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Entre modinhas e lundus: música no Rio de Janeiro, 1878-1910

Uliana Dias Campos Ferlim


UNICAMP

Em fins do século XIX e início do XX, podemos encontrar uma intensa atividade
musical na cidade do Rio de Janeiro. Ela se revela em parte por um intenso mercado
editorial, (cujo principal expoente é o livreiro-editor Pedro da Silva Quaresma e a sua
“Livraria do Povo”) que encontrava uma demanda popular para a reprodução de
canções, trovas, enfim, letras que eram cantadas e muito difundidas nos saraus, nas
residências e nos teatros de revista também.1 Títulos como “O cantor de modinhas”,
“O trovador brasileiro”, “O trovador da malandragem”, “Mistérios do violão”
acompanhados de extensos subtítulos explicativos da variedade de canções que
podiam ser encontradas como seu conteúdo são exemplos desta atividade editorial
que primava por seu baixo custo de produção, com vistas a atender, como diziam,
todo “o povo”. O que se pretendia era na verdade ampliar a camada de consumidores
e havia espaço para isso na cidade do Rio de Janeiro.
O comércio de partituras era um outro aspecto deste desenvolvimento editorial,
que fazia com que as casas de música contratassem pessoas que executassem as
peças na própria loja como forma de propaganda:

“Aurélio Cavalcante era um mulato alto, de fraque, de rosto longo, de


dentes longos e costeletas longas. Tocava piano na porta da casa de
música da rua Gonçalves Dias ‘Ao clarim da vitória’, e ali mesmo vendia
suas valsas, aceitando o chamado para os bailes onde só o piano tinha
aceitação. Foi um astro no seu tempo”.2

Atentando para as características físicas de Aurélio Cavalcante, um artista que


não era dos mais famosos conforme Orestes Barbosa sugere em seu livro O Samba,
podemos constatar que a música era também atividade de pessoas de classe humilde,
que se valiam dela como seu “ganha-pão”. João do Rio, em um artigo publicado na

1
Ver Alessandra El Far. Páginas de sensação. “Romances para o povo”, pornografia e mercado editorial no Rio de
Janeiro de 1870 a 1924. Tese de doutorado apresentada ao Depto. de Antropologia Social, USP, 2002. Em minha
pesquisa, encontrei alguns exemplares da Livraria do Povo, porém de outras livrarias, menos populares, também. A
obra mais antiga data de 1878, editada pela Garnier.
2
Orestes Barbosa, em O Samba, Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 25, referindo-se ao final do século XIX.

Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH/SP-
UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.
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Gazeta de Notícias em 03/02/1906 chamado “Músicos Ambulantes”,3 nos dá um


retrato do quão presente era a música na vida dos cariocas populares neste início de
século. Cita a ameaça “tecnológica” dos “grafofones” (sic) que fizeram recuar por um
tempo a atividade nas tascas, baiúcas (espécies de tabernas), nos cafés e hotéis
baratos.
Essa crescente atividade cultural corresponde a várias transformações
econômicas, sociais e políticas que se davam no Rio de Janeiro por conta da
instituição da república e do movimento da abolição da escravidão. A capital federal,
com um status de centralidade nas decisões políticas e econômicas, crescia a passos
assustadores,4 recebia uma leva significativa de imigrantes5 - apenas 45% da
população carioca, em 1890, eram nascidos na cidade - o que incluía grandes
contingentes de fluminenses e baianos. Neste contexto, o desemprego era um
problema dos mais graves neste momento de grande crescimento populacional. No
campo da atividade musical podemos observar uma mostra deste intercâmbio de
pessoas de diversas origens e sua luta pela sobrevivência. Mais uma vez é João do
Rio que nos ajuda a fazê-lo. Novamente na crônica “Músicos Ambulantes”, atentando
para como o Rio de Janeiro era uma cidade extremamente musical, ele cita: a banda
alemã, com seus “instrumentos”, “estantes” e “desafinações”, o “homem dos sete
instrumentos” e vários músicos como, por exemplo:

“o Saldanha, um velho português baixo, gordo e cego, que toca viola há


mais de vinte anos com um negro, também cego, da Ilha da Madeira,
flautista emérito. Esses dois cegos eram acompanhados por um guitarrista
escovado, que tocava, fazia a cobrança e ainda por cima era poeta,
compunha as cançonetas”. 6

