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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA E CULTURA
LINHA DE PESQUISA: ESTUDOS COMPARADOS

A QUEDA DA CASA DE USHER: (RE)CRIAÇÃO


DA ATMOSFERA FANTÁSTICA,
DO CONTO AO FILME

ALUNO: CÍCERA ANTONIELE CAJAZEIRAS DA SILVA

ORIENTADORA: GENILDA AZERÊDO

JOÃO PESSOA
2008
2

CÍCERA ANTONIELE CAJAZEIRAS DA SILVA

A QUEDA DA CASA DE USHER: (RE)CRIAÇÃO


DA ATMOSFERA FANTÁSTICA,
DO CONTO AO FILME

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-graduação em Letras, da Universidade
Federal da Paraíba, para obtenção do título
de Mestre em Letras (Literatura e Cultura).

Orientadora: Profa. Dra. Genilda Azerêdo

JOÃO PESSOA
2008
3

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________
Profa. Dra. Genilda Azerêdo
(Orientadora)

______________________________________________________
Prof. Dr. Luis Antônio Mousinho Magalhães
(PPGL/UFPB)

______________________________________________________
Profa. Dra. Maria de Fátima Barros Neves
(UFPE)

João Pessoa, ____/____/_____


4

Agradecimentos

A meu pai, de quem herdei a paixão pela imagem em movimento e pelas boas

histórias e de quem sempre encontrei apoio nas mais variadas decisões. A minha mãe,

de quem herdei a curiosidade e o interesse pelo novo, agradeço pelas palavras de

incentivo, pela confiança inabalável e, principalmente, pela paciência. Aos dois, pelo

carinho e pela companhia que me fizeram também nos momentos anteriores às inúmeras

viagens Fortaleza-João Pessoa.

A Genilda que me orientou de forma precisa, sugerindo textos e dando (boas)

idéias para a pesquisa. Mostrou-se importante desde os primeiros momentos, quando

ainda faltava foco sobre como se daria o estudo. Agradeço, sobretudo, pelo equilíbrio e

serenidade com os quais encarou (e me ajudou a enfrentar) problemas, indecisões e

inquietações e pela confiança que depositou em meu trabalho e por ter sido muito mais

do que orientadora dos estudos.

Aos professores do Programa de Pós Graduação em Letras, através dos quais

pude ter acesso a informações de extrema relevância ao andamento da pesquisa. Aos

funcionários, que foram pacientes diante de minhas dúvidas acerca das questões

relacionadas à, então nova e desconhecida, UFPB. Aos colegas de mestrado, que me

receberam com simpatia e sempre foram prestativos e solícitos.

Às professoras Edna Carlos e Socorro Cláudia que, ainda na graduação,

incentivaram meu ingresso em um programa de pós-graduação, oferecendo bons

conselhos e orientações relevantes sobre os rumos a serem tomados e as escolhas a

serem feitas.
5

Aos colegas Anacã Agra, que me ajudou ainda nos momentos de elaboração do

projeto inicial e Zonda, que sempre me auxiliou tanto com sugestões relacionadas à

pesquisa, como com questões de ordem prática, como a sobrevivência em João Pessoa.

A Antônio Tosto, amigo que, mesmo estando em Fortaleza, sempre me

incentivou sem se apavorar com os momentos de inquietação, nem se incomodar com

os de silêncio. Foi um leitor atento e disposto a me ajudar nos detalhes formais dos

textos. Tosto esteve sempre presente e interessado pelas questões relacionadas ao

trabalho, oferecendo apoio incondicional.

Às amigas Cynara e Bruna, que sempre me apoiaram, sendo ouvintes e

conselheiras nas horas difíceis e proporcionando algumas outras de descontração,

fundamentais à continuidade do trabalho. A elas agradeço pelas palavras e atitudes de

carinho.

A Daniel Liberalino, que compartilhou impressões e reflexões sobre o mestrado.

A ele devo também a música, os silêncios, os inúmeros sorrisos e as surpreendentes

divagações que foram importantes à manutenção (e à necessária desconstrução) do

equilíbrio.

A todos os outros amigos pelo interesse, pelos momentos de diversão, pelas

conversas despretensiosas, pelas palavras de incentivo, pelos elogios, pelas críticas e

pela confiança que tiveram em relação à concretização do trabalho.


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Resumo

Com este trabalho, realizamos uma análise do conto A queda da casa de Usher, de
Edgar Allan Poe e de sua adaptação para as telas: o filme homônimo, realizado em
1928, por Jean Epstein. Nosso objetivo principal é, através do delineamento da
construção da atmosfera fantástica em ambos os textos, estabelecer como o conto
poeano se empenha na composição desse aspecto e a forma pela qual o filme realiza o
redimensionamento da obra literária sem recorrer a formas consideradas mais ligadas ao
cinema de horror, valorizando o caráter plural da linguagem poeana. Assim, o filme,
contando com as possibilidades técnicas e discursivas peculiares ao cinema, realizaria
um diálogo com o texto de origem, de forma a recriar o fantástico na tela. Para
compreender e analisar a construção do conto, utilizamos os conceitos poeanos sobre a
composição literária e alguns princípios da narratologia. A análise da construção do
fantástico apóia-se basicamente nas teorias de Tzvetan Todorov e Filipe Furtado, que
privilegiam a questão da ambigüidade do discurso em detrimento da mera sensação de
terror que tal aspecto evocaria. No que se relaciona ao filme, alguns princípios teóricos
desenvolvidos por Epstein se mostram fundamentais ao entendimento dos rumos
tomados no processo de recriação do texto literário, revelando o caráter vanguardista da
práxis do cineasta. Já a teoria da adaptação se estabelece como pressuposto teórico
necessário à análise da relação entre os textos envolvidos no processo e à compreensão
dos mecanismos de construção de sentido da obra fílmica.

Palavras-chave: discurso fantástico, A queda da casa de Usher, Poe, Epstein, adaptação


fílmica.
7

Abstract

This work analyzes Edgar Allan Poe’s short story and its movie adaptation directed by
Jean Epstein in 1928 – both entitled The Fall of the House of Usher. Our objective has
been to establish the way the short story proceeds and the motion picture redimensions
Poe’s work concerning to the fantastic atmosphere present in them without making use
of horror strategies that are considered cliches. The technical possibilities of the cinema
and its language peculiarities made it possible for the film to set a dialogue with the
short story. On the purpose of studying the text structure, Poe’s ideas about Literary
Compositon and some Narratology points are relevant. For analyzing the text structure,
Tzvetan Todorov’s and Felipe Furtado’s theoretichal considerations, that privilege the
ambiguity present in discourse instead of the normal horror sensation caused by this
aspect are also fundamental. For associating this study with the film, a rescue from
some Epstein own theoretical principles are essencial specially when the focus lies on
the inventive process of recreating literature and revealing the typical sense of
vanguardism related to the cinema. In addition, for examining the connexion between
the theoretical basis for this recreation of literature and the languages involved in the
process, the Theory of Adaptation is considered helpful.

