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Quarta edição
Editora UFSC
Impresso no Brasil
[...] e naquele instante, observando minha filha surda de três anos brincando no jardim com
outras crianças, eu a tomei pela cintura e a sentei no muro. À minha frente, sua bela e
pequenina figura iluminada pela alegria e o céu às suas costas. Lembro-me bem daquele
momento mágico e lá no fundo do meu coração agradeci: - Obrigada, meu Deus, por tê-la
Inge Strobel
Sumário
Apresentação página 13
Prefácio página 15
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
Povo surdo ou comunidade surda? página 35
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
História cultural: novas reflexões sobre a história dos surdos página 109
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
Como podemos Compreender as peculiaridades da cultura surda e nos envolver com elas 135
Nota de revisão
Ao ser convidada por Karin para a revisão de seu texto, ainda preliminar, senti-me lisonjeada!
Imagens nostálgicas que compuseram nossa história, ao longo de mais de dez anos de
Lembrei-me da menina de grandes olhos azuis que, ao ingressar na vida acadêmica, no Curso
fronteira, impunha entre ela e os conhecimentos teóricos, dos quais buscava se apropriar,
avidamente.
Em seu percurso, compartilhei com Karin o efeito do desconforto babélico que o português
de signos atravessados pela cultura da oralidade, em que se viu exilada, desde a infância...
Hoje, diante de seu livro, senti-me tentada, de início, a exercer o papel de revisora,
Karin, que narravam a história de seu povo surdo, de seus percalços à submissão da
lingüística, hesitei.
para manter suas marcas culturais vivas, não me permiti exercer a pretensa superioridade do
colonizador que assujeita o outro surdo ao seu modo de se conformar à língua portuguesa.
O texto estava pronto, babélico, disperso, plural! Seu pensamento, fundado em belíssimas
que me foi confiada e dos contundentes efeitos de sentido que seu discurso produziu em mim.
Não pude negar-lhe a possibilidade de ser sujeito em sua própria língua, dissolvendo sua voz
Premida entre o desejo de que sua escritura se apresentasse legível e a necessidade histórica
de que as idiossincrasias de sua autoria fossem preservadas, decidi romper o círculo vicioso
das práticas ouvintistas que, de forma incisiva, Karin buscou denunciar. Procurei não
deformar, conformar suas idéias à minha experiência da língua, não apagar as marcas de sua
autoria, usurpando mais um dos artefatos do povo surdo que deve ser considerado: seus
marcou sua história, deixando falar seu português surdo que se reveste de palavras- imagens
em uma sintaxe própria, regrada, repleto de verdades sobre os modos de produzir sentidos em
Se a língua é muito mais que um conjunto de regras organizadas segundo uma lógica formal,
posicionamentos; se ela se situa na arena de guerras discursivas que constitui os sujeitos, sua
subjetividade, seu lugar no mundo, não poderia fazê-la calar em minha norma hospedeira que
Karin, tão bravamente, ocupou-se em denunciar no mosaico lingüístico e cultural que compõe
o seu texto.
Sueli Fernandes
Apresentação
A cultura surda, ao analisarmos a sua história, vê-se que ela foi marcada por muitos
Tem muitos autores que escrevem bonitos livros sobre os surdos, mas eles realmente nos
conhecem? Sabem sobre a cultura surda? Eles sentiram na própria pele como é ser surdo? De
tal modo como lamentou o ex-presidente da World Federation of the Deaf (WFD), o surdo
sociólogo doutor Yerker Andersson: "[...] o conhecimento limitado sobre os surdos que os
autores ouvintes possuem quando escrevem acerca da questão da surdez [...]" (ANDERSSON
Essa agressão contra a cultura surda pode levar a conflitos das identidades surdas e à
vivenciadas dos sujeitos surdos, as suas resistências contra essa opressão cultural, similar a
um autêntico povo que luta pela sua cultura, pois é através dela que os sujeitos asseguram a
Para a comunidade ouvinte que está mais próxima de povo surdo - parentes, amigos,
intérpretes, professores de surdos reconhecer a existência da cultura surda não é fácil, porque
no seu pensamento habitual acolhe o conceito unitário da cultura e, ao aceitar a cultura surda,
ela tem de mudar as suas visões usuais para reconhecerem a existência de várias culturas, de
Mas não se trata somente de reconhecer a diferença cultural do povo surdo, e sim, além disso,
relacionar.
Observamos que, atualmente, na sociedade brasileira, está crescendo o número dos sujeitos
ouvintes interessados em aprender a língua de sinais e almejamos que a leitura deste livro
Prefácio
O livro As imagens do outro sobre a cultura surda, de Karin Lilian Strobel, é uma publicação
muito importante nos Estudos Surdos. É um livro que traz as imagens do outro sobre a
Vou apresentar a autora como o povo surdo, normalmente, faz. Karin Strobel é surda. Seu
sinal é a configuração de mão K realizada no espaço neutro à direita com movimento para
cirna e para baixo acompanhado de uma leve rotação do pulso. K-A-R-I-N (soletrado usando
Ela tem uma longa história nos movimentos surdos brasileiros. Na luta pelo reconhecimento
alunos surdos e na formação de profissionais da área dos Estudos Surdos e ocupou posições
políticas. Em Santa Catarina, Karin Strobel iniciou sua carreira acadêmica com pesquisas
Professores, instrutores, intérpretes de língua de sinais e colegas passaram pela Karin Strobel
cultura surda e sua língua. Nesses anos todos de atuação, Karin percebeu o quanto é
Assim, este livro se constitui... A autora percebe que o ser surdo é algo estranho ao outro e
por isso traz neste livro os artefatos que constituem este ser estranho ao não surdo. "Cultura
surda", "identidade surda", "povo surdo", "comunidade surda", "língua de sinais" são
aspectos abordados a partir do olhar de uma surda que transita entre os mundos surdos e não
surdos.
sobre o ser surdo. Neste sentido, convida o leitor a entrar na jornada dos surdos. Com
propriedade, Karin Strobel pega o leitor pela mão e o faz perseguir as trilhas dos surdos de
um jeito surdo.
As imagens do outro sobre a cultura surda são descontruídas e a partir dos escombros se
traduzem em outras possibilidades de se ver o mundo dos surdos, ou melhor, o povo surdo.
Todo o texto é situado historicamente, pois as imagens refletem os movimentos históricos que
envolveram os surdos.
para construir um outro olhar sobre os surdos. A seguir, no segundo capítulo, adentra a
cultura surda propriamente dita. Inicia com uma provocação: os surdos têm cultura? No
terceiro capítulo, Karin Strobel traz outra questão: povo surdo ou comunidade surda? A
autora traz esta discussão que situa os surdos neste momento histórico que vivemos neste
culturais deste povo. Parte das experiências visuais, conversa sobre a língua de sinais, uma
língua que também é uma experiência visual, as famílias, a literatura, o lazer, as artes, a
No quinto capítulo, Karin Strobel adentra o imaginário dos não surdos que flutua na
sociedade brasileira, principalmente por parte dos ouvintes (não surdos). A seguir, no sexto
capítulo, a história cultural é trazida com o olhar na história dos surdos, que chega neste
momento em que temos a surdez inventada noutra perspectiva, a dos próprios surdos. O
outra história a partir da cultura. No sétimo capítulo, a autora, então, traz a discussão da
inclusão, algo que permeia as representações imaginárias do ser surdo. Enfim, no último
Nesta jornada trazida por Karin Strobel, os leitores chegam ao fim para construir um outro
CAPÍTULO 1
[...] se a compreensão da cultura exige que se pense nos diversos povos, nações, sociedades e
grupos humanos, é porque eles estão em interação. Citação de José Luiz dos Santos.
Podemos iniciar a discussão deste livro a partir de alguns questionamentos. Qual o conceito
que trazemos sobre a cultura? Há, de fato, cultura surda? O povo surdo, de fato, produz uma
cultura? O que os outros falam sobre a cultura surda? Por que muitos sujeitos dizem que não
existe cultura surda? Para obtermos respostas dessas reflexões, analisamos a base teórica que
identificada como os meios de comunicação de massa ou, então, cultura diz respeito às festas
e cerimônias tradicionais, às lendas e crenças de um povo, seu modo de se vestir, sua comida
e a sua língua.
Estes focos sobre a cultura resultam polêmicas entre várias opiniões dos pesquisadores e dos
leigos. Por que há tantas variações de teorias a respeito da cultura? O doutor Lynn de Souza
(2006, p. 1) comenta que "apesar de uma longa história de descrições e definições de cultura
que respostas".
Dessa forma, torna-se imprescindível que analisemos o processo histórico sobre o conceito de
cultura. Para esclarecer as variações das teorias sobre a cultura, traçarei algumas seqüências
Cada teoria sobre a cultura é o resultado de uma história particular que inclui os escritos de
vários pesquisadores que tinham suas próprias idéias em relação às culturas diferenciadas.
Desde o final do século 19, os pesquisadores vêm elaborando inúmeros conceitos sobre
cultura e, apesar de a cifra ter ultrapassado mais de 200 definições, ainda não chegaram a um
interiorizado em diferentes aspectos, assim como Moles (apud RICOU; NUNES, 2005)
afirma: "cultura, termo tão carregado de valores diversos que o seu papel varia notavelmente
Há quem considere a cultura de forma unitária, ou admita a existência não de uma cultura, no
singular, mas de culturas no plural. A idéia unitária de cultura está relacionada na sociedade
dóceis, moderados, de elevados princípios, pacíficos, conciliadores. Isso evidencia que esta
sociedade gerou o desejo da necessidade de sermos perfeitos para pertencermos a ela, senão
estaríamos excluídos.
Na teoria moderna, a cultura se torna sabedoria grandiosa ou arma ideológica, uma forma
isolada de crítica social. Esta teoria possui a idéia de uma cultura única e perfeita, a alteridade
e a diferença são vistas como mancha para a sociedade, fazendo com que tenham a
Desse modo, alude doutor Lynn de Souza (2006, p. 2)"[...] que partia da noção da
superioridade do discurso filosófico que permitia acesso à razão, a uma referencialidade pura
e portando a uma precisão e consistência no pensamento [...]", para esta soc iedade a
identidade e cultura são vistas como essencialistas, substancialistas, prontas e puras para esse
grupo hegemônico.
terminação "cultura", falando das culturas de diferentes nações e períodos, bem como de
O termo hegemonia' deriva do grego hegemon, que significa líder, guia ou quem dita as
2003, p 151).
A humanidade, ao longo do tempo, adquire conhecimento através da língua, crenças, hábitos,
cultura é a herança que o grupo social transmite a seus membros através de aprendizagem e
de convivência, percebe-se que cada geração e sujeito também contribuem para ampliá-la e
modificá-la.
culturais das mais diversas naturezas, tornando o conceito da cultura mais amplo.
Conforme afirma Hall (1997), nas teorias do campo dos Estudos Culturais,- a cultura que
mundo.
campo de pesquisa interdisciplinar para estudos na área da cultura. Na sua agenda temática
(1999, p. 49),
identidades culturais são construídas e organizadas, para indivíduos e grupos, num mundo de
ao mesmo tempo ser amplamente usado estudo da cultura, e como tal ser tomado a cultura é
percepção, da forma de ver diferente, não mais de homogeneidade, mas de vida social
constitutiva de jeitos de ser, de fazer, de compreender e de explicar. Essa nova marca cultural
transporta para uma sensação a cultura grupal, ou seja, como ela diferencia os grupos, no que
Após urna rápida apreciação das várias contribuições teóricas trazidas para os conceitos da
O vocábulo cultura, vindo do latim, significa o cuidado dispensado à terra cultivada; segundo
natureza, sendo que um dos significados originais é "lavoura" ou "cultivo agrícola". Isto
uma cultura.
Dessa maneira, os elementos mais importantes da cultura podem ser destacados como as
habilidades dos sujeitos para construir sua identidade em usar a linguagem. Ilustrando mais
claramente, na "cultura", a palavra natureza significa tanto o que está a nossa volta como o
que está dentro de nós. Poderíamos usar a metáfora de uma semente que é plantada em solo e
cresce urna bela planta; mas isto não ocorre sem a ajuda da natureza, ou seja, do sol, da
semente que está sozinha, sem ademão da natureza, não cresceria, uma vez que estaria
abandonada e apodrecendo.
"A cultura permite ao homem não somente adaptar-se a seu meio, mas também adaptar este
meio ao próprio homem, a suas necessidades e seus projetos. Em suma, a cultura torna
Da mesma forma, um ser humano, em contato com o seu espaço cultural, reage, cresce e
cultura é a herança que o grupo social transmite a seus membros através de aprendizagem e
de convivência, percebe-se que cada geração e sujeito também contribuem para ampliá-la e
modificá-la.
culturais das mais diversas naturezas, tornando o conceito da cultura mais amplo.
Conforme afirma Hall (1997), nas teorias do campo dos Estudos Culturais, 1 a cultura que
mundo.
campo de pesquisa interdisciplinar para estudos na área da cultura. Na sua agenda temática
(1999, p. 49),
identidades culturais são construídas e organizadas, para indivíduos e grupos, num mundo de
• "O termo 'estudos culturais' pode ao mesmo tempo ser amplamente usado para se referir a
todos os aspectos do estudo da cultura, e como tal ser tomado para incluir as diversas formas
percepção, da forma de ver diferente, não mais de homogeneidade, mas de vida social
constitutiva de jeitos de ser, de fazer, de compreender e de explicar. Essa nova marca cultural
transporta para uma sensação a cultura grupal, ou seja, como ela diferencia os grupos, no que
Após uma rápida apreciação das várias contribuições teóricas trazidas para os conceitos da
O vocábulo cultura, vindo do latim, significa o cuidado dispensado à terra cultivada; segundo
natureza, sendo que um dos significados originais é "lavoura" ou "cultivo agrícola". Isto
urna cultura.
Dessa maneira, os elementos mais importantes da cultura podem ser destacados como as
habilidades dos sujeitos para construir sua identidade em usar a linguagem. Ilustrando mais
claramente, na "cultura", a palavra natureza significa tanto o que está a nossa volta como o
que está dentro de nós. Poderíamos usar a metáfora de uma semente que é plantada em solo e
cresce uma bela planta; mas isto não ocorre sem a ajuda da natureza, ou seja, do sol, da
semente que está sozinha, sem ademão da natureza, não cresceria, uma vez que estaria
abandonada e apodrecendo.
"A cultura permite ao homem não somente adaptar-se a seu meio, mas também adaptar este
meio ao próprio homem, a suas necessidades e seus projetos. Em suma, a cultura torna
Da mesma forma, um ser humano, em contato com o seu espaço cultural, reage, cresce e
"surdo" é mencionada, que imagens vêm a mente das pessoas? Lane (1992, p. 26) explica que
é comum as pessoas deduzirem que os surdos vivem isolados e que para se integrar é preciso
adquirir a cultura ouvinte, isto é, para viver "normal", segundo a sociedade, é preciso ouvir e
falar:
receber comunicação.
Essas representações imaginárias estão equivocadas, os povos surdos não vivem isolados e
sujeitos ouvintes. Confira o relato de Magnani (2007) ao se deparar com os sujeitos surdos
Foi uma experiência diferente: entrei na festa e de repente me vi no meio de cerca de dois mil
surdos - eu nunca tinha visto tantos surdos juntos - e ali eu é que era o estranho! Não falava
corno eles, não entendia o que diziam, sentia-me caminhando por uma tribo cuja língua eu
não conhecia, cujos costumes me eram alheios. Sequer sabia qual era a etiqueta: como é pedir
desculpas, na língua de sinais, quando a gente esbarra em alguém? No início, essa dificuldade
causou um certo constrangimento, mas logo comecei a circular no meio deles e a apreciar
outras formas de contato e sociabilidade que, se eu não podia decodificar através daquela
língua, porque eu não a dominava, podiam ser entendidas por meio de outros códigos.
Os sujeitos ouvintes veem os sujeitos surdos com curiosidade e, às vezes, zombam por eles
serem diferentes. Wrigley (1996, p. 71) explica que a política ouvintista (ouvintista, segundo
Skliar, "é um conjunto de representações dos ouvintes, a partir do qual o surdo está obrigado
ouvidos, eles estariam ouvindo. Esta lógica comum na verdade é comum, mas não
necessariamente lógica. Os negros são pessoas brancas que possuem pele escura. Se
pudéssemos consertar a pele, eles seriam brancos. As mulheres são homens com genitália
errada...; e por aí vai. Essas transposições cruas revelam um tecido social de práticas pelas
quais nós sabemos quais identidades são tanto disponíveis quanto aceitáveis.