E mais. João do Rio diz que esses indivíduos, ao contrário do que poderia
sugerir um ideal romântico, sobreviviam muito bem com suas atividades musicais:

3
João do Rio. A Alma encantadora das ruas. São Paulo: Cia. das Letras, 1999.
4
José Murilo de Carvalho. “O Rio de Janeiro e a República”, em Revista Brasileira de História, ANPUH, Editora Marco
Zero, 1985. De 1880 a 1890 a população do Rio de Janeiro cresceu 4,54%, o que perfazia um total de 522 mil
habitantes. Isto, em comparação a 1872, isto é, em torno de dez anos, significa o dobro de pessoas habitando a
cidade.
5
Conforme José Murilo de Carvalho, op. cit., em 1891, entraram 166.321 imigrantes, tendo saído para os outros
estados pouco mais de 70 mil. 26% da população carioca provinha de outras regiões do Brasil.
6
João do Rio. Op. cit., p. 55.

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“Pois todo o pessoal enriqueceu. O negro casou em Portugal, o Zástrás [o


guitarrista] conseguiu tudo com jeito, e eu fui encontrar o Saldanha
aposentado, considerado como um velho artista diante de um copo de
cerveja”.
“— Fizemos várias tournées, disse-me ele, percorremos o Brasil, do Rio
Grande ao Pará. Ajuntamos alguma coisa...”
“E não se trata de um caso esporádico”.7

Desta forma podemos observar que a música adentra numa esfera


mercadológica em crescente desenvolvimento no Rio de Janeiro que tornava-se,
também, espaço de manifestação e subsistência para um grande contingente de
pessoas pertencentes a camadas mais humildes da população. E já no século XX, em
1902, nos primórdios da instalação de uma casa de gravação fonográfica, a Casa
Edison, primeira gravadora do país, de propriedade do empresário Frederico Figner,
podemos encontrar uma efetiva ampliação dessa esfera.
Dentro desse contexto de intenso desenvolvimento e transformações sócio-
culturais por que passava a cidade do Rio de Janeiro na virada do século XIX para o
XX, escolhemos como objeto de estudo as obras lítero-musicais e a movimentação de
seus autores. Que mudanças de linguagens podem ser observadas em conseqüência
ou consonância a essas transformações sociais no Rio de Janeiro em fins de século
XIX? Esta é a pergunta que este artigo pretenderá, senão responder ao menos
desanuviar. Avaliando, ainda que preliminarmente um mercado editorial, no que diz
respeito às edições de um cancioneiro nacional, e um mercado musical, com relação à
produção de fonogramas pela primeira gravadora do país - empreendimento este
ampliará a reprodução das várias obras que até então eram apresentadas apenas em
meio literário (através daquele mercado editorial) - pretendemos demonstrar a atuação
de alguns sujeitos e sua inserção num ampliado campo de atividade cultural.
Parte da resposta pode ser vislumbrada pelo que já foi exposto. Há uma
mudança nos meios de circulação das obras, nos sujeitos-autores e um novo alcance
desta produção por conta desta ampliação da esfera cultural. Se o português
Saldanha, o negro da Ilha da Madeira e o guitarrista “Zás-trás” encontravam espaços
nas ruas, bares e hotéis de que nos fala João do Rio, havia também Laurindo Rabelo,
Eduardo das Neves, Catulo da Paixão Cearense, e, cronologicamente, no meio deles,
Xisto Bahia, autores com trânsito tanto em festas mais “nobres” como em festas mais
populares, e que despontavam seja no cancioneiro do mercado editorial ou nas

7
João do Rio. Op. cit., p. 56.

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gravações da Casa Edison, prenunciando o desenvolvimento da profissionalização de


