições dos estados de
fluidez formam o mais possível parte da vida quotidiana.
226
seu lugar dentro de nós; na CRIAÇÃO, tornamo-nos activamente conscientes do nosso
eu constantemente criador e criativo; na CELEBRAÇÃO, gozamos o nosso ser unificado.
Em resumo:
- Cada ser humano (uno, total e pluridimensional) existe na e pela interacção
consigo mesmo, com os outros seres humanos e com o mundo.
- Pela satisfação das necessidade e pelo desenvolvimento das faculdades
individuais se gera o progresso do sujeito colectivo, se abrem possibilidades de
liberdade, auto-realização e auto-superação.
- A felicidade é abertura da consciência, aceitação de si mesmo e da vida.
- Viver plenamente é processo contínuo de descoberta de sentido, de abertura e
transformação, sinal duplo de distinção e de identificação com todos os outros e
com a humanidade.
Dabrowski (Sisk & Torrance, 2001:24), polaco, psicólogo e psiquiatra, foi prisioneiro dos
Nazis e dos Comunistas durante a segunda guerra mundial. Incapaz de compreender a
crueldade, a superficialidade e a falta de compaixão, estudou a biografia de pessoas
eminentes que manifestaram valores universais e que, em muitas circunstâncias,
experimentaram o sofrimento e a rejeição por causa dos seus valores e das suas
acções. Convencido de que os conflitos internos são parte da luta pessoal em direcção
227
ao desenvolvimento, sugere que os níveis mais altos implicam uma mudança no modo
de pensar e de estar no mundo.
Maslow, que, tal como ele próprio conta, tinha pensado em dar ao seu livro “Motivação
e Personalidade” o título de “Alturas Máximas da Natureza Humana” por ser a frase que
melhor condensaria a sua tese, estudou, por razões de ordem científica, ética, moral e
228
pessoal os problemas da saúde mental. Apresenta os seguintes graus dinâmicos de
auto-realização105 (Maslow, 1991; Guenther & Combs, 1980:137-142):
PESSOAS NÃO REALIZADAS: vivem pelo princípio da escassez, ao nível das necessidades
deficitárias (manutenção fisiológica, segurança; amor, afeição e pertença a
alguém ou a um grupo, auto-estima e estima pelos outros), em constante luta
para alcançar o que necessitam e lhes faz falta.
PESSOAS EM VIAS DE REALIZAÇÃO: vivem ao nível das metanecessidades (necessidades
de crescimento e necessidades do ser, necessidades de significação, sentido,
auto-suficiência, naturalidade, justiça, beleza, conhecimento, auto-realização).
OS AUTO-REALIZADOS: vivem princípio da fartura, parecem ter o suficiente para manter
os seus processos de vida, não precisam ocupar todo o seu tempo e esforço a
preencher lacunas na sua vida e são livres para crescer.
OS TRANSCENDENTES: vivem numa economia de excesso. São capazes de ver os
lugares e os momentos para as grandes mudanças e são capazes de as realizar
e desencadear.
Deepak Chopra (2001:28-29), numa redefinição dos conceitos de saúde e das relações
corpo-espírito, parte do princípio de que o sistema nervoso humano dispõe de sete
respostas biológicas que correspondem a sete níveis de experiência divina. Apresenta,
assim, sete níveis de realização:
105
De acordo com este autor, as necessidades humanas, que são inatas, podem ser representadas numa
hierarquia em termos da sua potência – quanto mais na base de situar a necessidade, maior é a sua força;
quanto mais alta se situar, menor a sua força, mas também mais distintamente humana se torna pois só os
seres humanos possuem as necessidades mais elevadas (Maslow, 1991; Guenther & Combs, 1980).
229
Nível 3 – de paz, tranquilidade e reflexão / RESPOSTA DO SERENO ENTENDIMENTO: a vida
é realizada através da paz, do equilíbrio, aceitação própria e silêncio interior.
Nível 4 – de introspecção, compreensão e perdão / RESPOSTA INTUITIVA: a vida é
realizada através de discernimento, empatia, tolerância e perdão.
Nível 5 – de aspiração, criatividade e descoberta / RESPOSTA CRIATIVA: a vida é
realizada através da inspiração, expansão da criatividade no campo das ciências
ou das artes e da descoberta sem limites.
Nível 6 – reverencial, de compaixão e amor / RESPOSTA VISIONÁRIA: a vida é realizada
através da veneração, compaixão, serviço devotado e amor universal.
Nível 7 – de unidade sem limites / RESPOSTA SAGRADA: a vida é realizada através da
totalidade e da unidade com o divino.
Kohlberg (Patrício, 1993:144; wikipedia, 2007106) criador da teoria dos estágios morais,
postula uma sequência universal em que o nível mais alto, o da maturidade moral, só
pode ser muitas vezes alcançado pelo adulto.
106
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lawrence_Kohlberg, 18.03.2007
230
Fase 4 – moralidade do sistema social: regência pela lei e pela autoridade legal.
3º Nível – PÓS-CONVENCIONAL: a pessoa é capaz de perceber que a norma existe para o
bem, age em função do bem e não da norma e começa a perceber os conflitos entra as
regras e o sistema.
Fase 5 – estágio da moralidade dos direitos humanos: regência pelos acordos
sociais e pelos direitos individuais; subordinação do indivíduo à sociedade.
Fase 6 – estágio dos princípios éticos universais: regência pelos princípios morais
que o próprio dá a si mesmo; perspectiva da posição moral do indivíduo
racional.
231
EXPERIÊNCIA CRIADA PELA ACTIVIDADE, através da fusão entre a necessidade
motivacional e a perspectiva. Assim, e utilizando o trabalho de diversas proveniências
(tal como o de Maslow e de William James, o sistema Hindu do Yoga Kundalini*, ou os
escritos de místicos como João da Cruz e Teresa de Ávila), apresenta um modelo
composto por dez estádios ou facetas do despertar da identidade do espírito humano
(tabela II.5).
Cristo Martins (1996), no seu trabalho “Pistas para a Realização do Humano”, explica
que só podemos usar o que conscientemente possuímos pois todo o potencial e riqueza
107
http://wikipedia.org/wiki/M_Scott_Peck (15.01.07)
232
latentes precisam ser despertos antes de poderem ser utilizados. Por isso, se, por um
lado, é na medida da consciência de si (reguladora da abertura e crescimentos
humanos) que o Homem evolui, também é pela intensidade da interacção dinâmica
entre o fisiológico, o psicológico e o espiritual que se determina o grau de
autoconsciência de cada pessoa e se marca o estádio da humanização. Desta matriz
resultam seis níveis de desenvolvimento da humanidade que correspondem também a
seis níveis de autoconhecimento:
233
- deixar de lado a obrigação de nos comportarmos como os outros pensam que
nos deveríamos comportar;
- aceitar os outros e confiar em nós mesmos;
- nos abrirmos à própria experiência;
- expressar em cada momento a liberdade de sermos nós próprios;
e, em todas elas se distingue
- um movimento – da homogeneidade à unicidade;
- um caminho – do ego ao Ser, da não consciência à consciência; da reacção à
intencionalidade, do medo ao sentido da existência,
- um encontro – com o Eu, com os Outros, com o Universo, um encontro com a
própria transcendência,
procuro conjugar no quadro seguinte como entendo serem os paralelos entre as fases
níveis ou estágios sugeridos, estas diferentes abordagens.
Hierarquia de Serviço da
Egocentrismo Grupo Social Auto-realização
Dabrowski Valores Humanidade
Em vias de
Não Realizados Auto-realizados Transcendentes
Maslow Realização
R. Sereno Entendimento
R. Visionária
Chopra R. de Combate ou Fuga Resposta Reactiva Resposta Intuitiva
Resposta Sagrada
Resposta Criativa
234
2.3 Síntese do desenvolvimento humano
“Imagine a woman who believes it is right and good she is a woman.
A woman who honors her experience and tells her stories.
Who refuses to carry the sins of others within her body and life.
Imagine a woman who believes she is good.
A woman who trusts and respects herself.
Who listens to her needs and desires, and meets them with tenderness and grace.
Imagine a woman who has acknowledge the past’s influence on the present.
Imagine a woman who has walked through her past.
Who has healed into the present.
Imagine a woman who authors her own life.
Who refuses to surrender except to her truest self and to her wisest voice.
Imagine a woman who names her own gods.
A woman who imagines the divine in her image and likeness.
Who designs her own spirituality and allows it to inform her daily life.
Imagine a woman in love with her own body.
A woman who believes her body is enough, just as it is.
Who celebrates her body and it rhythms and cycles as an exquisite resource.
Imagine a woman who honors the face of the Goddess in her own changing face.
A woman who celebrates the accumulation of her years and her wisdom.
Who refuses to use the precious energy disguising the changes in her body and life.
Imagine a woman who values the women in her life.
A woman who sits in circles of women.
Who is reminded of the truth about herself when she forgets.
Imagine yourself as this woman”.
Patricia Lynn Reilly, 1995108
1.
A inquietação do Ser é a percepção da própria transcendência – porque, apesar de
tudo, alguma coisa chama; porque, apesar de tudo, se sabe ser mais; porque, apesar
de tudo, existe a certeza interior (mesmo que não manifesta), de que as coisas e a vida
podem (e devem) ser diferentes. É o saber que, apesar de tudo, contra tudo e contra
todos, é urgente buscar o próprio caminho e que (quando se começar a fugir do
caminho “correcto”, “aprovado”, “normal”), muitas vezes vai ser preciso caminhar só. É o
sentir-se, e apesar de tudo também, um pouco D. Quixote que, desejando entregar-se
completamente a um sonho e sem se importar com o cepticismo ou a troça dos outros,
anseia por se despir de todas as coisas aprendidas e, com isso, chegar a descobrir e
conhecer o Ser (Ribeiro Dias, 2000; Boff, 1998; Moffit, 2003a; Blay, 1988; Jeffers,
1991). Assim, e utilizando a universalidade das explicações sobre a força dessa
transcendência, a inquietação do Ser acontece quando:
108
http://stacywest.com/newinspiration.html
235
- se sente o apelo das necessidades do ser (Maslow, 1991);
- se percebe que ser homem é estar preparado e orientado para algo que não é ele
mesmo (Frankl, 1994:37);
- se vislumbra o sentido de um destino criativo (Wechsler, 1996);
- se sente o “homem educável” dentro do próprio eu (Trigo & Kon-Traste, 2001);
- se sente a urgência da resposta ao convite “vai ao encontro de ti mesmo”
(Azevedo & Louro, 2006);
- se sabe ter talentos escondidos (Mt, 25, 24-30) que podem e só esperam por
serem trazidos à luz;
- (...)
2.
“Imagina uma mulher que é a autora da sua própria vida, que recusa rodear-se de
coisas que não sejam o seu próprio eu e a sua voz mais sábia”, diz o poema de Patricia
Lynn Reilly que acima transcrevi. Foi isso que tentei fazer ao longo da reflexão que
neste ponto do capítulo tenho vindo a fazer. Por isso agora, inspirada em Sérgio (2005),
Morin (2003; 2006), Frankl (1994), Bronfenbrenner (Papalia et al, 2001), Lowen (1984,
1997), Max-Neef (1993) e outros, e considerando que as mudanças globais começam
por ser mudanças pessoais, apresento a minha própria definição deste conceito:
DESENVOLVIMENTO HUMANO
Movimento em espiral, consciente e intencional, com
ondas de repercussão que flúem entre os contextos
micro e macro, em princípio acessível a qualquer
indivíduo que, por criação própria e em busca de sentido
na sua totalidade complexa, rompe as barreiras da gente
cinzenta, sem graça e com medo, alarga as fronteiras da
desconfiança, da apatia e da mediocridade feita norma e,
Ilustração II.17 – Dinâmica do com isso, assegura a possibilidade de construção de
Desenvolvimento Humano.
mundos de alegria e de paz.
Contudo, quando aquele mesmo poema nos diz “imagina-te como sendo esta mulher”,
preciso fazer um pouco mais – preciso começar a perguntar o que se pode começar a
fazer para se ser assim. É isso que tentarei fazer nos próximos movimentos desta etapa
da pesquisa.
236
3. Campo de Criação
You must give birth to your images
They are the future waiting to be born.
Fear not the strangeness you feel
The future must enter you long before it happens.
Just wait for the birth
For the hour of new clarity.
Rainer Marie Rilke
Diversas são as áreas do conhecimento que podem estudar esta ligação entre o Medo
e o Desenvolvimento Humano. Contudo, porque o propósito desta pesquisa é chegar a
um conjunto de princípios educativos para, em contexto de Educação de Adultos, lidar
com o que ficou genericamente definido como Medo da Vida, julgo que, antes de mais,
importa fundamentar o que considero serem as áreas estruturadoras do campo de
criação aqui em causa e que, pela sua interacção sistémica, são via de construção do
humano e constituem o terreno em que o trabalho de campo desta pesquisa decorreu: a
EDUCAÇÃO DE ADULTOS, a
CRIATIVIDADE e a MOTRICIDADE
HUMANA (ilustração II.18).
109
Paulo Freire escreve: “é preciso (...) que tenhamos na resistência que nos preserva vivos, na
compreensão do futuro como problema e na vocação para o ser mais como expressão da natureza humana
em processo de estar sendo, fundamentos para a nossa rebeldia e não para a nossa resignação em face das
ofensas que nos destroem o ser. Não é na resignação mas na rebeldia em face das injustiças que nos
afirmamos” (Freire, 2000:87).
237
“Contribuir para criar condições para que todos os seres humanos, a começar
por cada um de nós, se desenvolvam em todas as suas capacidades, crescçam,
sejam, até à sua plena realização” (Ribeiro Dias, 2000:9).
Assim, e por força do carácter ambíguo ou, talvez, pol(iss)émico, com que muitas vezes
estes conceitos são utilizados, passo à definição mais detalhada da perspectiva que
está por detrás de cada um deles – para que fique clara a compreensão do papel que
aqui lhes é conferido; para que possa explicar como se interrelacionam e dão origem
àquilo que denomino “educação criativo-motrícia”.
EDUCAÇÃO:
- “É um processo contínuo do berço à tumba, do ser homem, porque se nasceu filho
de mulher, ao Ser Homem, porque se construiu, ou se conquistou, ou se aceitou, a
plenitude da realização humana” (Azevedo, 1997:16).
EDUCAÇÃO DE ADULTOS:
- “A totalidade dos processos organizados de educação, qualquer que seja o
conteúdo, o nível ou o método, quer sejam formais ou não formais, quer prolonguem
238
ou substituam a educação inicial ministrada nas escolas e universidades, e sob a
forma de aprendizagem profissional, graças aos quais as pessoas consideradas
como adultos pela sociedade a que pertencem, desenvolvem as suas aptidões,
enriquecem os seus conhecimentos, melhoram as suas qualidades técnicas ou
profissionais, e fazem evoluir as suas atitudes ou o seu comportamento na dupla
perspectiva de um desenvolvimento integral do homem e de uma participação no
desenvolvimento social, económico e cultural, equilibrado e independente”
(Conferência Geral da UNESCO, Nairobi:1976, apud Rocha, 1988:199).
- “Os objectivos da educação de jovens e de adultos, vista como um processo ao
longo da vida, são o desenvolvimento da autonomia e o sentido de responsabilidade
das pessoas e das comunidades, de forma a reforçar a capacidade de lidar com as
transformações que ocorrem na economia, na cultura e na sociedade como um todo,
e a promover a coexistência, tolerância e a participação informada e criativa dos
cidadãos nas suas comunidades; isto é, para capacitar as pessoas e as
comunidades a assumirem o controlo do seu destino e da sociedade de forma a
enfrentar os desafios que se lhes colocarem. É essencial que as abordagens da
educação de adultos sejam baseadas na herança das próprias pessoas, cultura,
valores e anteriores experiências e que as diversas formas com que estas
abordagens são implementadas capacitem e encorajem cada cidadão a tornar-se
110
activamente envolvido e a ter uma voz” (Unesco, 2003).
Não tendo pretensão, espaço ou interesse em trazer aqui uma síntese da história e dos
grandes paradigmas em que a Educação se manifesta, procurarei antes:
110
(http://www.unesco.org/education/uie/confitea/declaeng.htm: 2003-02-04): “The objectives of youth and
adult education, viewed as a lifelong process, are to develop the autonomy and the sense of responsibility
of people and communities, to reinforce the capacity to deal with the transformations taking place in the
economy, in culture and in society as a whole, and to promote coexistence, tolerance and the informed and
creative participation of citizens in their communities, in short to enable people and communities to take
control of their destiny and society in order to face the challenges ahead. It is essential that approaches to
adult learning be based on people’s own heritage, culture, values and prior experiences and that the
diverse ways in which these approaches are implemented enable and encourage every citizen to be actively
involved and to have a voice”.
239
- Por outro, e a partir da contribuição de alguns autores que, de uma forma ou
outra, têm acompanhado o meu percurso, apontar o que considero serem alguns
dos eixos estruturadores desta área do campo de criação aqui em causa, bem
como da forma de pensar-sentir-agir com que procuro construir a matriz do
entendimento do que é ser educador.
UNESCO
Palavras-chave:
240
- reduzidos à condição de objecto pela pressão de um qualquer modelo, de uma
qualquer norma, de uma qualquer convenção, de um qualquer poder;
- com a pressão do que (ou de quem) recusa o que (ou quem) se situa nos limites
ou nas franjas do sistema;
- com a pressão do que (ou de quem) repudia também qualquer salto que abdique
das (in)certezas do passado, que procure desafiar o presente e corra o risco de
integrar o desconhecido e o inédito (Shallcross, 1996).
Estamos, desta maneira, muito longe do que há muito se vem sabendo (mas, talvez, só
no mental) ser a importância da imaginação e da criatividade para a vivência* e
consolidação do “APRENDER A SER”, do “APRENDER A CONHECER”, do “APRENDER A FAZER”
e do “APRENDER A VIVER JUNTOS” (Delors, 1996).
241
“A fórmula é conter-se dia após dia (...). Treinar o cérebro para treinar os músculos.
Conter as emoções, conter a palavra, baixar a voz (...). Treinar os músculos para não
revelar mais do que desejamos, manobrar o olhar e o gesto da boca para mostrar ou
deixar de mostrar. Um ser humano educado é um ser humano controlado. Assim, pouco
a pouco, com perseverança e esforço, se chegará à maturidade com almas parecidas
com esses corpos treinados colectivamente por uma cultura complexa e abarcadora que
ensina a manejar a linguagem corporal de que, muitas vezes, não temos nem
consciência” (Cajiao, 1996:32).
Numa tentativa, ainda que incompleta, de encontrar resposta(s), releio alguns autores.
E deles registo e realço o que, no campo da Educação, pode, não só estabelecer o
vínculo com as dimensões próprias da Criatividade e da Motricidade Humana111, como
também, e enquanto tal, servir de fundamento-interligação com o ponto de reflexão
seguinte:
111
Que adiante também serão explicitadas.
112
O sublinhado é meu.
242
- O sentido e a tarefa da educação realizam-se no seu PROCESSO – alfabetizar-
educar113, é CONSCIENTIZAR, é “estabelecer intimidade entre os saberes curriculares
e a experiência social”, é “aprender a escrever a própria vida como autor e como
testemunha da história”, é problematizar, é “correr o risco de pensar autenticamente”
(Freire, 2003:10-11; 61).
3.2 Criatividade
CRIAR:
- “Inventar possibilidades” (Marina, 1993).
CRIATIVIDADE
- “Uma maneira especial de pensar, sentir e actuar que conduz a um resultado ou
produto original, funcional ou estético, quer seja para o próprio sujeito ou para o
grupo social a que pertence (Aldana, 1996).
- “Concepção da criatividade em termos de auto-organização e vibração quântica
transformadora - criatividade é deixar rasto: algo como uma energia vibracional que
flúi do nosso interior ao conjugar potenciais mentais, emocionais, corporeidade e
transpessoais (Torre, 2008:9).
PERSONALIDADE CRIADORA
- “Tenho a impressão de que o conceito de criatividade e o de pessoa sã, auto-
realizada e plenamente humana estão cada vez mais próximos um do outro e talvez
sejam o mesmo” (Maslow, Apud Moyer, 1995:84).
113
O sublinhado é meu.
243
UMA FÓRMULA PARA A CRIATIVIDADE:
- C = ƒa (c, i, a)
Criatividade é uma função de uma atitude interpessoal em direcção ao uso benéfico
e positivo da criatividade em combinação com três factores: conhecimento,
imaginação e avaliação” (Noller, Apud Isaksen, 1994:6).
114
Porque nenhuma definição de criatividade é capaz de, por si só, cobrir toda a complexidade do conceito,
Mel Rhodes (1961), considerando que as diversas definições da criatividade não são mutuamente
exclusivas, procurou identificar os vários temas presentes. Mais recentemente, Scott Isaksen, pela
utilização de um diagrama de Venn, aqui reproduzido, procurou mostrar a relação existente entre eles. É
aquilo a que normalmente se chama os 4 P’s da Criatividade (Pessoa, Processo, Produto, Pressão) (Isaksen,
1994).
244
Na primeira, há mais de cinquenta anos, as principais preocupações centravam-se no
interesse em desmistificar o fenómeno a partir de uma PERSPECTIVA PSICOLÓGICA.
Autores como Guilford e Torrance enfatizaram a pesquisa sobre o pensamento criativo,
procuraram compreender as suas componentes e sistematizar a criação de um conjunto
de estratégias metodológicas que o pudessem estudar e estimular. Um dos
instrumentos mais conhecidos é o “brainstorming”115 que, tendo sido proposto por Alex
Osborn, encontrou em Sidney Parnes e em David de Prado a possibilidade de um
grande desenvolvimento e de utilização em contextos tão diversos como o do mundo
empresarial e da educação.
PESSOA PROCESSO
Características Operações Que
Das Pessoas Realizam
PRESSÃO
Clima, Cultura,
PRODUTO Contexto
Resultados
115
“Chuva de ideias” em Português e “torbellino de ideas” em Castelhano.
245
produção e de análise de opções, conduzam a soluções originais e eficazes em
diversas áreas da vida quotidiana.
116
http://www.manizales.unal.ed.co/procrea/saturnino1.php. 2006
246
componentes essenciais – de SENSIBILIDADE, isto é, da possibilidade de utilizar toda a
riqueza dos sentidos como ponto de partida para o contacto da pessoa consigo mesma,
com os outros e com o mundo; de COMPROMISSO COM A ACÇÃO, isto é, de ter como
propósito algum tipo de transformação da realidade (Aldana, 1996). E sensibilidade e
acção é, exactamente, o que é preciso para estabelecer a ponte com a terceira área do
campo de criação aqui presente, a Motricidade Humana.
MOTRICIDADE HUMANA:
- “A energia para o movimento centrífugo e centrípeto da personalização. (...) É a
energia para o movimento intencional de superação (ou de transcendência)” (Sérgio,
Apud Sérgio & Toro, 2005:105).
- “Forma concreta de relação do ser humano com o mundo e com os seus
semelhantes (...). A motricidade refere-se (...) a sensações conscientes do ser
humano em movimento intencional e significativo no espaço-tempo objectivo e
representado, implicando percepção, memória, projecção, afectividade, emoção,
raciocínio. Evidencia-se em diferentes formas de expressão – gestual, verbal,
cénica, plástica, etc.” (Kolyniak, 2005:33).
247
• Breve história da construção do conceito de
motricidade humana
Herdeiros que somos de uma concepção do homem que, a partir dos sofistas e com os
pré-socráticos, Sócrates, Pitágoras e Platão, a era cristã, a Idade Média, Descartes...
faz a divisão entre corpo e espírito e acentua a ideia de “ter um corpo” como mero
instrumento da mente/espírito, é só com Husserl, em 1891, que se desenvolve o
conceito de “filosofia da fenomenologia” que, basicamente, posiciona o sujeito e o
mundo numa mesma situação e influenciando-se mutuamente. Recuperando, assim, a
concepção do ser humano como unicidade em comunhão com a natureza (própria das
antigas civilizações), é Merleau-Ponty, em 1945, e no desenvolvimento da
fenomenologia, que sublinha que a realidade corpórea do ser humano é a causa da
relação sujeito-mundo – o autor evolui para a ideia do “ser corpo” e para o entendimento
de que é na MOTRICIDADE HUMANA que operam todas as dimensões do ser humano.
Mais tarde, em 1986, Zubiri substitui o conceito de “sou corpo” pelo conceito de
“corporeidade” e introduz a noção de que a expressão não é algo que se tem, mas sim
consequência da corporeidade (Sérgio et al., s.d.).
248
História da Motricidade Humana
Husserl (1891)
• O sujeito constrói a realidade, a realidade
constrói o sujeito.
Merleau-Ponty (1945)
• “Ser corpo” – a motricidade do ser humano é a
configuração em que operam todas as dimensões
do ser humano.
249
percebidos em manifestações de diferentes indivíduos, e na sua forma singular, em que
se expressa uma configuração e um sentido específico, por isso único e irrepetível para
determinado indivíduo” (Kolyniak, 2005:33).
Corpo
Mental
Corpo
Emocional
Corpo
Cultural
Corporeidade(s)
Corpo
Físico
Motricidade
Corpo
Corpo
Mágico-Sensitivo
Inconsciente
Corpo
Transcendente
Ilustração II.23 – Relação entre os pilares da motricidade humana e as características do acto motrício.
250
7. ACÇÃO: qualquer acto intencional (interno e externo; observável e não
observável) – a interrelação entre pensamento, emoção, intenção, inquietude,
consciência, energia.
8. AMOR: o sentimento que nos integra, nos harmoniza, não só entre os seres
humanos, mas com Gaia e todo o sistema vivo planetário. Amar é encontrar na
felicidade do ser amado a própria felicidade.
À semelhança da sabedoria antiga dos hindus e dos lamas e do número sete como
símbolo de perfeição dinâmica nos egípcios, as dimensões da corporeidade
correspondem ao entendimento de que a identidade humana se sustenta em sete
corpos117. Enquanto DIMENSÕES QUE CONFIGURAM A CORPOREIDADE (pelo que se deveria
117
Outros autores apresentam também propostas deste tipo. Dois exemplos:
1) Considerando que o desenvolvimento humano se manifesta em aquisições progressivas e
aprendizagens específicas, Roldán Vargas (1997) identifica as seguintes esferas de desenvolvimento
das potencialidades humanas:
Esfera orgânica-maturativa – relacionada com as condições que, na ordem da interacção entre o
biológico e o ambiental (cultural), constituem o suporte do desenvolvimento nas outras esferas.
Implica desenvolvimentos de tipo físico e neurológico.
Esfera cognitiva – relaciona-se com aprendizagens de tipo intelectual. A meta coloca-se numa dupla
perspectiva: o desenvolvimento da capacidade de resolver problemas; o acesso a formas e
estruturas de pensamento que permitam ao ser humano compreender-se a si mesmo e ao mundo.
Esfera erótico-afectiva – em que se colocam aprendizagens ligadas à construção da identidade humana,
o autoconceito e em geral as relações vinculantes afectivas consigo mesmo e com os outros.
Esfero ético-moral – referida a aprendizagens que tocam com a construção de normas que permitam ao
indivíduo elaborar um projecto de vida e contribuir para o de outros. É o desenvolvimento do
sentido do bem próprio e do bem comum como requerimento para uma convivência sã e para o
desenvolvimento da autonomia, entendida como processo de auto-reflexão.
Esfera linguístico-comunicativa – que aponta para a aprendizagem e desenvolvimento da linguagem e
da comunicação, no plano oral e escrito, na pretensão de se aproximar do domínio dos processos
simbólicos, de diálogo e argumentação em que seja possível o entendimento e a compreensão.
Esfera política – que compromete a aprendizagem de formas de vida em comum. O desenvolvimento
desta esfera permite a construção de formas de organização da vida privada e da vida pública, a
construção da acção participativa com outros em áreas do bem comum e do bem próprio.
Esfera lúdica – nela se reconhece o sujeito da liberdade – liberdade de explorar, pensar, criar e
transformar. É o âmbito em que se inscreve o jogo, mas não se restringe a ele – é antes uma atitude
vital.
251
antes passar a falar de interacção de corproreidades), constituem uma complexidade
multidimensional que, tal como a música e a luz, se interpenetram e decompõem em
notas, cores ou tonalidades (Bohórquez e Trigo, 2006). São eles118:
252
Ilustração II.24 – Dimensões da corporeidade. Reprodução de Trigo (2006).
O que encontro, então, em comum entre estas três áreas – educação de adultos,
criatividade e motricidade humana –, como se interrelacionam e tornam campo de
253
criação da pesquisa, o que as torna “parceiros vitais” no processo do Desenvolvimento
Humano?
Cri
a
tiv
ida
de
na e
Hu cidad
ma
tri
Mo
Educação de Adultos
1. As suas AFINIDADES:
- Uma mesma natureza dinâmica.
- Uma mesma rejeição da redução do humano a aspectos instrumentais,
estritamente biológicos ou economicistas.
- Uma mesma consciência de si mesmo, dos outros e do universo.
- Um mesmo sentido ecológico, imanente-transcendente da construção da
existência humana.
- Uma mesma vontade de sentido de coerência entre diferentes facetas da vida.
- Um mesmo propósito de transformação, de correr o rico de mudar, de ir contra o
estabelecido e de compromisso com a acção.
2. As suas ESPECIFICIDADES:
- A Educação de Adultos é o terreno que cria condições, o contexto, o “ONDE”.
- A Criatividade é o provocador, o motor, a possibilidade, o “COMO”.
- A Motricidade Humana é o sujeito em relação, a percepção-consciência, o “O
QUÊ”.
254
- O Desenvolvimento Humano é o “PARA QUÊ” – é o sentido do movimento, a
autonomia-dependência, a transformação e a felicidade compartida.
