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O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação

fisiológica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inclusão


em permanente movimento na história".
Paulo Freire
Resumo
O presente trabalho teve como objetivo analisar a relação entre a violência e os
fatores que promovem o fracasso escolar na escola. Tomamos como referências
de análise, o estudo das teorias de Maffesoli em Dinâmica da Violência (1987),
Barreto em Bons e maus alunos e suas famílias, entre outros, possibilitando um
conhecimento teórico que servirá como alicerce para a fundamentação de
conceitos sobre violência e fracasso escolar. Utilizamos a observação como
procedimento metodológico, onde analisamos o cotidiano de duas escolas
públicas estaduais, analisando como ocorre e a violência na realidade dessas
escolas, e em seguida comparamos os resultados dessas escolas com as taxas de
fracasso escolar das mesmas. Observamos, que cada escola está às voltas com
sua própria violência, com aquilo que ela pontua como violento, dependendo de
critérios de valores, tradição e outros fatores. No entanto, nos resultados
indicam que nem sempre a violência está atrelada ao fracasso escolar. Diante
disso cabe a escola, possibilitar ao aluno o desenvolvimento de suas ações seja
motora, verbal e mental, de forma que possa intervir no processo sócio-cultural
e inovar a sociedade, fortalecendo as relações família-escola. Ao que indicam os
resultados, a escola precisa promover ações que busque que promova um
trabalho de respeito mútuo entre todos que participam dela, professores,
alunos, pais, equipe gestora.
Palavras-chave: escola, aluno, fracasso escolar, violência.
Introdução
Historicamente, a violência e a insegurança nas escolas tornaram-se mais
visíveis no Brasil, no início da década de 80 do século XX e, nos anos 90 desse
mesmo século. As ocorrências incidiam sobre a escola como violência externa ou
social, por isso eram reivindicadas melhores condições de segurança diante de
assaltos, furtos, invasões de escolas para roubos de equipamentos e merenda
escolar. Porém, há casos em que a violência surge dentro da própria escola, seja
com atos de rebeldia pela rigidez de dinâmicas administrativas e pedagógicas
seja como ataques ao espaço físico e aos equipamentos da escola.
Portanto, esta pesquisa objetiva apresentar uma análise a respeito da violência
na escola e sua relação com o fracasso escolar.
Este tema foi escolhido porque é um dos problemas que mais tem afligido a
comunidade escolar e por fazermos parte da mesma lidando diretamente com os
mesmos, encarando como desafio no aprofundamento da historicidade desta
temática.
De acordo com as leituras realizadas, esta temática tem sido largamente
comentada por vários escritores e que ela não é algo novo, mas infelizmente, a
cada momento histórico assume novos contornos. Ademais ela tem se
manifestado em todos os espaços sociais tradicionais; família, escola, igreja,
política. Na história tem-se revelado em manifestações individuais ou coletivas.
É um dos assuntos que está diretamente vinculado às violações dos direitos
humanos, principalmente as que atingem a vida e a integridade física dos
indíviduos. "Esta negação dos direitos fundamentais à maioria da população
brasileira encontra explicação no modelo econômico e social excludente, que
apresenta grandes disparidades quanto ao acesso da população aos bens sociais,
caracterizando-se como uma sociedade que apresenta uma das piores
distribuições de renda do mundo. A convivência dos indivíduos em extrema
desigualdade social, certamente é um dos fatores que muito contribuem para a
degradação do comportamento humano". Não obstante, se observa nos meios
de comunicação cotidianamente, que esta temática se encontra destacada nos
noticiários e são amplamente divulgadas na sociedade, constituindo-se uma das
piores preocupações da população das grandes cidades.
As causas apontadas são várias, desde as sociais, tais como a vigência de
políticas públicas de exclusão social que não oportunizam acesso a uma
educação de qualidade e trabalho digno, até causas psicológicas que convertem
a baixa auto-estima em respostas anti-sociais, que se descortinam como única
alternativa de sobrevivência, aceitação e auto-afirmação, a exemplo do poder
paralelo do narcotráfico.
Temos que questionar, diante desta problemática no cotidiano escolar, se o
currículo faz sentido para os alunos e professores; se a dinâmica da sala de aula
faz com que os atores envolvidos se sintam incluídos ou excluídos. Se a
estrutura organizacional da escola é feita para facilitar sua vida e o seu
crescimento; se as normas e regimentos são pautados no respeito mútuo.
Fracasso escolar
Sucesso e fracasso escolar, temas latentes no cotidiano da escola, temas que se
fundem com inclusã£o escolar, adequaçã£o das práticas pedagógicas,
atualizaçã£o dos professores... Enfim, nã£o se pode negar que todos estã£o
relacionados e dependendo da maneira que sã£o conduzidos, levam a um único
final. O qual pode ser, tanto o sucesso, quanto o fracasso escolar...
Quando se fala em fracasso, supãµe-se algo que deveria ser atingido. Ele é
definido por um mau ãªxito, uma ruína. Porém mau ãªxito em quãª? De acordo
com que parã¢metro? O que a nossa sociedade atual define como sucesso? Daí a
necessidade de analisar o fracasso escolar de forma mais ampla, considerando-o
como peça resultante de muitas variáveis. Mas sucesso e fracasso escolar
digladiam-se década após década, aumentando as desigualdades entre alunos e
professores, fazendo com que a falta de apoio, preparo, estímulo e cooperaçã£o
fiquem a cada ano que passa mais evidente a todos.
Já entre os fatores intra-escolares sã£o salientados o currículo, os programas, os
trabalhos desenvolvidos pelos professores e especialistas, e as avaliaçãµes de
desempenho dos alunos que sã£o hoje, segundo Guiomar Namo de MELLO
(1983),
... mecanismos de seletividade poderosos. Sua natureza e qualidade sã£o de tal
teor que contribuem para o fracasso escolar das crianças de origem social e
econã´mica desfavorecida, ainda que grande parte desse fracasso se deva sem
dúvida a pobreza material da qual essas crianças sã£o vitimas. Nesse sentido,
essas condiçãµes escolares contribuem para reproduzir a desigualdade social
por meio de um duplo mecanismo: o primeiro é a exclusã£o dos mais pobres da
escola, o segundo, a legitimaçã£o dessa exclusã£o na medida em que o aparecer
apenas técnico do modo de operar da escola dissimula seu sentido político
(MELLO, 1983, p....)
Inúmeras pesquisas apontam que o maior índice de fracasso escolar ocorre com
crianças pobres. Em tais pesquisas, as explicaçãµes apontadas para o problema
do fracasso escolar dizem respeito à condiçã£o econã´mica da família.
É sobretudo à família, as suas características culturais ou situaçã£o econã´mica,
que predominantemente se atribui, em última instã¢ncia, a responsabilidade
pela presença ou ausãªncia das precondiçãµes de aprendizagem na criança
(MELLO, 1982, p. 90).
Ainda, pode-se evidenciar entre alguns professores a associaçã£o da imagem do
aluno em dificuldade de aprendizado na criança carente. Esta relaçã£o, também
apresentou-se em estudos realizados por Barreto (1981), com cerca de 160
professores de classe de alfabetizaçã£o em Sã£o Paulo. Para a autora, o fato de
que os alunos tãªm dificuldades ou nã£o na aprendizagem está profundamente
aliado às características da organizaçã£o familiar da qual ele provãªm, as quais,
por sua vez, refletem as condiçãµes econã´micas, sociais e culturais em que vive
a criança. Assim, a família ideal, para esses professores, é relativamente
pequena, composta de pai, mã£e e dois ou trãªs filhos no máximo, e a família
numerosa é considerada indesejável e inconveniente. Barreto, ainda afirma que
para muitos professores as crianças pobres nã£o tãªm outra cultura por serem:
1º – analfabetos ou apresentarem baixa escolaridade, quando se atribui à
cultura o sentido de sociedade;
2º – grosseiros e ignorantes, quando a cultura é atendida como polidez e
refinamento;
3º – carentes quando se representa a cultura como um modo de ser e de se
proceder a uma forma de transmitir isso aos seus filhos, o que é peculiar a
determinados grupos da sociedade (BARRETO, 1981, p. 88).
Além de Barreto, muitos outros estudiosos no assunto chegaram a mesma
conclusã£o onde os professores entrevistados apontam nas crianças de classe
econã´mica mais baixa o Q.I. baixo, subnutriçã£o, imaturidade e problemas