Aponto aqui um exemplo de uma família ouvinte de uma surda que foi levada ao médico com
a esperança de ter possibilidade de fazer uma cirurgia para a "cura" de sua "surdez", e o
médico alegou que não poderia operar por causa das alergias no sistema nervoso da menina
surda:
Voltamos para casa e ao chegar começou aquela choradeira de novo, e eu mais uma vez sem
entender por que todos tinham que chorar, Ângela tentava me explicar que as pessoas
estavam tristes porque eu não poderia ouvir como uma pessoa ouvinte. Foi muito difícil para
O nascimento de uma criança surda é uma catástrofe para essa comunidade ouvinte porque
esta está acostumada com padrão "normalizador" para integrar à vida social e também
desconhece o "mundo dos surdos". Por outro lado, na maioria das vezes, o povo surdo acolhe
o nascimento de cada criança surda como uma dádiva preciosa e não age como os pais
ouvintes que sofrem exageradarnente o desapontamento inicial de gerarem seus filhos surdos;
isto é evidenciado nas várias gerações de famílias com todos os membros surdos.
Voltando ao assunto, segundo o discurso ouvintista, o sujeito surdo, para estar bem integrado
à sociedade, deveria se adaptar à cultura ouvinte, porque somente assim poderia viver
"normalmente". Se não conseguir, é considerado "desviante", conforme o fato ocorrido com a
[...] sabia falar, graças à terapia de fala, desde os 4 anos de idade e por ser filha de pais
ouvintes e ter seguido, desde muito cedo, a oralidade. No entanto, a minha pronúncia era
cheio como se fossem balas. Foi por um triz que não fugi porta afora. Abri a tempo o meu
escudo invisível. Eles acabariam por se habituar à minha fala, era só uma questão de tempo.
(OLIVEIRA, 2007).
Além disso, há os discursos sociais que veern sujeitos surdos corno incapazes e deficientes.
Cito dois acontecimentos recentes: eu, junto de um grupo de alunos surdos que passaram no
vestibular para Letras/Libras, conversava com uma assistente social da universidade para
vermos alojamento para eles; elucidei a ela que sou doutoranda, e eles, alunos da graduação;
finalizei explicando o motivo de estar lá; a assistente social pegou papel para fazer cadastro e
perguntou para nós: "vocês sabem ler?". Abismada, expliquei de novo que sou doutoranda e
Um sujeito surdo foi a uma consulta médica. O médico fez perguntas para escrever o
histórico da vida dele: "Qual o seu grau de instrução?". O paciente surdo respondeu que
estava fazendo mestrado, e o médico articulou abismado: "Você? Mestrado? - como se não
acreditasse na resposta. Que tipo de representação social o médico tem de sujeitos surdos?
Dentro do povo surdo, os sujeitos surdos não se diferenciam um de outro de acordo com grau
de surdez, mas o importante para eles é o pertencimento ao grupo usando a língua de sinais e
cultura surda, que ajudam a definir as suas identidades surdas. Menciono um fragmento da
comunidades dos surdos, conhecer a cultura, a língua, a história e a representação que atua
Cultura surda é o jeito de o sujeito surdo entender o mundo e de modificá-lo a fim de torná-lo
acessível e habitável, ajustando-o com as suas percepções visuais, que contribuem para a
definição das identidades surdas5 e das "almas" das comunidades surdas. Isto significa que
pesquisadora surda:
Os exemplos citados nas frases em itálico no transcurso dos textos deste livro, na maioria
Para saber mais, ler a respeito das identidades surdas em Perlin (1998)
[...] As identidades surdas são construídas dentro das representações possíveis da cultura
surda, elas moldam-se de acordo com o maior ou menor receptividade cultural assumida pelo
sujeito. E dentro dessa receptividade cultural, também surge aquela luta política ou
O essencial é entendermos que a cultura surda é como algo que penetra na pele do povo surdo
que participa das comunidades surdas, que compartilha algo que tem em comum, seu
O que e quais seriam estas normas e valores a que tanto fazemos referência neste livro? Por
que os sujeitos surdos se comportam diferente dos sujeitos ouvintes? Antes de refletirmos
sobre estes questionamentos, primeiro gostaríamos de abordar como a cultura surda é
transmitida.
Por causa das proibições de compartilhar uma língua cultural do povo surdo em resultado
no ano de 1880, o uso de língua de sinais foi definitivamente banido a favor da metodologia
As crianças surdas não podiam participar nas comunidades surdas e, inicialmente, os espaços
compartilhados eram os dormitórios das instituições e asilos, onde os sujeitos surdos eram
entregues pelas famílias em regime de internato, até que estivessem aptos para retornar para o
convívio familiar, o que, invariavelmente, acontecia no início da idade adulta, assim como
Nos dormitórios, distantes do controle estruturado da sala de aula, as crianças surdas são
introduzidas à vida social das pessoas Surdas. No ambiente informal do dormitório aprendem
não somente a língua de sinais, mas o conteúdo da cultura. Desse modo, as escolas tornam-se
Muitas vezes o processo de transmissão cultural de surdos ocorre com muitos sujeitos surdos
somente na idade mais avançada, já adultos, porque a maioria deles tem família de ouvintes,
ou porque, pela imposição ouvintista, nem freqüentam as escolas de surdos e ficam sem
Legenda da foto: alunos surdos eram internos nesta escola, onde, nos dormitórios, longe da
vigilância, aprendem não somente a língua de sinais, mas também o conteúdo da cultura
necessidade de o povo surdo ter um espaço para se reunir e resistir contra as práticas
ouvintistas que não respeitavam sua cultura. Essas organizações - as associações de surdos,
federações de surdos, igrejas e outros - também tiveram e têm o papel importante que é a
A cultura surda exprime valores e crenças que, muitas vezes, se originaram e foram
transmitidas pelos sujeitos surdos de geração passada ou de seus líderes surdos bem-
sucedidos, através das associações de surdos. Infelizmente, elas não são procuradas pelas
famílias, que procuram as escolas primeiro, porque elas oferecem aos surdos o modelo
[...] Os pais, entretanto, estão numa fase de crise e é pouco provável que sejam críticos
tal descrição seria em termos tão concisos que na realidade os pais não veriam uma
partilham, geralmente, a mesma cultura dos ouvintes [...] (LANE, 1992, p. 38).
diferente, de acordo com os mesmos interesses, tais como raça, religião, profissão e outras
características distintivas, assim como assevera o autor americano Wilcox (2005, p. 78):
"Embora o termo cultura surda seja usado freqüentemente, isso não significa que todas as
cultura". Por exemplo, além das várias associações de surdos já existentes espalhadas em
muitos lugares no mundo, há, em Buenos Aires (Argentina), a Associação dos Surdos
Oralizados; nos Estados Unidos, a Associação dos Surdos Negros; no Brasil, a Associação de
que todas as pessoas surdas no mundo compartilhem a mesma cultura simplesmente porque
elas não ouvem. Os surdos brasileiros são membros da cultura surda brasileira da mesma
forma que os surdos americanos são membros da cultura surda norte-americana. Esses grupos
CAPÍTULO 3
[...] um povo acontece quando as pessoas se unem em torno de um mesmo sonho. É preciso
devolver ao povo a capacidade de sonhar para que ele volte a ser povo.
Santo Agostinho
entre a comunidade surda e o povo surdo, pois a elucidação dessas duas expressões:
É uma inquietação em que muitos sujeitos tentam entender os muitos caminhos que
conduziram os grupos de sujeitos surdos às suas relações culturais presentes, marcados por
algumas vezes, tem sido usado como sinônimo de grupos de surdos que participam nas
alguns autores citam "comunidade surda" enquanto outros citam "povo surdo"?
A verdade é que muitos já escreveram sobre comunidade surda e/ou povo surdo, e, no
Primeiro vamos refletir os conceitos dessas duas palavras. Segundo o Dicionário Houaiss da
[...] conjunto de habitantes de um mesmo Estado ou qualquer grupo social cujos elementos
vivam numa dada área, sob um governo comum e irmanados por um mesmo legado cultural e
histórico. [...] conjunto de indivíduos que utilizam o mesmo idioma. [...] Agrupamento de
pessoas que, num período específico do tempo, usam a mesma língua ou o mesmo dialeto;
essa comunidade pode coincidir com uma nação, se esta for monolíngue, ou pode ser o
conjunto dé povos que tem uma língua em comum, ou grupos regionais, profissionais, etc.
históricos, culturais, raciais, etc. - têm em comum certas características que os distinguem de
outros grupos no mesmo meio e na mesma ocasião. (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 782).
[...] conjunto de pessoas que falam a mesma língua, têm costumes e interesses semelhantes,
história e tradições comuns. [...] conjunto de pessoas que vivem ern comunidade num
várias nacionalidades, agrupados num mesmo Estado. [...] conjuntos de pessoas que não
habitam o mesmo país, mas que estão ligadas por uma origem, sua
Se o povo surdo é grupo de sujeitos surdos que usam a mesma língua, que têm costumes,
história, tradições comuns e interesses semelhantes, então o que seria a comunidade surda?
Uma comunidade surda é um grupo de pessoas que vivem num determinado local, partilham
os objetivos comuns dos seus membros, e que por diversos meios trabalham no sentido de
alcançarem estes objetivos. Uma comunidade surda pode incluir pessoas que não são elas
possuem sua própria língua, valores, regras de comportamento e tradições; uma comunidade
é um sistema social geral, no qual um grupo de pessoas vivem juntas, compartilham metas
Conforme Padden e Humphries (2000), na comunidade surda também pode haver sujeitos
surdos e ouvintes. Já os membros de uma cultura surda comportam-se como sujeitos surdos e
compartilham das crenças de sujeitos surdos entre si, sendo estes membros pertencentes ao
povo surdo.
Então, entendemos que a comunidade surda de fato não é só de sujeitos surdos; há também
Quando pronunciamos "povo surdo", estamos nos referindo aos sujeitos surdos que não
habitam no mesmo local, mas que estão ligados por urna origem, por um código ético de
grupo que discursa a mesma língua como elemento comum, concluímos que a cultura surda e
refletiremos sobre a diferença entre ambos. Para uma compreensão melhor, citarei exemplo
de diferença entre outro tipo de comunidade e povo: a comunidade alemã e o povo alemão.
onde há escolas alemãs, cultura alemã e língua alemã e o povo seria o conjunto de imigrantes
alemães espalhados pelo Brasil, que não habitam no mesmo local, mas que estão ligados por
uma origem, tais como a língua alemã, a cultura e quaisquer outros laços. Pode ocorrer que o
povo alemão se negue a ingressar na comunidade alemã, mas que compartilhe os mesmos
interesses da comunidade.
Nesse conceito, a inclusão dos sujeitos em uma comunidade é entendida a partir de uma
perspectiva de influência mútua entre todos os sujeitos envolvidos dentro de urna localização
mesmo espaço. Na verdade, este espaço comum talvez não seja o melhor espaço para incluir
a todos.
Devemos lembrar que muitos sujeitos surdos moram em cidades do interior onde não tem
Tem outros sujeitos surdos no interior, na zona rural, por exemplo, na roça, que são isolados e
não têm contato com a comunidade surda; mesmo assim, compartilham as mesmas
peculiaridades, ou seja, constroem sua formação de mundo através de artefato cultural visual
1
"Gestos caseiros" é o termo usado pelos pesquisadores e linguistas que designa a
comunicação dos sujeitos surdos que, quando são isolados e não têm acesso à língua de sinais
surdos índios, as mulheres surdas, os surdos sinalizados, os surdos oralizados, os surdos com
implante coclear, os surdos gays e outros. Esses surdos também se identificam com o povo
Na situação em que o povo surdo se sente excluído das comunidades ouvintes devido às
representações sociais "normalizadoras" que não aceitam a cultura surda - sujeitos surdos
vivem nas comunidades ouvintes, mas não compartilham da mesma cultura delas -, pode
análise pós-colonialista, destacam-se a diáspora dos povos africanos, causada pelo comércio
povos das antigas colônias européias para suas antigas metrópoles. Nessa análise, a existência
hibridismo.
[...] mas não sou nem nunca serei um inglês. Conheço intimamente os dois lugares, mas não
surdas.
comunidade surda, ajuda na formação de suas identidades, assim como afirma o Hall (2003,
p. 433):
Mas isso não quer dizer que os povos surdos se isolam da comunidade ouvinte; o que estamos
explicando é que os sujeitos surdos, quando se identificam com a comunidade surda, estão
mais motivados a valorizar a sua condição cultural e, assim, passariam a respirar com mais
intercultural, iniciando uma caminhada sendo respeitados corno sujeitos "diferentes" e não
como "deficientes". Veremos a seguir a reflexão da surda doutoranda Pinto (2001, p. 39-40):
Ser surdo, judeu, negro, índio, enfim, ser diferente dos demais configurados como normais na
concepção patológica da medicina não mais deve ser motivo de isolamento, exclusão social,
estigma, preconceito, mas sim, este é o momento propício para que ocorra uma mudança
profunda na visão e costumes dos povos, fazendo com que os diferentes se fundam ao
contexto sócio-histórico e se tornem nada mais e nada menos do que sempre foram não só aos
olhos da natureza, mas também aos olhos daquilo que todas religiões definem com Deus:
iguais.
Quando estamos descrevendo sobre os sujeitos surdos que vivem no Brasil, que usam a
mesma língua de sinais do Brasil, que têm costumes, história, tradições comuns e interesses
espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Nela fomos feitos e ainda
continuamos nos fazendo. Essa massa de nativos viveu por séculos sem consciência de si [...]
Assim foi até se definir como uma nova identidade étnico-nacional, a de brasileiros [...]
Assim, para finalizar, o povo surdo são sujeitos surdos que compartilham os costumes,
constroem sua concepção de mundo através do artefato cultural visual, isto é, usuários
defensores do que se diz ser povo surdo; seriam os sujeitos surdos que podem não habitar no
mesmo local, mas que estão ligados por um código de formação visual independente do nível
linguístico.
O que sucede é que quando os sujeitos surdos estão em comunhão entre eles, e quando
compartilham suas metas dentro da associação de surdos, federações, igrejas e outros locais
Nós, o povo surdo, queríamos a oficialização da nossa língua de sinais; então, para conseguir
isto, muitas comunidades surdas brasileiras se reuniram e elaboraram esta lei, oficializada
como a Lei de Libras, n0 10.436, de 24 de abril de 2002, que beneficia o povo surdo
brasileiro.
O "povo" surdo é alegre. Talvez porque tenha havido muito sofrimento em sua infância. Eles
restaurante, um grupo de surdos que falam é algo incrivelmente vivo. Falamos, falamos,
exprimimo-nos às vezes durante horas. Como se tivéssemos uma sede inesgotável de dizer as
coisas, das mais superficiais às mais sérias. Os surdos teriam me chamado de "Flor que
chora", caso eu não tivesse tido acesso à sua comunidade lingüística. A partir dos sete anos
tornei-me falante e luminosa. A língua de sinais era minha luz, meu sol, não pararia mais de
me exprimir, aquilo saía, saía, como uma grande abertura em direção à luz. Não conseguia
mais parar de falar com as pessoas. Tornei-me "O sol que vem do coração". Era um belo
CAPÍTULO 4
Conhecer o mundo pela visão significa, ainda, desenvolver um código visual com o qual os
surdos associam significado e significante a partir das informações visuais que extraem do
meio.
Retomando as reflexões questionadas: o que e quais seriam estas normas e valores do povo
surdo e por que os sujeitos surdos se comportam diferente dos sujeitos ouvintes? E, com isso,
trazemos à baila alguns "artefatos culturais" que são as peculiaridades da cultura surda.
O que seriam artefatos culturais? A maioria dos sujeitos está habituada a apelidar de
"artefatos" os objetos ou materiais produzidos pelos grupos culturais; de fato, não são só
também se pode incluir tudo o que se vê e sente quando se está em contato com a cultura de
uma comunidade, como materiais, vestuário, maneira pela qual um sujeito se dirige^a outro,
"artefatos" não se refere apenas a materialismos culturais, mas àquilo que na cultura constitui
produções do sujeito que tem seu próprio modo de ser, ver, entender e transformar o mundo.