Por isso, e de uma forma muito simples, é possível dizer que, para que o processo de
Desenvolvimento Humano seja desencadeado, é preciso a confluência de três factores:
um sujeito (o da Motricidade Humana), um terreno (o da Educação de Adultos), um
alimento e motor (o da Criatividade).
Em resumo, o campo de criação aqui em causa (aquele que pretende dar origem a um
conjunto de orientações didácticas para, em contexto de Educação de Adultos, lidar
com o medo) é, simultânea e redundantemente, o campo da educação criativo-motrícia
– isto é, da intervenção pedagógica a partir da criatividade e da motricidade. Por isso,
sempre que neste trabalho se fala em Educação de Adultos está-se a falar de (Trigo,
2006):
255
4. Educação Criativo-Motrícia
Ouso começar esta reflexão recriando, como síntese do até aqui apresentado e mote
para o que se vai seguir, os primeiros versículos do Evangelho de S. João. Que me
perdoem os teólogos o atrevimento por assim fazer o sumário da minha leitura das
referências recolhidas em diversos campos do saber, mas pareceu apropriado – porque
aqui procuro vislumbrar como fazer a (re)descoberta do Ser que, mesmo que imerso em
múltiplas camadas de medo(s), continua residindo em cada um de nós; porque aqui
procuro juntar o que, junto de diversos autores, pude encontrar sobre o processo de
(re)conversão de “Filhos do Medo” em “Filhos do Sol”; porque, finalmente, aqui procuro
compreender o que, de tudo isso, pode ser sinergeticamente desencadeado.
256
b) A segunda, em contraponto com a que anteriormente chamei “Vivendo com
Medo”, é aquela a que agora chamo “ConVIVENDO com o Medo”. Porque busca
o entendimento do que se (vai) conquista(ndo) em todo o processo que o
antecede, mas também lhe sucede, é a meta-caminho-meta sempre inacabada
do Desenvolvimento Humano, é a responsabilidade-compromisso ético do estar
no mundo, é a vocação ontológica para o ser mais – não feito, ou procurado,
como mera teoria, sonho ou ilusão, mas encontrado na experiência e na
sabedoria de quem já muito andou e sabe que não se é, mas se vai sendo.
119
Dado que, numa leitura mais abrangente, é imensa a quantidade de princípios-indicações-sugestões-
estratégias-exercícios sobre modos de promover o Desenvolvimento Humano que também podem ser
utilizados para lidar com o medo, vou sobretudo cingir a minha apresentação a autores que, explicitamente,
referem esses mesmos princípios-indicações-sugestões-estratégias-exercícios no contexto da inter-relação
entre o medo e o desenvolvimento humano.
257
4. O PRODUTO que, enquanto novo e com valor para todos e cada um, desemboca
na CONSCIÊNCIA DE SI, DO OUTRO, DO MUNDO.
Educação Criativo-Motrícia
PESSOA PROCESSO
Corporeidade Momentos da
Acção e da
Mudança
PRESSÃO
PRODUTO Eu-Outro-Cosmos
Consciência de Si,
Consciência do Outro
Consciência do Cosmos
• Pessoa / Corporeidade
258
manejar o nosso próprio processo de pensamento. É possível encontrar serenidade
120
(Elaine de Beauport, Apud Sisk & Torrance, 2001:39-40) .
Tendo em conta, como já atrás foi referido121, que (1) causa e efeito se confundem, (2)
requisito é também resultado e que, neste caso, (3) “Pessoa” também é “Produto”, de
que se precisa e o que acontece,
na dimensão Pessoa-
EXTRA-SENSORIAL Corporeidade?
•Intuição
•“insight”
•Eureka!
•Corpo mágico
1. Competências emocionais
básicas
SENSORIAL
•Vista
•Ouvido Definindo-a como capacidade de
•Tacto
•Gosto
•Olfato
reconhecer os nossos
•Quinestésico
sentimentos e os dos outros, de
Ilustração II.28 – A pessoa-corporeidade. nos motivarmos e de gerirmos
Reprodução de Trigo, E. (imagens de conferências públicas).
bem as emoções em nós e nas
nossas relações, Goleman
(1999:323-324) indica cinco competências emocionais e sociais básicas da inteligência
emocional122:
120
“I think we can teach people to remove the weight of worry and desperation and to find happiness in the
moment. We can reach out for joy, no matter how awful our circumstances. The Brain is either a crown of
thorns or an enchanted loom – depending on how you use it. You decide which one it’s going to be, you
choose what lens you want to use to look at life. This can be paradise, right now, if you know how to
manage your own thought process. It’s possible to find serenity” (Elaine de Beauport, Apud Sisk &
Torrance, 2001:39-40)
121
Ver no ponto 1 deste capítulo “Filhos do medo”, causas e efeitos do medo.
122
De acordo com Goleman (1999:335), cultivar uma competência ao nível neurológico significa extinguir
o velho hábito enquanto resposta automática do cérebro e substitui-lo pela nova. A fase final de mestria de
uma competência chega quando o velho hábito perde a sua condição de resposta por omissão e o novo
hábito toma o seu lugar. Regra geral é mais difícil mudar as atitudes profundas e os valores associados
subjacentes que mudar os hábitos de trabalho – a distância que medeia entre o comportamento de base da
pessoa e o novo comportamento tem uma enorme importância.
259
b) AUTOREGULAÇÃO – gerir as nossas emoções de modo que facilitem em vez de
interferirem com as tarefas que temos em mãos; ser consciencioso e protelar a
gratificação para atingir objectivos; recuperar bem da depressão emocional.
c) MOTIVAÇÃO – usar as nossas preferências mais profundas para avançar e nos
guiar para os nossos objectivos, para nos ajudar a tomar a iniciativa e sermos
altamente eficientes para perseverar face a contrariedades e frustrações.
d) EMPATIA – ter a percepção do que as pessoas sentem, ser capaz de adoptar a
sua perspectiva e cultivar laços e sintonia com uma grande diversidade de
pessoas.
e) APTIDÕES SOCIAIS – gerir bem as emoções nas relações e ler com precisão as
situações sociais; interagir com harmonia; usar essas competências para
persuadir e liderar, negociar e resolver disputas, para a cooperação e o trabalho
de equipa.
260
e) Inteligência intrapessoal – permite a confiança, a intencionalidade, o auto-
controle, a curiosidade e denotar a INDIVIDUALIDADE humana.
f) Inteligência espacial – permite utilizar o modelo mental de espaços da realidade
ecológica na ORIENTAÇÃO DE VIVÊNCIAS, provocando a substituição do eu
determinado pelo eu espontâneo e favorecendo a canalização de energias
sublimadas.
g) Inteligência corporal-cinestésica – permite a expansão de limites, colocar à prova
sentimento e valores, SUPERAR a inibição de viver experiências com plenitude.
h) Inteligência musical – permite a SENSIBILIDADE e a comunicação do homem no e
com o mundo real e a representação simbólica do ver-ouvir-sentir dos ritmos
internos do corpo harmonizado com o exterior.
i) Inteligência espiritual-existencialista – permite a elevação para lá da realidade
quotidiana, a resistência e a extrapolação dos limites sociais, a conexão e o
sentido de comunidade, a libertação de restrições, a experiência de liberdade
interior e do sentido da vida.
• Pressão / Eu-Outros-Cosmos
“As pessoas mudam quando já sofreram o suficiente para perceber que TÊM DE mudar,
quando já aprenderem o suficiente para perceber que QUEREM mudar; quando já
123
receberam o suficiente para perceber que SÃO CAPAZES de mudar” (Maxwell, 1993:63) .
Aparentemente simples, não é? Então, segundo Maxwell, para que haja mudança, é
necessário que exista: NECESSIDADE de mudar, VONTADE de mudar, CONFIANÇA na
possibilidade de mudar. Mas porque, relativamente às duas primeiras (necessidade de
mudar e vontade de mudar), já houve espaço para, nas dimensões anteriores,
123
“People change when they hurt enough they have to change; learn enough they want to change; receive
enough they are able to change” (Maxwell, 1993:63).
261
apresentar a respectiva fundamentação, vou agora centrar-me nas implicações da
terceira – a confiança na capacidade de mudar PORQUE se recebeu bastante.
OSMOS
EL C
YO
Ilustração II.29 – O contexto/pressão – interacção da pessoa consigo mesma, com os outros e com o cosmos.
Reprodução de Trigo, E. (imagens de conferências públicas).
1. A figura do educador
Volto a Leonardo Boff para compreender o que cria essa confiança na capacidade de
mudar e porque é possível mudar. E atrevo-me a recolher do que nele se encontra
disperso:
- porque existe um outro alguém que, dando-se conta da presença de uma
natureza singular que jaz escondida no seu discípulo, dando-se conta dos
pequenos sinais de inquietação pelo chamado do infinito, dando-se conta de
que o brilho dos olhos já contem a semente do renascer... não desiste e, com
firmeza, encontra forma de ajudar a superar o medo, de resgatar do cativeiro,
provocar e convocar, de despertar do que, afinal, é só um longo esquecimento
do caminho de uma vocação transcendente (Boff, 1998).
262
2. O papel do educador
São três os modos como, de acordo com Moffit (2002), o mestre pode contribuir para o
processo de mudança:
3. Estratégias do educador
Ruth Noller (1997) apresenta como estratégias para a acção eficaz de um Mentor:
263
- Uma CONSCIÊNCIA que encoraje a ser consciente, intuitivo, sensível aos
problemas, a usar todos os sentidos...
- Uma FLEXIBILIDADE que encoraje a adaptação nas atitudes e nas acções, a
procurar alternativas, a ver as pessoas e as coisas a partir de diferentes
perspectivas...
- Uma capacidade de ASSUMIR RISCOS que encoraje a ser um participante activo e
não um espectador, a ser proactivo e não reactivo...
Mas, que características tem o ambiente que não quer, ou não permite, a mudança?
Não será tudo isto também uma questão de sorte? Por que razão, esta figura de
Educador, plena de força, optimismo e coragem, é, para alguns, uma certeza e, para
outros, parece nunca surgir? Por que razão parece que muitos outros nunca “receberam
o suficiente para perceber que são capazes de mudar” (Maxwell, 1993:63)?
De acordo com Jeffers (1991: 89-108), é frequente que a pessoa que se dispõe a
enfrentar o medo esteja rodeada de figuras significativas que se começam a sentir
ameaçadas com a mudança e, por isso, desenvolvam estratégias de resistência e
sabotagem para manter os padrões de interacção e o clima de negatividade há muito
estabelecidos. São tentativas de preservar o contexto sobre o qual se construiu alguma
segurança, mas que, por si só, também podem dar origem ao aparecimento de novos
medos – o medo de continuar o processo de mudança, o medo de estar errado, o medo
de perder as relações estabelecidas.
264
• Processo / Momentos da acção e da mudança
CENTRÍFUGO-CENTRÍPETO CENTRÍPETO-
CENRÍFUGO
TIEMPO
TEMPOS SITUACIONAIS
TEMPO DE VIDA
Ilustração II.30 – Processo – momentos da acção e da mudança
Reprodução de Trigo. E. (imagens de conferências públicas).
125
O homem pode viver num nível de consciência de um vegetal – gostar de estabilidade, de fixação de
segurança... – ou num nível de consciência de qualquer animal, desde o mais selvagem, manifestando
interesse apenas pela sobrevivência e protecção de si próprio e da sua prole a qualquer custo, até à
possibilidade de dedicar a sua vida, sua inteligência e seu trabalho para bem da humanidade e do planeta,
num total despojamento de si próprio (Feitosa, 2006:57).
265
desenhado quando se toma consciência da percepção, da responsabilidade, da decisão
ou da execução (Feitosa, Kolyniak & Kolyniak, 2006)126:
1. Tomada de Consciência
“Não se pode escolher sabiamente uma vida a menos que a pessoa se atreva a escutar-
se a si mesma, ao seu próprio eu, em cada momento da vida” (Maslow, 1991:XLV).
Porque são humanos e naturais, não existem emoções e sentimentos bons e emoções
e sentimentos maus, mas é preciso que sejamos capazes de perceber da sua
adequação à situação em que ocorrem. De acordo com Marroquín (1995), isso depende
de dois factores: da apreciação realista das diversas circunstâncias, experiências ou
estímulos ambientais (o que pode ser difícil por causa do seu carácter subjectivo), e da
necessidade de distinguir entre preferências ou necessidades imperiosas (o que pode
ajudar a clarificar a subjectividade anterior).
126
De acordo com Moffit (2001a), Buda ensinou que existem cinco qualidades, ou capacidades espirituais,
que podem ser uma grande ajuda num processo de a mudança. São elas:
1. Fé (saddha) – envolve clareza e confiança e si mesmo e nos outros.
2. Esforço (viriya) – energia. Existem três tipos de esforço: o que vem da fé – se não houve fé nunca se
dá o movimento inicial em direcção à mudança; perseverança – durante os tempos difíceis que sempre
acompanham a mudança; esforço que surge do próprio momento de esforço quando há compromisso
com aquilo em que se acredita.
3. Estar alerta (sati) – que pode ser cultivada pela meditação.
4. Concentração (samadhi) – que reforça a intensidade do esforço.
5. Sabedoria (panna) – que permite redirigir o movimento da mudança sempre que se perceber que o
objectivo estava incorrecto ou que o caminho tomado não era o adequado.
266
O que fazer, então, para enfrentar o medo? É preciso que haja uma relação entre
pensar e sentir. A pessoa totalmente autoconsciente percebe como os seus
pensamentos se relacionam com os seus sentimentos e como estes condicionam os
primeiros. Conhecer-se é uma função tanto cognitiva como sensível e, se o sentimento
estiver divorciado do pensamento, a personalidade fica dividida – estar atento só a um
deles é uma espécie limitada de autopercepção (Torre, 2005 e 2008; Lowen, 1984, 216-
217). Como todas as sensações são sentidas no corpo, se se estiver conectado com as
sensações e tensões corporais, é possível ter um contacto directo com os sentimentos
e uma melhor capacidade de os identificar (Moffit, 2002a).
E porque isto é uma tarefa de descoberta pessoal, porque o caminho para o auto-
desenvolvimento é o auto-conhecimento, a pergunta “quem sou eu?” (com as suas
respectivas implicações, “o que sinto”, “o que penso”, “o que quero”...), é a primeira
questão para tratar o tema do auto-enfrentamento e, com isso, desmascarar o medo
(Feitosa, 2006:53 e ss). Logo, e porque não se pode mudar o que não se reconhece, se
se está completamente aberto à experiência, se não se nega nem se combate o medo
como um inimigo, estar consciente dele, olhá-lo de frente, é, em si mesmo,
transformador – não porque se fez com que o trauma ou as cicatrizes desaparecessem,
mas porque, lentamente, se transforma o medo em aliado e com ele se desenvolve uma
nova relação que deixa de exercer um poder controlador na vida (Moffit, 2002a).
2. Assumir
“Se você continuar a atirar as responsabilidades para cima do outro, lembre-se que
permanecerá sempre um escravo, porquanto ninguém consegue mudar o outro” (Osho,
2002b:137).
Assumir não significa culpar-se pela situação que se vive, mas atribuir-se total
responsabilidade por aquilo que acontece e pelos desafios que se apresentam. É a
267
consciência da oportunidade, é compreender que todas as coisas que acontecem no
presente são resultado de escolhas feitas no passado, quer disso tenha havido, ou não,
consciência (Chopra, 2005:61,64).
3. Tomada de Decisão
“Nada é tão fatigante como a indecisão e nada é tão fútil” (Russel, 2001:70).
Considerando que o erro é uma parte essencial da vida, que não é possível obter
sucesso em tudo o que se faz, que não cometer erros é sinal de que não se está a
aprender, nem a crescer, e que escolhas diferentes simplesmente produzem
experiências diferentes, Jeffers (1991:111-129) sumaria os passos que podem ser
dados para se tomarem decisões dentro de um “modelo ganhador”127:
127
“Non-Lose Model” no original.
268
a. Centrar no “modelo ganhador” – afastar os pensamentos de que se pode
perder e só permitir pensamentos sobre o que se pode ganhar.
b. Fazer o trabalho de casa – clarificar as intenções, ir buscar feedback a
outras fontes, desde que venha das pessoas certas; isto é, que sejam
pessoas que apoiam a aprendizagem e o crescimento em causa.
c. Estabelecer prioridades – dar-se tempo para pensar seriamente sobre o que
se quer da vida.
d. Confiar nos próprios impulsos – o corpo fornece muitas pistas que indicam
por onde ir.
e. Tornar tudo mais leve – qualquer que seja o resultado, é possível lidar com
ele.
4. Execução
269
de decisão. É por isso que “enfrentar o medo” não significa lutar contra, nem fazer
frente, muito menos combater. Significa, sim, colocá-lo na frente e aprender a viver com
ele – o que Marina (2006:104) classifica como sendo dois tipos estratégias de
enfrentamento*, as estratégias dirigidas para enfrentar o problema, as estratégias
dirigidas para enfrentar a emoção provocada pelo problema128.
“O que fazer para não ter medo?” foi a pergunta que, não há muito tempo, a Educadora
Margarida Sá, do Jardim-de-Infância da Portela (Barros, 2006), colocou ao seu grupo de
crianças que confessavam que “às vezes sentimos medo”. E elas, sabiamente,
responderam: “fazer caretas ao medo”, “mandá-lo embora”, “agarrar no peluche”,
“fechar a janela para o medo não entrar”, “chamar o pai e a mãe”, “dizer ao medo
«Olá!»”, “trancar a porta de casa”, ou, ainda, “acender a luz”.
- E nós, adultos, o que fazemos ou podemos também fazer? Será que as nossas
respostas ao medo são assim tão diferentes das das crianças, ou as delas são
já metáforas de tudo o que também fazemos?
128
Vejo aqui também subjacente o conceito de “aprendizagem significativa” (Rogers, 1970): é mais do que
uma acumulação de factos; provoca uma modificação - no comportamento do indivíduo, na orientação
futura que escolhe, nas suas atitudes e personalidade; é uma aprendizagem penetrante – não se limita a um
aumento de conhecimentos, mas que penetra profundamente todas as parcelas da sua existência.
270
- Que se sabe sobre estratégias de enfrentamento (Marina, 2006), sobre formas
de encarar o medo?
- Que outros conselhos nos chegam pela mão de outros sábios, os diferentes
autores que têm estudado esta questão?
James Redfield (1994,126-129). Ganhar energia pela LIGAÇÃO COM FONTES MAIS
ALTAS:
271
- Porque o medo aumenta se for ignorado, o caminho é pensar nele com
calma, com concentração, até que ele se torne familiar, aborrecido, o que faz
com que os pensamentos se desviem dele.
Caroline Myss (Sisk & Torrance, 2001:45). MEDITAÇÃO diária sobre cada um dos
sete chakras129:
- Começando pelo primeiro chakra e subindo até ao sétimo – perguntar se se
está perdendo energia; se sim, identificar o medo que está a drenar o poder
dessa parte específica do corpo, fazer uma respiração profunda e,
conscientemente, desligar a energia desse medo.
- Procedimento muito similar com as práticas da sabedoria tradicional e do
misticismo oriental.
129
Temos sete centros específicos de energia nos nossos corpos, os chakras e estes centros, que ligam os
nossos nervos, hormonas e emoções, têm uma localização paralela ao sistema imunoneuroendócrino e
fazem uma ligação entre a anatomia da nossa energia e a anatomia física. Cada um dos sete chakras do
corpo está associado a sistemas orgânicos e a estados emocionais específicos, cada um é reavivado ou
enfraquecido pelas nossas crenças e sentimentos, pelo que medos e emoções específicos atingem
determinadas áreas do corpo. Muito embora estas energias afectem simultaneamente todas as áreas do
corpo, podem-se manifestar em problemas de saúde na área que for mais vulnerável (Northrup, 2004:87-
89).
272
Não será isto “mandá-lo embora”,
como diziam as crianças do Jardim da Infância da Portela?
273
trazem um alívio significativo que afecte o comportamento (pois este só pode ser
alcançado quando a pessoa encara o seu medo).
- Exercícios que se baseiam na identidade funcional entre mente e corpo, de
consciência do corpo130 - EXERCÍCIOS DE RESPIRAÇÃO que ajudam a perceber que
a vida é consequência da respiração (rir, gritar, chorar...); EXERCÍCIOS PARA
LIBERTAR A TENSÃO MUSCULAR que os conflitos estruturaram no corpo (expressar
a raiva, relaxar, correr, chutar, socar...).
Passos e Técnicas
130
No Yoga existe uma série de posturas (asanas) que podem ajudar a abrir a caixa torácica, a alongar e
relaxar os ombros e o pescoço. São acompanhadas de uma respiração lenta e profunda e com a intenção de
relaxar a testa, os olhos, os maxilares e a língua. Alguns exemplos: tadasana (postura da montanha); setu
bandha (ponte); adho mukha svanasana (cão de cabeça para baixo); savasana (postura do cadáver) (Serber,
1999).
131
TI – “Torbellino de ideas”, em castelhano.
274
Saturnino de la Torre (2005, 2006, 2007). SENTIPENSAR, CINEMA E TÉCNICA ORA.
- Critica a prevalência do pensar sobre o sentir no campo da educação – chama a
atenção para a necessidade de educar em “sentipensar” (não com a finalidade
de instruir, mas sim de facilitar o bem estar pessoal e social) e para um conjunto
de estratégias criativas para a educação da dimensão emocional (por exemplo,
cinema e o modelo ORA.
- Cinema – porque as histórias de vida reais ou imaginárias dos filmes produzem
emoções e sentimentos fortes e de índole diversa no espectador, o cinema é
uma grande escola para o desenvolvimento das emoções.
- ORA (observar, relacionar, aplicar132) – como instrumento conceptual, facilita a
conversão da informação em formação; pode ser utilizado em climas e
ambientes criativos, filmes, música, diálogos analógicos, cartas analógicas,
textos poéticos ou literário, dramatizações, histórias de vida ou relatos, diários,
etc.
132
Observar a realidade prévia; relacionar as experiências ou vivências da vida quotidiana com algumas das
emoções e sentimentos que se procuram destacar; aplicar, ao nível pessoal, algumas das ideias partilhadas
em actividades concretas.
275
Ensinar a compreensão
Consciência Consciência
do Outro do Cosmos
Consciência
de Si
Ilustração II.31 – O produto – consciência de si, consciência dos outros, consciência do cosmos.
“É o seu medo que faz de si escravo (...). Quando deixar de ter medo, deixará de ser
escravo: na realidade, é o seu medo que o obriga a tornar os outros seus escravos antes
que eles o façam a si” (Osho, 2002b:15).
Que resultado se obtém pela intersecção da pessoa com o contexto e com o processo
atrás definidos? Um produto novo, com valor e em que todos ganham – o(s) produtos
276
do Desenvolvimento Humano (quadro II.7): os produtos da consciência de si, onde
cresce a autonomia, a vida autoconstrutiva, o pensar livre, o autocuidado, o
autotelismo*; os produtos da consciência do Outro, onde se coloca o comunicar, o
compartilhar, o respeitar, o espaço do Outro como Eu; os produtos da consciência do
Cosmos, donde, pela inteligência e pelo interactuar, surge o tempo de transformação e
de felicidade partilhada (Trigo & Coego, 2003).
Desenvolvimento Humano
Quadro II.7 – Propósitos do desenvolvimento humano. Reprodução de Trigo & Coego (2003).
277
E encontro na literatura para a infância um exemplo do que isto quer dizer:
“Como se pode engolir uma coisa que já está dentro de nós? Sim, porque o medo estava
dentro dele. Ele bem o sentia, a apertar-lhe a garganta por dentro, a causar-lhe dores de
barriga. Então, pelo contrário, tinha de o atirar todo para fora. Começou a encher os
pulmões de ar e de coragem e mandou um berro que fez estremecer a casa. Os gatos
fugiram, os canários calaram-se, o avô quase acordou, as plantas fecharam-se e as
louças tilintaram; e as telhas juntaram-se umas às outras como se fosse chegar a
tempestade. E o medo? O medo, embora não tenha tido medo, olhou para o João com
interesse. E o João olhou para o medo, também. Ficaram a olhar de frente um para o
outro, como se fossem dois velhos conhecidos que nunca se tinham visto. Silêncio e
respeito.
E depois o João falou, e disse: (...) Eu só tenho medo de ti, porque penso que tu não
fazer parte de mim. Mas tu fazes parte de mim, como os meus ossos e os meus
pulmões. Tu és o meu medo, por que é que não havias de fazer parte de mim? A
coragem não faz também parte de mim? E o riso e as lágrimas, não fazem? De maneira
que, olha, fica cá dentro e encontra um canto para te sentares. Mas cuidado: de cada
vez que começares a abusar, vai haver guerra. Vou saltar, correr, espernear, lutar, falar,
responder, perguntar, ou muito simplesmente, pensar.
Silêncio e respeito. O João estava cansado de todo aquele seu discurso. (...) Olhou à
volta e não viu medo nenhum. Talvez tivesse voado pela janela aberta. Ou ardesse para
sempre no cimo de um monte. Ou continuasse no fundo do mar, à espera de um polvo
que por ali nunca passará” (Godinho, 2002:43-46).
Já não mais o viver com medo, já não mais o ter medo do medo, mas o conVIVER com
o medo – lado a lado, em SILÊNCIO, em RESPEITO.
Se fossemos crianças, era capaz de chegar para compreender... Mas porque, quais
pessoas crescidas do “Principezinho” de Saint-Exupéry” (que, num desenho tão simples
- tão óbvio! -, não conseguiam ver a jibóia a digerir um elefante), precisam(os) sempre
de mais explicações, vou procurar um pouco mais para perceber o que é aquele
“silêncio” e aquele “respeito”. Ou o que, de alguma maneira, também são os
“quinhentos milhões de guizos”133, aqueles que, afinal, talvez possam ser o som (ou a
cor, ou o outro nome) de um mundo sem medo...
133
Mesmo no final do “Principezinho”, Saint-Exupéry (s.d.:91) escreve: “Agora já estou um pouco
consolado. Isto é... não de todo. Mas eu sei muito bem que ele voltou para o seu planeta porque, ao romper
278
• O silêncio
• O respeito
ConVIVER com o medo com toda a riqueza dos nossos sentidos, é fazer a passagem do
olhar... ao ver, do ouvir… ao escutar, do tocar… ao acariciar, do cheirar... ao olfactar, do
gostar… ao degustar, do fazer... à acção. Ou, dito ainda de uma outra maneira, é viver
de acordo com o que (no respeito pela dignidade de si mesmo, dos outros e do
universo), em sânscrito está contido numa só palavra:
Namaste! - inclino-me perante ti134.
do dia, não encontrei o corpo. Não era um corpo assim tão pesado... E, à noite, gosto de escutar as
estrelas. É como se quinhentos milhões de guizos...”.
134
“Para fazer ‘Namaste’, colocam-se as duas mãos unidas junto do chakra do coração, fecham-se os
olhos e inclina-se a cabeça ou então, como forma de profundo respeito, colocam-se as mãos unidas junto
do terceiro olho, inclina-se a cabeça e depois descem-se as mãos até ao coração. Este gesto, utilizado na
Índia, representa a crença de que existe uma chama divina dentro de cada um de nós e que essa chama
está localizada no chakra do coração – é o reconhecimento de que a alma é uma com a alma de outra
pessoa. Entre professor e aluno, tal como também é utilizada no Yoga, Namaste permite que dois
indivíduos se juntem energeticamente num lugar de conexão, para lá do tempo, livre das fronteiras do ego.
O professor inicia “Namaste” como símbolo de gratidão e respeito para com os seus alunos e para com os
seus próprios professores e convida os seus alunos a também se ligarem com a sua linhagem, permitindo
que a verdade flua – a verdade de que todos somos um quando vivemos a partir do coração” (Geno, R.
The Meaning of "Namaste", www.yogajournal.com/newtoyoga/822_1.cfm. 2005.)
279
Síntese:
Muitos outros autores poderiam ter sido trazidos, e neles encontradas outras respostas,
neste processo de interacção criativa entre a revisão da literatura, o trabalho de campo
280
e a minha introspecção como investigadora (Patton, 2002:226). O que significa que
bastaria outra pessoa, outro tempo ou outro lugar (outro Eu e outras circunstâncias,
segundo Ortega), para, seguramente, ser diferente. Embora atraída (porque isto
também é um processo de enamoramento), por todos aqueles que, mesmo
aparentemente distantes, me ajudassem a desenhar um quadro coerente para
compreender, transformar, transfigurar e transcender, fica sempre a certeza de que, tal
como lidar com o medo, também a revisão da literatura é permanente descobrimento,
em que o local de chegada é também de partida...
281
III. AGIR
284
Capítulo 4
Criar o caminho
I. PROCESSO DA PESQUISA
Introdução
Capítulo 1 – Roteiro
II. CENTRAR
Capítulo 2 – Descobrir os próprios caminhos
Capítulo 3 – Descobrir caminhos de outros
III. AGIR
Capítulo 4 – Criar o caminho
1. Quem (somos os que fizemos parte da Pesquisa Colaborativa e constituímos o universo de estudo sobre o qual
recai esta investigação)?
1.1 As pessoas 1.3 Conjugando os dados e descobrindo implicações
1.2 O grupo
2. O que (faz com que uma vida seja serena, útil e corajosa)?
2.1 O disfarce do medo 2.3 Relação de medos e efeitos do medo
2.2 Definição e caracterização do medo 2.4 Síntese do “o quê”
3. Como (pode o educador lidar com o seu medo e, por isso, ajudar as pessoas a enfrentarem os seus medos e a
terem uma vida serena, útil e corajosa)?
3.1 A vivência da totalidade 3.4 O processo de lidar com o medo
3.2 Formas de (não) lidar com o medo 3.5 Síntese do “como”
3.3 Brincando com números
4. Por que (razão o educador só pode ajudar outros a enfrentarem os seus medos e a terem uma vida serena, útil
e corajosa, depois de ele próprio ter entrado no processo de enfrentar os seus)?