Key-words: fantastic discourse, The Fall of the House of Usher, Poe, Epstein, filmic

adaptation.
8

Sumário

1 Introdução ................................................................................................................. 09

2 Do conto ao filme: pressupostos teórico .................................................................. 13


2.1 Edgar Allan Poe e o conto ...................................................................................... 15
2.2 O fantástico ............................................................................................................... 28
2.3 Epstein e o cinema .................................................................................................. 35
2.4 Literatura e Cinema: Adaptação fílmica ................................................................. 42

3 A queda da casa de Usher: conto ............................................................................. 48

3.1 O mundo de Usher: a configuração espacial e o fantástico ..................................... 51


3.2 O guardião do mundo de Usher: o narrador homodiegético ................................... 59
3.3 A atmosfera fantástica em Usher: reflexos e duplicações ....................................... 66
3.4 O abismo no universo de Usher: narrativas em reflexo .......................................... 79

4 A queda da casa de Usher: filme ............................................................................... 88

4.1 A queda da casa de Usher segundo Jean Epstein ................................................... 90


4.2 Recriação da atmosfera fantástica .......................................................................... 98

5 A queda da casa de Usher: do conto ao filme .........................................................107

5.1 O universo de Usher nas telas : deslocamentos, redimensionamentos,


adaptações.....................................................................................................................111
5.2 A máquina inteligente: o narrador de A queda da casa de Usher ..........................117

6 Conclusão .................................................................................................................125

Bibliografia ..................................................................................................................129
9

1 Introdução

O presente trabalho se propõe à realização de uma análise de A queda da casa de

Usher, conto e filme, voltado ao estudo de como se realiza a criação da atmosfera

fantástica no conto e de que maneira o filme realizará a recriação desse aspecto para as

telas.

A produção literária (sobretudo a prosa ficcional) de Edgar Allan Poe é marcada

pela concisão de elementos e pela intensidade do efeito (ou impressão) que permeia o

texto com a função de exercer domínio sobre o leitor, mantendo a tensão até o desfecho.

Segundo o próprio Allan Poe, o efeito corresponderia à impressão ou reação que o texto

literário causa em seu leitor, devendo ser único e estabelecido pelo autor antes de iniciar

o processo de escrita. Somente após defini-lo, pode se iniciar a criação dos demais

elementos da narrativa, que se combinarão em função da construção desse aspecto

singular1.

A adoção de temas ligados às obsessões humanas e ao estranho, a presença de

fatalidades misteriosas e de certas conjeturas sobrenaturais (CORTÁZAR, 2006:123)

são freqüentes nos contos de Edgar Allan Poe, aproximando-o do fantástico. A queda da

casa de Usher é um texto em que o estilo poeano constitui um reflexo (ou produto) de

suas teorias acerca do fazer literário.

No entanto, tal proximidade com o fantástico se desenvolve de maneira distinta.

O conto poeano em questão, mesmo apresentando um enredo que poderia ser facilmente

associado unicamente à literatura de terror, distingue-se das características desse estilo,

1
A questão do efeito único, defendida por Edgar Allan Poe, aparece nos artigos Review of Twice-tld tales
(1842) e The philosophy of composition (1846)
10

já que privilegia a sugestividade e a construção de uma atmosfera em que predominam

mais o mistério e a perplexidade diante dos acontecimentos do que o medo em si.

Assim, a análise de um texto com essas particularidades, exige o reconhecimento

de uma teoria que elucide o discurso literário fantástico. O aspecto sobrenatural, sempre

presente na literatura, foi alvo de diversos estudos que privilegiavam da sensação de

terror e pavor que o texto deveria evocar no leitor, até os que voltam a atenção para as

nuances da construção textual.

Um dos primeiros teóricos a se dedicar ao tema, H. P. Lovecraft, associa o

aspecto fantástico à reação que o leitor apresenta ao tomar conhecimento dos eventos

narrativos. A sensação despertada no receptor deveria ser o terror, que seria responsável

pelo estabelecimento do aspecto fantástico no texto.

No entanto, uma abordagem do discurso literário de uma forma geral exige uma

visão mais abrangente, que contemple aspectos mais relevantes. A teoria de Tzvetan

Todorov, que relaciona o fantástico ao tom de imprecisão e à hesitação de um leitor

virtual quanto à natureza dos fatos narrativos apresentados, torna-se relevante à

investigação no que se relaciona à composição dos efeitos de leitura. A teoria de Filipe

de Furtado acrescenta à concepção de Todorov a questão da ambigüidade; fator que

resultaria da coexistência de elementos representativos da oposição real/imaginário.

Segundo Furtado, o texto mobilizaria os mais variados elementos em função da

permanência da dúvida, que seria, portanto, a característica fundamental do texto

fantástico.

Dessa forma, utilizando-se das concepções poeanas acerca da composição

literária, relacionando-as com a teoria do fantástico e com alguns aspectos colocados


11

pela Narratologia, como a questão da voz narrativa, é possível compreender e analisar a

maneira pela qual se constitui o aspecto fantástico no conto e apontar os possíveis

rumos tomados no seu processo de atribuição de sentido.

A queda da casa de Usher, filme, compõe um exemplo da cinematografia de

vanguarda, que marcou a produção artística na Europa dos anos 20. Jean Epstein, seu

realizador, enquanto também teórico do cinema, constitui uma obra que se distingue das

tendências vigentes na produção cinematográfica mundial: um estilo narrativo que

prezava pela linearidade e pela transmissão de uma impressão de realidade ao

espectador.

A teoria epsteiniana se oferece como elemento importante à compreensão do

filme enquanto discurso artístico autônomo, uma vez que orienta as escolha do cineasta

em produzir uma obra fílmica em que predomina a sugestividade e a densidade

psicológica. Além disso, o caráter vanguardista do estilo de Epstein justifica também a

forma pela qual o cineasta recria a atmosfera fantástica do conto para a tela, buscando

estratégias que denunciam mais empenho no sentido de estabelecer artisticamente a

linguagem cinematográfica e que são dotadas de maior potencial semântico.

A análise da relação cinema-literatura buscará apoio de textos voltados para a

questão; sobretudo os que tratam da relevância do diálogo entre as modalidades

artísticas envolvidas e que consideram as especificidades estéticas de ambos. Na

compreensão do filme como discurso artístico, serão de extrema relevância os textos de

Jean Epstein que apresentam concepções sobre o fazer cinematográfico. Em

L'inteligence d'une machine (1946) e Le cinéma du diable (1947), o cineasta trata da

utilização da técnica cinematográfica em nome da atribuição de um valor estético ao

filme e o equilíbrio na utilização dos elementos fílmicos e desenvolve o conceito de


12

fotogenia, que desencadeia a personificação da imagem, aspecto importante da

cinematografia epsteiniana, que, aliado a tantos outros recursos próprios ao cinema,

assumem a responsabilidade pela construção de sentido no texto fílmico.


13

2 Do conto ao filme: pressupostos teóricos

Literatura e cinema, enquanto discursos artísticos, mantêm uma relação ora de

afastamento, ora de proximidade. Entre eles há uma aparente impossibilidade de

contato: a literatura lida com dados abstratos, evocando uma imagem conceitual através

da linguagem verbal e de recursos metafóricos e figurativos; o cinema constrói uma

narrativa através da imagem fílmica2 e de seus recursos específicos como fotografia,

montagem, trilha sonora e construção de personagens.

Mesmo contando com meios de produção distintos, literatura e cinema se

interpenetram com o processo de adaptação fílmica e desencadeiam questões

relacionadas à suposta hierarquia existente entre eles. Comumente, atribui-se à literatura

um certo grau de superioridade em relação ao cinema, que, por sua vez, estaria em

desvantagem por estar mais ligado à cultura de massa e ser considerado mais

"acessível" ao grande público. Tal concepção denuncia uma visão preconcebida de que

uma arte mais "fácil" ou "de massa" não possui a mesma grandeza da literatura. Traz

também à tona a discussão relacionada à fidelidade enquanto critério qualitativo da

adaptação fílmica, o julgamento de um filme adaptado de acordo com o grau de

aproximação da obra literária e não enquanto meio de expressão artística dotado de

características únicas.