Traço comum em todos os sujeitos humanos seria o fato de que somos todos artefatos
Vou citar alguns artefatos mais importantes que ilustram a cultura do povo surdo, isto é, as
De onde viemos? O que somos? E para onde queremos ir? Qual é a nossa identidade?
pertencimento a uma cultura, isto é, à interação do sujeito surdo com a sua comunidade;
assim, como reflete Hall (2004), é a representação que atua simbolicamente para classificar o
mundo e nossas relações no seu interior. Vou elucidar num exemplo uma situação ocorrida
comigo:
Uma vez meu namorado ouvinte me disse que iria fazer uma surpresa para mim pelo meu
aniversário; falou que iria me levar a um restaurante bem romântico. Fomos a um restaurante
escolhido por ele. Era um ambiente escuro, com velas e flores no meio da mesa. Fiquei meio
constrangida porque não conseguia acompanhar a leitura labial do que ele me falava, por
causa de falta de iluminação e pela fumaça de vela que desfocava a imagem do rosto dele,
que era negro; e para piorar, havia um homem no canto do restaurante tocando música que,
sem que eu pudesse escutar, me irritava e me fazia perdera concentração por causa dos
movimentos dos dedos repetidos de vai e vem com seu violino. O meu namorado percebeu o
O professor e escritor surdo americano Ben Bahan propôs que os sujeitos surdos começassem
Usando essa palavra eu me coloco na posição das coisas que eu posso fazer ao invés das que
não posso fazer. Identificando-me como urna pessoa visual, isso explicaria tudo ao meu
emergência de uma língua visual, a língua de sinais americana. (BAHAN, 1989 apud
Os sujeitos surdos, com a sua ausência de audição e do som, percebem o mundo através de
seus olhos e de tudo o que ocorre ao redor deles: desde os latidos de um cachorro - que são
demonstrados por meio dos movimentos de sua boca e da expressão corpóreo-facial bruta -
até de uma bomba estourando, que é óbvia aos olhos de um sujeito surdo pelas alterações
ocorridas no ambiente, como os objetos que caem abruptamente e a fumaça que surge; deste
Experiência visual significa a utilização da visão, (em substituição total à audição), como
meio de comunicação. Desta experiência visual surge a cultura surda representada pela língua
de sinais, pelo modo diferente de ser, de se expressar, de conhecer o mundo, de entrar ^nas
seres vivos e de objetos em diversas circunstâncias. De minha vida surda cotidiana, escolho
outro episódio que ocorreu comigo, para melhor compreensão da acepção deste artefato
visual:
Eu estava sentada em sala de aula, em uma classe com outros alunos ouvintes, "olhando"
distraidamente para os movimentos dos lábios da professora que estava falando; de repente, a
professora parou subitamente de movimentar os lábios e virou o rosto assustado para a janela.
Percebi que toda a turma fazia o mesmo e todos correram para olhar pela janela. Eu, meio
desnorteada e curiosa, fiz o mesmo para ver o que provocou toda a algazarra da turma
Faço menção de outro exemplo parecido, referente à experiência visual de urna criança surda,
ilustrado no livro Surdo na América: vozes de uma cultura pelos autores surdos Padden e
[...] Jim sentado numa sala próximo de uma porta. De repente sua mãe aparece, caminhando
propositadamente até a porta. Ela abre a porta, e há uma visita aguardando na entrada. Mas se
a criança abrir a porta num outro momento, é provável que nenhuma visita esteja lá. Como a
criança, que não ouve a campainha, entende qual é o estímulo para o provável
Poderíamos citar várias ocorrências com crianças surdas que não têm contato com sujeitos
surdos adultos e nem com a comunidade surda. Citarei cá um ocorrido em especial com esta
criança surda que, como quaisquer outras crianças, enche seus pensamentos de curiosidades e
dúvidas sobre tudo o que acontece ao seu redor, só que, corno ela é a única surda e todos os
membros da família são ouvintes, muitas vezes, as suas curiosidades não são satisfeitas pela
barreira de comunicação. Então pode acontecer que ela comece a se questionar com estas
Isso acontece porque a criança surda sabe que ela é diferente das outras pessoas que ouvem;
ela dirige seu "olhar" ao seu redor na vida cotidiana, ela vê que tem vizinhos ouvintes,
ouvintes, pessoas da família ouvintes, até os bichos são ouvintes e ela própria é diferente. E
como ela nunca viu um adulto surdo a quem possa ter um vínculo identificatório, ela pode
chegar à conclusão de que vai morrer, já que não existem adultos surdos.
É complexo para essas crianças surdas que não têm acesso às informações rotineiras pela
barreira de comunicação. Assim, como o linguista sueco surdo Wallis (1990, p. 16) afirma:
Se os surdos têm contato com a língua de sinais desde cedo; assim a criança surda poderia
sentir como as outras crianças, fazer perguntas e obter as respostas, ou seja, a curiosidade da
criança surda será satisfeita muitas vezes e terá maior acesso às informações.
Uma vez a empregada doméstica estava lavando o quintal no fundo de casa e eu ficava
sentada observando a água suja de latna e sabão correndo até o bueiro. No meio desta sujeira
estava um bicho estranho, de mais ou menos uns seis centímetros, que estava morto.
Assustei-me porque o associava com o bicho que vi na televisão nçutro dia, jacaré enorme
que comia as pessoas e tive muitas noites de insônia, com medo da existência desse bicho no
entendo que não era jacaré, e sim simplesmente uma lagartixa. Não havia ninguém que me
Faço referência a outro exemplo de interpretação visual. A autora surda Vilhalva (2001, p. 11)
descreve, quando ela era criança: "[...] e quando eu conseguia, olhava um monte de outras
casas e uma coisa comprida que nem centopeia, que mais tarde fui entender que era trem do
crianças surdas ao contato com surdos adultos para criarem um vínculo identificatório
cultural, a fim de evitar que essa habitual dúvida surgida com o "olhar" ao seu redor na vida
cotidiana possa pesar nas suas reflexões e provocar futuras angústias e ansiedades. Afirmam
Freeman, Carbin e Boese (1999, p. 222): "As pessoas surdas veem o mundo de maneira
diferente, em alguns aspectos, porque suas vidas são diferentes. Enquanto as crianças surdas
vão amadurecendo, elas não encontram modelos satisfatórios dentro de sua família".
Esse contato da criança surda com adultos surdos, através de uma língua em comum, que é a
identidade e a cultura surda, que são transmitidas naturalmente à criança surda em contato
Os autores surdos Padden e Humphries (2000, p. 22) explicam que pode haver interpretações
diferentes de uma mesma situação, dos sujeitos surdos e ouvintes; os sujeitos surdos
interpretam visualmente, enquanto os sujeitos ouvintes estão mais voltados para a audição:
Uma colher cai e provoca um som quando bate no chão. Alguém a junta, mas não
simplesmente porque ela provocou um som, mas porque saiu fora de vista.
O fazendeiro sai para ordenhar as vacas não somente porque elas fazem barulho, mas porque
Muitas vezes a sociedade dificulta a participação dos sujeitos surdos, deixando de colocar
muitos recursos visuais que promovem sua acessibilidade em vários espaços. Cito uma
situação narrada pela surda Shirley Vilhalva em uma agência de banco onde, pela falta de um
painel que ilustrasse o número das senhas da fila para atendimento, a funcionária esqueceu de
painel para ver a chamada, fiquei aguardando sentada no local reservado e fui vendo que ela
ia chamando as pessoas e nada de chegar minha vez. De repente, levantei e disse para a moça
do caixa: moça, meu numero é 54. Ela disse: Oh! Desculpe esqueci-me de você e já passaram
Quando tem mudanças de horários ou de locais de ônibus ou aviões sendo anunciados pelo
microfone, os sujeitos surdos geralmente os perdem por não haver avisos escritos, como em
Eu estava retornando para minha cidade num avião que desceu em São Paulo para uma
conexão com outro avião, lá no Aeroporto de Guarulhos - SP; apelei para o atendimento
especial porque o aeroporto era muito grande e havia poucos recursos visuais que
facilitassem a minha acessibilidade e com isto eu perdia muitas informações ditas pelo alto-
falante. Então a moça do atendimento especial me deixou na sala VIP, alegando que o meu
avião estava atrasado. Fiquei esperando lá na sala sozinha cerca de quatro horas seguidas e,
quando alguém apareceu na sala e me viu lá, percebeu que esqueceram de mim e o meu avião
Tem algumas atitudes acerca da percepção visual entre os sujeitos surdos; por exemplo,
durante a conversa, ficar frente a frente é uma circunstância muito valorizada pelo povo
surdo, não importando a distância; por isso, eles evitam virar as costas enquanto estão em
interação; se isto ocorre é considerado como insulto ou desinteresse. Também quando estão
conversando distantes um do outro e alguém "corta" esse espaço visual ficando de obstáculo
no meio, isso é considerado uma grave falta de educação para a comunidade surda.
Tem ocasiões, quando os sujeitos surdos perdem seu campo visual, por exemplo, quando
apagou-se. [...] começou o pânico. Não sabíamos onde se encontrava o interruptor daquele
andar e não podíamos combinar quem de nós deveria procurá-lo. E se cada um de nós está
esperando pelo outro para acender à luz? E se eu não o fizer, e ninguém mais também, por
quanto tempo ficaremos nessa escuridão? Parece que todos tiveram o mesmo pensamento e
saíram à procura do interruptor. Éramos seis e ficamos esbarrando uns nos outros, sem poder
nos comunicar. Essa situação acabou quando um morador entrou no prédio, por acaso, e
Eu trago uma situação que ocorreu comigo: Durante uma viagem, fui ao banheiro dentro do
ônibus, o qual era de dois andares e o banheiro ficava embaixo. Fiquei presa dentro do
banheiro. Entrei em pânico porque tudo era fechado, sem janelas, era noite e ia demorar umas
três horas para chegar ao meu destino; e, quando chegar, como avisar ao motorista que estou
presa? E se me chamarem? Como poderei ouvir? Como posso "ver" se estão me ouvindo e se
estão me chamando? E como vou explicar a eles se não posso "ver" a resposta deles? Bati
com força na porta, esmurrei a porta com pontapé... Fiz o maior barulho, achando que havia
pessoas lá fora me aguardando com curiosidade e tentando me ajudar. Depois de duas horas,
consegui abrir a porta e vi que ninguém percebeu que eu estava presa nem ouviu o meu
Voltando às expressões facial e corporal, elas também podem desempenhar outro papel de
expressão do rosto, que funciona algumas vezes como meio de reforçar urna idéia que está
sendo transmitida.
Por exemplo, para constituir tipos de frases na oralidade, percebe-se quando a frase está na
Inclusivamente os surdos oralizados também têm esse artefato cultural visual. A maioria deles
se apoia na percepção visual para ler nos movimentos dos lábios do interlocutor que articula
as palavras e frases da língua portuguesa. Os surdos oralizados aqueles que não convivem
com a comunidade surda e não usam a língua de sinais, que se comunicam somente através
da fala, escrita e de leitura labial. Também quero ressaltar que tem muitos sujeitos surdos que
convivem nas comunidades surdas e usam língua de sinais e também são oralizados; a estes,
chamamos de "surdos". Eles formam movimentos para lutar pelos seus direitos de haver
emergentes" ou "sinais caseiros" dos sujeitos surdos de zonas rurais ou sujeitos surdos
isolados de comunidades surdas, que procuram entender o mundo através dos experimentos
visuais e procuram comunicar-se apontando e criando sinais, pois não têm conhecimentos de
sons e de palavras. Cito situações que ocorrem com esses sujeitos surdos descritos acima:
Um sujeito surdo em zona rural, isolado da comunidade surda e que nunca aprendeu a língua
de sinais, a falar ou escrever, sem ter a noção de horas e dias da semana, observa ao seu redor
que tem um dia da semana em que as frutas sempre são colhidas, o dia certo de ir à igreja, os
dias em que o caminhão vem pegar o lixo, e que quando o sol aparece no horizonte é a hora
de ordenhar e pegar ovos, etc. Ele acompanha esta rotina de acordo com o seu "olhar" do dia
Para o sujeito surdo ter acesso às informações e conhecimentos, e para construir sua
identidade, é fundamental criar uma ligação com o povo surdo em que se usa a sua língua em
A língua de sinais é uma das principais marcas da identidade de um povo surdo, pois é uma
das peculiaridades da cultura surda, é urna forma de comunicação que capta as experiências
visuais dos sujeitos surdos, e que vai levar o surdo a transmitir e proporcionar-lhe a aquisição
de conhecimento universal.
Faço referência, mais uma vez, a uma situação ocorrida comigo: em escola de ouvintes, além
de muitas outras disciplinas, eu tinha aulas de religião, as quais não entendia muito, as únicas
coisas que sabia era que Deus era muito importante e, se morresse, iria ficar de frente com
questionou; expliquei a ela através de gestos e vocabulários isolados que, se eu morresse, não
saberia como Deus iria me entender. Não sabia falar. Minha mãe explicou que Deus entendia
qualquer língua. Mas na verdade eu tinha uma língua? Minha língua era o português
A língua portuguesa não será a língua que acionará naturalmente o dispositivo devido à falta
de audição da criança. Essa criança até poderá vir a adquirir essa língua, mas nunca de forma
Quando um bebê nasce surdo, ele desenvolve inicialmente as mesmas fases de linguagem que
o bebê ouvinte: grito de satisfação, choro de dor e fome, sons sem significados, até mais ou
menos seis meses de idade. Quando chega à fase de balbucio é que começa a ser diferenciado
de outro. Porque o bebê ouvinte, podendo ouvir os sons do ambiente ao redor de si, tenta se
comiánicar emitindo sons, enquanto o bebê surdo, não ouve sons do ambiente e, por isto, as
informações externas."
que as crianças surdas de pais surdos se saem melhor no desenvolvimento da linguagem que
as outras crianças surdas de pais ouvintes, pois elas não apresentam os problemas da
com os filhos surdos o mais precocemente possível, esclarecendo todas as suas curiosidades
naturais.
Os sujeitos surdos que têm acesso à língua de sinais e participação da comunidade surda
possuem maior segurança, autoestima e identidade sadia. Por isso, é importante que as
crianças surdas convivam com pessoas surdas adultas com quem se identificam e tenham
(1997):
[...] a criança [no contato com modelos surdos adultos] não apenas terá assegurada a
positivo. Ela terá a possibilidade de desenvolver sua identidade como uma representação de
integridade, não como a de falta ou de deficiência [...] podendo se perceber como capaz e
passível de vir a ser. Ela não terá que ir atrás de urna identidade que ela nunca consegue
alcançar: a do ouvinte.
A língua de sinais é transmitida nas comunidades surdas e, apesar de por muito tempo na
história dos surdos ter sofrido a repressão exercida pelo oralismo, não foi extinta e continuou
a ser transmitida, de geração em geração, pelo povo surdo com muita força e garra.
11
Para saber mais, ler Quadros (1997).
A língua de sinais é uma língua prioritária do povo surdo que é expressa através da
sobre as línguas de sinais como, por exemplo, o do americano Willian Stokoe (1965) e, no
Brasil, dos ouvintes pioneiros, e depois vieram os pesquisadores surdos; citamos como
exemplos os ouvintes Lucinda Ferreira Brito (1986), Ronice Quadros (1995, 2004), Tanya
Felipe (2002) e Lodenir Karnopp (2004) e os surdos lingüistas Ana Regina e Souza Campello
No mundo todo, há, pelo menos, uma língua de sinais com suas variações regionais usada
amplamente na comunidade surda de cada país, diferente daquela da língua falada utilizada
A língua de sinais do Brasil não pode ser estudada tendo como base a língua portuguesa,
Neste artefato língua, do povo surdo, a língua de sinais também pode passar pelas mudanças
históricas - com o passar do tempo, um sinal pode sofrer alterações decorrentes dos costumes
da geração surda que o utiliza - tal qual percebemos com a citação de Padden e Humphries
(2000, p. 74):
Lembramos dos artistas Surdos de hoje, os poetas e contadores de história de nossa geração, e
a forma de prazer que eles levam a um público, porém também estava claro que desde 1940 a
performance sinalizada havia mudado. [...] os artistas de hoje são muito mais
Tem alguns detalhes curiosos na forma de como o povo surdo se comunica: no ônibus, os
sujeitos surdos comunicam- se através do vidro - um sujeito fora e outro dentro do ônibus;
nas cidades, em praças ou nas praias, sujeitos surdos forasteiros, que não se conhecem uns
aos outros procuram um ponto de encontro - onde tem urna roda de sujeitos surdos
Outro artefato cultural lingüístico interessante é o sistema de escrita para escrever a língua de
sinais que estão difundindo. Este sistema é conhecido pelo nome de SignWriting (SW) e foi
um fato histórico importante para o povo surdo, pois, outrora, diziam que a língua desse povo
era ágrafa.
UM
partir daí evoluíram muitas pesquisas em outros países que chegaram a algumas escolas de
surdos no Brasil.
A pesquisa desse sistema SignWriting (SW) no Brasil foi desenvolvida pela doutora surda
Marianne Stumpf, junto com outros pesquisadores. O primeiro contato que ela teve com esse
sistema foi»ho ano de 1996 e em 2005 defendeu a sua tese com esse tema. Esse sistema agora
Hoje já tem disciplina de ELS em alguns cursos de graduação nas várias universidades
Mesmo a despeito de mais de um século de proibição de seu uso nas escolas de surdos,
das famílias surdas, pois é uma ocorrência naturalmente benquista pelo povo surdo, que não
vê nessa criança um "problema social", como ocorre com as maiorias das famílias ouvintes.
