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Em fins do século XIX e início do XX, podemos encontrar uma intensa atividade
musical na cidade do Rio de Janeiro. Ela se revela em parte por um intenso mercado
editorial, (cujo principal expoente é o livreiro-editor Pedro da Silva Quaresma e a sua
“Livraria do Povo”) que encontrava uma demanda popular para a reprodução de
canções, trovas, enfim, letras que eram cantadas e muito difundidas nos saraus, nas
residências e nos teatros de revista também.1 Títulos como “O cantor de modinhas”,
“O trovador brasileiro”, “O trovador da malandragem”, “Mistérios do violão”
acompanhados de extensos subtítulos explicativos da variedade de canções que
podiam ser encontradas como seu conteúdo são exemplos desta atividade editorial
que primava por seu baixo custo de produção, com vistas a atender, como diziam,
todo “o povo”. O que se pretendia era na verdade ampliar a camada de consumidores
e havia espaço para isso na cidade do Rio de Janeiro.
O comércio de partituras era um outro aspecto deste desenvolvimento editorial,
que fazia com que as casas de música contratassem pessoas que executassem as
peças na própria loja como forma de propaganda:
1
Ver Alessandra El Far. Páginas de sensação. “Romances para o povo”, pornografia e mercado editorial no Rio de
Janeiro de 1870 a 1924. Tese de doutorado apresentada ao Depto. de Antropologia Social, USP, 2002. Em minha
pesquisa, encontrei alguns exemplares da Livraria do Povo, porém de outras livrarias, menos populares, também. A
obra mais antiga data de 1878, editada pela Garnier.
2
Orestes Barbosa, em O Samba, Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 25, referindo-se ao final do século XIX.
Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH/SP-
UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.
2
E mais. João do Rio diz que esses indivíduos, ao contrário do que poderia
sugerir um ideal romântico, sobreviviam muito bem com suas atividades musicais:
3
João do Rio. A Alma encantadora das ruas. São Paulo: Cia. das Letras, 1999.
4
José Murilo de Carvalho. “O Rio de Janeiro e a República”, em Revista Brasileira de História, ANPUH, Editora Marco
Zero, 1985. De 1880 a 1890 a população do Rio de Janeiro cresceu 4,54%, o que perfazia um total de 522 mil
habitantes. Isto, em comparação a 1872, isto é, em torno de dez anos, significa o dobro de pessoas habitando a
cidade.
5
Conforme José Murilo de Carvalho, op. cit., em 1891, entraram 166.321 imigrantes, tendo saído para os outros
estados pouco mais de 70 mil. 26% da população carioca provinha de outras regiões do Brasil.
6
João do Rio. Op. cit., p. 55.
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UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.
3
7
João do Rio. Op. cit., p. 56.
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4
8
Enciclopédia de Música Brasileira: popular, erudita e folclórica. São Paulo: Art Editora: Publifolha, 1998, 2ª edição.
9
Num banco de dados preliminar, estão relacionadas informações sobre autores e obras de dois cancioneiros
consultados: Cantor de Modinhas Brazileiras. Coleção completa de lindas modinhas, lundus, recitativos, etc, etc. 9ª
edição. Muito aumentada. RJ-SP, Laemmert e C. Rua do Ouvidor, 66. 1895, e Cantares Brasileiros. Cancioneiro
fluminense no 4º centenário. Rio de Janeiro, Jacintho Ribeiro dos Santos Editor, 1900, 2 volumes, vol. 1 parte poética e
vol. 2 parte musical. Livraria Cruz Coutinho, organizado por Mello Moraes Filho. Além destes dois cancioneiros,
constam no banco informações sobre obras e intérpretes do primeiro catálogo da Casa Edison, de 1902. Ainda há mais
obras a serem contempladas.
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5
10
Ver Martha Abreu. O império do Divino. Festas religiosas e Cultura Popular no Rio de Janeiro, 1890-1900, Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
11
Ver introdução de Cantares Brasileiros, op. cit., por Mello Moraes Filho.
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Ver nota de rodapé n. 9.
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"(...) Vem ó fada gentil dos meus sonhos / Vem, ó linda sorrir-te pra mim /
Vem dourar os meus dias tristonhos / Vem amar-me, aditar-me, vem,
sim".14
"Se vejo moça corada / Fico de amor abrasado; / Moça pálida e romântica /
Põe-me todo derrotado.” / "A moreninha me encanta (...) me fere, me
abrasa e mata". (...) "Eu só me orgulho de amar / A toda e qualquer
beleza".16
13
Dentre outros temas encontrados neste banco de dados preliminar que construí, podemos citar: a saudade, ou
saudade da pátria, a morte, os homens, as mulheres, descrições de vida como, por exemplo: a lavadeira, o soldado, o
marinheiro, o artista, o escravo, não raro enfatizando o sofrimento deles.
