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Livro As imagens do outro sobre a cultura surda

Autor: Karin Strobel

Quarta edição

Editora UFSC

Florianópolis – Santa Catarina

Impresso no Brasil

[...] e naquele instante, observando minha filha surda de três anos brincando no jardim com

outras crianças, eu a tomei pela cintura e a sentei no muro. À minha frente, sua bela e

pequenina figura iluminada pela alegria e o céu às suas costas. Lembro-me bem daquele

momento mágico e lá no fundo do meu coração agradeci: - Obrigada, meu Deus, por tê-la

enviado para junto de mim!

Inge Strobel

Sumário

Nota de revisão página 9

Apresentação página 13

Prefácio página 15

CAPÍTULO 1

Qual o conceito que trazemos sobre a cultura? página 19

CAPÍTULO 2

Os surdos têm cultura? página 25

CAPÍTULO 3
Povo surdo ou comunidade surda? página 35

CAPÍTULO 4

Os artefatos culturais do povo surdo página 43

Artefato cultural: experiência visual página 44

Artefato cultural: desenvolvimento lingüístico página 52

Artefato cultural: família página 58

Artefato cultural: literatura surda página 68

Artefato cultural: vida social e esportiva página 74

Artefato cultural: artes visuais página 82

Artefato cultural: política página 88

Artefato cultural: materiais página 94

CAPÍTULO 5

A representação imaginária sobre a cultura surda página 99

CAPÍTULO 6

História cultural: novas reflexões sobre a história dos surdos página 109

CAPÍTULO 7

In(ex)clusão dos surdos: prática (inter)cultural? 119

CAPÍTULO 8

Como podemos Compreender as peculiaridades da cultura surda e nos envolver com elas 135

Nota de revisão
Ao ser convidada por Karin para a revisão de seu texto, ainda preliminar, senti-me lisonjeada!

Imagens nostálgicas que compuseram nossa história, ao longo de mais de dez anos de

trabalho juntas, povoaram minha mente.

Lembrei-me da menina de grandes olhos azuis que, ao ingressar na vida acadêmica, no Curso

de Pedagogia, buscava romper as barreiras lingüísticas que o português, sua língua de

fronteira, impunha entre ela e os conhecimentos teóricos, dos quais buscava se apropriar,

avidamente.

Em seu percurso, compartilhei com Karin o efeito do desconforto babélico que o português

lhe causava. Sentimentos de estranhamento, bloqueio, impotência que a atormentavam, diante

de signos atravessados pela cultura da oralidade, em que se viu exilada, desde a infância...

Hoje, diante de seu livro, senti-me tentada, de início, a exercer o papel de revisora,

substituindo palavras, adequando a pontuação ao cômodo universo lexical e prosódico de

minha língua materna, em que constitui minha subjetividade e identidade cultural.

No entanto, à medida que ia me apropriando das palavras-imagens que habitavam o texto de

Karin, que narravam a história de seu povo surdo, de seus percalços à submissão da

normalização que a sociedade insistiu em lhes imputar, sobretudo em forma de colonização

lingüística, hesitei.

Em meio a imagens de corpos disciplinados, tampouco dóceis, que lutaram heroicamente

para manter suas marcas culturais vivas, não me permiti exercer a pretensa superioridade do

colonizador que assujeita o outro surdo ao seu modo de se conformar à língua portuguesa.

O texto estava pronto, babélico, disperso, plural! Seu pensamento, fundado em belíssimas

imagens da língua de sinais, tomou emprestados os significantes do português para se

materializar, fazendo fluir a experiência da contaminação intercultural; a língua em que se

sentia estrangeira fora hospedada, acolhida em seus modos de dizer visuais...


De tal modo que busquei colaborar da forma que me pareceu mais sensata, diante da tarefa

que me foi confiada e dos contundentes efeitos de sentido que seu discurso produziu em mim.

Não pude negar-lhe a possibilidade de ser sujeito em sua própria língua, dissolvendo sua voz

no caldo da língua majoritária oficial.

Premida entre o desejo de que sua escritura se apresentasse legível e a necessidade histórica

de que as idiossincrasias de sua autoria fossem preservadas, decidi romper o círculo vicioso

das práticas ouvintistas que, de forma incisiva, Karin buscou denunciar. Procurei não

deformar, conformar suas idéias à minha experiência da língua, não apagar as marcas de sua

autoria, usurpando mais um dos artefatos do povo surdo que deve ser considerado: seus

modos de dizer o português.

Agradeço-lhe a oportunidade do exercício de buscar inverter a lógica normalizadora que

marcou sua história, deixando falar seu português surdo que se reveste de palavras- imagens

em uma sintaxe própria, regrada, repleto de verdades sobre os modos de produzir sentidos em

uma língua estrangeira.

Se a língua é muito mais que um conjunto de regras organizadas segundo uma lógica formal,

se ela delimita um território ideológico de enunciação, saturado de valores e

posicionamentos; se ela se situa na arena de guerras discursivas que constitui os sujeitos, sua

subjetividade, seu lugar no mundo, não poderia fazê-la calar em minha norma hospedeira que

Karin, tão bravamente, ocupou-se em denunciar no mosaico lingüístico e cultural que compõe

o seu texto.

Sueli Fernandes

Apresentação
A cultura surda, ao analisarmos a sua história, vê-se que ela foi marcada por muitos

estereótipos, seja através da imposição da cultura dominante, ou das representações sociais

que narram o povo surdo corno seres deficientes.

Tem muitos autores que escrevem bonitos livros sobre os surdos, mas eles realmente nos

conhecem? Sabem sobre a cultura surda? Eles sentiram na própria pele como é ser surdo? De

tal modo como lamentou o ex-presidente da World Federation of the Deaf (WFD), o surdo

sociólogo doutor Yerker Andersson: "[...] o conhecimento limitado sobre os surdos que os

autores ouvintes possuem quando escrevem acerca da questão da surdez [...]" (ANDERSSON

apud LANE, 1992, p. 13).

Essa agressão contra a cultura surda pode levar a conflitos das identidades surdas e à

desvalorização de suas diferenças. Entretanto, neste livro, há narrativas das experiências

vivenciadas dos sujeitos surdos, as suas resistências contra essa opressão cultural, similar a

um autêntico povo que luta pela sua cultura, pois é através dela que os sujeitos asseguram a

sua sobrevivência e afirmam as suas identidades.

Para a comunidade ouvinte que está mais próxima de povo surdo - parentes, amigos,

intérpretes, professores de surdos reconhecer a existência da cultura surda não é fácil, porque

no seu pensamento habitual acolhe o conceito unitário da cultura e, ao aceitar a cultura surda,

ela tem de mudar as suas visões usuais para reconhecerem a existência de várias culturas, de

compreender os diferentes espaços culturais obtidos pelos povos diferentes.

Mas não se trata somente de reconhecer a diferença cultural do povo surdo, e sim, além disso,

de perceber a cultura surda através do reconhecimento de suas diferentes identidades, suas

histórias, suas subjetividades, suas línguas, valorização de suas formas de viver e de se

relacionar.
Observamos que, atualmente, na sociedade brasileira, está crescendo o número dos sujeitos

ouvintes interessados em aprender a língua de sinais e almejamos que a leitura deste livro

ilumine e ajude-os na compreensão e na aceitação da cultura surda.

Prefácio

O livro As imagens do outro sobre a cultura surda, de Karin Lilian Strobel, é uma publicação

muito importante nos Estudos Surdos. É um livro que traz as imagens do outro sobre a

cultura surda a partir do olhar do próprio surdo.

Vou apresentar a autora como o povo surdo, normalmente, faz. Karin Strobel é surda. Seu

sinal é a configuração de mão K realizada no espaço neutro à direita com movimento para

cirna e para baixo acompanhado de uma leve rotação do pulso. K-A-R-I-N (soletrado usando

o alfabeto manual) é o seu nome.

Ela tem uma longa história nos movimentos surdos brasileiros. Na luta pelo reconhecimento

da língua de sinais, participou de várias mobilizações, de eventos de sensibilização e de

cargos estratégicos para mudar o olhar do outro.

No estado do Paraná, foi professora em vários níveis educacionais. Atuou na formação de

alunos surdos e na formação de profissionais da área dos Estudos Surdos e ocupou posições

políticas. Em Santa Catarina, Karin Strobel iniciou sua carreira acadêmica com pesquisas

relacionadas com a história da educação de surdos.

Professores, instrutores, intérpretes de língua de sinais e colegas passaram pela Karin Strobel

para aprender sobre a

cultura surda e sua língua. Nesses anos todos de atuação, Karin percebeu o quanto é

importante ver o outro e perceber como o outro a percebe, enquanto surda.

Assim, este livro se constitui... A autora percebe que o ser surdo é algo estranho ao outro e

por isso traz neste livro os artefatos que constituem este ser estranho ao não surdo. "Cultura
surda", "identidade surda", "povo surdo", "comunidade surda", "língua de sinais" são

aspectos abordados a partir do olhar de uma surda que transita entre os mundos surdos e não

surdos.

O livro se organiza para desconstruir o estranhamento do outro e construir outros olhares

sobre o ser surdo. Neste sentido, convida o leitor a entrar na jornada dos surdos. Com

propriedade, Karin Strobel pega o leitor pela mão e o faz perseguir as trilhas dos surdos de

um jeito surdo.

As imagens do outro sobre a cultura surda são descontruídas e a partir dos escombros se

traduzem em outras possibilidades de se ver o mundo dos surdos, ou melhor, o povo surdo.

Todo o texto é situado historicamente, pois as imagens refletem os movimentos históricos que

envolveram os surdos.

No primeiro capítulo, a autora discute teoricamente o conceito de cultura, que é fundamental

para construir um outro olhar sobre os surdos. A seguir, no segundo capítulo, adentra a

cultura surda propriamente dita. Inicia com uma provocação: os surdos têm cultura? No

terceiro capítulo, Karin Strobel traz outra questão: povo surdo ou comunidade surda? A

autora traz esta discussão que situa os surdos neste momento histórico que vivemos neste

milênio: os surdos constituem um povo. No capítulo seguinte, a autora descreve os artefatos

culturais deste povo. Parte das experiências visuais, conversa sobre a língua de sinais, uma

língua que também é uma experiência visual, as famílias, a literatura, o lazer, as artes, a

política e os materiais. Todos estes artefatos concebidos a partir do VER.

No quinto capítulo, Karin Strobel adentra o imaginário dos não surdos que flutua na

sociedade brasileira, principalmente por parte dos ouvintes (não surdos). A seguir, no sexto

capítulo, a história cultural é trazida com o olhar na história dos surdos, que chega neste

momento em que temos a surdez inventada noutra perspectiva, a dos próprios surdos. O

imaginário torna outros entornos e há rupturas com o imaginário social representando os


surdos com base na falta. Os surdos são reinventados a partir dos próprios surdos construindo

outra história a partir da cultura. No sétimo capítulo, a autora, então, traz a discussão da

inclusão, algo que permeia as representações imaginárias do ser surdo. Enfim, no último

capítulo, Karin apresenta caminhos para adentrar e compreender a cultura surda. A

compreensão parte do reconhecimento da diferença.

Nesta jornada trazida por Karin Strobel, os leitores chegam ao fim para construir um outro

olhar sobre os surdos. Os surdos, portanto, fazem parte de um acontecimento que é

compartilhado pela autora por meio dessas trilhas.

Ronice Müller de Quadros

CAPÍTULO 1

Qual o conceito que trazemos sobre a cultura?

[...] se a compreensão da cultura exige que se pense nos diversos povos, nações, sociedades e

grupos humanos, é porque eles estão em interação. Citação de José Luiz dos Santos.

Podemos iniciar a discussão deste livro a partir de alguns questionamentos. Qual o conceito

que trazemos sobre a cultura? Há, de fato, cultura surda? O povo surdo, de fato, produz uma

cultura? O que os outros falam sobre a cultura surda? Por que muitos sujeitos dizem que não

existe cultura surda? Para obtermos respostas dessas reflexões, analisamos a base teórica que

sustenta o conceito de cultura.

Nos estudos e pesquisas sobre a cultura percebem-se variações, desde concepções

tradicionais até as mais recentes. As várias suposições limitadas em compreender a cultura

resultam de um conjunto corriqueiro para referir unicamente às manifestações artísticas. Ou é

identificada como os meios de comunicação de massa ou, então, cultura diz respeito às festas
e cerimônias tradicionais, às lendas e crenças de um povo, seu modo de se vestir, sua comida

e a sua língua.

Estes focos sobre a cultura resultam polêmicas entre várias opiniões dos pesquisadores e dos

leigos. Por que há tantas variações de teorias a respeito da cultura? O doutor Lynn de Souza

(2006, p. 1) comenta que "apesar de uma longa história de descrições e definições de cultura

em várias tradições, o conceito continua a oferecer mais indagações do

que respostas".

Dessa forma, torna-se imprescindível que analisemos o processo histórico sobre o conceito de

cultura. Para esclarecer as variações das teorias sobre a cultura, traçarei algumas seqüências

históricas mostrando as transformações nas relações da sociedade com a natureza e,

principalmente, nas relações de seus membros entre si.

Cada teoria sobre a cultura é o resultado de uma história particular que inclui os escritos de

vários pesquisadores que tinham suas próprias idéias em relação às culturas diferenciadas.

Desde o final do século 19, os pesquisadores vêm elaborando inúmeros conceitos sobre

cultura e, apesar de a cifra ter ultrapassado mais de 200 definições, ainda não chegaram a um

acordo sobre o significado exato da terminologia. O conceito de cultura é transmitido e

interiorizado em diferentes aspectos, assim como Moles (apud RICOU; NUNES, 2005)

afirma: "cultura, termo tão carregado de valores diversos que o seu papel varia notavelmente

de um autor para outro e do qual se enumeraram mais de 250 definições".

Há quem considere a cultura de forma unitária, ou admita a existência não de uma cultura, no

singular, mas de culturas no plural. A idéia unitária de cultura está relacionada na sociedade

com as ideologias hegemônicas, de padronização, de normalização, nas quais todos devem se

identificar com esta cultura única em um determinado espaço.

Conforme assinala Frederick Schiller (apud EAGLETON, 2005), a cultura é a estrutura

daquilo que é chamado de "hegemonia",' que molda os sujeitos humanos às necessidades de


um tipo de sociedade politicamente organizada, remodelando-os com base nos atuantes

dóceis, moderados, de elevados princípios, pacíficos, conciliadores. Isso evidencia que esta

sociedade gerou o desejo da necessidade de sermos perfeitos para pertencermos a ela, senão

estaríamos excluídos.

Na teoria moderna, a cultura se torna sabedoria grandiosa ou arma ideológica, uma forma

isolada de crítica social. Esta teoria possui a idéia de uma cultura única e perfeita, a alteridade

e a diferença são vistas como mancha para a sociedade, fazendo com que tenham a

necessidade de transformação do "outro", isto é, como ilustrado anteriormente, moldando os

sujeitos "diferentes" para serem iguais a eles.

Desse modo, alude doutor Lynn de Souza (2006, p. 2)"[...] que partia da noção da

superioridade do discurso filosófico que permitia acesso à razão, a uma referencialidade pura

e portando a uma precisão e consistência no pensamento [...]", para esta soc iedade a

identidade e cultura são vistas como essencialistas, substancialistas, prontas e puras para esse

grupo hegemônico.

Na teoria pós-moderna, Joahann Herder (apud EAGLETON, 2005) propõe pluralizar a

terminação "cultura", falando das culturas de diferentes nações e períodos, bem como de

diferentes culturas sociais e econômicas dentro da própria nação.

Os autores pós-modernos enfatizam as múltiplas culturas e se dedicam a interagir de forma

profunda no interior delas. Neste pensamento pós-moderno, a pluralidade encontra- se

cruzada com a autoidentidade, em vez de se dissolver em identidades distintas.

O termo hegemonia' deriva do grego hegemon, que significa líder, guia ou quem dita as

regras. No uso geral, refere-se ao domínio e à influência de um pais sobre os outros e a um

princípio segundo o qual um grupo de elementos é organizado" (EDGAR; SEDGWICK,

2003, p 151).
A humanidade, ao longo do tempo, adquire conhecimento através da língua, crenças, hábitos,

costumes, normas de comportamento, entre outras manifestações. Partindo do suposto que

cultura é a herança que o grupo social transmite a seus membros através de aprendizagem e

de convivência, percebe-se que cada geração e sujeito também contribuem para ampliá-la e

modificá-la.

Considerar a questão cultural no plural admite a multiplicidade de manifestações de grupos

culturais das mais diversas naturezas, tornando o conceito da cultura mais amplo.

Conforme afirma Hall (1997), nas teorias do campo dos Estudos Culturais,- a cultura que

ternos determina uma forma de ver, de interpelar, de ser, de explicar e de compreender o

mundo.

Os Estudos Culturais são originados da Inglaterra; depois se expandiram para os Estados

Unidos e outros países da Europa e da América Latina. Os Estudos Culturais formam um

campo de pesquisa interdisciplinar para estudos na área da cultura. Na sua agenda temática

estão gênero e sexualidade, identidades nacionais, pós-colonialismo, etnia, políticas de

identidade, discurso e textualidade, pós-modernidade, entre outros. De acordo com Culler

(1999, p. 49),

[...] o projeto dos Estudos Culturais é compreender o funcionamento da cultura,

particularmente no mundo moderno: como as produções culturais operam e como as

identidades culturais são construídas e organizadas, para indivíduos e grupos, num mundo de

comunidades diversas e misturadas [...].


!
"O termo 'estudos culturais' pode pata se referir a todos os aspectos do para incluir as

diversas formas em que (EDGAR; SEDGWICK, 2003)

ao mesmo tempo ser amplamente usado estudo da cultura, e como tal ser tomado a cultura é

compreendida e analisada [...]"


Então; nesse campo de Estudos Culturais, a cultura é uma ferramenta de transformação, de

percepção, da forma de ver diferente, não mais de homogeneidade, mas de vida social

constitutiva de jeitos de ser, de fazer, de compreender e de explicar. Essa nova marca cultural

transporta para uma sensação a cultura grupal, ou seja, como ela diferencia os grupos, no que

faz emergir a "diferença".

Após urna rápida apreciação das várias contribuições teóricas trazidas para os conceitos da

cultura, retomemos agora o processo histórico sobre o significado da palavra "cultura".

O vocábulo cultura, vindo do latim, significa o cuidado dispensado à terra cultivada; segundo

Eagleton (2005), o conceito de cultura, etimologicamente raciocinando, é proveniente do de

natureza, sendo que um dos significados originais é "lavoura" ou "cultivo agrícola". Isto

mostra que o cultivo da linguagem e da identidade são, então, os elementos fundamentais de

uma cultura.

Dessa maneira, os elementos mais importantes da cultura podem ser destacados como as

habilidades dos sujeitos para construir sua identidade em usar a linguagem. Ilustrando mais

claramente, na "cultura", a palavra natureza significa tanto o que está a nossa volta como o

que está dentro de nós. Poderíamos usar a metáfora de uma semente que é plantada em solo e

cresce urna bela planta; mas isto não ocorre sem a ajuda da natureza, ou seja, do sol, da

chuva, do vento, do fertilizante do solo, que fazem a semente reagir e desenvolver-se. A

semente que está sozinha, sem ademão da natureza, não cresceria, uma vez que estaria

abandonada e apodrecendo.

"A cultura permite ao homem não somente adaptar-se a seu meio, mas também adaptar este

meio ao próprio homem, a suas necessidades e seus projetos. Em suma, a cultura torna

possível a transformação da natureza" (CUCHE, 2002, p. 10).

Da mesma forma, um ser humano, em contato com o seu espaço cultural, reage, cresce e

desenvolve sua identidade.


A humanidade, ao longo do tempo, adquire conhecimento através da língua, crenças, hábitos,

costumes, normas de comportamento, entre outras manifestações. Partindo do suposto que

cultura é a herança que o grupo social transmite a seus membros através de aprendizagem e

de convivência, percebe-se que cada geração e sujeito também contribuem para ampliá-la e

modificá-la.

Considerar a questão cultural no plural admite a multiplicidade de manifestações de grupos

culturais das mais diversas naturezas, tornando o conceito da cultura mais amplo.

Conforme afirma Hall (1997), nas teorias do campo dos Estudos Culturais, 1 a cultura que

temos determina uma forma de ver, de interpelar, de ser, de explicar e de compreender o

mundo.

Os Estudos Culturais são originados da Inglaterra; depois se expandiram para os Estados

Unidos e outros países da Europa e da América Latina. Os Estudos Culturais formam um

campo de pesquisa interdisciplinar para estudos na área da cultura. Na sua agenda temática

estão gênero e sexualidade, identidades nacionais, pós-colonialismo, etnia, políticas de

identidade, discurso e textualidade, pós-modernidade, entre outros. De acordo com Culler

(1999, p. 49),

[...] o projeto dos Estudos Culturais é compreender o funcionamento da cultura,

particularmente no mundo moderno: como as produções culturais operam e como as

identidades culturais são construídas e organizadas, para indivíduos e grupos, num mundo de

comunidades diversas e misturadas [...].

• "O termo 'estudos culturais' pode ao mesmo tempo ser amplamente usado para se referir a

todos os aspectos do estudo da cultura, e como tal ser tomado para incluir as diversas formas

em que a cultura é compreendida e analisada [...]" (EDGAR; SEDGWICK, 2003)

Então; nesse campo de Estudos Culturais, a cultura é uma ferramenta de transformação, de

percepção, da forma de ver diferente, não mais de homogeneidade, mas de vida social
constitutiva de jeitos de ser, de fazer, de compreender e de explicar. Essa nova marca cultural

transporta para uma sensação a cultura grupal, ou seja, como ela diferencia os grupos, no que

faz emergir a "diferença".

Após uma rápida apreciação das várias contribuições teóricas trazidas para os conceitos da

cultura, retomemos agora o processo histórico sobre o significado da palavra "cultura".

O vocábulo cultura, vindo do latim, significa o cuidado dispensado à terra cultivada; segundo

Eagleton (2005), o conceito de cultura, etimologicamente raciocinando, é proveniente do de

natureza, sendo que um dos significados originais é "lavoura" ou "cultivo agrícola". Isto

mostra que o cultivo da linguagem e da identidade são, então, os elementos fundamentais de

urna cultura.

Dessa maneira, os elementos mais importantes da cultura podem ser destacados como as

habilidades dos sujeitos para construir sua identidade em usar a linguagem. Ilustrando mais

claramente, na "cultura", a palavra natureza significa tanto o que está a nossa volta como o

que está dentro de nós. Poderíamos usar a metáfora de uma semente que é plantada em solo e

cresce uma bela planta; mas isto não ocorre sem a ajuda da natureza, ou seja, do sol, da

chuva, do vento, do fertilizante do solo, que fazem a semente reagir e desenvolver-se. A

semente que está sozinha, sem ademão da natureza, não cresceria, uma vez que estaria

abandonada e apodrecendo.

"A cultura permite ao homem não somente adaptar-se a seu meio, mas também adaptar este

meio ao próprio homem, a suas necessidades e seus projetos. Em suma, a cultura torna

possível a transformação da natureza" (CUCHE, 2002, p. 10).