No entanto, quando os pais surdos levam seus filhos surdos aos médicos e profissionais da
área, estes os aconselham a não usarem a língua de sinais, alegando que isso provocaria
filhos, argumentando que ouvir som e aprender a falar é melhor do que nada; assim
Se os profissionais oferecem tais estranhos conselhos, enxergando a criança surda não como
um presente de Deus, mas como um problema, então os pais surdos que estão seguros na sua
identidade cultural, reconhecendo que eles têm mais experiência e conhecimento em criar
Seguros de que nada foi encontrado de errado com sua criança, que ela é simplesmente surda,
voltam para casa e prosseguem com suas vidas, cercados de recursos do "Mundo- Surdo",
que oferece suporte, encorajamento, e os meios para existir e contribui como um membro
Enquanto isso, nas famílias ouvintes, durante a gravidez, fantasiam que o filho esperado é o
mais bonito, perfeito, inteligente e ouvinte. Quando nasce um bebê, os membros da família
culpam-se por terem gerado um filho dito "não normal" e ficam frustrados porque veem nele
um sonho desfeito. Então, essas famílias alimentam esperanças de "cura" dessa "deficiência",
Será que o meu filho surdo um dia ouvirá? Será que um dia ele falará igual à criança ouvinte?
Será que um dia ele será mais bem aceito pela sociedade? Será que um dia o meu filho terá
uma vida "normal"? Como vemos, tem muitos "serás", não existem certezas nesse caso; o que
sabemos é que geralmente a família dessa criança surda não procurará a comunidade surda,
Apesar da criança surda que foi sujeita ao implante não se mover facilmente no mundo
ouvinte, é pouco provável que o faça na comunidade dos surdos, é pouco provável que
aprenda fluentemente a American Sign Language (Língua Americana de sinais) [...] criando
os seus próprios valores fundamentais existentes naquela comunidade. A criança surda corre
então o risco de se desenvolver sem qualquer tipo de comunicação concreta, seja ela falada
Já teve casos em que muitas famílias ouvintes foram pedir opinião ao povo surdo e optaram
especialistas também ouvintes. O anseio de tornar seus filhos surdos "normais" perante a
sociedade falou mais alto, pois as famílias ouvintes no meio da comunidade surda sentiram-
Faço parte da comunidade dos surdos sinalizados e sempre fui sincera com as mães, sempre
digo que sou surda profunda e amo a Língua de Sinais, sou feliz como Deus me fez e não
pretendo mudar isso. Mas são elas que têm que decidir o futuro dos seus filhos surdos e não
eu. Elas sabem que sou contra elas afastarem os filhos da comunidade surda, privando o
direito de eles se comunicarem em Libras, fico muito triste com isso, mas continuo sendo
amiga das mães, sempre rezo por elas para que mudem de idéia e que essas crianças, no
membros surdos e outros, na maioria, com família de todos os membros ouvintes, com a
Na maioria dos casos, com famílias ouvintes, o problema encontrado para esses sujeitos
Em muitas ocasiões eu não entendia o que falavam ao redor da mesa durante as refeições ou
durante as novelas na televisão e muitas vezes implorava às pessoas pela pouca atenção e
Em famílias ouvintes, as crianças surdas observam as conversas e discussões que não são
sentimento contido nesse isolamento das crianças surdas com famílias ouvintes, dentro da
Você fica fora da conversa à mesa do jantar. É o que se chama de isolamento mental.
Enquanto todos os outros falam e riem, você se mantém tão distante quanto um árabe
solitário num deserto que se estende para o horizonte por todos os lados. [...] Sente-se ansiosa
por um contato. Sufoca por dentro, mas não pode transmitir esse sentimento horrível a
ninguém. Não sabe como fazê-lo. Tem a impressão de que ninguém compreende nem se
importa. [...] Não lhe é concedida sequer a ilusão de participação [...] (JACOBS apud
O que encaixa bem também esses anseios dessas crianças surdas é o que a autora surda
Os adultos ouvintes que privam seus filhos da língua de sinais nunca compreenderão o que se
algumas vezes, o ódio. A exclusão da família, da casa onde todos falam sem se preocupar
com você. Porque é preciso sempre pedir, puxar alguém pela manga ou pelo vestido para
saber, um pouco, um pouquinho, daquilo que se passa em sua volta. Caso contrário, a vida é
Salvo alguns casos, quando tem diálogos e bom vínculo entre eles, isso ocorre porque um ou
outro membro ouvinte da família do filho surdo resolveu se informar e aprofundar a respeito
da cultura surda, procurando se comunicar e passar todas as informações para a criança surda
em. uma relação de diálogo, no qual existe uma efetiva troca de saberes e a aceitação da
identidade surda.
Nas outras famílias, com todos os membros surdos, dos avós até os filhos, passando por tios,
tias, primos e outros, eles passam pelo processo natural de transmissão da cultura surda.
Nessas famílias surdas, as crianças surdas têm informações que as ajudam a compreender os
artefatos culturais existentes nos povos surdos. Também pode ocorrer que nas famílias surdas
[...] Sueli Ramalho Segala, 43 anos. Surda, ela não sofreu com o preconceito na gravidez.
Seus conflitos começaram quando Felipe nasceu. Toda sua família é surda e ele foi o primeiro
ouvinte depois de três gerações. Apesar de o pai não ser deficiente, durante o pré-natal o
médico afirmou que a chance de o bebê nascer surdo era de 95%. "Foi uma surpresa quando
percebemos que ele escutava. Perguntei à minha mãe como eu cuidaria dele", conta. Quando
com os pais e o irmão dela. Assim, o menino cresceu em meio à Língua Brasileira de Sinais e
à cultura surda. "A primeira palavra que falou foi em sinais: mamadeira. Em português
falado, ele chamou o pai. Compreendeu desde pequeno como era a nossa comunicação." [...]
Felipe faz bicos como intérprete da Libras, unindo dois mundos com línguas e cultura
habitual assistirem à televisão 110 volume mudo para não incomodar os vizinhos. Todos
usam língua de sinais como a língua prioritária do lar, lavam louças e fazem movimentos
inesperadamente com barulho alto sem perceberem. Desse modo, explicam os autores
americanos Lane, Hoffmeister e Bahan (1996), que durante as refeições de uma família com
todos os membros surdos, a criança surda está incluída nas conversas em língua de sinais
desde o início, e quando chegam visitas, amigos surdos e/ou ouvintes, as conversas
continuam sendo conduzidas em língua de sinais e, assim, a criança surda visualiza, recebe
Há uns 15 anos eu fui com uma amiga surda a São Paulo e ficamos na casa de outra amiga
surda paulista que tem família com todos os membros surdos. Nós três, na época, durante a
madrugada, ficamos conversando em língua de sinais, dando ênfase aos diversos assuntos no
nível do interesse de nós como moças. Conosco estava um dos membros dessa família, a
irmãzinha menor surda de 7 anos, que não participava nas nossas conversas, mas que nos
encontrei esta "irmãzinha, menor" já adulta, uma acadêmica, ótima profissional e inteligente;
ela comentou que se lembra dos assuntos que conversamos naquela noite.
Isso reforça o que os autores Lane, HofFmeister e Bahan (1996, p. 27) colocam:
acomodações, tudo resulta num grande gasto para o desenvolvimento da criança surda. A
maioria das crianças surdas de pais surdos funciona melhor do que crianças surdas de pais
ouvintes nas áreas acadêmicas, sociais e lingüísticas. Crianças surdas de pais surdos
resto do mundo; elas creem que os sujeitos ouvintes é que são "estranhos", "esquisitos" ou
Um papagaio fazia parte da família, eu ficava intrigada e imaginando por que todos falavam
mais com o papagaio do que comigo, neste período começaram as dúvidas e mais dúvidas,
sem imaginar que eu podia ser diferente, não me lembro se sabia os nomes das pessoas,
demorei muito para entender que eu, as pessoas, as coisas tinham nomes. (VILHALVA, 2001,
p. 12).
americano Sarn Supalla, que tem várias gerações de família de surdos, sobre a amizade de
[...] Após alguns encontros tentativos, eles se tornaram amigos. Ela era uma companheira
satisfatória, porém havia o problema de sua "estranheza". Ele não conseguia falar com ela da
maneira que conseguia falar com seus irmãos mais velhos e com seus pais. Ela parecia ter
uma dificuldade extrema de compreender mesmo os gestos mais simples ou mais rudes. [...]
Um dia, Sam lembra-se vivamente, que ele finalmente entendeu que a sua amiga era de fato
estranha. Eles estavam brincando na casa dela, quando de repente a mãe dela chegou até eles
e animadamente começou a mexer sua própria boca. Como se por mágica, a garota pegou
uma casa de boneca e levou-a para um outro local. Sam estava perplexo e foi para casa
perguntar a sua mãe sobre exatamente que tipo de aflição que a menina da porta ao iado
tinha. Sua mãe explicou a ele que ela era ouvinte e por razão disto ela não sabia sinalizar; em
vez disso, ela e a sua mãe falam, movimentam suas bocas para falarem entre si. Sam então
perguntou se esta menina e a família dela eram as únicas "daquele jeito". A mãe dele explicou
que não, de fato, quase todas as pessoas eram como seus vizinhos. Era a sua própria família
que era incomum. Aquele foi um momento memorável para Sam. Ele se lembra de pensar o
quanto estava curiosa a menina da porta ao lado, e se ela era ouvinte, como as pessoas
A situação abaixo é de outra família com todos os membros surdos que moram em São Paulo.
Quando criança, achava que o mundo era deficiente, em oposição à sua própria casa, onde
todos eram normais. Sendo a Libras a sua língua materna, na rua, ficava com dó das outras
crianças, pois elas não falavam com as mãos. Os pais lhe diziam: não falam com as mãos
porque ouvem (apontavam para o ouvido), mas Sueli achava (como é comum a crianças com
surdez profunda df nascença) que ouvido não tinha função a não ser a dè pendurar o brinco,
pois o surdo profundo não entende o conceito de som, sendo que apenas sente
aprendeu que todas as coisas têm nome (para os surdos, todas as coisas têm um sinal, ou
Dentro dessas famílias surdas, quando têm bichos domesticados, como cachorros ou gatos,
estes se habituam a entender as ordens dadas em língua de sinais ou arranjam maneiras para
ajudar os membros surdos. Por exemplo, a minha cachorrinha Asteca, ela sabe que sou surda
e quando lá em casa tocam a campainha na porta, ela vem me avisar com um olhar, mexendo
Lá em São Paulo tem uma família de pai surdo, mãe surda e duas filhas moças surdas, eles
possuem um cachorro labrador que entende a comunicação em gestos. Quando a moça surda
faz sinal de "passear", o cachorro vibra de alegre, indo até a porta, e assim por diante.
Também entende os sinais de "fazer xixi", "tornar banho", "comer" e até mesmo os sinais de
nomes de cada membro da família. Os animais criarem vínculo com os sujeitos surdos é tão
corriqueiro para o povo surdo que encontramos muitos casos desse tipo em muitos lares.
Vejamos abaixo um depoimento da psicóloga surda Rita Maestri sobre o processo de
Sou surda, psicóloga clínica e escolar, moro com meus dois filhos, Bruno de 24 anos e Arma
de 21 anos, que são ouvintes. Pretendo contar a minha experiência com o gato branco de
olhos azuis, lindo e fofo. A Anna ganhou o Rony, o nome do gato, do namorado, em 2005,
que veio ao meu apartamento com 45 dias de vida. Como psicóloga, eu entendo que os
animais aprendem por condicionamento e pensei em uma forma de o Rony entender o meu
comportamento de pessoa surda, pois sei que dentro da cultura surda tem inúmeros casos de
animais como cachorro, papagaios e gatos que têm uma comunicação visual forte com os
surdos. Então, cedo aconteceu que o Rony teve uma comunicação específica comigo, mas
teria de esperar o tempo de aprendizado. Passaram-se dois anos e nesses anos realmente o
Rony teve uma comunicação que diferencia a dos meus dois filhos ouvintes. Eu trabalho o
dia inteiro, assim como os meus filhos, e à noite nos encontramos e o Rony tenta obter a
atenção de nós três. Com o Bruno e Anna, Rony mia por trás, ao lado deles e eles respondem
ao chamado e o pegam dando-lhe carinho. Rony, quando mia para mim, ele sabe que dou
atenção com muitos mirnos e carinho, mas aos poucos foi percebendo que se miasse atrás de
mim ou ao lado eu não respondia. Rony foi percebendo que precisava ficar na minha frente
para responder ao chamado e tentou miar mesmo na frente sem parar. Mas foi percebendo
que não adiantava miar sem que eu esteja olhando e assim parou de miar se eu não o olhasse.
Aos poucos, Rony foi adquirindo o comportamento. Como passava por trás sem miar, vai na
minha frente sem miar se não estiver olhando para ele. Então, ele entendeu que se eu o
olhasse ele miava bem alto e assim ele recebia mimos e carinhos e começou a fazer assim
todos os dias e com meus filhos ele tinha o comportamento diferente; miava em todos os
sentidos e sabia que recebia carinho e comigo só miava quando olhasse bem na minha frente.
Com o passar do tempo, devido ao excesso de trabalho e pouco tempo para ele, eu comecei a
ignorá-lo e ele começou a todo custo encontrar urna maneira para que eu o olhasse; então, aos
dele e dou mimos e carinhos. Essa experiência eu sempre conto para todos, pois é um tipo de
comunicação especial que se desenvolve quando existe uma interação entre pessoa e animal
através de contatos, comportamento visual, e é possível acontecer. Por esse motivo, dentro da
O quarto artefato cultural é a literatura surda. Ela traduz a memória das vivências surdas
através das várias gerações dos povos surdos. A literatura se multiplica em diferentes gêneros:
poesia, história de surdos, piadas, literatura infantil, clássicos, fábulas, contos, romances,
lendas e outras manifestações culturais. Karnopp (1989, p. 102) faz referência a respeito
desse artefato cultural: "[...] utilizamos a expressão 'literatura surda para histórias que têm a
De tal modo, acrescenta o americano surdo doutor Andersson (1989, p. 158), "[...] pessoas
surdas de talento já tentaram criar poesia ou humor em língua de sinais. Essas inovações
cultural ideal".
A literatura surda refere-se às várias experiências pessoais do povo surdo que, muitas vezes,
expõem as dificuldades e/ou vitórias das opressões ouvintes, de como se saem em diversas
Grande parte dessas narrativas em lingua de sinais tem sido gravada em CD-ROM, vídeos e
DVDs, servindo atualmente como fontes para as várias pesquisas realizadas por sujeitos
surdos e ouvintes nas universidades, gerando este artefato cultural, Literatura Surda, que é
nativa e incomum:
discursos sobre os surdos. Entre eles, destacamos a literatura infantil, que está presente em
materiais. Nos últimos anos, essa literatura tem sido foco de pesquisas na área da educação
justamente por sua inserção e disseminação nas escolas, entre professore e alunos, tanto como
Muitos escritores e poetas surdos também registram suas expressões literárias em língua
cultura surda passou a ganhar espaço literário com lançamentos de livros e artigos com temas
Carol Padden e Tom Humphries, escritores surdos americanos, linguistas que escreveram os
livros Deaf in America: voices from a culture e inside deaf culture, valorizaram a chamada
"cultura surda", o que fez uma transformação positiva nos "olhares" sobre o povo surdo.
Outro excelente escritor surdo é o inglês Paddy Ladd, que escreveu o livro Understanding
deaf culture in search of deafliood, uma leitura espantosa que mostra muitas veracidades
A surda brasileira Gladis Perlin publicou muitos artigos, tais como "As identidades surdas"
(1998); "O ser e o estar sendo surdos: alteridade, diferença e identidade" (2003); "O local da
cultura surda" (2004); "Surdos: o discurso do retorno" (2005); "Surdos: por umapedagogia da
diferença' (2006); "Surdos: cultura e pedagogia" (2006); que contribuíram significativamente
permanente de respeito do "ser surdo", mudando a visão da história que garante o valor dos
direitos culturais para o povo surdo, transformando as relações de poder, desde a vida
Outros autores surdos brasileiros contribuíram com o artefato cultural literário, dentre os
quais eu menciono:
● Fabiano Souto Rosa: Literatura surda: criação e produção de imagens e textos (2006);
(2006);
● Gisele Rangel: História do povo surdo em Porto Alegre: imagens e sinais de uma
● Marianne Stumpf: Sistema signwriting:por uma escrita funcional para o surdo (2005);
(2001);
● Wilson Miranda: Comunidade dos surdos: olhares sobre os contatos culturais (2001).
