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Do Próximo

“O Bom Samaritano” (1852)


George Frederic Watts
City Art Gallery, Manchester
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Capítulo 03 - Do Próximo

Uma perspectiva dialógica da ética

A

ética não nasce dos valores presentes em uma so-
ciedade, logo não é algo relativo, que mude de acordo com o
meio cultural, mas antes são os valores que nascem da ética. Esta
pode ser entendida como uma visão espiritual do Outro, em sua
diferença e ao mesmo tempo em sua ligação conosco, como parte
da criação que somos.

E, quando falamos de ética, estamos a falar de algo huma-


namente universal, ou, como dirá Levinas:

77 LEVINAS, Em- Descrevo a ética, é o humano, enquanto humano. Pen-


manuel. Entre Nós.
Petrópolis: Vozes,
so que a ética não é uma invenção da raça branca, da
1997, p. 149 e 150. humanidade que leu os autores gregos nas escolas e
que seguiu certa evolução. O único valor absoluto é a
possibilidade humana de dar, em relação a si, priorida-
de ao Outro. Não creio que haja uma humanidade que
possa recusar esse ideal, mesmo que se deva declará-lo
ideal de santidade. Não digo que o homem é um santo,
digo que é aquele que compreendeu que a santidade
era incontestável. É o começo da filosofia, é o racional,
é o inteligível.
77

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De início, ao falarmos de uma visão ético-espiritual do 78 LEVINAS,
Emmanuel, 1997, p.
Outro, podemos começar pela noção de Próximo, como teorizada 149 e 150.
por Herman Cohen a partir de um diálogo com o judaísmo.78 A
partir dessa fonte, Cohen destaca que o amor ao próximo não se
limita ao crente ou ao pertencente à mesma tribo. Quem pensa o
Outro como próximo não o pensa como membro de alguma co-
munidade política.

A princípio, o que temos aqui é a ruptura com os papéis


sociais empreendida pela análise de Cohen a partir da leitura do
Pentateuco:

Quando o forasteiro se estabeleça entre vós em vosso


país, não o oprimais. Será para vós como o nativo: o
amarás como a ti mesmo, porque forasteiros fostes no
país do Egito. (Ex. 23:9).


Derrubados os papéis sociais, as Escrituras convidam à
percepção da nossa fragilidade, a qual precede a todos os jul-
gamentos que se façam do Outro, que surge para nós como es-
tranho, como estrangeiro. A fragilidade, desse modo, é não só a
condição humana, mas a condição humana diante de Deus. Tal
percepção irá exigir do homem um sentimento religioso.

“Quem pensa o Outro como ser humano em um tempo em 79 COHEN, Her-


mann, 2004, p. 8.
que não havia ainda filosofia nem ética o pensa como membro
de uma ordem sobrenatural. Esse pressentimento é a religião”79,
segundo Cohen, para quem o conceito de próximo só pode surgir
se se prescindir de uma comunidade de sangue e de tribo.

Na moral grega, tínhamos a noção de estrangeiro (xenos),


segundo a qual o forasteiro é concebido no contexto do intercâm-
bio comercial e da moral bélica. No Pentateuco, pelo contrário,
o estrangeiro, como um estranho que é, constitui a base de uma
ética e por isso é associado ao pobre, à viúva e ao órfão. Estas,
não à toa, são as pessoas centrais de uma ética judaica, por serem
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Capítulo 03 - Do Próximo

a expressão pública de uma fragilidade que exige a proteção e o


cuidado por parte da comunidade.

É justamente a incapacidade de nos darmos conta da nos-


sa fragilidade e da do próximo que se encontra na origem da ce-
gueira ética na qual mergulhamos e que nos fez perder de vista
os valores fundamentais para a nossa sobrevivência enquanto es-
pécie e pela sobrevivência do planeta.

Em um mundo fragmentado e violento como o contem-


porâneo, o pensamento acerca do próximo é um desafio que nos
convida a respeitar o Outro em sua singularidade e fazer a difícil
travessia para a não violência. Difícil por nossa falibilidade, por
nossa fragilidade e que, por isso mesmo, não se faz sem fricções
e sem tensões; porém, é um convite para que a Paz seja (re)esta-
belecida, para que a reconciliação estabeleça-se entre os homens,
e destes para com Deus e para com toda a Criação.

Como Cohen, Martin Buber pensava o mesmo e em um


comentário sobre o primeiro dirá:

80 BUBER. Martin. Ama a teu próximo como sendo um como tu, porque
Prefácio a Hermann
Cohen. El Prójimo.
vós conheceis a alma dos seres humanos que se en-
Barcelona: Anthro- contram em situação de extrema necessidade. Sede
pos Editorial, 2004, amorosos com ele, pois vós mesmos padeceis a mesma
p. XXII.
extrema necessidade humana.
80

A noção de próximo vai eliminar todas as questões sobre


igualdade e desigualdade e a noção de luta e combate e, por con-
seguinte, de inimigo, que muitas vezes oculta-se por trás de tudo
isso. A noção de separação entre os homens quase sempre está
na base das lutas pelos direitos de minorias, de maiorias, de seg-
mentos sociais diversos, pois a lógica do próximo – ao contrário
da lógica da igualdade – é a da fraternidade, comumente usada
ao lado da primeira, mas obedecendo, na verdade, a uma lógica
oposta.
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Quando penso com força em “meu irmão” ou em “meu 81 MARCEL, Ga-
briel., 2001, p. 154.
próximo”, de modo algum me preocupo em saber se
sou ou não sou seu igual, precisamente porque minha
intenção não está de forma alguma engessada pelo que
eu seja ou pelo que eu possa valer. Inclusive, poder-
-se-ia dizer que o espírito de comparação é alheio à
consciência fraternal.81

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