emocionais. Dessa forma, afirma-se que o atraso mental que as crianças
pesquisadas trazem é justificada pela falta de alimentaçã£o, doenças crã´nicas,
verminoses e outros fatores que elas estã£o expostas.
A sociedade do ãªxito educa e domestica. Seus valores, mitos relativos à
aprendizagem muitas vezes levam muitos ao fracasso. Em nosso sistema
educacional, o conhecimento é considerado conteúdo, uma informaçã£o a ser
transmitida. As atividades visam a assimilaçã£o da realidade e nã£o
possibilitam o processo de autoria do pensamento tã£o valorizada por
Fernández. Ela define como autoria " o processo e o ato de produçã£o de
sentidos e de reconhecimento de si mesmo como protagonista ou participante
de tal produçã£o" (FERNÁNDEZ, 2001 p.90). Este caráter informativo da
educaçã£o se manifesta até mesmo nos livros didáticos, nos quais o aprendente
é levado a memorizar conteúdos e nã£o a pensá-los; nã£o ocorrendo de fato
uma aprendizagem.
Perceber o fracasso escolar como uma simples falta de condiçã£o do aluno em
adquirir conhecimentos, é livrar-se de responsabilidades que cabem a toda a
sociedade, é aceitar que existem pessoas melhores, que a diferença é pretexto
para encobrir fracassados. A escola nã£o pode apresentar-se como mais uma
instituiçã£o que contribui para exclusã£o social. O que se percebe é que apesar
dos esforços e pesquisas que tentam elencar subsídios que proporcionem uma
pratica pedagógica menos excludente, a escola ainda age de uma forma seletiva
e classificatória, privilegiando alunos oriundos de classes sociais mais
favorecidas. Sobre esse assunto, Somacal é bem enfático ao afirmar que,
há problemas em nossas escolas que nos perseguem como um pesadelo. Nã£o
há como ignorá-los, nem fugir deles. Entre os pesadelos constantes está o
fracasso escolar. Alguém dirá, mas está quantificado: altas porcentagens de
repetentes, reprovados, defasados. O pesadelo é mais do que o que
quantificamos. Podem cair as porcentagens, que ele nos persegue. O fracasso
escolar passou a ser um fantasma, medo e obsessã£o pedagógica e social. Um
pretexto. Uma peneira que encobre realidades mais sérias (2000, p. 10).
O fracasso escolar nã£o pode ser medido apenas por porcentagem de
reprovados por série. Deve-se analisar profundamente a caminhada do aluno,
seu desenvolvimento, enquanto ser humano e cidadã£o. Ver a aprendizagem
como a capacidade de reproduzir conteúdos é abstrato diante da necessidade de
formar cidadã£os capazes de se adaptar à realidades diversas ou adaptar a
realidade às suas necessidades. Neste sentido, é importante atribuir a
responsabilidade do fracasso escolar nã£o só ao aluno mas a todo o sistema
envolvido.
Mantovanini (2001), nos faz refletir a necessidade de conscientizar os
professores para o processo pedagógico, que compreende trãªs elementos, todos
com a mesma importã¢ncia para o sucesso da aprendizagem: o professor, o
conteúdo e o sujeito que aprende. E se o aluno nã£o aprende, é sinal de que os
outros dois elementos também falharam nesse processo. Assim precisamos
acreditar que todos os casos de aprendizagem sã£o possíveis de soluçãµes e que
nã£o há caso perdido. Outra questã£o referente à escola é que esta, ao valorizar
a inteligãªncia, se esquece da interferãªncia afetiva na nã£o aprendizagem.
A responsabilidade do fracasso escolar nã£o recai só sobre o aluno. Há que se
pensar em toda a questã£o pedagógica. Se aceitamos que somos seres humanos
e como tais nos construímos diferentes, se faz necessário práticas pedagógicas
que valorizem e aproveitem toda a bagagem de conhecimentos construída pelo
aluno durante sua trajetória extra-escolar. O fracasso escolar nã£o recai sobre
uma realidade social, ele nos apresenta as diferentes realidades sociais que
devem ser trabalhadas e valorizadas pela escola. Charlot lembra outros
aspectos:
A questã£o do fracasso escolar remete para muitos debates: sobre o
aprendizado, obviamente, mas também sobre a eficácia dos docentes, sobre o
serviço público, sobre a igualdade das "chances", sobre os recursos que o país
deve investir em seu sistema educativo, sobre a "crise", sobre os modos de vida e
os trabalhos na sociedade de amanhã£, sobre as formas de cidadania ( 2000, p.
14).
Encarar o fracasso escolar como algo que vai se apossar de uma pessoa, é uma
forma errada de enfrentar as situaçãµes de dificuldades de aprendizagem. Sã£o
as situaçãµes escolares que criam as condiçãµes para termos os alunos
fracassados. As diferenças existentes entre as histórias particulares de cada
aluno, cada família, cada comunidade, é o que garante todo o intercã¢mbio de
conhecimentos. Analisando assim, a comunidade escolar agirá de uma forma a
ter o aluno como, um aliado, como alguém que está na instituiçã£o tendo seu
espaço, ocupa e sabe o que esta fazendo neste lugar. Muitas vezes o aluno vai
para a escola e nã£o se sente na escola, nã£o sabe o que faz ou o que fazer ali, se
sente deslocado, impotente, incapaz diante do que lhe é proposto.
Outra questã£o referente à escola é que esta, ao valorizar a inteligãªncia, se
esquece da interferãªncia afetiva na nã£o aprendizagem. O sujeito pode estar
em dificuldades de aprendizagem por ter ligado este fato a uma situaçã£o de
desprazer. Esta situaçã£o pode estar ligada a algum acontecimento escolar.
Claparéde diz que a escola pode provocar na criança conflitos que
influenciarã£o seu gosto pelo aprender.
Desta forma, o "insucesso" é atribuído à debilidade das capacidades intelectuais,
à cultura desviante e a outras categorias como: as dislexias (para as dificuldades
de leitura), as disortografias (dificuldades em ortografia) e as discalculia
(dificuldade em cálculos) que servem como rótulos.
O olhar pedagógico nã£o se volta, prioritariamente, para o espaço escolar, mas
procura compreender a dinamicidade sócio-afetiva familiar e seu
relacionamento com o nã£o aprender da criança. Portanto as estruturas
intelectuais da criança nã£o apresentam prejuízos. A inteligãªncia da criança
encontra-se apenas limitada, temporariamente, por fatores de natureza sócio-
afetivas. O resultado destas consideraçãµes aponta para dois campos, ou seja, a
família e a escola , e como a individualidade da criança , com todas as suas
implicaçãµes pedagógicas e psicológicas, com elas interagem. O estudo dos
aspectos mais relevantes que se fazem presentes entre a escola e a família e que
podem desempenhar papel importante na evoluçã£o da aprendizagem formal e
informal da criança é procedente.
O aluno neste processo de aprendizagem deve ser conhecido e entendido como
um todo, para desta maneira se ter açãµes, metodológicas que contemplem suas
capacidades. Onde todas as ambigüidades de atribuiçã£o de sentido de uma
série de manifestaçãµes conscientes e inconscientes se fazem presentes.
Interjogam aí o pessoal, o familiar atual e passado, o sociocultural, o
educacional. Vivenciar cada conquista, cada tropeço, identificando causas e
motivos, responsáveis ou irresponsáveis é a maneira de diagnosticar como o
aluno sente-se como aprendiz. Sobre os fatores de que dependem a
aprendizagem Scoz se refere:
A aprendizagem depende: da articulaçã£o de fatores internos e externos ao
sujeito (os internos referem-se ao funcionamento do corpo como um
instrumento responsável pelos automatismos, coordenaçãµes e articulaçãµes);
do organismo: a infra-estrutura que leva o indivíduo a registrar, gravar,
reconhecer tudo que o cerca através dos sistemas sensoriais, permitindo regular
o funcionamento total; do desejo; entendido como o que se refere às estruturas
inconscientes, representa o motor da aprendizagem e deve ser trabalhada a
partir da relaçã£o que com ela estabelece; das estruturas cognitivas,
representando aquilo que está na base da inteligãªncia, considerando-se os
níveis de pensamento propostos por Piaget, da dinã¢mica do comportamento,
que diz respeito à realidade que o cerca. Os fatores externos sã£o aqueles que
dependem das condiçãµes do meio que circunda o indivíduo (1996.p 29 e 30).
Os fatores externos sã£o os responsáveis por gerar grande parte das condiçãµes
necessárias para o aluno aprender. A escola tem dificuldades em trabalhar com
a diversidade de elementos que a realidade produz em cada indivíduo. Pensando
assim, o fracasso escolar poderia ser solucionado com intervençãµes
pedagógicas adequadas para cada realidade. A dificuldade se encontra na
diversidade de realidades e na lentidã£o do sistema de educaçã£o em
acompanhar as mudanças sociais.
2.1 - Panorama do fracasso escolar
De acordo com PERRENOUD (2000, p.18) "normalmente, define-se o fracasso