Por muitas gerações os povos surdos transmitem muitas histórias através da língua de sinais;
a maioria delas parte de experiências das comunidades surdas, que transmitem seus valores e
orgulho da cultura surda, que reforçam os vínculos que os unem com as gerações surdas mais
[...] Primeiro, como em outras culturas, elas são carregadores de história, maneiras de repetir
Comunidade Surda, estas histórias assumem um outro peso: elas são um meio vital de ensinar
a sabedoria do grupo para aqueles que não têm famílias surdas. [...] (PADDEN;
A literatura surda também envolve as piadas surdas que exploram a expressão facial e
Na maioria das vezes essas piadas e anedotas envolvem a temática das situações engraçadas
sobre a incompreensão das comunidades ouvintes acerca da cultura surda e vice-versa, como
é o caso da popular piada "A árvore surda": o lenhador que grita "madeira" para uma árvore
surda e ela não cai, e a arvore só cai quando o lenhador aprende a soletrar "m-a-d-e-i-r-a". O
sujeito surdo, ao contar esta piada, incorpora os personagens com as expressões corporais e
faciais e os diálogos, usando a língua de sinais, o que faz com que os expectadores prendam a
Essas piadas da cultura surda muitas vezes podem ocorrer sem que a comunidade ouvinte as
compreenda e/ou não as achem engraçadas e vice-versa: o povo surdo também não
compreende as piadas da cultura ouvinte. Isso ocorre porque os sujeitos surdos usam nas
piadas os artefatos culturais do povo surdo, enquanto para o povo ouvinte, a temática da
discursos apaixonantes dos sujeitos surdos das gerações passadas, dos quais nos faltam
Tem muitos pesquisadores da história cultural de surdos. Entre eles estão o Antônio Campos
Rangel. Todos eles possuem um imenso acervo histórico-cultural sobre o povo surdo.
Os povos surdos olham para suas trajetórias vivenciadas no passado e no presente e percebem
muitas realizações deslumbrantes dos pioneiros da cultura surda. A história cultural de surdos
é longa e complexa, existe há dezenas de milhares de anos. Os povos surdos usam inúmeros
imagens visuais.
Corno vemos, com o passar do tempo, os povos surdos tiveram a necessidade de registrar
suas atuações do cotidiano, como as várias conquistas, língua de sinais, tradições culturais,
O quinto artefato cultural é a vida social e esportiva do povo surdo. São acontecimentos
culturais, tais corno casamentos entre os surdos, festas, lazeres e atividades nas associações
Os sujeitos surdos têm alguns estilos especiais que desenvolvem para se sair bem em
situações de apuros. Cito um exemplo ocorrido comigo: Como moro sozinha, eu precisava ir
ao aeroporto no dia seguinte, às cinco horas da madrugada, e não sabia como iria chamar um
táxi. Então, mandei uma mensagem no celular para minha irmã e pedi a ela para agendar um
táxi que me aguardasse tia frente do meu apartamento. No dia seguinte, o táxi veio. Escrevi
para o motorista num papel explicando que queria ir ao aeroporto e ele me levou sem
problema.
Na mesma situação, exemplifico outra cena ocorrida com o ator surdo Nelson Pimenta (1999,
p. 62):
Aconteceu aos seis anos de idade, quando minha mãe me mandou comprar urna mamadeira
na época um bebê. Ela não se preocupou com o fato de eu ser surdo. Foi a primeira vez que
comprei alguma coisa sozinho. Na loja, fiquei olhando, procurando nas prateleiras a
mamadeira para apontar, mas não havia nenhuma à mostra. O lojista me pediu para escrever o
que queria, mas aos seis anos, eu ainda não sabia escrever. Então desenhei a mamadeira no
Há reações emocionais dos sujeitos surdos que trazem padrões de comportamentos habituais
do povo surdo e que podem consistir em contatos íntimos entre os membros da comunidade
surda, tais como as amizades, lealdades e casamento entre eles. Cito Lane (1992, p. 31):
[...] outra característica notável desta cultura é a sua percentagem de casamentos endógamos:
nove em cada dez membros da comunidade americana dos surdos casa-se com membros
[...] em alguns centros urbanos, eles encontram seus pares surdos somente duas ou três vezes
por semana e gastam maior parte de seu tempo em um mundo ouvinte. Esse fato produz um
padrão de comunidade em que o tempo em que permanecem é fragmentado; por outro lado,
são extremamente próximos uns dos outros, havendo a tendência entre os membros da
comunidade surda de casarem entre si ou de residirem próximos uns aos outros. Essa
característica social faz com que pessoas surdas mantenham suas vidas na comunidade surda,
231).
Dentro da comunidade surda, os sujeitos surdos não se diferenciam uns dos outros através do
grau de sua surdez, e sim porque tal fulano é "surdo" ou "ouvinte", pois isto demonstra as
suas identidades culturais do pertencimento à comunidade surda. Portanto, ser filho de pais
surdos é extremamente respeitável no círculo deles, como cita Wrigley (1996, p. 15):
A partir de uma visão dos Surdos, o ato politizado de alegar uma surdez "nativa" - ou seja,
urna surdez de nascença - está ligado à identidade positiva de não estar "contaminado" pelo
mundo dos que ouvem e suas limitações epistemológicas do som sequencial. A "pureza" do
conhecimento dos Surdos, a verdadeira Surdez, que vem da expulsão desta distração, é na
cultura dos Surdos urna marca de distinção. Seria melhor ainda se os familiares e até mesmo
O povo surdo debate muito sobre identidade cultural nos casos de filhos surdos de pais
surdos, fazendo com que muitos deles também aspirem a ter filhos surdos; isto é considerado
natural pela comunidade surda. Em uma ocasião, quando resolvi adotar um filho, na Vara de
Infância, a psicóloga, ao conversar comigo, disse que o menino era ouvinte e teve uma surdez
progressiva. Retrucou preocupada: está consciente de que ele vai ficar surdo profundo? Eu
respondi: e daí? Para mim isto não muda nada, para mim ele é o menino Richardt e vou
aceitá-lo!
Lane (1992, p. 34) cita situações diferentes de duas mães surdas quando souberam que suas
filhas eram surdas. A primeira diz: "Pensei para comigo, ela deve ser surda. Não fiquei
desiludida; pensei, vai correr tudo bem. Somos as duas surdas, por isto saberemos o que
fazer". Diz a outra mãe, que vem de uma grande família de surdos na qual todos esperam que
ela gere um outro membro surdo: "Quero que minha filha seja como eu, seja surda".
Percebemos que a primeira aceitou com naturalidade, enquanto a outra afirma que a filha será
Duas mulheres lésbicas americanas surdas provocaram críticas de povos ouvintes por
também surdo, fazendo com que aumentasse a possibilidade de elas terem filho surdo.
As duas mulheres surdas disseram que queriam uma criança que fosse como elas. Em uma
entrevista a um jornal, as mulheres declararam que seriam melhores mães de uma criança
surda que uma pessoa ouvinte. Elas acreditam que são capazes de entender mais
escolha não foi diferente da de optar por um determinado sexo. Um trecho dessa entrevista:
[...] parte de uma geração que enxerga a surdez não como uma deficiência, mas como urna
identidade cultural. Algumas pessoas encaram isso como, "oh, meu Deus, vocês não deviam
ter uma criança com uma limitação física", disse McCullough, a mãe adotiva do garoto.
"Mas, você sabe, as pessoas negras têm uma vida mais dura. Por que não poderiam os futuros
pais escolher um doador negro se é isso que querem? Eles deviam ter essa opção."
(THEATHER, 2002).
Essa é uma situação sobre a qual precisamos refletir seriamente; mas até a que ponto eles
chegam? Será acertado desafiar a humanidade para ter uma criança surda? E acertado ter urna
criança surda para se identificar com a identidade cultural do povo surdo? Será que o ideal
criança que já é surda, em vez de gerar uma? Esse assunto polêmico envolve muito a questão
de ética humana.
Essa reflexão precisa ser muito repensada e levar a uma futura discussão séria. Sobre isso,
assim comenta Thoma (2004, p. 58): "Com a possibilidade da clonagem de órgãos humanos
ou mesmo de vidas humanas, levanta-se uma discussão ética sobre até que ponto podemos
O padrão de comportamento do povo surdo versa sobre a habitual freqüência aos bailes das
associações de surdos, com seus desfiles de misses surdas, discursos longos e repetitivos dos
Nos bailes e festas promovidos pelas associações de surdos, geralmente, no salão, há poucos
sujeitos surdos dançando e a grande maioria está conversando em seu canto, pois os sujeitos
surdos, quando reencontram seus amigos de muitos lugares do país, sentem mais necessidade
E aqueles que dançam no salão, ou são sujeitos ouvintes - amigos ou familiares de surdos - ou
são sujeitos surdos que sentem a vibração da música e gostam de dançar. A maioria procura
então dançam livres, à sua maneira, afinal, nesses bailes e festas de cultura surda não há
regras de ritmo musical correto e muitas vezes acontece que quando acaba a música, eles
continuam dançando.
Outro lance curioso que as comunidades surdas têm é a tradição de batizar os nomes de seus
membros em língua de sinais, que pode ser urna das características físicas da pessoa, ou
primeira letra de seu nome, ou de sua profissão, assim como exemplifica Dalcin (2006, p.
205):
[...] os surdos eram "batizados" por outros surdos da comunidade, através de um sinal próprio
e que esse sinal seria a identidade de cada um na comunidade surda. [...] a comunidade surda
não se refere às pessoas pelo nome próprio, mas pelo sinal próprio recebido no "batismo",
com o passar do tempo passaram a ter necessidades de mais discursos políticos e de outras
A partir daí, houve a necessidade de criar as organizações que promovem intercâmbio dos
Deportiva de Sordos (CONSUDES), que buscam adaptações culturais para surdos nas
práticas esportivas, como afirma o surdo Neivaldo Zovico (apud BADIN; PINTO, 2002, p.
10):
[...] a prática esportiva para os surdos requer apenas algumas adaptações de sinalização
visual, já que o surdo não possui debilitação física, sendo capaz de competir em grau de
igualdade com atletas não surdos. Em um jogo de futebol, por exemplo, no lugar do apito são
No ano de 2002 foi realizada no Brasil, na cidade de Passo Fundo, estado do Rio Grande do
Sul, a primeira Olimpíada de Surdos do Brasil. Houve comoventes desfiles dos times de
A cada quatro anos é organizada a Olimpíada Mundial dos Surdos, com competições de jogos
esportivos com muitos atletas surdos de vários países. Na olimpíada de 2005, na Austrália, a
dupla de vôlei de praia brasileira, os atletas surdos Alex Borges e Alexandre Couto, ficou em
quinto lugar.
O nadador surdo Terence Parkin, da África do Sul, conquistou a medalha de prata nos 200
metros nado peito nas Olimpíadas de Sydney 2000, competindo com outros atletas ouvintes.
Seu treinador costumava ficar ao lado do nadador, próximo ao bloco, para fazer um sinal
de saída para este. Isso antes de a Federação Internacional de Natação (FINA) autoriza a
Em eventos públicos como, por exemplo, nas palestras ou apresentações teatrais, os sujeitos
surdos não ouvem os aplausos com as palmas das mãos, que comovem os sujeitos u ouvintes
pelo barulho forte e vibrante; plateias aplaudem para sujeitos surdos girando as mãos
Num determinado momento subi numa arquibancada e, olhando de cima, o que presenciei foi
um mar de mãos se agitando... Então me ocorreu que aquele espetáculo seria o equivalente ao
No artefato cultural artes visuais, os povos surdos fazem muitas criações artísticas que
O artista surdo cria a arte para que o mundo saiba o que pensa, para divulgar as crenças do
povo surdo, para explorar novas formas de "olhar" e interpretar a cultura surda. Desse modo,
como assevera o sociólogo surdo Andersson (1989, p. 158): "As pessoas surdas também
acham a língua de sinais, como qualquer outra língua, uma maneira poderosa de expandir sua
programas de grande sucesso. Artistas surdos têm conseguido mostrar a linguagem de sinais
Tem muitos surdos artistas que fazem desenhos, pinturas, esculturas e outras manifestações
artísticas com a extensão, beleza, equilíbrio, harmonia e também revoltas corri muitas
discriminações sofridas pelo povo surdo. Como exemplo, há muitas pinturas e esculturas
lindas que os artistas surdos produzem em língua de sinais, cenas de opressões ouvintistas e
outros.
Uma surda, Ana Luiza Caldas (2006, p. 116), defendeu mestrado expondo sua pesquisa que é
voltada à análise das revelações artísticas de surdos através de pinturas. Concluiu-se que os
sujeitos surdos se identificam com pinturas, com artefatos culturais do povo surdo e também
Professora: Eu quero que você sinalize o que você entende sobre o que está na pintura.
Professora: Não sei. Você tem como ver se ela é surda? Vinícius: Não sei. Eu acho que ela é
ouvinte... Surda ou ouvinte?... O que ela será? Eu não sei. (Vinícius observando Mona Lisa.)
Alessandra: Tem alguns animais que são surdos e outros ouvintes, mas eles estão juntos.
Alessandra: Tem. Antigamente eu tinha um cachorro que era surdo. Ele não falava, ficava
parado. Professora: E como você sabia que ele era surdo? Alessandra: Ele ouvia um
pouquinho. Eu assobiava para ele: Vamos brincar! E ele ficava parado, mas o outro cachorro
praticada pelos sujeitos surdos; por isso eles têm grande talento para expressar as suas
histórias. Existem muitos DVDs de filmes de poetas surdos apresentando suas performances
Nas comunidades surdas, muitos sujeitos surdos se destacaram na sociedade, como Marlee
Matlin, atriz surda americana que ganhou o Oscar de melhor atriz no filme Filhos do silêncio,
no ano de 1987, que foi uma vitória delirante para o povo surdo; e Emmanuelle Laborit, atriz
surda francesa, que além de interpretar no teatro e no cinema, também escreveu um livro com
No Brasil tem muitos atores surdos, entre eles o pesquisador Nelson Pimenta, que estudou no
National Theatre of the Deaf, nos Estados Unidos, é graduado em Cinema e atualmente faz
mestrado em Tradução, na UFSC. Ele possui uma empresa, LSB Vídeo, 17 que produz livros,
jogos didáticos e DVDs de língua de sinais com muitas histórias infantis, poesias e
Outro ator, mímico e clown, o surdo Rimar Romano, que tem três gerações de família surda,
apresenta publicamente suas performances como mímica e teatro físico junto com os atores
ouvintes. Ele e a irmã fundaram uma companhia de teatro chamada Cia. Arte e Silêncio.
Rimar faz apresentações teatrais para crianças surdas e ouvintes em escolas. Um dos
objetivos mais importantes das apresentações dele é divulgar a Libras e a cultura surda, como
[...] o Rimar tem algumas particularidades, e especialidades, no meu ponto de vista ele
consegue inserir a cultura surda em sua arte em teatro, Rimar coloca em meio a sua
dramatização, piadas referentes ao campo visual, por exemplo, "desculpe, sou surdo, não vi"
O ator surdo paulista, atualmente com mais de 70 anos, | Reinaldo Pólo atua
(SP); ele faz performances divertidas, de tal modo, como nas patinações.
GO; ele criou vários grupos de teatro para ensinar aos outros sujeitos surdos:
Meu apelido é Paulão Praxedes, atuo há 14 anos de tempo no teatro com surdos. Na época eu
estava preocupado porque os surdos tinham muitos problemas na vida social e foi quando eu
pensei que queria formar um grupo teatral para ensinar a expressão facial e corporal a eles.
Alguns surdos não sabiam ler em português os textos sobre cenas e diálogos. Então eu, como
professor surdo, explicava para eles em língua de sinais para que eles entendessem bem.
Quando eles já aprofundaram mais os conhecimentos sobre o teatro e foi então que criei
vários grupos de teatros, dentre eles: "Expressão do Silêncio" (voltados para crianças surdas),
"Mãos do Silêncio" (pastoral dos surdos da igreja católica) e "Gesto do Coração" (para
adolescentes e adultos surdos). O meu coração está descompassado por causa do meu grande
E tem muitos outros comediantes e artistas, tais como Silas Queiroz, Sandro dos Santos
Pereira, Heloir Montanher, Celso Badin, Paulo André Bulhões, Cacau Mourão e assim por
diante.
A música, por exemplo, não faz parte da cultura surda, mas os sujeitos surdos podem e têm o
direito de conhecê-la como informação e como relação intercultural. São raros os sujeitos
surdos que entendem e gostam de música, e isto também deve ser respeitado.
diferentes contextos como: músicas sem som," dançarinos, atores, poetas, pintores, mágicos,
[...] tradição dos contadores de histórias que passam narrações e, mais importante, a tradição
da arte de contar histórias em si mesma para gerações mais jovens. Esta autoeducação dentro
dessas instituições tem sido pouco estudada, mas ela sugere caminhos importantes de
Outro artefato cultural influente das comunidades surdas é a política, que consiste em
Historicamente o povo surdo brasileiro transmitiu muitas tradições em suas organizações das
comunidades surdas. O espaço cultural mais conhecido de todos são as associações de surdos.