4.1 Passagem de testemunho e contágio 4.4 O velho, o rapaz... e o medo
4.2 As causas do medo 4.5 Conjugando e formulando uma resposta
4.3 As causas do não medo como um dado 4.6 Síntese do “por quê”
insignificante muito significativo
5. Para que (serve uma vida serena, útil e corajosa)?
5.1 Ser parte do Universo
5.2 O medo para o desenvolvimento humano 5.5 Ligações e reflexões
5.3 O medo para a conservação social 5.6 Lendo uma resposta para a pergunta da pesquisa
5.4 O papel do medo na construção do humano 5.7 Síntese do “para quê”
IV. CELEBRAR
O sentido do caminho
Para abrir um novo caminho
285
You must give birth to your images
They are the future waiting to be born.
Fear not the strangeness you feel
The future must enter you
Long before it happens.
Just wait for the birth
For the hour of new clarity.
Rainer Maria Rilke
Sinto que cheguei agora ao ponto central deste trabalho, aquele para o qual tudo vem
sendo preparado e que congrega a participação-triangulação de todos os tempos e de
todos os intervenientes na pesquisa:
- O tempo dos membros do grupo que, durante meses, tiveram a coragem de,
expondo-se, fazer mexer em si mesmos o tema de “o medo e o desenvolvimento
humano”.
É, por isso, com um sentimento de profundo respeito pelas contribuições de todos (“mas
também e simultaneamente”, com uma vontade-necessidade de, qual artista que se
286
descobre na mistura das cores, me sentir livre para interpretar), que agora me aproximo
de uma tarefa que procura aceder um pouco mais ao entendimento da complexidade
em que a nossa espécie humana se movimenta. É esta a forma, acredito, de, ganhando
fundamentação sem me deixar prender demasiado pela “norma” confortável e segura
do já feito, poder vir a ser criadora de uma leitura própria que possa construir caminho
novo – por pequeno que seja.
Análise da
Análise da
A+B Categoria
Categoria B
A
A+C B+C
Análise da
Legenda
Categoria
C Passo 1: A / B / C =
análise de categorias
Passo 2: A+B / B+C /
A+C = interpretação
Passo 3: A+B+C =
construção de sentido
Mas isto não significa que pretenda fazer uma leitura unicamente linear ou isolada de
cada uma das perguntas e das categorias de análise – cada uma das partes atrás
referida é também construída pelo cruzamento e triangulação das categorias entre si,
das categorias com o referencial teórico, das categorias com os diários de campo e com
a própria história de vida (ilustração III.1).
Finalmente, e antes de avançar, preciso relembrar uma ideia já antes colocada. Muito
embora, e de acordo com o comentário de alguns participantes, as sessões de trabalho
287
com o grupo tivessem sido muitas vezes “terapêuticas”, nunca houve intenção de fazer
terapia, nem de, por qualquer meio, levar as pessoas a revelarem mais do que elas
próprias estivessem espontaneamente interessadas em revelar. O propósito deste
ponto do estudo situa-se na compreensão do que, num contexto muito específico, as
pessoas envolvidas estiveram (ou não estiveram) dispostas a dar a conhecer sob as
suas representações e vivências do medo.
288
“O homem se distingue não por aquilo que tem mas por aquilo que deseja ter”.
Raimundo Ferreira Ignácio
Mas o que aqui pretendo fazer é mais do que procurar saber o que somos, que pouco
muda, e pode ser descrito em termos demográficos e sociológicos. Porque os homens
constantemente mudam e as coisas não se repetem, vou procurar também ler quem
fomos enquanto o trabalho de campo decorreu – para que, pela caracterização do
enquadramento e do clima desta fase do trabalho, se possa também perceber e antever
o que condicionou o conteúdo das categorias de análise e, evidentemente, alguns dos
resultados obtidos na investigação.
Assim, e na sequência das sub-categorias que compõem a categoria “quem”, vou dividir
esta análise em duas partes:
135
Ver excerto do mapa mental das categorias de análise no final deste ponto do capítulo.
289
dos dados das sessões com os resultados da aplicação do VIEW e do SOQ136,
compreender e, de alguma maneira, antecipar as características do produto que de
tal contexto nasceu.
1.1 As pessoas
- Uma das coisas que me fascina muito é a ordem. - Acredito que, em grande medida, as nossas vidas
(...) Facilmente me fascino por pessoas que se são regidas pelas nossas emoções. 1N1/2
apresentam bem organizadas, com raciocínios
bem conduzidos. 7K5/2; 7K10/2
136
Como já tive oportunidade de desenvolver, estes instrumentos caracterizam os estilos de criação e o
clima para a inovação e para a mudança (ver “II Roteiro – procedimentos, instrumentos e técnicas”).
290
Ilustração III.3 – Fotografias de sessões do grupo de pesquisa.
- Sou uma pessoa que sinto muito mais do que - Tinha a cabeça lá bem no meio da nuvens e (...)
penso. Vivo muito mais do que penso (...). O que os pés bem enterrados na terra e eu não
eu queria era a harmonia do mundo (...). Se cada conseguia fazer a ligação entre uma coisa e outra
um de nós tivesse a possibilidade de descobrir o (...). Depois comecei a perceber que era
bom que a pessoa tem e o desenvolvesse, o exactamente por força da criatividade que eu
mundo seria fabuloso. 7A7/1; 7A7/4 conseguia fazer essa ligação. 1U5/1-4
- Fartei-me daquilo (...) percebi que isso não era a - Ponho tudo cá fora (...). Preciso muito de dizer
minha vida (...). Depois decidi deitar tudo fora (...) “gosto de ti, não gosto de ti, estou triste, estou
e começar do zero. 3J4/9; 2J1/6 feliz...”. Sou super agarrada às minhas raízes.
1O1/5; 6O3/2,4-6; 6O8/2
291
- Tenho feito trabalho sobre mim mesma (...) e - Tenho vindo a fazer, de há alguns anos para cá,
achei que não era por acaso que as duas coisas algum trabalho de formação pessoal (...) que me
[o trabalho sobre mim mesma e esta pesquisa] se tem ajudado a crescer e a estar mais consciente e
encontravam. 1E1/4 mais lúcido... mais por dentro de mim próprio.
1L1/1-3
Ilustração III.6 – Fotografias de um encontro do grupo, três meses depois das sessões.
- Sou muito céptico. Sou muito condicionado pelo - Não sei dizer não e sou muito curiosa e tenho
lado do pensar (...). Acho que sou extremamente muita vontade de fazer muitas coisas e de
duro comigo mesmo, (...) extremamente analítico aprender muitas coisas (...). Sinto uma grande
e extremamente reflectido e, de certa maneira, necessidade de ser responsável pelos meus actos
acabo por dar muito mais valor a este pensar do mas, ao mesmo tempo, manter uma grande
que ao lado dos sentimentos. 6M1/6; 7M5/5 liberdade interna. Gosto muito de pensar por mim.
7I3/1; 7I17/3
O que levou este grupo de pessoas a participar (tabela III.1) num trabalho de pesquisa
colaborativa sobre “o medo e o desenvolvimento humano”?
292
Genericamente, e sobretudo nas duas primeiras sessões de trabalho, foram
apresentados dois tipos de razões:
a) razões cujo foco está colocado no próprio – “razões do Eu”:
- “Interessa-me (...) pesquisar e compreender, ir à procura de resposta sobre o que tem
que ver com (...) o mundo emocional da pessoa” (1N1/2);
b) razões cujo foco está colocado nos outros – “razões dos Outros”:
- “(...) o desejo de (...) colaborar com o que se vier aqui a realizar” (1L1/4-5);
havendo, nestas últimas, e sem estranheza, alguma incidência nas razões relacionadas
com a actividade profissional dos participantes que, em quase todos os casos, diz
respeito a profissões de ajuda* no sentido rogeriano.
Ao todo foram apresentadas 28 razões para participar, com uma maior ocorrência nas
razões relacionadas com os outros (16 = 57%) do que nas razões relacionadas com o
próprio (12 = 43%) e, dentro destas últimas, só metade são razões relacionadas com a
vontade, ou necessidade, de fazer um trabalho de desenvolvimento pessoal.
- “Porque nesta temática eu também tenho que me implicar, e tenho que ir ver quais são os meus
medos, e como é que tenho reagido perante eles, e como é que posso viver com eles, e como é
que posso, se é que posso, superá-los” (1E1/5).
Mas por que será que, apesar de cada um dos participantes ter aceite a proposta de
integrar uma pesquisa que colocava o desenvolvimento pessoal e a reflexão sobre si
mesmo como elemento central e irradiador de todo o projecto (o que implicava a
necessidade de reconhecer em si mesmo a presença do medo e de medos), isso não é
reconhecido publicamente com mais frequência? Por que será também que, na fase
293
reflexiva da pesquisa137 (e de uma forma muito mais privada), demorei tanto tempo a
escrever a minha história de vida e, ainda assim, com todo o “sofrimento” lhe esteve
associado? Por que será tão difícil reconhecer o medo em nós mesmos?
- Porque a couraça e a máscara do “Eu” de Walt Whitman (Ribeiro Dias, 2000) é tão
forte que, apesar de todas as circunstâncias, preferimos começar por
prudentemente nos resguardarmos com razões de “interesse” ou “curiosidade” do
que imediatamente nos confrontarmos e expormos com aquilo que consideramos
serem as nossas fragilidades?
- Porque o argueiro no olho dos outros parece sempre maior do que a trave no nosso
(Mateus 7, 3)?
- Porque, por muito que, do ponto de vista da neurobiologia, o medo comece por ser
resultado de mecanismos biologicamente determinados e dependentes de
dispositivos cerebrais inatos (Damásio, 2003), do ponto de vista cultural não deixa
de ser aquilo que, com uma certa sagacidade, Nicola Phillips (2003:2) retrata como
sendo “the other four letter ‘f’ word. The more unspoken of the two (...) the only four
letter word not allowed in business”?
Será também a “Pessoa Pública” a razão porque ainda nos é difícil entender e levar à
praxis o que Morin refere como sendo a necessidade de o investigador integrar o
observador e o conceptualizador na sua observação e na sua conceptualização e, com
isso, abandonar o “ponto de vista divino” (Morin, 2003:109) que nos impede perceber,
ou revelar, que estamos possuídos por toda a sociedade?
137
Ver “Capítulo 1 Roteiro – 2.2 Descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas”.
294
Não será também a dificuldade de abandonar esse ponto de vista (que, ironicamente,
até nunca se alcançou), que impede nos tornemos “especialistas de nós mesmos”
(Feitosa, 2006:25)?
Contudo, se (e como outra face da moeda), reunir a quantidade de medos que, ao longo
das sessões do grupo de pesquisa, acabaram por ser mencionados (186)138 com a
quantidade de medos encontrados nas obras de referência (inseridos no capítulo 3 sob
o simbolismo do número 241), julgo que tudo indica estarmos perante um tema delicado
e premente que (também no campo da educação de adultos), precisa de um
“tratamento assertivo”. Isto é, de um “tratamento” que considere a presença efectiva de
determinadas condições que, tal como é proposto pelas categorias de análise criadas,
facilite os movimentos centrífugo e centrípeto dos momentos de um processo de
mudança (Sérgio & Toro, 2005) centrado no desenvolvimento humano. Ou, dito ainda
de outra maneira e em menos palavras, de um conjunto de procedimentos didácticos
que permitam passar do conhecimento factual ao conhecimento pessoal, ou seja, ao
conhecimento encarnado.
“Uma pessoa estudiosa e consciente (...) sabe que só o conhecimento que transforma é
útil e pode converter-se em sabedoria” (Feitosa, 2006:88).
138
Sobre este assunto, “relação e explicação de medos”, será desenvolvida reflexão detalhada no ponto 2.1
deste capítulo – “Definição e caracterização do medo”.
295
- “Pode ser uma experiência que contribua para um crescimento pessoal muito interessante, assim
como um descobrimento benéfico para todos, não só para o projecto” (2N1/2).
Então, e curiosamente, viemos para a pesquisa, em primeiro lugar, por causa dos
outros, mas desejamos que, no final, os resultados do processo nos beneficiem
particularmente. Que significa esta inversão?
- Será uma “distracção” da Pessoa Pública que revela o que gostaria de manter
escondido?
- Será um sinal da nossa dificuldade de integração e de congruência entre o que
está presente na nossa consciência e o que está presente na nossa
comunicação (Rogers, 1970)?
- Será a marca do quanto, muitas vezes, tendemos a colocar nos outros a
responsabilidade pelo que nos acontece e a entregar-lhes o poder de dirigir os
nossos próprios processos de mudança (Osho, 2002a:137)?
- Ou, com tudo isto, mais do que isto e para lá disto, o que está em causa é o
peso do clima na capacidade de produção e criação das equipas (Isaksen et al,
1995)?
O que esperamos dos outros, então, para que os resultados desejados sejam
atingidos? Confiança, confidencialidade, envolvimento – é o que está presente em
quase todas as situações identificadas como “expectativas relacionadas com os outros”.
- “Tem de haver uma relação de confiança entre todas as pessoas para se sentirem cómodas e à
vontade. O principal. Sem a confiança não sai nada” (2N1/2).
296
- “Levantei a questão da confidencialidade que o RP levantou aqui também, que achava que isto
devia ser explicitado – só porque não ganhamos nada em ser implícito e acho que isso pode dar
maior confiança a todos para fazermos aquilo a que nos propomos fazer aqui” (2I1/3).
- “E eu sentia que tinha estado a trabalhar durante muitos meses com um “filho” que agora está a
passar para uma idade mais madura, mais adulta, em que, por isso, já não é mais meu e passa a
ser de nós todos” (2U4/3).
- “Acho que é um desafio falar do medo... tratar este tema com tantas pessoas que eu não conheço
é um desafio interessante. As minhas expectativas... ultrapassar esse desafio” (1I2/3).
- “Muito do que eu também quero tirar deste grupo para mim é (...) encontrar a forma de eu passar
a sentir essas coisas [sentir o que sou]” (4U11/4).
- “De maneira que cá estou e acho que me vai fazer muito bem, apesar de não saber o que vai sair
daqui. Acho que só pode ser para crescer, para melhorar, mesmo que passe por algum mau
bocado” (1O1/4).
“Mesmo que passe por algum mau bocado” (1O1/4)! Sintetiza o que, estando provavelmente
presente no espírito de outros participantes, corresponde ao que Anna Feitosa indica
como sendo “a saída da zona de conforto implicada no pensar o novo e agir de outra
forma” (2006:75), isto é, o que também parece ocorrer a quem se coloca na posição de
aprender a lidar com o medo no contexto de um grupo.
Está, por isso, justificada a necessidade da atenção dada à problemática do clima – foi
o que levou à criação de uma sub-categoria específica para caracterização deste grupo;
foi o que motivou a aplicação do SOQ cujos resultados serão adiante analisados; foi o
que deu origem à sub-categoria “clima necessário num processo centrado no
297
desenvolvimento humano”, parte integrante e fundamental da proposta educativa para
lidar com o medo em contexto de educação de adultos.
E só depois, e inserida nas “Outras” expectativas (14%), surge uma única referência ao
trabalho de investigação propriamente dito.
Para terminar esta primeira leitura, falta reflectir sobre os “efeitos por participar” (tabela
3.3). O que aconteceu a quem se colocou numa situação que implicou colocar o
desenvolvimento pessoal e a reflexão sobre si mesmo como elemento central e
irradiador de todo o projecto?
Deixando para espaço próprio a análise da avaliação feita por todo o grupo no final do
processo, procuro olhar aquilo que, de forma mais espontânea, foi sendo transmitido ao
longo das sessões:
298
Porém, se pensar que o maior número de razões por que as pessoas dizem ter aceite
fazer parte da pesquisa são razões do foro profissional (“razões relacionadas com os
Outros”), então os efeitos produzidos parecem, pelo menos à primeira vista, não
corresponder às razões enunciadas. Mas, quanto se considera que “todo o
conhecimento é auto-conhecimento” (Sousa Santos, 1988:50) e que “a cabeça pensa a
partir de onde os pés pisam” (Boff, 1998:9) e quando se recusam dualismos que
separam a pessoa do profissional, então (e apesar de ainda haver muito para
aprofundar nesta reflexão), a participação num trabalho deste tipo parece contribuir para
a consecução de efeitos adequados e necessários.
O que está, assim, contido nestes conjuntos de respostas e que leve a crer ter havido
tal correspondência com as expectativas e as razões apresentadas? Procurando fazer
uma “leitura optimista” dos dados recolhidos (que não pode também deixar de ser
encontrada na força e na beleza das palavras ditas), vale a pena fazer sobressair
alguns exemplos que mostram como, ao longo das sessões do grupo, se pôde também
chegar a uma comunicação mais pessoal e menos objectal* – para lá das “conversas
banais e de discursos impessoais que tantas vezes139 encobrem intentos medrosos e
subtis de uma comunicação mais profunda” (Marroquín, 1995:20):
Prazer-alegria-confiança:
- “Não sabia o que iria acontecer, mas não duvidei, em nenhum momento, que tinha de
experimentar. Não sabia se iria sentir medo. (…) Mas gostei imenso de ter conseguido fazer
aquilo” (9A1/14,16).
139
Os sublinhados são meus.
299
- “O mais interessante foi quando o L. cantou o Jorge Palma porque, apesar de ele não saber, o
Jorge Palma e as letras dele acompanharam-me em momentos muito importantes da minha vida e
aquela letra, em particular. (...) E começar uma caminhada nocturna, só com as estrelas, e depois
deitados naquele bocadinho… Foi mágico levantar-me e ter alguém que cantou aquilo naquele
momento. Se houve momentos bons na minha vida, aquele foi um” (9J1/3).
Integração no grupo:
- “Gostei imenso da sessão que tivemos. Não sei como é que a U. conseguiu arranjar um grupo
assim. Senti-me bem” (2A1/2).
- “O relaxamento permitiu essa integração neste tempo. No fim do relaxamento abri os olhos e disse
“ok, já faço parte da comunidade”. É muito mais simples do que se estivéssemos aqui a verbalizar
não sei quantas coisas – porque é a linguagem do corpo” (2J3/1).
Reconhecimento-gratidão:
- “Então, o sentimento que eu tive, ao aparecer aquela pergunta, foi um sentimento de gratidão.
Como uma pessoa que me fez reflectir numa situação muito séria que eu sempre esquivei
partilhar” (7K11/12).
Bonito, não é?
Mas será que o contido na sub-categoria “perturbação” (13.8%), (já para não falar nas
categorias “desagrado” que tem um valor percentual muito baixo – 1.2%), não põe em
causa a visão optimista acima apresentada (tabela III.1)? Alguns exemplos do que nela
está considerado:
Perturbação:
- “Isso deixou-me (...), devo confessar, que um bocadinho assustada… porque me perguntei, depois
de sair daqui, até onde eu própria estou disposta a ir neste processo” (2E1/4).
- “Congratulei-me porque não fui só eu que vinha com algum receio do que é que isto podia dar. (...)
Isto de virmos aqui para, a partir dos nossos medos, fazer alguma coisa! É preciso primeiro dar
conta deles e dar conta deles publicamente! E isso não é muito fácil” (2I1/4).
- “Eu usei os argumentos para me justificar, mas escondi o argumento da verdade que eu tinha, que
me levou a não falar daquela experiência. Mas, quando cheguei em casa, comecei a reflectir (...)”
(7E4/5-7).
300
- “Acordei com a dor nas pernas que acordo sempre quando somatizo as emoções vividas ao longo
do dia” (9J1/13).
a) Se o medo é uma emoção holística (Lowen, 1984, 1997), não pode ser “tratado”
exclusivamente no foro do mental. As referências aos efeitos sentidos no corpo
emocional e no corpo físico permitem ver que, pelo menos nalgumas situações,
o trabalho deste grupo ganhou distância de uma abordagem exclusivamente
teórica do tema.
- “Acordei com a dor nas pernas que acordo sempre quando somatizo as emoções” (9J1/13)
Julgo, por isso, que não fica em causa uma leitura (pelo menos moderadamente)
optimista dos efeitos, pois aquela “perturbação” parece fazer parte do que também já foi
identificado como sendo a saída do espaço de conforto inerente aos processos de
mudança (Feitosa, 2006).
Mas poder-se-á concluir que os efeitos produzidos ao longo do trabalho com o grupo (já
que, relembro, aqui está excluída a análise dos dados da última sessão), são todos
“positivos”? Será que o “não-dito”, certamente tão real para os participantes como o
“dito”, poderia dar origem a uma análise diferente? Será que foi criado o espaço-
abertura-clima-tempo necessários para confessar medos ou desagrados que as
sessões e o grupo possam ter provocado? Será que foi preciso defender a Pessoa
Pública, evitar o confronto, ou dar uma imagem adocicada que não pusesse em causa
os propósitos da investigação? Será?
301
Julgo, por isso, estar na hora de começar a examinar com cuidado os dados recolhidos
na sub-categoria “o grupo de pesquisa colaborativa – clima do grupo e estilos de
criação”, bem como os resultados da aplicação do SOQ e do VIEW.
1.2 O grupo
• O clima do grupo
PESSOA PROCESSO
Características Operações
das Pssoas Que realizam
140
Definição de Clima segundo Ekvall – “padrões habituais de comportamento, atitudes e sentimentos
que caracterizam a vida no grupo tal como são experimentados, compreendidos e interpretados pelas
pessoas” (Isaksen et al, 1995:1.8-ss).
As dimensões do SOQ descrevem nove características importantes do clima para a criatividade e inovação
(Isaksen et al, 2000:12-16):
- Desafio e Envolvimento: o nível em que as pessoas estão envolvidas nas tarefas diárias, nos objectivos
a longo prazo e na visão do futuro.
- Confiança e Abertura: a segurança emocional nas relações.
- Liberdade: a independência de comportamento exercida pelas pessoas da organização.
- Tempo para as Ideias: a quantidade de tempo que as pessoas podem ocupar (e ocupam efectivamente)
na elaboração de novas ideias.
- Conflito: a presença de tensões pessoais e emocionais (em contraste com a tensão de ideias na
dimensão “debates”).
- Debates: a ocorrência de acordos e desacordos entre pontos de vista, ideias, diferentes experiências e
diferentes conhecimentos.
- Alegria e Humor: a espontaneidade e o à vontade dentro do espaço de trabalho.
- Apoio a Ideias: o modo como são tratadas as ideias novas.
302
contexto na capacidade de inovar das equipas (Isaksen et al, 1995). Procurarei, assim,
perceber (primeiro, a partir da análise do discurso espontâneo dos participantes e,
depois, a partir dos resultados da aplicação do SOQ), as características do clima
(PRESSÃO) gerado pelo grupo de investigação colaborativa (PESSOA’S) para,
posteriormente, procurar antever e compreender algumas das possíveis influências
produzidas nos resultados da pesquisa (PRODUTO).
De acordo com a síntese dos resultados apresentada na tabela III.4, as 111 menções
espontâneas ao clima do grupo que foram identificadas nas transcrições das sessões
cobrem as nove dimensões definidas por aqueles autores. Entre eles vale a pena
destacar:
303
conhecer as pessoas, um relaxamento demasiado longo sobre um tema que pode ser… não fácil,
tem riscos que eu não posso correr – 2I11/1).
Mas é preciso destrinçar um pouco mais o sentido dos discursos dos participantes e,
também de acordo com a terminologia utilizada por aqueles autores, procurar distinguir
se as referências apontam para níveis altos ou baixos141 de cada uma destas
dimensões.
Assim, olhando para a síntese colocada na tabela III.5, é possível verificar que:
141
Para fazer a distinção entre “níveis altos” e “níveis baixos” das dimensões do clima, continuo a ter como
referência o trabalho de Ekvall e Scott Isaksen atrás indicado (Isaksen et al, 1995). Destaco, a partir daí, as
palavras-chave da caracterização de cada um desses níveis em cada uma das dimensões.
Desafio e Envolvimento.
Níveis altos – motivação intrínseca; compromisso com o sucesso do grupo; dinamismo; energia.
Níveis baixos - falta de compromisso; alienação; indiferença; apatia; interacção amorfa.
Confiança e abertura.
Níveis altos - abertura; franqueza; apoio pessoal; respeito.
Níveis baixos – desconfiança; protecção; comunicação difícil.
Liberdade.
Níveis altos – autonomia para a definição do trabalho; actuação prudente; iniciativa; planeamento;
tomada de decisão.
Níveis baixos – linhas orientadoras; papéis definidos.
Tempo para as Ideias.
Níveis altos – discutir e testar ideias; prazos flexíveis; exploração de novas alternativas.
Níveis baixos – pressão do tempo; rotinas planeadas; instruções.
Conflito.
Níveis altos – maturidade; introspecção psicológica; controlo de impulso; aceitação da diversidade.
Níveis baixos – guerra interpessoal; conspirações; lutas de território; mexericos.
Debates
Níveis altos – perspectivas diversas; estímulo à apresentação de ideias.
Níveis baixos – padrões autoritários; ausência de questionamento.
Alegria e Humor.
Níveis altos – atmosfera leve e descontraída; bom humor.
Níveis baixos – gravidade; seriedade; atmosfera triste, tensa e sorumbática.
Apoio a Ideias.
Níveis altos – sugestões recebidas de forma atenta; oportunidades para experimentar novas ideias;
atmosfera construtiva e positiva.
Níveis baixos – “não” automático; contra-argumentos destrutivos; procura de falhas; criação de
obstáculos.
Riscos Assumidos.
Níveis altos – iniciativas audaciosas; “andar no arame”.
Níveis baixos – mentalidade prudente e hesitante; “lado seguro”; “dormir sobre o assunto.
304
Indicações de Indicações de Indicações
Dimensões do Clima níveis altos níveis baixos neutras
F % F % F % TOTAL
Confiança e Abertura 31 91.2 1 2.9 2 5.9 34 100
Alegria e Humor 18 100.0 0 0 0 0 18 100
Desafio e Envolvimento 17 85.0 3 15.0 0 0 20 100
Liberdade 11 100.0 0 0 0 0 11 100
Debates 8 80.0 0 0 2 20.0 10 100
Apoio às Ideias 6 100 0 0 0 0 06 100
Tempo para as Ideias 1 12.5 6 75.0 1 12.5 8 100
Conflitos 0 0 3 100 0 0 03 100
Riscos Assumidos 0 0 1 100 0 0 1 100
TOTAL 92 82.9 14 12.6 5 4.5 111 100
Tabela III.5 – Dimensões do clima: indicações de níveis altos, níveis baixos e
indicações neutras nas sessões do grupo de pesquisa.
c) TEMPO PARA AS IDEIAS tem uma das percentagens mais elevadas de indicações
de níveis baixos – 75% (Ex: Mas senti que tinha sido pouco e eu precisava de mais tempo
do que aquele que, efectivamente, tinha acontecido – 9U4/8).
305
ok, se calhar já estou a defender-me a priori” – 9J1/15). Assim, porque se trata de
referências ao grupo, a dimensão CONFLITOS passa a ser a única sobre a qual
não existe nenhum tipo de indicação – nem relativamente a um nível alto, nem,
na sua versão oposta, aquele que indica (como os extractos acima colocados
são um bom exemplo), “capacidade de introspecção psicológica” (Isaksen,
1995).
Contudo, e apesar do que já foi dito e pode ser motivo de reflexão, é preciso também
fazer notar que uma maior ou menor ocorrência de referências a cada uma das
dimensões pode não ser, em si mesma, muito significativa por não fazer uma
caracterização geral do grupo mas, eventualmente, só indicar a consciência verbalizada
de cada uma das dimensões. É preciso completar com outros dados.
Considerando que: (1) o SOQ foi aplicado, depois do encerramento das sessões, a
todos os membros do grupo de pesquisa que chegaram ao final do projecto (nove dos
dez iniciais); (2) as respostas ao questionário foram dadas on-line e os resultados foram
calculados e preparados pelo The Creative Solving Problem Group, Inc.142, detentor do
copyright deste questionário143; (3) num encontro posterior, a cada pessoa foram dados
a conhecer os seus resultados individuais bem como os resultados globais do grupo; (4)
este grupo se apresenta com uma especificidade e limitação temporal de propósitos
que, de certa maneira, o diferenciam dos grupos sobre os quais estão construídos os
dados de referência144, parece ser interessante distinguir (gráfico III.1 e quadro III.1):
142
A razão por que os quadros com os resultados do SOQ se encontram em Inglês.
143
Ver também Anexo 6.
144
De acordo com os estudos que, a partir de Ekvall, têm vindo a ser conduzidos sobre o clima para a
criatividade e para a mudança, as organizações distinguem-se em função da performance dos seus produtos
e das percepções que as pessoas têm sobre o clima organizacional (Isaksen et al, 1995):
- as organizações inovadoras são capazes de desenvolver rapidamente novos produtos e serviços e
de os colocar no mercado;
- as organizações estagnadas são incapazes de lidar eficazmente com a novidade e tendem a
desaparecer rapidamente.
306
Climate Chart
Challenge &
Involvement
300
Risk-Taking 250 Freedom
200
150
100
Debates 50 Trust & Openness
0
Conflicts Playfulness/Humor
Inno Companies Stag. Companies Thesis
307
Averages
Innovative Stagnated
Company Thesis Company
Climate Variables Averages Averages Averages
Quadro III.1 – Aplicação do SOQ – tabela comparativa entre os resultados do grupo de pesquisa e
resultados de organizações inovadoras e de organizações estagnadas.
Médias das
Médias do Grupo de
Dimensões do Clima Organizações Diferença
Pesquisa
Inovadoras
Tempo para as Ideias 252 148 + 104
Confiança e Abertura 264 178 + 86
Debates 235 158 + 77
Apoio a Ideias 278 183 + 65
Alegria e Humor 276 230 + 46
Desafio e Envolvimento 275 238 + 37
Liberdade 241 210 + 31
Riscos Assumidos 218 195 + 23
Conflitos 11 78 - 67
Tabela III.6 – Aplicação do SOQ – diferenças entre os valores médios do grupo de pesquisa e das organizações
inovadoras.