14
Eis uma estrofe significativa das modinhas. Uma espécie de refrão, pois a estrofe se repete algumas vezes, o que
sugere o caráter musical da poesia. “Mal te vi”, em Cantor de Modinhas Brazileiras, op. cit. Incluso na “Parte I:
Saudades e Queixumes”. De autoria não identificada.
15
Alguns títulos ilustradores: “Espanta o grande progresso”, “Estamos no século das luzes”, em Cantor de Modinhas.
Op. cit., “O imposto do vintém”, “O aumento das passagens”, em Cantares Brasileiros, op. cit., exemplos de crítica
social, e “Capenga não forma” e “Pai avô”, em Cantor de Modinhas, op. cit., como exemplo de pilhéria sobre tipos
sociais desfavorecidos: negro e aleijado.
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Versos de “Dizem que sou borboleta”, em Cantares Brasileiros, op. cit. Descrito como “lundu baiano”. Autoria não
identificada.
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Um outro lundu fala de ciúmes e é uma versão mais leve daquele que fala do
amor masoquista, inclusive parece se utilizar da mesma música. Isto é, trata-se então
de duas versões para um mesmo suporte musical, fato que muitas vezes ocorria neste
cancioneiro de final de século XIX:
"(...) Dá pancadinhas na gente / É tão bom, não dóe, nem nada" (...) "Gosto
dela só por isso, / Que a pancada tem feitiço” (...) / "Se falo noutras
pequenas / Fica toda arrepiada..." / (...) "Seu ciúme tem feitiço".20
Há 2 lundus que falam das mulheres, advertindo que é preciso ter cautela com
elas.21 Um que fala de amor e diferenças sociais (ela inventou que era rica, mas é
17
Versos de “Laura”, letra e música de Bruno Seabra, em Cantor de Modinhas Brazileiras, op. cit.
18
“É tão bom, não dói, nem nada”, em Cantor de Modinhas Brasileiras, op. cit.
19
“O cafuné”, letra de Eduardo Villas Boas e música de João Luiz de Almeida Cunha, em O Cantor de Modinhas
Brazileiras, op. cit.
20
“Minha doce iaiazinha”, em O Cantor de Modinhas Brazileiras, op. cit. Autoria não identificada.
21
“Iaiazinha você mesma”, em O Cantor de Modinhas Brazileiras, op. cit. Consta da “Parte III: lundus e fados”, de
autoria não identificada. E “É tarde”, em Cantares Brasileiros, op. cit. Letra de A. C. Oliveira Fernandes e música de J.
N. Monteiro.
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pobre. Diz que deve até ao “Chico da venda”).22 Um descreve as belezas físicas da
sinhazinha.23 Um fala sobre os homens que enganam as moças, que só querem
pagodear.24 Por aí se vê que o tema do amor é bem diversificado. Há ainda 8 lundus
que falam de amor e os protagonistas são (ou parecem ser) negros ou mulatos.25 Há
10 lundus que fazem exaltação à mulata ou morena.26 Enfim, são vários exemplos de
como um universo diferente ganhava espaço na circulação de bens culturais. A
linguagem dúbia, a irreverência, as pilhérias são características do que se chamava de
“lundu” e são uma linguagem em comum destes autores mencionados, à exceção de
Catulo, como veremos. Para além da reprodução de um universo modinheiro donde se
nota pouca diferenciação, do qual esses autores são também representantes (há
inúmeros exemplos de modinhas “românticas” tanto de Laurindo como de Xisto, como
de Dudu das Neves), Laurindo Rabelo se destaca pelos lundus que se apresentam
como poesias de duplo sentido (por exemplo: A romã, O banqueiro).27 Xisto e Dudu
se destacam pelos lundus que se apresentam como pilhérias e pela representação de
um universo cultural dos negros.28 Mas sobretudo era uma linguagem de pilhéria.
Mas ao mesmo tempo que se desenvolvia a popularização do campo cultural
com a participação de artistas, poetas, músicos que expunham uma ampliação de
temas significando também uma reconfiguração de linguagem (as revistas teatrais, as
canções jocosas, as críticas sociais, a representação dos negros), havia quem não
estava satisfeito com este movimento. Como um artista exemplar desta preocupação
pelos caminhos da expressão lítero-musical nacional, estava Catulo da Paixão
22
“Pau de laranjeira”, do repertório de Xisto Bahia, de autoria não identificada, em Cantares Brasileiros, op. cit.
23
“O todo de sinhazinha”. Consta da “Parte III: lundus e fados” em O Cantor de Modinhas Brazileiras, op. cit. Autoria
não identificada.