No início, as associações de surdos tinham exclusivamente o objetivo de natureza social
devido ao baixo padrão de vida no século XVIII. Os sujeitos surdos tinham o propósito de
ajudar uns aos outros em caso de doença, morte e desemprego e, além disso, as associações
Atualmente, um dos maiores objetivos das associações dos surdos é a política. Nessas
interesses comuns, lutando pelos seus direitos judiciais e de cidadania, em uma determinada
Cito abaixo alguns líderes e militantes surdos mais conhecidos do Brasil que representam
importante espaço de articulação cultural e política do povo surdo, que contribuíram para a
Lingüística e doutorado na área de educação na UFSC." A Ana foi urna militante política
importante no Brasil, ela desafiou e participou em movimentos na área dos surdos há mais de
30 anos e juntamente com outros surdos líderes criou a FENEIS (Federação Nacional de
Educação e Integração dos Surdos), uma conceituada instituição que defende os direitos dos
filantrópica, sem fins lucrativos, com finalidade sociocultural, assistencial e educacional, que
tem por objetivo a defesa e a luta pelos direitos da comunidade surda brasileira. É filiada à
Federação Mundial dos Surdos (WDF). Segue abaixo um trecho da entrevista dada por um
onde atuei por 32 anos. Depois fundei a Federação Mineira Desportiva de Surdos e a
Confederação Brasileira de Desportos dos Surdos, trabalhando como voluntário. Mais tarde
me uni a um grupo de surdos para fundar a Federação Nacional das Associações de Surdos.
Sempre tive o objetivo de estimular a integração entre surdos e ouvintes, valorizar a cultura
liderança nos Estados Unidos, na Universidade dos Surdos. E sou membro da Federação
Mundial de Surdos. A vitória por tudo que já conquistamos na Feneis não é só minha. Eu sou
Já explicado antes, todavia repito aqui, a outra organização do artefato cultural política de
extrema importância para o povo surdo é a Confederação Brasileira de Desportos dos Surdos
muitos estados brasileiros. Foi realizado o I Encontro Latino Americano de Mulheres Surdas
Uruguai. Esse encontro teve corno objetivo principal debater a realidade social da mulher
surda na América Latina, com ênfase na saúde, violência, educação, sexualidade, política,
O povo surdo luta pela pedagogia surda que parte de um "olhar" diferente, direcionado em
uma filosofia para educação cultural, na qual a educação dá-se no momento em que o surdo é
colocado em contato com sua diferença, para que aconteça a subjetivação e as trocas
povo negro, o povo índio, o povo alemão, o povo surdo e outros, é que foi possível desvendar
Esse artefato político abre os espaços dentro de uma educação diferente, por exemplo: o
professor surdo entra em sala de aula e tenta aplicar a teoria proposta deparando-se com as
diferenças de identidades culturais dos alunos surdos. Então, para colocar em prática o seu
quando a criança surda mira o professor surdo, ela se sente refletida nesse professor, ela sabe
que, se esse professor chegou lá, ela também pode chegar. Com relação ao professor ouvinte,
a criança surda tem uma grande dificuldade de se identificar numa perspectiva de futuro.
Então essa criança se sente excluída no processo de formação de sua própria identidade. O
professor de surdo pode ser o modelo de como nós, surdos, precisamos ser, em termos
linguísticos e culturais.
A pedagogia surda é uma educação sonhada pelo povo surdo, visto que a luta atual dos surdos
[...] Com base nisso, a questão da língua passa a ser também um instrumento de poder nas
relações com as crianças e alunos surdos. Sendo a língua de sinais brasileira a língua de
instrução, os professores (e/ou instrutores surdos) são os que mais dominam a língua. Quando
surdos. Nos currículos tradicionais não havia espaço para respeitar a cultura de alunos surdos
Esses artefatos culturais não devem ser considerados apenas como entretenimento, mas sim
uni importante espaço educacional que faz formar a pedagogia surda e o currículo surdo,
surdos.
surda, currículo surdo, história cultural, aceitação da língua de sinais e de valores culturais. O
surdas contra as práticas ouvintistas, assim como diz a pesquisadora surda Gladis Perlin
(1998, p. 71):
Para o movimento surdo, contam as instâncias que afirmam a~ busca do direito do indivíduo
surdo ser diferente nas questões sociais, políticas e econômicas que envolvem o mundo do
comunidades surdas, vitoriosamente foi reconhecida pela nação brasileira como a língua
A UFSC oferecerá, a partir deste ano, em parceria com outras oito instituições de ensino
grande por profissionais com essa graduação. Há vários anos, o MEC vem oferecendo
capacitação para pessoas preferencialmente surdas que atuam como instrutores da língua de
sinais sem a licenciatura. O objetivo do projeto é formar professores com essa graduação". O
número de surdos também é um fator relevante. Existem cerca de 170 mil surdos no Brasil,
Outra orgulhosa conquista feita pelo povo surdo é a comemoração de seu dia, o "Dia do
Surdo". Essa data é comemorada em muitos países, na maioria no mês de setembro, com
data é um marco histórico - foi fundada a primeira escola de surdos no Brasil. 26 Essa data o
povo surdo comemora com muito orgulho, tendo sua cidadania reconhecida sem precisar se
esconder embaixo de braços de sujeitos ouvintistas, assim como reforça Moura (2007, p. 11):
reconhecimento de todo um movimento que teve início há poucos anos no Brasil quando o
Surdo passou a lutar pelo direito de ter sua língua e sua cultura reconhecidas corno uma
Com esse artefato cultural política, vamos refletir sobre as situações em que vivemos e
levantar desafios para nós, os membros das comunidades surdas, liderando os muitos
movimentos, contribuindo para as mudanças positivas das representações sociais acerca dos
povos surdos!
autores americanos alegam no caso das crianças surdas com famílias surdas:
[...] O seu lar já funciona como um ambiente que conduz ao uso visual como o principal meio
de aprendizagem e desenvolvimento. A casa tem a rede planejada para responder aos sinais
ambientais visualmente. Por exemplo, campainhas e telefones não tocam, mas acendem a luz,
cada um com seu padrão. Pais surdos têm TTY para se comunicar ao telefone. (LANE;
Destacam-se, entre eles, o Telephone Device for the Deaf (TDD) - um pçuco maior que o
telefone convencional, na parte de cima tem um encaixe de fone e embaixo dele tem um visor
onde aparece escrito digitado e, mais abaixo, tem as teclas para digitar instrumentos
vibradores, legendas closed-caption, babás, sinalizadores, etc. Cito exemplo de uma situação
[...] só sabia que ele estava chorando com o auxílio de um aparelho chamado "babá
longo fio, ia comigo para todos os lugares. Enquanto estava na cozinha fazendo meus
afazeres, ficava de olho na lâmpada para saber se estava piscando. Sem problema!
Em 1964, três inventores surdos, Robert Weitbrecht, Andrew Saks, e James Marsters,
inventaram o modem do Teletypewriter (TTY), um aparelho que foi inventado por volta de
1910 para transmitir texto por linha telegráfica que permitiria ao povo surdo se comunicar
através de telefone.
Robert Weitbrecht, um físico surdo, durante toda a sua vida sempre demonstrou interesse em
Ele era radioamador e usava Radio Teletypewriter (RTTY), TTY que também era usado por
radioamadores, como maneira de transmitir texto por rádio; ele queria se comunicar com seu
amigo surdo o dentista James Marsters e, com isto, foi aperfeiçoado o modem de TDD.
Depois, outros inventores surdos, o negociante Andrew Sacks e James Marsters juntaram-se
adaptados para o uso sobre a linha de telefone e o Saks inventou as luzes de pisca-pisca e
caracteres do telefone.
da ciência pela sua iniciativa da invenção de TDD. No Brasil, o primeiro TDD foi trazido
dos Estados Unidos por um pai que o comprou para seus filhos surdos.
Esse invento, o TDD ou TS (telefone de surdos), tem facilitado a vida dos surdos. Apesar da
Outras tecnologias que são de domínio da sociedade em geral, mas que são necessárias para o
povo surdo, pertencem ao meio digital de comunicação em tempo real a distância, como
julgamentos, aulas e cursos, possibilitada por intérpretes de língua de sinais, telão e cartazes,
etc.
Freeman, Garbin e Boese (1999, p. 221) citam que a língua de sinais está abrindo espaço na
sociedade pela mídia e, com isso, surgem mais intérpretes de língua de sinais e atores surdos
presidenciais aprendem alguns sinais, pessoas que usam sinais são mostradas na televisão nos
[...] que reforça o ouvintismo pela presença unicamente da língua portuguesa, pela separação
maioria das pessoas baseia-se num "universalismo". A representação social julga a cultura
dos surdos pela cultura ouvinte e tem a pretensão de achar que só aquilo que as pessoas
[...] os universalismos, em todo discurso, são alimentados pela noção de que os seres
definições hegemônicas. É aí que as culturas nativas dos Surdos sugerem formas para
espelhar certos aspectos da cultura dominante que os circunda, mas também possuem raízes
Pode ocorrer que, pelos sujeitos surdos estarem em contato com a comunidade ouvinte,
acomodem-se externamente aos valores e normas hegemônicas dessa comunidade como uma
maneira de se adaptarem às situações porque pensam que assim é mais fácil ter sucesso
social.
Quando os sujeitos surdos não se aceitam na cultura surda, eles se percebem como parte da
cultura hegemônica, isto é, da cultura da maioria que é ouvinte. E, aí esses sujeitos não se
reconhecem como cultura diferente, isto é, o jeito de ser surdo, r de se perceber diferente do
ouvinte e, com isso, pode acontecer conflitos ou dificuldade de aceitação de sua identidade
Na relação com o ouvinte, o surdo foi ensinado a olhar-se e a narrar-se como um deficiente
Segundo Perlin e Miranda (2003, p. 217), "ser surdo [...] olhar a identidade surda dentro dos
Essas representações clínicas, profissionais, que atuam corri sujeitos surdos, muitas vezes
podem influir a sociedade, principalmente nas famílias que querem que seu filho seja igual a
eles, isto é, com "modelo" de pessoas ouvintes. Podemos verificar um exemplo de uma mãe
Meu filho tem quatro anos, tem perda profunda bilateral, usa aparelho nos dois ouvidos e tem
acompanhamento fonoaudiológico, mas pretendo que ele seja só oralizado, sem precisar da
linguagem dos sinais. A tono dele não quer que ele aprenda porque senão ele ficará
Quando a família nega a participação das crianças surdas ao povo surdo, ela poderá fazer com
que essas crianças acreditem que é ruim ser surdo, e isto prejudicará o desenvolvimento sadio
de identidade delas, assim como mencionam os autores americanos Freeman, Carbin e Boese
(1999, p. 225):
[...] você poderá, portanto, vir a conhecer pessoas surdas envergonhadas da surdez, de usar
língua de sinais ou de seu mau inglês. Essa baixa autoestima pode ser resultado de esforços
enganosos de pais e escolas para fazer de uma pessoa surda uma cópia fiel de uma pessoa
ouvinte.
Faço menção a um exemplo de uma surda que, depois que passou no vestibular para o Curso
confraternização.
nega, como expõe Takahashi (1999, p. 3) em um artigo de jornal: "[...] Ele afirma que a
presença de uma pessoa estranha no curso distrairia a atenção dos demais alunos [...] Ela não
percebe, mas estamos ensinando essa menina a conviver em um mundo normal [...]".
decorrer da história dos surdos é o de "modelar" os sujeitos surdos a partir das representações
hegemônicas. Reflete Wrigley (1996, p. 47) esta afirmação: "[...] para o oralista,
convencionalização [...] tem o objetivo mais amplo: as crianças surdas 'passarão' por
ouvintes, tornando- se assim aceitáveis' como pessoas que parecem ouvir". Essa
representação ouvintista ainda é feita atualmente. Muitas vezes a sociedade ouvintista quer
se".
Uma vez eu fui dar aula para um grupo de profissionais em uma cidade do Nordeste do
Brasil, e uma psicóloga que trabalhava muitos anos com os surdos e sabe a língua de sinais
me fez a pergunta: - Por que você não faz uma operação para ouvir? E respondi com outra
pergunta: - Para que? Ela me respondeu: - Para você ter uma vida normal! Fiquei refletindo:
uma psicóloga que trabalha com os surdos há muito tempo me via como "anormal". O que
tenho de anormal? Será que ouvir é normal e não ouvir é anormal? Como uma psicóloga
A sociedade muitas vezes afirma que o povo surdo tem sua cultura, mas não a conhece.
Comentam e afirmam que como na sociedade a maioria dos sujeitos é ouvinte, o sujeito surdo
tem que viver e submeter-se a essa maioria que o rodeia. Por exemplo, em muitas escolas de
surdos, os profissionais que trabalham lá são ouvintes e têm um "mundo" diferente dos
surdos. De acordo com eles, a cultura ouvinte é superior e veem seus alunos surdos de forma
caridosa e paternalista,
que necessitam de auxílio para se desenvolver, pois sozinhos não vão conseguir ou terão mais
[...] quando o surdo diz "eu tenho orgulho de ser surdo", ele choca e confunde o ouvinte. O
ouvinte não gosta de ouvir isso, porque começa a colocar em questão a certeza que o ouvinte
tem sobre o mundo. Ele não pode mais achar que o surdo é um "coitado", porque um coitado
não tem orgulho de si mesmo. O ouvinte fica com medo. ü mundo do ouvinte começa a ficar
menos seguro, mais complexo. O ouvinte não tem explicação para o orgulho de o surdo ser
surdo. Como é possível uma pessoa ter orgulho de ser surdo? Para o ouvinte, é um absurdo. É
um paradoxo.
Essa citação acima complementa o que Skliar (1998a, p. 28) explica sobre o problema das
[...] porque se acha que não há nada fora de seu normal, de sua própria autorreferência
cultural; nesse plano, a cultura surda seria um desvio, uma anomalia, o espaço limitado onde
planejando suas ações para cada situação de modo a ser aceito pela sociedade ouvinte,
defendendo a língua oral como mais vantajosa do que a língua de sinais para a inclusão na
vida social.
Afirmar que é apenas uma questão de escolha para o sujeito surdo saber utilizar a fala é urna
visão simplista e ingênua da realidade. Não podemos esquecer que historicamente os sujeitos
surdos sempre tiveram estereótipos sociais como seres inferiores aos sujeitos ouvintes, como
seres "deficientes" que precisavam se adequar, caminhar para a "normalidade". Para que isso
aconteça, eles precisavam se oralizar. Isto marcou por muitos anos o povo surdo.
O sujeito surdo que tem vergonha de usar a língua de sinais não se reconhece como surdo e
sim como um deficiente, ou seja, não conseguiu se libertar da visão de surdez que a sociedade
atribui.
Os sinais podem ser agressivos, diplomáticos, poéticos, filosóficos, matemáticos: tudo pode
ser expresso por meio de sinais, sem perda nenhuma de conteúdo. Para aprender a falar, um
surdo precisa de horas diárias de trabalho árduo, enquanto o conhecimento dos sinais ocorre
de forma espontânea, quase imediata. Os surdos pré-linguais, ou seja, que nunca ouviram ou
perderam a audição muito cedo, não invejam os ouvintes e não se consideram deficientes.
Recuso-me a ser considerada excepcional, deficiente. Não sou. Sou surda. Para mim, a língua
de sinais corresponde à minha voz, meus olhos são meus ornados. Sinceramente nada me
Com a oficialização da Libras, em abril de 2002, inicia- se a abertura de novos espaços para o
povo surdo, mas ainda há rixas por parte de alguns profissionais que trabalham com sujeitos
surdos e dos sujeitos surdos oralizados. Para estes profissionais oralistas, a língua de sinais é
limitada e primitiva, não sendo aconselhável seu uso. Também acreditam que ela atrapalha no
pronuncia:
[...] quando se trata de refletir sobre o fato de que nessa comunidade (de surdos) surgem - ou
podem surgir - processos culturais específicos, é comum a rejeição à ideia da "cultura surda",
cultura surda não é urna imagem velada de uma hipotética cultura ouvinte. Não é o seu revés.