Da mesma forma, um ser humano, em contato com o seu espaço cultural, reage, cresce e

desenvolve sua identidade,

"surdo" é mencionada, que imagens vêm a mente das pessoas? Lane (1992, p. 26) explica que

é comum as pessoas deduzirem que os surdos vivem isolados e que para se integrar é preciso
adquirir a cultura ouvinte, isto é, para viver "normal", segundo a sociedade, é preciso ouvir e

falar:

Ao imaginar como é a surdez, eu imagino o meu mundo sem som - um pensamento

aterrorizador e que se ajusta razoavelmente ao estereótipo que projetamos para os membros

da comunidade dos surdos. Eu estaria isolado, desorientado, incomunicável e incapaz de

receber comunicação.

Essas representações imaginárias estão equivocadas, os povos surdos não vivem isolados e

incomunicáveis; simplesmente os sujeitos surdos têm seu modo de agir diferente do de

sujeitos ouvintes. Confira o relato de Magnani (2007) ao se deparar com os sujeitos surdos

em uma festa junina na comunidade surda:

Foi uma experiência diferente: entrei na festa e de repente me vi no meio de cerca de dois mil

surdos - eu nunca tinha visto tantos surdos juntos - e ali eu é que era o estranho! Não falava

corno eles, não entendia o que diziam, sentia-me caminhando por uma tribo cuja língua eu

não conhecia, cujos costumes me eram alheios. Sequer sabia qual era a etiqueta: como é pedir

desculpas, na língua de sinais, quando a gente esbarra em alguém? No início, essa dificuldade

causou um certo constrangimento, mas logo comecei a circular no meio deles e a apreciar

outras formas de contato e sociabilidade que, se eu não podia decodificar através daquela

língua, porque eu não a dominava, podiam ser entendidas por meio de outros códigos.

Os sujeitos ouvintes veem os sujeitos surdos com curiosidade e, às vezes, zombam por eles

serem diferentes. Wrigley (1996, p. 71) explica que a política ouvintista (ouvintista, segundo

Skliar, "é um conjunto de representações dos ouvintes, a partir do qual o surdo está obrigado

a olhar-se e narrar-se como se fosse ouvinte".) prevaleceu historicamente dentro do modelo

clínico e demonstra as táticas de atitude reparadora e corretiva da surdez, considerado-a como

defeito e doença, sendo necessário tratamentos para "normalizá-la":


[...] surdos são pessoas que ouvem com ouvidos defeituosos. Se pudéssemos consertar os

ouvidos, eles estariam ouvindo. Esta lógica comum na verdade é comum, mas não

necessariamente lógica. Os negros são pessoas brancas que possuem pele escura. Se

pudéssemos consertar a pele, eles seriam brancos. As mulheres são homens com genitália

errada...; e por aí vai. Essas transposições cruas revelam um tecido social de práticas pelas

quais nós sabemos quais identidades são tanto disponíveis quanto aceitáveis.

Aponto aqui um exemplo de uma família ouvinte de uma surda que foi levada ao médico com

a esperança de ter possibilidade de fazer uma cirurgia para a "cura" de sua "surdez", e o

médico alegou que não poderia operar por causa das alergias no sistema nervoso da menina

surda:

Voltamos para casa e ao chegar começou aquela choradeira de novo, e eu mais uma vez sem

entender por que todos tinham que chorar, Ângela tentava me explicar que as pessoas

estavam tristes porque eu não poderia ouvir como uma pessoa ouvinte. Foi muito difícil para

eu entender o que acontecia com eles.

(VILHALVA, 2001, p. 26).

O nascimento de uma criança surda é uma catástrofe para essa comunidade ouvinte porque

esta está acostumada com padrão "normalizador" para integrar à vida social e também

desconhece o "mundo dos surdos". Por outro lado, na maioria das vezes, o povo surdo acolhe

o nascimento de cada criança surda como uma dádiva preciosa e não age como os pais

ouvintes que sofrem exageradarnente o desapontamento inicial de gerarem seus filhos surdos;

isto é evidenciado nas várias gerações de famílias com todos os membros surdos.

Voltando ao assunto, segundo o discurso ouvintista, o sujeito surdo, para estar bem integrado

à sociedade, deveria se adaptar à cultura ouvinte, porque somente assim poderia viver
"normalmente". Se não conseguir, é considerado "desviante", conforme o fato ocorrido com a

professora surda Teresa:

[...] sabia falar, graças à terapia de fala, desde os 4 anos de idade e por ser filha de pais

ouvintes e ter seguido, desde muito cedo, a oralidade. No entanto, a minha pronúncia era

defeituosa. As reações dos alunos, alguns a rirem e outros atrapalhados, atingiram-me em

cheio como se fossem balas. Foi por um triz que não fugi porta afora. Abri a tempo o meu

escudo invisível. Eles acabariam por se habituar à minha fala, era só uma questão de tempo.

(OLIVEIRA, 2007).

Além disso, há os discursos sociais que veern sujeitos surdos corno incapazes e deficientes.

Cito dois acontecimentos recentes: eu, junto de um grupo de alunos surdos que passaram no

vestibular para Letras/Libras, conversava com uma assistente social da universidade para

vermos alojamento para eles; elucidei a ela que sou doutoranda, e eles, alunos da graduação;

finalizei explicando o motivo de estar lá; a assistente social pegou papel para fazer cadastro e

perguntou para nós: "vocês sabem ler?". Abismada, expliquei de novo que sou doutoranda e

que eles têm

graduação; ela repetiu a pergunta... Irritei-me: "pensa que somos analfabetos?".4

Um sujeito surdo foi a uma consulta médica. O médico fez perguntas para escrever o

histórico da vida dele: "Qual o seu grau de instrução?". O paciente surdo respondeu que

estava fazendo mestrado, e o médico articulou abismado: "Você? Mestrado? - como se não

acreditasse na resposta. Que tipo de representação social o médico tem de sujeitos surdos?

Seres que não são capazes de estudar e fazer mestrado?

Dentro do povo surdo, os sujeitos surdos não se diferenciam um de outro de acordo com grau

de surdez, mas o importante para eles é o pertencimento ao grupo usando a língua de sinais e

cultura surda, que ajudam a definir as suas identidades surdas. Menciono um fragmento da

dissertação do pesquisador surdo Miranda (2001, p. 8):


Sou surdo! O meu jeito de ser já marca a diferença! [...] Ser surdo, viver nas diferentes

comunidades dos surdos, conhecer a cultura, a língua, a história e a representação que atua

simbolicamente distinguindo a nós surdos e à comunidade surda é uma marcação para

sustentar o tema em questão.

Cultura surda é o jeito de o sujeito surdo entender o mundo e de modificá-lo a fim de torná-lo

acessível e habitável, ajustando-o com as suas percepções visuais, que contribuem para a

definição das identidades surdas5 e das "almas" das comunidades surdas. Isto significa que

abrange a língua, as idéias, as crenças, os costumes e os hábitos do povo surdo. Descreve a

pesquisadora surda:

Os exemplos citados nas frases em itálico no transcurso dos textos deste livro, na maioria

daafvezes, são os meus próprios depoimentos das experiências vivenciadas e vistas na

comunidade surda durante a trajetória da minha vida como "ser surda"

Para saber mais, ler a respeito das identidades surdas em Perlin (1998)

[...] As identidades surdas são construídas dentro das representações possíveis da cultura

surda, elas moldam-se de acordo com o maior ou menor receptividade cultural assumida pelo

sujeito. E dentro dessa receptividade cultural, também surge aquela luta política ou

consciência oposicional pela qual o indivíduo representa a si mesmo, se defende da

homogeneização, dos aspectos que o tornam corpo menos habitável, da sensação de

invalidez, de inclusão entre os deficientes, de menos-valia social. (PERLIN, 2004, p. 77-78).

O essencial é entendermos que a cultura surda é como algo que penetra na pele do povo surdo

que participa das comunidades surdas, que compartilha algo que tem em comum, seu

conjunto de normas, valores e comportamentos.

O que e quais seriam estas normas e valores a que tanto fazemos referência neste livro? Por

que os sujeitos surdos se comportam diferente dos sujeitos ouvintes? Antes de refletirmos
sobre estes questionamentos, primeiro gostaríamos de abordar como a cultura surda é

transmitida.

Por causa das proibições de compartilhar uma língua cultural do povo surdo em resultado

emitido pelo Congresso Internacional de Educadores de Surdos ocorrido em Milão, na Itália,

no ano de 1880, o uso de língua de sinais foi definitivamente banido a favor da metodologia

oralista nas escolas de surdos.

As crianças surdas não podiam participar nas comunidades surdas e, inicialmente, os espaços

compartilhados eram os dormitórios das instituições e asilos, onde os sujeitos surdos eram

entregues pelas famílias em regime de internato, até que estivessem aptos para retornar para o

convívio familiar, o que, invariavelmente, acontecia no início da idade adulta, assim como

citam Padden e Humphries (2000, p. 6):

Nos dormitórios, distantes do controle estruturado da sala de aula, as crianças surdas são

introduzidas à vida social das pessoas Surdas. No ambiente informal do dormitório aprendem

não somente a língua de sinais, mas o conteúdo da cultura. Desse modo, as escolas tornam-se

centros de atividades das comunidades que as cercam, preservando à próxima geração a

cultura das gerações anteriores.

Muitas vezes o processo de transmissão cultural de surdos ocorre com muitos sujeitos surdos

somente na idade mais avançada, já adultos, porque a maioria deles tem família de ouvintes,

ou porque, pela imposição ouvintista, nem freqüentam as escolas de surdos e ficam sem

contato por muito tempo com a comunidade surda.

Legenda da foto: alunos surdos eram internos nesta escola, onde, nos dormitórios, longe da

vigilância, aprendem não somente a língua de sinais, mas também o conteúdo da cultura

Fonte: Foco do acervo do Ines. Fim da legenda.


As comunidades surdas no Brasil têm uma longa história. O povo surdo brasileiro deixou

muitas tradições e histórias em suas organizações, as quais iniciaram diante de urna

necessidade de o povo surdo ter um espaço para se reunir e resistir contra as práticas

ouvintistas que não respeitavam sua cultura. Essas organizações - as associações de surdos,

federações de surdos, igrejas e outros - também tiveram e têm o papel importante que é a

transmissão cultural, esportiva, política, religiosa e fraternal pelos povos surdos.

A cultura surda exprime valores e crenças que, muitas vezes, se originaram e foram

transmitidas pelos sujeitos surdos de geração passada ou de seus líderes surdos bem-

sucedidos, através das associações de surdos. Infelizmente, elas não são procuradas pelas

famílias, que procuram as escolas primeiro, porque elas oferecem aos surdos o modelo

ouvinte próximo, isto é, "normal", perante a sociedade ouvintista:

[...] Os pais, entretanto, estão numa fase de crise e é pouco provável que sejam críticos

relativamente àquele ponto de vista. Se o profissional descrevesse a comunidade dos surdos,

tal descrição seria em termos tão concisos que na realidade os pais não veriam uma

alternativa para o estatuto e destino da sua criança. O especialista profissional e os pais

partilham, geralmente, a mesma cultura dos ouvintes [...] (LANE, 1992, p. 38).

Há grande diversidade de comunidades surdas e cada grupo é organizado de maneira

diferente, de acordo com os mesmos interesses, tais como raça, religião, profissão e outras

características distintivas, assim como assevera o autor americano Wilcox (2005, p. 78):

"Embora o termo cultura surda seja usado freqüentemente, isso não significa que todas as

pessoas surdas no mundo compartilhem a mesma

cultura". Por exemplo, além das várias associações de surdos já existentes espalhadas em

muitos lugares no mundo, há, em Buenos Aires (Argentina), a Associação dos Surdos

Oralizados; nos Estados Unidos, a Associação dos Surdos Negros; no Brasil, a Associação de

Surdos Gays, Comunidade dos Surdos Implantados, e outras.


Ao afirmarmos que os surdos brasileiros são membros de uma cultura surda, não significa

que todas as pessoas surdas no mundo compartilhem a mesma cultura simplesmente porque

elas não ouvem. Os surdos brasileiros são membros da cultura surda brasileira da mesma

forma que os surdos americanos são membros da cultura surda norte-americana. Esses grupos

usam línguas de sinais diferentes, compartilham experiências diferentes e possuem diferentes

experiências de vida. (KARNOPP, 2006, p. 99).

CAPÍTULO 3

Povo surdo ou comunidade surda?

[...] um povo acontece quando as pessoas se unem em torno de um mesmo sonho. É preciso

devolver ao povo a capacidade de sonhar para que ele volte a ser povo.

Santo Agostinho

Este capítulo proporciona o conhecimento da diferenciação básica e de supra importância

entre a comunidade surda e o povo surdo, pois a elucidação dessas duas expressões:

"comunidade surda" e "povo surdo" é um pensamento influente que está se sobrepondo a

qualquer outra explicação, sendo referência e de interesse às pesquisas científicas e históricas,

bem viva nos tempos atuais.

É uma inquietação em que muitos sujeitos tentam entender os muitos caminhos que

conduziram os grupos de sujeitos surdos às suas relações culturais presentes, marcados por

visões diferentes de organização de seus movimentos.

Muitos autores conceituam "comunidade surda" de forma ampla e variada. O conceito,

algumas vezes, tem sido usado como sinônimo de grupos de surdos que participam nas

associações, escolas e outras localizações. Então, por que

alguns autores citam "comunidade surda" enquanto outros citam "povo surdo"?
A verdade é que muitos já escreveram sobre comunidade surda e/ou povo surdo, e, no

entanto, continuamos a fazer as mesmas perguntas.

Primeiro vamos refletir os conceitos dessas duas palavras. Segundo o Dicionário Houaiss da

língua portuguesa, o conceito de "comunidade" seria:

[...] conjunto de habitantes de um mesmo Estado ou qualquer grupo social cujos elementos

vivam numa dada área, sob um governo comum e irmanados por um mesmo legado cultural e

histórico. [...] conjunto de indivíduos que utilizam o mesmo idioma. [...] Agrupamento de

pessoas que, num período específico do tempo, usam a mesma língua ou o mesmo dialeto;

essa comunidade pode coincidir com uma nação, se esta for monolíngue, ou pode ser o

conjunto dé povos que tem uma língua em comum, ou grupos regionais, profissionais, etc.

[...] conjunto de indivíduos que, em razão de fatores de natureza social - geográficos,

históricos, culturais, raciais, etc. - têm em comum certas características que os distinguem de

outros grupos no mesmo meio e na mesma ocasião. (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 782).

E o conceito de "povo" seria:

[...] conjunto de pessoas que falam a mesma língua, têm costumes e interesses semelhantes,

história e tradições comuns. [...] conjunto de pessoas que vivem ern comunidade num

determinado território; nação, sociedade [...] conjunto de indivíduos de uma mesma ou de

várias nacionalidades, agrupados num mesmo Estado. [...] conjuntos de pessoas que não

habitam o mesmo país, mas que estão ligadas por uma origem, sua

religião ou qualquer outro laço. (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 2275).

Se o povo surdo é grupo de sujeitos surdos que usam a mesma língua, que têm costumes,

história, tradições comuns e interesses semelhantes, então o que seria a comunidade surda?

Para os autores surdos americanos Padden e Humphries (2000, p. 5),

Uma comunidade surda é um grupo de pessoas que vivem num determinado local, partilham

os objetivos comuns dos seus membros, e que por diversos meios trabalham no sentido de
alcançarem estes objetivos. Uma comunidade surda pode incluir pessoas que não são elas

próprias Surdas, mas que apoiam ativamente os objetivos da comunidade e trabalham em

conjunto com as pessoas Surdas para os alcançar.

Continuando com os mesmos autores, Padden e Humphries (2000, p. 5) estabeleceram urna

diferença entre cultura e comunidade:

[...] uma cultura é um conjunto de comportamentos apreendidos de um grupo de pessoas que

possuem sua própria língua, valores, regras de comportamento e tradições; uma comunidade

é um sistema social geral, no qual um grupo de pessoas vivem juntas, compartilham metas

comuns e partilham certas responsabilidades urnas com as outras.

Conforme Padden e Humphries (2000), na comunidade surda também pode haver sujeitos

surdos e ouvintes. Já os membros de uma cultura surda comportam-se como sujeitos surdos e

compartilham das crenças de sujeitos surdos entre si, sendo estes membros pertencentes ao

povo surdo.

Então, entendemos que a comunidade surda de fato não é só de sujeitos surdos; há também

sujeitos ouvintes - membros de família, intérpretes, professores, amigos e outros - que

participam e compartilham interesses comuns em uma determinada localização.

Em que lugares? Geralmente em associação de surdos, federações de surdos, igrejas e outros.

Surdos... Um povo? Que tipo de povo seríamos nós?

Quando pronunciamos "povo surdo", estamos nos referindo aos sujeitos surdos que não

habitam no mesmo local, mas que estão ligados por urna origem, por um código ético de

formação visual, independentemente do grau de evolução linguística, tais como a língua de

sinais, a cultura surda e quaisquer outros laços.

Se uma língua transborda de uma cultura, é um modo de organizar urna realidade de um

grupo que discursa a mesma língua como elemento comum, concluímos que a cultura surda e

a língua de sinais seriam referências do povo surdo.


Agora que já sabemos o conceito de povo surdo e comunidade surda, separadamente,

refletiremos sobre a diferença entre ambos. Para uma compreensão melhor, citarei exemplo

de diferença entre outro tipo de comunidade e povo: a comunidade alemã e o povo alemão.

As comunidades alemãs no Brasil seriam as colônias situadas em Santa Catarina ou Paraná,

onde há escolas alemãs, cultura alemã e língua alemã e o povo seria o conjunto de imigrantes

alemães espalhados pelo Brasil, que não habitam no mesmo local, mas que estão ligados por

uma origem, tais como a língua alemã, a cultura e quaisquer outros laços. Pode ocorrer que o

povo alemão se negue a ingressar na comunidade alemã, mas que compartilhe os mesmos

interesses da comunidade.

Nesse conceito, a inclusão dos sujeitos em uma comunidade é entendida a partir de uma

perspectiva de influência mútua entre todos os sujeitos envolvidos dentro de urna localização

particular, tendo um compartilhamento efetivo do saber em que todos aprendem juntos no

mesmo espaço. Na verdade, este espaço comum talvez não seja o melhor espaço para incluir

a todos.

Devemos lembrar que muitos sujeitos surdos moram em cidades do interior onde não tem

associação de surdos, federações e outros, mas que participam em movimentos políticos e

culturais, usam a língua de sinais e compartilham entre si das mesmas crenças.

Tem outros sujeitos surdos no interior, na zona rural, por exemplo, na roça, que são isolados e

não têm contato com a comunidade surda; mesmo assim, compartilham as mesmas

peculiaridades, ou seja, constroem sua formação de mundo através de artefato cultural visual

independentemente de grau linguístico, que podem ser os gestos caseiros.1

1
"Gestos caseiros" é o termo usado pelos pesquisadores e linguistas que designa a

comunicação dos sujeitos surdos que, quando são isolados e não têm acesso à língua de sinais

e nem à língua portuguesa, usam gestos e dramatizações para se comunicar.


Então, o povo surdo poderia ser os surdos das zonas rurais, os surdos das zonas urbanas, os

surdos índios, as mulheres surdas, os surdos sinalizados, os surdos oralizados, os surdos com

implante coclear, os surdos gays e outros. Esses surdos também se identificam com o povo

surdo, apesar de não pertencerem às mesmas comunidades surdas.

Na situação em que o povo surdo se sente excluído das comunidades ouvintes devido às

representações sociais "normalizadoras" que não aceitam a cultura surda - sujeitos surdos

vivem nas comunidades ouvintes, mas não compartilham da mesma cultura delas -, pode

ocorrer uma experiência diaspórica; o deslocamento de sujeitos surdos à comunidade surda.

Silva (2000, p. 41) explica o conceito da palavra diáspora:

Dispersão em geral forçada, de um determinado povo por lugares diferentes do mundo. Na

análise pós-colonialista, destacam-se a diáspora dos povos africanos, causada pelo comércio

escravagista, e o movimento contemporâneo de migração - visto como uma diáspora - dos

povos das antigas colônias européias para suas antigas metrópoles. Nessa análise, a existência

de uma suposta identidade diaspórica está relacionada à noção antiessencialista de

hibridismo.

Hall (2003, p. 415) comenta que conhecia a Inglaterra de dentro,

[...] mas não sou nem nunca serei um inglês. Conheço intimamente os dois lugares, mas não

pertenço completamente a nenhum deles. E esta é exatamente a experiência diaspórica, longe

o suficiente para experimentar o sentimento de exílio e perda.

Então, muitas vezes, a formação de identidades surdas é construída a partir de

comportamentos transmitidos coletivamente pelo "povo surdo", que ocorre espontaneamente


quando os sujeitos surdos se encontram com os outros membros surdos nas comunidades

surdas.

Para abrangermos melhor, afirmamos novamente que o deslocamento do povo surdo, a

comunidade surda, ajuda na formação de suas identidades, assim como afirma o Hall (2003,

p. 433):

[...] mas é justamente por resultar de formações históricas específicas, de histórias e

repertórios culturais de enunciação muito específicos, que ela pode constituir um

"posicionamento", ao qual nós podemos chamar provisoriamente de identidade.

Mas isso não quer dizer que os povos surdos se isolam da comunidade ouvinte; o que estamos

explicando é que os sujeitos surdos, quando se identificam com a comunidade surda, estão

mais motivados a valorizar a sua condição cultural e, assim, passariam a respirar com mais

orgulho e autoconfiança na sua construção de identidade e ingressariam em uma relação

intercultural, iniciando uma caminhada sendo respeitados corno sujeitos "diferentes" e não

como "deficientes". Veremos a seguir a reflexão da surda doutoranda Pinto (2001, p. 39-40):

Ser surdo, judeu, negro, índio, enfim, ser diferente dos demais configurados como normais na

concepção patológica da medicina não mais deve ser motivo de isolamento, exclusão social,

estigma, preconceito, mas sim, este é o momento propício para que ocorra uma mudança

profunda na visão e costumes dos povos, fazendo com que os diferentes se fundam ao

contexto sócio-histórico e se tornem nada mais e nada menos do que sempre foram não só aos

olhos da natureza, mas também aos olhos daquilo que todas religiões definem com Deus:

iguais.

Quando estamos descrevendo sobre os sujeitos surdos que vivem no Brasil, que usam a

mesma língua de sinais do Brasil, que têm costumes, história, tradições comuns e interesses

semelhantes estamos nos referindo ao Povo Surdo do Brasil!


Nós, brasileiros, somos um povo em ser, impedido de sê- lo. Um povo mestiço na carne e no

espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Nela fomos feitos e ainda

continuamos nos fazendo. Essa massa de nativos viveu por séculos sem consciência de si [...]

Assim foi até se definir como uma nova identidade étnico-nacional, a de brasileiros [...]

(RIBEIRO, 1995, p. 453).

Assim, para finalizar, o povo surdo são sujeitos surdos que compartilham os costumes,

história, tradições em comum e pertencentes às mesmas peculiaridades culturais, ou seja, que

constroem sua concepção de mundo através do artefato cultural visual, isto é, usuários

defensores do que se diz ser povo surdo; seriam os sujeitos surdos que podem não habitar no

mesmo local, mas que estão ligados por um código de formação visual independente do nível

linguístico.

O que sucede é que quando os sujeitos surdos estão em comunhão entre eles, e quando

compartilham suas metas dentro da associação de surdos, federações, igrejas e outros locais

dão o sentido de estarem em comunidades surdas.

