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Pensamento e amor: contribuições de Martin Buber e Michel radical entre aquele/a e o que está sendo dito, de tal maneira,

maneira, que
Foucault para cura da “doença dos olhos” de Alberto Caeiro ambos são uma só existência.
Alberto Caeiro, a sua maneira, desafia os/as transeuntes a
pensarem a si mesmas e a Natureza (flores, rebanhos, luas, sois, etc)
Por Márcio Barra Valente não como fenômenos cognitivos ou realidades representacionalistas,
mas como seres que estão em constante relação, sendo que a pessoa
Apresentação – para o poeta-profeta o animal humano sensível – precisa curar-se e
Neste ensaio objetivamos a partir da afirmação do poeta Alberto dar-se a relação. Ou melhor, assumi-la, pois nunca esta separada dele,
Caeiro, “pensar é estar doente dos olhos”, de modo geral, encontra todavia dar-se se tornou algo difícil para homens e mulheres
possibilidades para pensarmos a própria redenção do pensamento. modernos que aprenderam a pensar o mundo como o modo de se
Desta maneira, dialogamos com pensadores como Martin Buber e relacionar com ele.
Michel Foucault que, acreditamos, permitem considerar o Pensar que encontra nas ciências sua máxima expressão, mas
pensamento não apenas como pré-visão, enquadramento, não está afastado do cotidiano, do ordinário e suas confusões e
coisificação. Mas, pelo contrário, como experiência mesma de coerências. Refiro ao pensar que sintetiza a vida em realidade,
abertura a novidade, ao imprevisto. Por isso, através de tais fenômeno cognitivo, cálculo de variáveis, enfim, de pré-visão. O poeta
pensadores, objetivamos ainda refletir acerca da conversão do convida-nos a pré-ver menos e a olhar mais, ou melhor, apenas a
pensamento como um caminho amoroso. Apostamos neste percurso olhar. Porém para olhar não basta ter olhos ou um sistema visual
menos para formular respostas plausíveis ou coerentes e mais para saudável. O desafio é tremendo e fascinante. Por isso, um desafio
encontrar um sentido existencial em percorrê-lo. Isto é, cultivar enigmático que beira a mística já que parece exigir daqueles/as que se
mesmo que seja um fio de encorajamento para trilhá-lo ou ainda para aproximam (leem) um dar-se a experiência sem cálculos, sem
desapegarmos-nos dele a fim de inventar outras metáforas para o garantias de sucesso ou retorno.
pensamento. Nesse sentido, antes de traçar possíveis relações entre Alberto
Caeiro, Martin Buber e Michel Foucault ao que tange a questão do
I olhar e do pensamento, precisamos de poesia. Em O guardador de
O português Alberto Caeiro – uma das heteronímias de rebanhos está escrito:
Fernando Pessoa – é aquele tipo de poeta profeta. Não porque se
aperfeiçoou em fazer previsões nem declara trovejante que o final é O teu olhar é nítido como um girassol.
iminente. Dos profetas ele guarda o desafio inóspito de recordar as Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
pessoas, homens e mulheres, do compromisso que cada qual tem com E de vez quando olhando para trás...
a Verdade. Convoca todos e todas ao exercício desafiador do dizer- E o que vejo a cada momento
verdadeiro. Entretanto, um dizer que não diz respeito à confissão É aquilo que nunca antes tinha visto,
(falar-se) nem de falatório sincero e sim de uma espécie de conexão E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo comigo.
Que tem uma criança se, ao nascer, estalar o chicote para ensinar respeito, cumplicidade ou ética. Pelo
Reparasse que nascera deveras... contrário. O duro é usado para se referir ao verdadeiro, pois ele é
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...
aquilo que ensina. Um homem que olha para esquerda e direita
acolhendo as novidades que nunca antes tinha visto. Porém é mais do
Creio no mundo como num malmequer que isso uma vez que olha para trás, pelos caminhos anteriormente
Porque o vejo. Mas não penso nele trilhados e mesmo assim vê o que nunca antes tinha visto. A dureza
Porque pensar é não compreender... também está no ato de tornar difíceis gestos simples.
O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Deste modo, a novidade é aquilo que nunca antes tinha visto,
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo. mas não apenas isso já que posso olhar para trás e ver novidade
naquilo já visto. Então, estar doente dos olhos é não se dar a novidade.
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... De certa maneira sim, porém não quero resposta certa ou errada, mas
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, anseio palavras inspiradoras. Por isso, nada de pressa. Sabemos que a
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
novidade não diz respeito a algo novo ou inédito em sentido restrito.
Nem sabe porque ama, nem o que é amar... O já visto pode ser novo sendo “aquilo que nunca antes tinha visto”. E
não precisamos de muita reflexão para intuir que o pensar é da ordem
Amar é a eterna inocência, da objetificação, organização, cálculo e mais interessantemente da
E a única inocência é não pensar. pré-visão. Termo curioso. Já que olhar não é da mesma natureza do
pré-ver. Sabemos que pensar é uma pré-visão, sendo o pensar prévio
Deveria me calar. Alberto Caeiro me rasga sempre quando leio o próprio avesso da surpresa, do choque, do ficar pasmo. Caso
e releio. Sempre novo e desafiador. A respiração engasga; falta-me ar. estivéssemos buscando decifrar as palavras de Alberto Caeiro
Arrepios. Sua provocação me causa medo e fascinação. Não poucas afirmaríamos que pensar é estar doente dos olhos porque pensar
vezes chorei, deveras... sempre pré-ver que é em si o fim da novidade. Pois não haveria
É importante para aqueles/as que leem entenderam que não novidade alguma para aquele que pré-ver as coisas do mundo.
empreendo uma análise de conteúdo do poema nem quaisquer Todavia, não buscamos decifrações. Além disso, não podemos
tentativas de relacionar o texto escrito e a vida do autor (Fernando nos desviar do convite do poeta com floreios bonitos ou perguntas
Pessoa) e suas heteronímias. Meu método é artesanal. Trabalho como bem formuladas. O poeta parece reconhecer que os dilemas entre
quem separa contas de vidro coloridas para um fazer calidoscópio, olhar e pensamento são travados não naquilo que se olha (o visto,
tendo como anseio construir palavras inspiradoras. Nada mais revisto, novo), mas ou naquele/a que olha ou em algum outro “entre”
preciso... aquele/a que olha e aquilo que é olhado.