Mas porque cada uma das dimensões apresenta uma grande amplitude (quadro III.2) e,
por isso, valores extremos muito distanciados dos valores médios, fica, por um lado, a
indicação da não existência de consenso quanto à forma como o grupo é avaliado, mas
também, por outro lado, a possibilidade de uma maior variedade e riqueza de
perspectivas. É preciso, então, ir um pouco mais longe e, pela conjugação dos
diferentes dados disponíveis (quadro III.2 e tabela III.7), procurar fazer outras leituras:
308
grupos de referência não houvesse a tal diferença de propósitos, com estes
valores estaria constituído o grupo “quase-mais-que-perfeito”.
Thesis
Climate Variables Averages Std. Dev. Range
309
d) Nos seus piores casos, as dimensões DESAFIO E ENVOLVIMENTO, LIBERDADE e
RISCOS ASSUMIDOS apresentam valores abaixo das médias das organizações
inovadoras.
- O valor mais baixo de LIBERDADE está mais próximo das organizações
estagnadas (+53) do que das organizações inovadoras (-110).
- RISCOS ASSUMIDOS está, no seu pior caso (120), quase equidistante das
organizações estagnadas (+67) e das organizações inovadoras (-75). É,
contudo, a penúltima dimensão dentro do conjunto de todas as dimensões
(tal como as organizações estagnadas), enquanto que, nas organizações
inovadoras, RISCOS ASSUMIDOS se situa no quarto lugar.
INFLUÊNCIAS NO COMPORTAMENTO
IMPLICAÇÕES DO ESTILO
CRIATIVO
Tarefa Capacidades
PROCESSO Contexto Estilo
Como pensa e se
comporta
Motivações Skills Outros
Estilo PRODUTOS
Preferido Resultados que
prefere
Ilustração III.9 – Implicações do estilo de criação. Ilustração III.10 – Influências no comportamento criativo.
© The Creative Problem Solving Group, Inc – Used with permission.
310
Selby, Don Treffinger e Scott Isaksen para a compreensão do estilo com que as
pessoas resolvem problemas ou lidam com a mudança – isto é, para a compreensão de
alguns dos traços que caracterizam a(s) PESSOA(s) dentro do sistema dos 4 P’s (Selby
et al, 2003). Procurarei, assim, perceber (a partir da análise das sessões e dos
resultados da aplicação do VIEW145), que estilos de criação estão presentes e qual o
desenho produzido pela conjugação desses diferentes estilos para, a partir daí, poder
fazer uma aproximação à compreensão do impacto desse desenho no processo de
investigação (PROCESSO), no clima gerado no grupo de investigação colaborativa
(PRESSÃO) e nos resultados da pesquisa (PRODUTO).
“Vou ler tudo porque falo muito pouco” (2K1/3), “em termos profissionais, a minha atenção é na tarefa”
(4M3/2) e “o K. é muito organizado” (3I7/1) são as três únicas referências a estilos de criação
que puderam ser identificadas nos relatos das sessões do grupo de pesquisa
colaborativa. Bem longe das 111 referências ao clima! Dá, de facto, a sensação de que,
enquanto sobre este último, existe uma grande consciência da sua importância, sobre
aqueles a sua influência é bastante mais desconhecida – o que, naturalmente, não lhes
retira importância. Resta, por isso, encontrar nos resultados do VIEW os diferentes
olhares presentes no grupo e o modo como, congregando diversos tipos de
capacidades criativas, energias e interacções, adicionaram valor ao processo de
pesquisa.
145
Ver também Anexo 7.
311
passo à análise dos resultados do grupo de pesquisa em função das três dimensões
independentes e dos dois estilos que, em cada uma delas, estão incluídos: 1.
Orientação para a Mudança – Explorador e Incrementador (E/I), 2. Formas de
Processar a Informação – Externamente e Internamente (E/I); 3. Formas de Decidir –
Centrada nas Pessoas e Centrada na Tarefa (P/T).
“Gosto de fazer as coisas de uma forma radical” e “gosto de fazer com que as coisas
funcionem melhor” (Selby et al, 2003:8-9) podem ser frases caracterizadoras dos dois
estilos de resposta à autoridade, à novidade e à estrutura aqui presentes. Numa
dimensão que tem uma escala que vai de 18 (forte preferência pelo estilo EXPLORADOR)
a 126 (forte preferência pelo estilo INCREMENTADOR) e uma média teórica de 72, o grupo
de pesquisa apresenta os seguintes resultados (gráfico III.2):
2
Count
0
18 23 28 33 38 43 48 53 58 63 68 73 78 83 88 93 98 103 108 113 118 123
Range
Explorador Incrementador
Gráfico III.2 – Aplicação do VIEW ao grupo de pesquisa– resultados da orientação para a mudança.
312
b) Uma média de 72.22, muito perto da média teórica, mas com uma ligeira
acentuação na direcção do estilo INCREMENTADOR, onde se situam cinco dos
nove membros da equipa – isto é, com uma pequena preferência em termos
médios por fazer melhor e trabalhar de uma forma precisa, metódica e
consistente.
“Discutir ideias com outras pessoas ajuda-me a pensar” e “penso melhor sozinho”
(Selby et al, 2003:11-12) podem ser as frases caracterizadoras dos dois estilos de
processar a informação durante a resolução de problemas – através da gestão da
energia pessoal (trabalhando as ideias internamente), ou através da energia dos outros
(trabalhando as ideias externamente). Numa dimensão que tem uma escala que vai de
8 (forte preferência pelo estilo EXTERNO) a 56 (forte preferência pelo estilo INTERNO) e
uma média teórica de 32, o grupo de pesquisa apresenta os seguintes resultados
(gráfico III.3):
313
b) Uma média de 32.67, muito perto da média teórica, mas com uma ligeira
acentuação na direcção do estilo INTERNO, onde se situam cinco dos nove
membros da equipa – isto é, com uma pequena preferência, em termos médios,
por se ser cauteloso na discussão de ideias, por esperar por partilhar uma opção
até que ela esteja bem elaborada.
2
Count
0
8 10 12 14 16 18 20 22 24 26 28 30 32 34 36 38 40 42 44 46 48 50 52 54 56
Range
Externamente Internamente
Gráfico III.3 – Aplicação do VIEW ao grupo de pesquisa – resultados da forma de processar a informação.
314
associadas, pode também ter desempenhado um papel de “ponte” entre as
preferências mais extremas.
3. Formas de Decidir
“Gosto de ter a certeza de que estamos todos no mesmo barco” e “gosto de garantir um
resultado lógico” (Selby et al, 2003:14-15) podem ser as frases caracterizadoras dos
dois estilos que traduzem o primeiro impulso e a primeira referência quando é preciso
tomar uma decisão. Numa dimensão que tem uma escala que vai de 8 (forte preferência
pelo estilo CENTRADO NAS PESSOAS) a 56 (forte preferência pelo estilo CENTRADO NA
TAREFA) e uma média teórica de 32, o grupo de pesquisa apresenta os seguintes
resultados (gráfico III.4):
2
Count
0
8 10 12 14 16 18 20 22 24 26 28 30 32 34 36 38 40 42 44 46 48 50 52 54 56
Range
Pessoas Tarefa
Gráfico III.4 – Aplicação do VIEW ao grupo de pesquisa – resultados das formas de decidir.
315
a) Uma amplitude bastante grande de 13-45 que abrange as duas direcções do
continuum.
c) Uma média de 28.67, não tão perto da média teórica como nas dimensões
anteriores, mas com um peso maior na direcção do estilo CENTRADO NAS
PESSOAS – isto é, com uma preferência algo marcada por pensar primeiro no
impacto das decisões nos sentimentos das pessoas e por procurar criar
harmonia e relacionamentos positivos. Aqui se situam quatro dos nove membros
da equipa, sendo que, especialmente um deles, apresenta uma forte preferência
por este estilo – -19 que a média teórica, enquanto que, no outro extremo, a
distância é de +13.
316
uma maior preocupação com as relações do que com os resultados; com
tendência para evitar conflitos ou situações tensas.
Que ler, então, em tudo isto? Que implicações, enredos e lições descobrir nesta
primeira fase de análise dos dados, aquela que, caracterizando o universo em que
decorreu o trabalho de campo, antecede, mas também acompanha, a procura de
respostas às perguntas da investigação?
Nesta tentativa de composição do retrato do grupo (e ainda que sem querer fazê-lo de
um modo exaustivo que julgo aqui não se justificar), continuarei a utilizar as
contribuições de Scott Isaksen, Brian Dorval e Don Treffinger (1994), mas agora pelo
emprego (um pouco adaptado) de um instrumento de análise e desenvolvimento de
opções146, que, pela utilização uma abordagem estruturada, me permite:
b) Retomar alguns dos dados dos relatos das sessões, dos resultados quantitativos do
SOQ e dos valores do VIEW (tabela III.8).
c) Conjugando isso com a descoberta dos significados das palavras que estão para lá
dos números (CONTEÚDO DAS TRANSCRIÇÕES das sessões e RESPOSTAS NARRATIVAS
do SOQ – quadros III.3.AeB; III.4AeB; III.5AeB) e com a reflexão de quem, como
OBSERVADOR PARTICIPANTE, registou o que nem nos números nem nas palavras está
contido.
146
ALUo, na versão original – Advantages, Limitations, Unique Qualities, Overcome Limitations (Isaksen
et al, 1995).
317
TRANSCRIÇÕES DAS SESSÕES RESULTADOS DO SOQ
1. Confiança e Abertura 31 1. Apoio às Ideias 278
2. Alegria e Humor 18 2. Alegria e Humor 276
3. Desafio e Envolvimento 17 3. Desafio e Envolvimento 275
4. Liberdade 11 4. Confiança e Abertura 264
5. Debates 08 5. Tempo para as Ideias 252
6. Apoio às Ideias 06 6. Liberdade 241
7. Tempo para as Ideias 01 7. Debates 235
8. Conflitos 01 8. Riscos Assumidos 218
9. Riscos Assumidos 00 9. Conflitos 11
O à vontade
7. Trabalhar sentados no chão em forma circular, num lugar semi-
fechado. O gesto de sentar no chão para mim é sinal de estar à vontade e
confiante com os meus: amigos ou familiares. E com os meus eu sou
criativo sem medo de errar porque ainda que eu erre e (…) Não foi
recebida a resposta completa
8. Sentir que estou “em casa” (…).
© The Creative Problem Solving Group, Inc. 2005.
1. Desafio e envolvimento
318
pessoalmente todas as despesas, se dispõem a passar um fim de semana fora de suas
casas para, num enquadramento diferente, se deixarem mexer pelo tema do projecto...
tudo parece confirmar, e mesmo sem os resultados do SOQ, o alto nível de motivação,
de profissionalismo e de compromisso pessoal (de DESAFIO E ENVOLVIMENTO), com a
participação e o sucesso do que, em certa medida, passou a ser um propósito comum.
- Sessão 2 - L1/2: Estou motivado a estar neste grupo da forma que melhor contribua para que
todo o processo se desenrole de acordo com aquilo a que nos propusemos.
- Sessão 2 – K1/7: Outra coisa que vinha comigo era a noção de que vinha para um desafio,
onde certamente podia saber como começar, mas que não sabia como ia terminar. Um grande
desafio mesmo. Lançar-se ao mar e saber como se lançar nele e não saber talvez como sair do
mar.
- Sessão 10 – L3/2: Não me senti sozinho, senti que éramos todos a fazer a situação.
Compromisso e envolvimento
9. (…) compromisso e envolvimento das pessoas do grupo.
Apoio a ideias
8. Sentir que (…) seja qual for o desafio proposto, é acolhido e posto em
acção.
3. (…) a solidariedade na implementação das decisões.
4. O facto de trabalhar com um grupo extremamente aberto a tudo o que
é novo e diferente (…)
9. Receptividade (…)
319
2. Alegria e humor
- Sessão 2 - K1/8: Posto no local vivi uma outra sensação - aumentou o grau de alegria que
trazia ao entrar em contacto com o grupo. Achei que estava num grupo muito simples, com o qual
me podia identificar facilmente. E também um grupo tranquilo. A tranquilidade expressou-se pelos
nossos gestos. Estávamos sentados no chão e depois cada um à sua maneira – uns deitados, uns
não sei quantos mais.
3. Confiança e abertura
- Sessão 2 – E1/4: Fiquei, posso dizer, deslumbrada com o clima de abertura e disponibilidade
que senti em todas as pessoas.
- Sessão 7 – I2/8: Não sei se querem fazer perguntas, se calhar ajudava um bocadinho.
- Sessão 9 – L1/23 - Fundamentalmente foi isso, o desejo de, ontem e hoje, procurar estar numa
atitude de confiança e de proximidade relativamente às pessoas do grupo.
320
pessoas muito diferentes e com uma dose de sinceridade muito grande; 3. a confiança e o
respeito que existem entre todos os elementos do grupo.
Mas, além disso, fica também a impressão de que, por causa de “um tema que pode ser…
não fácil” (2I11/1), algumas das referências à confiança e abertura existentes também se
deveram à vontade-necessidade-preocupação de cuidar de alguns, de confirmar que
todos se podiam sentir seguros e protegidos.
- Sessão 2 – A1/3: acho que neste clima senti que estaria sempre implícito a confidencialidade.
Está explícito hoje, mas acho que estava implícito em todos, porque tenho a impressão que existiu
este eco, digamos assim, de clareza entre todas as pessoas.
4. Apoio a ideias
Muito interessante a diferença tão significativa entre os resultados das transcrições das
sessões e os do SOQ relativamente a APOIO A IDEIAS já que, de seis únicas ocorrências
no primeiro, se passa para o topo da “classificação” no segundo. Tudo parece indicar o
quanto, através da comunicação não verbal, a atmosfera foi construtiva e positiva e a
capacidade de suspensão de juízo crítico e de escuta activa estiveram presentes.
5. Incrementador-Interno-Pessoas
321
persistência, estabilidade, ordem e continuidade; ser INTERNO é ter o gosto e a
capacidade de reflectir e de trabalhar uma tarefa em profundidade, bem como de criar
um ambiente de tranquilidade e concentração; ser CENTRADO NAS PESSOAS é ser-se
sensível em relação aos outros, é ter-se capacidade de se ser mais afirmativo quando
são apresentadas novas formas de pensar (Selby et al, 2003).
Actividades específicas
7. O ambiente de desporto radical: não sou muito adepto do desporto
radical e nele eu não sou criativo. Fico muito retraído se assim posso
dizer. Às vezes gosto de assisti-lo mas não praticá-lo.
322
1. Riscos assumidos
Ainda que, como se viu atrás (tabela III.6 e III.7), os valores de RISCOS ASSUMIDOS
obtidos no SOQ (218) sejam bastante positivos se unicamente comparados com os
valores das organizações inovadoras (195), numa análise mais cuidadosa é possível
perceber que: (1) esta dimensão tem o penúltimo valor mais baixo no conjunto das nove
dimensões (contra o quinto lugar das organizações inovadoras), só acima de “conflitos”;
(2) as respostas narrativas do SOQ indicam claramente a existência de uma atitude
algo prudente e de resguardo que não terá permitido iniciativas muito audaciosas.
É este um dos riscos que corre quem, ao ser INCREMENTADOR, tende a cingir-se
demasiado às regras estabelecidas, a tornar a estrutura e os propósitos da pesquisa
mais um fim em si mesmos do que um meio para procurar opções radicalmente
diferentes.
De resto, pensar que, ao longo de tantas horas de trabalho conjunto, imperou um clima
de “Alegria e Humor” sem que, em contrapartida e pelo equilíbrio dinâmico que só é
gerado pelos opostos, tivesse havido espaço para as lágrimas (num tema tão sensível,
quanto pessoal, emotivo e... “não fácil”147), parece confirmar a existência de poucos
riscos assumidos – o risco que corre quem se permite revelar os sentimentos mais
profundos (de medo, tristeza, raiva, dor, ou quer que seja) (Lowen, 1984, 1997); o risco
que corre quem se permite expor para lá do que o discurso das palavras guarda e do
que a “compostura” da Pessoa Pública e o refúgio no mental protegem.
147
Sessão 2 – “(...) um relaxamento demasiado longo sobre um tema que pode ser… não fácil (...)”
(2I11/1).
323
2. Conflitos
Tanto nos resultados do SOQ, como nos relatos das sessões, a dimensão CONFLITOS
parece apresentar valores demasiado baixos – o que, aliás, se confirma nas respostas
narrativas e pode ser um dos efeitos dos poucos riscos assumidos.
É este o risco que corre quem, por estar tão CENTRADO NAS PESSOAS e na harmonia
(Selby et al, 2003), evita as situações mais tensas e, por isso, pode também
negligenciar outro tipo de resultados que os assuntos difíceis são capazes de
proporcionar. É como se, por causa do medo do conflito, também se eliminassem os
DEBATES (que, aliás, apresenta um dos valores mais baixos no SOQ); é como se, em
vez de se formar um coro a muitas e diferentes vozes, o grupo se tivesse contentado
em ouvir, mesmo que atentamente, muitos solos.
Não será por esta razão que a sub-categoria “caracterização das pessoas do grupo –
feita pelos outros” ficou uma sub-categoria quase vazia?
Não estará aqui um sinal de que, apesar dos níveis de “confiança e abertura”, e porque
o conflito intragrupal não ocorreu, não se atingiu o desenvolvimento de uma maior
coesão e maturidade do grupo (Sacadura, 1992, wikipedia, 2007148)? Por falta de tempo
(para as ideias)? Por falta de desafio e envolvimento já que, em si mesmos, os
148
http://en.wikipedia.org/wiki/M_Scott_Peck (15.01.07) - Com base na sua experiência, Scott Peck refere
que a construção de uma comunidade passa, tipicamente, por 4 fases:
A pseudocomunidade – os membros fingem sentir-se à vontade uns com os outros e disfarçam as suas
diferenças agindo como se elas não existissem.
Caos – depois da pseudocomunidade ter falhado, as pessoas questionam-se umas às outras e revelam as
suas diferenças e os seus desacordos.
Vazio – as pessoas aprendem a esvaziar-se dos seus ego quando eles impedem a formação da comunidade;
é um passo difícil porque envolve a morte de uma parte do indivíduo.
Verdadeira comunidade – as pessoas estão em completa empatia umas com as outras; é um nível de grande
compreensão tácita; as discussões, mesmo quando acesas, nunca se tornam desagradáveis e os
motivos não são questionados.
324
resultados do projecto de pesquisa só produziam efeitos na vida das pessoas na
medida em que cada um assim o permitisse ou desejasse?
- Sessão 1 – U18/1: “Um dos objectivos que deixamos presente sempre é o do desenvolvimento
pessoal de cada um. O desenvolvimento vai até ao ponto que cada um quiser”.
Redução de objectivos
2. (…) não me afastar do objectivo.
11. Excessiva preocupação com o resultado final da pesquisa.
Nada
3. Nenhum.
4. Nenhum.
8. No trabalho proposto e na empatia conseguida entre todos os
elementos “todos por um e um por todos” não existiu nada que retraísse
a minha criatividade.
10. -
3. Se calhar...
Uma curiosidade: ao longo dos relatos das sessões, a expressão “se calhar” surge mais
de 200 vezes.
- Sessão 2 – U2/1 – “Se calhar vamos tratar dessa questão da supervisão, talvez cooperação,
vamos ver...”
- Sessão 3 – J4/5 – “Este, se calhar, é o primeiro dos medos que existe com quem trabalha com
muita gente, que é o medo das primeiras impressões”.
325
4. Reflexão sobre as limitações
Primeiro, porque houve riscos que não foram assumidos; segundo, porque o conflito foi
evitado; terceiro, porque talvez se tenha optado mais pelo desenvolvimento de
esquemas de continuidade em relação aos planos estabelecidos do que pela liberdade
de criar, pode também ter-se perdido um olhar radicalmente novo e alguma da
sabedoria que está para além do que nasce do mental, do consenso e do seguro.
Posto isto, e porque numa atitude criativa (que recusa a atitude de queixa e a crítica que
paralisa), os problemas devem ser encarados como convites da vida para descobrirmos
o melhor de nós mesmos (Aldana, 1996), passo a sintetizar sob a forma de perguntas, e
tal como também aprendi com Scott Isaksen, Brian Dorval e Don Treffinger149, alguns
dos desafios à transformação que aqui ficam sugeridos:
• Qualidades Únicas
E porque a originalidade é sempre relativa, vou procurar nas palavras dos membros do
grupo o que, por eles, foi sentido enquanto tal.
149
Referência à forma de enunciar limitações durante a aplicação do ALUo: ser enunciada sobre a forma de
uma pergunta; ter potencial para a produção de ideias; fazer a pergunta para que realmente se quer novas
ideias; ser conciso; indicar propriedade; ser independente de critérios de avaliação; conter os seguintes
elementos – um apoio de partida (Como...?; De que maneira...?), um verbo de acção, um complemento
directo (Isaksen et al, 1994).
326
1. Possibilidade de discutir o que não estava planeado
- “Isto faz-me lembrar os problemas que encontramos na formação. Em que, tendo de ficar sujeito
ao programado, acabamos por perder coisas muito importantes. A vantagem de um programa
destes é essa – não temos programa e podemos ir ao fundo” (3J3/1).
2. Questionamento
- “Não entendi a sua pergunta no sentido de provocação. Mas acabou por ser uma pergunta que me
levou a uma reflexão muito profunda” (7K2/1).
3. Comunicação interpessoal
- “Estava encantado com estes dois momentos porque, de facto, são momentos únicos - pessoas
que mal se conhecem partilharem desta forma o medo, ou aquilo que é a sua vivência (2J4/1).
- “É a primeira vez que estou a partilhar esse medo” (2K6/2).
- “Coisa engraçada, nunca pensei que iria dizer isto tudo. (...) nunca pensei que iria pôr aqui em
comum. Mas somos todos um bocado sacerdotes – guardamos tudo cá dentro. Isto é uma
partilha” (3A5/2).
- “E começámos a caminhar. E começámos a falar da vida - falámos da vida, falámos de amizade.
Não quis que a caminhada terminasse… A conversa estava sendo muito divertida - não em
termos superficiais. E foi mesmo uma conversa muito profunda para mim. Falei de algumas coisas
de que já não falava há três anos com pessoas assim” (9K1/11).
327
4. Reflexão sobre as qualidades únicas
150
http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/Vds/camoes.html
328
- Como melhorar a capacidade de aceitar e lidar com a diversidade?
Foram estas as perguntas com que, atrás, procurei sintetizar as limitações recolhidas
nos diferentes documentos em análise. Muitas outras poderiam ser colocadas. Contudo,
e qual jogo de puzzle em que todas as peças se encaixam, estas poderiam ser também
as perguntas a colocar a montante e a jusante das respostas dadas pelos membros do
grupo à terceira pergunta narrativa do SOQ (Quadros III.5A e III.5B):
“Qual a acção mais importante que implementaria no seu ambiente de trabalho para
melhorar o clima de criatividade?”
Nada
4. Nenhuma. O clima é de total abertura, criatividade, liberdade individual.
329
Muito haveria a dizer a partir daqui e, seguramente, muitas outras opções haveria que
procurar. Mas agora não é, nem o tempo, nem o espaço, para o fazer. Mas talvez as
venha a encontrar quando, mais adiante, procurar responder àquela que é também uma
das perguntas da pesquisa – “Como pode o educar lidar com o seu medo e, por isso,
ajudar as pessoas a enfrentarem os seus medos?”
Qual movimento de espiral que sempre “regressa a um ponto novo”, com toda a riqueza
do hologramático aqui presente, parece que, mais uma vez, “tudo começa no sujeito e
pelo sujeito do conhecimento, singular e plural consciente de si e do grupo, interessado
na construção do conhecimento e do mundo compreensível. A saída da zona de
conforto implica pensar o novo e agir de outra forma” (Feitosa, 2006: 77).
330
331
332
caracterização geral de feita pelo próprio
cada uma das pessoas do
grupo feita pelos outros
as pessoas do grupo de
razões para participar
pesquisa colaborativa
expectativas em relação ao trabalho
desafio e envolvimento
confiança e abertura
liberdade
debates
apoio a ideias
riscos assumidos
formas de decidir
O QUÊ
COMO
POR QUÊ
PARA QUÊ
A alma não tem segredo que o comportamento não revele.
Lao-Tsé
2. O que faz com que uma vida seja serena, útil e corajosa?151
151
Ver excerto do mapa mental das categorias de análise no final deste ponto do capítulo.
152
Ver também “Introdução – 3.2 Propósitos e perguntas de investigação””.
153
Ver “Capítulo 1 Roteiro – 2.4.1 Mapa mental das categorias de análise”.
154
Sessão 2 – trabalho de relaxamento em que, a partir da consideração de diversos períodos da vida, se
procurou retomar memórias de experiências pessoais que suscitaram medo.
333
uma primeira subdivisão dos medos colectados nos relatos das sessões, que os
organizasse como “medos da infância”, “medos da adolescência” e “medos da idade
adulta”. Porém, quando, por força da pouca clareza de alguns discursos, se tornou
impossível afirmar, para lá de qualquer dúvida razoável, a que período da vida muitos
deles diziam respeito155, abandonámos essa pretensão.
Mas a interrogação sobre as razões dessa impossibilidade foi ficando em aberto. Por
esse motivo, ao longo do trabalho de análise, ficámos também mais disponíveis para
identificar alguns tipos de subterfúgios que, subtilmente e enquanto ESTRATÉGIAS DE
ENCOBRIMENTO, davam indicação das dificuldades sentidas em situar, compreender,
encarar ou mesmo ter consciência dos próprios medos.
c) Negar os medos.
- “E não tenho medo da morte. Tinha se ficasse à mercê de uma pessoa que me fizesse mal.
Mas a morte, acho que é inevitável e não tenho medo” (3M2/9).
155
Tal como também é explicado na descrição das categorias de análise (Anexo 4), nos relatos das sessões
muitas vezes não fica claro se os medos existiram na infância e adolescência e persistiam na idade adulta,
se existiram na infância e adolescência, mas já não existiam na idade adulta, ou se só surgiram na idade
adulta.
334
d) “Impessoalizar” o discurso.
- “Queremos uma coisa, ou um sentimento de amor, ou qualquer tipo de sentimento que não
sou capaz de expressar por medo” (1N1/3).
- “Os medos maiores são quando a gente decide enveredar por um caminho sem retorno”
(10M1/3).
156
Ver “Capítulo 1 Roteiro – 2.2 Descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas”.
335
- Extracto de um diário de campo da 3ª sessão – “Muito daquilo que as pessoas
estão trazendo são «revelações» de factos passados ou, essencialmente, de factos
profissionais (...) deixando de lado aspectos mais pessoais da sua actualidade”.
Por tudo isto considero que o eixo central da categoria “o quê”, que procura responder à
pergunta “o que faz com que uma vida não seja serena, útil e corajosa”, é o DISFARCE
DO MEDO e que o sentido profundo desse disfarce é a NEGAÇÃO DE SI MESMO. O que isto
implica, os seus fundamentos e formas utilizadas é o que procurarei desenvolver em
seguida.
336
2.2 Definição e caracterização do medo
- “Defini o medo como a mobilização da energia para o recuo. E a mesma energia que mobilizamos
para o recuo pode ser mobilizada para avançar. Porque há pessoas que, aparentemente, são
fracas, mas descobrimos que não são assim tão fracas pela força que nos mostram ao recuarem
em determinadas situações. Isto porque no medo canalizam muita energia para se protegerem.
Aquela energia que andaram a esconder pode ser mobilizada para avançar” (3K2/14).
- “O medo, para guardar na tal caixa, ou a tal caixa para guardar o medo, é ambas as coisas e é
também o que me conduz a elas. Por um lado, um nada a que me apego e que se avoluma, um
nada que se esconde atrás da aparência de espaços preenchidos, um nada que eu avolumo, que
me recuso a olhar de frente e escondo em espaços sucessivamente mais vastos. O medo é
também uma energia “ocupada”, bloqueada, que se revela finalmente inútil e vazia. (…) o medo
vai junto com as coisas boas, o medo de as perder. No mesmo sítio onde se escondem as coisas
boas, esconde-se o medo” (3E3/4,5).
Contudo, tanto nas definições que enquanto tal existem, como nas situações em que o
medo é explicado a partir das suas representações simbólicas (como é o caso desta
última definição acima transcrita157), não é difícil perceber a profunda AMBIVALÊNCIA que
nele é sentida e que, aliás, tem paralelos com outros pares de opostos básicos
identificados por alguns autores. Por exemplo:
157
Ver “Capítulo 1 Roteiro – 2.2.3 Etapa 2, sessões 2 e 3, construção de «caixas para guardar o medo»”.
337
- com os sentimentos de PRAZER e DOR como genealogias da regulação vital do
distanciamento e da aproximação e do fechamento e da curiosidade, explicados
por Damásio (1995, 2000, 2003);
- com aquilo a que, numa linguagem mais poética, mas não menos precisa,
Gibran (1995) chamou a ALEGRIA e a TRISTEZA como pratos inseparáveis de uma
balança que pesa o ouro e a prata com que o nosso coração se enche.
E porque aquela ambivalência, mesmo que nem sempre tão claramente verbalizada, é
um atributo que se encontra presente nas diversas definições de medo do trabalho do
grupo de pesquisa, é a partir da sua análise que procurarei começar por construir uma
aproximação ao entendimento do que no medo está contido.
- “Uma pessoa tem medo, tem receios, acho que há medos que são universais (...), há outros que,
se calhar, têm a ver com o nosso percurso pessoal” (1M2/3).
- “Tenho angústias que, umas vezes, não me perturbam a minha vida no dia-a-dia, mas que, outras
vezes, perturbam. De maneira que essas angústias são os medos que nós temos e que, quer
queiramos quer não, toda a gente tem” (1A1/10).