escolar como a simples conseqüãªncia de dificuldades de aprendizagem e
como a expressã£o de uma falta "objetiva" de conhecimentos e
competãªncias". Até a década de 70 do século passado, o sistema educacional
atribuía a nã£o aprendizagem unicamente ao aluno. Somente ele era o
responsável pelo seu fracasso. Nã£o eram considerados fatores relevantes no
processo ensino-aprendizagem como os conteúdos, a metodologia, a prática
pedagógica, enfim a escola e o próprio sistema educacional.
Porém estudos sociológicos1, do final dos anos 60 no século XX, demonstraram
que o fracasso escolar incide mais nas camadas de baixa renda. Com isso a
explicaçã£o para o fracasso passa a ser social, sendo assim o problema nã£o
está no aluno, mas no meio em que vive, colocando-se em questã£o, também a
família (SILVA e DAVIS, 1993 e NÓVOA, 1995). Com as discussãµes geradas a
partir dos estudos sociológicos surge no cenário nacional um novo enfoque para
se entender o fracasso escolar: a responsabilidade deixa de ser somente do
aluno e da família, passando a ser dividida com todo o sistema educacional.
A questã£o do fracasso escolar passou a ser vista sob a ótica do reprodutivismo:
"destacava-se o fato de que a escola brasileira nã£o dava a devida atençã£o
às diferenças individuais e sócio-culturais, o que acabava por contribuir para
a reproduçã£o das desigualdades sociais já existentes" (OLIVEIRA, 2003,
p.10). Sobre a reproduçã£o das condiçãµes sociais na escola, BOURDIEU
afirma:
Ao atribuir aos indivíduos esperanças de vida escolar estritamente
dimensionadas pela sua posiçã£o na hierarquia social, e operando uma seleçã£o
que – sob as aparãªncias da eqüidade formal – sanciona e consagra as
desigualdades reais, a escola contribui para perpetuar as desigualdades, ao
mesmo tempo em que as legitima (1975, p. 58).
Essa afirmaçã£o de BOURDIEU (1975) é analisada por PERRENOUD (2000, p.
25) que esclarece:
Para que sejam favorecidos os mais favorecidos e desfavorecidos os mais
desfavorecidos, é necessário e suficiente que a escola ignore no conteúdo do
ensino transmitido, nos métodos e nas técnicas de transmissã£o e nos critérios
do julgamento, as desigualdades culturais entre as crianças das diferentes
classes sociais: em outras palavras, tratando todos os alunos, por mais desiguais
que sejam de fato, como iguais em direitos e deveres, o sistema escolar é levado
a dar, na verdade, sua sançã£o às desigualdades iniciais diante da cultura. A
igualdade informal que regula a prática pedagógica serve, na verdade, de
máscara e de justificativa à indiferença para com as desigualdades reais diante
do ensino e diante da cultura ensinada ou, mais exatamente, exigida
(PERRENOUD, 2000, p.25).
A educaçã£o escolar reproduz as condiçãµes da sociedade. Contribuindo nessa
discussã£o, VIEIRA (1996, p. 65) afirma que, o sucesso da escola está em seu
fracasso, pois ela nã£o foi construída para atender ao conjunto da sociedade e
sim para atender aos interesses da classe dominante, favorecendo a
reproduçã£o social e preparando a força de trabalho. A escola nã£o precisa ser
boa ou má, pois o que vai influenciar na produçã£o é a capacidade de
disciplinar, de ensinar condutas. " O desacerto é acerto, o irracional é
racional". Intensificam-se os estudos que focam a escola, bem como seus
métodos e regras que impedem o trato com grupos de origem sócio-econã´mica
diversificada. (SILVA e DAVIS, 1993; NÓVOA, 1995).
PERRENOUD (2000) questiona a arbitrariedade da escola afirmando que nela
utilizam-se instrumentos que nã£o levam em conta a diversidade estudantil no
seu contexto sócio-cultural e "medem" o conhecimento dos alunos, tornando-os
aptos ou nã£o para serem promovidos à série seguinte.
Para ARROYO (1997) o sistema escolar produziu e continua reproduzindo suas
disciplinas, sua seriaçã£o, suas grades, e se limita a ensinar suas próprias
produçãµes e a aprovar ou reprovar com base em critérios de precedãªncia que
ele mesmo definiu como mínimos para transitar no percurso escolar.
A escola nã£o respeita a cultura do aluno, impondo a cultura dominante. Como
o aluno nã£o se reconhece no contexto da escola, acaba por fracassar. Ao tratar
com indiferença as diferenças culturais é que a escola produz o fracasso escolar.
Esse fenã´meno reforça e alimenta o perverso ciclo que envolve a pobreza, o
desemprego e a exclusã£o social. Muitos alunos se sentem fracassados quando
nã£o sã£o promovidos de série, porém o que nã£o se percebe é que o fracasso
escolar acontece de forma processual, ao longo do ano. A concretizaçã£o do
desenvolvimento das capacidades do educando devem ser trabalhadas ao longo
de sua escolaridade.
PIAGET (1970, apud MIZUKAMI, 1986) defende que a escola deveria começar
ensinando a criança a observar. A verdadeira causa dos fracassos de educaçã£o
formal, decorre essencialmente do fato de se principiar pela linguagem
(acompanhada de desenhos, de açãµes fictícias ou narradas, etc) ao invés de o
fazer pela açã£o real e material. O educando estará mais motivado a aprender
aquilo que tenha significado para ele. Isso é determinante no grau de
motivaçã£o apresentado em relaçã£o às aprendizagens propostas. Entretanto,
ao desconsiderar a realidade do aluno, fica difícil motivá-lo e conduzi-lo a uma
aprendizagem significativa2. E o que é pior, isso conduz o aluno ao caminho
inverso que é o fracasso escolar.
2.2 – Fatores que determinam o fracasso escolar
Para THOMAZ (2000, p. 86), " há sempre um bode expiatório para o problema
do fracasso escolar: a família, o professor da série anterior, o governo, a
miséria, o desemprego, a fome, a desnutriçã£o, os problemas de saúde, a
promoçã£o automática".
Considera-se, atualmente que existem inúmeros fatores de ordens (psicológica,
sócio-econã´mica e cultural e escolares) que podem influenciar na
aprendizagem e levar os alunos das séries iniciais do ensino fundamental ao
fracasso escolar: a) de ordem psicológica relativos aos aspectos cognitivos e de
saúde do aluno; b) de ordem sócio-econã´mica e culturais como as relaçãµes
familiares, a fome, a desnutriçã£o, as diferenças culturais, a linguagem etc; e c)
os fatores organizacionais da escola e, de modo geral, das políticas sociais e
educacionais.
Segundo AQUINO (1997) existem discursos que apontam os distúrbios de
aprendizagens como sendo de origem psicológica, sendo influenciado pelos
fatores emocionais. Atrelado à questã£o psicológica está, portanto, outro fator
determinante do fracasso escolar: a discriminaçã£o presente na sociedade, que
rotula o aluno antes mesmo dele começar sua vida estudantil. Às vezes a própria
família e os professores rotulam a criança como "sem jeito" para os estudos.
Quanto às diferenças culturais, tem-se a reproduçã£o social, onde a classe
dominante detém o "saber" e a classe dominada detém a "força de trabalho",
gerando riqueza para a classe dominante, confirmando o contexto social em que
"saber é poder". Do ponto de vista sócio-econã´mico e cultural tem-se uma
confluãªncia de fatores relacionados a vivãªncia do educando em família e na
escola.
Segundo FONTES (2004), certos professores no início do ano criam
expectativas positivas ou negativas sobre os alunos que acabam por influenciar
o seu desempenho escolar. Sem que se percebam os professores adotam
preconceitos, podendo afetar o rendimento do aluno, o qual ele julga sem
competãªncia para aquisiçã£o de conhecimento. Geralmente percebe-se o
fracasso no final do ano escolar, no qual se faz a análise dos que foram
promovidos, os evadidos e os que foram reprovados. Esta análise deveria ser
processual, proporcionando assim, recuperar o aluno que apresenta menor
desempenho escolar. Nessa perspectiva a avaliaçã£o formativa3 é essencial para
o acompanhamento do desenvolvimento dos processos educativos.
fracasso escolar é causado por diversos fatores sejam eles de ordem psicológica,
social ou estrutural e organizacional da escola e ou do sistema. Em muitos casos,
tais fatores atuam simultaneamente. No que diz respeito ao papel do educador,
nã£o se pode perder de vista essa compreensã£o sem deixar de reconhecer a
parcela que cabe a escola e o que ela pode fazer para o sucesso na aprendizagem
de seus alunos.
Assim, a própria açã£o docente torna-se fator essencial na promoçã£o a
aprendizagem, tendo em vista que precisam ficar atentos às possíveis causas
que dificultam a aprendizagem, podendo levar o aluno ao fracasso. É preciso ter
claro, portanto que esses fatores atuam, na maioria das vezes, entrelaçados.
Quadro 01 – Fatores que influenciam o fracasso escolar
Fatores que influenciam o fracasso escolar