artistas poetas e músicos.
Xisto de Paula Bahia, nascido em Salvador, em 06/08/1841, era compositor,
ator e considerado também um grande cantor de modinhas e lundus, gêneros muito
em voga na segunda metade do XIX. Filho de militar, iniciou sua carreira musical como
comediante amador e seresteiro. Aos 17 anos já se apresentava com suas primeiras
modinhas. Em 1858, com a morte do pai, depois de tentar trabalhar no comércio,
decidiu-se pela carreira teatral. Participou de diversas companhias tendo viajado pelas
principais cidades da província. A partir de 1864, contratado pelo empresário Couto
Rocha, excursionou pelo norte do país. Apenas em 1875 estreou no Rio de Janeiro e
foi daí que teve atuação marcante em diversas comédias, inclusive na revista de Artur
Azevedo, “Uma véspera de reis”. Conforme informação da Enciclopédia de Música
Brasileira,8 interpretando suas modinhas e lundus, Xisto teria rivalizado, no que se
refere ao sucesso com o público, com Laurindo Rabelo, outro poeta e músico também
famoso, nascido no Rio de Janeiro, conhecido como “Lagartixa”. Porém, conforme a
própria Enciclopédia de Música Brasileira, o poeta e violonista Laurindo Rabelo teria
morrido em 1864, data portanto onze anos anterior à chegada de Xisto no Rio de
Janeiro. Como explicar a “rivalidade” entre Xisto e Laurindo? Laurindo tinha um
companheiro de autoria muito freqüente, João Luiz de Almeida Cunha, conforme a
mesma Enciclopédia, compositor baiano, assim como Xisto. É provável que este seja
o principal responsável pela divulgação da obra de Laurindo, até porque eram dele
(Cunha) também. O que importa notar é como Laurindo, mesmo depois de
prematuramente falecido (Almeida Cunha comporia uma homenagem ao amigo),
ainda era executado. Pode ser dessa maneira que encontremos a disputa entre Xisto
e Laurindo, isto é, através de Almeida Cunha, o principal divulgador deste último.
Como evidência em reforço desta hipótese posso mencionar as 27 ocorrências de
letras de Laurindo - não há registro de músicas dele - das quais 16 são em parceria de
Almeida Cunha, número considerável e longe de rivalizar com qualquer outro autor,
que foram publicadas em pelo menos dois cancioneiros consultados, um de 1895 e
outro de 1900,9 portanto já em final de século, mais de 30 anos após sua morte. E

8
Enciclopédia de Música Brasileira: popular, erudita e folclórica. São Paulo: Art Editora: Publifolha, 1998, 2ª edição.
9
Num banco de dados preliminar, estão relacionadas informações sobre autores e obras de dois cancioneiros
consultados: Cantor de Modinhas Brazileiras. Coleção completa de lindas modinhas, lundus, recitativos, etc, etc. 9ª
edição. Muito aumentada. RJ-SP, Laemmert e C. Rua do Ouvidor, 66. 1895, e Cantares Brasileiros. Cancioneiro
fluminense no 4º centenário. Rio de Janeiro, Jacintho Ribeiro dos Santos Editor, 1900, 2 volumes, vol. 1 parte poética e
vol. 2 parte musical. Livraria Cruz Coutinho, organizado por Mello Moraes Filho. Além destes dois cancioneiros,
constam no banco informações sobre obras e intérpretes do primeiro catálogo da Casa Edison, de 1902. Ainda há mais
obras a serem contempladas.

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foram encontradas também 37 ocorrências de composições de Almeida Cunha –


música – pois este baiano também teve outros parceiros de poesias. Porém é muito
marcante a parceria Almeida Cunha e Laurindo Rabelo. Com relação a Xisto Bahia
encontrei 13 ocorrências no Cancioneiro de 1900, organizado por Mello Moraes Filho.
Mello Moraes Filho, por um lado, foi um dos grandes responsáveis pela
divulgação da obra de autores populares, dado seu intento folclorista de resgatar as
tradições do “povo” e dar “voz” a elas.10 Neste “Cantares Brasileiros”, de 1900, ele
mescla ao lado de poetas consagrados como Castro Alves, Casemiro de Abreu,
Gonçalves Dias, Fagundes Varella e muitos outros, obras de Laurindo, Xisto, Catulo e
Eduardo das Neves, além de “poesias populares”, inclusive retiradas de seu “Cantos
populares da Bahia”, e de Silvio Romero, seu parceiro de ofício, em “Cantos Populares
do Brasil”, além de diversas composições onde não consta nenhuma autoria e outras
que diz serem “anônimas e populares”. Além das 13 ocorrências de Xisto Bahia,
encontrei 3 obras de Catulo (uma delas com música do maestro Henrique Alves de
Mesquita) e pelo menos 2 em que ele faz referência direta ao repertório de Eduardo
das Neves, o cantor de maior sucesso nesta passagem de século, nascido no Rio de
Janeiro, negro, palhaço e atuante em diversos locais do país, um dos primeiros
cantores contratados da Casa Edison. Mello Moraes Filho vai defender o próprio
Laurindo Rabelo, na introdução deste livro, como um compositor de valor, em resposta
a diversos ataques que se faziam a sua origem (Mello Moraes diz que ele era
cigano)11 e ao fato de que ele tocaria por dinheiro apenas. Em “Cantares Brasileiros”
há significativas 17 letras de Laurindo Rabelo.
Mas que semelhanças e diferenças podemos encontrar entre Xisto Bahia,
Laurindo Rabelo, Eduardo das Neves e Catulo da Paixão Cearense, grandes autores
de modinhas e/ou lundus? Para tentar responder, é interessante verificar mais de
perto esse universo no qual esses autores estão inseridos. As modinhas e os lundus
eram disparados os gêneros mais em voga neste final de século XIX. No banco de
dados sobre obras e autores12 temos a seguinte distribuição: 7 barcarolas, 76
canções, 16 cançonetas, 2 cançoneta/lundu, 2 devaneios, 2 habaneras, 6 hinos, 104
lundus, 1 marcha, 277 modinhas, 51 recitativos, 22 romances e 5 serenatas. As
modinhas geralmente se dedicavam aos temas amorosos: fosse uma exaltação, uma
declaração à amada, um amor idealizado, puro, casto e às vezes, descrição do amor