- “O medo é o reflexo das expectativas que criámos” (6M15/1).
Três ideias estão especialmente presentes nos excertos aqui escolhidos para
exemplificar esta ambivalência do medo.
338
violências e desencantos de uma vida que fazem com que o medo também seja único e
personalizado (Damásio, 1995; Krishnamurti, 2002).
A terceira é que se o desejo é condição necessária da vida (por isso, universal), já “as
expectativas que criámos”, os desejos inferiores (Peña y Lillo, 1991), são resultado de uma
criação social ou individual. São, por isso e muitas vezes, necessidades deficitárias
falsas que desfiguram a verdade profunda da realidade do Ser e aprisionam no medo a
vida do homem (Peña y Lillo,199; Guenther & Combs, 1980).
339
- “É como quem procura tapar buracos, colocando um tapete em cima para disfarçar. Numa hora de
distracção pomos-lhe o pé em cima e caímos. O que será que eu guardo na minha caixa dos
medos e que não quero recordar?” (6U7/13).
É, por isso, e muitas vezes também, um medo “colorido”, “alegre” e fingidor que finge tão
completamente que (talvez) nem chegue a fingir que é dor a dor que até (já) não
sente158.
“Nosso medo pode ser paralisante, de modo que só podemos funcionar reprimindo e
negando o medo. Eliminamos o sentimento tensionando o corpo e restringindo a nossa
respiração, mas ao fazer isso eliminamos também a possibilidade da alegria” (Lowen,
1997:59).
158
Alusão a Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente, que chega a fingir que é
dor a dor que deveras sente...” http://www.tanto.com.br/fernandopessoa-autopsicografia.htm (2007).
340
Se, em capítulo anterior159, já foi possível apresentar uma relação simbólica de 241
medos diferentes recolhidos em diversas leituras e situações, nas transcrições das
sessões do grupo de pesquisa foram identificados mais 186 – o que perfaz um total de
427 exemplos de medos aqui apresentados. Contudo, esta frase tão simples, “os medos
eram sempre o mesmo medo”, faz-me reconhecer o que considero ser a segunda
ambivalência do medo.
À medida que se procura avançar para níveis mais profundos de classificação, vai
ficando claro que, na parafernália de medos com que diariamente lidamos (e nas
imensas caras e máscaras com que ele se cobre e disfarça), reside um único medo que
está subjacente a todos os outros medos, o medo de não sermos suficiente. Aquilo que
Jeffers (1991) identifica como sendo o nível de medo mais profundo, o medo de não ser
capaz de lidar com o que a vida trouxer – “Tinha medo de me deparar com uma situação que
depois não tivesse maneira de escapar, nem de fugir, nem de pedir ajuda” (3O4/4).
Por isso, e muito embora estas duas frases tenham sido ditas, certamente, em relação a
uma situação de vida muito particular, esta ambivalência de pluralidade/singularidade
do medo tanto pode ajudar (sem preocupações de carácter teórico-metodológico), a pôr
um termo na construção de uma lista que se afigura como interminável, como a
acreditar (porque assim é possível circunscrever o medo), que alguma coisa pode ser
feita no sentido de apaziguar com alguma eficácia o que de tanta dor se reveste.
- “O medo é também parte de realismo. Agora até que ponto é que é realismo, e até que ponto é
não querer ir lá... Mas os dois princípios são muito activos. O medo é princípio de realismo. Quem
não tem medo é doido!” (4I1/2).
Tal como em Goleman (2005), também aqui podem ser identificadas duas espécies de
medo – o medo construtivo, positivo, apropriado que, enquanto chamada para a acção,
ajuda a sobreviver; e o medo destrutivo, negativo, desadequado que, sendo prejudicial
para o próprio e para os outros, impede o processo de desenvolvimento humano.
159
Ver “Capítulo 3 Descobrir caminhos de outros”.
341
Mas o que marca a fronteira entre os dois? De acordo com Moffitt (2003b), não é o
impulso emocional em si mesmo, mas a percepção-interpretação, ajustada ou
distorcida, da situação em causa.
- “Outros medos (...) da rejeição, de ficar sozinha... também gestos que podem não significar nada,
mas que eu interpreto como de rejeição” (3E6/1).
E isto deixa no ar uma outra pergunta, a mesma feita por Paul Watzlawick (1991) – será
que “a realidade é real?”. Se, conforme este autor, existe uma realidade de primeira
ordem (aquela cujas propriedades físicas e objectivas são acessíveis a um consenso de
percepção e a uma prova verificável e científica), e uma realidade de segunda ordem
(aquela que atribuindo um significado e valor a essa realidade, é constituída pelas
percepções subjectivas, muitas vezes contraditórias), só no reino da ilusão e do
absurdo se pode aceitar a existência neste campo de uma perspectiva única, de uma
verdade eterna e... “real”.
Como, então, frente a uma realidade tão plural, criar condições para um discernimento
que permita que o indivíduo não perca, por causa do medo, “a união com a sua própria
essência” (Trigueirinho, 1999:373)? Em Lowen (1997:42) encontro uma resposta – é a
capacidade de acção da pessoa que o sente que cria essas condições. Aquilo que, no
conceito de ACÇÃO INTENCIONAL, implica “o verdadeiro agir do ser” (Sérgio, 2005:22) e
nos remete para a ambivalência seguinte.
- “Quis fazer a caixa de um material que facilmente pudesse amarfanhar, porque não quero viver
com medo, porque sei que o medo perturba a vida” (3A2/16).
- “Eu gosto dos meus medos. Na verdade chateiam-me imenso quando os tenho, mas depois,
quando me ajudam a superar, a atingir objectivos, são fantásticos porque percebo que eles
também foram importantes para isso. Eu não quero que eles fiquem aprisionados, quero que eles
se transformem em algo. Então, aqui, nesta parte da caixa, entra “o medo que mete medo”; e, por
aqui, sai “só medo”. (...) Aqui entra o medo que bloqueia, o medo que não permite avançar (“o
medo que mete medo”), mas depois de ser filtrado pelas memórias, pela razão, pela ideia de que
342
o medo é meu, e que é importante e que faz parte de mim, sai “só medo”. E “só medo” é a ideia de
que é um medo que eu posso dominar, e que posso usá-lo a meu favor. Porque “medo que mete
medo” não é “só medo” (3J4/24-25).
- “Eu construí uma mão (...) pelo profundo simbolismo que lhe está associada: mão aberta ou mão
fechada; a mão que me foi dada, a mão que me foi recusada; a mão que tenho contraída, a mão
que tenho relaxada; a mão que dá e recebe (semi-aberta, disponível, que afaga) é a mesma mão
que agride e que recusa; a mão que esconde, a mão que revela. Com todas elas eu estou, mas a
mão é minha, é do meu poder e de mais ninguém” (4U6/2,4).
- “A caixa que eu gostava de fazer para os medos era uma daquelas caixas dos três R’s, reduzir,
reciclar e recuperar – (...) a tentativa de reduzir os medos, de os reciclar, de os reeducar e de os
transformar em coisas positivas, de conseguir servir-me deles um pouco para o meu crescimento”
(4L9/7).
“Porque «medo que mete medo» não é «só medo»”, a escolha entre “amarfanhar” ou “viver
perturbado”, entre “ser dominado” ou “usá-lo a favor de si mesmo”, entre lutar ou fugir, depende
da pessoa e da situação (Lowen, 1997) – porque “a mão é minha, é do meu poder, e de mais
ninguém”. Por isso, quando a ACÇÃO se revela plena de sentido ou intencionalidade
(Sérgio, 2005), revela também a bravura (talvez o segredo) de quem é capaz de
transformar o medo em energia positiva (Neill, 1971) – “reduzindo”, “reciclando”, “recuperando”,
isto é, “reeducando”.
Será por causa deste movimento oscilante entre força e fraqueza que o Sermão da
Montanha me vem insistentemente à memória?
“Felizes os pobres em espírito porque deles é o Reino do Céu. Felizes os que choram
porque serão consolados. Felizes os mansos porque possuirão a terra. Felizes os que
têm fome e sede de justiça porque serão saciados” (Mateus 5, 3-6).
- “Nunca tinha reflectido sobre o medo desde a sua perspectiva positiva! (...) Tive de reflectir em
mim mesmo, nas minhas capacidades, nas minhas forças, buscá-las ou rebuscá-las para vencer
343
certos medos (...) quando os considerasse verdadeiros obstáculos para singrar nos meus sonhos”
(Extracto de um diário de campo da 1ª Sessão).
- “Deixem que alguns dos meus medos continuem (...). Eles são um desafio para mim. Destes
medos que são desafios eu não devo sentir medo. Ao contrário, são a minha força. Permitem que
eu canalize a minha “energia de recuo” para avançar” (Extracto de um diário de campo da
12ª Sessão).
Muito ligada com a anterior, está esta sexta ambivalência. A fraqueza ou a força dos
medos depende da forma como se olha para eles – enquanto ameaças ou enquanto
desafios – e a forma como se olha para eles depende, em última análise, da forma
como olhámos para nós mesmos, isto é, do nosso autoconceito (Guenther & Combs,
1980).
- “Eu não sei quantas vezes já fiz este exercício. Tenho sempre a mesma sensação de que, a meio,
me perdi, que me enganei. Não sei como é. Faço isto quase todos os anos (...) e acontece-me
sempre isto” (10E6/1).
- “Qual é hoje o meu monstro que está lá no centro à minha espera?” (10E7/2).
Dizem os budistas que, na prática do Zen, o difícil (mas também o alvo da prática), é
manter a “mente do principiante” – a mente que, sendo rica e suficiente em si mesma, é,
ao mesmo tempo, uma mente vazia e uma mente pronta.
Assim, tal como o segredo da prática Zazen não reside numa grande compreensão,
mas numa mente aberta (já que só sabe quem não sabe, sabendo) também este
atributo do medo nos faz compreender que qualquer ponto de chegada é ponto de
partida pois o medo só deixa de o ser quando o é – porque não se é, mas se vai sendo.
344
2.3 Relação de medos e efeitos do medo
E esta triple categorização, vista agora à luz dos disfarces e das dualidades do medo,
também revela o que nos pode fazer perder na negação de nós mesmos e das nossas
possibilidades humanas.
Enquanto que os “medos do mundo” identificados na análise das nossas sessões estão,
na sua quase totalidade, relacionados com medos físicos exteriores (medo do escuro,
dos bichos, das alturas...), muitos dos “medos da pessoa consigo mesma” e dos “medos
com os outros” sugerem dificuldades de comunicação intra e interpessoal – medo da
loucura, da decisão, da avaliação, da dependência, do compromisso, de ser diferente,
do conflito, da intimidade consigo mesmo e com os outros... – “temos medo da solidão
estando sós, e temos medo de continuar sós, estando com outros. E que os outros nos deixem sós”
(4E20/1).
160
Ver Anexo 4 – Descrição das Categorias de Análise.
345
interiorização que (...) supõe um encontro comigo mesmo - numa reflexão sobre as
grandes interrogações da minha natureza e da minha missão relacional no mundo. Só
assim a minha comunicação será rica e geradora de vida humana nos outros”.
(Marroquin, 1995:21).
a) Temos medo de nós mesmos, mas também temos medo dos outros.
- “Acho que um dos grandes medos que tenho é de mim própria e é da loucura. Esta coisa de
não fazer o que devo… Sempre tive muito medo” (7I16/2).
- “[Tenho] medo das amizades falsas” (3K1/16).
- “Tenho medo da confusão, tenho medo dos conflitos” (7I2/4).
b) Temos medo da solidão, temos medo de estar ou de ser deixados sós, mas
também temos medo de estar acompanhados e de partilhar a vida.
- “O medo de estar deslocada, o medo de ser abandonada” (4U6/7).
- “Medo de ficar só, ou medo de perder o controlo sobre o outro. (...) o medo de perder o filho”
(6J33/2).
- “Às vezes não fazemos coisas porque não queremos que os outros saibam que nós sentimos
determinadas coisas” (6J31/2).
- “O medo de tocar e de ser tocado” (6E11/10).
- “Chegou a minha vez, que é enfrentar um dos meus medos, que é falar sobre as minhas
vivências” (9L1/1).
346
- “A maneira de olhar o exercício físico, que acaba por ser, de algum modo, o olhar o meu corpo”
(3E8/1).
- “Temos medo do mal que nós podemos fazer as nós mesmos e aos outros. E temos outro medo,
que é o mal que as outras pessoas nos façam a nós. De certa maneira, é um pouco o medo da
solidão – o medo do relacionamento interpessoal e de querer agradar e de querer ser amado.
Acho que é quase um denominador comum de quase todas as conversas” (4M16).
Por isso, muitos dos medos identificados também indicam que, em diversas áreas da
nossa vida, vivemos nos primeiros níveis das necessidades humanas – de manutenção
fisiológica, de segurança, de pertença a alguém, de auto-estima e estima pelos outros
(Maslow, 1991; Guenther & Combs, 1980).
- “Medos mais... comezinhos: o medo de cair, de me magoar fisicamente (associado a tudo quanto
é exercício físico)...” (3E5/1).
- “Tenho medo de que não gostem de mim” (7I2/6).
- “Tenho (...) algum receio do que os outros vão pensar, do que os outros vão dizer” (4L9/12).
- “Porque eu tinha que ter a responsabilidade de fazer com que as coisas corressem bem. (...) Mas
o objectivo era as pessoas ficarem a achar que eu sou o máximo (4U22/1; 23/1)161.
161
Categorizado como “porquê – causas do medo”.
347
necessidades mais elevadas, também são muito mais distintamente humanas (Maslow,
1991):
Mas será que são medos, ou são desejos e sonhos? O medo pode ser tão difícil de
interpretar quanto o sonho. Se o medo surge e não sabemos, muitas vezes, como nos
possui, não poderá confundir-se com o sonho que nos surpreende e não sabemos,
também muitas vezes, de onde vem e de que modo nos toma? Mas se os dois nos
apoquentam, a diferença é que o medo nos limita e o sonho tantas vezes nos eleva.
Então, se assim é, estes “medos de gente madura” não serão medos, mas desejos e
sonhos.
348
a) Sofrimento – “O medo em mim (...) é uma coisa incomodativa e é uma coisa que acaba por
estar sempre presente de uma forma fininha” (4L9/6).
c) Sentimento de culpa / avaliação – “Culpava-me por não fazer o que devia” (7I3/1).
Por outro lado, quase todas as subcategorias dos efeitos do medo também podem ser
vistas como tendo subjacente a negação de um ou mais dos movimentos da acção:
a) A não consciência.
- “Criação de um mundo irreal” – “perturba a nossa realidade e, quando uma coisa nos
ofusca os olhos, perdemos a noção do real” (3A1/16).
b) A não responsabilização.
- “Criação de dependências”: “estava a precisar que me dissessem «pronto, não vai mais
acontecer...»” (3O4/6).
d) A não execução.
- “Paralisação” – “fiquei paralisada, sem saber o que havia de fazer” (6E13/4).
- “Dificuldade de comunicação” – “atrapalha a vida em alguns aspectos, particularmente
(....) os aspectos de relacionamento pessoal” (4L9/6).
São, por isso, efeitos que nos distanciam da possibilidade de aproximação à vivência
como pessoas adequadas e, consequentemente de padrões de vida mais elevados:
“Pessoas adequadas (...) [são] pessoas, capazes de pensar por si, de examinar todos os
dados presentes em cada situação e tomar ali as decisões mais acertadas e mais
eficientes possíveis e de viver em conformidade” (Guenther & Combs, 1980:130).
349
A única subcategoria de efeitos que tem subjacente um, ou mais, dos movimentos da
acção e da mudança é aquela que denominámos “estimulação da acção”, a que
congrega efeitos que podem ser considerados positivos e nos aproxima daquela
adequação:
- “[São] positivos quando aprendo a enfrentar aquilo que me faz medo” (6I2/2).
- “[Por causa do medo da normalidade] sou patrão de mim próprio” (3J4/17).
Assim, e apesar de quase não apresentarmos resultados que digam respeito ao corpo
sensitivo e às nossas capacidades perceptivas (extra-sensoriais, intuitivas e místicas),
fica claro que o medo, afectando cada um dos corpos constituintes da nossa
corporeidade, afecta a nossa totalidade humana.
E se poucas são as referências ao corpo sensitivo, acredito que isso não se deve, muito
pelo contrário, ao facto de esta nossa dimensão não ser afectada, mas ao
desconhecimento e à nossa falta de consciência e sensibilidade em relação às
potencialidades que nesse campo existem. É que, sendo quase todo o grupo de
pesquisa constituído por pessoas portadoras de uma cosmovisão ocidental e de uma
cultura urbana e com uma formação escolar de nível superior, terão, por “norma”, muito
mais prática de utilização e aquisição de conhecimento a partir do hemisfério cerebral
esquerdo, racional e lógico, do que do direito, intuitivo, holístico, integrador, emocional
(Sisk & Torrance, 2001; Shalcross & Sisk, 1989; Sousa et al, 1998). Contudo, também
por isto, tudo indica que, estando o todo presente na parte e a parte no todo, existe a
350
possibilidade de através do todo(s), consciencializar-assumir-sair-transcender a
situação da parte.
- “E lembro-me de todas as semanas ter de me ir confessar. Havia perguntas que os padres faziam
que eu nem sabia o que aquilo era mas, pelo sim pelo não, eu dizia sempre que sim (...). E eu
nem sabia o que eram maus pensamentos ou maus desejos, com sete ou com oito anos nesse
tempo. Mas eu pensava (...) «pelo menos já me livro de tudo; levo alguma penitência, eu rezo tudo
e a coisa fica»” (3A2/7).
- “Seja o que for, eu, pelo sim pelo não, digo «desculpa». É absolutamente automático. Nem que
não tenha nada a ver comigo muitas vezes. E depois é muito difícil retirar um pedido de
desculpas” (7I16/1).
Quatro são as sessões que distanciam as situações relatadas que aqui coloco. Acredito,
por isso, que os dois discursos não se influenciaram – mas, além daquela distância e de
terem sido proferidos por pessoas diferentes, referem-se também a épocas, contextos,
idades e estados da vida muito distintos.
351
Contudo, a semelhança entre as duas frases salta à vista pela ligação que estabelecem
entre o medo e a culpa: um mesmo desconfiar de si mesmo; um mesmo assumir, “pelo
sim pelo não”, de uma falta ou erro que não é seu; um mesmo querer libertar desse peso,
nem que isso acarrete algum tipo de expiação. Em suma, um mesmo permitir que, pela
fricção entre as nossas experiências interiores e exteriores, o eu dos acontecimentos se
deixe levar por forças que, em última análise, desvirtuam ou impedem a verdade do Ser
(Moffit, 2003b; Ribeiro Dias, 2000:141).
- “Não me importava nada de, de repente, aparecer com 60/70 anos” (3O4/13).
- “O meu «mais eu» desconhecido porque nem me atrevo a olhar para ele” (4U38/4).
- “O medo pode fazer com que abandonemos coisas que dantes gostávamos” (6K7/3).
Mas se esta subcategoria é aquela que congrega relatos em que, de uma forma mais
directa, fica evidente a perda do sentido de identidade, entendo que esta perda também
está subjacente em todas as outras – perde-se consciência do “eu real” de cada vez
que se anulam as diferenças, de cada vez que se criam dependências, de cada vez que
se foge das situações, de cada vez que se limita a comunicação, de cada vez que se
sofre “sem sentido”, etc.
- “O sofrimento “com sentido” é capaz de enfrentar o medo e permite chegar até à medida das
nossas possibilidades. A verdadeira aprendizagem é a que nos possibilita descobrir o porquê,
352
para quê, de toda a realidade. Só o “porquê” e o “para quê” unidos formam a ponte que nos
permite superar o medo e depois vencer o “sem sentido” e tornar a realidade inteligível, com
sentido e amada (6L1/2c).
Julgo, por tudo isto, que se quiser encontrar um denominador comum para os efeitos
“negativos” do medo, o posso encontrar, exactamente, na “negação de si mesmo”.
7. Outra face dos medos e dos efeitos do medo – nós e os outros... no mundo
Mas se os medos, por si, só provocam efeitos, “mexer nos medos”, reflectir e trabalhar
sobre eles, também os provoca. Em mais do que uma sessão do grupo, os redactores
da acta concluíram-na assim:
- “O nosso encontro terminou pelas 20.20 horas e, como se vem tornando hábito, as pessoas
despediram-se e foram felizes e inquietas para casa...” (acta da 5ª sessão).
Contudo, pelo menos neste caso, mexer nos medos em contexto de formação também
levou a entender que estes, ao invés de sempre nos limitarem e separarem das outras
pessoas e da nossa essência, também nos podem ajudar a ganhar consciência de que
somos seres em relação, a perceber o que nos é comum e que todos estamos ligados:
- “O medo faz-me recordar que sou um ser finito, não suficiente e que preciso do outro (o próximo)
e do Outro (o transcendente) para enfrentar a vida” – extracto de um diário de campo.
Apesar de, em si mesmo, não ser coisa boa nem má, mas circunstância da própria
existência humana, o medo afecta a nossa vida pela forma como é olhado e sentido.
353
uma coisa pode ser (só) a outra, perdemos de vista a riqueza contida na totalidade
dessa ambivalência e atribuímos os medos e suas motivações às circunstâncias ou
a outros. Deste modo, e utilizando muitas vezes RESPOSTAS REFLEXAS em vez dos
movimentos da acção e da mudança, DESCONHECEMOS, RECUSAMOS ou NEGAMOS
também parte da VERDADE DE NÓS MESMOS e permitimos que o medo se converta
num disparador de DUALIDADES desintegradoras e limitadoras e se revele, por isso,
como INFIDELIDADE A NÓS MESMOS. Aí, e enquanto separação do “verdadeiro agir do
ser” (Sérgio, 2005b:22), o medo mora na pouca consciência das possibilidades de
definição de novos caminhos.
2. O que é, então, uma vida seja serena, útil e corajosa? Na introdução a esta
pesquisa, defini uma vida SERENA como sendo de descoberta de relação e de
sentido dos diversos tempos de vida, uma vida ÚTIL como sendo portadora de valor
e uma vida CORAJOSA como sendo uma vida de plenitude. Agora, frente ao medo e à
forma como pode ser olhado e sentido, posso dizer que uma vida assim é uma vida
em que: em vez da negação de si mesmo, se reconhece a própria essência; em vez
do disfarce, se vive a integridade; e em vez da dualidade, se constrói a totalidade.
“o que faz com que uma vida “o que faz com que uma vida
não seja seja
serena, útil e corajosa?”. serena, útil e corajosa?”.
Disfarce Integridade
Desconhecimento e Negação de si mesmo Reconhecimento e Unidade de si mesmo
Dualidade Totalidade
Tabela III.11 – Síntese da leitura.
3. Como se faz, neste caso, a passagem do “não ser” ao “ser” de uma vida assim?
Faz-se pela ACÇÃO. Este é o eixo central e o propósito do ponto seguinte.
354
355
356
QUEM
definições e caracterizações do medo
definição de medo
representações simbólicas do medo
corpo emocional-mental
medo da decisão corpo emocional-mental-espiritual
ou transcendente
corpo físico
medo da intimidade-comunicação
consigo mesmo corpo físico-emocional-cultural
corpo mental
corpo físico-emocional
corpo cultural
medo de não corresponder
aos próprios valores corpo cultural-mental
corpo físico
corpo físico
corpo físico-emocional
corpo emocional
medo do conflito
corpo emocional-mental
corpo físico
relacionados com o Cosmos medo do cosmos
corpo transcendente
efeitos do medo
perguntas do grupo que ficam em aberto
COMO
POR QUÊ
PARA QUÊ
1. QUEM
2.1 definição de medo
2.2 relação e explicação dos medos
2.3.1.1.1 corpo mental
2.3.1.2.7 corpo
mental-emocional-transcendente
3. COMO
4. POR QUÊ
5. PARA QUÊ
Os mestres da Índia relatam um conto muito significativo.
Um leão estava sedento. Dirigiu-se a um lago que havia na selva com a intenção de aí
saciar a sua sede. Quando ia beber nas suas águas, viu nelas reflectido o seu próprio
rosto. Atemorizado, pensou: “Este leão deve ser o guardião do lago! É melhor não
confiar!” E foi-se embora a correr. Mas como tinha muita sede, voltou pouco depois. Ao
ver o leão na água, rugiu para o assustar e então viu o rosto feroz do guardião do lago.
Aterrorizado, saiu a correr. Mas tinha tanta sede que não conseguiu resistir. Por isso
voltou de novo ao lago, disposto a morrer por ele. Aproximou-se das águas. Ali
continuava o guardião. Enfureceu-se, mas o leão do lago também. O leão estava
aterrado, mas era tanta a sua sede, que rapidamente meteu a cabeça na água,
esperando ser devorado pelo leão do lago. Então, a imagem desapareceu.
O leão tinha confrontado o terror e o fantasma do medo tinha-se desfeito.
Ramiro Calle
Com base na leitura dos dados da pesquisa, procuro agora responder à pergunta
central desta investigação, aquela que (tendo subjacente a ideia da interligação entre o
crescimento do educador e o crescimento do educando), procura perceber de que
maneira se podem criar competências que, no processo de desenvolvimento humano,
possibilitem lidar com o medo.
357
o conceito de ACÇÃO e, nomeadamente, de ACÇÃO INTENCIONAL, aparece como central.
No seu sentido profundo implica TOTALIDADE e, por extensão e afinidade, COERÊNCIA.
- “O que é que eu tenho que fazer para passar do saber ao sentir?165 / (....) O meu corpo mental
pensa para um lado e o corpo emocional sente para outro. E o corpo emocional ainda não se
livrou destes medos, destes abandonos, destes falhanços e dessas coisas …166 (...) (4U11/3 /
4UH12/1).
- “Por que é que eu nunca fui capaz de aprender a nadar? (...) À medida que for sendo capaz de
perceber que as minhas forças são suficientes para me manter à superfície, sou capaz de lidar
[com o meu medo de nadar, de me afogar, de perder o pé, de não controlar a situação]. É não
pensar nisso” 167(4E17/1).
- “Uma das coisas mais perturbadoras destas sessões, entre muitas que aqui foram ditas, de ir para
casa a pensar na questão, para mim foi esta do sentir e do pensar. E de pensar e tentar
compreender onde está o equilíbrio em tudo isso”168 (7M5/1).
164
Tendo como referencial uma perspectiva integrada da realidade (o que sucede no nosso microcosmos é
uma projecção do que existe no universo), de autores que, como Morin, Maturana, Varela, Capra, Damásio,
Csikszentmihalyi e Prigogine e outros, configuram o paradigma eco-sistémico, Saturnino de la Torre e
Maria Candida Moraes usam a expressão sentipensar para “ilustrar a mudança de paradigma na ciência e
algumas das suas consequências na educação”. Pela fusão dos processos de perceber, sentir, pensar e
actuar e pela promoção do desenvolvimento de estratégias adequadas na formação de professores, o
projecto sentipensar, integrado no programa “Educando para a Vida”, procura diminuir a distância entre os
saberes académicos e a vida real (www.sentipensar.net).
165
Categorização: como, pergunta em aberto.
166
Categorização: porquê, razões do medo.
167
Categorização: como, desenvolvimento humano, o que aprender.
168
Categorização: quem, efeitos por participar.
358
Relacionando o contido nestas frases, isto significa que se “o corpo mental pensa para um
lado e o corpo emocional sente para outro” (isto é, se existe dualidade e incoerência entre o
pensar e o sentir), podemos deparar com duas situações: (1) a questão de que ser
“capaz de perceber que as minhas forças são suficientes” não é perceber no mental, mas é sentir
– no mental já percebe, já sabe, mas isso não leva a nadar; (2) questão de que, “para
entender onde está o equilíbrio em tudo isso”, não basta que, no campo dos sentimentos, tenha
sido vivido como “uma das coisas mais perturbadoras” – é preciso que também seja percebido
no campo do mental. Estamos perante a necessidade de dois tipos de conhecimento –
o conhecimento do pensar, que, tradicionalmente, tem sido privilegiado pela cultura
ocidental; o conhecimento do sentir, que, tradicionalmente, tem sido privilegiado pela
cultura oriental. “Enquanto os Ocidentais se apoiam em métodos de cariz científico, os
Orientais apoiam-se nos factos básicos vividos, na experiência assimilada” (Sousa,
1998:126).
- “É interessante a distinção que se está a fazer entre o saber e o sentir. Só quem vive mesmo isso
pode entender o que se passa aí. Saber que “eu sou inteligente” e “sentir que sou inteligente”.
Quando falámos de nós mesmos, falamos do que sabemos. Falar do que eu sei de mim é muito
diferente de falar do que eu sinto de mim” (4K1/1).
- “Será que se sabe o que não se sente?” / “Acho que eu posso saber e sentir o que sei. Mas nem
sempre vou sentir o que sei!” (4J21/1; 4K2/1).
Assim, e muito embora esta questão do sentir-pensar não tenha sido dado por
encerrada nas sessões do grupo, nem, na análise de dados, tenha ficado expressa
numa subcategoria única e distinta (pois, como disse atrás, atravessa várias das
categorias-base), ela está presente em toda a toda a proposta que aqui se desenvolve
através da categoria/conceito de “acção”. Sendo ACÇÃO “qualquer acto intencional,
interno e externo, observável e não observável” (Trigo, 2006:64), este
conceito/categoria incorpora dois grupos de movimentos e dimensões (conceitos/sub-
categorias dele derivados) que, afectando-se mutuamente, se podem transformar em
“expressão da natureza humana em processo de estar sendo” (Freire, 2000:87):
359
a) Os “movimentos centrífugo e centrípeto em direcção à transcendência” (Sérgio,
Apud Sérgio & Toro, 2005:105) que, na sua perspectiva de TOTALIDADE, animam
as dimensões da corporeidade humana.
b) Os movimentos de tomada de consciência, de assumir, de tomada de decisão,
de decidir e de execução que, quando em COERÊNCIA, configuram a mudança
(Trigo, 2006; Feitosa, 2006).