A adaptação fílmica, muito mais do que um processo em que a intenção

principal seja a reprodução do texto literário no cinema, constitui um mecanismo em

que os deslocamentos são necessários. Dessa forma, temos como resultado do processo

de adaptação fílmica a recriação do texto de origem através da manipulação dos

2
Como sabemos, a iconicidade do cinema também tem a capacidade de ser opaca e metafórica.
14

recursos peculiares ao cinema na tentativa de redimensionar os significados da obra

literária por meio da linguagem cinematográfica. Este fator chama a atenção para a

importância de um estudo comparativo entre literatura e cinema que envolva o

desnudamento das estruturas e das características singulares a cada meio de expressão e,

com isso, permita uma posterior análise do processo de interação entre eles.

O caso de A queda da Casa de Usher3 constitui um exemplo em que a relação

entre cinema e literatura ocorre de forma diferenciada. O conto de Edgar Allan Poe,

autor reconhecido pela autoconsciência e pela temática peculiar de sua produção

literária, reflete esses aspectos em sua produção literária, apresentando algo que pode

figurar como uma dificuldade à adaptação fílmica: a presença de uma atmosfera

fantástica que se constrói através do emprego de recursos literários específicos que

fogem da exposição de elementos comumente associados à literatura fantástica

tradicional4. O filme, por sua vez, remete ao contexto de formação da linguagem

cinematográfica enquanto arte, especificamente ao cinema avant-garde, marcado pelo

descontentamento em relação à cinematografia comercial e pelas influências recebidas

das vanguardas artísticas como Cubismo, Dadaísmo, Expressionismo e Futurismo. Jean

Epstein, o realizador de A queda da casa de Usher no cinema, desenvolveu importantes

teorias acerca do fazer cinematográfico, que, além de constituírem a identidade da

filmografia de vanguarda francesa, são fundamentais à compreensão de sua própria

produção cinematográfica, justificando também as escolhas que orientaram a adaptação

da obra de Allan Poe para as telas.

3
Referimo-nos, aqui, tanto ao conto como ao filme. O conto de Edgar Allan Poe, foi publicado com o
título The fall of the house of Usher inicialmente em 1840 na revista Burton’s Gentleman Magazine e
posteiriormente na reunião de contos The tales of the grotesque and the arabesque. O filme, de Jean
Epstein, cujo título original é La chute de la Maison Usher, foi lançado em 1928.
4
A questão do fantástico será tratada na seção 2.2.
15

A análise destas duas expressões artísticas, conto e filme, exige como

fundamento as considerações teóricas de seus dois autores - já que ambos, Allan Poe e

Epstein, apresentaram importantes contribuições à literatura e ao cinema

respectivamente - sobre sua práxis artística. Além disso, lançaremos mão de teorias

relacionadas especificamente a cada uma das linguagens em questão. A utilização da

teoria do conto se faz necessária, uma vez que auxiliará na compreensão da estrutura e

das principais características do gênero. Já a análise do aspecto fantástico no conto

encontrará apoio nas teorias desenvolvidas pelos teóricos H.P. Lovecraft, Tzvetan

Todorov e outros estudiosos relacionados à temática como Julio Cortázar, que, mesmo

apresentando concepções distintas, constituem importantes pressupostos teóricos ao

entendimento do fantástico de uma maneira geral.

As colocações de Jean Epstein sobre a linguagem cinematográfica serão

relevantes ao processo de análise do filme não só enquanto expressão vanguardista, mas

também enquanto obra adaptada, uma vez que, através destes escritos, o autor revela seu

posicionamento sobre a relação cinema-literatura. A questão da adaptação fílmica

encontrará suporte nas teorias da adaptação, além de textos de outros autores que

trabalharam a questão.

2.1 Edgar Allan Poe e o conto

A produção literária de Edgar Allan Poe se deu durante período que coincide

com a expansão do Romantismo. Os Estados Unidos, assim como a Europa, cederam às

visões de mundo dessa corrente literária, que acabou por agitar os círculos intelectuais e

constituir o primeiro movimento literário consistente do país. Entretanto, o contexto

social americano na época foi marcado pela crescente industrialização e pelo progresso

mecânico, contrastando com alguns princípios do idealismo romântico, diretamente


16

ligados à valorização da natureza enquanto elemento estético e à oposição ao

racionalismo, apresentando uma arte dotada de intensidade emocional. Por outro lado, a

formação da identidade nacional e o estabelecimento dos valores democráticos

estadunidenses entravam em consonância com o ideal de individualismo característico

da estética romântica e que atingiu maior representação com o transcendentalismo,

pensamento representado pelos intelectuais da Nova Inglaterra (sobretudo por Ralph

Waldo Emerson e Henry David Thoreau) que defendiam a idéia de que as identidades

individuais representariam o universal.

O contexto sociocultural norte-americano delineia uma fase em que a literatura

ainda ensaiava seus primeiros passos e carecia de uma identidade estética consistente.

Segundo Van Wyck Brooks, autores da importância de Allan Poe e Nathaniel

Hawthorne não receberam atenção à época, tendo permanecido marginais em relação a

autores mais ligados às tendências de pensamento vigentes:

É claro que durante o que se chamou o período clássico da literatura


norte-americana a alma da América do Norte se negava a se distrair da
acumulação de dólares; é claro que o instinto prisioneiro da auto-
afirmação econômica era a lei da tribo... O imenso, vago e nebuloso
dossel de idealismos que pairou sobre o povo norte-americano durante
o século XIX não foi jamais autorizado, de fato, a interferir na direção
prática da vida. Os escritores mais famosos e de maior êxito, Bryant e
Longfellow, por exemplo, promoveram este idealismo, mostrando-se,
até onde conseguimos ver, satisfeitos com as práticas sociais; aceitavam
tacitamente o peculiar dualismo presente na raiz de cada ponto de vista
nacional. O equívoco dualismo de Emerson afirmou, por um lado, a
liberdade e a confiança em si mesmo, e, por outro justificou a
conveniência privada e sem limites do homem de negócios. E, como
sugestivo corolário de tudo isto, os dois principais artistas da literatura
norte-americana, Poe e Hawthorne, ficaram distanciados da sociedade
como poucos jamais ficaram; aos olhos dos contemporâneos deveriam
parecer espectrais e distantes, quase nem humanos, e seria fácil mostrar
que não é menos marcante a reação que um mundo essencialmente
irreal para eles produz em suas obras. (CORTÁZAR, 2006, pp. 106-
107)
17

Esse isolamento denuncia a inadequação do estilo de Allan Poe aos moldes

colocados pelo contexto cultural da América do Norte. Embora, algumas vezes, tenha

sido reduzida a um caso clínico, reflexo da biografia conturbada do autor, ou

relacionada unicamente à literatura de horror, a exemplo de autores como E.T.A.

Hoffman, a escrita poeana constitui uma contribuição relevante que vai além da

produção ficcional e poética e se estende a reflexões teóricas acerca da práxis literária.

Mesmo tendo permanecido, em seu país, destacado de outros autores, a influência do

contexto literário, sobretudo da Europa, é inegável, uma vez que aspectos como a

melancolia, o clima soturno, o individualismo e o apego à subjetividade são comuns a

seus textos assim como a produções típicas do Romantismo alemão, francês ou inglês.

