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A ENCRUZILHADA

Comemorando uma data feliz vivi o dia mais


triste, pois foi nele que vi minha filha, junto ao
ocaso, sumindo na curvatura da terra para sempre
no infindo horizonte. Desde que ela se foi, levou
embora com este último sol o frágil significado
que eu reconhecia como meu.

À noite – sempre à noite –, em várias


circunstâncias e lugares, alguns rascunhos se
exibem a mim insinuando à minha míope
esperança que pode ser a Natália desta vez: uma
voz que se destaca nessas conversas de garotas
num timbre agudo e muito peculiar, vinda dos
bancos de trás desses ônibus; os passos de saltos
femininos que marcam o tempo nestas ruas frias e
silenciosas; silhuetas esguias e fisionomias pálidas,
parcialmente banhadas pelos letreiros de neon das
ruas do centro. Mas não adianta, pois são
miragens. Apenas miragens. E me dou conta que
já é noite sempre tarde demais.

Relembro, então, que toda característica natural


da Natália – que eu ainda poderia chamar de
familiar – vai pouco a pouco se perdendo, por
assim dizer, em algum lugar deste terreno baldio
cheio de entulhos de imagens em tons
envelhecidos que chamamos de memória. E eu já
nem sei mais porque me ponho a racionalizar.
Basta a noite e os seus rascunhos: o telefone, ou
a campainha – uma nova miragem para que essas
lições não existam mais.

Na fila do caixa do supermercado, hoje cedo, com


o brilho opaco do sol iluminando a nossa fila,
ouvi uma garota insistindo com a mãe para ir à
festa de uma colega no final de semana. A mãe,
cerrando os dentes, negava, justificando: “Seu pai
me disse pra te por de castigo. Chegou a fatura do
cartão e você andou comprando sem a nossa
permissão.” Subitamente lembrei da nossa antiga
casa. As fofocas, mágoas e demandas.
Basicamente, toda insatisfação familiar rodava
sempre sobre mim.

Meu ex-marido, Pedro, nunca castigou a Natália.


Me falava das falhas como se dissesse com isso:
“Você falhou na educação da nossa filha.” Por
isso, é claro, ela jamais o confrontou. Nunca
precisou. Meu pai me cobrava as
responsabilidades do Pedro com as contas que
ele, por vezes, atrasava ou deixava de pagar.
Minha mãe, por sua vez, se queixava para mim
das grosserias do meu pai. Seja de quando ele
bebia, ou de quando passava muito tempo na
oficina do tio Laércio, que ficava ao lado da casa
da dona Tânia, uma velha viúva de lábios roxos
com quem meu pai teve um intercurso há alguns
anos. E eu, sempre ali, me acostumei a distribuir
os juízos para todas as direções.

Foi Pedro que ficou sabendo da gravidez da


Natália, uma semana antes da festa que estávamos
lhe preparando. Mas eu que a esbofeteei na
mesma noite em que soube. “Acho que você
esqueceu que foi com dezessete anos que
engravidou de mim, mãe.” – disse ela, com
pesadas lágrimas nos olhos – “Será que a vó te
deve uma bofetada também?” Chorei demais
naquela noite.

Pedro, com sua fraqueza e covardia parasitárias,


tentou me consolar, mas me fez sentir ainda pior.
“Eu também fiquei furioso, mas uma bofetada
não tira um bebê da barriga, Mônica. Não
precisava disso.” Ele nem percebeu o quanto me
feriu. Eu queria mesmo é que a fina sensibilidade
dele lhe permitisse perceber o efeito avesso do
seu consolo, mas, infelizmente, as lágrimas que eu
demarrava por remorso eram iguais as que
começaram a cair pelas palavras dele.

Ele ouviu dois rapazes do estoque de uma


empresa onde ele foi fazer uma entrega falando
que a Natália “... que mora naquela casa azul, na
rua sul do fim da encruzilhada das plantações...”
estava grávida de um rapaz da escola. Foi me
contando e se referindo a ela da forma mais baixa
e nojenta possível. Pai, marido ponderado? “...
uma bofetada não tira um bebê da barriga,
Mônica.” Esse aforismo idiota, embrulhado nessa
intenção ignonante de consolar, algumas vezes, eu
confesso, até já me fez rir.

Durante a festa da Natália, Pedro e seus colegas


de costumes refinados – que não possuíam a
elevada e especializada formação necessária para
comer em pratos e garfos descartáveis sem fazer
uma cagança nas mãos – me pediram para pegar
“pratos e garfos normais”. Enquanto eu estava na
cozinha começou uma briga entre alguns colegas
de Pedro de um lado, e meus irmãos e meu pai do
outro. Pedro ficou apenas olhando. Ouvi
Miranda, minha irmã, e minha mãe me chamando.
Não sei por quanto tempo ficamos em volta
daquele tumulto, mas um tempo depois, em que
alguns já tinham até mesmo ido embora, subi no
nosso quarto para pegar a caixinha de
medicamentos e vi o guarda-roupa aberto e a
carteira do Pedro também aberta em cima da
cama.

Chamei ela, mas não tive resposta. Desci e deixei


a caixinha com Miranda e fui até a encruzilhada,
chamando a Natália. Vi ao longe, na estrada oeste,
Natália indo embora junto ao sol. A princípio,
atordoada com minha mãe e Miranda me
chamando para ajudar nos curativos, pensei que
Natália devia estar apenas querendo um tempo
sozinha para os lados do bairro comercial, que ela
tanto adorava; fui então atender meus irmãos e
meu pai.

Estava no meio de todos, ouvindo todas as


reclamações. “Afinal de contas, Mônica, por que
o bosta do teu marido chamou os colegas dele pra
festa que era da Natália?” Eu nada tinha a dizer.
Ele apareceu na varanda, e gritou perguntando
onde estava a Natália. Não respondi. Não queria.
E ninguém, pra falar a verdade, lhe deu a mínima
atenção.
Alguns minutos depois, Pedro, tomando talvez
um pouco de coragem, se aproximou de todos
nós para falar comigo.

– Onde está a Natália? Sumiu todo o dinheiro da


minha carteira, Mônica. Onde é que está a
Natália?

Após isso a única perplexidade que acometeu a


todos foi o fato – o ridículo fato! – de não
conseguirem imaginar que a Natália seria capaz de
pegar dinheiro na carteira do Pedro sem ter a
nossa permissão. Quanto a mim, porém, hoje não
mais no meio de todos, divorciada e sem meus
pais, retorno agora a este baldio e cheio de
entulhos por pensar na menina da fila que usou o
cartão do pai, ou na mãe que, cerrando os dentes,
negava, justificando?

Diego Rodrigues
15 de abril de 2016

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