10
Ver Martha Abreu. O império do Divino. Festas religiosas e Cultura Popular no Rio de Janeiro, 1890-1900, Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
11
Ver introdução de Cantares Brasileiros, op. cit., por Mello Moraes Filho.
12
Ver nota de rodapé n. 9.

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maternal, e muitas vezes ligado à idéia de sofrimento, de impossibilidade da própria


realização do amor.13 Por exemplo:

"(...) Vem ó fada gentil dos meus sonhos / Vem, ó linda sorrir-te pra mim /
Vem dourar os meus dias tristonhos / Vem amar-me, aditar-me, vem,
sim".14

Os lundus, embora também se dedicassem aos temas amorosos em grande


medida, possuíam uma abordagem diferenciada da abordagem das modinhas:
apareciam referências ao jogo amoroso, à sedução, a exaltação à amada se referia
não raro às belezas físicas, e havia muitas referências de exaltação às mulatas e às
morenas. Encontramos também críticas sociais, pilhérias e zombarias.15 Por exemplo,
com relação ao tema do amor:

"Se vejo moça corada / Fico de amor abrasado; / Moça pálida e romântica /
Põe-me todo derrotado.” / "A moreninha me encanta (...) me fere, me
abrasa e mata". (...) "Eu só me orgulho de amar / A toda e qualquer
beleza".16

Porém, apesar de percebermos uma distinção temática que opõe os gêneros


“modinha” e “lundu”, é possível se encontrar lundus que se referiam ao amor de forma
mais romântica, como descrevemos com relação à modinha. Da mesma forma
encontraremos algumas modinhas (ainda que poucas) que se referem de forma mais
jocosa e irreverente ao amor. Contudo, a variedade temática dos lundus, com relação
às modinhas, neste final de século XIX, é considerável, e uma clara distinção temática
entre essas formas é observável. O que se chamava de lundu neste momento era
associado, inegavelmente, a um universo popular ou à irreverência e críticas sociais (e

13
Dentre outros temas encontrados neste banco de dados preliminar que construí, podemos citar: a saudade, ou
saudade da pátria, a morte, os homens, as mulheres, descrições de vida como, por exemplo: a lavadeira, o soldado, o
marinheiro, o artista, o escravo, não raro enfatizando o sofrimento deles.
14
Eis uma estrofe significativa das modinhas. Uma espécie de refrão, pois a estrofe se repete algumas vezes, o que
sugere o caráter musical da poesia. “Mal te vi”, em Cantor de Modinhas Brazileiras, op. cit. Incluso na “Parte I:
Saudades e Queixumes”. De autoria não identificada.
15
Alguns títulos ilustradores: “Espanta o grande progresso”, “Estamos no século das luzes”, em Cantor de Modinhas.
Op. cit., “O imposto do vintém”, “O aumento das passagens”, em Cantares Brasileiros, op. cit., exemplos de crítica
social, e “Capenga não forma” e “Pai avô”, em Cantor de Modinhas, op. cit., como exemplo de pilhéria sobre tipos
sociais desfavorecidos: negro e aleijado.
16
Versos de “Dizem que sou borboleta”, em Cantares Brasileiros, op. cit. Descrito como “lundu baiano”. Autoria não
identificada.