Por outro lado, o diferencial entre o contexto romântico e a literatura de Poe pode estar

na natureza destes mesmos aspectos, que não estão relacionados a idealismos ou

paixões, mas a elementos mais obscuros da experiência humana. Outro fator que

poderia ter causado seu isolamento literário é o estilo conciso de sua prosa, que entrava,

de certa forma, em desacordo com aspectos fundamentais do gênero literário

característico de grande parte da produção literária romântica, o romance:

Sua economia é a das que surpreendem em tempos de literatura difusa,


quando o Neoclassicismo convidava a espraiar idéias e engenho sob
pretexto de qualquer tema, multiplicando as digressões, e a influência
romântica induzia a efusões incontroladas e carentes de toda
vertebração. Os contistas da época não tinham outro mestre senão o
romance, que é péssimo fora do âmbito que lhe é próprio. Poe acerta
desde o começo: Berenice e Metzengerstein, seus primeiros contos, são
já perfeitos de força, de exata articulação entre as partes, são a máquina
eficaz que ele defendia e queria. (CORTÁZAR, 2006, p. 124)

Embora tenha sido um dos responsáveis pelo isolamento de Poe em relação a

seus contemporâneos, o fato de o conto ter sido eleito pelo autor o gênero narrativo para

a sua produção em prosa o elevou ao status de autor fundamental para a disseminação


18

do gênero na América do Norte (ao lado de Nathaniel Hawthorne) e de um dos mais

importantes representantes e teóricos do gênero. Além disso, essa escolha reflete seu

domínio sobre os princípios de construção dessa modalidade narrativa, como se verifica

ao longo de alguns de seus ensaios. Os contos de Edgar Allan Poe apresentam como

característica marcante, além da temática peculiar, a busca pela unidade: os diversos

elementos presentes no discurso estariam envolvidos na obtenção de um efeito único,

pressuposto lançado e defendido pelo próprio Poe como fundamental ao conto e ao

poema. Através do ensaio Review of Twice-told Tales5 (1842) ele sai em defesa do

conto como gênero literário mais apropriado à transmissão de um efeito (colocando em

questão aspectos relacionados à extensão deste gênero e ao tempo de leitura). Já em A

Filosofia da Composição6 (The Philosophy of Compositon, 1846), com base na

composição do poema O Corvo (The Raven, 1845), sistematiza o processo de criação

literária que possibilitaria a construção deste efeito único.

Percebe-se ainda o apego ao essencial e a preocupação com a intensidade do

evento principal da narrativa: todos os elementos presentes no texto são dotados de

relevância diegética, não há longas descrições ou digressões que possam prejudicar ou

diluir a importância do acontecimento central, como afirma Baudelaire (2003, p. 66-67)

em um de seus ensaios sobre o autor: "Geralmente Edgar Poe suprime os acessórios, ou

pelo menos, não lhes dá senão um valor mínimo. Graças a esta sobriedade cruel, a idéia

geradora se faz ver melhor e o tema se destaca ardentemente, sobre esse fundo nu.".

Quando não há a supressão desses elementos, certamente há alguma

intencionalidade nessa opção; o que é supostamente desnecessário pode esconder um

detalhe importante à construção de sentido do texto. Esse aspecto só comprova a

5
In: MAY, Charles E. Short story theories, 1976.
6
In: POE, E. A. Poemas e ensaios. São Paulo: Globo, 1999
19

racionalidade que orientava a composição literária de Poe e o domínio que seu conto

exerce no leitor, a quem a narrativa é apresentada de maneira brusca, sem rodeios, nem

preparações e de quem deve manter o interesse, sustentando a tensão até o desfecho da

história.

O leitor dos contos de Poe também tem acesso a um discurso totalmente em

sintonia com a história7. Seleção vocabular, delineação dos ambientes e dos

personagens, escolha da instância narrativa, artifícios de composição da atmosfera ou

tom e até mesmo a utilização das epígrafes são elementos de grande relevância ao

processo de significação da narrativa que abrem possibilidades à polissemia, ou seja, a

interpretações distintas das que resultam de uma leitura mais superficial. A prosa

ficcional de Poe, freqüentemente orientada pela fantasia e pela imaginação, traz uma

temática ligada à anormalidade e revela aspectos obscuros da personalidade humana,

compondo narrativas nas quais a noção de realidade é discutível. Ainda que a

construção do texto envolva dados concretos, eles "são sempre subordinados à pressão e

ao domínio do tema central, que não é realista" (CORTÁZAR, 2006, p 130).

A presença da obsessão - que acentua o tom insólito das narrativas e é muitas

vezes relacionada à personalidade do autor e citada, por alguns críticos, como aspecto

dominante de sua obra - é apontada em diversos textos de Poe ainda por Cortázar que,

por outro lado, também põe em questionamento a validade da crítica literária que toma

o fator pessoal de quem escreve como único aspecto orientador de seu discurso:

Já é tempo de dizer com certa ênfase aos clínicos de Poe, que se este
não pode fugir das obsessões, que se manifestam em todos os planos de
seus contos, mesmo que no que ele julga mais independentes e mais

7
Termos colocados por Gerard Genette em O discurso da narrativa (1995). Segundo ele, o discurso
corresponderia ao texto narrativo em si, à maneira pela qual os diversos elementos são dispostos,
compondo o significante do texto. Já a história (ou narrativa) seria o conteúdo narrativo, que corresponde
ao termo fábula, colocado pelos formalistas russos.
20

próprios da sua consciência pura, não é menos certo que possui a


liberdade mais extraordinária que se possa dar a um homem: a de
encaminhar, dirigir, enformar conscientemente as forças desatadas do
seu inconsciente. Em vez de ceder a elas no plano expressivo, as situa,
hierarquiza, ordena; aproveita-as, converte-as em literatura, distingue-
as do documento psiquiátrico. E isto salva o conto, cria-o como conto, e
prova que o gênio de Poe não tem, em última análise, nada que ver com
neurose, que não é o "gênio enfermo", como foi chamado, e que, ao
contrário, seu gênio goza de esplêndida saúde, a ponto de ser o médico,
o guardião e psicopompo da sua alma enferma. (2006, p. 128, 129)

O aspecto densamente polissêmico do texto poeano é sua base de sustentação, já

que, uma vez interpretado de maneira limitada ou mais literal, o tema ficaria mais

restrito unicamente ao terror; tal aspecto se destacaria em detrimento de todas as outras

questões relacionadas à literatura poeana, como a temática da obsessão, o embate entre

as noções de real e de fantasia, a questão da ambigüidade e suas implicações, por

exemplo. A narrativa de Allan Poe se localiza numa área limítrofe em que o bom-senso

e a racionalidade ganham novas funções que não envolvem apenas a atribuição de dados

reais a uma determinada situação. A leitura de Poe deve abrir espaço a diferentes formas

de interpretação. Assim pensa Jean Bellemin-Noel:

A preocupação de Poe com a quebra do senso comum é expressa na


utilização recorrente de estados alterados de consciência, catalepsia,
estados hipnóticos, insanidade, transe, fantasia, sonho e pesadelo que
são vistos, talvez não literalmente, como formas de libertar a mente dos
limites da razão e despertar para uma jornada em direção a domínios
nos quais apenas a imaginação pode entrar. (apud VILELA, 1996, p.
112 tradução nossa)

Assim, sendo mais ligados ao excepcional do que ao natural, esses temas

mantêm uma relação muito próxima com o fantástico: o conceito de realidade ganha

novas dimensões e passa-se a considerar a verossimilhança, a coerência interna da obra.

Diante disto, o conto representa o gênero literário através do qual a expressão do

insólito, do excepcional, das exceções se faz de maneira mais eficaz, pois concentra tais
21

aspectos, de maneira mais intensa, graças às suas características fundamentais apontadas

pelo próprio Poe (1976, p.47), em Review of Twice-told tales: a brevidade e o efeito de

totalidade.

Essa brevidade remete aos primórdios do conto enquanto forma narrativa. O ato

de contar histórias, faculdade e necessidade natural do homem, está ligado a tempos

remotos ainda relacionados à tradição oral. O relato de episódios narrativos breves a

uma determinada platéia constitui a raiz do conto como é conhecido hoje, o qual, no

entanto, só obteve status literário com a chegada do século XIX e de um contexto

cultural favorável à sua publicação e circulação. Na transição de narrativa oral para

escrita, foram preservados alguns aspectos do conto, como o interesse em manter a

atenção da platéia ouvinte e, no caso do conto literário, a atenção do leitor. Dessa forma,

o conto, que era um ato público que envolvia a interação entre o contador de histórias e

a audiência, passa a ser uma experiência individual, particular de relação entre leitor e

história (O'CONNOR, 1976, p. 83).