Nós, o povo surdo, queríamos a oficialização da nossa língua de sinais; então, para conseguir

isto, muitas comunidades surdas brasileiras se reuniram e elaboraram esta lei, oficializada

como a Lei de Libras, n0 10.436, de 24 de abril de 2002, que beneficia o povo surdo

brasileiro.

O "povo" surdo é alegre. Talvez porque tenha havido muito sofrimento em sua infância. Eles

têm prazer em se comunicar e se alegram sempre. Em um pátio de recreação ou em um

restaurante, um grupo de surdos que falam é algo incrivelmente vivo. Falamos, falamos,

exprimimo-nos às vezes durante horas. Como se tivéssemos uma sede inesgotável de dizer as

coisas, das mais superficiais às mais sérias. Os surdos teriam me chamado de "Flor que

chora", caso eu não tivesse tido acesso à sua comunidade lingüística. A partir dos sete anos
tornei-me falante e luminosa. A língua de sinais era minha luz, meu sol, não pararia mais de

me exprimir, aquilo saía, saía, como uma grande abertura em direção à luz. Não conseguia

mais parar de falar com as pessoas. Tornei-me "O sol que vem do coração". Era um belo

sinal. (LABORIT, 1994, p. 75).

CAPÍTULO 4

Os artefatos culturais do povo surdo

Conhecer o mundo pela visão significa, ainda, desenvolver um código visual com o qual os

surdos associam significado e significante a partir das informações visuais que extraem do

meio.

Sandra Patrícia de Farias

Retomando as reflexões questionadas: o que e quais seriam estas normas e valores do povo

surdo e por que os sujeitos surdos se comportam diferente dos sujeitos ouvintes? E, com isso,

trazemos à baila alguns "artefatos culturais" que são as peculiaridades da cultura surda.

O que seriam artefatos culturais? A maioria dos sujeitos está habituada a apelidar de

"artefatos" os objetos ou materiais produzidos pelos grupos culturais; de fato, não são só

formas individuais de cultura materiais, ou produtos definidos da mão de obra humana;

também se pode incluir tudo o que se vê e sente quando se está em contato com a cultura de

uma comunidade, como materiais, vestuário, maneira pela qual um sujeito se dirige^a outro,

tradições, valores e normas, etc.


Segundo constatamos em diversos autores no campo dos Estudos Culturais, o conceito

"artefatos" não se refere apenas a materialismos culturais, mas àquilo que na cultura constitui

produções do sujeito que tem seu próprio modo de ser, ver, entender e transformar o mundo.

Traço comum em todos os sujeitos humanos seria o fato de que somos todos artefatos

culturais e, assim, os artefatos ilustram uma cultura.

Vou citar alguns artefatos mais importantes que ilustram a cultura do povo surdo, isto é, as

suas atitudes de ser surdo, de ver, de perceber e de modificar o mundo.

Artefato cultural: experiência visual

O primeiro artefato da cultura surda é a experiência visual em que os sujeitos surdos

percebem o mundo de maneira diferente, a qual provoca as reflexões de suas subjetividades:

De onde viemos? O que somos? E para onde queremos ir? Qual é a nossa identidade?

Quando fazemos referência à identidade cultural, referimo-nos ao sentimento de

pertencimento a uma cultura, isto é, à interação do sujeito surdo com a sua comunidade;

assim, como reflete Hall (2004), é a representação que atua simbolicamente para classificar o

mundo e nossas relações no seu interior. Vou elucidar num exemplo uma situação ocorrida

comigo:

Uma vez meu namorado ouvinte me disse que iria fazer uma surpresa para mim pelo meu

aniversário; falou que iria me levar a um restaurante bem romântico. Fomos a um restaurante

escolhido por ele. Era um ambiente escuro, com velas e flores no meio da mesa. Fiquei meio

constrangida porque não conseguia acompanhar a leitura labial do que ele me falava, por

causa de falta de iluminação e pela fumaça de vela que desfocava a imagem do rosto dele,

que era negro; e para piorar, havia um homem no canto do restaurante tocando música que,
sem que eu pudesse escutar, me irritava e me fazia perdera concentração por causa dos

movimentos dos dedos repetidos de vai e vem com seu violino. O meu namorado percebeu o

equívoco e resolvemos ir a uma pizzaria!

O professor e escritor surdo americano Ben Bahan propôs que os sujeitos surdos começassem

a ser chamados de "pessoas visuais":

Usando essa palavra eu me coloco na posição das coisas que eu posso fazer ao invés das que

não posso fazer. Identificando-me como urna pessoa visual, isso explicaria tudo ao meu

redor: os aparelhos TDDs, os decodificadores, as campainhas luminosas, a leitura labial e a

emergência de uma língua visual, a língua de sinais americana. (BAHAN, 1989 apud

WILCOX; WILCOX, 2005, p. 17).

Os sujeitos surdos, com a sua ausência de audição e do som, percebem o mundo através de

seus olhos e de tudo o que ocorre ao redor deles: desde os latidos de um cachorro - que são

demonstrados por meio dos movimentos de sua boca e da expressão corpóreo-facial bruta -

até de uma bomba estourando, que é óbvia aos olhos de um sujeito surdo pelas alterações

ocorridas no ambiente, como os objetos que caem abruptamente e a fumaça que surge; deste

modo, complementam os autores surdos Perlin e Miranda (2003, p. 218):

Experiência visual significa a utilização da visão, (em substituição total à audição), como

meio de comunicação. Desta experiência visual surge a cultura surda representada pela língua

de sinais, pelo modo diferente de ser, de se expressar, de conhecer o mundo, de entrar ^nas

artes, no conhecimento científico e acadêmico. A cultura surda comporta a língua de sinais, a

necessidade do intérprete, de tecnologia de leitura.


Essas percepções visuais abrangem, através de expressões faciais e corporais, as atitudes dos

seres vivos e de objetos em diversas circunstâncias. De minha vida surda cotidiana, escolho

outro episódio que ocorreu comigo, para melhor compreensão da acepção deste artefato

visual:

Eu estava sentada em sala de aula, em uma classe com outros alunos ouvintes, "olhando"

distraidamente para os movimentos dos lábios da professora que estava falando; de repente, a

professora parou subitamente de movimentar os lábios e virou o rosto assustado para a janela.

Percebi que toda a turma fazia o mesmo e todos correram para olhar pela janela. Eu, meio

desnorteada e curiosa, fiz o mesmo para ver o que provocou toda a algazarra da turma

epercebi tardiamente que tinha acontecido uma batida de carro lá fora.

Faço menção de outro exemplo parecido, referente à experiência visual de urna criança surda,

ilustrado no livro Surdo na América: vozes de uma cultura pelos autores surdos Padden e

Hurnphries (2000, p. 21):

[...] Jim sentado numa sala próximo de uma porta. De repente sua mãe aparece, caminhando

propositadamente até a porta. Ela abre a porta, e há uma visita aguardando na entrada. Mas se

a criança abrir a porta num outro momento, é provável que nenhuma visita esteja lá. Como a

criança, que não ouve a campainha, entende qual é o estímulo para o provável

comportamento de abrir a porta e encontrar alguém aguardando lá?

Poderíamos citar várias ocorrências com crianças surdas que não têm contato com sujeitos

surdos adultos e nem com a comunidade surda. Citarei cá um ocorrido em especial com esta

criança surda que, como quaisquer outras crianças, enche seus pensamentos de curiosidades e

dúvidas sobre tudo o que acontece ao seu redor, só que, corno ela é a única surda e todos os

membros da família são ouvintes, muitas vezes, as suas curiosidades não são satisfeitas pela
barreira de comunicação. Então pode acontecer que ela comece a se questionar com estas

dúvidas: Eu vou crescer? Eu vou ser adulta? Eu vou morrer cedo?

Isso acontece porque a criança surda sabe que ela é diferente das outras pessoas que ouvem;

ela dirige seu "olhar" ao seu redor na vida cotidiana, ela vê que tem vizinhos ouvintes,

crianças ouvintes, balconistas ouvintes, policiais ouvintes, professores ouvintes, médicos

ouvintes, pessoas da família ouvintes, até os bichos são ouvintes e ela própria é diferente. E

como ela nunca viu um adulto surdo a quem possa ter um vínculo identificatório, ela pode

chegar à conclusão de que vai morrer, já que não existem adultos surdos.

É complexo para essas crianças surdas que não têm acesso às informações rotineiras pela

barreira de comunicação. Assim, como o linguista sueco surdo Wallis (1990, p. 16) afirma:

Se os surdos têm contato com a língua de sinais desde cedo; assim a criança surda poderia

sentir como as outras crianças, fazer perguntas e obter as respostas, ou seja, a curiosidade da

criança surda será satisfeita muitas vezes e terá maior acesso às informações.

Cito novamente uma experiência visual durante minha infância surda:

Uma vez a empregada doméstica estava lavando o quintal no fundo de casa e eu ficava

sentada observando a água suja de latna e sabão correndo até o bueiro. No meio desta sujeira

estava um bicho estranho, de mais ou menos uns seis centímetros, que estava morto.

Assustei-me porque o associava com o bicho que vi na televisão nçutro dia, jacaré enorme

que comia as pessoas e tive muitas noites de insônia, com medo da existência desse bicho no

nosso quintal e que viria me pegar e me comer. Só agora eu

entendo que não era jacaré, e sim simplesmente uma lagartixa. Não havia ninguém que me

informasse sobre isto.

Faço referência a outro exemplo de interpretação visual. A autora surda Vilhalva (2001, p. 11)

descreve, quando ela era criança: "[...] e quando eu conseguia, olhava um monte de outras
casas e uma coisa comprida que nem centopeia, que mais tarde fui entender que era trem do

Pantanal que ali passava indo para Corumbá".

Isso mostra a necessidade de refletirmos com seriedade sobre a importância de trazer as

crianças surdas ao contato com surdos adultos para criarem um vínculo identificatório

cultural, a fim de evitar que essa habitual dúvida surgida com o "olhar" ao seu redor na vida

cotidiana possa pesar nas suas reflexões e provocar futuras angústias e ansiedades. Afirmam

Freeman, Carbin e Boese (1999, p. 222): "As pessoas surdas veem o mundo de maneira

diferente, em alguns aspectos, porque suas vidas são diferentes. Enquanto as crianças surdas

vão amadurecendo, elas não encontram modelos satisfatórios dentro de sua família".

Esse contato da criança surda com adultos surdos, através de uma língua em comum, que é a

língua de sinais, é que proporcionará o acesso à linguagem e, dessa forma, assegurará a

identidade e a cultura surda, que são transmitidas naturalmente à criança surda em contato

com a comunidade surda.

Os autores surdos Padden e Humphries (2000, p. 22) explicam que pode haver interpretações

diferentes de uma mesma situação, dos sujeitos surdos e ouvintes; os sujeitos surdos

interpretam visualmente, enquanto os sujeitos ouvintes estão mais voltados para a audição:

Uma colher cai e provoca um som quando bate no chão. Alguém a junta, mas não

simplesmente porque ela provocou um som, mas porque saiu fora de vista.

O fazendeiro sai para ordenhar as vacas não somente porque elas fazem barulho, mas porque

é o amanhecer, a hora reservada para ordenhar.

Muitas vezes a sociedade dificulta a participação dos sujeitos surdos, deixando de colocar

muitos recursos visuais que promovem sua acessibilidade em vários espaços. Cito uma

situação narrada pela surda Shirley Vilhalva em uma agência de banco onde, pela falta de um

painel que ilustrasse o número das senhas da fila para atendimento, a funcionária esqueceu de

que havia uma pessoa surda aguardando para ser atendida:


Cheguei ao banco e peguei a senha de prioridade, avisei a moça do caixa, pois não tinha

painel para ver a chamada, fiquei aguardando sentada no local reservado e fui vendo que ela

ia chamando as pessoas e nada de chegar minha vez. De repente, levantei e disse para a moça

do caixa: moça, meu numero é 54. Ela disse: Oh! Desculpe esqueci-me de você e já passaram

muitos números, fica aí do lado que logo te atendo.

Quando tem mudanças de horários ou de locais de ônibus ou aviões sendo anunciados pelo

microfone, os sujeitos surdos geralmente os perdem por não haver avisos escritos, como em

um episódio que ocorreu comigo:

Eu estava retornando para minha cidade num avião que desceu em São Paulo para uma

conexão com outro avião, lá no Aeroporto de Guarulhos - SP; apelei para o atendimento

especial porque o aeroporto era muito grande e havia poucos recursos visuais que

facilitassem a minha acessibilidade e com isto eu perdia muitas informações ditas pelo alto-

falante. Então a moça do atendimento especial me deixou na sala VIP, alegando que o meu

avião estava atrasado. Fiquei esperando lá na sala sozinha cerca de quatro horas seguidas e,

quando alguém apareceu na sala e me viu lá, percebeu que esqueceram de mim e o meu avião

já tinha ido há três horas.

Tem algumas atitudes acerca da percepção visual entre os sujeitos surdos; por exemplo,

durante a conversa, ficar frente a frente é uma circunstância muito valorizada pelo povo

surdo, não importando a distância; por isso, eles evitam virar as costas enquanto estão em

interação; se isto ocorre é considerado como insulto ou desinteresse. Também quando estão

conversando distantes um do outro e alguém "corta" esse espaço visual ficando de obstáculo

no meio, isso é considerado uma grave falta de educação para a comunidade surda.

Tem ocasiões, quando os sujeitos surdos perdem seu campo visual, por exemplo, quando

apagam a luz, que eles ficam desnorteados e em apuros:


[...] um grupo de surdos, do qual eu fazia parte, foi visitar uns amigos. [...] a luz do corredor

apagou-se. [...] começou o pânico. Não sabíamos onde se encontrava o interruptor daquele

andar e não podíamos combinar quem de nós deveria procurá-lo. E se cada um de nós está

esperando pelo outro para acender à luz? E se eu não o fizer, e ninguém mais também, por

quanto tempo ficaremos nessa escuridão? Parece que todos tiveram o mesmo pensamento e

saíram à procura do interruptor. Éramos seis e ficamos esbarrando uns nos outros, sem poder

nos comunicar. Essa situação acabou quando um morador entrou no prédio, por acaso, e

acendeu a luz. (STRNADOVÁ, 2000, p. 194).

Eu trago uma situação que ocorreu comigo: Durante uma viagem, fui ao banheiro dentro do

ônibus, o qual era de dois andares e o banheiro ficava embaixo. Fiquei presa dentro do

banheiro. Entrei em pânico porque tudo era fechado, sem janelas, era noite e ia demorar umas

três horas para chegar ao meu destino; e, quando chegar, como avisar ao motorista que estou

presa? E se me chamarem? Como poderei ouvir? Como posso "ver" se estão me ouvindo e se

estão me chamando? E como vou explicar a eles se não posso "ver" a resposta deles? Bati

com força na porta, esmurrei a porta com pontapé... Fiz o maior barulho, achando que havia

pessoas lá fora me aguardando com curiosidade e tentando me ajudar. Depois de duas horas,

consegui abrir a porta e vi que ninguém percebeu que eu estava presa nem ouviu o meu

barulho. Será que houve barulho ou era a minha imaginação?

Voltando às expressões facial e corporal, elas também podem desempenhar outro papel de

suma importância na conversação em língua de sinais, como uma forma de transmissão de

mensagens através de um contexto que não procede da oralidade, mas do corpo e de

expressão do rosto, que funciona algumas vezes como meio de reforçar urna idéia que está

sendo transmitida.

Por exemplo, para constituir tipos de frases na oralidade, percebe-se quando a frase está na

forma afirmativa, exclamativa, interrogativa, negativa ou imperativa, através da entonação da


voz; no caso de língua de sinais, precisamos estar atentos às expressões facial e corporal que

são feitas simultaneamente com certos sinais ou com toda a frase.

Inclusivamente os surdos oralizados também têm esse artefato cultural visual. A maioria deles

se apoia na percepção visual para ler nos movimentos dos lábios do interlocutor que articula

as palavras e frases da língua portuguesa. Os surdos oralizados aqueles que não convivem

com a comunidade surda e não usam a língua de sinais, que se comunicam somente através

da fala, escrita e de leitura labial. Também quero ressaltar que tem muitos sujeitos surdos que

convivem nas comunidades surdas e usam língua de sinais e também são oralizados; a estes,

chamamos de "surdos". Eles formam movimentos para lutar pelos seus direitos de haver

legendas em vários programas de televisão e em DVDs, mais um dos recursos visuais

apelados por eles.

Artefato cultural: desenvolvimento lingüístico

O segundo artefato cultural do povo surdo é a língua; a língua de sinais é um aspecto

fundamental da cultura surda. No entanto, incluem-se também os gestos denominados "sinais

emergentes" ou "sinais caseiros" dos sujeitos surdos de zonas rurais ou sujeitos surdos

isolados de comunidades surdas, que procuram entender o mundo através dos experimentos

visuais e procuram comunicar-se apontando e criando sinais, pois não têm conhecimentos de

sons e de palavras. Cito situações que ocorrem com esses sujeitos surdos descritos acima:

Um sujeito surdo em zona rural, isolado da comunidade surda e que nunca aprendeu a língua

de sinais, a falar ou escrever, sem ter a noção de horas e dias da semana, observa ao seu redor

que tem um dia da semana em que as frutas sempre são colhidas, o dia certo de ir à igreja, os

dias em que o caminhão vem pegar o lixo, e que quando o sol aparece no horizonte é a hora
de ordenhar e pegar ovos, etc. Ele acompanha esta rotina de acordo com o seu "olhar" do dia

a dia de sua vida e cria sinais que representam seu cotidiano.

Para o sujeito surdo ter acesso às informações e conhecimentos, e para construir sua

identidade, é fundamental criar uma ligação com o povo surdo em que se usa a sua língua em

comum: a língua de sinais.

A língua de sinais é uma das principais marcas da identidade de um povo surdo, pois é uma

das peculiaridades da cultura surda, é urna forma de comunicação que capta as experiências

visuais dos sujeitos surdos, e que vai levar o surdo a transmitir e proporcionar-lhe a aquisição

de conhecimento universal.

Faço referência, mais uma vez, a uma situação ocorrida comigo: em escola de ouvintes, além

de muitas outras disciplinas, eu tinha aulas de religião, as quais não entendia muito, as únicas

coisas que sabia era que Deus era muito importante e, se morresse, iria ficar de frente com

Ele; e isto me incomodava, me deixando muito ansiosa. Minha mãe percebeu e me

questionou; expliquei a ela através de gestos e vocabulários isolados que, se eu morresse, não

saberia como Deus iria me entender. Não sabia falar. Minha mãe explicou que Deus entendia

qualquer língua. Mas na verdade eu tinha uma língua? Minha língua era o português

fragmentado e ininteligível e gestos caseiros. Apoio-me em Quadros (1997, p. 27):

A língua portuguesa não será a língua que acionará naturalmente o dispositivo devido à falta

de audição da criança. Essa criança até poderá vir a adquirir essa língua, mas nunca de forma

natural e espontânea, como ocorre com a língua de sinais.

Quando um bebê nasce surdo, ele desenvolve inicialmente as mesmas fases de linguagem que

o bebê ouvinte: grito de satisfação, choro de dor e fome, sons sem significados, até mais ou

menos seis meses de idade. Quando chega à fase de balbucio é que começa a ser diferenciado

de outro. Porque o bebê ouvinte, podendo ouvir os sons do ambiente ao redor de si, tenta se
comiánicar emitindo sons, enquanto o bebê surdo, não ouve sons do ambiente e, por isto, as

primeiras "palavras" não surgem. Consequentemente, fica com a aquisição de

linguagem atrasada e limitada por falta de continuidade e acesso aos conhecimentos e

informações externas."

As pesquisas científicas já feitas nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil comprovaram

que as crianças surdas de pais surdos se saem melhor no desenvolvimento da linguagem que

as outras crianças surdas de pais ouvintes, pois elas não apresentam os problemas da

defasagem de linguagem porque os pais surdos já estão se "comunicando" em língua de sinais

com os filhos surdos o mais precocemente possível, esclarecendo todas as suas curiosidades

naturais.

Os sujeitos surdos que têm acesso à língua de sinais e participação da comunidade surda

possuem maior segurança, autoestima e identidade sadia. Por isso, é importante que as

crianças surdas convivam com pessoas surdas adultas com quem se identificam e tenham

acesso às informações e conhecimentos no seu cotidiano. Segundo Moura, Lodi e Harrison

(1997):

[...] a criança [no contato com modelos surdos adultos] não apenas terá assegurada a

aquisição e desenvolvimento de linguagem, como [também] a integração de um autoconceito

positivo. Ela terá a possibilidade de desenvolver sua identidade como uma representação de

integridade, não como a de falta ou de deficiência [...] podendo se perceber como capaz e

passível de vir a ser. Ela não terá que ir atrás de urna identidade que ela nunca consegue

alcançar: a do ouvinte.

A língua de sinais é transmitida nas comunidades surdas e, apesar de por muito tempo na

história dos surdos ter sofrido a repressão exercida pelo oralismo, não foi extinta e continuou

a ser transmitida, de geração em geração, pelo povo surdo com muita força e garra.
11
Para saber mais, ler Quadros (1997).
A língua de sinais é uma língua prioritária do povo surdo que é expressa através da

modalidade espaçovisual. A partir da década de 1950 iniciaram-se estudos aprofundados

sobre as línguas de sinais como, por exemplo, o do americano Willian Stokoe (1965) e, no

Brasil, dos ouvintes pioneiros, e depois vieram os pesquisadores surdos; citamos como

exemplos os ouvintes Lucinda Ferreira Brito (1986), Ronice Quadros (1995, 2004), Tanya

Felipe (2002) e Lodenir Karnopp (2004) e os surdos lingüistas Ana Regina e Souza Campello

(2007) e Shirley Vilhalva (2007), que proporcionaram a valorização da língua de sinais,

dando-lhe status de uma língua legítima do povo surdo.

No mundo todo, há, pelo menos, uma língua de sinais com suas variações regionais usada

amplamente na comunidade surda de cada país, diferente daquela da língua falada utilizada

na mesma área geográfica.

A língua de sinais do Brasil não pode ser estudada tendo como base a língua portuguesa,

porque ela tem gramática diferenciada, independente da língua oral.

Neste artefato língua, do povo surdo, a língua de sinais também pode passar pelas mudanças

históricas - com o passar do tempo, um sinal pode sofrer alterações decorrentes dos costumes

da geração surda que o utiliza - tal qual percebemos com a citação de Padden e Humphries

(2000, p. 74):

Lembramos dos artistas Surdos de hoje, os poetas e contadores de história de nossa geração, e

a forma de prazer que eles levam a um público, porém também estava claro que desde 1940 a

performance sinalizada havia mudado. [...] os artistas de hoje são muito mais

autoconscientes, o que chamaríamos de analíticos, sobre sua linguagem [...].

Tem alguns detalhes curiosos na forma de como o povo surdo se comunica: no ônibus, os

sujeitos surdos comunicam- se através do vidro - um sujeito fora e outro dentro do ônibus;

nas cidades, em praças ou nas praias, sujeitos surdos forasteiros, que não se conhecem uns
aos outros procuram um ponto de encontro - onde tem urna roda de sujeitos surdos

conversando - para encontrarem seus semelhantes.

Outro artefato cultural lingüístico interessante é o sistema de escrita para escrever a língua de

sinais que estão difundindo. Este sistema é conhecido pelo nome de SignWriting (SW) e foi

um fato histórico importante para o povo surdo, pois, outrora, diziam que a língua desse povo

era ágrafa.