Alberto Caeiro como um profeta que se preze é duro, embora Dois caminhos possíveis que precisamos trilhar. Nosso
possamos não sentir o peso em razão da beleza de suas imagens. argumento encontra pista quando o poeta afirma dar-se muito bem
Contudo, duro não no sentido de grosseiro ou enfático nem mesmo com o nunca antes visto: a novidade; e completa, “sei ter o pasmo
punitivo. Sua pedagogia não é da violência cujo avesso do avesso é o
comigo”. Então, o que seria ter o pasmo consigo? Vamos devagar. a produzem reiterando e desestabilizam sua visibilidade. Não o
Pasmar diz respeito ao chocar-se, assustar-se, surpreender-se, etc. autoriza a falar se sua fala fecha aquilo do qual fala, naquilo que é
Voltamos à questão da novidade como avesso da pré-visão. Caminho falado. Olhar aparece como maneira de se relacionar com aquilo que e
primeiro, Alberto Caeiro afirma dar-se muito bem com a novidade do olhado. De dar-se a relação de outro modo que não é o pensar que
mundo. Novidade que provoca pasmaceira, a qual se dá muito bem. fecha, calcula, decifra, pré-vê. Assim, se o poeta fala da Natureza, se
Portanto, lida bem com o susto que o mundo lhe provoca. Estar dar-se a Natureza é porque a ama.
doente dos olhos é não dar-se bem com a novidade, com o choque, Mais uma vez o poeta torna difícil um gesto simples, torna
com o estado de pasmaceira que o mundo provoca. Ou seja, parece desconhecido o demasiado conhecido, converte em confuso o
haver no poeta uma disposição ou estado de espírito capaz de acolher aparentemente coerente, devolve paixão aquilo que é neutralidade ou
o novo. criticidade. Ele fala por que ama. Nesse sentido, olhar é dar-se, é amar.
Não obstante, caminho segundo, existe algo de enigmático na A pergunta é obvia: mas o que seria isto, o amor? A resposta de
frase, “sei ter o pasmo comigo” uma vez que ela parece sugerir que o Alberto Caeiro é curta sem firulas ou floreios: quem ama nunca sabe o
“choque” não estaria dentro daquele/a que olha nem mesmo estaria que ama nem sabe por que ama ou o que é amar. Entretanto, uma
afastado. Existe uma proximidade, certo acolhimento nas palavras do resposta curta não é sinônima de uma resposta simples. Não temos
poeta como se pudesse abraçar “o pasmo”; um gesto, um dar-se que nas palavras do poeta um conceito nem sentido ou definição do amor.
parece acontecer num espaço entre aquele/a que olha e aquilo que é Ele olha o amor sem que abarcá-lo ou assimilá-lo uma vez que ele
olhado. Espaço que parece dar-se na intermitência na experiência do afirma o amor como experiência que se faz do amor. Assim, ao mesmo
olhar. tempo, amar é desconhecimento (avesso da pré-visão) e uma
O poeta afirma que crê no mundo porque o vê e não porque experiência.
pensa nele. Ele não tem filosofia: tem sentidos. Pensar e compreender Argumentamos que o amar é uma experiência que acontece do
não garante que acreditemos no mundo. Ele não se fez para eu consigo mesmo em virtude do paradoxo que existe no amor
pensarmos nele. O poeta parece lançar sinais outros para os quais segundo o poeta. Quem ama nunca sabe o que ama (não possui
precisamos estar atentos. Ele afirma que “pensar é estar doente dos objeto) nem sabe por que ama (não detém justificativa, razão ou
olhos” e que o mundo se olharmos e estivermos de acordo. Mas o que mesmo “porque”) nem o que é amar (destituído/a de método). Parece
seria estar de acordo? O termo diz respeito à concordância, harmonia, que amar é um antimétodo, antirrazão e antiobjeto. Aquele/a que
pacto, etc. O aparente enigma pode ser desvendado quando Caeiro reconhece apenas que algo se passar na relação dele consigo mesmo
afirma não possuir filosofia, mas tem sentido e se fala na Natureza não em razão do sinal (choque, pasmaceira) que imprime certa conversão
é porque ele sabe o que ela é. Trecho importante. dele/a no que tange as intermitências do olhar. Olhar enquanto dar-se
Ele fala e se fala não é porque saiba do que fala. Dito de outro a cada momento a novidade do mundo.
modo, ele não ignora haver um saber sobre a Natureza, entretanto, Mas porque o amor seria uma relação do eu consigo mesmo?
qualquer decifração da estrutura microbiológica ou mesmo os nomes Vamos voltar ao poema, “se falo da Natureza não é porque saiba o que
dos reinos que a compõem ou ainda os sentidos ou jogos de poder que ela é, mas porque a amo, e amo-a por isso”. Sabemos que o poeta é
impossibilitado de dar aquilo que não tem, isto é, qualquer referência intermitências do olhar. Por fim, a experiência do eu consigo mesmo é
ou parâmetro sobre o amor. Todavia, ao mesmo tempo, ao existir um para aquele/a que olha a autenticação própria de uma existência
reconhecimento do amor pelo amor; reconhecer tal experiência consonante e recíproca com aquilo que olha, “o mundo não se fez
permite que ele fale sem saber. De modo mais detalhado, aquele/a para pensarmos nele [...] mas para olharmos para ele e estarmos de
que olha reconhece na relação de si para consigo uma experiência do acordo”.
amor como aquilo que passa, mas que não o permite dizer o que lhe Deixemos Alberto Caeiro. O poeta profeta. Foi bom. Bonito.
passa; que faz com que ele/a olhe para esquerda, direita e para trás e Como havíamos exposto nosso anseio era a construção de palavras
veja tudo como nunca antes tinha visto. Ele/a reconhece apenas algo inspiradoras. Houve intento; e o entusiasmo acomete de maneira
que se passou pela própria experiência de mudança e entusiasmo cuja nunca antes sentida. Um lampejo: amo por amar. Centelha. Ao mesmo
autentificação é a própria ruptura do pensamento nas intermitências tempo, a provocação ainda ressoa, “pensar é estar doente dos olhos”.
do olhar. Quais caminhos percorrer para enfraquecer a máxima do poeta. Sem
Não estamos mais na ordem do cálculo nem da expropriação, dúvida ele ensina uma verdade (sendo ele mesmo tal encarnação) e
mas da patética, da paixão, do amor. Ou melhor, do dar-se a amar, a mostra da janela os sinais do tempo e as pistas pela estrada. Mas é
paixão, a patética que são o avesso previsível. “Pensa é estar doente possível desafiar a constatação do pensar apenas como pré-visão,
dos olhos [...] Amar é a eterna inocência, e a única inocência é não cálculo ou razão instrumental? É possível que o pensar seja redimido e
pensar”, as frases do poema de Alberto Caeiro estão encadeadas para convertido ele também como um caminho amoroso? Ou o pensar está
contarmos melhor nossas contas de vidro. Amar é não pensar e pensar condenado radicalmente a carregar a maldição e profanidade do seu
é estar doente, pois pensar é algo que parece ficar estancado naquele nome?