A - Falta de estímulo para professores e alunos; aulas repetitivas e massantes;


falta de compromisso com alunos que apresentam maiores dificuldades.

B – Crianças que nã£o tãªm ajuda em casa; crianças com problema de saúde e
emocional; crianças que precisam de atençã£o especial na escola e
infelizmente nã£o tãªm.

C – Desnutriçã£o; salas lotadas; falta de professores recuperadores; aquisiçã£o


sócio-econã´mica muito baixa; salários dos professores muito baixo, tendo
dupla jornada de trabalho; falta de acompanhamento da família.

D – Os meios em que vivem os alunos; situaçã£o sócio-econã´mica; estrutura


familiar fora dos padrãµes; a questã£o de relacionamento, respeito dentro e
fora dos limites e fora da escola, entre os envolvidos no processo.

Há estudos como os de THOMAZ (2000) que coloca a família, o professor da


série anterior, o governo, a miséria, o desemprego, a fome, a desnutriçã£o e os
problemas de saúde e a própria escola como fatores que interferem no
desempenho escolar dos educandos.
Quadro 02 – Diagnosticando o fracasso escolar
Como é diagnosticado o fracasso escolar?

A – Pela avaliaçã£o diagnóstica que mostra as necessidades de intervençã£o


para que ocorra a aprendizagem, uma vez que os alunos que se encontram
nesta condiçã£o nã£o atingiram os objetivos propostos.

B – Crianças que nã£o conseguem acompanhar os conteúdos.

C – Desinteresse, evasã£o e notas baixas.

D – É diagnosticado por números. Número de alunos reprovados, repetentes ou


evadidos.

Sobre esse aspecto, ABRAMOWICZ (1997) ressalta que os professores


desconhecem os processos pelos quais as crianças aprendem. Observa-se, ainda,
que o fracasso continua sendo diagnosticado e atacado nas tradicionais análises
de processo-produto, que seria por números de alunos que entram e saem.
Nessa concepçã£o, AQUINO (1997) esclarece que a avaliaçã£o escolar
possibilita a identificaçã£o das dificuldades, dos sucessos e fracassos, apoiando
encaminhamentos e decisãµes sobre as açãµes necessárias, sejam elas de
natureza pedagógica, administrativa ou estrutural.
Sobre as atitudes do aluno propenso ao fracasso escolar os professores apontam
o desinteresse e a indisciplina. Cabe ressaltar que, muitas vezes, a criança se
comporta de forma rebelde, deseducada, como uma maneira de expressar as
suas frustraçãµes escolares, deixando sinais de necessidades de processos
escolares diferenciados ou da ajuda de outros profissionais. O que ocorre,
muitas vezes, é que sem preparo suficiente para identificar e ajudar o aluno,
como, por exemplo, encaminhando-os à profissionais competentes, os
professores reprovam as suas atitudes, sem colocar em questã£o a própria
prática.
Segundo ARROYO (1997, p.18) " os alunos chegam à escola defasados, com
baixo capital cultural, sem habilidades mínimas, sem interesse, ou seja,
chegam à escola reprováveis ". No entanto, os professores nã£o demonstram
compreensã£o de que tais atitudes dos alunos podem expressar rejeiçã£o aos
conteúdos, às atividades, ou às normas da escola desconexas com a realidade
dos mesmos.
Ao rotular a criança, a escola e seus professores estã£o contribuindo para o seu
fracasso, ao passo que, como afirma MIZUKAMI (1986) a escola, deve
possibilitar ao aluno o desenvolvimento de suas possibilidades de açã£o motora,
verbal e mental, de forma que possa, posteriormente, intervir no processo sócio-
cultural e inovar a sociedade. Deve ser algo que possibilite ao aluno ter um
interesse intrínseco à sua própria açã£o. No entanto, quando a escola nã£o
demonstra preocupaçã£o com a nã£o aprendizagem, dificilmente estará
proporcionando a esses alunos as condiçãµes de interventores e inovadores na
sociedade.
Esse impasse parece reforçar a necessidade da escola e dos professores
buscarem estratégias que levem ao sucesso dos alunos, focando na açã£o
coletiva e na compreensã£o da questã£o da nã£o aprendizagem.
Referãªncias
ABRAMOWICZ, Anete e MOLL, Jaqueline (orgs.). Para além do fracasso
escolar. Campinas, SP : Papiros, 1997. p.11-26.
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título de especialista.

Resumo
A partir
do
trabalho
clínico
desenvol
vido com
crianças
em
situação
de
fracasso
escolar –
por
apresent
arem
dificulda
des de
aprendiz
agem ou
distúrbio
s de
comport
amento
–, em
uma
clínica-
escola
universit
ária,
constata
-se que
os
paciente
s apenas
melhora
m, na
escola,
depois
de
abordare
m
questões
relativas
ao pai e
suas
carência
s. É essa
constata
ção que
leva à
proposiç
ão de
uma
investiga
ção, que
este
trabalho
apresent
a, sobre
a relação
do
sintoma
escolar
com a
família,
para se
interroga
r as
concepçõ
es
teóricas
que
articula
m o
sintoma
da
criança e
a família.

Palavras
-chave:
família,
fracasso
escolar,
psicanáli
se

FAMILY AND SCHOOL FAILURE

Abstract

From the clinical assignment developed with children


facing school failure status – for displaying learning
disabilities or behavior issues -, at a college school
clinic, it is verified that subjects will only improve at
school after overcoming father-related issues and
their needs. It is this verification that leads to the
proposition of an investigation, which assignment
presents, on the connection between family and the
school system to question theorical concepts that
articulate the child and the family’s symptom.