UM

Então, o SignWriting foi iniciado quando os pesquisadores de língua de sinais da Dinamarca

depararam-se com os sistemas de escrita de danças da Valerie Sutton, no ano de 1974, e a

partir daí evoluíram muitas pesquisas em outros países que chegaram a algumas escolas de

surdos no Brasil.

A pesquisa desse sistema SignWriting (SW) no Brasil foi desenvolvida pela doutora surda

Marianne Stumpf, junto com outros pesquisadores. O primeiro contato que ela teve com esse

sistema foi»ho ano de 1996 e em 2005 defendeu a sua tese com esse tema. Esse sistema agora

é conhecido no Brasil como Escrita em Língua de Sinais (ELS).

Hoje já tem disciplina de ELS em alguns cursos de graduação nas várias universidades

federais do Brasil, que, por exemplo, em curso de licenciatura de Letras/Libras utilizam- na

em 15 polos espalhados pelo Brasil, e assim esse sistema de escrita se multiplica e é

difundido em várias comunidades brasileiras.

Mesmo a despeito de mais de um século de proibição de seu uso nas escolas de surdos,

preconceito e marginalização por parte da sociedade, as línguas de sinais resistiram,

demonstrando a necessidade essencial de sua utilização pelos povos surdos.

Artefato cultural: família


O nascimento de uma criança surda é um acontecimento alegre na existência para a maioria

das famílias surdas, pois é uma ocorrência naturalmente benquista pelo povo surdo, que não

vê nessa criança um "problema social", como ocorre com as maiorias das famílias ouvintes.

No entanto, quando os pais surdos levam seus filhos surdos aos médicos e profissionais da

área, estes os aconselham a não usarem a língua de sinais, alegando que isso provocaria

atraso na aquisição da língua portuguesa e encorajando-os a colocarem aparelhos nos seus

filhos, argumentando que ouvir som e aprender a falar é melhor do que nada; assim

asseguram os autores Lane, Hoffmeister e Bahan (1996, p. 30, tradução nossa):

Se os profissionais oferecem tais estranhos conselhos, enxergando a criança surda não como

um presente de Deus, mas como um problema, então os pais surdos que estão seguros na sua

identidade cultural, reconhecendo que eles têm mais experiência e conhecimento em criar

crianças surdas do que os profissionais que os aconselham, ignoram tais informações.

Seguros de que nada foi encontrado de errado com sua criança, que ela é simplesmente surda,

voltam para casa e prosseguem com suas vidas, cercados de recursos do "Mundo- Surdo",

que oferece suporte, encorajamento, e os meios para existir e contribui como um membro

íntegro da sociedade, no mundo, de forma ampla, bem como no "Mundo-Surdo".

Enquanto isso, nas famílias ouvintes, durante a gravidez, fantasiam que o filho esperado é o

mais bonito, perfeito, inteligente e ouvinte. Quando nasce um bebê, os membros da família

brincam, conversam e vivenciam todo o amor sentido por ele.

Quando o médico apresenta o diagnóstico da surdez, os pais ficam chocados, deprimem-se e

culpam-se por terem gerado um filho dito "não normal" e ficam frustrados porque veem nele

um sonho desfeito. Então, essas famílias alimentam esperanças de "cura" dessa "deficiência",

ficam ansiosas e questionam:

Será que o meu filho surdo um dia ouvirá? Será que um dia ele falará igual à criança ouvinte?

Será que um dia ele será mais bem aceito pela sociedade? Será que um dia o meu filho terá
uma vida "normal"? Como vemos, tem muitos "serás", não existem certezas nesse caso; o que

sabemos é que geralmente a família dessa criança surda não procurará a comunidade surda,

como explica Lane (1992, p. 21):

Apesar da criança surda que foi sujeita ao implante não se mover facilmente no mundo

ouvinte, é pouco provável que o faça na comunidade dos surdos, é pouco provável que

aprenda fluentemente a American Sign Language (Língua Americana de sinais) [...] criando

os seus próprios valores fundamentais existentes naquela comunidade. A criança surda corre

então o risco de se desenvolver sem qualquer tipo de comunicação concreta, seja ela falada

ou gestual. Consequentemente esta criança poderá desenvolver problemas de identidade, de

adaptação emocional e até mesmo de saúde mental.

Já teve casos em que muitas famílias ouvintes foram pedir opinião ao povo surdo e optaram

depois em colocar o filho surdo na cultura ouvinte, seguindo conselhos de muitos

especialistas também ouvintes. O anseio de tornar seus filhos surdos "normais" perante a

sociedade falou mais alto, pois as famílias ouvintes no meio da comunidade surda sentiram-

se "estrangeiras", porque é um mundo diferente que não compreendem e com o qual se

assustam. Como pronuncia a surda Irene M. Stock:

Faço parte da comunidade dos surdos sinalizados e sempre fui sincera com as mães, sempre

digo que sou surda profunda e amo a Língua de Sinais, sou feliz como Deus me fez e não

pretendo mudar isso. Mas são elas que têm que decidir o futuro dos seus filhos surdos e não

eu. Elas sabem que sou contra elas afastarem os filhos da comunidade surda, privando o

direito de eles se comunicarem em Libras, fico muito triste com isso, mas continuo sendo

amiga das mães, sempre rezo por elas para que mudem de idéia e que essas crianças, no

futuro, possam participar da comunidade surda.


Fui à comunidade surda e entrevistei muitos sujeitos surdos, alguns com família de todos os

membros surdos e outros, na maioria, com família de todos os membros ouvintes, com a

finalidade de abranger quais diferenças culturais entre eles.

Na maioria dos casos, com famílias ouvintes, o problema encontrado para esses sujeitos

surdos é a carência de diálogo, de entendimento e a falta de noção do que é a cultura surda.

Cito exemplo abaixo:

Em muitas ocasiões eu não entendia o que falavam ao redor da mesa durante as refeições ou

durante as novelas na televisão e muitas vezes implorava às pessoas pela pouca atenção e

explicação sobre tudo.

Em famílias ouvintes, as crianças surdas observam as conversas e discussões que não são

direcionadas a elas. Igualmente, Léo Jacobs descreve na autobiografia, detalhadamente, o

sentimento contido nesse isolamento das crianças surdas com famílias ouvintes, dentro da

própria casa, devido às barreiras de comunicação:

Você fica fora da conversa à mesa do jantar. É o que se chama de isolamento mental.

Enquanto todos os outros falam e riem, você se mantém tão distante quanto um árabe

solitário num deserto que se estende para o horizonte por todos os lados. [...] Sente-se ansiosa

por um contato. Sufoca por dentro, mas não pode transmitir esse sentimento horrível a

ninguém. Não sabe como fazê-lo. Tem a impressão de que ninguém compreende nem se

importa. [...] Não lhe é concedida sequer a ilusão de participação [...] (JACOBS apud

SACKS, 1990, p. 136).

O que encaixa bem também esses anseios dessas crianças surdas é o que a autora surda

Laborit (1994, p. 59) explica:

Os adultos ouvintes que privam seus filhos da língua de sinais nunca compreenderão o que se

passa na cabeça de uma criança surda. Há a solidão, e a resistência, a sede de se comunicar e,

algumas vezes, o ódio. A exclusão da família, da casa onde todos falam sem se preocupar
com você. Porque é preciso sempre pedir, puxar alguém pela manga ou pelo vestido para

saber, um pouco, um pouquinho, daquilo que se passa em sua volta. Caso contrário, a vida é

um filme mudo, sem legendas.

Salvo alguns casos, quando tem diálogos e bom vínculo entre eles, isso ocorre porque um ou

outro membro ouvinte da família do filho surdo resolveu se informar e aprofundar a respeito

da cultura surda, procurando se comunicar e passar todas as informações para a criança surda

em. uma relação de diálogo, no qual existe uma efetiva troca de saberes e a aceitação da

identidade surda.

Nas outras famílias, com todos os membros surdos, dos avós até os filhos, passando por tios,

tias, primos e outros, eles passam pelo processo natural de transmissão da cultura surda.

Nessas famílias surdas, as crianças surdas têm informações que as ajudam a compreender os

artefatos culturais existentes nos povos surdos. Também pode ocorrer que nas famílias surdas

tenha um ou mais membros ouvintes. Vejamos o exemplo em um trecho de uma reportagem

sobre uma família toda surda corri um membro ouvinte:

[...] Sueli Ramalho Segala, 43 anos. Surda, ela não sofreu com o preconceito na gravidez.

Seus conflitos começaram quando Felipe nasceu. Toda sua família é surda e ele foi o primeiro

ouvinte depois de três gerações. Apesar de o pai não ser deficiente, durante o pré-natal o

médico afirmou que a chance de o bebê nascer surdo era de 95%. "Foi uma surpresa quando

percebemos que ele escutava. Perguntei à minha mãe como eu cuidaria dele", conta. Quando

o garoto fez 2 anos, o casal se separou. Sueli e Felipe foram morar

com os pais e o irmão dela. Assim, o menino cresceu em meio à Língua Brasileira de Sinais e

à cultura surda. "A primeira palavra que falou foi em sinais: mamadeira. Em português

falado, ele chamou o pai. Compreendeu desde pequeno como era a nossa comunicação." [...]

Felipe faz bicos como intérprete da Libras, unindo dois mundos com línguas e cultura

diferentes. (PERRI, 2007).


Nas famílias surdas, os membros surdos têm comportamentos próprios deles. Por exemplo, é

habitual assistirem à televisão 110 volume mudo para não incomodar os vizinhos. Todos

usam língua de sinais como a língua prioritária do lar, lavam louças e fazem movimentos

inesperadamente com barulho alto sem perceberem. Desse modo, explicam os autores

americanos Lane, Hoffmeister e Bahan (1996), que durante as refeições de uma família com

todos os membros surdos, a criança surda está incluída nas conversas em língua de sinais

desde o início, e quando chegam visitas, amigos surdos e/ou ouvintes, as conversas

continuam sendo conduzidas em língua de sinais e, assim, a criança surda visualiza, recebe

informações, categoriza, guarda e dá sentido a isso.

Há uns 15 anos eu fui com uma amiga surda a São Paulo e ficamos na casa de outra amiga

surda paulista que tem família com todos os membros surdos. Nós três, na época, durante a

madrugada, ficamos conversando em língua de sinais, dando ênfase aos diversos assuntos no

nível do interesse de nós como moças. Conosco estava um dos membros dessa família, a

irmãzinha menor surda de 7 anos, que não participava nas nossas conversas, mas que nos

observava. Nós a mandávamos ir dormir porque era assunto de adultos. Recentemente

encontrei esta "irmãzinha, menor" já adulta, uma acadêmica, ótima profissional e inteligente;

ela comentou que se lembra dos assuntos que conversamos naquela noite.

Isso reforça o que os autores Lane, HofFmeister e Bahan (1996, p. 27) colocam:

O ambiente visual e a língua (linguagem), o enriquecimento das interações e estas pequenas

acomodações, tudo resulta num grande gasto para o desenvolvimento da criança surda. A

maioria das crianças surdas de pais surdos funciona melhor do que crianças surdas de pais

ouvintes nas áreas acadêmicas, sociais e lingüísticas. Crianças surdas de pais surdos

desenvolvem um sentido de identidade que é forte e autogovernada.


Muitas vezes nessas famílias pode ocorrer que as crianças surdas não se achem diferentes do

resto do mundo; elas creem que os sujeitos ouvintes é que são "estranhos", "esquisitos" ou

"diferentes" delas. Apresento, abaixo, exemplos de diferentes situações:

Um papagaio fazia parte da família, eu ficava intrigada e imaginando por que todos falavam

mais com o papagaio do que comigo, neste período começaram as dúvidas e mais dúvidas,

sem imaginar que eu podia ser diferente, não me lembro se sabia os nomes das pessoas,

demorei muito para entender que eu, as pessoas, as coisas tinham nomes. (VILHALVA, 2001,

p. 12).

Os autores Padden e Humphries (2000, p. 15-16) descrevem a experiência do surdo

americano Sarn Supalla, que tem várias gerações de família de surdos, sobre a amizade de

infância com uma menina ouvinte da idade dele:

[...] Após alguns encontros tentativos, eles se tornaram amigos. Ela era uma companheira

satisfatória, porém havia o problema de sua "estranheza". Ele não conseguia falar com ela da

maneira que conseguia falar com seus irmãos mais velhos e com seus pais. Ela parecia ter

uma dificuldade extrema de compreender mesmo os gestos mais simples ou mais rudes. [...]

Um dia, Sam lembra-se vivamente, que ele finalmente entendeu que a sua amiga era de fato

estranha. Eles estavam brincando na casa dela, quando de repente a mãe dela chegou até eles

e animadamente começou a mexer sua própria boca. Como se por mágica, a garota pegou

uma casa de boneca e levou-a para um outro local. Sam estava perplexo e foi para casa

perguntar a sua mãe sobre exatamente que tipo de aflição que a menina da porta ao iado

tinha. Sua mãe explicou a ele que ela era ouvinte e por razão disto ela não sabia sinalizar; em

vez disso, ela e a sua mãe falam, movimentam suas bocas para falarem entre si. Sam então

perguntou se esta menina e a família dela eram as únicas "daquele jeito". A mãe dele explicou

que não, de fato, quase todas as pessoas eram como seus vizinhos. Era a sua própria família

que era incomum. Aquele foi um momento memorável para Sam. Ele se lembra de pensar o
quanto estava curiosa a menina da porta ao lado, e se ela era ouvinte, como as pessoas

ouvintes eram curiosas.

A situação abaixo é de outra família com todos os membros surdos que moram em São Paulo.

A filha vivência experiência parecida com a dos exemplos citados anteriormente:

Quando criança, achava que o mundo era deficiente, em oposição à sua própria casa, onde

todos eram normais. Sendo a Libras a sua língua materna, na rua, ficava com dó das outras

crianças, pois elas não falavam com as mãos. Os pais lhe diziam: não falam com as mãos

porque ouvem (apontavam para o ouvido), mas Sueli achava (como é comum a crianças com

surdez profunda df nascença) que ouvido não tinha função a não ser a dè pendurar o brinco,

pois o surdo profundo não entende o conceito de som, sendo que apenas sente

vibrações. Ensinava às amigas o alfabeto de sinais, para poderem se entender. Assim

aprendeu que todas as coisas têm nome (para os surdos, todas as coisas têm um sinal, ou

nome gestual). (SUELI RAMALHO, 2007).

Dentro dessas famílias surdas, quando têm bichos domesticados, como cachorros ou gatos,

estes se habituam a entender as ordens dadas em língua de sinais ou arranjam maneiras para

ajudar os membros surdos. Por exemplo, a minha cachorrinha Asteca, ela sabe que sou surda

e quando lá em casa tocam a campainha na porta, ela vem me avisar com um olhar, mexendo

o rosto, como uma espécie de linguagem corporal.

Lá em São Paulo tem uma família de pai surdo, mãe surda e duas filhas moças surdas, eles

possuem um cachorro labrador que entende a comunicação em gestos. Quando a moça surda

faz sinal de "passear", o cachorro vibra de alegre, indo até a porta, e assim por diante.

Também entende os sinais de "fazer xixi", "tornar banho", "comer" e até mesmo os sinais de

nomes de cada membro da família. Os animais criarem vínculo com os sujeitos surdos é tão

corriqueiro para o povo surdo que encontramos muitos casos desse tipo em muitos lares.
Vejamos abaixo um depoimento da psicóloga surda Rita Maestri sobre o processo de

aprendizagem do gato dela:

Sou surda, psicóloga clínica e escolar, moro com meus dois filhos, Bruno de 24 anos e Arma

de 21 anos, que são ouvintes. Pretendo contar a minha experiência com o gato branco de

olhos azuis, lindo e fofo. A Anna ganhou o Rony, o nome do gato, do namorado, em 2005,

que veio ao meu apartamento com 45 dias de vida. Como psicóloga, eu entendo que os

animais aprendem por condicionamento e pensei em uma forma de o Rony entender o meu

comportamento de pessoa surda, pois sei que dentro da cultura surda tem inúmeros casos de

animais como cachorro, papagaios e gatos que têm uma comunicação visual forte com os

surdos. Então, cedo aconteceu que o Rony teve uma comunicação específica comigo, mas

teria de esperar o tempo de aprendizado. Passaram-se dois anos e nesses anos realmente o

Rony teve uma comunicação que diferencia a dos meus dois filhos ouvintes. Eu trabalho o

dia inteiro, assim como os meus filhos, e à noite nos encontramos e o Rony tenta obter a

atenção de nós três. Com o Bruno e Anna, Rony mia por trás, ao lado deles e eles respondem

ao chamado e o pegam dando-lhe carinho. Rony, quando mia para mim, ele sabe que dou

atenção com muitos mirnos e carinho, mas aos poucos foi percebendo que se miasse atrás de

mim ou ao lado eu não respondia. Rony foi percebendo que precisava ficar na minha frente

para responder ao chamado e tentou miar mesmo na frente sem parar. Mas foi percebendo

que não adiantava miar sem que eu esteja olhando e assim parou de miar se eu não o olhasse.

Aos poucos, Rony foi adquirindo o comportamento. Como passava por trás sem miar, vai na

minha frente sem miar se não estiver olhando para ele. Então, ele entendeu que se eu o

olhasse ele miava bem alto e assim ele recebia mimos e carinhos e começou a fazer assim

todos os dias e com meus filhos ele tinha o comportamento diferente; miava em todos os

sentidos e sabia que recebia carinho e comigo só miava quando olhasse bem na minha frente.

Com o passar do tempo, devido ao excesso de trabalho e pouco tempo para ele, eu comecei a
ignorá-lo e ele começou a todo custo encontrar urna maneira para que eu o olhasse; então, aos

poucos, começou a me chamar com patas e miar. E eu me derreto diante do comportamento

dele e dou mimos e carinhos. Essa experiência eu sempre conto para todos, pois é um tipo de

comunicação especial que se desenvolve quando existe uma interação entre pessoa e animal

através de contatos, comportamento visual, e é possível acontecer. Por esse motivo, dentro da

cultura surda, quase todos os surdos têm animais em sua casa.'"

Artefato cultural: literatura surda

O quarto artefato cultural é a literatura surda. Ela traduz a memória das vivências surdas

através das várias gerações dos povos surdos. A literatura se multiplica em diferentes gêneros:

poesia, história de surdos, piadas, literatura infantil, clássicos, fábulas, contos, romances,

lendas e outras manifestações culturais. Karnopp (1989, p. 102) faz referência a respeito

desse artefato cultural: "[...] utilizamos a expressão 'literatura surda para histórias que têm a

língua de sinais, a questão da identidade e da cultura surda presentes na narrativa [...]".

De tal modo, acrescenta o americano surdo doutor Andersson (1989, p. 158), "[...] pessoas

surdas de talento já tentaram criar poesia ou humor em língua de sinais. Essas inovações

culturais aconteceram em muitos países. O recente Deaf Way Festival, na Universidade

Gallaudet, provou claramente que a língua de sinais funciona como um enriquecimento

cultural ideal".

A literatura surda refere-se às várias experiências pessoais do povo surdo que, muitas vezes,

expõem as dificuldades e/ou vitórias das opressões ouvintes, de como se saem em diversas

situações inesperadas, testemunhando as ações de grandes líderes e militantes surdos, e sobre

a valorização de suas identidades surdas.


Surda declamando uma poesia em língua de sinais

Grande parte dessas narrativas em lingua de sinais tem sido gravada em CD-ROM, vídeos e

DVDs, servindo atualmente como fontes para as várias pesquisas realizadas por sujeitos

surdos e ouvintes nas universidades, gerando este artefato cultural, Literatura Surda, que é

nativa e incomum:

Diferentes artefatos culturais são produzidos no sentido de dar sustentação a determinados

discursos sobre os surdos. Entre eles, destacamos a literatura infantil, que está presente em

diferentes contextos sociais, sendo a escola um espaço privilegiado da leitura desses

materiais. Nos últimos anos, essa literatura tem sido foco de pesquisas na área da educação

justamente por sua inserção e disseminação nas escolas, entre professore e alunos, tanto como

material de instrução corno de lazer. (KARNOPP, 2006, p. 101).

Muitos escritores e poetas surdos também registram suas expressões literárias em língua

portuguesa, como testemunhos compartilhados de suas identidades culturais e, assim, a

cultura surda passou a ganhar espaço literário com lançamentos de livros e artigos com temas

nunca antes imaginados.

Carol Padden e Tom Humphries, escritores surdos americanos, linguistas que escreveram os

livros Deaf in America: voices from a culture e inside deaf culture, valorizaram a chamada

"cultura surda", o que fez uma transformação positiva nos "olhares" sobre o povo surdo.

Outro excelente escritor surdo é o inglês Paddy Ladd, que escreveu o livro Understanding

deaf culture in search of deafliood, uma leitura espantosa que mostra muitas veracidades

sobre o mundo dos surdos.

A surda brasileira Gladis Perlin publicou muitos artigos, tais como "As identidades surdas"

(1998); "O ser e o estar sendo surdos: alteridade, diferença e identidade" (2003); "O local da

cultura surda" (2004); "Surdos: o discurso do retorno" (2005); "Surdos: por umapedagogia da
diferença' (2006); "Surdos: cultura e pedagogia" (2006); que contribuíram significativamente

com a compreensão da cultura surda na construção de identidades. É um processo

permanente de respeito do "ser surdo", mudando a visão da história que garante o valor dos

direitos culturais para o povo surdo, transformando as relações de poder, desde a vida

cotidiana até os espaços mais públicos.

Outros autores surdos brasileiros contribuíram com o artefato cultural literário, dentre os

quais eu menciono:

● Carolina Hessel: O currículo de língua de sinais na educação de surdos (2006);

● Celso Baldin: A juventude: o carnaval e o Rio de Janeiro (2001);

● Fabiano Souto Rosa: Literatura surda: criação e produção de imagens e textos (2006);

● Flaviane Reis: Professor surdo: a política e a poética da transgressão pedagógica

(2006);

● Gisele Rangel: História do povo surdo em Porto Alegre: imagens e sinais de uma

trajetória cultural (2004);

● Jorge Sérgio L. Guimarães: Até onde vai o surdo (crônicas/1961);

● Marianne Stumpf: Sistema signwriting:por uma escrita funcional para o surdo (2005);

● Olindina Coelho Possídio: No meu silêncio: ouvi e vivi (autobiografia, 2005);

● Patrícia Luiza Ferreira Pinto: Identidade cultural surda na diversidade brasileira

(2001);

● Ronise de Oliveira: Meus sentimentos em folhas (livro de poemas, 2005);

● Shirley Vilhalva: Recortes de uma vida: descobrindo o amanhã (autobiografia, 2001);

Por uma pedagogia surda (2004);

● Wilson Miranda: Comunidade dos surdos: olhares sobre os contatos culturais (2001).

Por muitas gerações os povos surdos transmitem muitas histórias através da língua de sinais;

a maioria delas parte de experiências das comunidades surdas, que transmitem seus valores e
orgulho da cultura surda, que reforçam os vínculos que os unem com as gerações surdas mais

jovens. Seleciono mais uma citação que exemplifica o que digo:

[...] Primeiro, como em outras culturas, elas são carregadores de história, maneiras de repetir

e reformular o passado para o presente. E segundo, nas circunstanciais especiais da

Comunidade Surda, estas histórias assumem um outro peso: elas são um meio vital de ensinar

a sabedoria do grupo para aqueles que não têm famílias surdas. [...] (PADDEN;

HUMPHRIES, 2000, p. 38).