espaço entre aquele/a que olhar e o objeto olhado. Noutras palavras,
como acima especulamos, parece haver um espaço entre o eu e o II
objeto no qual o movimento de dar-se estanca. Isso parece ser o estar Antes de seguirmos com algumas reflexões que subsidiem o
doente dos olhos posto que o pensar se dá com aquilo que pensa ou esboço de nossa problematização. Precisamos abrir uma clareira, ou
com aquilo que pensa o que é o objeto pensado. Não é amor nem melhor, criar um espaço no qual possamos cultivar ideias, fabricar
inocência. sonhos impossíveis. Nada melhor, nesse sentido, do que convocar
Especulamos também a ideia de haver certa disposição amigos e amigas para uma conversa. Por vezes, elas refrescam a vida
naquele/a que olha para acolher a novidade do mundo e outra de seja quando fazem rir ou chorar. Conversa como espaço de abertura
haver naquele/a que olha um espaço mesmo entre o eu e o objeto que do coração que se oferece não para sair de si mesmo, mas para
seria o si mesmo. Palco daquilo que passa deixando rastros de acolher o que anima e faz viver. Alberto Caeiro foi o primeiro deles.
pasmaceira relação entre o eu e o si mesmo marcada pelo entusiasmo Michel Foucault chegará daqui a pouco. Neste momento me
e mudança, ruptura e temor, fascinação e corte em relação ao já reencontro com um amigo antigo, Martin Buber.
sabido sobre as coisas. Tudo é novidade mesmo aquilo que já olhamos O chamo porque ele não é um filosofo especulativo típico cuja
tempos trás. A isso chamamos de experiência do amor nas obra é alheia ao que se passa ao redor. De fato, a próprio termo
“filosofo” parece ser inadequado uma vez que ele nunca se propôs a “entre” EU e TU. Espaço no qual a diferença do Outro interpela o EU
construção de um sistema de pensamento. Antes de tudo foi homem confirmando sua alteridade, sua própria condição de único e diferente.
de ação no sentido pleno do termo: sua ação política, social e humana Concomitantemente, a diferença radical do Outro que interpela não
é permeada por seu pensamento e mesmo quando parece pairar pelo permanece estranha ao EU, pelo contrário, se oferece como dádiva
ar em alturas místico-místicas, em última análise, está voltado ao aguardando ela mesma ser confirmada em sua radicalidade de ser
concreto. Não Obstante, preciso dizer, o chamo porque ele é uma única. Diferença que absolutamente não é o EU ou mesmo é um pouco
pessoa importante para mim cujo pensamento atuou na minha vida íntima ao EU – embora o conhecimento opere para reduzi-las,
como uma garrafa de náufrago jogada ao mar. maximizá-las ou mesmo revelá-las; mas aqui já não estamos no celeiro
Martin Buber dedicou parte de sua vida a causa sionista, da alteridade. Diferença que é o TU-MESMO e ainda assim se oferece
embora, ao mesmo tempo, tenha se oposto a criação do Estado de ao EU.
Israel. Ele acreditava que somente a audácia da formação de um A primeira fundamenta o mundo da relação pessoal, do
Estado Binacional (Palestina e Israel) poderia como saída urgente da encontro entre alteridades que se dão como dons e são acolhidas,
nutrição do terror que havia entre os povos. Dedicou também, na num duplo movimento recíproco de aceitação e confirmação. Funda o
primeira década do século XX, ao estudo das espiritualidades no mundo como celeiro da alteridade, sendo a experiência do gesto de
Ocidente e Oriente, sendo que focou sua atenção na experiência acolher a dádiva aquilo que acontece instituindo sentido de verdade a
judaica do hassidismo1. Movimento religioso cujas raízes se remetem nossa perene e mortal existencialidade. Por sua vez, a segunda
ao século XVIII, na Polônia, que teve como fundador o Rabi Israel Ben fundamenta o mundo da objetificação, da requisição utilitária, das
Eliezer, o Baal Shem Tov (O Mestre do Bom Nome). atividades cognoscitivas, técnicas, econômicas, institucionais, jurídicas,
O autor se dedicou ainda ao estudo daquilo que denominou etc. Por isso ela deve ser entendida como o que possibilidade e
encontro, isto é, da inexorável existência da alteridade que acontece assegura a própria continuidade da vida humana. Mesmo o
não como descoberta ou mesmo algo que chega, mas como dádiva experienciado do encontro, cedo ou tarde, deixa o instante eterno e se
que já existe antes de qualquer apelo. Alteridade que se oferece e se converte em objeto para o EU. Interioridade aberta que se fecha nas
deixa acolher por aqueles/as se abrem, dizem “sim”. Para Buber intermitências do gesto de dizer TU e “sobre” – palavra imperativa que
(2001) é através de duas atitudes diferentes que o ser humano irá perscruta o outro – a qual não tardaremos a coisificar, produzir
construir sua existência: na experiência ontologia EU-TU e na conhecimento, narrativas etc que confirmam a experiência, mas basta
experiência objetivante EU-ISSO. um gesto para a nostalgia pelo experienciado se romper. Por isso, a
Pelas palavras-princípios que aceitamos ou recusamos a experiência EU-ISSO não é boa nem má, contudo, aquele/a que se
alteridade que se oferece, em linhas gerias, ela diz respeito à relação recusa a dádiva do encontro não se torna pessoa e sim se individualiza
entre EU e TU ou noutras palavras ao espaço dialógico que acontece como adiante expomos. No entanto, o trabalho que alimenta o mundo
do ISSO opera ocultando o chamado da dádiva.
1
Em português foram publicados os seguintes escritos desta época do autor: As Na experiência EU-TU, é importante ressaltarmos, o EU é uma
Histórias do Rabi (1995), A lenda do Baal Shem (2003) e O caminho do Homem pessoa e não um indivíduo. Distinção que precisa estar clara. Para
(2011).
Buber (2008, p. 243), “um indivíduo é somente uma certa discurso verdadeiro, “Deus reside lá onde o deixam entrar” (BUBER,
singularidade de um ser humano. E ele pode se desenvolver somente 1971, p. 85). Nada é profano que não possa ser abrir para o sagrado. A
através do desenvolvimento de sua singularidade”. Já a pessoa “é um máxima herética hassídica ilustra a impossibilidade de coisificação
indivíduo vivendo realmente com o mundo, [...] em real reciprocidade radical de qualquer coisa. Tudo que se oferece como dádiva é TU e em
com o mundo em todos os pontos nos quais o mundo pode encontrar todo TU reside a centelha divina, o TU Eterno, aguardando o gesto,
o homem” (BUBER, 2008, p. 243). Deste modo, o EU torna-se pessoa uma resposta, uma aceitação. Nada está absolutamente fechado,
na medida em que pode dizer expressamente “sim” e “não” ao posto que tudo que habita se oferece como dádiva ao gesto do
mundo, ao TU que se oferece seja ele humano, natureza, objetos do encontro em cada hora concreta e mortal, “um cão olhou para ti, tu
espírito ou simplesmente Deus, o TU Eterno. Para o autor o luminoso, respondes pelo seu olhar; uma criança agarrou tua mão, tu respondes
o Deus, o TU Eterno, o Totalmente Outro, a centelha divina – para usar pelo seu toque; uma multidão de homens move-se em torno de ti, tu
o termo cabalístico apropriado pelo hassidismo –, em primeira e respondes pela sua miséria” (Buber, 1982, p. 50). Buber (1982) afirma
última instância, é a quem damos uma resposta. Por sua vez, na que não existe nenhuma produtividade, silêncio ou refugio no hábito
experiência EU-ISSO, o EU é um indivíduo ou sujeito cujo movimento é que nos faça esquecer o chamado quando por ele somos atingidos.