Nádia Batella Gotlib (1990, pp.5-6) identifica fases do conto referentes à sua

transição de modalidade narrativa oral à escrita e à sua consolidação enquanto gênero

literário. A primeira fase seria cronologicamente imprecisa por se tratar de um grupo

difuso de escritos ainda distantes das características do gênero conto, que iriam de

episódios bíblicos aos contos das Mil e uma noites, textos que têm em comum seu

caráter narrativo. A segunda fase corresponderia ao período de afirmação da categoria

estética do conto, quando são organizados registros escritos das narrativas orais

empenhados em dar um caráter artístico ao texto sem descaracterizar seu tom de

oralidade. Produções como Decamerão, de Bocaccio, e Os contos da Cantuária, de

Chaucer são típicas deste período e conservam uma característica comum que se refere
22

à oralidade: a figura do narrador se faz presente como um personagem que narra a

história a outro(s). A terceira fase, que compreende o século XIX, corresponde ao

período de expansão da imprensa e, conseqüentemente, ao aumento do número de

revistas nas quais houve a publicação de contos. Nesta época, o conto finalmente atinge

status literário, já que deixa de ser apenas registro da oralidade para ser também

resultado um processo de criação estética e, com isso, passando a ser mais estudado de

forma sistemática, como, por exemplo, os contos de Allan Poe.

Ainda tratando da origem mais remota do conto, surgem traços em comum entre

conto e narrativa épica, apontados por Ernst Cassirer (apud MAY, 1995, p. 1) que se

assemelham com a concepção poeana. Segundo o teórico, a épica trataria de uma

experiência única, isolada, distante do lugar-comum que converge para um alto grau de

condensação, aspectos que, de certa forma, antecipam os pressupostos elaborados por

Poe em relação ao gênero conto.

As concepções de Poe apresentam uma oposição à idéia que vincula a produção

literária unicamente à inspiração:

A verdade é que a originalidade (a não ser em espíritos de força muito


comum) de modo algum é uma questão, como muitos supõem, de
impulso ou de intuição. Para ser encontrada, ela, em geral, tem de ser
procurada trabalhosamente e embora seja um mérito positivo da mais
alta classe, seu alcance requer menos invenção que negação. (1999,
p.109)

Dos textos Review of Twice-told Tales (1842) e The Philosophy of Composition

(1846) destacam-se, além da questão do efeito único, a necessidade de planejamento

textual: Poe defende ainda que apenas com o efeito pré-estabelecido, haveria a definição

e a combinação dos incidentes que movimentariam a trama e, conseqüentemente,

auxiliariam na construção de uma impressão única e total no leitor. Assim, é em função


23

do "efeito único e singular" que os elementos envolvidos na construção textual são

organizados desde o início:

Se a primeira frase não está destinada à obtenção deste efeito, ele [o


artista literário] falha no primeiro passo. Em toda a composição não
deve haver sequer uma palavra escrita cuja tendência, direta ou indireta,
não leve ao único plano pré-estabelecido. Com tal cuidado e habilidade
um quadro é pintado e deixa na mente de quem o contemplar uma
sensação de total satisfação. (POE, 1976, p. 48, tradução nossa)

Um dos fatores que se relacionam diretamente com a teoria do conto é a questão

da extensão. Já que o conto é, grosso modo, um gênero narrativo curto, este é

defendido pelo autor de Review of Twice-told Tales como o mais adequado à produção

de um efeito único, em comparação com o romance, que exigiria mais tempo de leitura.

A produção do efeito daria ao conto uma impressão de totalidade, todos os eventos

diegéticos e todos os seus elementos estariam condensados e colocados no texto por

possuírem real relevância ao processo de significação. Assim, em função da totalidade,

o conto passa a ser conhecido pela brevidade, um termo mais eficaz que não implica que

o conto deva ser necessariamente curto, já que, de acordo com a concepção poeana, esta

brevidade "deve estar na razão direta da intensidade do efeito pretendido, e isto com

uma condição, a de que certo grau de duração é exigido, absolutamente, para a produção

de qualquer efeito." (POE, 1999, p. 104). Além de conceber o efeito no período que

antecede a escrita em si, é importante que seja definido também o meio através do qual

ele será elaborado:

Tendo escolhido primeiro um assunto novelesco e depois um efeito


vivo, considero se seria melhor trabalhar com os incidentes ou com o
tom - com os incidentes habituais e o tom especial, ou com o contrário,
ou com a especialidade tanto dos incidentes quanto do tom - depois de
procurar em torno de mim (ou melhor, dentro) aquelas combinações de
tom e acontecimento que melhor me auxiliem na construção do efeito.
(POE, 1999, p. 102)
24

Com isso, Poe chama atenção para a questão do tom, ou atmosfera.

Corresponderia na pintura, à opção pelas cores e recursos que comporiam a tela: tons

mais escuros transmitindo uma impressão de frieza, de obscuridade; tons mais vibrantes

sendo associados à alegria; e a utilização de ambos, em harmonia ou em contraste, daria

novos sentidos a essas cores. No conto, especificamente, a atmosfera é um aspecto

fundamental à definição das sensações que atingiriam o leitor ao longo da leitura e,

conseqüentemente, ao efeito. O desfecho, ou epílogo, deveria ser igualmente pré-

estabelecido; tal princípio chama ainda mais atenção para a racionalidade da produção

literária de Poe:

Nada é mais claro do que deverem todas as intrigas, dignas deste nome,
ser elaboradas em relação ao epílogo, antes que se tente qualquer coisa
com a pena. Só tendo o epílogo constantemente em vista, poderemos
dar a um enredo seu aspecto indispensável de conseqüência, ou
causalidade, fazendo com que os incidentes e, especialmente, o tom da
obra tendam ao desenvolvimento de sua intenção. (1999, p.101)

As concepções de Allan Poe sobre o fazer literário chamam atenção para a

importância deste tipo de reflexão. Os ensaios escritos por ele apresentam uma

contribuição relevante para a aceitação da produção literária como resultado efetivo de

um processo de criação. Em relação ao conto, suas idéias representaram um apoio ao

gênero que dava seus primeiros passos como literatura de fato, tendo colaborado para

sua disseminação e para sua compreensão. Conceitos apontados por ele como "unidade

de efeito", "totalidade", "brevidade", entre outros, são adotados por diversos teóricos

mesmo enquanto ponto de partida para suas considerações. Dessa forma, Allan Poe

também como teórico influenciou a literatura principalmente devido ao seu interesse

pela busca de um método de criação.


25

A ressonância das idéias poeanas pode ser percebida em diversos textos

relacionados ao conto. Brander Mathews, em The Philosophy of Short-story, parte de

seus conceitos para realizar uma comparação entre o conto e diversos gêneros literários,

entre eles o romance:

Um conto lida com um único personagem, um único evento, uma única


emoção, ou com uma série de emoções provocadas por uma única
situação. [...] O conto é o efeito único, completo e condensado,
enquanto o romance é, por necessidade, fragmentado em uma série de
episódios. Assim, o conto tem o que o romance não pode ter, o efeito
de "totalidade", que Poe chamou de unidade de impressão. (1976, p. 52,
tradução nossa)

Como vimos, esta afirmação é uma retomada da defesa que Poe fez do conto

como gênero literário capaz de produzir e sustentar o efeito único e serve como ponto

de partida às considerações gerais sobre o gênero. O efeito, então, aparece como aspecto

fundamental do conto que acaba por influenciar todos os outros, entre eles a extensão, o

que se explica pela efemeridade das sensações mais intensas ocasionadas pelo efeito.