A literatura surda também envolve as piadas surdas que exploram a expressão facial e

corporal. O domínio da língua de sinais e a maneira de contar piada naturalmente são

considerados extraordinários na comunidade surda.

Na maioria das vezes essas piadas e anedotas envolvem a temática das situações engraçadas

sobre a incompreensão das comunidades ouvintes acerca da cultura surda e vice-versa, como

é o caso da popular piada "A árvore surda": o lenhador que grita "madeira" para uma árvore

surda e ela não cai, e a arvore só cai quando o lenhador aprende a soletrar "m-a-d-e-i-r-a". O

sujeito surdo, ao contar esta piada, incorpora os personagens com as expressões corporais e

faciais e os diálogos, usando a língua de sinais, o que faz com que os expectadores prendam a

respiração no desenrolar da história humorística para depois caírem na risada.

Essas piadas da cultura surda muitas vezes podem ocorrer sem que a comunidade ouvinte as

compreenda e/ou não as achem engraçadas e vice-versa: o povo surdo também não

compreende as piadas da cultura ouvinte. Isso ocorre porque os sujeitos surdos usam nas

piadas os artefatos culturais do povo surdo, enquanto para o povo ouvinte, a temática da

língua portuguesa e versões sonoras são mais importantes.


A história oficial dos surdos se embaraça com a história do próprio povo surdo, com os

discursos apaixonantes dos sujeitos surdos das gerações passadas, dos quais nos faltam

registros verídicos e comprovados para acrescentarmos às muitas páginas da história cultural.

Tem muitos pesquisadores da história cultural de surdos. Entre eles estão o Antônio Campos

de Abreu, formado em História; o Otaviano de Menezes Bastos; o Dioniso Schmitt e a Gisele

Rangel. Todos eles possuem um imenso acervo histórico-cultural sobre o povo surdo.

Os povos surdos olham para suas trajetórias vivenciadas no passado e no presente e percebem

muitas realizações deslumbrantes dos pioneiros da cultura surda. A história cultural de surdos

é longa e complexa, existe há dezenas de milhares de anos. Os povos surdos usam inúmeros

meios de se comunicar através da língua de sinais, desenhos, expressões faciais, corporais e

imagens visuais.

Corno vemos, com o passar do tempo, os povos surdos tiveram a necessidade de registrar

suas atuações do cotidiano, como as várias conquistas, língua de sinais, tradições culturais,

entre outras, e com isto surgiu a literatura surda!

Artefato cultural: vida social e esportiva

O quinto artefato cultural é a vida social e esportiva do povo surdo. São acontecimentos

culturais, tais corno casamentos entre os surdos, festas, lazeres e atividades nas associações

de surdos, eventos esportivos e outros.

Os sujeitos surdos têm alguns estilos especiais que desenvolvem para se sair bem em

situações de apuros. Cito um exemplo ocorrido comigo: Como moro sozinha, eu precisava ir

ao aeroporto no dia seguinte, às cinco horas da madrugada, e não sabia como iria chamar um

táxi. Então, mandei uma mensagem no celular para minha irmã e pedi a ela para agendar um

táxi que me aguardasse tia frente do meu apartamento. No dia seguinte, o táxi veio. Escrevi
para o motorista num papel explicando que queria ir ao aeroporto e ele me levou sem

problema.

Na mesma situação, exemplifico outra cena ocorrida com o ator surdo Nelson Pimenta (1999,

p. 62):

Aconteceu aos seis anos de idade, quando minha mãe me mandou comprar urna mamadeira

para meu irmão,

na época um bebê. Ela não se preocupou com o fato de eu ser surdo. Foi a primeira vez que

comprei alguma coisa sozinho. Na loja, fiquei olhando, procurando nas prateleiras a

mamadeira para apontar, mas não havia nenhuma à mostra. O lojista me pediu para escrever o

que queria, mas aos seis anos, eu ainda não sabia escrever. Então desenhei a mamadeira no

papel, o homem entendeu e eu voltei feliz da vida para casa.

Há reações emocionais dos sujeitos surdos que trazem padrões de comportamentos habituais

do povo surdo e que podem consistir em contatos íntimos entre os membros da comunidade

surda, tais como as amizades, lealdades e casamento entre eles. Cito Lane (1992, p. 31):

[...] outra característica notável desta cultura é a sua percentagem de casamentos endógamos:

nove em cada dez membros da comunidade americana dos surdos casa-se com membros

pertencentes ao seu grupo cultural.

[...] em alguns centros urbanos, eles encontram seus pares surdos somente duas ou três vezes

por semana e gastam maior parte de seu tempo em um mundo ouvinte. Esse fato produz um

padrão de comunidade em que o tempo em que permanecem é fragmentado; por outro lado,

são extremamente próximos uns dos outros, havendo a tendência entre os membros da

comunidade surda de casarem entre si ou de residirem próximos uns aos outros. Essa

característica social faz com que pessoas surdas mantenham suas vidas na comunidade surda,

participando da associação de surdos, realizando atividades conjuntas, estudando em urna


mesma escola, empreendendo lutas e reivindicações conjuntas. (KARNOPP, 2005, p. 230-

231).

Dentro da comunidade surda, os sujeitos surdos não se diferenciam uns dos outros através do

grau de sua surdez, e sim porque tal fulano é "surdo" ou "ouvinte", pois isto demonstra as

suas identidades culturais do pertencimento à comunidade surda. Portanto, ser filho de pais

surdos é extremamente respeitável no círculo deles, como cita Wrigley (1996, p. 15):

A partir de uma visão dos Surdos, o ato politizado de alegar uma surdez "nativa" - ou seja,

urna surdez de nascença - está ligado à identidade positiva de não estar "contaminado" pelo

mundo dos que ouvem e suas limitações epistemológicas do som sequencial. A "pureza" do

conhecimento dos Surdos, a verdadeira Surdez, que vem da expulsão desta distração, é na

cultura dos Surdos urna marca de distinção. Seria melhor ainda se os familiares e até mesmo

seus pais fossem também Surdos.

O povo surdo debate muito sobre identidade cultural nos casos de filhos surdos de pais

surdos, fazendo com que muitos deles também aspirem a ter filhos surdos; isto é considerado

natural pela comunidade surda. Em uma ocasião, quando resolvi adotar um filho, na Vara de

Infância, a psicóloga, ao conversar comigo, disse que o menino era ouvinte e teve uma surdez

progressiva. Retrucou preocupada: está consciente de que ele vai ficar surdo profundo? Eu

respondi: e daí? Para mim isto não muda nada, para mim ele é o menino Richardt e vou

aceitá-lo!

Lane (1992, p. 34) cita situações diferentes de duas mães surdas quando souberam que suas

filhas eram surdas. A primeira diz: "Pensei para comigo, ela deve ser surda. Não fiquei

desiludida; pensei, vai correr tudo bem. Somos as duas surdas, por isto saberemos o que

fazer". Diz a outra mãe, que vem de uma grande família de surdos na qual todos esperam que

ela gere um outro membro surdo: "Quero que minha filha seja como eu, seja surda".
Percebemos que a primeira aceitou com naturalidade, enquanto a outra afirma que a filha será

surda, já que todos os membros também o são.

Duas mulheres lésbicas americanas surdas provocaram críticas de povos ouvintes por

deliberadamente optarem por ter um bebê através de inseminação artificial de um homem

também surdo, fazendo com que aumentasse a possibilidade de elas terem filho surdo.

As duas mulheres surdas disseram que queriam uma criança que fosse como elas. Em uma

entrevista a um jornal, as mulheres declararam que seriam melhores mães de uma criança

surda que uma pessoa ouvinte. Elas acreditam que são capazes de entender mais

completamente o desenvolvimento da criança, oferecer melhor orientação, e disseram que a

escolha não foi diferente da de optar por um determinado sexo. Um trecho dessa entrevista:

[...] parte de uma geração que enxerga a surdez não como uma deficiência, mas como urna

identidade cultural. Algumas pessoas encaram isso como, "oh, meu Deus, vocês não deviam

ter uma criança com uma limitação física", disse McCullough, a mãe adotiva do garoto.

"Mas, você sabe, as pessoas negras têm uma vida mais dura. Por que não poderiam os futuros

pais escolher um doador negro se é isso que querem? Eles deviam ter essa opção."

(THEATHER, 2002).

Essa é uma situação sobre a qual precisamos refletir seriamente; mas até a que ponto eles

chegam? Será acertado desafiar a humanidade para ter uma criança surda? E acertado ter urna

criança surda para se identificar com a identidade cultural do povo surdo? Será que o ideal

não seria adotar urna

criança que já é surda, em vez de gerar uma? Esse assunto polêmico envolve muito a questão

de ética humana.

Essa reflexão precisa ser muito repensada e levar a uma futura discussão séria. Sobre isso,

assim comenta Thoma (2004, p. 58): "Com a possibilidade da clonagem de órgãos humanos
ou mesmo de vidas humanas, levanta-se uma discussão ética sobre até que ponto podemos

fazer o uso da ciência para determinar o tipo de filhos que queremos".

O padrão de comportamento do povo surdo versa sobre a habitual freqüência aos bailes das

associações de surdos, com seus desfiles de misses surdas, discursos longos e repetitivos dos

presidentes e representantes de outras associações; e também sobre a entrega de troféus e

medalhas aos atletas surdos nos eventos esportivos de surdos.

Nos bailes e festas promovidos pelas associações de surdos, geralmente, no salão, há poucos

sujeitos surdos dançando e a grande maioria está conversando em seu canto, pois os sujeitos

surdos, quando reencontram seus amigos de muitos lugares do país, sentem mais necessidade

de colocar em dia as conversas para saber as novidades do que de dançar.

E aqueles que dançam no salão, ou são sujeitos ouvintes - amigos ou familiares de surdos - ou

são sujeitos surdos que sentem a vibração da música e gostam de dançar. A maioria procura

imitar os passos, tentando adivinhar o ritmo musical, observando os outros dançando; ou

então dançam livres, à sua maneira, afinal, nesses bailes e festas de cultura surda não há

regras de ritmo musical correto e muitas vezes acontece que quando acaba a música, eles

continuam dançando.

Outro lance curioso que as comunidades surdas têm é a tradição de batizar os nomes de seus

membros em língua de sinais, que pode ser urna das características físicas da pessoa, ou

primeira letra de seu nome, ou de sua profissão, assim como exemplifica Dalcin (2006, p.

205):

[...] os surdos eram "batizados" por outros surdos da comunidade, através de um sinal próprio

e que esse sinal seria a identidade de cada um na comunidade surda. [...] a comunidade surda

não se refere às pessoas pelo nome próprio, mas pelo sinal próprio recebido no "batismo",

quando o surdo ingressa na comunidade [...]


No princípio, as associações dos surdos funcionavam como espaços de recreação e lazer, mas

com o passar do tempo passaram a ter necessidades de mais discursos políticos e de outras

práticas esportivas, e as competições eram voltadas somente para o futebol.

A partir daí, houve a necessidade de criar as organizações que promovem intercâmbio dos

diversos eventos esportivos dos surdos. No Brasil tem a Confederação Brasileira de

Desportos de Surdos (CBDS), o Comitê Internacional de Esportes dos Surdos (CISS), o

Panamericano de Deportes de Sordos (PANAMDES), a Confederacion Sudamericana

Deportiva de Sordos (CONSUDES), que buscam adaptações culturais para surdos nas

práticas esportivas, como afirma o surdo Neivaldo Zovico (apud BADIN; PINTO, 2002, p.

10):

[...] a prática esportiva para os surdos requer apenas algumas adaptações de sinalização

visual, já que o surdo não possui debilitação física, sendo capaz de competir em grau de

igualdade com atletas não surdos. Em um jogo de futebol, por exemplo, no lugar do apito são

usadas bandeirinhas coloridas.

No ano de 2002 foi realizada no Brasil, na cidade de Passo Fundo, estado do Rio Grande do

Sul, a primeira Olimpíada de Surdos do Brasil. Houve comoventes desfiles dos times de

várias associações de surdos brasileiras, hastearnento das bandeiras e Hino Nacional em

língua de sinais, que marcaram a abertura dos jogos.

A cada quatro anos é organizada a Olimpíada Mundial dos Surdos, com competições de jogos

esportivos com muitos atletas surdos de vários países. Na olimpíada de 2005, na Austrália, a

dupla de vôlei de praia brasileira, os atletas surdos Alex Borges e Alexandre Couto, ficou em

quinto lugar.

O nadador surdo Terence Parkin, da África do Sul, conquistou a medalha de prata nos 200

metros nado peito nas Olimpíadas de Sydney 2000, competindo com outros atletas ouvintes.

Seu treinador costumava ficar ao lado do nadador, próximo ao bloco, para fazer um sinal
de saída para este. Isso antes de a Federação Internacional de Natação (FINA) autoriza a

inclusão da luz, que é colocada especialmente próxima ao seu bloco na pártida.

Em eventos públicos como, por exemplo, nas palestras ou apresentações teatrais, os sujeitos

surdos não ouvem os aplausos com as palmas das mãos, que comovem os sujeitos u ouvintes

pelo barulho forte e vibrante; plateias aplaudem para sujeitos surdos girando as mãos

levantadas no ar, como expõe Magnani (2007):

Num determinado momento subi numa arquibancada e, olhando de cima, o que presenciei foi

um mar de mãos se agitando... Então me ocorreu que aquele espetáculo seria o equivalente ao

barulho, se fosse uma festa de ouvintes.

Artefato cultural: artes visuais

No artefato cultural artes visuais, os povos surdos fazem muitas criações artísticas que

sintetizam suas emoções, suas histórias, suas subjetividades e a sua cultura.

O artista surdo cria a arte para que o mundo saiba o que pensa, para divulgar as crenças do

povo surdo, para explorar novas formas de "olhar" e interpretar a cultura surda. Desse modo,

como assevera o sociólogo surdo Andersson (1989, p. 158): "As pessoas surdas também

acham a língua de sinais, como qualquer outra língua, uma maneira poderosa de expandir sua

criatividade e prazer artísticos. Teatros nacionais de surdos em vários países fizeram

programas de grande sucesso. Artistas surdos têm conseguido mostrar a linguagem de sinais

em suas pinturas, ilustrações ou trabalhos esculturais."

Tem muitos surdos artistas que fazem desenhos, pinturas, esculturas e outras manifestações

artísticas com a extensão, beleza, equilíbrio, harmonia e também revoltas corri muitas

discriminações sofridas pelo povo surdo. Como exemplo, há muitas pinturas e esculturas
lindas que os artistas surdos produzem em língua de sinais, cenas de opressões ouvintistas e

outros.

Uma surda, Ana Luiza Caldas (2006, p. 116), defendeu mestrado expondo sua pesquisa que é

voltada à análise das revelações artísticas de surdos através de pinturas. Concluiu-se que os

sujeitos surdos se identificam com pinturas, com artefatos culturais do povo surdo e também

fazem comparações de diferenças culturais. Observe, abaixo, um trecho da dissertação a

respeito de conversa entre a professora surda e as crianças surdas:

Professora: Eu quero que você sinalize o que você entende sobre o que está na pintura.

Vinícius: Ela é surda?

Professora: Não sei. Você tem como ver se ela é surda? Vinícius: Não sei. Eu acho que ela é

ouvinte... Surda ou ouvinte?... O que ela será? Eu não sei. (Vinícius observando Mona Lisa.)

Alessandra: Tem alguns animais que são surdos e outros ouvintes, mas eles estão juntos.

Professora: Você acha que tem animais surdos e ouvintes?

Alessandra: Tem. Antigamente eu tinha um cachorro que era surdo. Ele não falava, ficava

parado. Professora: E como você sabia que ele era surdo? Alessandra: Ele ouvia um

pouquinho. Eu assobiava para ele: Vamos brincar! E ele ficava parado, mas o outro cachorro

era ouvinte. (Alessandra observando a Njamala).

No teatro, a expressão através das feições, corpo e língua de sinais é constantemente

praticada pelos sujeitos surdos; por isso eles têm grande talento para expressar as suas

identidades culturais através de desenhos no ar: as poesias, as narrativas e as contações de

histórias. Existem muitos DVDs de filmes de poetas surdos apresentando suas performances

comoventes em língua de sinais.

Nas comunidades surdas, muitos sujeitos surdos se destacaram na sociedade, como Marlee

Matlin, atriz surda americana que ganhou o Oscar de melhor atriz no filme Filhos do silêncio,

no ano de 1987, que foi uma vitória delirante para o povo surdo; e Emmanuelle Laborit, atriz
surda francesa, que além de interpretar no teatro e no cinema, também escreveu um livro com

sucesso estonteante, traduzido em várias línguas: O voo da gaivota.

No Brasil tem muitos atores surdos, entre eles o pesquisador Nelson Pimenta, que estudou no

National Theatre of the Deaf, nos Estados Unidos, é graduado em Cinema e atualmente faz

mestrado em Tradução, na UFSC. Ele possui uma empresa, LSB Vídeo, 17 que produz livros,

jogos didáticos e DVDs de língua de sinais com muitas histórias infantis, poesias e

dramatizações na cultura surda.

Outro ator, mímico e clown, o surdo Rimar Romano, que tem três gerações de família surda,

apresenta publicamente suas performances como mímica e teatro físico junto com os atores

ouvintes. Ele e a irmã fundaram uma companhia de teatro chamada Cia. Arte e Silêncio.

Rimar faz apresentações teatrais para crianças surdas e ouvintes em escolas. Um dos

objetivos mais importantes das apresentações dele é divulgar a Libras e a cultura surda, como

depõe Erelisa Vieira (2007):

[...] o Rimar tem algumas particularidades, e especialidades, no meu ponto de vista ele

consegue inserir a cultura surda em sua arte em teatro, Rimar coloca em meio a sua

dramatização, piadas referentes ao campo visual, por exemplo, "desculpe, sou surdo, não vi"

fazendo a plateia como um todo cair na risada [...]

O ator surdo paulista, atualmente com mais de 70 anos, | Reinaldo Pólo atua

profissionalmente há mais de 50 anos como palhaço, fazendo shows em clube de Palmeira

(SP); ele faz performances divertidas, de tal modo, como nas patinações.

Cito um depoimento de um poeta, comediante e dançarino surdo da cidade Caldas Novas -

GO; ele criou vários grupos de teatro para ensinar aos outros sujeitos surdos:

Meu apelido é Paulão Praxedes, atuo há 14 anos de tempo no teatro com surdos. Na época eu

estava preocupado porque os surdos tinham muitos problemas na vida social e foi quando eu

pensei que queria formar um grupo teatral para ensinar a expressão facial e corporal a eles.
Alguns surdos não sabiam ler em português os textos sobre cenas e diálogos. Então eu, como

professor surdo, explicava para eles em língua de sinais para que eles entendessem bem.

Quando eles já aprofundaram mais os conhecimentos sobre o teatro e foi então que criei

vários grupos de teatros, dentre eles: "Expressão do Silêncio" (voltados para crianças surdas),

"Mãos do Silêncio" (pastoral dos surdos da igreja católica) e "Gesto do Coração" (para

adolescentes e adultos surdos). O meu coração está descompassado por causa do meu grande

sonho: realizar o primeiro Encontro Nacional de Teatro dos Surdos. 20

E tem muitos outros comediantes e artistas, tais como Silas Queiroz, Sandro dos Santos

Pereira, Heloir Montanher, Celso Badin, Paulo André Bulhões, Cacau Mourão e assim por

diante.

A música, por exemplo, não faz parte da cultura surda, mas os sujeitos surdos podem e têm o

direito de conhecê-la como informação e como relação intercultural. São raros os sujeitos

surdos que entendem e gostam de música, e isto também deve ser respeitado.

Respeitando a cultura surda, substituindo as músicas ouvintizadas, surgem artistas surdos em

diferentes contextos como: músicas sem som," dançarinos, atores, poetas, pintores, mágicos,

escultores, contadores de histórias e outros.

[...] tradição dos contadores de histórias que passam narrações e, mais importante, a tradição

da arte de contar histórias em si mesma para gerações mais jovens. Esta autoeducação dentro

dessas instituições tem sido pouco estudada, mas ela sugere caminhos importantes de

regeneração culturais previamente ignorados. (WRIGLEY, 1996, p. 25).

Artefato cultural: política

Outro artefato cultural influente das comunidades surdas é a política, que consiste em

diversos movimentos e lutas do povo surdo pelos seus direitos.

Historicamente o povo surdo brasileiro transmitiu muitas tradições em suas organizações das

comunidades surdas. O espaço cultural mais conhecido de todos são as associações de surdos.
No início, as associações de surdos tinham exclusivamente o objetivo de natureza social

devido ao baixo padrão de vida no século XVIII. Os sujeitos surdos tinham o propósito de

ajudar uns aos outros em caso de doença, morte e desemprego e, além disso, as associações

se propunham a fornecer informações e incentivos através de conferências e entretenimentos

relevantes (WIDEL, 1992).

Atualmente, um dos maiores objetivos das associações dos surdos é a política. Nessas

organizações juntam-se sujeitos surdos em reuniões e assembleias para compartilhar dos

interesses comuns, lutando pelos seus direitos judiciais e de cidadania, em uma determinada

localidade, geralmente em urna sede própria, alugada, ou cedida pelo Governo.

Cito abaixo alguns líderes e militantes surdos mais conhecidos do Brasil que representam

importante espaço de articulação cultural e política do povo surdo, que contribuíram para a

história dos surdos:

[...] Ana Regina e Souza Campello, surda de nascença, maranhense, formada em

Biblioteconomia e Documentação e Pedagogia, atualmente está fazendo mestrado na área de

Lingüística e doutorado na área de educação na UFSC." A Ana foi urna militante política

importante no Brasil, ela desafiou e participou em movimentos na área dos surdos há mais de

30 anos e juntamente com outros surdos líderes criou a FENEIS (Federação Nacional de

Educação e Integração dos Surdos), uma conceituada instituição que defende os direitos dos

surdos e sua cidadania. (STROBEL, 2007, p. 22).

A Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS) é uma entidade

filantrópica, sem fins lucrativos, com finalidade sociocultural, assistencial e educacional, que

tem por objetivo a defesa e a luta pelos direitos da comunidade surda brasileira. É filiada à

Federação Mundial dos Surdos (WDF). Segue abaixo um trecho da entrevista dada por um

dos fundadores surdos, Antônio Campos de Abreu, à revista Sentidos:


Minha primeira experiência foi como diretor da Associação dos Surdos de Minas Gerais,

onde atuei por 32 anos. Depois fundei a Federação Mineira Desportiva de Surdos e a

Confederação Brasileira de Desportos dos Surdos, trabalhando como voluntário. Mais tarde

me uni a um grupo de surdos para fundar a Federação Nacional das Associações de Surdos.

Sempre tive o objetivo de estimular a integração entre surdos e ouvintes, valorizar a cultura

do surdo, o uso da Libras e a prática de esportes. Tive a oportunidade de fazer um curso de

liderança nos Estados Unidos, na Universidade dos Surdos. E sou membro da Federação

Mundial de Surdos. A vitória por tudo que já conquistamos na Feneis não é só minha. Eu sou

muito agradecido à comunidade dos surdos. (ABREU, 2007).