Neste enquadramento, e tal como não é (só) lendo livros que se aprende a subir à
montanha, mas subindo e estudando a montanha, também aqui se mostra que não é
fazendo um caminho isolado que se aprende a lidar com o medo – “não é só o caminho da
testa para cima, mas é o caminho que envolve o meu ser total” (4U48/1).
Por isso e porque, confirmando o atrás já dito, o todo está presente na parte e a parte
no todo, importa que a dinâmica da relação do pensar-sentir se faça presente no e pelo
MÉTODO VIVENCIAL para que, utilizando a parte, se possa aceder às certezas, forças e
coragem do todo – isto é, às certezas, forças e coragem do Eu-eu mesmo de Whitman
(Ribeiro Dias, 2000), das dimensões da minha identidade e dos laços de ser que
estabeleço com os outros no mundo.
“Homem e mulher não são seres isolados, mas integrados na cultura, na natureza e no
cosmos. Em consequência, existe uma estreita vinculação entre as operações mentais
de perceber, sentir, pensar e actuar. Assim, pois, o Sentipensar não é mais do que uma
proposta operacional de uma nova concepção na construção do conhecimento que
169
melhor expressa o funcionamento da vida e da realidade” (Torre & Moraes, 2007) .
360
“como” (tabela III.12). É pela VIVÊNCIA da TOTALIDADE (do reconhecimento de si mesmo
e da coerência), ou da DUALIDADE (da negação de si mesmo e do disfarce), que se vai
sendo, ou não sendo, tal vida.
“O medo é uma emoção natural que todas as criaturas compartilham. Se a pessoa nega
o seu medo, está negando a sua humanidade” (Lowen, 1997:236)
E para melhor explicar o que encontro nos dados, começo por também reformular a
pergunta da investigação agora em causa:
Os resultados da análise fazem entender que, qual cão que morde a sua própria cauda,
não lidar com o medo é, muitas vezes, alimentarmo-nos daquilo que nos faz sofrer. Isto
é, mantendo, também aqui, ESTRATÉGIAS DE DISFARCE E DE NEGAÇÃO DE NÓS MESMOS, é
pela paralisação de actos e do pensamento, pela continuidade e CONSERVAÇÃO das
situações criadas, que deixámos que “os medos [sejam] maiores que os sonhos” (4J23/1):
361
- “Tenho esses medos que acho que são medos universais” (3M1/17).
- “E ando sempre com xanax na carteira (...). Mas também é por uma questão de
segurança” (3O4/20).
Contudo, e da mesma maneira que atrás identificava “medos de gente madura” como
marcas das necessidades do ser (e, por isso, não os considerava medos, mas desejos
e sonhos)171, também um certo tipo de fuga, apesar de permitir a continuidade de uma
dada situação, pode ser uma acção que, ao nível do não observável, promova o
movimento e o poder da mudança (Feitosa, 2006:89).
- “Uso a fuga quando acho que não possuo força suficiente para vencer o objecto do medo,
nem com a ajuda dos outros. Mas isso está na linha de algo que vejo que não interfere nos
meus sonhos” (3K2/11).
- “Quando uma pessoa decide experimentar uma vez, e outra, uma determinada acção, (…) e
resolve dizer «Não! Eu vou desistir disto, isto não é para mim» e, então «vou fazer outra coisa
em que seja mais feliz!». Até que ponto é que isto é deixar para trás? Se calhar, o caminho,
que não parece ser o caminho certo, é dizer «Não! Vou procurar qualquer coisa onde eu seja
mais eu» (...). É sempre difícil avaliar aqui qual é o acto de coragem” (4M12/1).
O que distingue uma “fuga” da outra? Como se distingue o que é “fugir” ou “não fugir”?
Também aqui são os SONHOS, INTENÇÕES e ANSEIOS que, sob a forma de consciência e
171
Ver 2.3 deste capítulo – “Relação de medos e efeitos do medo”.
362
COMPREENSÃO DO SENTIDO DE VIDA, fazem com que “fugir, ou não fugir?” deixe de ser a
questão. E porque “perante uma [mesma] situação quem está no exterior pode chamar imensas coisas
– coragem, cobardia...” (6M20/1), só cada um, dentro de si mesmo, na sua interioridade, no
conhecimento de si mesmo, o pode diferenciar.
172
Ver Anexo 5 – “2. O quê”.
173
Ver resultados da análise do clima do grupo – 1.2 deste capítulo.
363
Tomada de consciência, o que aprender
Exemplo – “Se eu tenho medo de perder alguma coisa, o meu medo é tanto mais
forte quanto mais me parece que eu sou e existo nisso que receio perder. (...) Na 116
medida em que eu for capaz de perceber, por dentro de mim, que posso continuar
vivendo, existindo e sendo eu para além disso, sou capaz de me ir libertando do
medo. Agora, esse caminho, fazer esse caminho, isso é que é o difícil” (4E16/1).
Assumir a responsabilidade
Exemplo – “Assumir que a responsabilidade é minha, isso é que é o difícil” 1
(6U21/1).
Tomada de decisão, condições da mudança
Exemplo – “Fica depois a possibilidade de uma escolha (...): ou retomar toda 33
aquela aparente tranquilidade, ou decidir mudar toda essa situação” (6U7/12).
Estratégias e execução
Exemplo – “Ia com os sentidos o mais alerta possível, por uma questão de 43
precaução” (9L1/11).
TOTAL 193
Tabela III.13 – Número de referências a formas de lidar com o medo que
promovem o desenvolvimento humano em função dos momentos da acção e da mudança.
Mas, mais do que (pelo menos para já), procurar encontrar outras respostas, talvez
valha a pena continuar a brincar com os números da tabela III.13 para calcular e
174
Anexo 5 – “4. Porquê” – causas do não medo.
364
comparar os valores percentuais das referências aos “movimentos e momentos da
acção e da mudança” aí referidos (tabela III.14).
b) Mas parece reflectir também alguma tendência para se ficar preso nos níveis
não observáveis da acção, os do “movimento centrífugo” (77.72%), e para se
ter dificuldade em passar à sua exteriorização, o do “movimento centrípeto”
(22.28%). Correr-se-á o risco de se perder a dinâmica da totalidade, de se
desperdiçar a força e o élan do movimento centrífugo da acção (Sérgio,
1999) e, com isso, de se ganhar a fragilidade e rigidez da dualidade?
Será isto só especulação? Será que, porque estes dados não foram criados para este
fim, é abusivo fazer estas leituras? Talvez. Mas os números são curiosos e continuam a
365
desafiar a (minha) imaginação. Atrevo-me, por isso, e ainda só olhando para os
números, a colocar outras interrogações, mesmo que também elas especulativas:
e) Será que uma das razões para uma percentagem tão baixa de “assumir a
responsabilidade” reside nalguma CONFUSÃO ENTRE SER CULPADO E SER
RESPONSÁVEL? Enquanto a culpa, especialmente “quando não é reacção à
voz da consciência, mas compreensão da desobediência contra a autoridade
e medo da represália” (Neill, 1971:xxi), pode tender para a imobilização (e a
culpa é, só por si, um dos efeitos do medo), o assumir dinâmico de uma
responsabilidade (pelo movimento centrífugo que desencadeia e pelo que de
maturidade comporta) pode fazer “sair do círculo vicioso da culpabilidade (...)
para adoptar uma postura mais activa: que posso fazer com os meus
medos?” (Marina, 2006:23). Estaremos tão dependentes de “subsídios”
alheios que não encaramos as possibilidades contidas na nossa própria
autonomia para, assumindo como nossa a responsabilidade pela resolução
366
das situações criadas, sermos capazes de avançar para outras fases da
mudança (Espírito Santo, 1985)?
Estas são algumas reflexões e perguntas por ter brincado com os números. Não obtive,
talvez, muitas respostas, mas obtive, seguramente, mais inquietações. Preciso, por
isso, ver agora para lá dos números e retomar as ideias que estão contidas nas
categorias que lhes deram origem.
367
Assim, e deixando para momento próprio a descrição detalhada dos princípios
educativos que podem servir de base a um programa de educação de adultos 175, passo
a fazer a leitura do que, só em termos do PROCESSO, são as suas interligações com o
que foi considerado como cerne desta categoria.
Depois de termos distribuído as “formas de lidar com o medo” identificadas pelos quatro
momentos da acção e da mudança176, vimo-nos na necessidade de avançar para a
produção de novas subcategorias que, esmiuçando a variedade de ideias e sugestões
aí contidas, criassem a estrutura de uma proposta didáctica para lidar com o medo. E
um dos momentos mais gratificantes da análise de dados aconteceu quando, já no seu
final, nos pudemos distanciar do trabalho feito e olhar a imagem geral do quadro de
categorização assim criado. Mais do que reunir, inter-relacionava o disperso nos
diálogos do grupo e, nessa nova expressão da sua experiência e do seu saber, não só
congregava e potenciava contribuições de diversos autores e quadrantes, mas também
se tornava naquilo que Paulo Freire refere ser “uma devolução organizada,
sistematizada e acrescentada”:
175
Ver “IV CO sentido do caminho – 2. Proposta educativa”.
176
Ver “Capítulo 2 Roteiro – 2.4.1 Mapa mental das categorias de análise”.
368
Tal como “os valores não são para ser ensinados, mas para ser vividos” (Maturana,
2000:17), também o eixo central da categoria processual (“como”), “ACÇÃO-TOTALIDADE-
COERÊNCIA”, não é apenas o sustentáculo da metodologia a utilizar na aplicação da
proposta educativa para lidar com o medo, mas tem uma relação profunda com o
propósito de “serenidade-utilidade-coragem” desses mesmos procedimentos (quadro
III.6).
Acção-Coerência-Totalidade
TRANSCENDÊNCIA
a) Reconhecer o que se é.
- SABER QUEM SOU – “Tenho noção que não sabia nada de mim. Nunca [tinha olhado]
para dentro, nunca [tinha feito] uma retrospectiva da minha vida e da maneira como
encarei as coisas – nem sabia fazer isto. E é fundamental para aprender a crescer,
conhecendo-nos. Só assim ultrapassei mil obstáculos que nunca imaginei ultrapassar”
(3O4/14).
- PERCEBER QUE POSSO – “Nós encontramos forças e passamos pelas coisas (...).
Passei a saber que passava a maré. E isso faz-me ir andando de outra maneira – porque
há ali algo importante que já sabemos e que dantes não sabíamos (7I23/1).
- (...)
369
b) Descobrir o que se pode ser.
- VER DE OUTRA PERSPECTIVA – “Por favor deixem que alguns dos meus medos
continuem. Eles, sim, fazem parar a minha vida, mas é para reflectir nas minhas forças,
buscá-las ou rebuscá-las, preparar-me melhor, fazer coligações, se for preciso, para
enfrentar os objectos dos meus medos! Enfrentar e vencer. (...) Deixem que alguns dos
meus medos continuem. Eles são um desafio para mim. Destes medos que são desafios
eu não devo sentir medo. Ao contrário, são a minha força. Permitem que eu canalize a
minha «energia de recuo» para avançar” (Extracto de um diário de campo – 12ª
sessão).
- COMPREENDER O SENTIDO DA MISSÃO177– “Se a pessoa não tiver sido treinada
nessa capacidade de entrar em contacto consigo, com os valores profundos, com aquilo
que é realmente o que se quer guardar até ao fim, a pessoa não vai ter força para
enfrentar os medos” (7L14/3B).
- (...)
c) Aprender como se passa do que se é ao que se pode ser.
- GANHAR CONSCIÊNCIA DO MEDO – “Verificar se o meu medo é real. Há muitos
momentos em que (...) ela diz “não é real, não é real”. Verificar se o medo, afinal, está só
dentro de mim, se o medo sou eu, ou se é algo que me está a ser atirado” (6J34/4).
- APRENDER A CONFIANÇA – “[O medo] pode ser transformado em confiança, em
esperança. Não vale a pena ter medo” (3A3/1).
- APRENDER QUE É UM PROCESSO DEMORADO E DIFÍCIL – “Em relação ao labirinto,
a primeira coisa que pensei foi ele parecer tão pequenino e tão longo ao mesmo tempo.
E pensar (...) que, às vezes, é assim na vida. Parece que está ali ao lado e nós temos de
percorrer, percorrer. Mas (...) as coisas têm mais beleza assim. Se calhar não tinha piada
nenhuma saltar logo ali ao centro e ir buscar a flor” (10M1/1).
- (...)
d) Assumir a responsabilidade nas próprias mãos, reconhecer o valor em
causa, perceber a necessidade da mudança, preparar, acreditar e pensar
positivo.
- “É uma coisa que tem de fazer sozinha. (...) Há decisões que a pessoa tem de tomar
sozinha” (6E17/1).
177
No seu livro “Si Harry Potter dirigiera General Electric”, Morris (2006:71) escreve que “algumas das
pessoas mais corajosas da história da humanidade contaram depois que não se sentiram especialmente
valentes nos momentos dos seus grandes feitos, mas que simplesmente sabiam qual era a tarefa que deviam
realizar e levar a cabo (...). Os seus valores impulsionaram a acção”.
370
- “O amor, a justiça, a verdade, a convicção profunda, como os grandes pontos de apoio
para superar o medo e vencer o sofrimento” (6L1/1).
- “Tento buscar uma confiança também na ajuda dos outros à minha volta” (3K2/8).
- (...)
371
f) “O tempo no mundo” que permite ir em frente em função da missão, com
riscos, com esforço, com atenção e prudência, mas também com apoios e
confiança:
- “Se tens medo, não tens mais que fazer senão pôr-te a trabalhar para ver se o assunto
se resolve” (7I2/6).
- “Deixei-me estar no meu sítio e, quando chegou a hora, fui e pronto, passou” (9M1/8).
- “E depois também havia uma certa confiança nos instrutores. Os que estavam em baixo
também ajudaram. Apoiei-me muito na vossa instrução aí em baixo” (9K3a/2).
- “E fiz por ser prudente” (9L1/5).
- (...)
Em terceiro lugar, porque falar da COERÊNCIA que entre os dois tempos assim existe é
falar da importância de criar condições e espaços que desafiem a coragem de manter
os dois movimentos numa força única capaz de desfazer a tentação da dualidade. É o
que os exemplos seguintes procuram mostrar: as inquietações e reflexões de duas
pessoas que, perante a mesma situação e pela mesma razão (a missão de cada um),
tomam decisões diferentes.
- “Até àquela altura ainda não tinha decidido (...). Mas, depois de algum tempo, tentei buscar os
motivos. Por que é que eu ia descer? Por que é que eu ia fazer rappel? Eram doze horas (...)
e a essa hora eu devia estar a (...). E entrei num conflito. E tentei buscar a causa Por que
estava aqui? Por causa de umas pessoas (...). E deu-me um consolo. «Eu não vim fazer um
piquenique. Não vim divertir-me em termos directos. Vim fazer um trabalho. Esse trabalho vai-
me dar uma diversão, mas eu vim fazer um trabalho». (...) Esse problema ficou arrumado.
(...). Quando enfrento os medos? Quando vejo que, por detrás do medo, está um valor. E qual
o valor que encontrei? (...) «Pela (...) eu vou fazer rappel!»” (9K2/12;3/1,3).
- “Quando cheguei lá em cima, eu pensei logo: «Eu não faço, porque não tenho que provar que
consigo vencer o meu medo através do esforço físico (...)». E depois comecei a pensar:
«Então, o que é que me faz vencer o meu medo? É uma missão. É ter missão para o fazer
(...)». E, então, há aquela frase, que eu tenho no meu quadro de cortiça desde que vimos o
filme (...): «Faz o que tem de ser feito sem te preocupares com as consequências». Eu, logo à
noite, quando chegar a casa, vou pôr: «Faz o que tem de ser feito, sem te preocupares com
as consequências, se isso fizer parte da tua missão»” (9J1/18).
372
Finalmente, porque falar de TOTALIDADE é falar da importância de criar condições e
espaços que, no seu apelo para a unificação das dimensões humanas, sejam
oportunidade de celebração da própria TRANSCENDÊNCIA, “o mergulho no insondável
Mistério de vida, de consciência, de comunhão e de amor” (Boff, 1998:110).
- “Quando parámos, ficámos em silêncio – gostei imenso de ter estado deitada a olhar para as
estrelas. O sentir-me identificada com o universo é assim qualquer coisa de fantástico”
(9A1/2).
- “O K. soube tornar aquele momento num momento mágico de relação entre as pessoas. E,
no final, alguma coisa tinha mudado. Posso dizer que foi um momento essencial de
comunicação de almas e entrosamento das pessoas. Tudo o que em conjunto vivemos, a
serenidade e a paz que ali estavam presentes tornaram-nos companheiros de viagem. (...) E
demos beijos e abraços. E a proximidade de pele tornou-se maior” (Extracto de um diário
de campo – 9ª sessão).
- “Depois, houve um segundo momento [mágico], que foi o momento do caminhar sozinho.
Isso, para mim, foi completamente mágico. Houve uma fase em que parei, abri os braços e
agradeci mesmo. (...) E, naquele momento, senti uma sintonia muito forte com o universo e
agradeci por estar vivo e por tudo” (9J1/3-4).
É pela utilização de uma metodologia centrada na ACÇÃO que se encontra a forma de,
fazendo uma ligação dinâmica entre o pensar e o sentir, passar do mero
reconhecimento de uma realidade à transformação dessa realidade:
1. Criando condições e espaços para LIDAR INTERNAMENTE com o medo que também
estimulem um movimento centrífugo de mudança.
2. Criando condições e espaços para LIDAR EXTERNAMENTE com o medo que também
estimulem um movimento centrípeto de mudança.
3. Buscando a COERÊNCIA entre os espaços internos e externos.
4. Reconhecendo nos dois movimentos a capacidade de TOTALIDADE e transcendência
humanas.
373
Deste modo, a tríade “totalidade-acção-coerência” não constitui só o sustentáculo da
METODOLOGIA de um programa de educação de adultos para lidar com o medo, mas
estabelece uma relação profunda com a outra tríade, “serenidade-utilidade-coragem”
que, enquanto sustentáculo de uma vida plena, constitui o PROPÓSITO desse mesmo
programa:
1. Porque a serenidade pode ser encontrada no espaço interno do centrar.
2. Porque a utilidade pode ser descoberta no espaço externo do agir.
3. Porque a coragem de ligar o centrar e o agir numa força única celebra a
possibilidade de uma síntese que construa o humano.
374
375
376
QUEM
O QUÊ
como os outros reagem aos nossos medos
processo centrado na conservação
liderança
amor
clima necessário
confiança
autonomia e responsabilidade
b) ser diferente
b) aprender a confiança
d) aprender a errar
3.6 Categorias de Análise COMO como se lida com o medo processo centrado no assumir assumir a responsabilidade
desenvolvimento humano
a) auto-responsabilidade
e) método
f) pensar em positivo
relaxamento
bioenergia
com o Eu
meditação
esforço
atenção e prudência
POR QUÊ
PARA QUÊ
“Baú de Memórias - Que tipo de diário eu gostaria de ter? Preferia um que
se assemelhasse a uma arca velha, funda, ou a um armário espaçoso no
qual guardamos, indiscriminadamente, todo o tipo de coisas. Gostaria,
depois, de voltar a ver que as coisas fizeram a sua própria triagem,
refinando-se e aglutinando-se, como misteriosamente acontece com os
sedimentos, de uma forma suficientemente transparente para reflectir a
nossa vida, mas estável, tranquila, compondo-se com o alheamento de uma
obra de arte”- Virginia Woolf.
Para isso (e se bem que não seja possível, nem procure, estabelecer uma relação
termo a termo entre os diversos tipos de medos e de causas apresentados), vou centrar
a minha atenção, não só no que nas narrativas do grupo de pesquisa foi identificado
como sendo as subcategorias “causas do medo” e “causas do não ter medo”, mas
também no cruzamento destas com quaisquer outras que ajudem a construir uma visão
mais ampla.
“Querido Pai,
Perguntaste-me recentemente por que razão eu afirmo que tenho medo de ti. Como é
habitual, não sabia o que responder, em parte justamente por causa do medo que tenho
de ti, em parte porque são tantos os pormenores que justificam esse medo que eu não
178
Ver excerto do mapa mental das categorias de análise no final deste ponto do capítulo.
377
seria capaz de os manter minimamente coesos ao falar. E se procuro responder-te agora
por escrito, só o conseguirei fazer de forma muito incompleta, porque também na escrita
o medo e as suas consequências me embaraçam face a ti e porque a importância do
assunto ultrapassa largamente a minha memória e o meu entendimento” (Kakfa 1993:7).
São muitas as referências presentes nos relatos que servem para justificar a presença
do medo na vida dos participantes. Não são tantas, mas são muito diversas, as que
justificam a ausência do medo. Contudo, e apesar de muito escassas (5 no total),
quando se trata de identificar “pessoas que influenciaram o medo” e “pessoas que
influenciaram o não medo”, as experiências de vida convergem – em cada uma das
subcategorias, entre as duas subcategorias, em comparação, inclusive, com o que é
descrito no texto da carta de Kafka a seu Pai, acima reproduzido.
378
São três as razões que me levam a considerar haver convergência de experiências de
vida nestas situações. Em primeiro lugar, porque em todas existe um “querido pai”, isto
é, alguém que, sendo um outro significante, é uma pessoa com quem se tem uma
interacção importante. Em segundo lugar, porque o que nelas levou ao medo, ou ao não
medo, não foram tanto os eventos distintos, dramáticos ou especialmente intensos, mas
sobretudo os “tantos pormenores”, os “sempre”, que, acontecendo subtil e repetidamente,
se acumularam durante longos períodos da vida. Em terceiro lugar, porque constituindo-
se como um conjunto de referências muito reduzido, podem ser excepção de algum
“embaraço frente a ti” (Kakfa, 1993:7) que a outros não permitirá assumi-las
publicamente.
Assim, e num contexto em que, por diversas vezes, o que falta e não está expresso em
palavras é tão, ou mais, significativo do que aquilo que está patente, considero a ideia
de PASSAGEM DE TESTEMUNHO e CONTÁGIO (com aquilo que comporta de liderança e de
criação de um clima propício para a mudança), como sendo o pensamento central da
categoria “por quê” que vai orientar a direcção da resposta à pergunta da pesquisa aqui
em causa.
Da mesma maneira que são muitos e diferentes os enfoques teóricos sobre as causas
do medo179, também os relatos dos participantes apresentam uma variedade
considerável de situações (65 no total), em que se identificam “razões do medo”. Numa
179
Ver “Capítulo 3 Descobrir caminhos de outros – Filhos do Medo”.
379
leitura linear dos dados (e porque já foram reconhecidos 186 medos180), poder-se-ia
dizer que, estatisticamente, e apesar de “a importância do assunto ultrapassar
largamente a nossa memória e o nosso181 entendimento” (Kafka:1993:7), “ainda” somos
capazes de reconhecer 1 razão por cada 2.86 medos. Porém, mais do que fazer uma
interpretação deste tipo, que precisaria de dados comparativos para ganhar maior
significado, quisemos organizá-las de modo a que, na variedade das razões
encontradas, estas se pudessem tornar inteligíveis e “minimamente coesas” (Kafka,
1993:7) sem que se perdesse a riqueza da sua diversidade.
Assim, e numa categorização dessas razões com base numa concepção do medo como
fenómeno transaccional182 (Marina 2006:16), o conceito de percepção e os conceitos
que fazem parte dos níveis de categorização subsequentes integram referências
oriundas de pensadores e cosmovisões distintos. Alguns exemplos:
1. Primeiro nível
- Percepção do Eu – “Acho que sou mais ambiciosa do que devia porque as minhas ambições
não correspondem às minhas capacidades. E depois tenho de ser muito formiguinha (...) para
depois não falhar totalmente” (7I2/5).
- Percepção dos outros – “Senti nessa altura (...) o medo do ridículo. O estremecer por confiar
nos outros, por acreditar” (6E13/1).
- Percepção do cosmos – “Segundo os mitos da aldeia, os que estavam em idade ainda fértil
(...) tinham de apanhar água onde ela desaguava (...). Diziam que uma pessoa em idade fértil, se
fosse até à água da nascente podia ter um filho ou uma filha sereia” (6K4/10).
180
Ver ponto 2 deste capítulo.
181
Os sublinhados são meus.
182
Para Marina, os sentimentos, e especialmente o medo, são fenómenos que apresentam uma causalidade
circular: causa e efeito sofrem influências recíprocas. O “mundo” é o modo como a realidade surge perante
o sujeito –“todos vivemos a mesma realidade, mas cada um de nós habita no seu próprio mundo” (Marina,
2006:16).
380
2. Segundo nível
- Imaginação: “O medo vem de uma amplificação, de uma imaginação do que pode acontecer. E,
porque pode acontecer, se transforma na convicção de que vai acontecer. E é essa crença de que
vai acontecer (que pode ter ou não fundamento) que paralisa as pessoas, que perpetua a própria
crença e perpetua o medo” (6E11/5).
- Desejo: “Preso a um determinado tipo de sonhos pessoais” (4MP13/1).
- Ausência de unificação do Eu: “A maior parte dos meus medos agora reflectem o meu ego.
(...) É ego, é vaidade, é preocupação social. O mundo é mais do que eu, é mais do que isso”
(3J4/20).
381
- Morte e finitude: “Não há mais nada do que ser agarrado à própria vida. Daí ser esse tal medo
supremo, o medo da morte” (6M10/1).
3. Terceiro nível
183
Ver pontos 2 e 3 deste capítulo.
382
1. Os outros como causa do medo
Em termos gerais, as razões para ter medo que mais vezes são referidas ao longo das
sessões prendem-se com a “percepção que se tem dos outros” (50.76%) – isto é,
razões que colocam o locus de causalidade no exterior da pessoa e fazem com que a
capacidade e o poder de fazer sentir medo estejam, de algum modo, em mãos alheias.
- “Sempre pensei que ele era capaz de fazer mal à minha mãe, aos meus irmãos e a mim mesmo”
(2K3/3).
- “Sabemos que, se não gostarem de nós, por muitas técnicas que usemos para tentar racionalizar
a situação, a verdade é que alguém não gostou de nós” (2J1/5).
- “Passei muito por isso, por desconfiar de mim própria. Quando fazia algo que, à partida, achava
que fazia para os outros, depois via nisso utilidades para mim própria. E isso fazia-me desconfiar
muito de mim” (7I17/2).
- “E não sei porquê, sem nenhuma razão aparente, eu senti um grande medo” (1O1/3).
- “E, de repente, comecei a dar conta que, para mim, era muito difícil perceber o que é que eu
queria [efectivamente] fazer // porque estava habituada a pensar [só] naquilo que tinha de fazer”
(7U9/2).
383
3. O dever e os sentimentos de culpa como causas do medo
Mas as razões de “noção de dever” não contêm só o que se considera ser obrigação.
Em diversas situações apresentam-se associadas a sentimentos de culpa e/ou a uma
certa imagem de Deus e um certo tipo de concepção religiosa.
- “Ainda aqui há tempos alguém me dizia «achas que tens sempre culpa de alguma coisa». E eu
tenho, de facto, muitas culpas” (...). Tenho medo de não fazer bem feito, mas, quando acho que
não faço como acho que devia fazer, fico com a culpa” (7I5/1;6/1).
- “Tenho medo de me sentir culpado. Há opções que tomo na vida que, às vezes, tenho receio de
não estar a fazer a melhor opção. Sinto-me culpado por causa disso. De não estar a fazer a
vontade de Deus, ou de não estar a fazer a leitura correcta do que seria a vontade de Deus. E não
é bem um medo, ou, se calhar, o medo de ser responsabilizado por isso. Mas vivo isso” (7L1/1).
Mas que culpa é esta a que está tão presente nas nossas narrativas e de que modo se
torna visível nos resultados do processo de análise? Será a culpa, consciente ou não,
um dos traços distintivos da nossa cultura? Lowen diz que sim:
384
diversos pontos da interpretação dos dados. Surge, por exemplo, na categoria “o quê”,
nos “efeitos do medo”, no que foi identificado como sendo a “negação de nós mesmos”.
Surge também na categoria “como”, nos “tempos do processo de mudança”, no que foi
classificado como sendo a dificuldade em “assumir a responsabilidade” dinâmica por
aquilo que se é e por aquilo que se quer ser. Surge agora na categoria “porquê”, entre
as “causas do medo” que impedem “o direito de ser livre” referido por Lowen. É, em
suma, uma culpa feita de auto-condenação e de auto-punição, porque se desconhece,
se descrê e/ou não se aceita o que se é.
4. Primeira síntese
Com tudo isto em mente, volto a olhar os resultados globais da categorização das
causas do medo para daí tentar tirar o primeiro conjunto de ilações:
a) Se se entende que o auto-conceito, para além de conceito único e pessoal que cada
um tem de si, também é o “quadro referencial a partir do qual [a pessoa] vê o
mundo” (Guenther & Combs, 1980:97), então, e em última análise, todas as causas
do medo (incluindo as da “percepção dos outros” e as da “percepção do cosmos”)
dependem da “percepção do eu” (Moffit, 2003a).
385
5. Um último comentário antes de avançar
Não posso, nem quero, com a orientação desta leitura de dados, ignorar ou diluir a
importância do que, nos resultados da análise, ficou registado sobre casos de “não
integração ou abandono” e de “desrespeito ou violência” vividos em contexto social
(familiar, escolar, urbano, ou outros) e relatados pelos participantes do grupo de
pesquisa. Representam, no seu conjunto, quase 25% das razões do medo
apresentadas e são factos do passado que fazem parte das suas vidas. Contudo, o que
também aí está em causa é a percepção que se tem sobre essas experiências, ou
sobre outras bem mais graves que aconteceram na vida de muitas outras pessoas
também. Mas, mesmo assim, o passado pode ser mudado quando quem o viveu,
aprendendo com as circunstâncias, se torna capaz de as resignificar, olhar e sentir
essas experiências a partir de outras perspectivas.