de dobrar-se-sobre-si-mesmo, isto é, de retrair-se diante da aceitação Nada está fechado em absoluto. Nem mesmo nós!
da dádiva do TU. Por isso, aqui, o EU se defronta com um objeto, um Neste sentido, igualmente, não existe objetificação, atividade
ISSO. cognoscitiva ou mesmo requisição assimilativa que não possa ser
Embora neste tópico não queira me ocupar em demasia com o rompida pelo gesto de aceitação da dádiva do mundo, o TU, que quer
pensamento de Martin Buber, ao mesmo tempo, é preciso que encontrar a pessoa, o EU. Desta maneira, a partir do pensamento
algumas de suas ideias possam ser entendidas uma vez que são buberiano, podemos inferir que mesmo a clássica relação sujeito-
fundamentais para relação que proponho estabelecer entre objeto posta pela modernidade como a única via de formação humana
pensamento, aceitação e amor e a questão da “doença dos olhos” de e produção de conhecimento não está radicalmente fechada para o
Alberto Caeiro. Para Buber (2001) nada está demasiadamente fechado encontro. De alguma maneira a experiência objetivante EU-ISSO se
que não possa estar aberto. Noutras palavras, a experiência ontologia assemelha a constatação “pensar é estar doente dos olhos” de Alberto
EU-TU e a experiência objetivante EU-ISSO não são oposições Caeiro. Ambos falam de uma experiência na qual o EU, aquele/a que
hierarquicamente organizadas ou tomadas como síntese e antítese. olha, defronta-se com um ISSO, um objeto. O objeto pode ser visto e
Assemelham-se a antinomias, isto é, são duas experiências existências revisto como novidade pouco importa, entretanto, isso depende de
diametralmente opostas e radicalmente complementares. Por isso, algo que se passa entre aquele que olha e pensa e aquele que olha
não são redutíveis uma pela outra nem se constituem dinamicamente como quem ama. A medida parece estar para Martim Buber no gesto
como se houvesse um jogo de etapas, níveis, estágios de de aceitação do encontro, sendo a recusa à própria afirmação do
desenvolvimento, etc. pensamento enquanto objetificação, pré-visão, cálculo, assimilação,
Talvez, um exemplo nos ajude a compreender melhor proposta etc – embora sempre passível de abertura, de conversão como já
do autor. Existe na tradição do hassidismo a seguinte máxima ou afirmamos. Por sua vez, para Alberto Caeiro a medida parece estar no
olhar amoroso ou mais detalhadamente no dar-se ao novo como naqueles/as que investigam que resista aos jogos naturalizantes que
experiência de saber ter o pasmo consigo. Pensar é estar doente dos condenam o pensar só como doença dos olhos. Nesse sentido, antes
olhos. Entretanto nada está absolutamente fechado que não possa ser de partirmos para o próximo tópico, é importante aproveitarmos uma
aberto ou como reconhece o poeta “se falo da Natureza não é porque brisa de inspiração que chega mansamente e coopera com os desafios
saiba o que ela é, mas porque a amo”. Para não haver dúvida, Buber e e medos que enfrentamos: como a articulação entre amor e
Caeiro parecem se assemelhar na crença ou aposta de que o conhecimento pode se configurar no sujeito (individuo e pessoa) que
pensamento é espaço de objetificação, todavia, não está de todo pensa e olha um deslocamento em direção ao outro? Como a
fechado podendo se converter em experiência do olhar amoroso, do experiência do olhar amoroso ou encontro pode impulsiona aquele/a
gesto a dádiva da alteridade, do encontro EU-TU. que produz conhecimento (pesquisa e intervenção) a perceber o outro
A partir desta maneira de pensar que é também um modo de como alguém pelo qual se tem resposta a dar? Como a articulação
agir com mundo, é possível desafiar a constatação, afirmativa ou entre conhecimento e amor e conhecimento pode se converter em
mesmo a naturalização do pensar apenas como cálculo, assimilação, uma experiência formativa por parte daquele/a que pesquisa?
coisificação, etc. Precisamos duvidar da máxima que postula o Questões que não serão respondidas aqui, mas acontecem
pensamento como condenado radicalmente a carregar à maldição de como possíveis e necessários rumos de investigação. Por fim, é
seu nome uma vez que seus efeitos vão do descompromisso a importante ressaltarmos que ao falarmos de amor não pretendemos
separação total entre verdade e política, conhecimento e amor, ética e definir o amor de modo conceitual, de sentidos produzidos ou mesmo
mundanidade. É urgente a instalação do debate acerca do narrativas de amantes, mas, em especial, como experiência entre a
compromisso com o TU e a percepção dele (humano, natureza, dádiva da alteridade e gesto. É claro que ao lermos as perguntas
objetos do espírito, Deus etc) como aquele pelo qual temos uma acima, estamos considerando a possibilidade de que tal experiência
resposta a dar, um gesto que assuma escolher entre aceitar e recusar a aconteça no ato de pesquisar pouco importante a modalidade
dádiva. Precisamos subverter o movimento do descompromisso ante a (teórico, empírico ou intervenção). E que estamos nos voltando para
face do Outro. o/a estudioso/a que apesar das diversas e divergentes modalidades de
No que tange a nossa investigação é evidente, embora trabalhar, em primeira e última instância, acredita ora “descobrir”, ora
contingente, que precisamos de uma investigação mais profunda e “falar” ou ora “dar” a voz ao sujeito/objeto de suas pesquisas.
mesmo empírica que subsidie nossa tese sobre a articulação entre Movimento que assim descrito é a própria “evidência” do pensar como
pensamento e amor ou como perguntamos: o pensar pode se objetificação. Porém, como repetimos tantas vezes, nada está fechado
converter também como um caminho amoroso? Precisamos de que não possa ser aberto. Deste modo, apostamos na possibilidade da
autores/as e estudos que se ocupem da separação ou afastamento experiência do olhar amoroso ou encontro como forças que rompem
entre pensamento2 e amor a fim de melhor construir menos as possíveis couraças do silêncio da neutralidade, da produtividade
argumentos sólidos e mais uma potência formativa ou um espaço dominante ou ainda da certeza militante por parte de quem pensa.