Já explicado antes, todavia repito aqui, a outra organização do artefato cultural política de

extrema importância para o povo surdo é a Confederação Brasileira de Desportos dos Surdos

(CBDS), que organiza e regulamenta práticas de muitas modalidades de esportes de povo

surdo e também promove competições entre as associações de surdos e outros.

A pesquisadora Gladis Perlin incentivou a abertura do Movimento de Mulheres Surdas em

muitos estados brasileiros. Foi realizado o I Encontro Latino Americano de Mulheres Surdas

Líderes, no ano de 2004, na cidade de Belo Horizonte, no qual estiveram presentes as

militantes mulheres surdas representando o Brasil, Chile, Paraguai e

Uruguai. Esse encontro teve corno objetivo principal debater a realidade social da mulher

surda na América Latina, com ênfase na saúde, violência, educação, sexualidade, política,

direitos, cidadania e participação. O intuito principal foi o de desencadear movimentos pela

mulher surda nos países latino- americanos.

O povo surdo luta pela pedagogia surda que parte de um "olhar" diferente, direcionado em

uma filosofia para educação cultural, na qual a educação dá-se no momento em que o surdo é

colocado em contato com sua diferença, para que aconteça a subjetivação e as trocas

culturais. Fazem referência a respeito, Schmitt, Strobel e Vilhalva (2007, p. 28):


Foi através do esboço sobre as práticas discursivas de diversos povos culturais assim como o

povo negro, o povo índio, o povo alemão, o povo surdo e outros, é que foi possível desvendar

o quanto há uma forte ligação com as relações de transmissão de saberes, conhecimentos e

assim surgiu a pedagogia cultural.

Esse artefato político abre os espaços dentro de uma educação diferente, por exemplo: o

professor surdo entra em sala de aula e tenta aplicar a teoria proposta deparando-se com as

diferenças de identidades culturais dos alunos surdos. Então, para colocar em prática o seu

ensino, o professor surdo passa por um processo de transformação, elaborando estratégias,

respeitando os artefatos culturais encontrados na sala de aula. Faz referência a respeito a

pesquisadora surda Gladis Perlin (2007):

Em termos pedagógicos, o professor surdo em sala de aula é muito importante, porque

quando a criança surda mira o professor surdo, ela se sente refletida nesse professor, ela sabe

que, se esse professor chegou lá, ela também pode chegar. Com relação ao professor ouvinte,

a criança surda tem uma grande dificuldade de se identificar numa perspectiva de futuro.

Então essa criança se sente excluída no processo de formação de sua própria identidade. O

professor de surdo pode ser o modelo de como nós, surdos, precisamos ser, em termos

linguísticos e culturais.

A pedagogia surda é uma educação sonhada pelo povo surdo, visto que a luta atual dos surdos

é pela constituição da subjetividade ao jeito surdo de ser. Continuando sobre o professor

surdo, a pesquisadora Quadros (2005, p. 31) diz que:

[...] Com base nisso, a questão da língua passa a ser também um instrumento de poder nas

relações com as crianças e alunos surdos. Sendo a língua de sinais brasileira a língua de

instrução, os professores (e/ou instrutores surdos) são os que mais dominam a língua. Quando

são professores, são mais indicados para garantir o processo da língua.


Até o currículo também está em processo de transformação, por exemplo, na educação de

surdos. Nos currículos tradicionais não havia espaço para respeitar a cultura de alunos surdos

e, recentemente, os currículos estão introduzindo a língua de sinais, a história de surdos, a

literatura surda e outros.

Esses artefatos culturais não devem ser considerados apenas como entretenimento, mas sim

uni importante espaço educacional que faz formar a pedagogia surda e o currículo surdo,

entre outros, que colaboram na constituição de identidades culturais positivas de sujeitos

surdos.

As comunidades surdas improvisam movimentos para defender a pedagogia surda, literatura

surda, currículo surdo, história cultural, aceitação da língua de sinais e de valores culturais. O

povo surdo vê nos movimentos uma possibilidade

de caminhada política na luta pelo reconhecimento da língua de sinais e de suas identidades

surdas contra as práticas ouvintistas, assim como diz a pesquisadora surda Gladis Perlin

(1998, p. 71):

Para o movimento surdo, contam as instâncias que afirmam a~ busca do direito do indivíduo

surdo ser diferente nas questões sociais, políticas e econômicas que envolvem o mundo do

trabalho, da saúde, da educação, do bem-estar social.

A Língua Brasileira de Sinais (Libras), graças à luta sistemática e persistente das

comunidades surdas, vitoriosamente foi reconhecida pela nação brasileira como a língua

oficial do povo surdo, com a publicação da Lei nD 10.436, de 24 de abril de 2002.

O curso de Letras/Libras é pioneiro na América Latina:

A UFSC oferecerá, a partir deste ano, em parceria com outras oito instituições de ensino

superior, o curso de graduação -a distância em Letras/Licenciatura com habilitação em Língua

Brasileira de Sinais (Libras). [...] A coordenadora responsável pelo projeto de criação e

oferecimento do curso em âmbito nacional é a professora da UFSC, Ronice Müller de


Quadros. Ronice explica a importância dessa licenciatura: "A nova lei criou uma demanda

grande por profissionais com essa graduação. Há vários anos, o MEC vem oferecendo

capacitação para pessoas preferencialmente surdas que atuam como instrutores da língua de

sinais sem a licenciatura. O objetivo do projeto é formar professores com essa graduação". O

número de surdos também é um fator relevante. Existem cerca de 170 mil surdos no Brasil,

de acordo com o último Censo realizado, no ano de 2000.

Outra orgulhosa conquista feita pelo povo surdo é a comemoração de seu dia, o "Dia do

Surdo". Essa data é comemorada em muitos países, na maioria no mês de setembro, com

variação de dias. No Brasil comemoramos o Dia do Surdo em 26 de setembro, porque essa

data é um marco histórico - foi fundada a primeira escola de surdos no Brasil. 26 Essa data o

povo surdo comemora com muito orgulho, tendo sua cidadania reconhecida sem precisar se

esconder embaixo de braços de sujeitos ouvintistas, assim como reforça Moura (2007, p. 11):

O Dia do Surdo tem um significado simbólico muito importante. Ele representa o

reconhecimento de todo um movimento que teve início há poucos anos no Brasil quando o

Surdo passou a lutar pelo direito de ter sua língua e sua cultura reconhecidas corno uma

língua e uma cultura de um grupo minoritário e não de um grupo de "deficientes".

Com esse artefato cultural política, vamos refletir sobre as situações em que vivemos e

levantar desafios para nós, os membros das comunidades surdas, liderando os muitos

movimentos, contribuindo para as mudanças positivas das representações sociais acerca dos

povos surdos!

Artefato cultural: materiais

Há artefatos culturais materiais resultantes da transformação da natureza pelo trabalho

humano, e sua utilização é condicionada ao enleio do comportamento cultural dos povos


surdos, que auxilia na acessibilidade na vida cotidiana de sujeitos surdos, assim como os

autores americanos alegam no caso das crianças surdas com famílias surdas:

[...] O seu lar já funciona como um ambiente que conduz ao uso visual como o principal meio

de aprendizagem e desenvolvimento. A casa tem a rede planejada para responder aos sinais

ambientais visualmente. Por exemplo, campainhas e telefones não tocam, mas acendem a luz,

cada um com seu padrão. Pais surdos têm TTY para se comunicar ao telefone. (LANE;

HOFFMEISTER; BAHAN, 1996, p. 25).

Destacam-se, entre eles, o Telephone Device for the Deaf (TDD) - um pçuco maior que o

telefone convencional, na parte de cima tem um encaixe de fone e embaixo dele tem um visor

onde aparece escrito digitado e, mais abaixo, tem as teclas para digitar instrumentos

luminosos corno a campainha em casas e em escolas de surdos, despertadores com

vibradores, legendas closed-caption, babás, sinalizadores, etc. Cito exemplo de uma situação

de urna mãe surda:

[...] só sabia que ele estava chorando com o auxílio de um aparelho chamado "babá

eletrônica". O microfone ficava acima do berço e o sinalizador luminoso, ligado por um

longo fio, ia comigo para todos os lugares. Enquanto estava na cozinha fazendo meus

afazeres, ficava de olho na lâmpada para saber se estava piscando. Sem problema!

(STRNADOVÁ, 2000, p. 139).

Em 1964, três inventores surdos, Robert Weitbrecht, Andrew Saks, e James Marsters,

inventaram o modem do Teletypewriter (TTY), um aparelho que foi inventado por volta de

1910 para transmitir texto por linha telegráfica que permitiria ao povo surdo se comunicar

através de telefone.

Robert Weitbrecht, um físico surdo, durante toda a sua vida sempre demonstrou interesse em

Ciências, especialmente em rádios e telex. Formou-se em Astronomia na Universidade da


Califórnia, em Berkeley, e tem trabalhado como físico no Instituto de Pesquisa de Stanford.

Ele era radioamador e usava Radio Teletypewriter (RTTY), TTY que também era usado por

radioamadores, como maneira de transmitir texto por rádio; ele queria se comunicar com seu

amigo surdo o dentista James Marsters e, com isto, foi aperfeiçoado o modem de TDD.

Depois, outros inventores surdos, o negociante Andrew Sacks e James Marsters juntaram-se

com Weitbrecht. O Marsters verificou se os circuitos de rádio do teletipo poderiam ser

adaptados para o uso sobre a linha de telefone e o Saks inventou as luzes de pisca-pisca e

caracteres do telefone.

Em 1974, a Universidade Gallaudet homenageou Robert Weitbrecht com um título especial

da ciência pela sua iniciativa da invenção de TDD. No Brasil, o primeiro TDD foi trazido

dos Estados Unidos por um pai que o comprou para seus filhos surdos.

Esse invento, o TDD ou TS (telefone de surdos), tem facilitado a vida dos surdos. Apesar da

tecnologia desenvolvida da internet, o TDD foi aperfeiçoando e se modernizando e ainda é

usado extensamente pelo povo surdo.

Outras tecnologias que são de domínio da sociedade em geral, mas que são necessárias para o

povo surdo, pertencem ao meio digital de comunicação em tempo real a distância, como

torpedos de celular, chats em internet e muitos sites das comunidades surdas.

Além disso, há a acessibilidade de sujeitos surdos em variados espaços, como em congressos,

julgamentos, aulas e cursos, possibilitada por intérpretes de língua de sinais, telão e cartazes,

etc.

Freeman, Garbin e Boese (1999, p. 221) citam que a língua de sinais está abrindo espaço na

sociedade pela mídia e, com isso, surgem mais intérpretes de língua de sinais e atores surdos

em comerciais e programas de televisão: "[...] os noticiários são interpretados, candidatos

presidenciais aprendem alguns sinais, pessoas que usam sinais são mostradas na televisão nos

programas para os adultos e crianças [...]".


CAPÍTULO 5

A representação imaginária sobre a cultura surda

[...] que reforça o ouvintismo pela presença unicamente da língua portuguesa, pela separação

entre escola e comunidade surda é pela indiferença à cultura surda, completando

posteriormente: "O processo de inclusão é aceitar o que o ouvinte quer,

pensar como ouvinte". Paulo César Machado

Há grande dificuldade da sociedade em entender a existência da cultura surda, porque a

maioria das pessoas baseia-se num "universalismo". A representação social julga a cultura

dos surdos pela cultura ouvinte e tem a pretensão de achar que só aquilo que as pessoas

ouvintes fazem é que está correto. Segundo Wrigley (1996, p. 35),

[...] os universalismos, em todo discurso, são alimentados pela noção de que os seres

humanos compartilham propriedades comuns. Esta busca de universalismos é acompanhada

por atitudes de acomodação ou por estratégias usadas para neutralizar os desafios às

definições hegemônicas. É aí que as culturas nativas dos Surdos sugerem formas para

falarmos de um "universalismo vivido", "de experiências da surdez". Ora, os surdos "podem

espelhar certos aspectos da cultura dominante que os circunda, mas também possuem raízes

epistemológicas pelas quais esses aspectos foram legitimamente "declarados" 011

"compreendidos" dentro da experiência nativa dos Surdos.

Pode ocorrer que, pelos sujeitos surdos estarem em contato com a comunidade ouvinte,

acomodem-se externamente aos valores e normas hegemônicas dessa comunidade como uma

maneira de se adaptarem às situações porque pensam que assim é mais fácil ter sucesso

social.
Quando os sujeitos surdos não se aceitam na cultura surda, eles se percebem como parte da

cultura hegemônica, isto é, da cultura da maioria que é ouvinte. E, aí esses sujeitos não se

reconhecem como cultura diferente, isto é, o jeito de ser surdo, r de se perceber diferente do

ouvinte e, com isso, pode acontecer conflitos ou dificuldade de aceitação de sua identidade

surda. Asseguram Lopes e Veiga-Neto (2006, p. 85) que:

Na relação com o ouvinte, o surdo foi ensinado a olhar-se e a narrar-se como um deficiente

auditivo. A marca da deficiência determinou, durante a história dos surdos e da surdez, a

condição de submissão ao normal ouvinte. Dessa história de submissão, criaram-se práticas

corretivas derivadas de saberes que informam e classificam os sujeitos dentro de fases de

desenvolvimento linguístico, cronológico e de perda auditiva.

Segundo Perlin e Miranda (2003, p. 217), "ser surdo [...] olhar a identidade surda dentro dos

componentes que constituem as identidades essenciais com as quais se agenciam as

dinâmicas de poder E uma experiência na convivência do ser na diferença".

Essas representações clínicas, profissionais, que atuam corri sujeitos surdos, muitas vezes

podem influir a sociedade, principalmente nas famílias que querem que seu filho seja igual a

eles, isto é, com "modelo" de pessoas ouvintes. Podemos verificar um exemplo de uma mãe

de um surdo que assegura estar seguindo o conselho de uma fonoaudióloga recentemente:

Meu filho tem quatro anos, tem perda profunda bilateral, usa aparelho nos dois ouvidos e tem

acompanhamento fonoaudiológico, mas pretendo que ele seja só oralizado, sem precisar da

linguagem dos sinais. A tono dele não quer que ele aprenda porque senão ele ficará

preguiçoso para falar.

Quando a família nega a participação das crianças surdas ao povo surdo, ela poderá fazer com

que essas crianças acreditem que é ruim ser surdo, e isto prejudicará o desenvolvimento sadio

de identidade delas, assim como mencionam os autores americanos Freeman, Carbin e Boese

(1999, p. 225):
[...] você poderá, portanto, vir a conhecer pessoas surdas envergonhadas da surdez, de usar

língua de sinais ou de seu mau inglês. Essa baixa autoestima pode ser resultado de esforços

enganosos de pais e escolas para fazer de uma pessoa surda uma cópia fiel de uma pessoa

ouvinte.

Faço menção a um exemplo de uma surda que, depois que passou no vestibular para o Curso

de Pedagogia, batalhou para conseguir um intérprete de língua de sinais para um melhor

acompanhamento das aulas e o reitor da universidade

Peguei este depoimento em uma comunidade do Orkut, um site de relacionamentos que

permite às pessoas fazer amizades, participar em comunidades, fazer comentários, deixar

recados e outros; uma espécie de ponto de encontro on-line com um ambiente de

confraternização.

nega, como expõe Takahashi (1999, p. 3) em um artigo de jornal: "[...] Ele afirma que a

presença de uma pessoa estranha no curso distrairia a atenção dos demais alunos [...] Ela não

percebe, mas estamos ensinando essa menina a conviver em um mundo normal [...]".

O que significa mundo normal? Talvez, a mais "sofrida" de todas as representações no

decorrer da história dos surdos é o de "modelar" os sujeitos surdos a partir das representações

hegemônicas. Reflete Wrigley (1996, p. 47) esta afirmação: "[...] para o oralista,

convencionalização [...] tem o objetivo mais amplo: as crianças surdas 'passarão' por

ouvintes, tornando- se assim aceitáveis' como pessoas que parecem ouvir". Essa

representação ouvintista ainda é feita atualmente. Muitas vezes a sociedade ouvintista quer

que os surdos sejam "curados", direcionando-os para a ilusão da esperança de "normalizar-

se".

Uma vez eu fui dar aula para um grupo de profissionais em uma cidade do Nordeste do

Brasil, e uma psicóloga que trabalhava muitos anos com os surdos e sabe a língua de sinais

me fez a pergunta: - Por que você não faz uma operação para ouvir? E respondi com outra
pergunta: - Para que? Ela me respondeu: - Para você ter uma vida normal! Fiquei refletindo:

uma psicóloga que trabalha com os surdos há muito tempo me via como "anormal". O que

tenho de anormal? Será que ouvir é normal e não ouvir é anormal? Como uma psicóloga

bilíngüe pode trabalhar com os surdos se os estereotipa como "anormais"?

A sociedade muitas vezes afirma que o povo surdo tem sua cultura, mas não a conhece.

Comentam e afirmam que como na sociedade a maioria dos sujeitos é ouvinte, o sujeito surdo

tem que viver e submeter-se a essa maioria que o rodeia. Por exemplo, em muitas escolas de

surdos, os profissionais que trabalham lá são ouvintes e têm um "mundo" diferente dos

surdos. De acordo com eles, a cultura ouvinte é superior e veem seus alunos surdos de forma

caridosa e paternalista,

que necessitam de auxílio para se desenvolver, pois sozinhos não vão conseguir ou terão mais

dificuldades. Cito McCleary (2003, p. 3):

[...] quando o surdo diz "eu tenho orgulho de ser surdo", ele choca e confunde o ouvinte. O

ouvinte não gosta de ouvir isso, porque começa a colocar em questão a certeza que o ouvinte

tem sobre o mundo. Ele não pode mais achar que o surdo é um "coitado", porque um coitado

não tem orgulho de si mesmo. O ouvinte fica com medo. ü mundo do ouvinte começa a ficar

menos seguro, mais complexo. O ouvinte não tem explicação para o orgulho de o surdo ser

surdo. Como é possível uma pessoa ter orgulho de ser surdo? Para o ouvinte, é um absurdo. É

um paradoxo.

Essa citação acima complementa o que Skliar (1998a, p. 28) explica sobre o problema das

representações sociais em consideração da cultura surda:

[...] porque se acha que não há nada fora de seu normal, de sua própria autorreferência

cultural; nesse plano, a cultura surda seria um desvio, uma anomalia, o espaço limitado onde

se produzem atividades irrelevantes.


Em consequência disso, esses sujeitos surdos que não se reconhecem na cultura surda acabam

planejando suas ações para cada situação de modo a ser aceito pela sociedade ouvinte,

defendendo a língua oral como mais vantajosa do que a língua de sinais para a inclusão na

vida social.

Afirmar que é apenas uma questão de escolha para o sujeito surdo saber utilizar a fala é urna

visão simplista e ingênua da realidade. Não podemos esquecer que historicamente os sujeitos

surdos sempre tiveram estereótipos sociais como seres inferiores aos sujeitos ouvintes, como

seres "deficientes" que precisavam se adequar, caminhar para a "normalidade". Para que isso

aconteça, eles precisavam se oralizar. Isto marcou por muitos anos o povo surdo.

O sujeito surdo que tem vergonha de usar a língua de sinais não se reconhece como surdo e

sim como um deficiente, ou seja, não conseguiu se libertar da visão de surdez que a sociedade

atribui.

Os sinais podem ser agressivos, diplomáticos, poéticos, filosóficos, matemáticos: tudo pode

ser expresso por meio de sinais, sem perda nenhuma de conteúdo. Para aprender a falar, um

surdo precisa de horas diárias de trabalho árduo, enquanto o conhecimento dos sinais ocorre

de forma espontânea, quase imediata. Os surdos pré-linguais, ou seja, que nunca ouviram ou

perderam a audição muito cedo, não invejam os ouvintes e não se consideram deficientes.

Recuso-me a ser considerada excepcional, deficiente. Não sou. Sou surda. Para mim, a língua

de sinais corresponde à minha voz, meus olhos são meus ornados. Sinceramente nada me

falta. É a sociedade que me torna excepcional. (LABORIT, 1994, p. 131).

Com a oficialização da Libras, em abril de 2002, inicia- se a abertura de novos espaços para o

povo surdo, mas ainda há rixas por parte de alguns profissionais que trabalham com sujeitos

surdos e dos sujeitos surdos oralizados. Para estes profissionais oralistas, a língua de sinais é

limitada e primitiva, não sendo aconselhável seu uso. Também acreditam que ela atrapalha no

treinamento da fala e na integração dos sujeitos surdos à sociedade.


Skliar (1998a, p. 28) já advertia sobre essas pontuações negativas da cultura surda. Ele

pronuncia:

[...] quando se trata de refletir sobre o fato de que nessa comunidade (de surdos) surgem - ou

podem surgir - processos culturais específicos, é comum a rejeição à ideia da "cultura surda",

trazendo como argumento a concepção da cultura universal, a cultura monolítica. [...] A

cultura surda não é urna imagem velada de uma hipotética cultura ouvinte. Não é o seu revés.

Não é uma cultura patológica.

A música, por exemplo, não faz parte da cultura surda. No entanto, embora muitas escolas

para surdos reconheçam o povo surdo como grupo cultural e lingüístico, obrigam as crianças

e adultos surdos a fazerem as apresentações de danças, corais e balés, que são próprias da

cultura ouvinte, o que continua ocupando o centro de sua preocupação. Melodias e ritmos

sonoros harmoniosos não foram criados pela cultura surda e sim pelos grupos ouvintes.

Assim, eles se inserem na cultura ouvintista.

Na década de 1960, quando surgiu, a Comunicação Total trouxe o reconhecimento e a

valorização da língua de sinais, que foi muito oprimida e marginalizada por mais de cem

anos. Então, surgiram em muitas escolas os corais de língua de sinais, que não condizem com

a expressão da arte surda:

[...] onde a língua de sinais era utilizada com a musicalidade como em ballet das mãos, porém

com puro português sinalizado, uma protolinguagem que não é nem língua de sinais pura [...]

pois, na realidade, os surdos não passavam de ventríloquos de maestros ouvintes, sinalizando

músicas de cultura ouvinte que nem eles mesmos "escutavam", ficando totalmente presos ao

maestro ouvinte, com os olhos fixos, apenas imitando e nem podendo olhar o público a que se

dirigiam. (ARRIENS, 2003, p. 23).

Ainda de acordo com Arriens (2003, p. 22):


[...] nesse novo milênio, com o ressurgimento do bilinguismo, não se fala mais em "Corais

Surdos". Por quê? Basta visitarmos associações de surdos, os únicos locais onde

verdadeiramente se fomentam as "culturas surdas", e não veremos coros de surdos ensaiando

e, tampouco, maestros, partituras, arranjos instrumentais, vocais etc., pois isso é algo

realmente pertencente à cultura ouvinte.

Na maioria dos casos, mesmo em corais de língua de sinais - onde muitos sujeitos surdos nem

entendiam a música que produziam - os seus passos, danças ou sinais eram controlados por

pessoas ouvintes, pois acompanhavam músicas que eram apreciadas e emocionavam aos

ouvidos do público ouvinte. Cito exemplos abaixo, retirados de Lopes, (2004, p. 47):

Jovens surdas dançam, [...] para homenagear os professores pelo seu dia. [...] fica evidente

um certo descompasso. Quatro das alunas voltam seus olhares para um mesmo local, o que

me faz intuir que elas buscam orientação de alguém, provavelmente uma professora ouvinte

que não aparece no enquadramento fotográfico, mas que, pela necessidade surda de tê-la

junto de si, não ocupa o silêncio da imagem. Ela é quase uma presença diluída em quem está

se apresentando. [...] Três jovens apresentam-se em um palco que se localiza na escola de

ouvintes. Elas estão vestidas com malhas e demonstram uma sincronia em seus passos. Fica

visível na fotografia o olhar delas em busca da orientação sobre corno fazer e qual passo dar.