A música, por exemplo, não faz parte da cultura surda. No entanto, embora muitas escolas
para surdos reconheçam o povo surdo como grupo cultural e lingüístico, obrigam as crianças
e adultos surdos a fazerem as apresentações de danças, corais e balés, que são próprias da
cultura ouvinte, o que continua ocupando o centro de sua preocupação. Melodias e ritmos
sonoros harmoniosos não foram criados pela cultura surda e sim pelos grupos ouvintes.
valorização da língua de sinais, que foi muito oprimida e marginalizada por mais de cem
anos. Então, surgiram em muitas escolas os corais de língua de sinais, que não condizem com
[...] onde a língua de sinais era utilizada com a musicalidade como em ballet das mãos, porém
com puro português sinalizado, uma protolinguagem que não é nem língua de sinais pura [...]
músicas de cultura ouvinte que nem eles mesmos "escutavam", ficando totalmente presos ao
maestro ouvinte, com os olhos fixos, apenas imitando e nem podendo olhar o público a que se
Surdos". Por quê? Basta visitarmos associações de surdos, os únicos locais onde
e, tampouco, maestros, partituras, arranjos instrumentais, vocais etc., pois isso é algo
Na maioria dos casos, mesmo em corais de língua de sinais - onde muitos sujeitos surdos nem
entendiam a música que produziam - os seus passos, danças ou sinais eram controlados por
pessoas ouvintes, pois acompanhavam músicas que eram apreciadas e emocionavam aos
ouvidos do público ouvinte. Cito exemplos abaixo, retirados de Lopes, (2004, p. 47):
Jovens surdas dançam, [...] para homenagear os professores pelo seu dia. [...] fica evidente
um certo descompasso. Quatro das alunas voltam seus olhares para um mesmo local, o que
me faz intuir que elas buscam orientação de alguém, provavelmente uma professora ouvinte
que não aparece no enquadramento fotográfico, mas que, pela necessidade surda de tê-la
junto de si, não ocupa o silêncio da imagem. Ela é quase uma presença diluída em quem está
ouvintes. Elas estão vestidas com malhas e demonstram uma sincronia em seus passos. Fica
visível na fotografia o olhar delas em busca da orientação sobre corno fazer e qual passo dar.
passos até a indicação de quando a música termina para que as bailarinas parem de dançar.
Refletindo, vemos que hoje em dia ainda existem muitas práticas ouvintistas e escolas usando
cursos. Ou, ainda, iniciam dizendo serem a favor da língua de sinais e, aos poucos, sem
ninguém perceber, vão deixando-a de lado, assim como afirma Felipe (2003): "Aceitam se
programas bilíngues transitórios, que, iniciando com a Libras, gradualmente substituirão essa
ou não aceitam a cultura surda? Na realidade, o problema não são os sujeitos surdos, não são
perseguições, mas as representações sociais estão passando por uma nova mudança para o
povo surdo que não teme esconder suas identidades culturais. Os sujeitos surdos sabem, o que
[...] diga para um ouvinte: "Eu tenho orgulho de usar a língua de sinais brasileira". Qual pode
ser a reação dele? Ele pode pensar, "Sim, claro! Os gestos são muito bonitos e expressivos!"
Mas não é por isso que você tem orgulho! Você tem orgulho porque quando você usa a língua
Os povos surdos estão cada vez mais motivados pela valorização de suas "diferenças" e assim
respiram com mais orgulho e riqueza suas condições culturais! Menciono um fragmento da
Sou surdo! O meu jeito de ser já marca a diferença! Neste ponto devia começar a dissertação.
Ser surdo, viver nas diferentes comunidades dos surdos, conhecer a cultura, a língua, a
surda é urna marcação para sustentar o tema em questão. A idéia de comunidade surda
defendida por poucos surdos e ouvintes de extrerna-esquerda, apresenta-se mais como urna
CAPÍTULO 6
historicamente determinada.
Veiga-Neto
A história dos surdos foi e ainda é produzida, com especial atenção, para as tradições
inerentes aos demais autores. Ela surgiu elogiando professores ouvintes pela iniciativa de
trabalhos com os surdos, pela evolução da medicina para a "cura" da surdez, pelas diversas
depoimentos de profissionais que trabalharam com os sujeitos surdos, fatos vivenciados por
de surdos em uma visão crítica, isto é, a história de surdos na visão de sujeitos ouvintes.
Pintar psico-histórias de grandes homens lutando para obter um lugar na historia das
civilizações dos que ouvem tem pouco ou nada a ver com representar as circunstâncias
históricas das pessoas Surdas vivendo à margem daquelas sociedades que ouvem.
Aqui apresento uma nova forma de, abordar os episódios históricos conhecidos como
História Cultural dos Surdos. A escolha se justifica, uma vez que, dos novos modelos
historiográficos, são, justamente, as histórias culturais que mais trazem novos ares na
O que seria história cultural dos surdos? Será que a evolução da medicina para curar a surdez
e diversas metodologias criadas por professores ouvintes não são reais? Quero ilustrar aqui
que a história autêntica dos surdos não é mais uma mera história de surdos no pensamento
crítico, mas, sim, enxergar a cultura surda como um conjunto de significados e costumes
partilhados e construídos pelo povo surdo, como exemplifica Burke (2005, p. 86):
[...] os estudos sobre a história das viagens muitas vezes focalizam as maneiras estereotipadas
pela qual uma cultura não familiar é percebida e descrita e o "olhar" do viajante,
diferenciando o olhar imperial, o feminino, o pitoresco e outros tipos. Pode-se mostrar que
alguns viajantes haviam lido sobre o país antes de nele porem os pés, e, ao chegar, viram o
A história cultural dos surdos quase nunca nos é exposta, visto que tal fato seria uma ligação
cultural está trazendo urna nova mudança na visão da história dos surdos. Segundo Pesavento
(2005, p. 15):
[...] Não se trata de fazer uma História do Pensamento ou de uma História Intelectual, ou
ainda mesmo de pensar uma História da Cultura nos velhos moldes, [...] Trata-se, antes de
Pois, na verdade, a história dos surdos em padrões tradicionais não produz a história legítima
dos povos surdos, que seriam localizadas nos discursos das associações de surdos, de
A cultura surda produz um conjunto de perspectivas que, em geral, instituem o povo surdo
como fonte de êxtase. A construção das identidades surdas que seriam o resultado de uma
produção das representações impostas por aqueles que têm poder de classificar e de nomear
subverte a ordem. A definição pode ser submetida ou resistente, assim como expõem os
diferentes olhares dos profissionais da área de saúde, educacional e social, como declara
consequentemente, uma língua que influi na diferença essencial. Como podemos ver, a
política de significação opera como a necessidade de pátria cultural com poder de
Os defensores da língua de sinais para os povos surdos asseguram que é na posse dessa língua
que o sujeito surdo construirá a identidade surda, já que ele não é sujeito ouvinte. A maioria
das narrativas tem como base a ideia de que a identidade surda está relacionada a uma
Mas o que ocorre verdadeiramente é que, no encontro do surdo com outro surdo que também
cultura, de aquisição de conhecimentos, que não são plausíveis por meio da língua oral e da
cultura ouvinte. Nota-se que dessa forma a identidade está relacionada tanto aos discursos
produzidos quanto à natureza das relações sociais, isto é, pode ocorrer nas fronteiras"
identificatórias entre o próprio sujeito surdo e o sujeito ouvinte, quando obtém a consideração
dos demais membros do povo surdo na comunidade à qual pertence. O pesquisador surdo
Miranda (2001, p. 23) adverte, no que se refere à identidade surda: "Ela é ameaçada
constantemente pelo 'outro'. Este outro pode se referir aos surdos que optaram pela
incidência negativa".
Muitas teorias escritas explanam que os povos surdos têm tendência a formar guetos surdos e
não a comunidade surda. Isso sugere o que o sociólogo americano surdo Andersson (1989)
comunidade surda.
Antes a história cultural dos povos surdos não era reconhecida, os sujeitos surdos eram vistos
motivada pelos Estudos Culturais, é que começaram a ganhar força as consciências político-
Nessas teorias de história dos surdos travam-se lutas pelo poder e se fazem relações de poder
forma ciara, às vezes podem ser negativas e/ou positivas. Nessa história, na visão crítica
vemos a superioridade dos sujeitos ouvintes em vários momentos, como na influência mútua
rotineira do dia a dia dos povos surdos, nas caridades em "proteger" os surdos, nas
O pesquisador Skliar (1998a, p. 7), numa visão histórica, expõe que o poder político atinge
Foram mais de cem anos de práticas enceguecidas pela tentativa de correção, normalização e
pela violência institucional; instituições especiais que foram reguladas tanto pela caridade e
pela beneficência quanto pela cultura social vigente, que requeria uma capacidade para
controlar, parar e negar a existência da comunidade surda, da língua de sinais, das identidades
É conveniente averiguar, entretanto, os nomes famosos citados nas histórias dos surdos
tradicionais, ou seja, quem foram os "defensores da comunidade dos surdos"; raramente são
citados aqueles que eram sujeitos surdos, como Berthier, Clerc, Huet, prevalecendo, na
maioria, os ouvintes, como, por exemplo, L'Epée, Gallaudet, Sicard, Bonet e outros.
Com o exemplo acima, constata-se a raridade de referimento aos sujeitos surdos líderes na
história dos surdos e seus atos históricos; os registros da história oficial citam atos heroicos
ouvinte. Onde estão os atos históricos dos sujeitos surdos compartilhando e liderando as lutas
E, assim, com esses "esquecimentos estereotipados", a história cultural vem expondo o povo
surdo. Transparece a discriminação da cultura surda. Tudo isso fez produzir os movimentos
de lutas políticas por consideração à história surda, às identidades surdas, à língua de sinais e
de comunidades surdas, povo surdo, sendo considerados como sujeitos surdos, diferentes.
[...] Ainda hoje estão sendo desenvolvidos o oralismo e o bimodalismo nas escolas
brasileiras; porém, há algo que está aflorando nas comunidades de surdos e isto tem afetado
muito prejudicadas com as propostas de ensino desenvolvidas até então e estão percebendo a
A cultura surda vem sendo um enigma para os sujeitos ouvintes da sociedade. É uma
preocupação motivar autores para que eles tentem entender os muitos caminhos que
conduziram os povos surdos às suas relações culturais presentes, marcados por visões
[...] tarefa do estudo da cultura surda é descobrir quem os surdos pensam que são. Do ponto
de vista dos surdos, quem se qualifica como uma pessoa surda e quem não o faz? Quais são
as "categorias distintas de pessoas" que a cultura surda impõe ao mundo? Se o mundo visto
através dos olhos do surdo não é habitado por pessoas sem rosto e sem qualidades, quem são
Recentemente houve uma virada da história dos surdos na visão crítica para a história
cultural. Esse modo envolvente na história cultural de surdos resultou em certo abandono dos
artigos teóricos tradicionais, para então ter mais valorização dos povos surdos, em diversas
períodos específicos. Nesse contexto surgiram os trabalhos sobre gênero, minorias étnicas e
A cultura surda passou a ganhar espaço nas teorias de história, assim como surgiram
lançamentos de livros com temas nunca antes imaginados, como é o caso dos artigos de
muitos autores surdos, como os já citados em um dos capítulos anteriores deste mesmo livro,
Corno vemos, com o passar do tempo, os povos surdos tiveram a necessidade de registrar
suas atuações do cotidiano, como as conquistas, língua de sinais, rituais, etc., que
Esses artigos que contêm histórias culturais versam sobre o povo surdo e exemplificam as
mudanças. Com a história cultural, a dimensão cultural ganhou novos contornos na história
dos surdos. O modo de subjetividade e de identidades culturais dos povos surdos no correr da
história tornou-se, portanto, também, uma história de conflitos, de lutas contra as práticas
ouvintistas, das alteridades e das representações diferenciadas. Assim, como cita Wrigley
(1996, p. 11):
"normal".
Os povos surdos olham para trás e abrangem muitas práticas extasiantes dos pioneiros da
cultura surda. A história cultural dos surdos é longa e complexa, existe há muitos anos e
pedagogias...
Com este livro vamos refletir sobre a situação em que os povos surdos vivem e levantar
desafios para nós, líderes das comunidades surdas, contribuirmos para a mudança da visão
Então o desafio para o povo surdo é construir uma nova história cultural, com o
identidade cultural!
CAPÍTULO 7
Gárdia Vargas
A ponderação realizada sobre cultura surda e identidades surdas nos capítulos anteriores
impõe a necessidade de refletirmos sobre inclusão ou exclusão dos surdos em vários espaços
analisando-os com base nos Estudos Surdos, em que podemos buscar a realidade cultural do
nosso tempo.
próprios sujeitos surdos começam a exigir seus espaços, sua representação dê diferença
cultural linguística.
A inclusão não ocorre somente nas escolas; pode ocorrer também nos restaurantes, nos
órgãos públicos, nas lojas, nas igrejas e em outros ambientes de interação humana.
Quando comentamos em "incluir", obviamente é porque tem sujeitos que estão "excluídos",
Ao longo dos séculos, na história dos surdos, o poder ouvintista tende a impor sua cultura
ouvinte sobre os demais povos surdos debaixo de sua área de influência, resultando desta
Durante muito tempo, devido ao processo de imposição cultural ouvinte no povo surdo,
vemos um acesso quase irrestrito à cultura surda, por causa de lutas de relações de poder em
ambos os lados. Mas atualmente o povo surdo luta com garra e força por reconhecimento da
representação de diferença cultural e identidade surda. Silva (2004, p. 133) define cultura:
[...] como um campo de produção de significados, no qual os diferentes grupos sociais,
Percebe-se que o sujeito surdo está descentrado de uma cultura e possui outra cultura.
A criança surda faz parte da cultura surda, do povo surdo e tem câmbio com a cultura do
povo ouvinte. Quadros (1997) ressalta que, levando-se em conta o aspecto psicossocial da
criança surda, ela apresentará uma socialização satisfatória e integrar-se-á no povo ouvinte se
tiver desenvolvido uma identidade cultural com o seu grupo; se isso não ocorrer, não se
Porém, alguns aspectos da permuta de cultura ainda não são realidade atualmente para o povo
surdo, pois, como ilustrado anteriormente, a sociedade ainda vê os surdos como "deficientes",
Por isso a preferência de surdos em se relacionar com seus semelhantes fortalece sua
identidade e lhes traz segurança. É nos contatos com seus semelhantes que eles se identificam
Sobre a inclusão social, constatamos que há escassez de recursos visuais que facilitem a
acessibilidade dos sujeitos surdos à vida social. Na sociedade, a maioria das anunciações e
doméstico que quebrou após somente quatro meses de uso; no supermercado alegaram que
nós perdemos a garantia porque na hora da compra eles comunicaram que devíamos tirar a
nota fiscal emitida pela loja e que o extrato de caixa não tinha valor. Isso foi informado na
hora da compra, mas como nós duas somos surdas não "ouvimos" o comunicado e com isso
ficamos prejudicadas.
às necessidades culturais deles com o local e dos relacionamentos com seus colegas. Cito
Righetto" - oralizada e com domínio da língua de sinais de uma grande empresa, relata os
Do que eu gosto: de ser aceita como eu sou, diferente e surda - Deficiência auditiva é o termo
técnico usado na área da saúde, não faz parte da cultura surda e não sou deficiente auditiva,
pois não tenho problema de audição - e também de ser útil e ajudar as pessoas.
Do que não gosto: de assistir a palestras e reuniões, porque não entendo o que falam. De ficar
receber informações incompletas e resumidas, como se fosse um tecido com retalhos de pano.
De pedir a alguém para fazer ligações para mim e de receber ligações através de terceiro, só
Para a inclusão de sujeitos surdos nas empresas, o ideal seria a contratação dos serviços dos
formação oferecidos.
Também seria importante que essas empresas se conscientizassem das diferenças lingüísticas
e culturais dos sujeitos surdos e permitissem acessos a cursos de língua de sinais aos
à "educação para todos"; então, vamos refletir: o fato de esses sujeitos estarem dentro da
sociedade de inclusão não vê o sujeito surdo corno diferença cultural, mas sim como
deficiente necessitado da normalização, cujo padrão social aceito é o ouvinte. Então, corno
fica a inclusão dos surdos? Assim, como afirma Sldiar (1998b, p. 13) sobre a inclusão de
A distinção entre diversidade e diferença conduz ao debate sobre o lugar que corresponde aos
surdos na educação especial e na educação em geral [...] também é necessário romper com a
tradição segundo a qual, uma vez reconhecido o fracasso da escola especial, aparece de
maneira implacável uma única opção: a escola inclusiva. Isto é, o imperativo da integração
Infelizmente, a maioria das escolas segue espaços não preparados para essas diferenças
culturais, como é o caso da inclusão de alunos surdos em escolas regulares. Eles se deparam
com dificuldades de adaptação e com problemas de subjetividades, porque nessas escolas não
compartilham suas identidades culturais, assim como reflete a pesquisadora Lopes (1998, p.
reivindicar seus direitos na escola, na mídia e nos lugares públicos. A identidade do sujeito
surdo, sob a ótica da representação realista, busca se adaptar ao seu déficit auditivo e à
Como começou a inclusão de surdos nas escolas regulares? Com a Declaração de Salamanca,
a política evidenciada nela foi adotada na maioria dos países. A Declaração, no item 30, faz
advertência à situação linguística dos surdos e defende as escolas e classes para eles. Na
elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei nu 9.394/1996, observamos que o
Foi aprovada uma lei, porém cabe perguntar o que constava nela: permitir aos sujeitos surdos
o acesso ao ensino regular? Mas onde estavam os professores preparados? Qual era a
infraestrutura das portas que eram abertas ao povo surdo nas escolas? O problema é que essas
escolas ainda não respeitam essa advertência e continuam tratando os sujeitos surdos como os
demais alunos.