Horizontes outros que se anunciam. Precisamos trabalhar para
2
Ressaltamos que o termo pensamento deve ser entendido também como filosofia melhor pensá-lo e mesmo senti-lo a partir do espaço que criamos em
ou conhecimento
nós mesmos. No tópico seguinte continuamos a ponderar sobre o de modos de pensamentos adquiridos e não refletidos repousam as
pensamento não somente como coisificação ou “doença dos olhos”. práticas que aceitamos. É preciso se liberar da sacralização do social
Não mais para redimi-lo e sim para encontrar interlocutores. Nesse como a única instância de real e parar de considerar como vã essa
sentido, convidamos nosso amigo Michel Foucault cuja nossa relação coisa essencial na vida humana e nos relacionamentos humanos, quero
de afeto e admiração é mais recente do que pelos anteriores. Embora dizer o pensamento (Foucault, 2010, p. 356).
não menos importante. Não analisaremos seu pensamento nem Foucault (2010) se recusa aproximar crítica e a transformação
mesmo alguma obra em específico, mas uma entrevista de título “É social de modo manso ou causal. Sabe demais de os perigos em torno
importante pensar?”. Texto encontrado no sexto volume da Coleção da relação saber/poder para posicionar a crítica como juíza dos rumos
Ditos e Escritos, edição nacional. É importante informarmos que a e da qualidade das coisas. Pelo contrário, a conjura justamente como
entrevista foi realizada em 1981, isto é, o ano no qual o autor realizava àquilo que precisa operar curto-circuito nos mecanismos de
estudos sobre a relação “subjetividade e verdade” e que mais tarde naturalização ou naquilo que habitualmente repousa em nossas
subsidiaram sua pesquisa acerca do “cuidado de si” publicada em práticas. Indo adiante na crítica, alerta para o perigo de sacralização do
Hermenêutica do sujeito (1982). social como instancia que conferia legitimidade para as práticas que
aceitamos sem refletir. O autor dá um exemplo de como produzir
III curtos-circuitos no naturalizado. Nesse sentido, outro curto preciso e
Michel Foucault está tranquilo na entrevista. De fato, ela mais sutil é feito quando reclama o pensamento como elemento que
parece uma conversa haja vista que não existe um tom de formalidade precisamos considerar embora habitualmente o tenhamos tido como
nem mesmo algo que lembre um seminário ou sala de aula. Não há vazio, irrelevante, vã.
explanações teóricas nem mesmo farpas ou grosserias entre o Entretanto, a pergunta é obvio: o que Foucault chama de
entrevistador (Didier Eribon3) e ele. Um diálogo claro e bonito que se pensamento? Qual a articulação entre crítica e pensamento? Qual a
inicia com o debate sobre as eleições na França que culminaram com a relevância desta articulação? É óbvio que na entrevista outros
chegada da esquerda ao poder presidencial. Em dado momento, o elementos vão engordar nosso entendimento do que ele argumenta.
entrevistador pergunta a Foucault a respeito das críticas proferidas Não obstante, pistas já estão disponíveis neste parágrafo. Podemos
pelos intelectuais franceses que não dão em nada. Depois de algumas inferir que o pensamento não é utilizado como sinônimo de
observações, o autor argumenta que não crê que devemos opor crítica conhecimento somente, já que reconhecemos o acúmulo de
e transformação, ou melhor, a crítica “ideal” e a transformação “real”. informações, familiaridades e de formas de pensar que adquirimos e
A partir desse ponto, ele inicia encadeamento de ideias que praticamos as cegas. Concomitantemente, ele parece como um
consideramos prenhe de razão para problematizar o pensamento processo cuja dinâmica implica crítica do pensamento sobre o
apenas como “doença dos olhos”. pensamento. Por isso o exercício do autor em desnaturalizar a tríade:
Uma crítica não consiste em dizer que as coisas não são bem como a crítica (pensamento), a prática e o social. Isto é, a crítica não cabe
são. Ela consiste em ver em que tipo de evidências, de familiaridades, afirmar “que as coisas não são bem como são”, mas consiste em
submeter nossas “práticas” habituais à reflexão uma vez que nem
3
O entrevistador é amigo de Michel Focault, sendo um dos seus principais biógrafos.
mesmo ao “social” deve ser posto como especial ou sagrado de de expulsá-lo, mudá-lo. O pensamento é algo que pertence aos
legitimação delas. sistemas e edifícios dos discursos. Existe neles, mas não está,
O pensamento (crítico) de Foucault à primeira vista parece se definitivamente, encarcerado neles. Isto, que é o pensamento,
assemelhar a noção de reflexividade que, em linhas gerais, trata da encontra-se aquém e além, por vezes, escondido. No entanto,
“abertura à revisão crônica das práticas instituídas à luz de novas sabemos, sempre está presente mesmo nas instituições mais bobas e
informações” (Spink, 2004, p.18). Ou seja, diz respeito à necessidade hábitos mudos. Ou seja, a simples instituição ou ainda o naturalizado
de revisão de conceitos e práticas que se encontram naturalizadas. pelo habito não elimina isto que é o pensamento. Mas o que seria isto,
Elas não nos parecem mais estranhas. As usamos de modo o pensamento? A pista aparece na afirmação: “é alguma coisa que às
automático. Entretanto, esta semelhança é equivocada. O pensamento vezes se esconde, mas sempre anima os comportamentos
(crítico) e reflexividade são diferentes porque na segunda não existe cotidianos”.
um elemento perturbador que existe na primeira que não decorre Num primeiro momento somos seduzidos a deduzir que o
dele, mas o define, primordialmente. pensamento é substância visto que ele é uma coisa que anima. Será
O pensamento, isso existe além e aquém dos sistemas e dos edifícios que tem algo haver com o entusiasmo? É preciso resistir às tentações
do discurso. É alguma coisa que às vezes se esconde, mas sempre de responder apressadamente. Noutro momento, podemos considerar
anima os comportamentos cotidianos. Há sempre um pouco de o pensamento mais como uma direção visto que ele é isto que anima
pensamento, mesmo nas instituições mais bobas, há sempre os comportamentos diários, mundanos, do dia-a-dia, ou seja, ele é não
pensamento, mesmo nos hábitos mudos. A crítica consiste em expulsar apenas da ordem do extraordinário. Não obstante, um passo a frente
esse pensamento e tentar mudá-lo: mostrar que as coisas não são tão precisa ser dado, o pensamento é também uma afirmação radical de
evidentes como cremos, fazer de sorte que o que aceitamos como indo que aquilo que cremos como evidente (nós mesmos, por exemplo) é
de nós não tenha mais de nós. Fazer a crítica é tornar difícil os gestos contingente.