Keywords: family, failure, school, psychoanalysis

1. Introdução

Em uma experiência de clínica universitária1 aberta


para crianças, observa-se, no que concerne às
demandas espontâneas de tratamento, um número
surpreendente de queixas escolares. Como já se notou
em trabalhos anteriores (SANTIAGO, 2006), a maioria dos
encaminhamentos de escolares para tratamento clínico
pode ser organizada em dois grandes grupos: um que
reúne os comportamentos desviantes ou perturbadores
dos alunos em relação ao que se concebe como
ambiente favorável ao processo de ensino-
aprendizagem e, outro, que reúne dificuldades
específicas de aprendizagem na leitura e na escrita.
Entretanto, independentemente da pertinência a um
desses dois grandes grupos, o que tem sido possível
constatar, no particular desta clínica, é a idéia
prevalente de que as dificuldades escolares das
crianças sobressaem de conflitos familiares, em
especial aqueles que implicam o pai e sua falência
como chefe de família. Tal idéia é defendida tanto pelos
educadores – que encaminham as crianças para
tratamento –, como também pelas mães – que
geralmente são quem acompanham os filhos à clínica.

Nos argumentos utilizados para justificar o fracasso


escolar da criança, o pai de família é apontado como
uma pessoa desnorteada, em situação de desemprego,
entregue ao alcoolismo, envolvido com o tráfico de
drogas da região onde reside ou metido com o uso de
drogas. Indica-se, também, como a causa do sintoma
da criança, o pai desajustado, ou seja, aquele que não
sabe cuidar de sua família e de sua prole. Nesse caso,
as referências são ao pai que abandona a família,
espanca a mulher e os filhos, envolve-se com outras
mulheres, não dá dinheiro em casa. Tudo isso denuncia
a desvalorização e depreciação do pai de família, e sua
distância em relação ao que seria uma posição ideal do
ponto de vista social.

Este discurso queixoso do Outro da criança – Outro


primordial, que é a mãe e Outro social, que é a escola
–, a propósito do pai de família, poderia ser tomado
como a expressão do declínio da função paterna na
contemporaneidade. Por outro lado, chama a atenção a
análise dos estagiários que dirigem os tratamentos das
crianças em situação de fracasso escolar na clínica-
escola: eles constatam que tais pacientes apenas
melhoram, na escola, depois de abordarem questões
relativas ao pai e suas carências. É essa constatação
que leva à proposição de uma investigação sobre a
relação do sintoma escolar com a família, que se
pretende realizar em dois eixos: o primeiro, visando
interrogar as concepções teóricas que articulam o
sintoma da criança e a família. E o segundo, visando
interrogar a própria estruturação do sintoma escolar a
partir da análise clínica do material apresentado pelos
estagiários da clínica-escola para supervisão, em que
se constata a relação mencionada antes. O presente
trabalho apresenta apenas elementos da primeira
investigação.
2. A família como causa do sintoma da criança

É na contribuição de Maria Helena de Souza Patto


(2005) sobre o fracasso escolar, que encontramos a
afirmação segundo a qual a concepção dos transtornos
afetivos e da personalidade constitui a explicação mais
recorrente para as dificuldades escolares. Essa
explicação, que se afirma no âmbito da psicologia
clínica, atribui o fracasso escolar aos conflitos familiares
geradores de perturbações de ordem afetiva. As
dificuldades de aprendizagem são concebidas como
conseqüências destes conflitos e se manifestam
preferencialmente em crianças oriundas de famílias
problemáticas. A patologia relativa ao relacionamento
dos membros da família é ainda mais acentuada
quando a personalidade da criança é caracterizada por
condutas agressivas, nervosismo e imaturidade.

A respeito dessa explicação dos sintomas da criança


sobressaindo dos transtornos afetivos, Fijalkow (1986)
havia indicado que se trata de uma idéia surgida a
partir da incorporação da teoria psicanalítica à
psicologia. Segundo este autor, a proeminência dos
fatores afetivos na explicação do fracasso escolar
afirmou-se na França no momento da ascendência das
instituições extra-escolares responsáveis por oferecer
um suporte psicoterapêutico às crianças que
apresentavam dificuldades escolares. A determinação
da origem das dificuldades de aprendizagem exige a
identificação dos conflitos dos pais que interferem
diretamente sobre a criança, reenviando à análise de
suas relações objetais. As dificuldades de
aprendizagem são tomadas como sintomas que têm
origem na dinâmica familiar.

Fijalkow tece quatro críticas a esse modo de interpretar


as dificuldades escolares:

1. Há um uso heterogêneo e inacabado dos


referenciais teóricos da psicanálise que, quando
aplicado ao problema do fracasso escolar e dos
sintomas escolares, dificulta uma análise
rigorosa de sua validade.

2. Há uma falta de especificidade dos fatores


explicativos, o que acaba gerando categorias
muito gerais de explicação, tais como, problemas
emocionais, problemas familiares, entre outros.
Prevalece uma explicação imprecisa, que situa a
causa da dificuldade de aprendizagem no
“emocional”, não permitindo operar e construir
intervenções mais pontuais.

3. Há uma extensão desse tipo de explicação,


quando este é aplicado ao conjunto de crianças
que experimentam dificuldades escolares.

4. Por fim, indica como o grande problema dessa


concepção, seu determinismo e as
generalizações concernentes às explicações das
dificuldades de aprendizagem.

Para Griffo (1996) essas críticas chamam a atenção


para a assimilação do problema da criança a um déficit:
as crianças não aprendem em função de deficiências
nas relações afetivas ou de distúrbios de
comportamento dos membros de famílias
desestruturadas, em que os pais são ausentes e
omissos. Os impasses singulares na tarefa de aprender
são interpretados de modo universalizante como
deficiência, distúrbios e déficits e não há nenhum
espaço para a hipótese da subjetividade manifestando-
se por meio dos sintomas do fracasso escolar.

Segundo Donzelot (1980) essa leitura acarreta dois


tipos de conseqüência: a incorporação ao discurso dos
professores do argumento da família desestruturada
como causadora do fracasso escolar e a proliferação de
propostas que buscam restaurar os ideais e as relações
familiares supostamente harmônicas, sendo traduzidas
em programas que visem compensar as supostas
carências familiares.

Como notado por Santiago (2005), esta via adotada


pela psicologia clínica de localizar a causa do fracasso
nos conflitos emocionais e problemas de afetividade na
família sustenta-se no suporte teórico da psicanálise.
Os laudos psicológicos de casos de Dificuldades de
Aprendizagem na Leitura e na Escrita (Dale),
demonstram como esse conflito se explica,
exclusivamente, a partir de elementos da dinâmica
familiar, furtando-se ao sujeito a possibilidade de dizer
algo sobre sua divisão. Os significantes que marcam o
sujeito designam tipos de pais, de mães, ou de
configurações familiares considerados inadequados
para o desenvolvimento edípico da criança.

“O modelo padronizado da família dita nuclear


serve de base para se isolarem todos aqueles que
não estão em condições de se apoiar sobre uma
identificação garantidora do acesso ao mundo
simbólico. De uma certa maneira, essa abordagem
que restringe os distúrbios da aprendizagem à
clínica do Outro duplica o déficit, na medida em
que a falta da criança resulta de uma carência
simbólica da família.” (SANTIAGO, 2005, p. 25)

3 – A família na estrutura do sintoma da criança

Para Lacan, em Os complexos familiares na formação


do indivíduo (1938), a família humana desempenha um
papel primordial na transmissão da cultura. A família
prevalece na primeira educação, na repressão dos
instintos, na aquisição da língua chamada materna. Ela
preside os processos fundamentais do desenvolvimento
psíquico e transmite estruturas de comportamento e de
representação cujo jogo ultrapassa os limites da
consciência. Estabelece entre as gerações uma
continuidade psíquica cuja causalidade é de ordem
mental. Em toda família há proibições, leis, autoridade,
modo de parentesco, regras de herança e sucessão.
Lembra que esses modos de parentesco são
constituídos, menos conforme os laços naturais e de
consangüinidade, que a partir de ritos que legitimam e
criam os laços fictícios.