A dependência da orientação ouvinte vai desde a sinalização do início da música e troca de

passos até a indicação de quando a música termina para que as bailarinas parem de dançar.

Refletindo, vemos que hoje em dia ainda existem muitas práticas ouvintistas e escolas usando

métodos ultrapassados, não se preocupando em se atualizar, participando em congressos e

cursos. Ou, ainda, iniciam dizendo serem a favor da língua de sinais e, aos poucos, sem

ninguém perceber, vão deixando-a de lado, assim como afirma Felipe (2003): "Aceitam se

programas bilíngues transitórios, que, iniciando com a Libras, gradualmente substituirão essa

língua pela língua portuguesa".


É porque os sujeitos ouvintes não conhecem ou não compreendem realmente a cultura surda

ou não aceitam a cultura surda? Na realidade, o problema não são os sujeitos surdos, não são

as identidades surdas, nem a língua de sinais e sim as representações estereotipadas e

hegemônicas sobre a cultura surda.

A cultura surda e a língua de sinais, no decorrer da história de surdos, sofreram verdadeiras

perseguições, mas as representações sociais estão passando por uma nova mudança para o

povo surdo que não teme esconder suas identidades culturais. Os sujeitos surdos sabem, o que

querem, como evidencia McCleary (2003, p. 2):

[...] diga para um ouvinte: "Eu tenho orgulho de usar a língua de sinais brasileira". Qual pode

ser a reação dele? Ele pode pensar, "Sim, claro! Os gestos são muito bonitos e expressivos!"

Mas não é por isso que você tem orgulho! Você tem orgulho porque quando você usa a língua

de sinais, você pode ser surdo e feliz ao mesmo tempo.

Os povos surdos estão cada vez mais motivados pela valorização de suas "diferenças" e assim

respiram com mais orgulho e riqueza suas condições culturais! Menciono um fragmento da

dissertação do pesquisador surdo Miranda (2001, p. 8):

Sou surdo! O meu jeito de ser já marca a diferença! Neste ponto devia começar a dissertação.

Ser surdo, viver nas diferentes comunidades dos surdos, conhecer a cultura, a língua, a

história e a representação que atua simbolicamente distinguindo a nós surdos e à comunidade

surda é urna marcação para sustentar o tema em questão. A idéia de comunidade surda

contestada e continuamente sendo reconstituída, particularmente diante da diferença

defendida por poucos surdos e ouvintes de extrerna-esquerda, apresenta-se mais como urna

ameaça à representação do outro surdo.

CAPÍTULO 6

História cultural: novas reflexões sobre a história dos surdos


Não apenas o sujeito enraiza-se na história, mas o próprio conceito de sujeito é uma invenção

historicamente determinada.

Veiga-Neto

A história dos surdos foi e ainda é produzida, com especial atenção, para as tradições

inerentes aos demais autores. Ela surgiu elogiando professores ouvintes pela iniciativa de

trabalhos com os surdos, pela evolução da medicina para a "cura" da surdez, pelas diversas

metodologias criadas pelos ouvintes na educação dos sujeitos surdos.

A maioria dos registros históricos foi escrita através de metanarrativas 32 ouvintes,

depoimentos de profissionais que trabalharam com os sujeitos surdos, fatos vivenciados por

eles, avanços tecnológicos e observações de familiares e amigos ouvintes, tornando a história

de surdos em uma visão crítica, isto é, a história de surdos na visão de sujeitos ouvintes.

Assim, como reflete Wrigley (1996, p. 38):

Pintar psico-histórias de grandes homens lutando para obter um lugar na historia das

civilizações dos que ouvem tem pouco ou nada a ver com representar as circunstâncias

históricas das pessoas Surdas vivendo à margem daquelas sociedades que ouvem.

Aqui apresento uma nova forma de, abordar os episódios históricos conhecidos como

História Cultural dos Surdos. A escolha se justifica, uma vez que, dos novos modelos

historiográficos, são, justamente, as histórias culturais que mais trazem novos ares na

produção da história real dos surdos.

O que seria história cultural dos surdos? Será que a evolução da medicina para curar a surdez

e diversas metodologias criadas por professores ouvintes não são reais? Quero ilustrar aqui

que a história autêntica dos surdos não é mais uma mera história de surdos no pensamento

crítico, mas, sim, enxergar a cultura surda como um conjunto de significados e costumes

partilhados e construídos pelo povo surdo, como exemplifica Burke (2005, p. 86):
[...] os estudos sobre a história das viagens muitas vezes focalizam as maneiras estereotipadas

pela qual uma cultura não familiar é percebida e descrita e o "olhar" do viajante,

diferenciando o olhar imperial, o feminino, o pitoresco e outros tipos. Pode-se mostrar que

alguns viajantes haviam lido sobre o país antes de nele porem os pés, e, ao chegar, viram o

que haviam aprendido a esperar.

A história cultural dos surdos quase nunca nos é exposta, visto que tal fato seria uma ligação

respeitável para a legitimação do modelo cultural do ser surdo. A história

cultural está trazendo urna nova mudança na visão da história dos surdos. Segundo Pesavento

(2005, p. 15):

[...] Não se trata de fazer uma História do Pensamento ou de uma História Intelectual, ou

ainda mesmo de pensar uma História da Cultura nos velhos moldes, [...] Trata-se, antes de

tudo, de pensar a cultura como um conjunto de significados partilhados e construídos pelos

homens para explicar o mundo.

Pois, na verdade, a história dos surdos em padrões tradicionais não produz a história legítima

dos povos surdos, que seriam localizadas nos discursos das associações de surdos, de

professores surdos, de sujeitos surdos bem-sucedidos, de sujeitos surdos líderes, da pedagogia

surda, de movimentos políticos dos povos surdos e outros.

A cultura surda produz um conjunto de perspectivas que, em geral, instituem o povo surdo

como fonte de êxtase. A construção das identidades surdas que seriam o resultado de uma

produção das representações impostas por aqueles que têm poder de classificar e de nomear

subverte a ordem. A definição pode ser submetida ou resistente, assim como expõem os

diferentes olhares dos profissionais da área de saúde, educacional e social, como declara

Miranda (2001, p. 22):

Se a comunidade surda é, primeiramente, ligada por uma representação da identificação, tem,

consequentemente, uma língua que influi na diferença essencial. Como podemos ver, a
política de significação opera como a necessidade de pátria cultural com poder de

identificação para autoidentificar-se, autonarrar-se

[...] Ela tem razão de ser e existir.

Os defensores da língua de sinais para os povos surdos asseguram que é na posse dessa língua

que o sujeito surdo construirá a identidade surda, já que ele não é sujeito ouvinte. A maioria

das narrativas tem como base a ideia de que a identidade surda está relacionada a uma

questão de uso da língua.

Mas o que ocorre verdadeiramente é que, no encontro do surdo com outro surdo que também

usa a língua de sinais, se faz brotar novas probabilidades de subjetividades, de compartilhar a

cultura, de aquisição de conhecimentos, que não são plausíveis por meio da língua oral e da

cultura ouvinte. Nota-se que dessa forma a identidade está relacionada tanto aos discursos

produzidos quanto à natureza das relações sociais, isto é, pode ocorrer nas fronteiras"

identificatórias entre o próprio sujeito surdo e o sujeito ouvinte, quando obtém a consideração

dos demais membros do povo surdo na comunidade à qual pertence. O pesquisador surdo

Miranda (2001, p. 23) adverte, no que se refere à identidade surda: "Ela é ameaçada

constantemente pelo 'outro'. Este outro pode se referir aos surdos que optaram pela

representação da identidade ouvinte. Esta política de representação geralmente terá uma

incidência negativa".

Muitas teorias escritas explanam que os povos surdos têm tendência a formar guetos surdos e

não a comunidade surda. Isso sugere o que o sociólogo americano surdo Andersson (1989)

comenta sobre esse estereótipo aplicado às comunidades surdas, a insinuação praticada no

termo gueto surdo é sempre revidada quando tentamos deliberar a importância da

comunidade surda.

Antes a história cultural dos povos surdos não era reconhecida, os sujeitos surdos eram vistos

como deficientes, anormais, doentes ou marginais. Somente depois do reconhecimento da


língua de sinais, das identidades surdas e na percepção da construção de subjetividades,

motivada pelos Estudos Culturais, é que começaram a ganhar força as consciências político-

culturais, em determinados momentos, quando a luta por posições de poder ou pela

imposição de idéias revela o manifesto político-cultural dos povos surdos.

Nessas teorias de história dos surdos travam-se lutas pelo poder e se fazem relações de poder

de colonizadores (os sujeitos ouvintes) em cima de colonizados (os sujeitos surdos). De

forma ciara, às vezes podem ser negativas e/ou positivas. Nessa história, na visão crítica

vemos a superioridade dos sujeitos ouvintes em vários momentos, como na influência mútua

rotineira do dia a dia dos povos surdos, nas caridades em "proteger" os surdos, nas

descobertas de metodologias de educação de surdos. Entra em cena a preocupação de resgatar

os sujeitos surdos do anonimato e trazê-los ao convívio social. Pensam-se os surdos como

sujeitos com direitos que merecem a atenção de todas as instituições educacionais

organizadas e, desse modo, ocorreu a expansão do atendimento especializado corri as

campanhas de prevenção e identificação da surdez.

O pesquisador Skliar (1998a, p. 7), numa visão histórica, expõe que o poder político atinge

comunidades surdas, obrigando-as à sobrevivência contra as práticas ouvintistas para buscar

uma abertura para a história cultural:

Foram mais de cem anos de práticas enceguecidas pela tentativa de correção, normalização e

pela violência institucional; instituições especiais que foram reguladas tanto pela caridade e

pela beneficência quanto pela cultura social vigente, que requeria uma capacidade para

controlar, parar e negar a existência da comunidade surda, da língua de sinais, das identidades

surdas e das experiências visuais, que determinam o conjunto

de diferenças dos surdos em relação a qualquer outro grupo de sujeitos.

É conveniente averiguar, entretanto, os nomes famosos citados nas histórias dos surdos

tradicionais, ou seja, quem foram os "defensores da comunidade dos surdos"; raramente são
citados aqueles que eram sujeitos surdos, como Berthier, Clerc, Huet, prevalecendo, na

maioria, os ouvintes, como, por exemplo, L'Epée, Gallaudet, Sicard, Bonet e outros.

Com o exemplo acima, constata-se a raridade de referimento aos sujeitos surdos líderes na

história dos surdos e seus atos históricos; os registros da história oficial citam atos heroicos

de sujeitos ouvintes negando movimento ao povo surdo. Em muitas outras ocorrências

importantes os sujeitos surdos foram representados sempre acompanhando, pacatamente, o

ouvinte. Onde estão os atos históricos dos sujeitos surdos compartilhando e liderando as lutas

ao lado do povo surdo? São deixados às margens?

E, assim, com esses "esquecimentos estereotipados", a história cultural vem expondo o povo

surdo. Transparece a discriminação da cultura surda. Tudo isso fez produzir os movimentos

de lutas políticas por consideração à história surda, às identidades surdas, à língua de sinais e

à pedagogia surda, fazendo garantir o afastamento da visão de "anormalidade" e aproximação

de comunidades surdas, povo surdo, sendo considerados como sujeitos surdos, diferentes.

Segundo Quadros (1997, p. 26):

[...] Ainda hoje estão sendo desenvolvidos o oralismo e o bimodalismo nas escolas

brasileiras; porém, há algo que está aflorando nas comunidades de surdos e isto tem afetado

os educadores de surdos. As comunidades surdas estão despertando e percebendo que foram

muito prejudicadas com as propostas de ensino desenvolvidas até então e estão percebendo a

importância e valor de sua língua, isto é, a Libras.

A cultura surda vem sendo um enigma para os sujeitos ouvintes da sociedade. É uma

preocupação motivar autores para que eles tentem entender os muitos caminhos que

conduziram os povos surdos às suas relações culturais presentes, marcados por visões

diferentes de organizações de comunidades. Como citam Wilcox e Wilcox (2005, p. 82):

[...] tarefa do estudo da cultura surda é descobrir quem os surdos pensam que são. Do ponto

de vista dos surdos, quem se qualifica como uma pessoa surda e quem não o faz? Quais são
as "categorias distintas de pessoas" que a cultura surda impõe ao mundo? Se o mundo visto

através dos olhos do surdo não é habitado por pessoas sem rosto e sem qualidades, quem são

os "alguéns", positivamente caracterizados e apropriadamente identificados?

Recentemente houve uma virada da história dos surdos na visão crítica para a história

cultural. Esse modo envolvente na história cultural de surdos resultou em certo abandono dos

artigos teóricos tradicionais, para então ter mais valorização dos povos surdos, em diversas

comunidades surdas e períodos específicos.

Como resultado dessa "virada cultural", os historiadores abandonaram os esquemas teóricos

generalizantes para se concentrar sobre os valores de grupos particulares, em locais e

períodos específicos. Nesse contexto surgiram os trabalhos sobre gênero, minorias étnicas e

religiosas, hábitos e costumes. (BURKE, 2005, p. 8-9).

A cultura surda passou a ganhar espaço nas teorias de história, assim como surgiram

constantes adaptações de história legítima do povo surdo para os textos escritos, os

lançamentos de livros com temas nunca antes imaginados, como é o caso dos artigos de

muitos autores surdos, como os já citados em um dos capítulos anteriores deste mesmo livro,

sobre os artefatos culturais da literatura surda.

Corno vemos, com o passar do tempo, os povos surdos tiveram a necessidade de registrar

suas atuações do cotidiano, como as conquistas, língua de sinais, rituais, etc., que

contribuíram com suas histórias num movimento de resgate de seus ideais.

A autora pesquisando história cultural dos surdos no INES, em 2007

Esses artigos que contêm histórias culturais versam sobre o povo surdo e exemplificam as

mudanças. Com a história cultural, a dimensão cultural ganhou novos contornos na história

dos surdos. O modo de subjetividade e de identidades culturais dos povos surdos no correr da
história tornou-se, portanto, também, uma história de conflitos, de lutas contra as práticas

ouvintistas, das alteridades e das representações diferenciadas. Assim, como cita Wrigley

(1996, p. 11):

[...] a declaração de uma identidade "étnica" distinta, que

vem acompanhando o ressurgimento da consciência

dos surdos nas duas últimas décadas, força a reavaliação

desta e de outras identidades excluídas das equações do

"normal".

Os povos surdos olham para trás e abrangem muitas práticas extasiantes dos pioneiros da

cultura surda. A história cultural dos surdos é longa e complexa, existe há muitos anos e

contém inúmeras formas de se comunicar, ou seja, através da língua de sinais, desenhos,

expressões faciais, corporais, imagens visuais, artes, movimentos de lutas, criações,

pedagogias...

Com este livro vamos refletir sobre a situação em que os povos surdos vivem e levantar

desafios para nós, líderes das comunidades surdas, contribuirmos para a mudança da visão

histórica dos surdos.

Então o desafio para o povo surdo é construir uma nova história cultural, com o

reconhecimento e o respeito das diferenças, valorização da língua, a emancipação dos sujeitos

surdos de todas as formas de opressão ouvintistas e seu livre desenvolvimento espontâneo de

identidade cultural!

CAPÍTULO 7

In(ex)clusão dos surdos: prática (inter)cultural?


A inclusão [...] é ser respeitado nas suas diferenças e não ter de se submetera uma cultura, a

uma forma de aprender, a uma língua que não é a sua.

Gárdia Vargas

A ponderação realizada sobre cultura surda e identidades surdas nos capítulos anteriores

impõe a necessidade de refletirmos sobre inclusão ou exclusão dos surdos em vários espaços

sociais. Essas discussões auxiliam na compreensão de diferentes contextos da história dos

surdos em que se dão as diásporas, as lutas, os conflitos culturais e diferentes identidades,

analisando-os com base nos Estudos Surdos, em que podemos buscar a realidade cultural do

nosso tempo.

Está havendo um movimento político chamado "inclusão". A sociedade começa a perceber a

existência do povo surdo e procura se organizar para recebê-lo de forma adequada e os

próprios sujeitos surdos começam a exigir seus espaços, sua representação dê diferença

cultural linguística.

A inclusão não ocorre somente nas escolas; pode ocorrer também nos restaurantes, nos

shoppings, no trabalho, nos

órgãos públicos, nas lojas, nas igrejas e em outros ambientes de interação humana.

Quando comentamos em "incluir", obviamente é porque tem sujeitos que estão "excluídos",

isto é, estão fora.

Ao longo dos séculos, na história dos surdos, o poder ouvintista tende a impor sua cultura

ouvinte sobre os demais povos surdos debaixo de sua área de influência, resultando desta

mescla os conflitos de representações e de identidades surdas.

Durante muito tempo, devido ao processo de imposição cultural ouvinte no povo surdo,

vemos um acesso quase irrestrito à cultura surda, por causa de lutas de relações de poder em

ambos os lados. Mas atualmente o povo surdo luta com garra e força por reconhecimento da

representação de diferença cultural e identidade surda. Silva (2004, p. 133) define cultura:
[...] como um campo de produção de significados, no qual os diferentes grupos sociais,

situados em posições diferenciais de poder, lutam pela imposição de seus significados à

sociedade mais ampla. A cultura é, nessa concepção, um campo contestado de significação [a

cultura é um jogo de poder],

Perlin (2004, p. 76), autora surda, afirma:

Percebe-se que o sujeito surdo está descentrado de uma cultura e possui outra cultura.

Percebe-se o surdo em seu deslocamento da cultura ouvinte ou cultura universal e emergente

na problemática da diferença cultural própria.

A criança surda faz parte da cultura surda, do povo surdo e tem câmbio com a cultura do

povo ouvinte. Quadros (1997) ressalta que, levando-se em conta o aspecto psicossocial da

criança surda, ela apresentará uma socialização satisfatória e integrar-se-á no povo ouvinte se

tiver desenvolvido uma identidade cultural com o seu grupo; se isso não ocorrer, não se

integrará em nenhum dos contextos, terá sérias limitações sociais e lingüísticas.

Porém, alguns aspectos da permuta de cultura ainda não são realidade atualmente para o povo

surdo, pois, como ilustrado anteriormente, a sociedade ainda vê os surdos como "deficientes",

"anormais", "doentes" e os líderes surdos e membros do povo surdo estão querendo

reconhecimento e fortalecimento de suas identidades surdas.

Por isso a preferência de surdos em se relacionar com seus semelhantes fortalece sua

identidade e lhes traz segurança. É nos contatos com seus semelhantes que eles se identificam

com os outros surdos e encontram relatos, problemas e histórias semelhantes às suas.

Sobre a inclusão social, constatamos que há escassez de recursos visuais que facilitem a

acessibilidade dos sujeitos surdos à vida social. Na sociedade, a maioria das anunciações e

informações são sonoras e de palavras faladas. Aí vai um acontecimento ocorrido comigo: Eu

e minha amiga surda fomos a um grande supermercado reclamar sobre um aparelho

doméstico que quebrou após somente quatro meses de uso; no supermercado alegaram que
nós perdemos a garantia porque na hora da compra eles comunicaram que devíamos tirar a

nota fiscal emitida pela loja e que o extrato de caixa não tinha valor. Isso foi informado na

hora da compra, mas como nós duas somos surdas não "ouvimos" o comunicado e com isso

ficamos prejudicadas.

A inclusão de sujeitos surdos no mercado de trabalho depende das acessibilidades adaptadas

às necessidades culturais deles com o local e dos relacionamentos com seus colegas. Cito

exemplos em que urna funcionária surda, Christiane Elizabeth

Righetto" - oralizada e com domínio da língua de sinais de uma grande empresa, relata os

pontos positivos e negativos dentro do local:

Do que eu gosto: de ser aceita como eu sou, diferente e surda - Deficiência auditiva é o termo

técnico usado na área da saúde, não faz parte da cultura surda e não sou deficiente auditiva,

pois não tenho problema de audição - e também de ser útil e ajudar as pessoas.

Do que não gosto: de assistir a palestras e reuniões, porque não entendo o que falam. De ficar

no meio das pessoas tagarelando sem entender, participar e acompanhar as tagarelas. De

receber informações incompletas e resumidas, como se fosse um tecido com retalhos de pano.

De pedir a alguém para fazer ligações para mim e de receber ligações através de terceiro, só

obtendo as informações incompletas e curtas. De ser considerada igual aos funcionários

ouvintes. De ser mal atendida e compreendida.

Para a inclusão de sujeitos surdos nas empresas, o ideal seria a contratação dos serviços dos

intérpretes e tradutores de língua de sinais para as reuniões, as palestras e os cursos de

formação oferecidos.

Também seria importante que essas empresas se conscientizassem das diferenças lingüísticas

e culturais dos sujeitos surdos e permitissem acessos a cursos de língua de sinais aos

funcionários, colegas, amigos, vizinhos, familiares e às comunidades em geral, a fim de

possibilitar que se comuniquem e convivam com os funcionários surdos.


Nas escolas, a educação inclusiva não se refere apenas aos sujeitos surdos; refere-se também

à "educação para todos"; então, vamos refletir: o fato de esses sujeitos estarem dentro da

escola significa que eles estão incluídos?

A inclusão é um movimento que tem intenção de envolver toda a sociedade; porém, a

sociedade de inclusão não vê o sujeito surdo corno diferença cultural, mas sim como

deficiente necessitado da normalização, cujo padrão social aceito é o ouvinte. Então, corno

fica a inclusão dos surdos? Assim, como afirma Sldiar (1998b, p. 13) sobre a inclusão de

surdos em escolas de ouvintes:

A distinção entre diversidade e diferença conduz ao debate sobre o lugar que corresponde aos

surdos na educação especial e na educação em geral [...] também é necessário romper com a

tradição segundo a qual, uma vez reconhecido o fracasso da escola especial, aparece de

maneira implacável uma única opção: a escola inclusiva. Isto é, o imperativo da integração

escolar dos surdos nas escolas regulares.

Infelizmente, a maioria das escolas segue espaços não preparados para essas diferenças

culturais, como é o caso da inclusão de alunos surdos em escolas regulares. Eles se deparam

com dificuldades de adaptação e com problemas de subjetividades, porque nessas escolas não

compartilham suas identidades culturais, assim como reflete a pesquisadora Lopes (1998, p.

111) sobre esta realidade:

A representação do surdo como um doente dificulta a organização política deste para

reivindicar seus direitos na escola, na mídia e nos lugares públicos. A identidade do sujeito

surdo, sob a ótica da representação realista, busca se adaptar ao seu déficit auditivo e à

superação da deficiência por outras atividades chamadas de compensatórias.

Como começou a inclusão de surdos nas escolas regulares? Com a Declaração de Salamanca,

a política evidenciada nela foi adotada na maioria dos países. A Declaração, no item 30, faz

advertência à situação linguística dos surdos e defende as escolas e classes para eles. Na
elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei nu 9.394/1996, observamos que o

capítulo sobre a educação especial apoia-se e inclui parâmetros para a integração/inclusão do

aluno especial na escola regular.

