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PRODUTOS NATURAIS

Numa dessas sacanagens que Deus, os astros, ou


qualquer uma dessas autoridades em intervenções
metafísicas gosta de fazer de vez em quando para
passar seu tédio no cosmo, já próximo de casa, com
a sacola de 1 kg de ração na mão e Desireless
estourando nos ouvidos, Fabrício viu um antigo
colega de faculdade mais à frente: “O T de ventil”,
disse consigo mesmo. Lembrou subitamente do dia
em que, durante uma apresentação, outro colega,
Wilson, a respeito dele, cochichou: “Já se ligou que
quando esse cara fala, os fonemas com “t” saem
com um arzinho a mais? Sempre que ouço ele falar
me vem à mente aquela imagem acústica do ventil
de uma bola sendo esvaziada, sabe? Tzsssss...”

Fabrício, o vendo ainda de longe, tombou o olhar


e começou a cantarolar (como se soubesse) a letra
de Qui peut savoir?

“É só ficar tranquilo”, pensou. “Distraído, olhar


vago. Vou passar reto. Vai ser fácil.” Pela margem
do olhar, contudo, quase no ponto cego, percebeu
o vulto se aproximando.

– E aí, brother!

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Tirou os fones, sorriu, e no mais caloroso e
convincente tom de surpresa respondeu:

– Olha só! E aí, cara?! Mas que surpresa agradável!

– Nossa, surpresa mesmo!

– Quanto tempo, hein?!

– Tempão, brother, tempão! – “Tzsempão,


brothzser...” – Coincidência te ver por aqui. Tá
morando aqui perto?

– Coincidência mesmo, cara. Nem te vi, sabia?


Distraído, som no talo. Quase que eu passo reto.

– Já pensou?

– Bah!

– Ainda bem que eu te vi de longe.

– Ainda bem.

Fabrício ficava o tempo todo sorrindo com os


dentes cerrados como os de um pugilista. Assentia
com a cabeça, mas na verdade pensando somente
isto: Que desgraça!

– Curtindo um som então?

– Ouvindo Desireless. Sabe aquela mina dos anos 80


que usava o cabelinho meio Guile, meio Paul
Phoenix? Eu sempre curti um synth pop, um new

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wave. Essas músicas com instrumentos e sons
artificiais.

– Pode crer! Desireless. Eu sei quem é. “Voyage,


Voyage...”

“Meu Deus, o cara ainda queria fingir que sabia


francês, cantando o refrão?!” Por não falar francês
e entender bem pouco do que a cantora dizia (o
pouco do que lembra de ter pesquisado no
https://www.letras.mus.br/), Fabrício não sabia
como encarar aquilo. Então apenas afirmava
mexendo a cabeça no ritmo da música, com um
constrangido sorriso entrecortado.

– Mas, e aí, está – estzsá – morando aonde? Fazendo


o que por aqui?

– Ah, eu fui ali na Pet Shop Pets comprar ração para


os nossos cachorrinhos – disse erguendo a sacola.

A partir dali, ao Fabrício se esquivar mais uma vez


de dar o seu endereço, conversaram sobre os dias
da faculdade, política, economia do país, clima
(que, aliás, estava agradável), e pouco sobre
trabalho. Perguntaram um sobre a família do outro.
Ouviram. Realmente ouviram. Como se se
importassem. Sobre isso, inclusive, Fabrício ficou
bastante surpreso ao se ver pelo reflexo dos óculos

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wayfarer do seu ex-colega, e perceber como o seu
semblante podia transmitir tanto interesse em
ouvir um assunto que não lhe interessava nada,
vindo de uma pessoa que lhe interessava menos
que nada.

Olhando para o relógio, no tom fugidio de uma


despedida desesperada, Fabrício disse estar com
pressa.

– Eu também estou um pouco apressado –


respondeu o ex-colega.

– Ah, beleza! Mas assim, cara, foi muito bom te...

– Espera aí, espera aí! É que eu acho que você ainda


não me respondeu se mora por aqui.

– Ah, desculpe, cara, desculpe!