Por força da dispersão do tipo de ideias aqui em análise, depois de uma primeira
categorização das “causas do não medo” também em função da percepção pessoal,
relacional e cósmica, optámos por passar directamente ao estabelecimento de
correspondências com as “dimensões da identidade-corporeidade” que apareciam como
mais evidentes. Porém, o que nesta categorização ganha mais visibilidade, não é tanto
o que está presente e se manifesta nos resultados escritos assim obtidos, mas o que
neles está ausente – enquanto que a listagem das “causas do medo” apresenta 65
razões do medo e ocupa 12 páginas, a listagem das “causas do não medo” apresenta
17 razões e reduz-se a 2 páginas184.
Será este um dos aspectos mais significativos desta pesquisa? Porém, e apesar do
número reduzido e da dispersão de ideias que engloba, o conjunto de dados explícitos
mostra resultados que, inclusive quando trabalhados em termos quantitativos (tabela
III.16), permitem o paralelo com alguns dos dados precedentes.
184
Ver Anexo 5 – “4. Porquê”.
386
1. A percepção do eu e o corpo transcendente como causas do não medo
Enquanto que, nos resultados anteriores, os participantes referiam mais vezes de forma
explícita que as “causas do medo” se situavam fora de si mesmos (“percepção dos
outros”), no caso das “causas do não medo” são as razões da “percepção do eu”
(64.71%) e, dentro destas, as razões do “corpo transcendente” (que incluem razões de
cariz espiritual e religioso) (52.94%), as que surgem nos diálogos do grupo com um
peso mais elevado.
- “Desde que eu deixei de fazer projectos, acho que tenho confiado que as coisas que acontecem e
que há uma mão que vai conduzindo a minha vida” (3A2/12).
- “Eu nunca senti medo de Deus porque acredito que Deus é amor. E acredito também que Deus
acredita nas minhas limitações” (7K4/3).
- “Quando fiz o curso de (...), até porque estudávamos religião com bastante profundidade, (...) não
me ajudou a desfazer o medo do deus-papão. Esse medo desaparece quando sou mãe (...).
387
Aquilo que eu começo a pensar é: «se eu sou imperfeita, gosto tanto dos meus filhos (...) Deus só
pode ser amor. E, como amor que é, não há razão de existir o deus-papão” (3A2/14).
- “É o passar por essa experiência que nos fortalece e (...) nos ajuda a vencer o medo” (4M14/1).
O medo desaparece pela vivência, não pelo saber feito de informações e interacções
verbais, e precisa de tempo de amadurecimento.
3. Segunda síntese
Com tudo isto em mente, ficam-me algumas inquietações-lições que procuro enunciar
sob a forma de perguntas:
a) O que tem a nossa cultura que tanto nos provoca medo?
b) De que precisam os educadores para que possam, de facto, ajudar outros a
enfrentarem os seus medos?
c) O que falta no ar social que respiramos para que sejamos capazes de enfrentar
a vida de forma “serena, útil e corajosa”?
- “Quando alguém me diz que vá, que vou conseguir, eu avanço” (9K3a/4).
Mas, como se distinguem, pelas suas atitudes e comportamentos, aqueles que nos
podem levar ao medo dos que nos ajudam a ver de outra perspectiva, a passar do
medo à coragem, da dependência das circunstâncias exteriores ao sentido de vida?
388
1. Como os outros reagem aos nossos medos
Quando olho o que, na categoria “como”, foi identificado como sendo o modo “como as
pessoas reagem” aos nossos medos, encontro:
- Reacções de surpresa – “Os meus amigos dizem-me: «Já andas nisso há tantos anos…
Como é que é possível?»” (2J1/4).
- Relativização –- “A minha mãe sempre relativizou muito, não gosta de ir ao fundo de nada,
acha que tudo passa...” (3O4/12).
- Não compreensão – “Até a minha irmã me perguntava: «Por que é que tens tanto medo do
insucesso escolar se nunca o tens?»” (3K2/7).
- Confirmação da razão dos medos – “Uma vez, quando desabafei com a minha mãe, a
minha mãe disse-me: «Oh filha, disso ninguém está livre, não é?». (...) Eu estava à espera que a
minha mãe dissesse: «Tem juízo! Nem pensar!». E, realmente, quando a minha mãe me pôs a
hipótese em aberto, eu não estava preparada para receber aquela informação” (3O4/5).
- Ajuda – “Meti-me numa casa (...) até que apareceram uns amigos nossos de mota. Eu expliquei-
lhes o que se passava e eles foram atrás do homem…” (3O4/7).
Mamoru Itoh (1996) em “Quero falar contigo sobre os meus sentimentos”, uma metáfora
de uma beleza e simplicidade muito grandes, como só as metáforas muitas vezes
conseguem ter, escreve sobre a necessidade e os obstáculos à comunicação
comparando-os com o jogo da bola:
“Se a pessoa a quem atiraste a bola do coração a apanha (...) então uma fase da
comunicação foi preenchida. Mas algumas vezes nós sentimos que «Ele não a apanhou
da maneira que eu queria!» (...). Nós temos muitas formas como estas de falta de
comunicação. Quando se acumulam momentos de falta de comunicação, as nossas
emoções ficam instáveis. Nós ficamos aborrecidos, preocupados, zangados, com
preconceitos, hostis. De vez em quando, explodimos... Depois, aos poucos e poucos,
começamos a não sentir nada... E, mais cedo ou mais tarde, estamos sozinhos” (Itoh:
1996: 30).
389
Continuo, por isso, fazendo-me perguntas. Como será que educa quem “começa a não
sentir nada” e se habituou a calar? Como será que educa quem viveu e foi educado
com e pelo medo? Como será que educa quem tem medo? Continuamos legando-o ou,
tentando inverter o processo, mas conservando os medos (e sempre contagiando),
educamos os nossos filhos sem eles mas, no seu lugar, não somos capazes de
oferecer valores alternativos pelos quais eles sintam valer a pena lutar?
“A actual obsessão pelo divertimento é uma reacção à vida horrível que somos
obrigados a levar (...). A busca de entretenimentos surge da necessidade de fugir dos
problemas, conflitos e sentimentos que parecem intoleráveis e avassaladores (...). A
diversão como uma fuga relaciona-se com a ideia da escapada. Esta é a rejeição da
realidade social, da realidade de propriedade de uma outra pessoa, dos seus
sentimentos e até da sua própria vida” (Lowen, 1984:16-17).
Se assim é, tudo é fácil, tudo tem de ser imediato, tudo tem de ser já. Talvez já não
tenha medo de nada, mas sou, seguramente, dependente de tudo – o que quer dizer
que tenho medo de tudo. Não será que também é assim que o medo (ainda mais
disfarçado, poderoso, hostil e... medroso), continua sendo herdado, passado “de pais
para filhos, de geração em geração” (Gil, 2005:78), e que assim se fecha um novo
círculo vicioso?
2. Liderança e clima como factores importantes para aprender a lidar com o medo
390
“A minha mãe foi a mulher coragem, a mulher “Muitos grandes professores e líderes apresentaram
muitos comportamentos e crenças que também nós
forte do evangelho que sempre deu estamos a propor como sendo inteligência espiritual
ao falarem e agirem de acordo com as suas
testemunho de uma fortaleza muito grande. percepções e valores que reflectem uma perspectiva
Todos vivemos unidos a doença do pai com mais ampla; e, como resultado, as suas palavras e
acções despertaram em nós o reconhecimento de
uma forma e uma coragem muito grande verdades universais (...). Muitos deles estavam em
situações desesperadas, e, mesmo assim,
porque a mãe era o testemunho da força e da encontraram maneiras de fazer a diferença. Através
coragem. E, se calhar, ela também passou de uma vida de serviço e descoberta, utilizaram a
inteligência espiritual para transformar realidades
esse testemunho (...) para nós” (3C4/3). biológicas em transformação do espírito”185. (Sisk &
Torrance, 2001:X).
E mais: quando olho o que, na categoria “como”, foi identificado como sendo parte do
clima necessário para aprender a lidar com o medo, encontro:
185
“Many great teachers and leaders demonstrate behaviors and beliefs that we are proposing as spiritual
intelligence by speaking and acting in accordance with perceptions and values reflecting a larger
perspective, and as a resulta, their words and actions awaken within us the recognition of universal truths.
(…) Many of them were in hopeless situations, and still they found ways to make a difference. Through
lives of service and inquiry, they employed spiritual intelligence to transform biological reality into a
transformation of the spirit” (Sisk & Torrance, 2001:X).
391
“A melhoria da qualidade da educação tem como um dos seus pilares estratégicos a
formação de professores. Sem embargo, esta formação não pode ser reduzida à
capacitação de procura desenvolver saberes, habilidades e destrezas que o qualifiquem
de um ponto de vista exclusivamente técnico (...). A formação implica processos
educativos que transcendam esta dimensão do fazer do professor e penetrem a sua
própria prática vital como sujeito de desenvolvimento” (Roldán Vargas, 1997:1).
3. Terceira síntese
a) São muitas e variadas as reacções das pessoas perante as situações de medo dos
outros; nem todas revelam a experiência, a sensibilidade ou a empatia necessárias
para se ser capaz de entender o que sente quem enfrenta essas situações.
c) Educador e líder não é quem não tem a coragem de ser o que é, mas quem,
consciente das suas limitações, procura viver de acordo com as suas percepções e
valores e, por isso, também é capaz de testemunhar e despertar para a experiência
de vida plena.
Relembro a pergunta da pesquisa aqui em causa – “por que razão o educador só pode
ajudar outros a enfrentarem os seus medos e a terem uma vida serena, útil e corajosa,
depois de ele próprio ter entrado no processo de enfrentar os seus?” E encontro as
seguintes respostas:
392
a) Por causa do CONTÁGIO. Um educador que tente ajudar outros naquilo que ignora
em si mesmo, pode, pela força da “não unificação do eu” que demonstra e
transmite, tornar-se ele mesmo uma das causa do medo.
Então, e da mesma maneira que, para dançar uma pirouette, se precisa olhar um ponto
fixo para não perder o equilíbrio e manter a direcção, também tudo isto vai levando a
393
entender que, para se fazer um movimento de transformação, se precisa de uma âncora
que sustenha. Não de uma âncora, de alguém, que prenda ou amarre, mas de alguém
que, pela sua referência e testemunho e pelo que de Bem inspira e contagia, permita
fluir livre e espontaneamente na descoberta e construção daquilo que se é – consigo
mesmo, com os outros, com o mundo e, por isso, com as gerações vindouras.
1. Síntese
Então, e para que o trabalho de um educador seja honesto (o que também é a maneira
de ser eficaz), é necessário que aquilo que ele “ensina” esteja também sendo
trabalhado e fundamentado dentro de si próprio. Isto não é, obviamente, encher-se de
conhecimentos e informações, mas sim experimentar e activar continuamente em si
mesmo o processo de desenvolvimento humano que procura estimular nos outros. Não
sendo assim, acredito, tornar-se-á num risível (e bem perigoso) guia que julga ser capaz
394
de conduzir alguém só porque leu e decorou atentamente o roteiro de uma montanha.
Por isso, só tem direito de educar outros quem se educa a si mesmo. Nós educadores
(professores, formadores, facilitadores, adultos com responsabilidades na formação de
outras pessoas, quaisquer que sejam as suas idades), SÓ ganhamos o direito de educar
quando somos capazes de nos desvelar (pelo menos perante nós próprios) e de nos
encararmos na lisura da nossa integridade e totalidade; quando somos capazes de
começar a deixar para trás as roupagens, os disfarces, com que quotidianamente nos
cobrimos; quando percebemos que tais roupagens não dão senão a nós mesmos (não
aos outros) a imagem daquilo que gostaríamos de ser; quando percebemos que essa
máscara só desvirtua o que, de facto, somos e que, afinal, é o que de mais bonito e
convincente temos e podemos transmitir.
E como ilustração, trago à reflexão uma das pessoas mais respeitadas em todo o
mundo, uma das figuras que melhor encarnou os valores essenciais da realização
humana – a figura “serena, útil e corajosa” de S. Francisco de Assis, símbolo da paz e
da fraternidade. Tendo descoberto (desvelado) o seu caminho, só fica definitivamente
preparado e pronto para o começar quando, contra tudo e contra todos, deixa para trás
todas as suas roupagens e, nu, se põe ao caminho.
395
396
397
398
QUEM
O QUÊ
COMO
corpo emocional
ausência de unificação do Eu
corpo mental
corpo emocional
desejo
percepção do Eu corpo mental
corpo mental
imaginação
corpo emocional
corpo cultural
corpo emocional
corpo cultural
4.7 Categorias de Análise experiências ou previsão de fracasso corpo mental
corpo cultural
mitos
percepção do Cosmos corpo transcendente-cultural
corpo emocional
corpo transcendente
razões para não ter medo percepção dos Outros corpo mental
causas do não ter medo
corpo emocional
corpo transcendente
PARA QUÊ
Lembrei-me de quanto tempo passei a lutar para conseguir uma coisa que não queria.
Por que o fizera? Não conseguia encontrar uma explicação. Talvez porque tinha
preguiça de pensar noutros caminhos. Talvez pelo medo do que os outros iriam pensar.
Talvez porque ser diferente desse muito trabalho. Talvez porque o ser humano está
condenado a repetir os passos da geração anterior, até que (...) um determinado
número de pessoas comece a comportar-se de uma outra maneira. Então, o mundo
muda, e nós mudamos com ele. Mas eu não queria mais ser assim. O destino
devolvera-me o que era meu e agora dava-me a possibilidade de me mudar a mim
mesmo, e de ajudar a transformar o mundo - Paulo Coelho
Paz não é só o oposto da guerra, nem só o espaço de tempo entre duas guerras – paz
é mais do que isso. Paz é quando agimos de forma certa e quando há justiça entre
todos os seres humanos e todas as nações – Pensamento Índio.
Perante aquela que é, na sua formulação, a pergunta mais simples da pesquisa, tento
traduzir, na linguagem simbólica do movimento corporal, o significado intrínseco do
processo de trabalho sobre cada uma das perguntas que presidem a esta investigação.
E o que logo me vejo fazendo é:
- abrindo os braços, como quem quer abarcar (ou abraçar?) o mundo – quando
procuro as respostas para o “o quê” e o “como”;
- esgaravatando e metendo os pés e as mãos na terra, como quem quer buscar
nas profundezas as raízes que sustentam – quando quero saber o “por quê”;
- crescendo em bicos de pés e levantando os braços para o alto, como quem quer
criar asas e levantar voo em direcção ao que é maior e que transcende –
quando me interrogo sobre o “para quê”.
186
Ver excerto do mapa mental das categorias de análise no final deste ponto do capítulo.
399
Ilustração III.12 – Sinergia dos movimentos horizontal e vertical das perguntas de investigação.
- “Naquela comunidade o medo funcionava como factor de coesão, mas isolava-a de todas as
outras comunidades, das outras cidades” (6L1/1).
400
O segundo tipo pretende apontar, através da relação tridimensional eu-outros-cosmos,
para aquilo que são propósitos de vida autoconstrutiva, de comunicação interpessoal e
de possibilidade de construção de um mundo melhor (Trigo & Coego, 2003).
- “Uma coisa que os medos nos podem ajudar a encontrar é aquilo que nós realmente valorizamos”
(4L5/1).
- “Hoje em dia, quando trabalho, gosto de trabalhar com pessoas que me dizem exactamente
aquilo que pensam, mesmo que eu não goste de ouvir” (3M2/4).
Para começar a vislumbrar o sentido de uma “vida serena, útil e corajosa”, vou procurar
perceber o que está contido no que foi genericamente classificado como sendo o papel
do “medo para o desenvolvimento humano”. Aí as referências à “relação com o Eu” são
bastante amplas (41 no total), e podem ser divididas em quatro novos sub-tipos:
b) Consciência do que se valoriza – “Por detrás de um medo pode haver alguma coisa que eu
valorize muito” (4L5/1).
c) Construção de uma nova realidade – “Os medos que impedem certos sonhos podem ter
alguma razão de ser, podem-nos estar a avisar que alguma coisa tem de ser bem levada a sério e
que não vale a pena insistir em determinado tipo de situações” (4M13/3).
401
d) Realização de objectivos – “Sempre que eu tenho um medo, ele depois é compensado (...)
quando supero o objectivo para o qual eu tinha medo” (3J4/14).
c) Menor dependência / melhor relação – “Neste momento a relação com (...) é muito
interessante (...). Ele está no seu espaço e eu estou no meu. E sempre que vou estar com ele, eu
estou saudável, sou independente, não preciso dele. Quanto menos eu precisei dele, mais gostei
dele” (3J4/12).
d) Sofrimento – “Ele sofreu muito com isso porque era criticado por toda a gente, por ter essa
necessidade de ser diferente” (6J4/1).
“A Humanidade deixou de ser apenas uma noção ideal, tornou-se uma comunidade de
destino, e só a consciência desta comunidade pode conduzi-la a uma comunidade de
vida; a Humanidade é, desde agora, sobretudo uma noção ética: é o que deve ser
realizado por todos e em cada um. Enquanto a espécie humana continua a sua aventura
402
sob a ameaça da autodestruição, o imperativo tornou-se: salvar a Humanidade
realizando-a” (Morin, 2002:123
Preciso, por isso, ver se, no “medo para a conservação social”, enquanto negação ou
impedimento ao desenvolvimento humano, estão presentes elementos que completem
o quadro das reflexões e das experiências do grupo e ajudem à leitura do que ocorre ao
nível do macro e do cronosistema.
“Cada vez que me perguntam como explico que se possa chegar a um estado de vazio
existencial, procuro assinalar o seguinte facto: contrariamente ao animal, os instintos já
não indicam ao homem o que tem que fazer, e as tradições não lhe dizem o que deve
fazer e, muitas vezes, nem sequer já parece saber o que quer. É por isso que se inclina
tanto para querer o que fazem os outros, como para fazer só o que os outros querem.
No primeiro caso trata-se de conformismo, no segundo de totalitarismo” (Frankl,
1994:16).
- “O medo naquele filme é tratado, sobretudo, em termos sociais (...). Eu ali relaciono o medo com a
fuga e com o controlo (...). Ele serve de alavanca ao controlo social” (6I1/1,2).
Algumas poucas referências também indicam que o medo começou, ou foi instigado,
por “uma boa causa” (6V32/2), por se considerar que podia desempenhar um papel
positivo no desenvolvimento e estabilidade social.
187
Ver “Capítulo 1 Roteiro – 2.2.3 Etapa 2 caminhando”.
403
- “Naquela comunidade o medo funcionava como factor de coesão” (6L1/1).
- “O mito servia para o controlo social. Era para não turvarmos a água e, assim, os mais velhos,
apanhando a água na fonte, levavam para suas casas água limpa” (6K4/12).
b) Criação de dependências – “Quando um pai e um filho (...), quando provocamos medo para
controlar o outro, fazemos por uma boa causa. Só que, a certa altura, esquecemo-nos que o outro
já consegue “andar no bosque” sozinho e, portanto, escusamos de continuar a insistir esse medo”
(6J32/2).
c) Isolamento - “Naquela comunidade o medo funcionava como factor de coesão, mas isolava-a
de todas as outras comunidades, das outras cidades” (6L1/1).
d) Legitimação do poder e controlo social – “[O medo] serve de alavanca ao controlo social
(...). Na sociedade de hoje (...) há sempre o papão (...), chame-se ele comunismo, capitalismo,
terrorismo (...). Há sempre um papão que serve para justificar, legitimar, uma via de maior
imposição, de maior controlo social. O mesmo acontece muitas vezes nas famílias” (6I1/2).
Considerando que o que consta do ponto anterior não diz tanto respeito a experiências
individuais, mas a observações dos participantes do grupo de pesquisa sobre o que se
passa em níveis mais amplos do sistema de interacção humana, começo por fazer um
esquema de transformação e correspondência directa dos resultados aí obtidos com o
404
que possa ser o sentido do “medo para o desenvolvimento humano na relação com o
mundo”:
A partir daqui, e conjugando com todos os restantes resultados, crio um quadro síntese
da perspectiva do grupo de pesquisa sobre as três dimensões do medo na construção
do humano (tabela III.17):
Em triangulação com outros autores (nomeadamente com Viktor Frankl, pelo quanto,
desde a sua própria experiência e em situações limite, comprovou a essência e a
possibilidade de se ser humano), e relembrando que o eixo central da categoria aqui em
405
análise é SER PARTE DO UNIVERSO, tento reflectir sobre algumas das ideias e
observações até aqui apresentadas para que, a partir delas e da descoberta dos
desafios que lhes estão implícitos, possa depois formular uma resposta para a última
pergunta da pesquisa.
“Quem se fixa na auto-realização como meta, passa por alto e esquece que, em última
análise, o homem só se pode realizar na medida em que atinge a plenitude de um
sentido fora no mundo e não dentro de si mesmo. Por outras palavras, a autorealização
foge da meta escolhida já que se apresenta como um efeito colateral, que defini como
189
“autotranscendência” da existência humana” (Frankl, 1994:21).
188
Ver ponto 3 deste capítulo.
189
“Quien se fija tal autorrealización como meta, pasa por alto y olvida que el hombre en último término
puede realizarse sólo en la medida en que logra la plenitud de un sentido fuera en el mundo no dentro de sí
mesmo. En otras palabras la autorrealización se escapa de la meta eligida en tanto se presenta como un
efecto colateral, que yo defino como “autotranscendencia” de la existencia humana” (Frankl, 1994:21).
406
“A realização do ser humano (...) exige ser conduzida por quem? Pela liberdade e força
de vontade do «Eu pessoal» correndo o risco de chocar com a orientação oposta dos
outros eus, ou pela sabedoria de um «Eu supra-pessoal», tantas vezes confundido, por
si ou por outros, com o Eu do Grupo, do Partido, do Estado ou até da Humanidade ou da
Realidade, «fácies» do Duce, do Führer, do Big Brother ou mesmo do rosto intratável do
próprio Deus, presentes em todas as formas de autoritarismos, ditaduras e
fundamentalismos, capazes de conjugar as vontades individuais mas também de as
contrariar, esmagar e destruir?” (Ribeiro Dias, 2000:19).
Não parece, por isso, possível fazer uma ilação directa dos resultados aqui obtidos.
Apesar de oriundos de sub-categorias distintas, o “para quê” do medo assim
encontrado, seria “classificado” num continuum entre dois extremos – de um lado, o do
INDIVIDUALISMO, com aquilo que ele significa de focalização na vida privada e
fragmentação dos espaços da vida (Teixeira Fernandes, 2001:58); do outro, o
AJUSTAMENTO, com aquilo que ele
se traduz em contribuição para o
bem-estar comum a partir de um
encaixe num nicho pré-existente
(Guenther & Combs, 1980). Isto
é, em última análise, os dois
extremos representariam o medo
para a conservação social.
190
Teixeira Fernandes define individuação como “processo de assunção livre por cada uma das
orientações do mundo que dão sentido à existência” (Teixeira Fernandes, 2001:58).
191
Corresponde ao binómio autonomia-dependência do princípio da complexidade de Morin (2003, 2006).
407
2. O desafio da RESPONSABILIDADE por se ser parte de um todo
- “Eu ali relaciono o medo com a fuga e com o controlo. (…) ele serve de alavanca ao controlo
social. (...). Na sociedade de hoje também há sempre o papão – qualquer regime mais autoritário,
mas, mesmo o regime democrático que assuma uma via mais autoritária tem sempre um papão”
(6I1/2).
Deste modo, e deixando implícito que “alguém”, não identificado e longínquo, muitas
vezes plural, “social”, é o responsável-causador das situações assim criadas, ficam
também em aberto duas outras questões:
- o papel desempenhado pelo sujeito individual no “medo para a conservação
social”;
- o papel desempenhado pelo sistema social no “medo para o desenvolvimento
humano”.
Será isto uma outra marca192 da nossa dificuldade em “assumir a responsabilidade” (ou,
pelo menos, a co-responsabilidade pela omissão) por aquilo que se vive? Será isto uma
outra forma de inibição-limitação do “movimento centrífugo da mudança”, mas agora em
termos sociais? Também em Frankl encontro para estas questões uma provocação aos
educadores:
“Na nossa época, a educação deveria ocupar-se não só em transmitir conhecimentos, mas
também de refinar a consciência para que o homem seja capaz de escutar em cada situação
a exigência que contém. Numa época em que os dez mandamentos parecem perder a sua
vigência para tanta gente, o homem deve estar preparado para perceber os 10.000
mandamentos que estão encerrados nas 10.000 situações com que enfrenta a vida. Então
não só esta vida apareceria cheia de sentido, mas ele mesmo estaria imunizado contra o
conformismo e o totalitarismo – ambos consequência do vazio existencial – pois uma
192
Ver ponto 3 deste capítulo.
408
consciência alerta torna-o capaz de «resistir» de maneira que não se entregue facilmente ao
conformismo nem se desobrigue tão pouco do totalitarismo” (Frankl, 1994:31).
Por último, uma reflexão a partir do conteúdo de uma das subcategorias atrás
identificadas, a subcategoria “sofrimento”, que, com uma só referência, indicia a
presença da dor na descoberta do sentido do “medo para o desenvolvimento humano”.
- “Ele sofreu muito com isso porque era criticado por toda a gente, por ter essa necessidade de ser
diferente” (6J4/1).
Estando o medo, na sua génese, ligado com o princípio da dor (Damásio, 1995),
poderia supor-se que, pela capacidade de o superar e/ou de nele se encontrar um
sentido, o pêndulo da regulação vital do organismo oscilaria “automaticamente” para o
lado do princípio do prazer. É, aliás, o que, em princípio, parece acontecer com outras
subcategorias atrás identificadas193 – por exemplo, com a “construção de uma nova
realidade”, a “realização de objectivos”, a “capacidade de empatia”, o “auto-
conhecimento e/ou auto-aperfeiçoamento”, etc.
- “Isso depois dá-me uma grande auto-estima, porque eu penso: “Ok, estou a dar a volta a isto” (...).
E sinto-me outra vez forte porque aprendi com aquilo. (...) Já não sou dominado, eu continuo a
dominar” (4J6/3).
Primeiro, porque é preciso perceber que dizer sim também é dizer não.
193
Ver tabela III.16.
409
- “«Pensar é morrer» (...) porque, quando penso demasiado numa coisa, e quando esse
pensamento provoca uma mudança, provoca avançar num sentido diferente daquele em que
vivíamos. E eu compreendo esse sentido de pensar é morrer, ou seja, deixar para trás uma coisa
que éramos e começar a construir outra” (7M5/2) 194.
Quarto, porque é preciso perceber que o medo não é o essencial, mas o circunstancial
da pessoa, mas que isso provoca o vazio de quem fecha uma etapa para dar espaço a
outra.
- “Todos os labirintos na minha vida: (...) sempre que estou lá, penso “que chatice!”. (...) E depois,
quando saio, digo “que chatice”!” – fico com a sensação de perda. Às vezes parece que estou
farto de estar lá e, depois, quando saio, fico com sensação de perda” (10J2/4)196.
Olhar o medo de frente, buscar o sentido da existência, construir uma vida “serena, útil
e corajosa”, é comprometer-se num processo permanente de mudança. A busca de
sentido não se resume à procura da felicidade, nem pode, enquanto processo criativo
de quem se atreve a escrever a própria história, confundir-se com o anseio por um
tranquilo e definitivo porto de chegada. Pelo contrário, é entregar-se ao entendimento
194
Classificado como “para quê, desenvolvimento humano, eu”.
195
Classificado como “o quê, efeitos do medo”.
196
Classificado como “para quê, desenvolvimento humano, eu”.
410
encarnado de que o prazer não se encontra só nos resultados, mas, sobretudo, no
desfrute e valorização de cada momento do processo.
Retomo e resumo o que já foi explicado sobre o essência das perguntas da pesquisa: a
SERENIDADE da vida é tempo e fruto do centrar-alimentar; a UTILIDADE da vida é tempo e
fruto do agir; a CORAGEM é tempo e fruto do celebrar e do abençoar a unidade do Ser.
Contudo, e neste momento da pesquisa, dou-me conta de que tal vida também
representa o que Viktor Frankl diz serem os três caminhos da descoberta de sentido.
“O homem, por força da sua vontade de sentido, não só busca um sentido, mas também
(...) o encontra por três caminhos. Antes de tudo, encontra um sentido em fazer e
produzir algo. Além disso, encontra um sentido em vivenciar algo, em amar alguém.
Mas, mesmo numa situação sem saída, com que se enfrenta inerme, pode, sob certas
circunstâncias, encontrar um sentido; o que importa é a atitude e a firmeza com que
enfrenta o destino inevitável e fatal. A firmeza e a atitude permitem-lhe dar testemunho
de algo de que só o homem é capaz: converter um sofrimento numa conquista” (Frankl,
1994:33).
197
Texto original: “… y no se puede lograr a voluntad” (Frankl, 1994:25).
411
Para que serve, então, uma vida serena, útil e corajosa,
para que serve uma vida sem medo?
“Para recuperar essa harmonia fundamental que não destrói, que não explora, que não
abusa, que não pretende dominar o mundo natural, mas que deseja conhecê-lo na
aceitação e respeito para que o bem-estar humano se dê no bem-estar da natureza em
que se vive. Para isso é preciso aprender a olhar e escutar sem medo de deixar de ser,
198
sem medo de deixar os outros ser harmonia – sem submissão” (Maturana, 2006) .
Tal como, quando perdidos numa estrada, precisamos orientações simples para
encontrar a direcção do nosso destino, também agora, para esta pergunta de
formulação simples, quereria formular uma resposta simples – serve para a realização
de uma utopia realizável199. Uma utopia realista, segundo Morin (1998 e 2006). Serve
para que a pessoa seja capaz de ser o que o mundo precisa.