Mesmo assim, a extensão se configura como um conceito de caráter subjetivo que

parece insuficiente, se for considerado fator único e determinante, ao estudo do conto,

como percebe Lawrence no ensaio A Theory of the Short Story:

Esta definição exige dois aspectos da história: (1) que ela deve ser curta
e (2) que ela deve possuir coerência suficiente para prender o interesse
do leitor ou do ouvinte do começo ao fim. Os termos da definição são
relativos. É impossível, obviamente, traçar uma linha geral e afirmar
que qualquer história que tem menos do que cem palavras é curta,
enquanto um conto que contenha uma palavra a mais do que é estimado
é longo. [...] Se for aceito o teste da brevidade e da coerência que esta
definição propõe, a questão que surge é a de sua adequação. Brevidade
e coerência são aceitas como as únicas marcas distintivas do gênero?
Ou é necessário introduzir outras características que formularão uma
concepção mais concreta do conto? (1976, p.61-62, tradução nossa)
26

A definição do gênero conto ultrapassa, portanto, as questões relacionadas

unicamente à sua extensão e, conseqüentemente, à unidade de efeito e à condensação

dos elementos. Nem todo gênero narrativo curto pode ser classificado como tal. O conto

compreende uma série de aspectos estéticos de composição, que o caracterizam de

forma mais completa, enquanto obra literária. As diversas teorias elaboradas têm caráter

de especificidade, referem-se a uma determinada variação do conto; a teoria de Edgar

Allan Poe parece mais orientada ao conto de terror, de mistério, ou a contos fantásticos.

Porém, mesmo com estas peculiaridades, pode haver traços comuns que auxiliam na

delineação do gênero. Um deles diz respeito à economia. Dificilmente um conto

apresentará elementos acessórios, não relacionados direta ou indiretamente com a

história; este artifício possibilita a construção da tensão, que seria de extrema

importância ao texto, como aponta Cortázar, a exemplo de Poe:

[...] o único modo de se poder conseguir esse seqüestro momentâneo do


leitor é mediante um estilo baseado na intensidade e na tensão, um
estilo no qual os elementos formais e expressivos se ajustem sem a
menor concessão, à índole do tema, lhe dêem a forma visual a auditiva
mais penetrante e original [...] O que chamo intensidade num conto
consiste na eliminação de todas as idéias ou situações intermédias, de
todos os recheios ou fases de transição, o que romance permite e
mesmo exige. (2006, p. 157)

Assim, mesmo tendo sido classificada como mecanizada ou excessivamente

matemática, a visão poeana do conto explicitou pontos importantes, que obviamente não

devem ser tomados como verdades absolutas, e fatores determinantes das características

do gênero em todas as suas variações. A concentração e a condensação dos elementos

do conto em função da tensão parecem ser aspectos que compõem o caráter econômico

do gênero, o qual não lida com grandes evoluções temporais (embora existam exemplos

que transgridem este princípio): normalmente, a narrativa evolui em períodos curtos de

tempo e em espaços determinados - aspectos sobre os quais o próprio Poe (1999, p. 110)
27

se posicionou, declarando sua preferência por espaços circunscritos, que contribuiriam

de maneira mais eficaz à concentração de elementos - havendo presença de poucos

personagens e estes, geralmente, não apresentariam mudanças físicas notáveis, pelo

menos que não se relacionem com o evento central da história. Todas estas

considerações podem gerar uma visão do conto como texto hermético.

Assim, o esforço estético de seus elementos constituintes na construção de

atmosfera e efeito se relaciona com o discurso de maneira a ressaltar o caráter plástico

do conto. Esta plasticidade possibilita a comparação do gênero literário com outras

modalidades artísticas. Julio Cortázar (2006, p. 151) compara as necessidades do conto

com as da fotografia, centradas sempre na captura de momentos decisivos,

essencialmente significativos, que transcenderiam o argumento literário e visual,

levando o receptor ou leitor a inferir significados. Já de acordo com A.E. Coppard (apud

BATES,1976, p. 76), conto e cinema são expressões de mesma arte: a de contar

histórias através de cenas rápidas, de insinuações e de momentos em que prevalece a

sugestão e na qual o excesso de elaboração e de explicações seriam desnecessários.

Com essas considerações, surge a possibilidade de recriação do conto em

questão pela linguagem cinematográfica, cujos recursos permitem um diálogo criativo

com o texto literário. Enquanto o conto, sobretudo o de Edgar Allan Poe, detém

recursos capazes de produzir uma atmosfera em que predomina o caráter enigmático dos

eventos e uma ambigüidade em relação à natureza de tais acontecimentos; o filme

também possui, enquanto discurso igualmente dotado de narratividade e de recursos

estéticos peculiares, as prerrogativas necessárias para tal operação, a de construir uma

narrativa fílmica em que predomine a sugestão.


28

Através da análise de conto e filme - envolvendo seu eixo comum, a questão da

narratividade, trama e personagens e as formas específicas de cada um - é possível

delinear a maneira pela qual se dá a relação entre eles. No caso de A queda da casa de

Usher, conto e filme, será possível compreender o processo que leva à criação e

recriação da atmosfera fantástica que permeia ambas as narrativas. Para isso, além da

compreensão do conto enquanto gênero literário, é necessária também a análise de

algumas teorias relacionadas ao fantástico.

2.2 O fantástico

A palavra fantástico - que, pela etimologia, provém do latim phantasticus e do

grego phantastikos - é definida, genericamente, como produto da imaginação e

resultado do distanciamento da realidade e da proximidade com uma realidade

imaginária, regida por leis desconhecidas.

Durante o século XIX, o fantástico foi atribuído a obras cuja temática era

relacionada a fantasmas ou outros seres estranhos. Esse critério se mostrou insuficiente,

uma vez que classificou textos em prosa levando em conta um único elemento

característico comum. Dessa forma, narrativas de fantasmas, contos maravilhosos,

narrativas de mistério e narrativas sobrenaturais eram denominados pelo mesmo termo,

excessivamente abrangente e cujas características eram analisadas de forma ainda

confusa. Possíveis caracteres distintivos como maravilhoso, fantástico, sobrenatural e

misterioso se misturavam, revelando uma carência de definições que atentassem às

especificidades de cada um.

Em linhas gerais, o fantástico estaria relacionado ao apagamento da linha

fronteiriça entre o universo real e o universo "fantasiado". Através de artifícios


29

narrativos e estéticos, o texto produziria uma realidade aparente, frágil, que ofereceria

indícios de anormalidade até, finalmente, romper com o senso comum. É a partir desse

pressuposto, que trata da diluição e do questionamento da noção de realidade, que se

constroem as principais considerações acerca do fantástico, como a de Tzvetan

Todorov:

Castex escreve em Le Conte fantastique em France: 'O fantástico... se


caracteriza... por uma intromissão brutal do mistério no quadro da vida
real' (p. 8). Louis Vax, em L'art e la littérature fantastiques: 'A
narrativa fantástica... gosta de nos apresentar o mundo real em que nos
achamos, homens como nós, colocados subitamente em presença do
inexplicável' (p.5). Roger Caillois em Au coeur du fantastique: 'Todo
fantástico é ruptura da ordem estabelecida, irrupção do inadmissível no
seio da inalterável legalidade cotidiana' (p.161).