Fabrício riu, apavorado. Como é que esse cara


podia ser tão invasivo? Não percebeu o silêncio
dado para essa pergunta das outras vezes? “São
desvios. Desvios. Aparentando vir daquela casual
influência da distração, é verdade, mas são
deliberados. Meu Deus, como pode?!” Enfim.
Abalado pelo constrangimento, comprimindo os
olhos e jogando-os para a direita, como se
precisasse calcular algo, Fabrício prosseguiu,
respondendo:

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– Sim, sim, moro por aqui.

– Onde?

– Logo ali – disse, arrebitando o nariz para a indicar


a extensa rua. Já com uma queimação vulcânica no
estômago, continuou:

– Seguindo aqui.

– Ah, então é nesta rua?

– Não, não. Tem que seguir por esta rua e pegar a


próxima à direita.

– Nossa, excelente localização, hein?!

– É, é sim.

Suado, Fabrício respondia inclinando milímetros o


corpo em direção ao “A gente se vê por aí.”

Ouvindo sobre o valor dos aluguéis na região (um


“ótzsimo investzsimentzso”, inclusive), começou a
sentir um calor sufocante gratinando seu rosto ao
notar que a pele seca e o semblante sereno do seu
ex-colega, somados àquela temperatura amena
repleta de um sopro refrescante que chacoalhava
os galhos das árvores ao redor, só tornavam mais
escandaloso aquele suor ridículo que escorria
caguetando a sua perturbação.

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– Mas, então, voltando ao assunto, rapidinho.
Próxima à direita, isso?

– Sim.

– Beleza! Em qual casa? É na primeira, segunda?

– Sim.

– Sim, o quê? É na segunda?

– É na primei... – trocou a sacola de mão, sacudiu


a cabeça em negativa e, por algum motivo sádico
(ou masoquista?), abortou a mentira – quero dizer,
segunda. É na segunda casa... brothzser.

– Que ótimo! Qualquer hora vou ali te visitar.

– Pô, claro, com certeza!

Se pôs a pensar que já tinha dado o endereço e


consentiu em receber a visita de alguém que, além
não ver há muito tempo, além de nunca ter sido seu
amigo, além de fazer aquele insuportável som de
ventil, era, ainda, alguém que ele nem ao menos
lembrava o nome.

– Foi um prazer te ver, brother. Só mais uma


coisinha antes de eu ir. Você gosta de mel? Eu
vendo mel.

– Bah, pior que eu não curto, cara – lamentou, com


o design do mais cínico pesar no rosto.
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– Eu vendo própolis também.

– Ah, é que infelizmente eu sou alérgico a própolis.

– Alérgico a própolis?

“Existe alergia a própolis?”, se perguntou Fabrício.


Envergonhado, confuso e com toneladas de
imprecações e insultos em berro entalados na
garganta, fechou os olhos, suspirou e suavemente
respondeu:

– Não sou alérgico. Na verdade, eu me confundi.


Eu quis dizer que não curto própolis também.

O ex-colega começou a rir. Disse entender. Então,


numa velocidade absurda, e sem dar a chance de
Fabrício responder, finalizou:

– Sem problemas. Vou aparecer ali na tua casa


assim mesmo. Eu vendo todos os tipos de
produtos naturais. Agora eu preciso ir. A gente se
vê por aí.

“... Tzsodos os tzsipos de produtzsos natzsurais”.

Esse combo final fez com que aquele som de ventil


ficasse repetindo e repetindo (mais redundante do
que eco de gago) na mente de Fabrício. Ele ficou
parado ali alguns instantes ainda, até o seu ex-
colega entrar na papelaria da esquina. Colocou os

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fones de volta. Agora na playlist, ainda nas faixas da
Desireless, estava rolando Qui sommes-nous?

Ele foi para casa sentido aquele hálito refrescante


da natureza que soprava secando seu suor, levando
junto toda aquela perturbação embora. Se deu
conta que o seu ex-colega também não falou seu
nome em nenhum momento. Mas se no momento
oportuno o “brothzser”, e o “cara” funcionaram,
então está tudo bem. Ele queria apenas seguir
curtindo seu som. E seguiu. A partir dali sem
cantarolar, sem fingir que sabia a letra da música
desta vez.

Diego Rodrigues
05 de julho 2016

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