24
“Estes mocinhos d’agora”, em Cantares Brasileiros, op. cit. Autoria não identificada.
25
“O pica-pau”, “O mulato”, “O casamento”, “Dizem que sou borboleta”, “A preta mina”, todos em Cantares Brasileiros,
op. cit. Autoria não identificada, exceto “A preta mina”, atribuída à Xisto Bahia. Em O Cantor de Modinhas Brazileiras,
op. cit., temos: “O pica-pau atrevido” e “Dizem que sou borboleta”, sem autoria identificada. E ainda, “Isto é bom”, do
catálogo da Casa Edison, 1902, gravação de número 1, interpretada pelo cançonetista Baiano, um dos primeiros
contratados desta gravadora.
26
Em Cantares Brasileiros, op. cit.: “Mulatinha do caroço”, “Do Brasil a mulatinha”, ambas sem identificação de autoria
e “As clarinhas e as moreninhas”, com música de Joaquim Antonio da Silva Calado. E em O Cantor de Modinhas
Brazileiras, op. cit.: “Vou casar-me, dou-lhe parte”, “Teu corpinho brasileiro”, “Sinhazinha eu ando torto”, “Quando vejo
da mulata”, “Mulatinha do caroço”, “Do Brasil a mulatinha” e “A mulatinha de cá”. Percebe-se que muitas letras se
repetem, o que reforça o argumento de que havia uma grande circulação destas obras.
27
“A romã”, letra de Laurindo Rabelo e música de João Luiz de Almeida Cunha em Cantares Brasileiros, op. cit. “O
banqueiro”, dos mesmos autores no mesmo cancioneiro.
28
A gravação de “Isto é bom”, para a Casa Edison (c.1902), interpretada por Dudu das Neves, é um exemplo. Ele faz
referência à Xisto Bahia, dando a entender que o lundu era um grande sucesso deste último. Também aparece em
Cantares Brasileiros, op. cit., sem autoria identificada. Os versos de “Isto é bom” são variados mas também se
remetem ao amor e às mulatas.
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“(...) A dor da paixão, não tem explicação! / Como definir, o que só sei
sentir? / É mister sofrer para saber! / O que no peito o coração, não quer
dizer / Pergunte ao luar travesso e tão taful (...)”.32
29
Anacleto de Medeiros, saxofonista e regente, Irineu de Almeida, oficleidista muito elogiado por Catulo, Quincas
Laranjeira, violonista, Luis de Souza, pistonista, Cadete, cantor, dentre muitos outros.
30
Ver prefácio em Modinhas. Catulo da Paixão Cearense. Rio de Janeiro: Livraria Império, 1943. Seleção organizada,
revista, prefaciada e anotada por Guimarães Martins de acordo e com uma introdução do autor, e uma apreciação de
Carlos Maul. Guimarães Martins, como organizador desta obra, afirma que as composições de Catulo neste volume
vão de 1880 a 1910, correspondendo à primeira fase do autor.
31
Ver introdução de Catulo em Modinhas. Op. cit.
32
“Ontem ao luar”, em Modinhas. Op. cit. Nas notas deste volume há por várias vezes a observação de que se o cantor
não quiser cantar "todas estas estrofes arrebatadoras, escolherá as que mais lhe agradarem". O que ajuda a confirmar
o argumento de que Catulo se preocupava com a elevação da linguagem dos poemas.
33
Catulo nasceu no Maranhão, em 31/01/1866. Sua família mudou-se para o Rio de Janeiro em 1880. Seu pai
trabalhava como relojoeiro na Rua São Clemente, onde moravam. Trabalhou no cais do porto como contínuo e
estivador. Ver Enciclopédia de Música Brasileira, op. cit.
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10
“Com Catulo agora, é só poema de légua e meia, porque, com eles talvez
ingresse no Petit Trianon, pelos fundos...”.34
34
Na Roda de Samba, Francisco Guimarães “Vagalume”, 1933, p. 85.
35
Todas estas obras se encontram em Modinhas. Op. cit.
36
A partir dos anos de 1920, o principal representante de um discurso que privilegia a questão da democracia racial na
formação do discurso musical, isto é, a contribuição equânime das três raças (o índio, o negro e o branco europeu) na
construção de uma música de caráter nacional, é Mário de Andrade (embora Mário de Andrade enfatize o papel do
negro). Acompanhado de diversos pares, estudiosos da música brasileira, com tradições que remetem aos folcloristas
do final do século XIX, este discurso será hegemônico até mesmo em final do século XX, transbordando os limites da
esfera acadêmica. É esta a referência crítica que pontuamos com a expressão “convergência democrática”.
Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH/SP-
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