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a valoração disto, se positiva ou negativa, é diversificada); mas o que chamo a


atenção é que remetia-se efetivamente a um outro universo que não o universo
romântico dominante das mentes e corações modinheiros, e isto tinha ampla
circulação: dos 104 lundus encontrados no nosso banco de dados, 21 falam de amor
(destes, encontrei apenas um que poderia ser enquadrado como amor “romântico”, os
outros, dificilmente). Outros dois se remetem a amor físico (um se refere a roubo de
beijo/abraço e o conselho da mãe para que o moço não chegue tão perto da moça:
"um abraço, o sangue ferve nas veias, e depois, zás!".17 E o outro, é uma versão de
um lundu que fala de amor de forma masoquista e escatológica).18 Há 2 que falam de
briga de amor e tem linguagem dúbia, maliciosa. Por exemplo: ele diz que adora o
cafuné de iaiá, mas quando ela se zanga não lhe dá mais cafuné. Um dia ela zangou-
se por ele cheirar rapé. Brigou com ele, mas passou a raiva e ela lhe deu uma linda
bocetinha. Este foi o emblema das "pazes":

"(...) Quando eu funguei a pitada / Deu-me ela outro cafuné.../ Oh que


gosto que senti / Na boceta do rapé. / Descobri o melhor meio / De ganhar
meu cafuné".19

Um outro lundu fala de ciúmes e é uma versão mais leve daquele que fala do
amor masoquista, inclusive parece se utilizar da mesma música. Isto é, trata-se então
de duas versões para um mesmo suporte musical, fato que muitas vezes ocorria neste
cancioneiro de final de século XIX:

"(...) Dá pancadinhas na gente / É tão bom, não dóe, nem nada" (...) "Gosto
dela só por isso, / Que a pancada tem feitiço” (...) / "Se falo noutras
pequenas / Fica toda arrepiada..." / (...) "Seu ciúme tem feitiço".20

Há 2 lundus que falam das mulheres, advertindo que é preciso ter cautela com
elas.21 Um que fala de amor e diferenças sociais (ela inventou que era rica, mas é

17
Versos de “Laura”, letra e música de Bruno Seabra, em Cantor de Modinhas Brazileiras, op. cit.
18
“É tão bom, não dói, nem nada”, em Cantor de Modinhas Brasileiras, op. cit.
19
“O cafuné”, letra de Eduardo Villas Boas e música de João Luiz de Almeida Cunha, em O Cantor de Modinhas
Brazileiras, op. cit.
20
“Minha doce iaiazinha”, em O Cantor de Modinhas Brazileiras, op. cit. Autoria não identificada.
21
“Iaiazinha você mesma”, em O Cantor de Modinhas Brazileiras, op. cit. Consta da “Parte III: lundus e fados”, de
autoria não identificada. E “É tarde”, em Cantares Brasileiros, op. cit. Letra de A. C. Oliveira Fernandes e música de J.
N. Monteiro.

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pobre. Diz que deve até ao “Chico da venda”).22 Um descreve as belezas físicas da
sinhazinha.23 Um fala sobre os homens que enganam as moças, que só querem
pagodear.24 Por aí se vê que o tema do amor é bem diversificado. Há ainda 8 lundus
que falam de amor e os protagonistas são (ou parecem ser) negros ou mulatos.25 Há
10 lundus que fazem exaltação à mulata ou morena.26 Enfim, são vários exemplos de
como um universo diferente ganhava espaço na circulação de bens culturais. A
linguagem dúbia, a irreverência, as pilhérias são características do que se chamava de
“lundu” e são uma linguagem em comum destes autores mencionados, à exceção de
Catulo, como veremos. Para além da reprodução de um universo modinheiro donde se
nota pouca diferenciação, do qual esses autores são também representantes (há
inúmeros exemplos de modinhas “românticas” tanto de Laurindo como de Xisto, como
de Dudu das Neves), Laurindo Rabelo se destaca pelos lundus que se apresentam
como poesias de duplo sentido (por exemplo: A romã, O banqueiro).27 Xisto e Dudu
se destacam pelos lundus que se apresentam como pilhérias e pela representação de
um universo cultural dos negros.28 Mas sobretudo era uma linguagem de pilhéria.
Mas ao mesmo tempo que se desenvolvia a popularização do campo cultural
com a participação de artistas, poetas, músicos que expunham uma ampliação de
temas significando também uma reconfiguração de linguagem (as revistas teatrais, as
canções jocosas, as críticas sociais, a representação dos negros), havia quem não
estava satisfeito com este movimento. Como um artista exemplar desta preocupação
pelos caminhos da expressão lítero-musical nacional, estava Catulo da Paixão