simples (Foucault, 2010, p. 356). Deste modo, o pensamento diz respeito ao ordinário, sendo ele
Sem dúvidas, há algo de mais perturbador. Talvez estejamos aquilo que anima por ser em si mesmo uma abertura a própria
exagerando, sendo envolvidos pelas palavras do autor ou mesmo condição ordinária, mundana, contingente, das coisas do mundo. Uma
enfeitiçados pelo sentido oculto de suas afirmações que beiram ao abertura a desnaturalização das coisas do hábito que aceitamos sem
esotérico cujo entendimento é reservado a iniciados/as. No entanto: crítica ou pior sem crermos em sua mundanidade. Talvez, ariscamos
“talvez”. É preciso delicadeza para não sucumbimos à doença dos afirmar, por isso ela anime os comportamentos já que é uma abertura
olhos e encerramos o autor nesta ou naquela afirmação ou identidade. de que tantas coisas podem ser diferentes e mudadas. Nada está
Aceitar ou recusar o convite que ele faz só depois de entendê-lo na sua posto que não possa ser alterado: dos humanos aos Impérios. Nada é
verdade sem combatê-la a priori porque ela não se assemelha conosco radicalmente necessário e permanente. Em palavras buberianas: nada
ou ainda consigo mesmo, sua obra. está absolutamente fechado que não posso aberto. As coisas estão
Neste trecho estranho da entrevista, Foucault fala do ligadas a contingência, ao arbitrário e não a necessidade e evidencia.
pensamento como algo não colado na crítica, sendo o trabalho dela o Os autores se assemelham na radicalidade de afirmar que nada é
fechado, nada é objeto, nada é determinado nem antropologicamente que anima se animou; fez-se móvel o que se fez estático, arbitrário o
inevitável. Entretanto, nesta linha de argumentação não estamos que se fez determinado.
novamente tomando o pensamento como substancia? Não. A rasura A transformação é difícil e urgente reconhece o autor,
nesta crença dá-se quando Foucault afirma que o trabalho da crítica é entretanto, como um companheiro de jornada, afirma que ela apesar
expulsar o pensamento, mudá-lo. Ou seja, ele não é aprioristicamente de tudo é absolutamente possível. Deste modo, a relação entre
uma abertura ao ordinário e contingente. Ele se esconde, às vezes, pensamento e o sujeito que conhece não é firmada apenas como
embora sempre anime os comportamentos. A crítica precisa fazer do acumulação de informações e apreensão de dados e contingencias,
pensamento ele mesmo uma abertura ao contingente que habita o mas uma decisão que expressa uma paixão e convicção pessoal. De
que está instituído. A desnaturalização não se ratifica como em Buber certa maneira, o mal-estar que se impõe opera um questionamento
pelo encontro com o TU, mas pelo exercício da crítica. existencial para aquele/a que conhece e que se encontra curto-
Nessas condições, a crítica (e a crítica radical) é absolutamente circuitado/a. Por isso afirmamos que não estamos mais no âmbito da
indispensável para toda transformação, pois uma transformação que epistemologia crítica, ética especializada, dos códigos morais ou
ficasse no mesmo modo de pensamento, uma transformação que só imperativos nem da reflexividade ou mesmo de qualquer dever que
fosse uma certa maneira de melhor ajustar o mesmo pensamento à flutua no ar.
realidade das coisas não passaria de uma transformação superficial. Aquele/a que conhece não pode mais pensar nas coisas como
Em compensação, a partir do momento em que começamos a não antes pensava e quaisquer ajuste que não seja transformação é
mais poder pensar nas coisas como nelas pensamos, a transformação superficialidade, já que o ajustamento não consola a cisão que se
torna-se, ao mesmo tempo, muito urgente, muito difícil e operou no sujeito do conhecimento nem tão pouco acolhe a
absolutamente possível (Foucault, 2010, p. 356-357). transformação do olhar que já aconteceu. Estamos, portanto, no
Aquilo que suspeitávamos haver de perturbador se revela em âmbito da ética enquanto existência, ou melhor, resposta a ser
toda sua forma. O pensamento que anima e afirma radicalmente a assumida no domínio da vida vivida. Nesse sentido, o pensamento
arbitrariedade das coisas, uma vez exposto produz não somente uma adquirido pelo habito ou o modo como outrora as coisas eram
fratura nos sistemas, edificações dos discursos, hábitos mudos ou pensadas não é destruído e sim desativados. Ele se torna inoperante,
ainda nas instituições bobas. Para Foucault (2010) o exposto produz embora menos na capacidade explicativa da realidade uma vez que
uma fratura, especialmente, naquele que pensa. Dito de outro modo, não perdeu sua lógica e mais na capacidade de fazer sentido na
o pensamento como crítica produz um conflito naquele/a que realidade para aquele/a que pensa.
pesquisa: as evidências, familiaridades e modos de pensamento Assim sendo, sujeito do conhecimento reconhece a si mesmo
adquiridos e não refletidos perderam o sentido de outrora. Rugem as como compelido a dar uma resposta à inoperância do pensamento
engrenagens enferrujadas do empirismo radical, da certeza militante que outra era a norma, o sistema, a regra e conjunto de valores ou
ou da produtividade dominante. Aquele/a que pensa não pode mais simplesmente a lei. Somos tentados a acreditar que devemos
pensar como antes pensava a partir do momento que alguma coisa responder a seguinte questão: “o que fazer, agora?”. Todavia a
pergunta que se apresenta não quer ser respondida em quaisquer
domínios e não acolhe qualquer responder. A ética como existência trabalho, alguns fragmentos autobiográficos. Não sou um ativista
implica uma resposta cujo celeiro é o domínio da vida vivida e recolhido e que, hoje, retorna o serviço. Meu trabalho não mudou
pressupõe uma responda transformação. Desta maneira a pergunta muito; mas o que dele espero é que continue a mudar-me ainda
que se apresenta como a primeira e última é: “qual é a tua verdade (Foucault, 2010, p. 357. Grifo nosso).
que anima teus comportamentos cotidianos?”. Aquele/a que ousa Este trecho é importante não porque nele se evidencia a
responder de alguma maneira acolheu a inoperância e se dispõe a superarão ou ruptura na maneira de pensar de Michel Foucault. A
operar em si mesmo uma transformação absolutamente possível relação entre pensamento, olhar e transformação não é uma novidade
apesar dos medos e inquietudes. para o autor, pois em o Nascimento da Clínica (1963) argumenta que o
A pergunta implica que questionemos a nós mesmo a respeito modo de ver organiza as estruturas epistêmicas e sistemas políticas
de nossas paixões e convicções pessoais. Entretanto, não um que prescindem a racionalidade; e mais do que isso, afirma que a
questionamento simples, mas uma escolha que implica uma mudanças de conceitos ou mesmo de métodos não garantem um
transformação pelo abandono de nossos automatismos e pensar diferente. Neste sentido, a mudança no modo de ver que
naturalizações a partir do momento que ousamos respondê-la pelo acompanha uma mudança de pensamento dar-se-ia em virtude dos
trabalhar que fazemos sobre nós mesmo. Noutras palavras, a partir da jogos estratégicos entre poder/saber que ordenariam o campo de
relação entre eu e si mesmo, podemos transformar a nós mesmo em possibilidades do que é visibilizado e invisibilizado.
instrumento ético que se efetiva menos pelo acumulo de informações No entanto, na entrevista do autor existe um elemento outro
e mais pelo que anima nossos comportamentos. que há dezoito anos não estava previsto: a noção do cuidado de si.