Para ele, a família moderna é resultado de uma


contração da instituição familiar que sofreu um
profundo remanejamento até sua forma atual, movido
principalmente pelas mudanças ocorridas na instituição
do casamento, ou melhor, no regime de alianças.
Lacan, tentando romper com uma leitura biológica da
família, lança mão do conceito de complexo. Para ele, o
complexo pertence ao domínio da cultura e ao domínio
do inconsciente.

De acordo com Miller (2005), Lacan nesse texto ainda


pré-psicanalítico, demonstra como não há instinto no
homem, valorizando o que chama sua dimensão de
cultura2. Tudo isso é o que nos permite relativizar as
diferentes formas familiares existentes, uma vez que
ao contrário do instinto que torna invariável a
existência de um ser, a cultura é o que torna infinita as
variações nos modos de organização e existência
humana. Isso significa que, se as relações familiares
não estão definidas pelo instinto, há lugar para a
invenção humana, para a invenção do simbólico,
precisamente porque nesse lugar nada está escrito.
Toma, portanto, o artifício, a invenção como aquilo que
regulamenta, regula a existência humana.
Portanto, para Lacan, a família não é dominada por
comportamentos biológicos, mas estruturada por
complexos simbólicos. Ele isola três complexos: o
complexo de desmame que organiza as relações entre
a mãe e a criança, o complexo de intrusão que
organiza a relação entre a mãe, a criança e o rival
imaginário, e o complexo de Édipo que organiza a
relação entre a mãe, a criança e a imago paterna,
introduzindo aí algo da dimensão de um obstáculo. O
complexo de Édipo é o herdeiro histórico da família
paternalista. É uma invenção da psicanálise que
coincide com o declínio da imago paterna. Entretanto,
Lacan nesse texto já não parece muito entusiasmado
com a função paterna e não é muito favorável à família
paternalista (NOMINÉ, 1997).

Um avanço no modo de pensar a família aparece em


Lacan no texto “Nota sobre a criança” (1969). Afirma-
se que:

“A função de resíduo exercida (e, ao mesmo


tempo, mantida) pela família conjugal na evolução
das sociedades destaca a irredutibilidade de uma
transmissão – que é de outra ordem que não a da
vida segundo as satisfações das necessidades,
mas é de uma constituição subjetiva, implicando a
relação com um desejo que não seja anônimo”
(LACAN, 2003, p. 369)

Alguns pontos merecem destaque, nessa afirmação.


Indicando o fracasso das utopias comunitárias que
supunham poder dispensar a família na constituição
psíquica, Lacan afirma que há uma função de resíduo
exercida pela família, a despeito de todas as
transformações em sua forma de organização, que
garante a ela uma transmissão irredutível. Essa
transmissão não é da ordem das necessidades e da
realidade e sim de uma dimensão simbólica, mais
precisamente, de um desejo que não seja anônimo. E
acrescenta a seguir:

“É por tal necessidade que se julgam as funções


da mãe e do pai. Da mãe, na medida em que seus
cuidados trazem a marca de um interesse
particularizado, nem que seja por intermédio de
suas próprias faltas. Do pai, na medida em que
seu nome é o vetor de uma encarnação da Lei no
desejo.” (LACAN, 2003, p. 369)

Desse modo, ele desloca a função da família de uma


transmissão da cultura para um dispositivo de
transmissão do desejo e de contenção do gozo, ou
seja, de transmissão da castração.

Portanto, a família, para a psicanálise de orientação


lacaniana, não está formada pelos pais e filhos
(relações de filiação), e sim pelo significante Nome-do-
Pai, que discutiremos melhor a seguir, e o Desejo da
Mãe. Para a psicanálise, a família se constitui como
uma estrutura simbólica, que exige a função pai, como
agente da castração, e de uma função mãe que, ao ter
um interesse particularizado pela criança, aliena-a ao
seu desejo. Ela constitui-se, assim, como o lugar do
Outro simbólico, que, ao presidir a existência do
sujeito, oferece a ele uma constelação de significantes
que lhe permite incluir-se na ordem simbólica. Além
disso, ela constitui-se também como o lugar do Outro
da Lei, ao instituir a proibição do incesto, exigindo uma
parcela de renúncia de satisfação que torna possível a
emergência do sujeito desejante (SANTIAGO, 1996).

Essa concepção rompe com uma leitura ambientalista


da família. Não se trata da família constituída de
pessoas, mas de uma estrutura simbólica, edípica,
constituída de funções. Assim, de acordo com essa
perspectiva, qualquer tentativa de explicação do
fracasso escolar pela via das noções de carência
afetiva, ausência dos pais, desestruturação da família,
tomadas em seu caráter ambiental, torna-se
insuficiente.

4. O que é um Pai?

“O que é um pai?” – é a pergunta que Freud e Lacan


dizem estar aberta para todo sujeito e que move a
produção de conhecimento em psicanálise.

Em Freud encontramos três grandes mitos para tratar a


questão do pai: Édipo, “Totem e tabu” e “Moisés e o
monoteísmo”, apontando como ele precisou abordar
essa questão a partir da vertente ficcional. É a partir da
trama edípica, que tem no centro a figura do pai, que
Freud introduz a dimensão do sujeito no mundo do
desejo. No Édipo, o pai é aquele que, ao mesmo
tempo, desencadeia a entrada nesse complexo e detém
a chave do seu declínio. É aquele que assinala a mãe
como objeto desejável, ao marcá-lo como proibido.
Para Freud, o pai é o agente da interdição do incesto e
conseqüentemente da castração, sendo essa lei do
incesto a condição do desejo. A lei paterna funda o
desejo sobre uma interdição, ou seja, sobre a castração
imposta pelo pai (OLIVEIRA, 2006).

Há no ensino de Lacan, por sua vez, um longo percurso


e desdobramentos da função paterna e do significante
Nome-do-Pai. Lacan, ao fazer sua releitura de Freud,
recupera esse centro paterno da teoria freudiana. Ele
retoma o questionamento freudiano sobre o pai, mas
não considera conclusiva sua formulação edípica,
buscando introduzir em seu ensino um mais-além do
Édipo.

Para Maleval (2002), o conceito de Nome-do-Pai


experimentará ao longo do ensino de Lacan muitas e
consideráveis modificações. Nos anos 30 e 40 Lacan
parte do conceito de “imago paterna” e concentra nela
a função de repressão e sublimação. Já em 1953, em O
mito individual do neurótico e “Função e campo da
palavra e da linguagem”, Lacan forja o conceito de
Nome-do-Pai e nesse momento supera a primazia das
imagos com a supremacia da linguagem. A função
paterna é reconsiderada e se revela a presença de um
significante que assegura a ordem do simbólico. Já
nesse momento, aponta como em nossa cultura,
marcada pelo declínio do pai, aquele que encarna essa
função demonstra não estar necessariamente à sua
altura, ou seja, o pai é sempre carente, discordante,
humilhado, não ideal. Quando Lacan descobre a
primazia do significante, busca separar de forma mais
clara a instância simbólica de seu suporte, ou seja, o
pai enquanto um significante, a função paterna, e o pai
da realidade. Lacan inscreve, portanto, desde o início
uma distância necessária entre a função paterna e o
Nome-do-Pai (MAZZUCA, 2005).

Em 1958, em seu Seminário 5 – As formações do


inconsciente, Lacan procede a uma formalização do
complexo de Édipo a partir da fórmula da metáfora
paterna. O pai é uma metáfora que transforma as
versões imaginárias do pai e da mãe em funções
simbólicas escritas, significantes operativos. Assim, o
pai é reduzido ao Nome-do-Pai (NP); e a mãe, reduzida
à função desejo, representada pelo significante do
Desejo da Mãe (DM). A função do pai é substituir o
desejo da mãe, sempre enigmático, introduzindo a
significação fálica como efeito de interpretação desse
desejo e produzindo o seu enlaçamento com a lei. O
pai, como um intérprete, dá um sentido a isso que a
princípio aparece para a criança como sem sentido,
enigmático, apaziguando sua angústia.

Essa formalização do complexo de Édipo, por meio da


metáfora, organiza a função paterna em três tempos,
que Lacan nomeou como os três tempos do Édipo.