22
“Pau de laranjeira”, do repertório de Xisto Bahia, de autoria não identificada, em Cantares Brasileiros, op. cit.
23
“O todo de sinhazinha”. Consta da “Parte III: lundus e fados” em O Cantor de Modinhas Brazileiras, op. cit. Autoria
não identificada.
24
“Estes mocinhos d’agora”, em Cantares Brasileiros, op. cit. Autoria não identificada.
25
“O pica-pau”, “O mulato”, “O casamento”, “Dizem que sou borboleta”, “A preta mina”, todos em Cantares Brasileiros,
op. cit. Autoria não identificada, exceto “A preta mina”, atribuída à Xisto Bahia. Em O Cantor de Modinhas Brazileiras,
op. cit., temos: “O pica-pau atrevido” e “Dizem que sou borboleta”, sem autoria identificada. E ainda, “Isto é bom”, do
catálogo da Casa Edison, 1902, gravação de número 1, interpretada pelo cançonetista Baiano, um dos primeiros
contratados desta gravadora.
26
Em Cantares Brasileiros, op. cit.: “Mulatinha do caroço”, “Do Brasil a mulatinha”, ambas sem identificação de autoria
e “As clarinhas e as moreninhas”, com música de Joaquim Antonio da Silva Calado. E em O Cantor de Modinhas
Brazileiras, op. cit.: “Vou casar-me, dou-lhe parte”, “Teu corpinho brasileiro”, “Sinhazinha eu ando torto”, “Quando vejo
da mulata”, “Mulatinha do caroço”, “Do Brasil a mulatinha” e “A mulatinha de cá”. Percebe-se que muitas letras se
repetem, o que reforça o argumento de que havia uma grande circulação destas obras.
27
“A romã”, letra de Laurindo Rabelo e música de João Luiz de Almeida Cunha em Cantares Brasileiros, op. cit. “O
banqueiro”, dos mesmos autores no mesmo cancioneiro.
28
A gravação de “Isto é bom”, para a Casa Edison (c.1902), interpretada por Dudu das Neves, é um exemplo. Ele faz
referência à Xisto Bahia, dando a entender que o lundu era um grande sucesso deste último. Também aparece em
Cantares Brasileiros, op. cit., sem autoria identificada. Os versos de “Isto é bom” são variados mas também se
remetem ao amor e às mulatas.

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Cearense. Para ele, a modinha representava a expressão maior da alma do povo


brasileiro, e este movimento que descrevemos era uma desvirtuação. Ele se dedicava
a compor letras, inspirado nas músicas de seus companheiros, e há uma lista extensa
deles, muitos eram chorões.29 Atribuindo à modinha uma origem nobre e européia,
sua preocupação maior era popularizar sem desvirtuar. Muito vaidoso de sua
contribuição para a popularização da modinha, refere-se a tê-la levado a outros
ambientes que não o salão. No salão, ela era interpretada ao piano. Seu papel foi tê-la
levado às ruas, com a ajuda do violão, onde teria obtido alcance verdadeiramente
popular, conforme sua observação.30
Catulo vangloriava-se de sua luta, conforme sua própria avaliação, para que o
violão fosse aceito pela elite.31 Ao som do pinho, sua linguagem mostra-se
completamente distante do coloquial e das pilhérias que encontramos nos lundus. De
estilo rebuscado, buscava os temas do amor, da saudade, ao estilo romântico que
podemos encontrar nas modinhas do passado:

“(...) A dor da paixão, não tem explicação! / Como definir, o que só sei
sentir? / É mister sofrer para saber! / O que no peito o coração, não quer
dizer / Pergunte ao luar travesso e tão taful (...)”.32

Catulo não quer se inserir no universo da popularização tal qual este se


encaminhava e como descrevemos. Tem preferências por um meio intelectual que
julgava-se responsável pela elevação moral do povo. Apesar de sua origem
humilde,33 almejava adentrar num circuito de grandes literatos. Daí receber a crítica
de um jornalista e cronista carnavalesco, lá pelos anos 30 do século XX, Francisco
Guimarães, o Vagalume:

29
Anacleto de Medeiros, saxofonista e regente, Irineu de Almeida, oficleidista muito elogiado por Catulo, Quincas
Laranjeira, violonista, Luis de Souza, pistonista, Cadete, cantor, dentre muitos outros.
30
Ver prefácio em Modinhas. Catulo da Paixão Cearense. Rio de Janeiro: Livraria Império, 1943. Seleção organizada,
revista, prefaciada e anotada por Guimarães Martins de acordo e com uma introdução do autor, e uma apreciação de
Carlos Maul. Guimarães Martins, como organizador desta obra, afirma que as composições de Catulo neste volume
vão de 1880 a 1910, correspondendo à primeira fase do autor.
31
Ver introdução de Catulo em Modinhas. Op. cit.
32
“Ontem ao luar”, em Modinhas. Op. cit. Nas notas deste volume há por várias vezes a observação de que se o cantor
não quiser cantar "todas estas estrofes arrebatadoras, escolherá as que mais lhe agradarem". O que ajuda a confirmar
o argumento de que Catulo se preocupava com a elevação da linguagem dos poemas.
33
Catulo nasceu no Maranhão, em 31/01/1866. Sua família mudou-se para o Rio de Janeiro em 1880. Seu pai
trabalhava como relojoeiro na Rua São Clemente, onde moravam. Trabalhou no cais do porto como contínuo e
estivador. Ver Enciclopédia de Música Brasileira, op. cit.

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“Com Catulo agora, é só poema de légua e meia, porque, com eles talvez
ingresse no Petit Trianon, pelos fundos...”.34

O fato é que observamos uma intenção diferenciada na atuação de Catulo.


Preocupado com a constituição de uma identidade nacional no universo das canções e
da música popular, Catulo irá rechaçar a linguagem da pilhéria, da irreverência e o
universo de representação dos negros de que faz parte o lundu no final do século XIX.
Irá construir no conjunto de sua obra uma visão do sertanejo como o verdadeiro
representante da identidade nacional. Em contraposição a um universo popular, negro
e urbano, que tomava grandes proporções conforme descrevemos pelas
transformações sócio-políticas e culturais na cidade do Rio de Janeiro em fins do
século XIX, Catulo cantará ao som de seu violão a primazia de um universo rural e
sertanejo, que desejava ser o representante da “verdadeira” nacionalidade brasileira.
Algumas de suas composições mais famosas que corroboram para este argumento
são: “Luar do sertão” e “Caboca di Caxangá”. Mas há ainda inúmeras outras onde
Catulo se utiliza inclusive da linguagem popular, imitando a fala do sertanejo, como
forma de representação do que ele acreditava ser “o povo”: “U alecrim da lagoa”,
“Cabôca bunita”, “Boca di istrela”, “Aruê!... Aruá!...”, dentre muitas outras.35 A
linguagem popular, na concepção de Catulo, era a linguagem do sertanejo.
O que se seguiu acima faz parte de resultados preliminares de minha pesquisa
em andamento sobre música no Rio de Janeiro no final do século XIX e início do XX.
Na tentativa de abarcar os fenômenos de um desenvolvimento cultural urbano, as
diferentes linguagens poéticas foram demonstradas como relacionadas a movimentos
mais amplos da esfera social (envolvendo as transformações políticas e econômicas
da sociedade), e longe de significarem uma convergência democrática que
representaria a identidade nacional,36 aparecem como resultado de embates políticos,
que se traduzem na atuação dos sujeitos e na sua intenção de expressar valores.

34
Na Roda de Samba, Francisco Guimarães “Vagalume”, 1933, p. 85.
35
Todas estas obras se encontram em Modinhas. Op. cit.
36
A partir dos anos de 1920, o principal representante de um discurso que privilegia a questão da democracia racial na
formação do discurso musical, isto é, a contribuição equânime das três raças (o índio, o negro e o branco europeu) na
construção de uma música de caráter nacional, é Mário de Andrade (embora Mário de Andrade enfatize o papel do
negro). Acompanhado de diversos pares, estudiosos da música brasileira, com tradições que remetem aos folcloristas
do final do século XIX, este discurso será hegemônico até mesmo em final do século XX, transbordando os limites da
esfera acadêmica. É esta a referência crítica que pontuamos com a expressão “convergência democrática”.

Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH/SP-
UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.

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