Por um momento ponderamos se não estamos exagerando na Embora o próprio Foucault não utilize o termo na entrevista nem
interpretação da entrevista ao considerarmos um elemento outro a mesmo se refira as “práticas de si”, amplamente detalhadas em
formula poder/saber que é cuidado de si enquanto processo de Hermenêutica do Sujeito, acreditamos que ela aparece como espectro,
subjetivação que diz respeito, em linhas gerais, a relação que o sujeito uma esperança ou, para sermos mais precisos, uma mecânica. Isto é, o
estabelece com a verdade cujo celeiro é a relação entre o eu e o si autor exalta a possibilidade de mudar a si mesmo a partir de seu
mesmo que se efetiva por meio de práticas diversas. Entretanto, nesse trabalho. Ou melhor, declara de modo enfático que o que espera dele
sentido, o próprio Foucault fornece subsídios que contrariam nossos é que continue a mudá-lo. Deste modo, neste excerto, não somente
receios quando é convidado pelo entrevistador a comentar sobre seu reforça o argumento do trabalho da crítica como indispensável para a
retorno ao ativismo político. transformação do pensamento daquele/a que pensa, mas também
Cada vez que tentei fazer um trabalho teórico foi a partir de evidencia que não está pensando mais no sujeito apenas como efeito
elementos de minha própria experiência: sempre em relação a objetivo dos jogos de poder/saber e sim na possibilidade da existência
processos que via desenrolarem-se à volta de mim. É bem porque de um modo de subjetivação que desativa os mecanismos regulatórios
pensava em reconhecer nas coisas que via, nas instituições, nas quais do biopoder. Nesse sentido, podemos afirmar que a relação entre
tinha interesse, nos meus relacionamentos com outras pessoas, pensamento, olhar e transformação se diferencia radicalmente dos
ranhuras, abalos surdos, disfuncionamentos com que empreendia um anos sessenta para os oitenta em razão do elemento do “si mesmo”.
A ênfase na possibilidade de transformação de si mesmo comportamentos humanos, por vezes se oculta, embora exista aquém
daquele/a que pensa por meio do exercício da crítica é algo que e além dos edifícios do discurso.
aparece em toda entrevista. Justamente nisso está à resposta do Para o segundo, nada está absolutamente fechado que não
porque é importante pensar. Obviamente uma reflexão que parece possa ser aberto, pois a existência mesma é uma abertura radical à
destoar se pensarmos que quem fala é o reconhecido “teórico do dádiva do TU, do outro que sempre se entrega. Abertura ontológica
poder” – título que o próprio autor irá negar naqueles anos oitenta. que se efetiva na resposta ao chamado que não espera o mundo
Talvez por isso, Didier Eribon se surpreenda com as palavras do autor, utópico chegar nem condições ideias para acontecer. Por isso, a
ao final da entrevista, por considerá-las otimistas demais, deste modo, decisão pelo responder não se efetiva aquém nem além do mundo do
contrariando sua fama de pessimista. ISSO, mas é nele que a resposta acontece e o converte no celeiro da
Há um otimismo que consiste em dizer, de toda maneira, isso alteridade. O mundo é salvo pelo encontro. Argumentamos que ambos
não poderia ser melhor. Meu otimismo consistiria, antes, em dizer: afirmam existir um modo de ser da própria existência que é uma
tantas coisas podem ser mudadas, frágeis como são, ligadas mais a abertura apesar dos nossos esforços coisificantes.
contingências do que a necessidades, mais ao arbitrário do que à Voltemos à beleza do excerto. Ela se dá também pelo
evidencia, mais as contingências históricas complexas, mas reconhecimento sensível de que somos muitos mais novos do que
passageiras, do que constantes antropológicas inevitáveis... Você sabe, acreditamos e que afirmar isso não é uma maneira de diminuirmos o
dizer: somos muito mais novos do que acreditamos não é uma peso da história de nossos ombros. Um otimismo delicado que
maneira de diminuirmos o peso de nossa história sobre nossos reconhece nossa responsabilidade sem convertê-la em gesto magoado
ombros. É, antes, colocar a disposição do trabalho que podemos ou dívida moral e reconhece nossa juventude como oportunidade ou
fazer sobre nós mesmos a parte maior possível do que nos é tempo que ainda temos para colocar a disposição do trabalho que
apresentado como inacessível (Foucault, 2010, p. 358. Grifo nosso). podemos fazer sobre nós mesmos a maior parte possível do que
O excerto é belíssimo. O otimismo de Michel Foucault encanta aprendemos como inacessível. Não seria exagero afirmar que estamos
pela esperança encarnada na afirmação “tantas coisas podem ser diante de um pensamento amoroso cuja analítica é ela mesma a
mudadas”. Acreditamos que Foucault e Buber se assemelham ao afirmação de uma abertura como existência e não de uma realidade
proclamar radicalmente a obviedade ocultada de que na existência ideal. Não obstante, o que é isto que o autor afirma ser apresentado
existe algo que resiste a toda e qualquer coisificação. para nos como fechado?
Para o primeiro, as coisas (e nós mesmos) estão ligadas a Se considerarmos a presente entrevista não seria um erro dizer
contingências históricas complexas, sempre passageiras, e nunca a que o autor fala do pensamento como exercício de transformação
constantes antropológicas inevitáveis. Assim, as coisas se constituem daquele/a que pensa. No entanto, talvez, a resposta mais apropriada
pelo possível e não pela necessidade, assim, existe algo tenha sido proferida de maneira explicita e refinada em uma das aulas
incondicionado na existência ou no condicionado da existência existe do curso Hermenêutica do Sujeito, “não há outro ponto, primeiro e
algo que desativa todo e qualquer condicionamento. Por exemplo, último, de resistência ao poder político senão na relação de si para
para o francês, o pensamento aparece como algo que anima os consigo” (Foucault, 2004, p. 306). Desta maneira, inferimos, aquilo que
é apresentado como fechado para nós é justamente a relação de si ter se iniciado com René Descartes (1596-1650) nem com a publicação
para consigo, sendo essa mesma aquilo que precisamos colocar a “Discurso sobre o Método” (1637).