Contudo, ao longo do processo de interpretação dos dados, fica muito mais clara a ideia
de que os sentidos do medo não se separam em blocos distintos, mas antes podem ser
encontrados num continuum entre dois pólos – de um lado, o pólo do individualismo e
do outro, o pólo do ajustamento. É, contudo, com a integração destas duas polaridades,
numa dinâmica de individuação-solidariedade, que se encontra o desenvolvimento
humano, se responde ao seu desafio e se encontra a fortaleza de se ser e sentir parte
do todo.
198
www.angu.net/feijao/edu_maturana.htm.
199
Utopia realizável – “um conceito utópico em que acreditamos e vemos como possibilidade de realização
no tempo” (Trigo et al., 2001:31)
412
Uma vida serena, útil e corajosa, uma vida sem medo, enquanto conceito utópico de
uma realidade que se acredita possível, traduz-se, por isso, da seguinte maneira:
413
414
415
416
QUEM
O QUÊ
COMO
POR QUÊ
5.8 Categorias de Análise para a conservação social
na relação com o Eu
II. CENTRAR
Capítulo 2 – Descobrir os próprios caminhos
Capítulo 3 – Descobrir caminhos de outros
III. AGIR
Capítulo 4 – Criar o caminho
IV. CELEBRAR
O sentido do caminho
À maneira de conclusão
Proposta educativa
Para abrir um novo caminho
Fechar o ciclo
Reabrir o ciclo
419
O Sentido do Caminho
Verdade
O caminho foi feito. Ou, melhor, foi feito um certo caminho – um caminho possível, o da
“meia verdade” da sabedoria do poeta, “conforme meu capricho, minha ilusão, minha
miopia200” (Drummond de Andrade, 2005). Agora, sete anos decorridos, é tempo de
parar, de recuar um pouco e
de semicerrar os olhos para,
do ponto em que me encontro,
e sob uma certa luz, procurar
Análise da
Análise da
Categoria A+B Categoria
B
descortinar os contornos do
A
caminho ou do desenho feito –
A+C B+C
analisando, avaliando,
Análise da
Categoria
Legenda escolhendo, compreendendo,
C Passo 1: A / B / C =
análise de categorias
Passo 2: A+B / B+C /
fortalecendo.
A+C = interpretação
Passo 3: A+B+C =
construção de sentido
200
Os sublinhados são meus.
420
- Na segunda, e numa proposta educativa, criando/enquadrando os princípios a
ter em conta na educação de adultos – aquilo que é, afinal, o propósito da
pesquisa.
• À maneira de conclusão
One of my uncles passed on to me a great story of a Cherokee grandfather
talking to his grandson. The Grandfather explains, “there are two wolves that
live within each of us. One is filled with anger, hate, lust, envy, jealousy and
outrage at the injustices done to him. The other is filled with compassion,
kindness, humility and understanding”. The grandson asked him
“Grandfather, which is the stronger?”, and the Grandfather answered: “the
one wee feed” – Autor desconhecido
Há algumas semanas atrás, ouvi contar que, entre os utentes de uma das linhas de
autocarro da cidade, se discutia apaixonadamente a ideia de fazer circular um abaixo-
assinado para que fosse pedida a criação de uma nova “lei” que proibisse os
reformados (os “velhos que andam para cima e para baixo a passear”), de utilizarem
aquele transporte público nas horas de ponta e, assim, de ocuparem “o lugar de quem
trabalha”.
Fiquei a pensar, não só no que este episódio significa em termos sociais e culturais,
mas também no que ele significa no contexto desta pesquisa, já que o senti como
símbolo de tantas das coisas que foram objecto de reflexão e análise ao longo do
processo investigativo:
421
4. Uma não consciência do papel que se tem na construção da realidade e do
quanto, a partir do nível micro, se é co-responsável pelo que se vive ao nível
macro.
5. O resultado de políticas que entendem que o tecnológico se sobrepõe ao
humano, ou que o humano se resolve através do tecnológico.
6. Uma atitude de controlo e dominação, em muito semelhante à que leva à criação
de guetos e/ou à colocação de carimbos, de estrelas amarelas (rosas, azuis, ou
o quer que seja), para mais fácil identificação dos não desejados.
7. Uma necessidade de sobrevivência a qualquer custo que, por causa do medo,
do interesse pessoal e do vazio que tudo rodeia, está ameaçando destruir o que
em cada um é humanidade.
O medo afecta a nossa vida pela forma como é olhado e sentido – se for um medo
construtivo e apropriado, constitui uma chamada para a acção; se for um medo
destrutivo e desadequado, é prejudicial para o próprio e para os outros e impede o
desenvolvimento humano. A grande dificuldade é que, como naquele episódio antes
citado, o medo se disfarça repetidamente de muitas caras e máscaras (de indiferença
ou de abnegação, de poder ou de brandura, de preguiça ou de azáfama, de tensão ou
de euforia...) e, pelo seu desconhecimento ou negação, pode converter-se num
disparador de dualidades desintegradoras e limitadoras da unidade, totalidade e
interacção da pessoa consigo mesma, com os outros e com o mundo.
Com esta preocupação em mente, e a partir das imagens que me suscitam o desafio da
imanência e transcendência da nossa condição humana, retomo e sintetizo o que, à luz
da complementaridade e na interpretação dos resultados da pesquisa, explica as
diversas interrogações e dinâmicas que rodeiam uma vida que se quer serena, útil e
corajosa.
422
intermediárias que vivemos e que, no campo da Educação de Adultos, precisam de um
olhar atento.
Tão firme que, às vezes, os pés se enterram e ficam atolados; tão firme que só se
consegue descortinar o sentido da utilidade e dos deveres da vida. Sem consciência de
que pode ser de outra maneira, é o viver para o agir, ignorando (temendo) a consciência
de si mesmo, as experiências e o sentido de interioridade e transcendência.
423
Num mundo sem espírito, de desistência do eu, de anulação das diferenças, de
limitação da comunicação e de sofrimento sem sentido, são exemplos de medos: o
medo do existencial, o medo da intimidade-comunicação consigo mesmo, o medo da
solidão, o medo de ser diferente, o medo do desconhecido...
Olhando tão só para o alto que o corpo fica a pairar sobre a terra; tão distante da
realidade física que só se consegue descortinar o sentido da luz, do sonho e do
espiritual da vida. Sem consciência de que pode ser de outra maneira, é o viver para o
centrar e para a serenidade, ignorando (temendo) as experiências e o desafio do
quotidiano, das limitações e da matéria.
Num espírito sem mundo em que se foge dos outros e se foge do mundo, são exemplos
de medos: o medo do próprio corpo, o medo da decisão, o medo do compromisso, o
medo da avaliação, o medo do conflito...
424
3. Viver sem os pés pisando firme na terra, nem os olhos postos no sol – o
predomínio do celebrar, mas sem coragem.
Desligado da terra e distante do sol; tão longe de um e do outro que só se procura viver
em função daquilo que são os interesses imediatos. Sem consciência de que pode ser
de outra maneira, é o viver para o celebrar, desvirtuando, ignorando (temendo) tanto as
exigências do quotidiano, como as reais necessidades de si mesmo, como ainda as
demandas do espírito.
425
4. Viver com os pés pisando firme na terra, os olhos postos no céu e no sol e todo
o resto do corpo fazendo a ligação entre os dois – a inter-penetração da
serenidade, da utilidade e da coragem.
Os medos de(sta) gente madura, que se confundem com desejos e sonhos, são os
medos das necessidades de crescimento, de significação, de sentido, de justiça, de
beleza, de criatividade – são, por isso, os medos e os desafios de quem ama.
• Proposta educativa
426
Criatividade e Motricidade Humana –, orientem a construção de um programa de
Educação de Adultos sobre “o Medo e o
Desenvolvimento Humano”.
Educação de Adultos
concreta da natureza humana estar no
Ilustração IV.6 – A dinâmica do desenvolvimento humano mundo. Os vínculos que entre elas
na educação criativo-motrícia.
existem, e que dão origem à EDUCAÇÃO
CRIATIVO-MOTRÍCIA, tornam-nas parceiros privilegiados, vitais, no processo de
Desenvolvimento Humano:
427
b) O DESENVOLVIMENTO HUMANO é um movimento em espiral, consciente e
intencional, com ondas de repercussão que flúem entre os contextos micro e
macro, em princípio acessível a qualquer indivíduo que, por criação própria e em
busca de sentido na sua totalidade complexa, rompe as barreiras da gente
cinzenta, sem graça e com medo, alarga as fronteiras da desconfiança, da
apatia e da mediocridade feita norma e, com isso, assegura a possibilidade de
construção de mundos de alegria e de paz.
Neste duplo enquadramento, defino QUATRO PRINCÍPIOS GERAIS que, a partir do paralelo
entre os resultados das perguntas da pesquisa, as dimensões da Educação Criativo-
Motrícia e palavras clássicas de um Programa Educativo (tabela IV.1), e em interacção
sistémica (ilustração IV.6), sustentam a planificação e aplicação de um programa sobre
“o medo e o desenvolvimento humano”:
201
Reúnem-se aqui os resultados de duas perguntas da pesquisa pois é pelo “como” que se tem acesso ao “o
quê”.
428
mesmo, com os outros e com o mundo, um programa educativo sobre “o medo e o
desenvolvimento humano” pode orientar-se em função da mobilização e
aperfeiçoamento de três propósitos que se interpenetram numa mesma realidade da
vida:
QUEM O QUÊ/COMO
Inquietação Reconhecimento
Coerência
POR QUÊ
Testemunho PARA QUÊ
Contágio Individuação
Integração
429
2. QUEM – O princípio da inquietação (a percepção-consciência do sujeito em
relação)
430
- Negar os medos:
- “Impessoalizar” o discurso.
- Encontrar razões para não enfrentar os medos.
- Pactuar com o medo e com o sistema que o provoca.
- Falar antes dos medos dos outros.
É também por isso que um programa de educação de adultos baseado nos princípios
que aqui se colocam é um PROGRAMA PARA LÍDERES* COMUNITÁRIOS – aqueles que lidam
consigo próprios e lidam com os outros para fazerem transformações sociais.
431
desenvolvimento humano” deve orientar-se por um caminho que, numa profunda
interacção com a sua finalidade, permita fazer a passagem:
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432
1. NECESSIDADE E VONTADE.
Ponto de partida, meio e fim da mudança, é a componente de que tudo depende
e a que ajuda a fazer opções na construção de um programa específico.
I. Sentidas em, pelo menos, uma das dimensões da corporeidade –
emocional, mental, sensorial, intuitiva, cultural, espiritual ou inconsciente.
3. O TEMPO NO MUNDO.
Processos externos de criação de condições e espaços que, no sentido do agir e
indo em frente em função da missão, permitam encontrar o desafio e a
serenidade de ser e celebrar o que se é fazendo a transformação da
convivência.
VII. Compreender, produzir e planear formas de relação consigo mesmo,
com os outros e com o mundo.
433
Contudo, esta estrutura funciona como um menu de possibilidades – isto é, sem uma
ordem específica para a sua utilização, já que as escolhas e aplicações dependem da
abordagem que, em função dos participantes e dos propósitos específicos de cada
situação, for considerada mais adequada. Isto não significa, porém, que não apresente
uma lógica interna. Tal como não é possível resolver de forma eficaz um problema se
não existe uma compreensão clara do que nele está implícito, também aqui é preciso
assegurar que se avançou nos processos internos (o mais difícil), antes de se querer
encarar os processos externos (aquilo que, muitas vezes, porque mais evidente, as
pessoas querem resolver em primeiro lugar).
434
- Um espaço de encontro para a reflexão permanente, para a diversidade de
perspectivas e formas de ser e estar no mundo, evitando um clima demasiado
adocicado e/ou artificialmente consensual.
- Níveis altos de autenticidade, sinceridade e congruência, de solidariedade,
confiança e respeito pela dignidade, privacidade e liberdade de cada
participante.
- Um ambiente de esforço prazenteiro, de rigor, seriedade e compromisso, aliados
à alegria, ao calor humano, à informalidade e à espontaneidade.
- Uma comunicação pessoal, não objectal, centrada nas pessoas e num
tratamento personalizado e atento às necessidades, autonomia e
responsabilidade de cada um.
- Abertura e tempo para assumir desafios e correr riscos, para revelar sentimentos
mais profundos (de medo, alegria, raiva, optimismo, encantamento, dor...), para
procurar e aplicar opções radicalmente diferentes, nem que o sejam só para os
seus criadores.
Para a criação deste contexto, e uma vez mais, assume especial importância a FIGURA
DO EDUCADOR que, tendo coberto as condições atrás expostas, não pode ser uma
imagem-função-abstracção de uma competência técnica. Tem de ser, sim, um
facilitador, um mentor, um mestre, um líder que dá conta, que não desiste e que, com
firmeza, encontra forma de ajudar/provocar/convocar/testemunhar/contagiar o
reconhecimento e a capacidade de caminhar em direcção àqueles que são os
propósitos do programa.
435
Para um novo caminho
Todas as coisas têm o seu tempo, e tudo o que existe debaixo
dos céus tem a sua hora.
Há tempo para nascer, e tempo para morrer;
Tempo para plantar, e tempo para arrancar o que se plantou;
Tempo para matar, tempo para dar vida;
Tempo para destruir, e tempo para edificar;
Tempo para chorar, e tempo para rir;
Tempo para se afligir, e tempo para dançar;
Tempo para espalhar pedras, e tempo para as ajuntar;
Tempo para dar abraços, e tempo para se afastar deles;
Tempo para adquirir, e tempo para perder;
Tempo para guardar, e tempo para atirar fora;
Tempo para rasgar, e tempo para coser;
Tempo para calar, e tempo para falar;
Ilustração IV.9 – Um tempo para terminar, Tempo para amar, e tempo para odiar;
um tempo para começar. Tempo para a guerra, e tempo para a paz.
Eclesiastes 3, 1-8
Preciso, por isso, e nesta etapa final, de olhar o que está para trás para aí ler o que
possa estar para a frente. Ou, dito de outra maneira (e porque, também aqui, e como no
início202, “nada se cria, nada se perde, mas tudo se transforma”), procuro agora, não só
descortinar as NOVAS PERGUNTAS e os NOVOS CAMINHOS que são deixados em aberto,
mas também (e através da utilização de uma NOVA METÁFORA e de um outro olhar de
vida), enfrentar um último desafio de coerência – o de uma tese que começou, mas
também termina (e, por isso, renasce e se transforma), no trabalho interior.
202
Ver “Capítulo 3 Descobrir caminhos de outros – 2. Desenvolvimento humano”.
436
• Fechar o ciclo
Numa das primeiras fases da pesquisa, perguntaram-me se, na lista de medos que
então estava a compilar, já incluíra o “medo de terminar uma tese”. E explicavam-me
que esse medo que muita gente enfrenta (e que também é o “medo do que virá
depois”), faz com que algumas teses se arrastem durante demasiados anos e só com
muita dificuldade (ou sob pressão), sejam dadas por concluídas. Talvez também tenha
sido o que aqui aconteceu... Contudo, e se assim foi, o que agora procuro é encarar
esses (ou outros) medos e reflectir, mesmo que de forma breve, sobre a experiência
vivida ao longo do processo investigativo.
Mas, além disto, reflectir e dar notícia de como investigadora e grupo de investigação
cresceram à luz da pesquisa, é também um exercício de coerência – porque uma tese
que começa no trabalho interior tem de terminar no trabalho interior; porque é
necessária a coerência entre o que se investiga e o que essa investigação representa
como opção de mudança e de transformação social.
437
1. De novo eu – Já alguma vez? Sim, muitas vezes...
438
Como vultos ao fundo de uma sala, os seus sonhos, agora descobertos, tinham
vindo a prepará-la para esta tarde em que, só a si, ousava revelar os seus prazeres e
os seus vícios mais ocultos. E, como mãe de criança por nascer, perguntava-se: Como
será quando for grande? Tempestade ou calmaria? Ternura que seduz pela frescura
ou força da natureza que nada segura?
Assim, naquela tarde, Maria do Vento pegou na carteira e saiu.
Foi este um dos primeiros desafios. A tese não podia ficar à margem da vida, nem a
vida podia ficar esquecida, ou em compasso de espera, à margem da tese. Assim, e
perante a vontade de um conhecimento que ensine a viver, fica a pergunta: como, ao
longo da pesquisa, me tornei uma pessoa mais serena, útil e corajosa? Ou, dito de
outra maneira, e no final de um tempo que foi tempo para aprender-lembrar-
reencontrar-sentir-viver-ser coisas importantes, o que aconteceu ou mudou desde que
escrevi o primeiro texto da pesquisa, “Eu pessoa – já alguma vez?”?
O que tem esta história a ver com a tese? Tudo. Ao longo da tese, muitas vezes, de
muitas e diferentes maneiras, fui revisitada por outros cães. Às vezes até parecia que a
tese tinha vida própria e, com isso, me obrigava a ganhar o direito de a defender.
439
Porque a tese é a vida e a vida é a tese. E tive de fazer opções. Umas vezes afastei-os
(aos cães, aos medos), mas não os coloquei em lugar nenhum – e eles voltaram, ou eu
sei que hão-de voltar. Outras vezes a vida surpreendeu de uma tal maneira que a opção
foi mesmo parar, enfrentar, perceber que o perigo (o medo) não está fora, mas dentro e,
com isso, transformar e avançar.
Assim, e perguntando-me se, também aqui, a ordem dos factores não pode ser
arbitrária, o que encontro agora na minha frente?
Hoje, por causa deste trabalho, acrescento a figura 3. É a vontade de decidir quem sou
através da inquietação da coerência e interligação entre vários espaços de vida – dentro
de mim mesma, com os outros, com o mundo.
Para que perceba que somos destinados à alegria. Às vezes, tantas vezes, teimamos
em viver miseravelmente. Estamos sempre a tentar provar que a nossa vida é a mais
440
difícil, que somos nós os que estamos mais cansados, os que temos mais problemas,
os que temos mais obrigações a cumprir. Gostamos de insistir nas nossas misérias.
Mas estou e estamos destinados à alegria. É bom que não o esqueça.
441
a) tem características específicas que fazem com que “pessoa” e “produto” se
confundam;
b) englobou algum trabalho de sistematização do conhecimento em função dos
propósitos da pesquisa,
colocarei na dimensão “pessoa” as reflexões sobre os efeitos da fase formativa
propriamente dita e, tanto quanto é possível fazer a distinção, reservarei para a
dimensão “produto” as observações que possam estar mais directamente ligadas com o
propósito específico da pesquisa.
Vantagens / Pessoa
- “Há uma frase que (…) para mim faz um sentido corporal. Foi uma frase que foi
construída ao longo deste processo (…): “se fizer parte da tua missão (se fizer
Final da
parte da minha missão), faz o que tem de ser feito sem te preocupares com as
fase
consequências” (J).
formativa
- “Cada semana, cada encontro com o grupo, era psicoterapia para mim. Eu ia em
paz, relaxada, feliz por ter estado «em casa»” (A).
442
- “Já partilhei (…) que um dos meus medos é algum receio que tenho sempre de
expor, de falar de mim e do que sinto. Neste grupo, esse receio, ou esse pouco à
vontade, foi-se dissolvendo com o passar o tempo e com as sessões que fomos
tendo e com a aproximação que se foi criando entre os elementos do grupo” (L).
2,5 Anos - “Vivi o relacionamento com as pessoas. Disse às pessoas que gostava delas. Não
depois tinha feito isso até aí. É uma revolução na minha parte” (K).
Vantagens / Clima
- “Esta possibilidade de podermos falar sem sermos julgados – isto é uma dádiva.
Eu não vinha à espera de tanto” (J).
- “Tem sido uma experiência incomparável (…). Desde a primeira sessão senti-me
Final da
confortável para partilhar o mais profundo de mim” (O).
fase
- “Relativamente a este grupo e a esta pesquisa, isto foi das coisas que mais me
formativa
tocou desde o início – foi a forma informal com que as sessões foram
acontecendo. Acho que foi um dos aspectos que me ajudou a sentir à vontade e
liberto para me manifestar” (L).
2,5 Anos - “O termo-nos encontrado todos tão diferentes, mas sentindo-nos em casa uns com
depois os outros, para mim foi a maior riqueza que eu pude ter” (A).
443
Vantagens / Processo
Por um lado, a experiência da ida ao Gerês é exemplo do que teve impacto nas
pessoas e na vida do grupo, pois reflecte a importância e a necessidade de uma
formação que, muito mais do que circunscrita ao mental e conceptual, englobe
VIVÊNCIAS EM TODOS OS NÍVEIS DO SER (físico, mental, emocional, cultural…). Por outro, a
importância de uma formação que é processo, que DEMORA E SE CONSTRÓI COM O
TEMPO.
- “Outro ponto importante para mim foi a ida ao Gerês e a experiência aí vivida de ir
até ao limite das minhas forças, das minhas capacidades. Aceitar tentar e aceitar
desistir. E ambas as coisas por mim mesma – sem recear o juízo de ninguém, sem
Final da recear o juízo de mim mesma, isto é, sem recear o fracasso” (E).
fase - “A gente não gosta das pessoas por aquilo que tem em comum. Gosta das
formativa pessoas por aquilo que vive em comum, aquilo que vivemos em comum. Nós, de
facto, somos muito diferentes (…), mas aquilo que vivemos em comum aproxima-
nos, principalmente quando vivemos sem as defesas. E isso também foi uma
aprendizagem muito importante para mim” (J).
2,5 Anos - “Sinto-me no caminho de conciliação dos opostos. O aproveitamento das sessões
depois é alguma coisa que só é feita ao longo de um caminho” (L).
203
Ver “IV O sentido do caminho – Proposta educativa”.
444
manifestações do potencial humano.
- Criar um clima com níveis altos (1) de esforço e compromisso aliados à alegria,
informalidade e espontaneidade; (2) de autenticidade, sinceridade, congruência,
solidariedade e repeito pela dignidade, privacidade e liberdade de cada participante.
Limitações / Pessoa
Limitações / Processo-Produto
2,5 Anos - “Coibição… saber que o que se vai dizer vai ser interpretado. Sem ir para a tese
depois poderia ser mais aprofundado” (M).
445
Limitações / Pessoa-liderança
Finalmente, mas não menos importante, foram apresentadas limitações que (estando
relacionadas com uma certa PREOCUPAÇÃO-CONFUSÃO-MISTURA entre os tempos e
propósitos específicos da FORMAÇÃO e os tempos e propósitos específicos da ANÁLISE
DE DADOS e da construção do conhecimento), têm origem nos PROCESSOS DE
COMUNICAÇÃO E LIDERANÇA. Assim, e ainda que algumas das observações que aqui
servem de exemplo até estejam justificadas pelos princípios metodológicos dos
procedimentos e técnicos da pesquisa, na verdade foram sentidas como limitações por
participantes do grupo e, como tal, precisam ser consideradas204.
Final da - “A sensação que tenho é que isto está tudo no começo. Foi feito algum caminho,
fase mas não sei se era exactamente este o ponto a que se pretendia chegar” (L).
formativa
- “Tínhamos falado que isso poderia acontecer, mas depois as entrevistas
individuais não foram feitas. Aí poderíamos ter feito uma recolha de dados muito
maior” (K).
- “Era preciso a colocação de mais exercícios reais” (L).
2,5 Anos
- “Eu acho que não havia objectivos. Havia um ponto de partida, mas ficou a
depois
sensação de que nalgumas das sessões andávamos à deriva” (M).
- “Eu introduziria algumas provocações – levar a estrebuchar, mais directividade,
maior provocação, maior confronto; fazer questões interessantes, perguntas
perturbadoras” (I).
204
Ver “IV Para um novo caminho”.
205
Ver “IV O sentido do caminho – Proposta educativa”.
446
- Os destinatários de um programa educativo deste tipo são ADULTOS, com
NECESSIDADE e VONTADE de reconhecerem EM SI MESMOS a presença do medo e de
acederem a um nível de consciência e de desenvolvimento mais elevado.
• Reabrir o ciclo
CRIAÇÃO, se encontraram em
SERENIDADE permanente cruzamento e
interacção – o plano
Ilustração IV.13
“Era a mesma velha luta, mas eu estava a começar epistemológico, o plano
a partir de um lugar de maior liberdade do que antes” – Moffit (2001a:3) metodológico, o plano
pedagógico e o plano ontológico.
447
Assim, e porque a obra também é imagem de quem a produz (dos seus valores e
motivações, do seu contexto, das suas capacidades e do seu estilo), posso começar por
dizer que, em termos gerais (mas com implicações bem visíveis na análise mais
específica que a seguir desenvolvo), considero que o percurso realizado e os resultados
alcançados naqueles quatro planos reflectem e são consequência de três grandes
tendências206: uma tendência para alguma oscilação entre opções que procuram a
liberdade de criar as próprias regras e linhas de orientação e opções que procuram o
detalhe, a estrutura e a organização; uma tendência para considerar o impacto das
decisões e das escolhas nos sentimentos das pessoas e na necessidade de harmonia e
relações positivas; uma tendência para ganhar energia em situações de reflexão
tranquila e de procura dos próprios pensamentos internos (Selby et al, 2003).
206
Estas tendências correspondem às dimensões de análise do VIEW sobre os estilos de criação (ver ponto
1 do Capítulo 4, “Criar o caminho”). Como os meus resultados individuais estão muito próximos das
médias obtidas pelo grupo de pesquisa, não houve grande descontinuidade de estilos (pelo menos em
termos estatísticos), entre os meus tempos de trabalho independente e os tempos de trabalho com o grupo.
207
“É essencial que as abordagens da educação de adultos sejam baseadas na herança das próprias
pessoas, cultura, valores e anteriores experiências e que as diversas formas com que estas abordagens são
implementadas capacitem e encorajem cada cidadão a tornar-se activamente envolvido e a ter uma voz”
(http://www.unesco.org/education/uie/confitea/declaeng.htm: 2003-02-04).
208
Ver “Introdução – 3. A pesquisa”.
209
Ver “Capítulo 1 Roteiro – 2.2 Descrição do cronograma – procedimentos, instrumentos e técnicas”.
448
c) os resultados obtidos na investigação210 – que demonstram a importância do
papel de educador que, consciente e intencionalmente, active dentro de si
mesmo o processo de desenvolvimento humano que procura estimular nos
outros.
É nesta coerência entre planos que, aliás, entendo residir grande parte da legitimidade
da pesquisa. Nenhum dos intervenientes (e na diversidade de papéis desempenhados),
ficou de fora, mas, de dentro, teve de se expor (quando não, comprometer), aos
processos de transformação que advoga. Mas é também essa a razão (ou, pelo menos,
uma das razões), por que o processo demorou tanto – tendo feito experiência(s) de
vida, foi preciso dar tempo para ganhar consciência dessa mesma experiência.
Contudo, e ainda fruto de um estilo criativo que se sente mais confortável perante
soluções moderadas e flexíveis (não se revendo, por isso, numa estrutura demasiado
definida, mas também não se aventurando muito a fugir ao estabelecido), ficam outras
possibilidades em aberto:
No plano pedagógico
210
Ver ponto 4 do “Capítulo 4, Criar o caminho”.
449
que, embora não apresentem elementos muito diferentes ou inovadores, os princípios
educativos enunciados potenciam o desencadeamento de uma grande variedade de
combinações e sinergias entre os diferentes princípios, componentes e fases que as
integram. Porém, o que considero ser o grande êxito desta investigação é que o grupo
de pesquisa, dois anos e meio depois do programa realizado, quer voltar a trabalhar
junto.
Fica, todavia, por descobrir (e é esse o desafio que o grupo de pesquisa agora se
coloca), o que poderia ter trazido ao tema uma visão radicalmente diferente. Fica,
também por isso, em aberto a necessidade de desenvolver um novo projecto de
investigação que (continuando a conjugar educação de adultos e pesquisa
colaborativa), possa dar origem a soluções mais audaciosas:
Além disso, e porque este foi um estudo exploratório, confronto-me agora também com
a necessidade e vontade de:
450
c) Estudar o medo no contexto de formação inicial e contínua de educadores e
professores para, a partir daí, ajudar a melhorar planos educativos e programas
que ultrapassem as dimensões do saber e do saber fazer do professor e
possam, por isso, propiciar as condições que o ajudem a tornar-se sujeito de
desenvolvimento.
d) Utilizar a proposta educativa aqui construída aqui construída para, num contexto
concreto (educativo ou organizacional) e frente a um problema específico, fazer
investigação-acção.
Entretanto, e muito embora o que há ainda que fazer, também muito já ficou definido
como linhas de acção na valorização do ser humano para que se possa vencer o medo
em tantas das suas formas e espaços.
No plano ontológico
Foi um exercício de incorporação, num conjunto que procurei coerente, das minhas
diferentes áreas de formação académica e humana – enquanto educadora, enquanto
socióloga, enquanto magister em criatividade.
Foi um exercício de passagem para um outro ciclo de vida – já que, neste momento, e
em outros espaços de acção pessoal e profissional, são já visíveis importantes
resultados.
451
Quando partires de regresso a Ítaca,
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências... (....)
Este é parte do texto com que, há muitas páginas atrás, dei início à apresentação
daquele que foi aqui o meu regresso a Ítaca – a descrição dos procedimentos e técnicas
desta pesquisa. Retomo-o agora, no fim dessa viagem, para (me) lembrar que, muito
mais importante do que chegar, o importante foi fazer a experiência do caminho –
aprendendo a viver com a lentidão dos processos; apropriando e ganhando consciência
da experiência; dando tempo para escutar, para processar, para dialogar; não
repetindo, nem me repetindo, mas fazendo pela primeira vez e aprendendo a ser
aprendiz do meu próprio horizonte.
Tão simples foi. Talvez, por isso, tão complicado e doloroso muitas vezes também. Mas
essa é, acredito, bênção da paz.
Obrigada
Maria Helena Gil da Costa
Porto, 9/12 de Maio 2008
452
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