[...] os alunos surdos ficarão em classes de ouvintes, sendo que a língua de maior prestígio
será a da professora e dos alunos ouvintes. Os surdos, embora possam receber a tradução
Fui uma adolescente revoltada e vivia isolada porque a escola oralista orientou a minha
família para que eu não tivesse contato com outros sujeitos surdos adultos. Havia muitos
nem ouvintes. Os adolescentes ouvintes me achavam chata por eu ter comunicação Imitada e
sem graça e se afastavam. Então me isolava, me fechava no quarto e chorava todos os dias
dizendo que Deus ter me feito surda era um castigo e eu queria morrer, já que na vida não
tinha espaço para mim. Isto é inclusão? É inclusão a pessoa ouvinte resolver o que é melhor
para o sujeito surdo sem "sentir na própria pele" as dificuldades e os sofrimentos dos surdos?
Em consequência do Congresso de Milão, que proibiu por muitos anos os surdos de usarem a
língua de sinais, ela sobreviveu graças à resistência do povo surdo contra essa prática
ouvintista. Muitas crianças em escolas para surdos onde a língua de sinais é proibida, muitas
vezes a praticam às escondidas entre si, assim como relata a autora surda Laborit (1994, p.
trocar informações na língua de sinais, persuadidos de que ele não nos escutava, já que não
nos via. Ora, no começo, ele se voltava todas as vezes, era estranho, não compreendíamos
imediatamente por quê. Com o passar do tempo, dei-me conta de que, ao falar com as mãos,
sem saber, emitíamos ruídos com a boca. Cuidamos, então, de não mais emitir nenhum som
Dessa maneira, a "inclusão" de sujeitos surdos na escola, tendo-se a língua portuguesa como
principal forma de comunicação, nos faz questionar bem se a inclusão oferecida significa
"inclusão", e sim urna forçada "adaptação" com a situação do dia a dia dentro de escola de
ouvintes.
Durante o recreio, durante minha vida escolar (escola de ouvintes), no pátio da escola, onde
muitas crianças brincavam, eu ficava ao lado da pipoqueira, uma senhora mulata simples e
sorridente; eu ficava quietinha, sozinha, alheia a tudo e não tinha um ar muito contente;
muitas vezes essa pipoqueira simpatizava comigo, me dava pipoca de graça e sorria. Fiquei
muito triste quando soube que ela morreu atropelada; perdera a única amiga da escola que,
sentia como uma pessoa estrangeira no ambiente escolar. Era tão tímida que ficava isolada a
maior parte do tempo, tendo apenas uma ou outra colega ouvinte que me ajudava.
Skliar (1998a, p. 36) esclarece: "Os depoimentos de alunos surdos que passaram pelo ensino
regular sem uma metodologia específica mostram como eles se sentem estrangeiros e
Uma vez entrei na sala de aula e todos entregaram trabalho para o professor; eu fiquei
com as provas marcadas e depois, na hora, me dava mal por não ter estudado.
Então, quando me cobrava a leitura labial, eu arrumava todas as "desculpas" possíveis para
escapar daquela situação, inclusive, disse uma vez que o professor tinha bigode enorme e por
isso não o entendia. A direção obrigou-o a tirar o bigode, o que ele fez, e fiquei muito sem
graça porque continuei não entendendo e, para piorar, ele ficou horrível com os lábios muito
finos. Então, a partir daí, desde a infância até a faculdade, comecei a fingir que entendia tudo.
Isto era muito comum acontecer com os sujeitos surdos: fingir que compreendem tudo como
[...] muito frequentemente os surdos usam a "simulação de compreensão", isto é, fingem que
compreendem e que sabem, para evitar constrangimento na tensão da comunicação e para que
passem despercebidos, aprendem a ocultar o sofrimento pelo temor e vergonha de não ser
como todo mundo, isto torna as coisas piores porque aparenta ausência de problemas e
reforça o equívoco de que a escola regular é possível para todos os surdos [...]
Na inclusão é mais difícil quando as crianças surdas não estão preparadas e ficam totalmente
à mercê dos professores não usuários de língua de sinais e de colegas ouvintes que fazem
muitas brincadeiras rotineiras da cultura ouvinte como, por exemplo, o "telefone sem fio",
Como uma criança surda poderá desenvolver uma língua se não houver uma identificação
com o surdo adulto? Como o sujeito surdo poderá fazer uma identificação com relação à sua
identidade surda no futuro, se ele não conviver com outros surdos que façam uso da língua de
sinais? Quem foi que disse que é só o sujeito surdo utilizar-se da língua de sinais que por um
maioria dos cursos de Pedagogia, nas universidades, não havia especializações para esta área
falta de preparo dos profissionais que entendam e conheçam a cultura surda, cito um exemplo
Uma vez na faculdade, durante muitos anos no curso de Pedagogia sempre discutiram muito
sobre a importância da inclusão de surdos nas escolas regulares, etc. Em uma ocasião, a
professora psicóloga fez uma atividade que consistia que cada um dos alunos dizer a
qualidade da pessoa escolhida e presentearia com um bombom e assim por diante. No final de
tudo, já presenteados seus colegas escolhidos, nos sobraram duas surdas, a intérprete e a
minha mãe, a última colega ouvinte escolheu a intérprete para presentear e ela, sem graça,
sem saber qual de nós duas escolheria para presentear, disse que escolheria nós duas juntas; a
professora impediu-a, dizendo que não pode e teria que escolher uma; então a intérprete
chateada presenteou a minha mãe com um bombom. A minha mãe, na vez dela levantou,
Pedagogia: isto se chama inclusão? Vocês demonstraram na prática que "excluíram" as duas
Em outras palavras, quem está perdendo com isso tudo são os sujeitos surdos. As crianças
[...] A típica criança surda, que nasceu surda ou que ficou surda antes de aprender o inglês,
aceito pelas outras crianças? Está aqui alguém presente que me possa explicar certas coisas
do sujeito ouvinte na mesma aula, mesmo com a presença do intérprete de língua de sinais:
Quando o professor fala durante as aulas, eu tenho de prestar atenção olhando para o
intérprete, não posso desviar o olhar para fazer anotações no caderno como os outros alunos
ouvintes fazem, se não perco as informações transmitidas pelo intérprete - isso é ruim, porque
não tenho como revisar o que foi dito durante as aulas. Nas aulas de matemática, o professor
faz cálculos em quadro-negro, eu não consigo olhar para o quadro e para o intérprete ao
mesmo tempo, por isso sempre tenho de estudar fora da escola para entender e tirar notas
boas.
O ideal é compartilhar as experiências das escolas culturais de diferentes espaços para que
Federal de Santa Catarina (UFSC), o Curso Letras/Libras aceita prova em língua de sinais.
Dessa forma as outras universidades também poderão aceitar este e outros artefatos culturais,
que são exemplos da interculturalidade que vão moldando as nossas maneiras de ser e de
viver.
grupos que coabitam no mesmo contexto. O educador que assume uma perspectiva
fazem com que eles se vão adaptando às nossas necessidades culturais, aos nossos
desejos, aos nossos relacionamentos, aos nossos "eus" (privado e público), enfim, vão
[...] para alívio nosso, a sociedade recebe melhor os surdos, inclusive em universidades. As
pessoas já convivem bem com o surdo, respeitam sua identidade e o Governo tem cumprido
as leis que dizem respeito à inclusão. Antes, a relação dos surdos com a sociedade era difícil,
decretos que favorecem a inclusão do surdo, a criação do ProLibras também têm contribuído
muito.
A criança surda necessita de professores surdos usuários naturais de língua de sinais e cultura
sujeitos surdos tenham contato com os outros surdos que constituem o povo surdo, no qual
acontece o seu desenvolvimento como sujeito diferente, sendo um centro de encontro corri o
semelhante para que desenvolva sua identidade cultural; por isso eles defendem a importância
Desse modo, os surdos sonham com espaços em que a língua de sinais seja a língua de
ocasião em que fez uma das suas visitas em escolas indígenas, em contato marcante com
uma índia Kaxinawá (povo que habita as regiões de floresta tropical no estado do Acre, área
de Alto Juruá e Purus. As terras indígenas visitadas estão localizadas município de Feijó, no
Fiz minha pergunta para uma grande mestra idosa índia com o acompanhamento da
interpretação em Libras; a pergunta era sobre a relação de corno ela entendia o projeto índio
surdo e a questão em que se encontram quando os jovens estudantes índios vêm tendo
processo de tal uma formação dentro da pedagogia indígena, sabendo que sempre foi uma
brancos". A respost a dela: para ser aceita e sobreviver, precisei adotar a cultura dos não-
índios deixando de lado a minha cultura indígena, precisei aprender a língua do branco e
esquecer a minha, pois a língua deles tem mais poder de vida lá fora, precisei da pedagogia
dos brancos, pois o meu sistema dentro da pedagogia indígena não tinha mesma validade que
a deles. Hoje vejo os jovens índios sem saber relatarem o seu passado histórico por
desconhecerem o valor cultural que os mesmos têm. Os brancos que ontem vieram para
colocar a sua língua nos índios, vêm hoje trazer de volta a língua que nos tiraram, anseiam
que os índios voltem e reconstruam sua origem. E assim, eu, refletindo em comparação dos
índios com os surdos, digo que nós surdos tivemos que deixar de "ser surdo" e passar a ser
um ouvinte, pois "ser ouvinte" é ser aceito. Tivemos que arrancar e esconder a nossa cultura
surda, porque era a parte das exigências para dar stcitus a uma única língua oral, pois para
eles a língua espontânea dos surdos era a errada. Na realidade, "ser surdo" tinha que ser
escondido para aparecer anonimamente "ser ouvinte" para ser aceito na sociedade. Os surdos
mantêm o seu mundo, a sua cultura, a sua língua e se escondem de sua comunidade para
anos de humilhações e de sofrimentos nos quais os sujeitos surdos choraram para que, em
seguida, erguessem a cabeça com orgulho de suas identidades, indo às suas lutas pela
inclusão de verdade. Os povos surdos, hoje mais abertos culturalmente, não se submetem
mais e gritam alto: "chega de mania de normalização, de reabilitação", porque eles estão mais
conscientes lá, de onde eram sempre tornadas as decisões por eles e para eles; os povos
surdos unicamente querem uma escola que lhes permita aprender e não fingir que sabem!
Para finalizar este capítulo, cito o poema "Lamento oculto de um surdo", feito por Vilhalva
Quantas vezes eu pedi uma Escola de Surdo e você achou melhor uma escola de ouvinte?
Várias vezes eu sinalizei as minhas necessidades e você as ignorou, colocando as suas idéias
no lugar. Quantas vezes levantei a mão para expor minhas idéias e você não viu? Só
prevaleceram os seus objetivos ou você tentava me influenciar com a história de que a Lei
agora é essa e que a Escola de Surdo não pode existir por estar no momento da "Inclusão". Eu
em meu pensamento... Ser Surdo de Direito é ser "ouvido"... é quando levanto a minha mão e
Ouvinte, me representa, leve os meus ensejos e as minhas solicitações como eu almejo e não
que você pensa como deve ser. No meu direito de escolha, pulsa dentro de mim: Vida,
CAPÍTULO 8
Como podemos compreender as peculiaridades da cultura surda e nos envolver com elas
O encontro com a comunidade surda permite-lhes sair do lugar do diferente, do excluído, do
Gladis Dalcin
Como já vimos no transcorrer do presente livro, a cultura surda retrata a vida que os sujeitos
surdos levam; as suas conversas diárias, as lições que ensinam entre si, as suas artes, os seus
de viver nele. Para conhecer e entender a cultura surda é importante a convivência com a
Não é suficiente conhecer a Língua Brasileira de Sinais para poder atuar eficazmente na
Considerando que o povo surdo necessita de duas línguas: a língua de sinais na comunicação
entre seus idênticos e da segunda língua para se integrar à comunidade ouvinte, essa
colocação reflete a idéia de uma relação intercultural, pois o povo surdo pode se aproximar da
cultura ouvinte como uma opção e ter uma relação de trocas e compartilhação de ambas as
Perlin (2000, p. 27-28) enfatiza as propostas da educação dos surdos, a exigência para a
° presença do professor surdo na sala de aula para contato com a representação de identidade
surda, o que gera uma atitude positiva para com essa identidade;
" professor ouvinte com domínio de língua de sinais e capacitado para ensino de português
corno segunda língua, participante do movimento da comunidade surda, o que vai possibilitar
facilita a sintonia dos estilos de ensino com o estilo de aprendizagem e motivação dos
estudantes.
Os sujeitos "ouvintes", que podem ser os alunos de cursos de língua de sinais, família,
ver o mundo dos surdos através dos seus olhos como uma cultura diferente.
O modo de os sujeitos surdos agirem e verem o mundo constitui-se numa cultura estrangeira
para esses ouvintes. Assim, esses ouvintes podem ter suas construções interculturais e
As identidades são produzidas dentro das culturas, motivo este que justifica o porquê das
mesmas serem culturais. No caso dos ILS," a transição entre duas culturas (espaços surdos e
espaços ouvintes) multifacetadas, os fazem flutuar entre esses meios, tornando-o uma
[...] No entanto, o fato dos ILS transitarem entre duas línguas, traz conseqüências além das
habilidades visuais e auditivas, isto é, outras questões entram em cena, tais como o
hibridismo cultural, uma vez que esses profissionais se deslocam entre fronteiras culturais (de
pertencímento ao grupo de surdos são algumas das exigências quando nos posicionamos nas
Os motivos para os sujeitos ouvintes decidirem conhecer e promover a cultura surda é que
com isto eles podem fortalecer a imagem da marca surda na vida social, aumentar a
comunidade surda.
Apresento a seguir algumas sugestões para aproximar os sujeitos ouvintes da cultura surda,
entre ambas as culturas; respeitar os espaços conquistados pelos sujeitos surdos enquanto
estão em produção cultural. Por exemplo: tem muitos sujeitos ouvintes que querem
"competir" com os surdos e assim fazem com que o povo surdo suspeite deles, devido à longa
história de opressão, de lutas, de relações de poder para conquistarem seus espaços. Tem
muitos ouvintes que se aproveitam dos espaços conquistados pelos surdos para ensinar a
língua de sinais e outras coisas, alegando que têm direitos iguais... Mas onde estão os direitos
surdos? Isso acontece na maioria das empresas, nas universidades, nas instituições ou até
mesmo em igrejas, que preferem profissionais ouvintes para não ter de contratar intérpretes
para os profissionais surdos. Também pela barreira de comunicação é mais fácil contratar um
ouvinte, sabendo que para sujeitos surdos é mais difícil conseguir contatos via telefone, por
exemplo. No futuro, quando a sociedade tiver uma representação sem estereótipos e mais
positiva em nível de igualdade entre os surdos e ouvintes, se olharem o povo surdo como
diferença cultural, e não como deficientes, daí não haveria essa "guerra cultural" entre eles.
sinais; portanto, faz-se necessária para a construção da identidade do "Ser Surdo", sendo um
traço próprio do povo surdo, tornando possível a expressão das subjetividades. Para
Podemos ver agora festas em que a cultura Surda é levada em consideração. Podemos
presenciar belas representações de teatro em língua de sinais. Podemos perceber a união dos
sociedade: educação e cidadania. É um belo início e esperemos que colha mais e melhores
frutos no futuro. Outro aspecto importante a ser considerado é que, cada vez mais, os Surdos
passam a ser responsáveis pelos atos públicos e as deliberações que vão fazer a diferença na
próprias reivindicações.
A cultura surda é profunda e ampla, ela permeia, mesmo que não a percebamos, como sopro
da vida ao povo surdo com suas subjetividades e identidades. Podemos senti-la em sua
Utilizo a língua dos ouvintes, minha segunda língua, para expressar minha certeza absoluta
de que a língua de sinais é nossa primeira língua, a nossa, aquela que nos permite sermos
seres humanos "comunicadores". Para dizer, também, que nada deve ser recusado aos surdos,
que todas as linguagens podem ser utilizadas, sem gueto e sem ostracismo, a fim de ser ter
Mesmo que existam os diferentes grupos culturais, cada grupo não vive isolado em seu
grupos convivem e passam por conflitos em um emaranhado de relações. £ é por isso que
todo grupo cultural, dentro de suas peculiaridades, deve aprender que não há ninguém melhor
que ninguém, mas sim sujeitos diferentes que devem ser considerados coletivamente com