No primeiro, o sujeito está identificado ao falo, objeto


do desejo da mãe. A instância paterna se introduz
como um lugar simbólico, porém, ainda velado. No
segundo tempo, o pai intervém como privador da mãe
face à criança, pelo reenvio da mãe a uma lei que não
é somente sua, ou seja, está em jogo um tribunal
superior, a Lei do Pai. Esse tempo tem como efeito a
desvinculação da criança de sua identificação ao falo,
ao introduzir a lei. Abala a posição de assujeitamento
da criança, desalojando-a da posição ideal, operando,
portanto, aí uma separação. Nesse tempo, trata-se de
uma relação não diretamente ao pai, mas o pai na
palavra da mãe. No terceiro tempo, trata-se de o pai
dar provas de ter o falo na condição de portador e
suporte da lei. Trata-se nesse tempo de um pai potente
do qual depende a saída do Édipo (LACAN, 1958).

Para Porge (1998), há uma diferença essencial, entre


Freud e Lacan, quanto à intervenção do pai no segundo
tempo do Édipo. Enquanto Freud fazia pesar a
interdição essencialmente sobre a criança, Lacan a faz
pesar sobre a mãe. O pai é aquele que proibirá à mãe
de reintegrar o seu produto.

Cabe ao pai nesse momento servir como barra ao gozo


do Outro, separando a criança do Outro materno. Para
Maleval (2002), a criança não dispõe de nenhum meio
para discernir o angustiante enigma do desejo da mãe,
até que o significante Nome-do-Pai lhe proporcione a
resposta fálica correspondente, assegurando a
significação. Como portador do falo, o pai priva a mãe
em um duplo sentido: ele interdita a criança em sua
busca incestuosa de se fazer ela mesma objeto do
desejo da mãe e priva a mãe do objeto fálico. Barra a
satisfação incestuosa entre a mãe e a criança e
introduz a dimensão do desejo, ao lançar um obstáculo
à tentativa de se fazer uma completude imaginária.

Porge (1998) centra sua análise sobre a função paterna


em dois eixos fundamentais: de um lado, o conceito de
Nome-do-Pai e, de outro, suas dimensões reais,
simbólicas e imaginárias. Lacan desenvolve as três
dimensões do pai em seu Seminário 4 – A relação de
objeto (1956-1957), diferenciando três dimensões da
função paterna. Para Lacan, o pai simbólico é um
significante em nenhuma parte representado. É o pai
morto, dessexualizado e por isso mesmo conservado
como um significante. O pai imaginário é o pai
assustador, todo-poderoso, o bom garantidor da ordem
do mundo, portador dos ideais e suporte das
identificações. O pai real, por sua vez, é o de mais
difícil apreensão. É aquele que intervém concretamente
como agente da castração, separando a criança do
logro fálico e imaginário com a mãe.

Essa discussão sobre as três dimensões do pai


antecede a formalização da metáfora paterna que
apresenta decisivamente o pai como Nome-do-Pai, ou
seja, em sua dimensão significante.

O pai, em sua dimensão significante, não se confunde


com uma leitura ambientalista, ancorada em um
registro biográfico da dimensão da realidade que
muitas vezes sustenta as pesquisas sobre a carência
paterna. Para Lacan, é fundamental que se diferencie o
pai da realidade e o pai enquanto função simbólica, ou
seja, o Nome-do-Pai.

“Falar de sua carência na família não é falar de


sua carência no complexo, é preciso introduzir
uma outra dimensão que não a dimensão realista,
definida pelo modo caracteriológico, biográfico ou
outro de sua presença na família” (LACAN, [1957-
1958], 1999, p. 174).

A construção do grafo do desejo (1958) marca um giro


decisivo quanto à concepção de Nome-do-Pai,
correlativo ao descobrimento da falta no campo do
Outro. A incompletude do Outro demonstra ser um fato
de estrutura e um não-saber irredutível se revela no
coração do discurso desse Outro. Há, portanto, uma
falta essencial no Outro, fazendo-o incompleto, que o
faz perder o lugar de garantidor da verdade. Assim, o
Nome-do-Pai deixa de ser esse significante capaz de
interpretar todo o desejo da mãe e de barrar a
satisfação incestuosa entre ela e a criança. Está em
jogo, portanto, uma falha, uma impossibilidade
estrutural dessa função (MALEVAL, 2002).

Portanto, um pai fracassa não porque ele é


desvalorizado do ponto de vista dos ideais sociais, mas
porque essa carência está inscrita na estrutura do ser
falante. Qualquer tentativa de obturar essa falha
impede o sujeito do acesso ao saber. A incompletude
do Outro, sua inconsistência, rompe com toda
possibilidade de considerar o pai como mestre. Trata-
se, então, de um pai castrado. É portanto dessa falha
estrutural do pai que cada sujeito, de modo singular,
inventa algo que “faz as vezes” disso que pode
organizar a cadeia significante e barrar a satisfação
incestuosa, ao unir o desejo à lei. É assim que Lacan dá
um passo decisivo em seu Seminário 17 – O avesso da
psicanálise (1969-1970), em sua tarefa de ir mais além
do mito, mais além do Édipo freudiano. Lacan, nesse
momento, afirma que a castração não procede do pai,
e sim da linguagem que traduz a perda de satisfação
(gozo) que afeta o sujeito. Cai, portanto, o império do
pai e se introduz sua dimensão de semblante (MILLER,
2005), como aquilo que cada sujeito inventa para
barrar o gozo e fazer surgir a dimensão do desejo.

De acordo com Nominé (1997), outro momento


decisivo da teorização sobre o pai em Lacan surge em
R.S.I., seminário de 1975. Já não se trata mais do pai
enquanto representante simbólico do Desejo da Mãe.
Aquele pai simbólico nunca é encontrado e o pai é
sempre insuficiente com respeito àquela função
sublime. Trata-se do pai que só tem direito ao respeito
e ao amor se se atreve a por em jogo seu desejo
perverso no encontro com uma mulher fazendo dela
causa de seu desejo. Portanto, o pai só é conseqüência
da orientação do desejo de um homem por uma
mulher. Cabe ao pai então, fazer de uma mãe uma
mulher e, desse modo, impedir que a criança fique
numa posição na qual poderia entregar a esse Outro
tudo o que lhe falta. Ele impede que a criança tente
satisfazer esse Outro materno saturando seu desejo. A
mãe, por sua vez, ao aceitar esse lugar de mulher que
orienta o desejo do pai, se enfrenta com sua própria
castração e não se torna toda mãe. É essa versão do
pai que assegura a divisão materna, suporta uma
estrutura de transmissão do desejo e barra o gozo.
Nesse momento do ensino de Lacan, ele opera uma
disjunção radical entre, por um lado, a função paterna
que une um desejo à Lei, e, por outro, a função de
genitor, provedor e educador. Desse modo, mesmo um
pai desvalorizado socialmente, pouco ideal, como nas
situações clínicas que discutiremos a seguir, pode
operar enquanto uma função.

Além disso, de acordo com Lacadée (1999), em seu


último ensino, Lacan passa a tomar o pai não mais a
partir da palavra, mas a partir de sua presença, de sua
causa sexual. Esse pai, portanto, longe de transmitir
um ideal, transmite seu modo de se arranjar com o
desejo e o gozo. Ele deixa uma marca pela sua
presença, que Lacan situou do lado dos pecados do pai,
de suas paixões, de sua falta. Funda o respeito e o
amor ao pai não mais sobre um pai ideal, e sim sobre
um pai marcado por sua causa sexual.

Se partirmos do pressuposto de que em toda


transmissão há um impossível, uma perda, podemos
concluir que, na transmissão paterna, esse pai marcado
pelo desejo e pelo gozo transmite seu ponto de rateio,
de falha, onde ele esbarra. Ele pode apresentar várias
dificuldades: em fazer de uma mulher causa de seu
desejo, em barrar o gozo do Outro, em regular seu
próprio gozo etc. O pai, então, como Outro barrado,
transmite sua própria castração, sua insuficiência e sua
miséria. Em sua função está inscrito estruturalmente
um fracasso, a despeito de sua condição social ou
modo de presença na vida da criança.