Foi aprovada uma lei, porém cabe perguntar o que constava nela: permitir aos sujeitos surdos

o acesso ao ensino regular? Mas onde estavam os professores preparados? Qual era a

infraestrutura das portas que eram abertas ao povo surdo nas escolas? O problema é que essas

escolas ainda não respeitam essa advertência e continuam tratando os sujeitos surdos como os

demais alunos.

[...] os alunos surdos ficarão em classes de ouvintes, sendo que a língua de maior prestígio

será a da professora e dos alunos ouvintes. Os surdos, embora possam receber a tradução

simultaneamente do "ensinado" que estiver acontecendo em sala de aula, terão de estudar em

português e fazer suas provas nessa língua. (FELIPE, 2003, p. 87).

Fui uma adolescente revoltada e vivia isolada porque a escola oralista orientou a minha

família para que eu não tivesse contato com outros sujeitos surdos adultos. Havia muitos

estereótipos em relação à língua de sinais e, consequentemente, eu não tinha amigos surdos e

nem ouvintes. Os adolescentes ouvintes me achavam chata por eu ter comunicação Imitada e

sem graça e se afastavam. Então me isolava, me fechava no quarto e chorava todos os dias

dizendo que Deus ter me feito surda era um castigo e eu queria morrer, já que na vida não

tinha espaço para mim. Isto é inclusão? É inclusão a pessoa ouvinte resolver o que é melhor

para o sujeito surdo sem "sentir na própria pele" as dificuldades e os sofrimentos dos surdos?

Em consequência do Congresso de Milão, que proibiu por muitos anos os surdos de usarem a

língua de sinais, ela sobreviveu graças à resistência do povo surdo contra essa prática

ouvintista. Muitas crianças em escolas para surdos onde a língua de sinais é proibida, muitas

vezes a praticam às escondidas entre si, assim como relata a autora surda Laborit (1994, p.

84) sobre a sua infância na escola de surdos:


Quando um dos professores se virava para escrever no quadro-negro, tínhamos o hábito de

trocar informações na língua de sinais, persuadidos de que ele não nos escutava, já que não

nos via. Ora, no começo, ele se voltava todas as vezes, era estranho, não compreendíamos

imediatamente por quê. Com o passar do tempo, dei-me conta de que, ao falar com as mãos,

sem saber, emitíamos ruídos com a boca. Cuidamos, então, de não mais emitir nenhum som

e, desde aquele dia, trocamos nossas lições o mais tranquilamente possível.

Dessa maneira, a "inclusão" de sujeitos surdos na escola, tendo-se a língua portuguesa como

principal forma de comunicação, nos faz questionar bem se a inclusão oferecida significa

integrar o surdo. Na verdade, a palavra correta para as experiências desenvolvidas não é

"inclusão", e sim urna forçada "adaptação" com a situação do dia a dia dentro de escola de

ouvintes.

Durante o recreio, durante minha vida escolar (escola de ouvintes), no pátio da escola, onde

muitas crianças brincavam, eu ficava ao lado da pipoqueira, uma senhora mulata simples e

sorridente; eu ficava quietinha, sozinha, alheia a tudo e não tinha um ar muito contente;

muitas vezes essa pipoqueira simpatizava comigo, me dava pipoca de graça e sorria. Fiquei

muito triste quando soube que ela morreu atropelada; perdera a única amiga da escola que,

mesmo sem palavras, se comunicava comigo através de sorrisos e gestos amigáveis. Eu me

sentia como uma pessoa estrangeira no ambiente escolar. Era tão tímida que ficava isolada a

maior parte do tempo, tendo apenas uma ou outra colega ouvinte que me ajudava.

Skliar (1998a, p. 36) esclarece: "Os depoimentos de alunos surdos que passaram pelo ensino

regular sem uma metodologia específica mostram como eles se sentem estrangeiros e

marginalizados nessa situação [...]".

Trago de novo algumas experiências em escola de ouvintes durante a minha infância.

Uma vez entrei na sala de aula e todos entregaram trabalho para o professor; eu fiquei

surpresa e perguntei: "que trabalho"? Os colegas disseram que o professor avisou


verbalmente na última aula, só que ninguém se lembrou de me avisar. Isso também aconteceu

com as provas marcadas e depois, na hora, me dava mal por não ter estudado.

Então, quando me cobrava a leitura labial, eu arrumava todas as "desculpas" possíveis para

escapar daquela situação, inclusive, disse uma vez que o professor tinha bigode enorme e por

isso não o entendia. A direção obrigou-o a tirar o bigode, o que ele fez, e fiquei muito sem

graça porque continuei não entendendo e, para piorar, ele ficou horrível com os lábios muito

finos. Então, a partir daí, desde a infância até a faculdade, comecei a fingir que entendia tudo.

Isto era muito comum acontecer com os sujeitos surdos: fingir que compreendem tudo como

estratégia de sobrevivência, assim como explica a autora Botelho (2002, p. 19):

[...] muito frequentemente os surdos usam a "simulação de compreensão", isto é, fingem que

compreendem e que sabem, para evitar constrangimento na tensão da comunicação e para que

passem despercebidos, aprendem a ocultar o sofrimento pelo temor e vergonha de não ser

como todo mundo, isto torna as coisas piores porque aparenta ausência de problemas e

reforça o equívoco de que a escola regular é possível para todos os surdos [...]

Na inclusão é mais difícil quando as crianças surdas não estão preparadas e ficam totalmente

à mercê dos professores não usuários de língua de sinais e de colegas ouvintes que fazem

muitas brincadeiras rotineiras da cultura ouvinte como, por exemplo, o "telefone sem fio",

"cirandinha" e outros. Strobel (2006, p. 250) afirma que:

Como uma criança surda poderá desenvolver uma língua se não houver uma identificação

com o surdo adulto? Como o sujeito surdo poderá fazer uma identificação com relação à sua

identidade surda no futuro, se ele não conviver com outros surdos que façam uso da língua de

sinais? Quem foi que disse que é só o sujeito surdo utilizar-se da língua de sinais que por um

"passe de mágica" ele passará a ter uma aprendizagem

total? E a cultura como fica? ç.


São raros os professores habilitados para trabalhar com os alunos surdos em sala de aula. Na

maioria dos cursos de Pedagogia, nas universidades, não havia especializações para esta área

- somente depois do Decreto n0 5.626, de 22 de dezembro de 2005, que dá obrigatoriedade à

abertura de cursos de Libras, as coisas puderam melhorar. Voltando ao assunto a respeito da

falta de preparo dos profissionais que entendam e conheçam a cultura surda, cito um exemplo

de uma surda, estudante de Pedagogia:

Uma vez na faculdade, durante muitos anos no curso de Pedagogia sempre discutiram muito

sobre a importância da inclusão de surdos nas escolas regulares, etc. Em uma ocasião, a

professora psicóloga fez uma atividade que consistia que cada um dos alunos dizer a

qualidade da pessoa escolhida e presentearia com um bombom e assim por diante. No final de

tudo, já presenteados seus colegas escolhidos, nos sobraram duas surdas, a intérprete e a

minha mãe, a última colega ouvinte escolheu a intérprete para presentear e ela, sem graça,

sem saber qual de nós duas escolheria para presentear, disse que escolheria nós duas juntas; a

professora impediu-a, dizendo que não pode e teria que escolher uma; então a intérprete

chateada presenteou a minha mãe com um bombom. A minha mãe, na vez dela levantou,

vendo a nossa mágoa e caras de choramingo e disse à professora e a todos os colegas de

Pedagogia: isto se chama inclusão? Vocês demonstraram na prática que "excluíram" as duas

surdas! (STROBEL, 2006, p. 249).

Em outras palavras, quem está perdendo com isso tudo são os sujeitos surdos. As crianças

surdas, em vez de aprender, aumentam-lhes dúvidas e questionamentos, como exemplifica

Lane (1992, p. 39):

[...] A típica criança surda, que nasceu surda ou que ficou surda antes de aprender o inglês,

está completamente perdida no banco da turma de ouvintes. O que diz o


professor? Corno lhe posso tornar claros os meus pensamentos? O que posso fazer para ser

aceito pelas outras crianças? Está aqui alguém presente que me possa explicar certas coisas

depois das aulas?

Exponho abaixo os comportamentos que evidenciam as diferenças culturais do sujeito surdo e

do sujeito ouvinte na mesma aula, mesmo com a presença do intérprete de língua de sinais:

Quando o professor fala durante as aulas, eu tenho de prestar atenção olhando para o

intérprete, não posso desviar o olhar para fazer anotações no caderno como os outros alunos

ouvintes fazem, se não perco as informações transmitidas pelo intérprete - isso é ruim, porque

não tenho como revisar o que foi dito durante as aulas. Nas aulas de matemática, o professor

faz cálculos em quadro-negro, eu não consigo olhar para o quadro e para o intérprete ao

mesmo tempo, por isso sempre tenho de estudar fora da escola para entender e tirar notas

boas.

O ideal é compartilhar as experiências das escolas culturais de diferentes espaços para que

possam ter continuidade e ampliação da pedagogia cultural, por exemplo: na Universidade

Federal de Santa Catarina (UFSC), o Curso Letras/Libras aceita prova em língua de sinais.

Dessa forma as outras universidades também poderão aceitar este e outros artefatos culturais,

que são exemplos da interculturalidade que vão moldando as nossas maneiras de ser e de

viver.

Reforço o pensamento de Skliar (1998a): Estudos Surdos se constituem enquanto um

programa de pesquisa em educação, onde as identidades, as línguas, os projetos educacionais,

a história, a arte, as comunidades e as culturas surdas são focalizadas e entendidas a partir da

diferença, a partir do seu reconhecimento político. Segundo Fleuri (2001, p. 117):

[...] A perspectiva multicultural reconhece as diferenças étnicas, culturais e religiosas entre

grupos que coabitam no mesmo contexto. O educador que assume uma perspectiva

multicultural considera a diversidade cultural como um fato, do qual se toma consciência,


procurando adaptar-lhe uma proposta educativa. Adaptar-se, neste sentido, significa limitar os

danos sobre si e sobre os outros. Mas o educador passa da perspectiva multicultural à

intercultural quando constrói um "projeto educativo intencional" para promover a relação

entre pessoas de culturas diferentes.

A função social da cultura, da escola, os papéis dos professores em contextos de mudanças

fazem com que eles se vão adaptando às nossas necessidades culturais, aos nossos

desejos, aos nossos relacionamentos, aos nossos "eus" (privado e público), enfim, vão

modelando nossas subjetividades e construindo as identidades desse andamento. Segue um

comentário do líder surdo Antônio Campos de Abreu (2007):

[...] para alívio nosso, a sociedade recebe melhor os surdos, inclusive em universidades. As

pessoas já convivem bem com o surdo, respeitam sua identidade e o Governo tem cumprido

as leis que dizem respeito à inclusão. Antes, a relação dos surdos com a sociedade era difícil,

conflituosa e as pessoas tinham um sentimento de piedade pelo surdo. A criação de leis e

decretos que favorecem a inclusão do surdo, a criação do ProLibras também têm contribuído

muito.

A criança surda necessita de professores surdos usuários naturais de língua de sinais e cultura

própria em seu processo de construção de identidade e educacional. O imaginado é que os

sujeitos surdos tenham contato com os outros surdos que constituem o povo surdo, no qual

acontece o seu desenvolvimento como sujeito diferente, sendo um centro de encontro corri o

semelhante para que desenvolva sua identidade cultural; por isso eles defendem a importância

de termos escola de surdos. Segundo diz Quadros (2006, p. 35):

Desse modo, os surdos sonham com espaços em que a língua de sinais seja a língua de

instrução, em um ambiente cultural e social que favoreça o fortalecimento das heranças

surdas para a consolidação de um grupo que se diferencia a partir da experiência visual.


Apresento a seguir a narrativa interessante de urna surda mestranda, Shirley Vilhalva, na

ocasião em que fez uma das suas visitas em escolas indígenas, em contato marcante com

uma índia Kaxinawá (povo que habita as regiões de floresta tropical no estado do Acre, área

de Alto Juruá e Purus. As terras indígenas visitadas estão localizadas município de Feijó, no

Acre), que a fez refletir sobre o seu "eu-sim na inclusão social:

Fiz minha pergunta para uma grande mestra idosa índia com o acompanhamento da

interpretação em Libras; a pergunta era sobre a relação de corno ela entendia o projeto índio

surdo e a questão em que se encontram quando os jovens estudantes índios vêm tendo

processo de tal uma formação dentro da pedagogia indígena, sabendo que sempre foi uma

exigência do sistema aplicado da pedagogia urbana, conhecida como "pedagogia dos

brancos". A respost a dela: para ser aceita e sobreviver, precisei adotar a cultura dos não-

índios deixando de lado a minha cultura indígena, precisei aprender a língua do branco e

esquecer a minha, pois a língua deles tem mais poder de vida lá fora, precisei da pedagogia

dos brancos, pois o meu sistema dentro da pedagogia indígena não tinha mesma validade que

a deles. Hoje vejo os jovens índios sem saber relatarem o seu passado histórico por

desconhecerem o valor cultural que os mesmos têm. Os brancos que ontem vieram para

colocar a sua língua nos índios, vêm hoje trazer de volta a língua que nos tiraram, anseiam

que os índios voltem e reconstruam sua origem. E assim, eu, refletindo em comparação dos

índios com os surdos, digo que nós surdos tivemos que deixar de "ser surdo" e passar a ser

um ouvinte, pois "ser ouvinte" é ser aceito. Tivemos que arrancar e esconder a nossa cultura

surda, porque era a parte das exigências para dar stcitus a uma única língua oral, pois para

eles a língua espontânea dos surdos era a errada. Na realidade, "ser surdo" tinha que ser

escondido para aparecer anonimamente "ser ouvinte" para ser aceito na sociedade. Os surdos

mantêm o seu mundo, a sua cultura, a sua língua e se escondem de sua comunidade para

sobreviver num espaço da maioria.


Matutando sobre essas propostas da in(ex)clusão para o povo surdo, já se passaram muitos

anos de humilhações e de sofrimentos nos quais os sujeitos surdos choraram para que, em

seguida, erguessem a cabeça com orgulho de suas identidades, indo às suas lutas pela

inclusão de verdade. Os povos surdos, hoje mais abertos culturalmente, não se submetem

mais e gritam alto: "chega de mania de normalização, de reabilitação", porque eles estão mais

conscientes lá, de onde eram sempre tornadas as decisões por eles e para eles; os povos

surdos unicamente querem uma escola que lhes permita aprender e não fingir que sabem!

Para finalizar este capítulo, cito o poema "Lamento oculto de um surdo", feito por Vilhalva

(2004), pedagoga surda, que nos faz refletir:

Quantas vezes eu pedi uma Escola de Surdo e você achou melhor uma escola de ouvinte?

Várias vezes eu sinalizei as minhas necessidades e você as ignorou, colocando as suas idéias

no lugar. Quantas vezes levantei a mão para expor minhas idéias e você não viu? Só

prevaleceram os seus objetivos ou você tentava me influenciar com a história de que a Lei

agora é essa e que a Escola de Surdo não pode existir por estar no momento da "Inclusão". Eu

fiquei esperando mais uma vez...

em meu pensamento... Ser Surdo de Direito é ser "ouvido"... é quando levanto a minha mão e

Depoimento transcrito na íntegra, sem revisões.

você me permite mostrar o melhor caminho dentro de minhas necessidades. Se você,

Ouvinte, me representa, leve os meus ensejos e as minhas solicitações como eu almejo e não

que você pensa como deve ser. No meu direito de escolha, pulsa dentro de mim: Vida,

Língua, Educação,Cultura e um Direito de ser Surdo. Entenda somente isso!

CAPÍTULO 8

Como podemos compreender as peculiaridades da cultura surda e nos envolver com elas
O encontro com a comunidade surda permite-lhes sair do lugar do diferente, do excluído, do

estranho, do estrangeiro, para o de "pertencimento", um lugar em que se encontram como

iguais, sentem-se entendidos e efetivamente conseguem estabelecer uma relação de troca.

Gladis Dalcin

Como já vimos no transcorrer do presente livro, a cultura surda retrata a vida que os sujeitos

surdos levam; as suas conversas diárias, as lições que ensinam entre si, as suas artes, os seus

desempenhos e os seus mitos compartilhados, o seu jeito de mudar o mundo, de entendê-lo e

de viver nele. Para conhecer e entender a cultura surda é importante a convivência com a

comunidade surda, assim como afirma a autora surda Vilhalva (2007):

Não é suficiente conhecer a Língua Brasileira de Sinais para poder atuar eficazmente na

escola com o aluno Surdo. É também necessário conhecer a Cultura Surda

através da participação e vivência na comunidade Surda,

aceitação da diferença e paciência para inteirar-se nela.

Considerando que o povo surdo necessita de duas línguas: a língua de sinais na comunicação

entre seus idênticos e da segunda língua para se integrar à comunidade ouvinte, essa

colocação reflete a idéia de uma relação intercultural, pois o povo surdo pode se aproximar da

cultura ouvinte como uma opção e ter uma relação de trocas e compartilhação de ambas as

culturas, procurando respeitar as suas diferenças.

Perlin (2000, p. 27-28) enfatiza as propostas da educação dos surdos, a exigência para a

prática cultural no currículo e cita entre elas:

° presença do professor surdo na sala de aula para contato com a representação de identidade

surda, o que gera uma atitude positiva para com essa identidade;

" professor ouvinte com domínio de língua de sinais e capacitado para ensino de português

corno segunda língua, participante do movimento da comunidade surda, o que vai possibilitar

a vivência, ou seja, a experiência cultural presente;


" contato do surdo com a cultura surda, movimento surdo, expressões culturais surdas, o que

facilita a sintonia dos estilos de ensino com o estilo de aprendizagem e motivação dos

estudantes.

Os sujeitos "ouvintes", que podem ser os alunos de cursos de língua de sinais, família,

professores de inclusão, professores bilíngües, intérpretes, amigos e outros, são encorajados a

ver o mundo dos surdos através dos seus olhos como uma cultura diferente.

O modo de os sujeitos surdos agirem e verem o mundo constitui-se numa cultura estrangeira

para esses ouvintes. Assim, esses ouvintes podem ter suas construções interculturais e

linguísticas em meio às produções de surdos e ouvintes, como assevera a intérprete Aguiar

(2006, p. 25, 30), em sua dissertação de mestrado:

As identidades são produzidas dentro das culturas, motivo este que justifica o porquê das

mesmas serem culturais. No caso dos ILS," a transição entre duas culturas (espaços surdos e

espaços ouvintes) multifacetadas, os fazem flutuar entre esses meios, tornando-o uma

produção cultural e fervilhando novas significações a partir destas relações desencadeadas.

[...] No entanto, o fato dos ILS transitarem entre duas línguas, traz conseqüências além das

habilidades visuais e auditivas, isto é, outras questões entram em cena, tais como o

hibridismo cultural, uma vez que esses profissionais se deslocam entre fronteiras culturais (de

surdos e ouvintes) e se constituem politicamente nesses espaços sociais e culturais que

desencadeiam relações amplamente complexas. Relações essas de contestação cultural, de

pertencímento ao grupo de surdos são algumas das exigências quando nos posicionamos nas

fronteiras entre a LS e o português.

Os motivos para os sujeitos ouvintes decidirem conhecer e promover a cultura surda é que

com isto eles podem fortalecer a imagem da marca surda na vida social, aumentar a

credibilidade com relação ao povo surdo e também exaltar o relacionamento com a

comunidade surda.
Apresento a seguir algumas sugestões para aproximar os sujeitos ouvintes da cultura surda,

para que possam compreender suas peculiaridades:

● visitar e frequentar as comunidades surdas: associações, igrejas, convenções, escolas

de surdos, eventos esportivos, teatros e outros;

● conviver com os sujeitos surdos em situações informais e formais;

● pesquisar e estudar livros ou materiais informativos do povo surdo;

● conhecer e ler sobre todos os artefatos culturais do povo surdo;

● procurar respeitar e valorizar as diferenças culturais do povo surdo tendo uma

construção intercultural, isto é, uma troca, compartilhação e urna aproximação harmoniosa

entre ambas as culturas; respeitar os espaços conquistados pelos sujeitos surdos enquanto

estão em produção cultural. Por exemplo: tem muitos sujeitos ouvintes que querem

"competir" com os surdos e assim fazem com que o povo surdo suspeite deles, devido à longa

história de opressão, de lutas, de relações de poder para conquistarem seus espaços. Tem

muitos ouvintes que se aproveitam dos espaços conquistados pelos surdos para ensinar a

língua de sinais e outras coisas, alegando que têm direitos iguais... Mas onde estão os direitos

de igualdade, enquanto na sociedade os sujeitos ouvintes geralmente são preferidos aos

surdos? Isso acontece na maioria das empresas, nas universidades, nas instituições ou até

mesmo em igrejas, que preferem profissionais ouvintes para não ter de contratar intérpretes

para os profissionais surdos. Também pela barreira de comunicação é mais fácil contratar um

ouvinte, sabendo que para sujeitos surdos é mais difícil conseguir contatos via telefone, por

exemplo. No futuro, quando a sociedade tiver uma representação sem estereótipos e mais

positiva em nível de igualdade entre os surdos e ouvintes, se olharem o povo surdo como

diferença cultural, e não como deficientes, daí não haveria essa "guerra cultural" entre eles.

Conclui-se que a cultura surda é transmitida de geração em geração, através da língua de

sinais; portanto, faz-se necessária para a construção da identidade do "Ser Surdo", sendo um
traço próprio do povo surdo, tornando possível a expressão das subjetividades. Para

completar, cito Moura (2007):

Podemos ver agora festas em que a cultura Surda é levada em consideração. Podemos

presenciar belas representações de teatro em língua de sinais. Podemos perceber a união dos

Surdos e de seus familiares em torno de questões comuns a todos os indivíduos de uma

sociedade: educação e cidadania. É um belo início e esperemos que colha mais e melhores

frutos no futuro. Outro aspecto importante a ser considerado é que, cada vez mais, os Surdos

passam a ser responsáveis pelos atos públicos e as deliberações que vão fazer a diferença na

vida de muitos Surdos no futuro: é o Surdo se responsabilizando e sendo o estandarte de suas

próprias reivindicações.

A cultura surda é profunda e ampla, ela permeia, mesmo que não a percebamos, como sopro

da vida ao povo surdo com suas subjetividades e identidades. Podemos senti-la em sua

essência nas comunidades surdas!

Utilizo a língua dos ouvintes, minha segunda língua, para expressar minha certeza absoluta

de que a língua de sinais é nossa primeira língua, a nossa, aquela que nos permite sermos

seres humanos "comunicadores". Para dizer, também, que nada deve ser recusado aos surdos,

que todas as linguagens podem ser utilizadas, sem gueto e sem ostracismo, a fim de ser ter

acesso à vida. (LABORIT, 1994, p. 9).

Mesmo que existam os diferentes grupos culturais, cada grupo não vive isolado em seu

mundo particular, mas todos os

grupos convivem e passam por conflitos em um emaranhado de relações. £ é por isso que

todo grupo cultural, dentro de suas peculiaridades, deve aprender que não há ninguém melhor

que ninguém, mas sim sujeitos diferentes que devem ser considerados coletivamente com

todas as suas singularidades.


Essas particularidades não devem ser ignoradas, e sim reconhecidas no âmbito da

identificação pessoal e cultural!

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