A definição de H.P. Lovecraft enfatiza a sensação que a literatura fantástica

desperta no leitor: o medo do desconhecido, o horror, que seria causado através da

criação de um universo não-real, mais vinculado ao onírico e ao espiritual e composto

por acontecimentos sem possibilidades de explicação pelo senso comum. Dessa forma,

a narrativa estabeleceria as condições necessárias para o surgimento do fantástico,

centradas na experiência do leitor:

A verdadeira história sobrenatural possui um algo mais que um


assassinato secreto, ossos sangrando, ou silhuetas em lençóis
balançando de acordo com as regras. Uma certa atmosfera de terror
sufocante e inexplicável composta por forças exteriores e não
conhecidas deve estar presente, e deve ser apenas sugerida, expressa
com seriedade e força, tornando-se assunto da mais terrível concepção
do cérebro humano - a suspensão maligna e particular ou a derrota de
leis fixadas pela natureza onde reside nossa única salvação contra o
caos [...] (1973, p. 15)

Essa afirmação revela uma concepção que valoriza a construção de uma

atmosfera que afeta emocionalmente o leitor, que se deixaria influenciar pelos artifícios
30

narrativos e entraria em contato com situações limítrofes e insólitas, vivenciando um

sentimento de terror. O fantástico resistiria enquanto a aparente ruptura com o universo

real permanecesse sem explicação (1973, p. 16).

Tzvetan Todorov desenvolve uma teoria relacionada ao fantástico que parte da

questão que envolve os limites entre realidade e sonho. A ambigüidade é apontada como

o aspecto que transporta o leitor ao âmago do fantástico (2004, p. 30). A dúvida em

relação à natureza dos acontecimentos - que não necessariamente causa horror ao leitor,

como propôs Lovecraft - admite novas configurações à medida que cede a algum tipo de

explicação:

Num mundo que não é exatamente o nosso [...], produz-se um


acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo
mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por uma das duas
soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um
produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o
que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte de
integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis
desconhecidas para nós. [...] (TODOROV, 2004, p.30)

Essa dupla possibilidade de explicação para os eventos narrativos orientaria,

portanto, o processo de configuração do fantástico na obra literária, que seria resultante

de uma limitação do sujeito em relação à compreensão daquilo que testemunha:

O fantástico ocorre nesta incerteza; ao escolher uma outra resposta,


deixa-se o fantástico para se entrar num gênero vizinho, o estranho ou o
maravilhoso. O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que
só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente
sobrenatural. (TODOROV, p.30-31)

A hesitação apontada por Todorov é vivenciada pelas personagens no mundo

que se forma através da narrativa ao qual o leitor deve estar integrado: nesse caso, este

último passa pela experiência da dúvida, ocasionada pelos incidentes, de maneira


31

semelhante ao personagem. Este leitor seria, aqui, uma noção que se assemelha à de

narrador:

O fantástico implica pois uma integração do leitor no mundo das


personagens; define-se pela percepção ambígua que tem o próprio leitor
dos acontecimentos narrados. É necessário desde já esclarecer que,
assim falando, temos em vista não este ou aquele leitor particular, real,
mas a 'função' de leitor, implícita no texto (do mesmo modo como se
encontram implícitas a noção do narrador). A percepção deste leitor
implícito está inscrita no texto na mesma precisão com que estão os
movimentos das personagens. (TODOROV, 2004., p. 37)

Marcado pela freqüente busca de explicações para os eventos da narrativa, o

fantástico é definido por Todorov como um gênero sempre evanescente (p. 48), que se

mantém enquanto existe a hesitação do leitor em relação aos fatos narrativos. Esta

característica do fantástico está atrelada ao desfecho:

No fim da história, o leitor, quando não a personagem, toma contudo


uma decisão, opta por uma ou outra solução, saindo desse modo do
fantástico. Se ele decide que as leis da realidade permanecem intactas e
permitem explicar os fenômenos descritos, dizemos que a obra se liga a
um outro gênero: o estranho. Se, ao contrário, decide que se devem
admitir novas leis da natureza, pelas quais o fenômeno possa ser
explicado, entramos no gênero do maravilhoso (TODOROV, 2004, p.
48).

Dessa forma, o fantástico existiria enquanto houvesse o tom de ambigüidade na

história, estaria relacionado ao tempo que o leitor é exposto à dúvida. De fato, o contato

com uma narrativa permeada pelo fantástico é marcado pela imprecisão e pela

insegurança diante de fatos aparentemente distanciados do senso comum. E a iminência

do apagamento do fantástico é explicável pela efemeridade do momento de hesitação e

motiva também a extensão dos textos pretensamente fantásticos, compostos, em sua

maioria, por formas narrativas breves. Como Todorov (2004) afirma, nos momentos

finais da narrativa esta indefinição deve ceder espaço à possibilidade (ou


32

impossibilidade) de explicação. Assim, o caráter fantástico desaparece, cedendo espaço

a novas configurações.

A partir desta idéia, o teórico propõe uma subdivisão de gêneros que se

relacionam com o fantástico.

estranho puro fantástico- Fantástico-

estranho maravilhoso maravilhoso puro

O estranho puro (p.53) apresentaria descrições de sensações de medo ou de

terror que teriam relação com os sentimentos das próprias personagens, e não com

acontecimentos materiais que, ao final da narrativa, pudessem ser explicados de

maneira racional. O fantástico-estranho (p.51) surgiria da apresentação de

acontecimentos que, devido ao seu caráter insólito, parecem sobrenaturais, mas que

possuem explicação racional. Já o fantástico-maravilhoso (p.58) não apresentaria

explicação aos eventos, restando, por isso, admitir o sobrenatural. O maravilhoso puro

(p.60) apresentaria acontecimentos sobrenaturais cuja natureza seria fator determinante

do maravilhoso e não a reação desencadeada por eles nas personagens e no leitor

implícito. O fantástico puro, segundo Todorov, estaria ocupando o limite entre o

fantástico-estranho e o fantástico-maravilhoso e se caracterizaria pela manutenção da

ausência de explicação dos incidentes mesmo após o desfecho da narrativa. Esta

delimitação de subgêneros reconhece a presença do fantástico nos textos analisados, que

são compostos por três etapas: preparação, durante a qual acontece a apresentação de

indícios de que um acontecimento importante irá ocorrer; gradação, que corresponde à

exposição dos sentimentos provocados nos personagens ou no leitor diante de


33

acontecimentos que parecem revelar a existência leis desconhecidas e uma aparente

fusão entre realidade e fantasia e desfecho, apresentaria um retorno à realidade através

de uma explicação racional (como no caso do fantástico-estranho e do estranho puro) ou

da admissão de novas leis (como no caso do fantástico-maravilhoso). É possível

concluir, a partir destas considerações, que o aspecto fantástico não é totalmente

excluído dos subgêneros apontados, já que sua existência é notada ora ao desencadear

sensações de hesitação e medo diante do desconhecido, ora ao compor o caráter

sobrenatural dos incidentes e só assume sua feição evanescente quando o final da

narrativa se aproxima, travando com o desfecho uma relação de dependência.

A escrita de Edgar Allan Poe (a maior parte de suas narrativas, com exceção de

Lembranças de Mr. Bedloe e de O gato preto) é classificada por Todorov como

pertecentes ao subgênero estranho, ou seja, os fatos narrativos encontrariam explicação

racional ao final da história. Por outro lado, o teórico reconhece que o fantástico se faz

presente na obra poeana principalmente no que se relaciona com a sua práxis literária

(TODOROV, 2004, p. 55).

No entanto, quando se trata de literatura e especificamente de Allan Poe é

possível elaborar diagramas e traçar estruturas fixas às quais o texto literário serviria ou

não, sem reduzir ou limitar excessivamente as possibilidades de compreensão literária?