disposição do trabalho que podemos fazer sobre nós mesmos. Entretanto, a partir do século XVII a articulação entre
De maneira geral, em seus últimos cursos, Foucault, “procurou conhecimento, sujeito e verdade passou a se fundamentar nas regras
enfatizar a experiência filosófica como um exercício do pensamento e metodológicas ou estrutura do objeto a ser conhecer. O exercício
da vontade capaz de comprometer o ser (do individuo) em sua filosófico era possível sem haver qualquer exigência ética de
totalidade” (Freitas, 2009, p. 125). De modo detalhado, investigou a conversão por parte daquele/a que conhece, isto é, a filosofia como
relação radical entre espiritualidade e filosofia a partir de um princípio caminho espiritual deixou de ser uma prática social, perdeu força
chamado de cuidado de si. Na antiguidade grego-romana o referido ficando cada vez mais restrita a certos grupos e quase beira o
princípio era fortemente disseminado como prática social, sendo até esquecimento total. Para o autor o eclipse do cuidado de si deu-se
mesmo ensinado em escolas especializadas como a Escola Epicurista. A porque na modernidade filosófica o sujeito passou a ser a priori capaz
filosofia era vivida como percurso espiritual que exige daquele/a que de verdade, sendo seu acesso a ela ou sua relação com ela um
decidia trilhá-lo uma conversão da maneira mesma de ser do sujeito. A problema de método e não uma questão de ascese autoformadora. A
experiência filosófica era realizada através de um conjunto de práticas verdade também perdeu força uma vez que se converteu em algo que
de si que deveriam desenvolver a relação de si para si. Por isso, se descobre ou se decifra e não mais uma relação capaz de salvar o
argumenta o autor, que o celebre princípio do conhecimento de si era sujeito instigando-o “decidir o que fazer com o que se é e como
submetido ao cuidado se si, pois o objetivo mesmo era a realizar o que se é” (Freitas, 2009, p. 136) como no pensamento
transformação daquele/a que pensa e não a decifração de conteúdos antigo. Ou seja, “exercitar governo de si instaurado pelo cuidado ético
pensados ou mesmo a elaboração de sistemas de pensamento. do eu com sua própria verdade” (Freitas, 2009, p. 137), porém não
Não objetivamos neste ensaio fazer uma leitura aprofundada qualquer verdade nem mesmo a melhor ou mais aceita, mas a sua
da Hermenêutica do Sujeito. Mas apenas argumentar, em linhas gerais, verdade, aquela que o salva e pela qual ele vive e morre.
para justificar a inferência que fizemos a respeito da relação de si para Por isso, afirma Foucault, que na modernidade é possível o
consigo como aquilo que o autor afirma ser apresentado como sujeito pode ser “imoral e conhecer a verdade” (Foucault, 2004, p.
inacessível. Nesse sentido, Foucault argumenta que a modernidade 123). Não é preciso haver nenhuma relação entre verdade
filosófica é inaugurada justamente quando o cuidado de si passou a pronunciada e aquele/a que fala a verdade. Noutro termos, não é
ser subordinado ao conhecimento de si. O processo de distanciamento preciso ser a encarnação da verdade enunciada. Podemos falar de
entre espiritualidade e filosofia se efetivou (e ainda se efetiva) pela qualquer assunto sem qualquer compromisso ético ou ainda afetivo
paulatina e poderosa desqualificação do cuidado de si e ascensão do com aquilo que é dito. A retidão entre ação e pensamento se tornou
conhecimento de si. Este processo de inversão o autor denominou de uma opção e não o objetivo a ser produzido no eu pelo cultivo das
“momento cartesiano”. Expressão que o autor reconhece como práticas de si por parte daquele/a que se ocupar de si mesmo.
problemática em razão da cisão entre espiritualidade e filosofia não Poderíamos continuar esmiuçando o trabalho refinado e denso
do Foucault a respeito da desqualificação do cuidado de si no Ocidente
ou o que podemos chamar de dês-espiritualização do conhecimento. decifração. Porém, assemelham-se ainda na crença de que o
Embora o referido princípio soe distante aos nossos olhos e pouco conhecimento não está condenado a ser apenas assim. Para o
familiar a nossa escuta, é possível compreender o otimismo do autor primeiro é possível falar sobre algo quando se ama aquilo do qual se
ao afirmar que somos muito mais novos do que acreditamos. A cisão fala, ou seja, estabelece uma relação estreita entre pensamento e
entre filosofia e espiritualidade pela ascensão do momento cartesiano, amor. O segundo afirma que nada está absolutamente fechado que
apesar dos mais de quatro séculos, é historicamente recente. Ainda é não possa ser aberto, assim, o conhecimento é antes uma das facetas
possível uma aproximação com o cuidado de si ou ainda de dada modalidade de ser no mundo, a relação EU-ISSO, sendo
reaproximação entre filosofia e espiritualidade. É claro que tal incapaz reduzir a existência à coisificação apesar dos possíveis
empreendimento parece desafiador ou mesmo horripilante para nós esforços. Por isso, o conhecimento é antes uma escuta cujo
que aprendemos que o eu é nossa realidade primeira e última cujas movimento pode ser não o de dobrar-se-sobre-si-mesmo, mas de
verdades aguardam no seu interior serem decifradas. Presos em nossa abrir-se-para-o-outro como aceitação da dádiva do TU. Deste modo, o
interioridade, de fato, uma relação de si para consigo parece ser uma conhecimento é antes um dom, uma dádiva. Por sua vez, para o
possibilidade inacessível. Situação que por si mesma já sugere a terceiro, o cuidado de si se confira como um ponto, primeiro e último,
urgência de assumirmos o trabalho que podemos fazer sobre nós de resistência a poder político cuja base se fundamenta no
mesmos colocando a disposição nossa existência radical, isto é, nossa conhecimento. O cuidado de si ou mesmo a espiritualidade aparece
existência como uma abertura ao possível a fim desativar todas as como elemento que pode desativar os jogos de poder/saber, sendo o
tentativas de determinação. referido principio não oposto ao conhecimento. Este é pertinente na
medida em que auxilia a edificação no eu da retidão entre
IV pensamento e ações. Ou seja, a aproximação entre conhecimento e
Começos nosso texto invocando a afirmação inquietante de espiritualidade é imprescindível à resistência, ao exercício do governo
Alberto Caeiro, “pensar é estar doente dos olhos”. Pensamento como de si pela afirmação ética do eu com a verdade pela se vive e morre.
pré-visão, enquadramento, etc. Ou seja, estamos no avesso da Por fim, após os diálogos e ruminações realizadas nestas
espontaneidade, do imprevisto, da abertura aquilo que possa páginas acreditamos que é importante aprofundarmos em ensaios
acontecer. O poeta por meio de sua metáfora constrói uma imagem futuros, em especial, a relação entre conhecimento e dádiva, ou
dura e precisa daquilo que sofremos: excesso de olhar, de projeção, de melhor, o pensamento como dom. Para tanto é preciso produzir uma
necessidades e um déficit de escuta, silêncio, de inocência, de amar. genealogia da desqualificação do cuidado de si ou como chamamos
Depois dos diálogos estabelecidos com Martin Buber e Michel aqui, a dês-espiritualização do conhecimento. Veredas que
Foucault, chegamos ao final acreditando que precisamos aprender a vislumbramos cujo caminhar é antes de qualquer coisa uma trajetória
abandonar as metáforas do olhar ou ainda da cura dos olhos e cultivar espiritual.
outras metáforas como da escuta, da abertura, da cavidade.
Alberto Caeiro, Martin Buber e Michel Foucault se assemelham
na constatação do conhecimento como potência de assimilação e 01/12/12

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