5. A clínica com crianças com dificuldade


escolares: a invenção de um pai passível de uso

O que as crianças com dificuldades escolares nos


ensinam sobre as relações entre o fracasso escolar, a
família e o pai?

Primeiro, é preciso dizer quais os balizamentos éticos


que orientam esses tratamentos a fim de permitir o
entendimento de sua condução. O responsável pela
criança, e não necessariamente os pais biológicos, são
convidados para uma primeira entrevista. Nessa
entrevista investigamos um pouco melhor a queixa e o
que chamamos em psicanálise de pré-história do
sujeito: qual o lugar que ele ocupa no desejo e no
discurso do Outro. Isso é importante porque partimos
da hipótese de que a criança pode estar mais ou menos
alienada a esse lugar a ela destinado e respondendo
com seu sintoma a esse lugar. Cabe aqui um breve
comentário sobre como entendemos o sintoma da
criança. Para a psicanálise de orientação lacaniana, o
sintoma da criança sempre se relaciona com a família,
trata-se, por um lado, do modo como ela se inscreve
nesse discurso familiar e, por outro, do modo de fazer
existir uma família. Os sintomas neuróticos são
conseqüências do encontro com a falha do complexo de
Édipo que ordena a estrutura da família. O sintoma,
então, se apresenta como uma resposta à falha nessa
estrutura. É isso que Lacan afirma em “Nota sobre a
criança”, que o sintoma da criança responde à verdade
do par parental, do par familiar. Responde ao que
falha, ao que há de sintomático nessa estrutura. A
transmissão simbólica operada pela família, implica a
transmissão da falta e da falha, daquilo que não vai
bem nessa estrutura. É por isso que tanto as novas
como as antigas formas de família sempre produzem
sintomas – é um irredutível - tomados no sentido de
uma resposta, uma invenção, uma construção do
sujeito para recobrir a falha e reconstruir essa
estrutura.

Retomando o atendimento, esse responsável é


convidado a novas entrevistas quantas vezes forem
necessárias para a condução do tratamento e quantas
vezes ele demandar ser escutado. O mais importante é
que ele seja escutado como um sujeito que pode
enfrentar impasses em sua condição de mãe, pai ou
responsável por uma criança. Esse impasse diz respeito
certamente à sua história subjetiva e que precisa ser
escutada a fim de lhe permitir uma elaboração.
Portanto, há uma oferta da palavra para que esse
sujeito possa elaborar e retificar sua posição diante
dessa criança.

Os atendimentos com as crianças ocorrem


simultaneamente a essas entrevistas com seus
responsáveis. Nesses atendimentos as crianças são
convidadas a falar de tudo aquilo que as incomoda e
não somente suas dificuldades escolares. É inevitável
nesse momento que ela fale de seus impasses com o
Outro, seja ele familiar ou escolar. Ela é convidada a
falar para que possa não se colocar como vítima ou
objeto desse Outro, mas para se responsabilizar pela
parte que lhe cabe nesses impasses. Portanto, com a
criança que fracassa na escola não se conduz o
tratamento de modo a desresponsabilizá-la por seu
fracasso e culpabilizar o Outro escolar ou familiar, mas
para que ela torne-se responsável pelo seu dizer e seu
ato. O efeito dessa oferta da palavra é quase imediato:
uma mudança significativa na aprendizagem escolar
ocorre quando elas começam a se interessar e falar
sobre os impasses com esse Outro, principalmente o
pai. Ao abrir uma questão sobre isso ou sobre os atos
do Outro, construindo uma versão do pai
particularizada, abre-se para esses sujeitos a via do
saber inconsciente com importantes conseqüências
para o conhecimento escolar

Essa oferta da palavra permite a essas crianças


desconstruírem a família ideal almejada por elas,
incluindo aí o pai, e reconstruírem uma família e um pai
possíveis, que permita a ela se organizar e se localizar
como sujeito no mundo. O tratamento clínico permite a
esse sujeito abrir uma questão sobre o Outro, sobre o
desejo do Outro, que retifica sua posição subjetiva
diante do saber inconsciente dando-lhe acesso ao saber
escolar.

O que percebemos, portanto, é que em alguns casos, o


fracasso escolar servia ao sujeito, como modo de
recobrir, nada querer saber da falha estrutural do
Outro, ou seja, sua impossibilidade de
assegurar/garantir a introdução da lei. Serve como
uma estratégia de dar consistência ao Outro, ao não
querer saber sobre o seu furo estrutural.

Essas crianças nos ensinam que não é possível


dispensar a família como estrutura de organização
subjetiva, mas também não se trata de sustentar uma
família ideal, sem furos e sem problemas.

E como tudo isso se relaciona com o saber e o fracasso


escolar?

Para a psicanálise, o que move a tarefa de aprender é o


desejo de saber, desejo que surge a partir do momento
que o sujeito se depara com essa falta de saber no
Outro, revelada diante da constatação de sua
castração. Para a criança está em jogo o encontro com
esse desejo enigmático da mãe, revelado pela sua
presença/ausência, e com a impossibilidade de
encontrar alguma reposta absoluta para tal enigma.
Além disso, a criança se percebe não sendo esse objeto
capaz de obturar esse desejo. Inscreve-se, portanto,
uma falta irredutível no campo do Outro, que levará o
sujeito a adotar posições subjetivas, construir
respostas distintas (LACADÉE, 1999). O não-querer saber
dessa falta irredutível no campo do Outro é o que, em
alguns casos, como hipótese, impede o acesso ao
saber.

6. Conclusão

Essa orientação psicanalítica diferencia-se das


concepções de caráter universalizante, tal como a que
supõe o fracasso escolar como um transtorno afetivo e
familiar, ao levar em consideração a singularidade de
cada sujeito, a particularidade de cada caso. Propõe
também uma outra leitura para o fracasso escolar ou
para as dificuldades de aprendizagem que se distancia
de uma perspectiva deficitária que pressupõe sempre
uma deficiência ou um déficit na origem das
dificuldades de aprendizagem. Assim, ao buscar
diferenciar-se dessa leitura deficitária, supõe que esse
fracasso na escola, impasse na relação com o saber,
desempenha uma função na vida do sujeito e na sua
relação com o Outro. Dessa forma, longe de querer
desconsiderar as condições históricas, sociais, políticas
e institucionais de produção desse fracasso (PATTO,
1990), busca-se recuperar a participação do sujeito
nessa produção, a fim de tornar possível para ele
responsabilizar-se por isso e retificar sua posição
subjetiva.

Além disso, essa leitura propõe uma inversão lógica no


debate que supõe o fracasso escolar como fruto dos
conflitos familiares e carências paternas. Assim, como
hipótese, a partir da psicanálise de orientação
lacaniana, o fracasso na escola, tomado como impasse
na relação com o saber, não seria causado pelo
fracasso da família tradicional, fundada na autoridade
paterna (ROUDINESCO, 2003). Ao contrário, o problema
estaria localizado em tentar sustentar uma família
tradicional e idealizada a despeito de todas as
transformações sociais e culturais sofridas por essa
família, onde o reinado do pai perdeu seu lugar.
Portanto, o fracasso estaria relacionado não às
carências do pai, e sim à posição subjetiva do sujeito
em não querer saber da divisão estrutural (a castração)
do pai. Esse saber torna impossível sustentar o império
paterno (TORT, 2005).

A psicanálise de orientação lacaniana nos convida então


a perceber que todo sujeito surge de um mal-entendido
estrutural que revela a impossibilidade da relação entre
os sexos e que é esse mal-entendido que é transmitido
pelas famílias.

Notas

1. Trata-se da Clínica de Psicologia do Centro Universitário


Newton Paiva, situada no bairro Nova Granada, em Belo
Horizonte, próxima de duas Escolas – uma Municipal e outra
Estadual –, onde estudam crianças moradoras do
Aglomerado Morro das Pedras.

2. Para Miller, Lacan utiliza o termo cultura por ainda lhe


faltar o conceito de simbólico.

Texto recebido em: 10/01/2007.


Aprovado em: 28/02/2007.
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