A teoria de Tzvetan Todorov apresenta uma importante contribuição para a análise do

fantástico, apresentando as diversas características que o compõem e enfatizando a

importância da ambigüidade na sua construção, mas, ao inserir o texto poeano em uma

área restrita, pode estar deixando de considerar o caráter pluralista e elaborado do

discurso literário de Poe, como nos reafirma Lúcia Santaella:


34

A literalidade e o caráter superficial de qualquer espécie de realismo -


do cenário às personagens e situações -- eram por ele repudiados a fim
de chegar ao território infinitamente distante das aparências como meio
de penetração nos reinos daquilo que está infinitamente próximo, mas
oculto e dificultosamente perceptível por trás das máscaras do bom
senso. (1986, p.155)

A ambigüidade e a diluição dos limites entre realidade e irrealidade, aspectos

fundamentais à existência do fantástico na literatura, são percebidos na obra de Poe por

Cortázar (2006, p.129) ao afirmar que "...o realismo em Poe não existe como tal. Nos

seus contos, os detalhes mais concretos são sempre subordinados à pressão e ao

domínio do tema central, que não é realista.". A obra de Edgar Allan Poe é permeada de

elementos que mantêm relação próxima com o gênero fantástico, principalmente no que

diz respeito à temática e à composição textual, apresentando textos em que as palavras

estão tapando buracos (Idem, 2006, p.178), cumprindo o papel literário de sugerir (ou

gerar ambigüidade) muito mais do explicitar. O texto poeano traz, em meio ao enredo

enigmático e a personagens marcadas pela inquietude, um trabalho de composição que

exige esforços interpretativos que ultrapassem a camada mais superficial,

transcendendo, dessa forma, a tendência a relacioná-lo exclusivamente ao terror, que

corresponderia a um "índice, porém de um outro texto, ao avesso do terror."

(SANTAELLA, 1986, p.186).

A relação da literatura poeana com o fantástico é de constante aproximação e

afastamento: a evolução do enredo - que, geralmente, trata de temas ligados ao

excepcional e apresenta personagens em postura perplexidade diante de acontecimentos

incomuns - traz com o desfecho o desaparecimento do fantástico, de acordo com

Todorov. Por outro lado, o processo de composição textual, que consiste num jogo de

claro e escuro responsável pelo aparecimento da dúvida e da hesitação está sempre


35

travando uma relação direta com o aspecto fantástico, intensificando, assim, o potencial

semântico da obra do autor.

2.3 Epstein e o cinema

Grande parte de produção fílmica de Jean Epstein (1857-1953) corresponde ao

período de formação da linguagem cinematográfica enquanto arte. D.W. Griffith,

inspirado pela literatura de Balzac, gerava a tipologia dos planos, ao buscar formas mais

eficazes de narrativa. O cinema francês já havia apresentado a fantasia de George

Méliès em Viagem à Lua (Le voyage dans la Lune, 1902) e contava com representantes

como Marcel l'Herbier (L'homme du large, 1920), Abel Gance (Napoléon, 1926) e

Louis Delluc (Fièvre, 1921), que dialogaram com as vanguardas artísticas, apresentando

propostas de um cinema mais intelectualizado e autoconsciente, constituindo, assim, a

primeira vanguarda cinematográfica na França, orientada, segundo alguns teóricos,

pelos princípios do Impressionismo, conceituado por Aumont, como:

[...] termo [...] proposto pela crítica para designar uma tendência do
cinema francês mudo, refere-se a um só tempo, ao Impressionismo em
pintura e em literatura e (por oposição) ao Expressionismo em cinema.
Os filmes 'impressionistas' caracterizam-se pela vontade de exprimir
sentimentos, estados da alma, pelo jogo da câmera, no mais das vezes
muito móvel, pelo quadro (emprego do primeiro plano, notadamente
em Epstein), por ângulos trabalhados,'subjetivados', pela montagem
(montagem rápida de La Roue, de Gance; abundância de flash-backs) –
em suma, por todos os meios cinematográficos, ao passo que o
Expressionismo visualizava tais estados de alma, projetando-os no
cenário. (2003, p. 166)

O cinema epsteiniano é, de fato, marcado pelo interesse em lançar um olhar

diferenciado que seria capaz de atribuir emoção às imagens captadas, negando a herança

ligada ao registro de episódios cotidianos e apresentando uma alternativa ao cinema

norte-americano da época, considerado impessoal pelo cineasta, que estabelece o


36

princípio que rege sua produção quando declara que: "Mais que uma idéia, o cinema

traz ao mundo um sentimento" (CHARDERE apud BRETON, 1985)

A preocupação de Epstein com o cinema do ponto de vista teórico - apresentada

através de textos como Bonjour cinéma (Bom dia cinema, 1921), L'inteligence d'une

machine (A inteligência de uma máquina, 1946) e Le cinéma du diable (O cinema do

diabo, 1947), além de uma filmografia que compõe um manifesto para suas teorias -

denuncia o caráter vanguardista de sua obra que se revela autoconsciente e empenhada

no rompimento com a linguagem cinematográfica conhecida até então. É a partir destes

ensaios que Epstein revela, assim como Edgar Allan Poe, a visão que influenciou seu

próprio fazer artístico. O sentimento que o cineasta e teórico afirma ter sido trazido pelo

cinema abriga um pressuposto fundamental de sua estética cinematográfica, o da

personalização da imagem, segundo o qual a imagem a ser captada deveria adquirir

densidade sentimental, resultado do olhar parcial lançado pela câmera (1998).

A câmera, para Epstein, perderia a impassibilidade e transcenderia a função de

captadora de imagens e, além de um olho artificial, deveria ser um olho que contasse

também com certa subjetividade, chamada pelo teórico de "imaginação-robô". Tal

concepção consiste numa maneira de assimilação da realidade proposta pelo teórico:

esta deveria ser manipulada de forma a se compor não apenas um registro, mas uma

interpretação que a máquina cinematográfica teria capacidade de fornecer:

Diante desta máquina captadora de imagens ele se postou inquiridor,


sondando o estranho poder. [...] Os signos que Epstein descobre na
máquina cinematográfica conferem a essa engenharia mecânica a
capacidade de recriar o mundo. O material do cinema são as aparências
de realidade. Ora, partindo desse dado super-objetivo, essa estranha
máquina pode, com ele, criar o mais fabuloso dos mundos (SALLES,
1988, p. 62).
37

Com a intenção de realizar este comprometimento dos aspectos neutros da

realidade com sentimentos e/ou psicologia, Epstein se utiliza de diversos recursos, do

posicionamento de câmera à manipulação do tempo; procedimentos tratados em seus

ensaios como capazes de compor uma estética cinematográfica própria. Já no ensaio

Bonjour cinéma, de 1921, é possível verificar o esboço de princípios como o da

proximidade (utilização do primeiro plano) e a fotogenia aos quais o cineasta dedicou

sua atenção teórica:

O primeiro plano é a alma do cinema. Ele pode ser curto, pois a


fotogenia é um valor da ordem do segundo. Se ele for longo, não
experimentarei um prazer contínuo. [...] Até hoje nunca vi fotogenia
pura durante um minuto inteiro. É preciso, pois, admitir que ela é uma
faísca e uma exceção que se dá como um abalo. [...] O rosto que se
prepara para o riso é mais bonito que o próprio riso. (EPSTEIN apud
XAVIER, 1983, p. 278)

Embora colocados ainda de maneira um tanto extremista, estas concepções de Epstein

anunciam o desenvolvimento do conceito de fotogenia, que havia sido formulado pelo

cineasta Riciotto Canudo e desenvolvido por Louis Delluc. A fotogenia - termo

emprestado da fotografia que, em linhas gerais, designa aquilo que produziria uma

imagem nítida - em cinema teria implicações distintas, uma vez que este lida com o

movimento. Seria um conceito de difícil definição, ligado ao inefável que, para Delluc,

corresponderia ao aspecto poético dos objetos que apenas a linguagem cinematográfica

seria capaz de desvelar (SALLES, 1988, p.60) e, por isso, corresponderia ao específico

cinematográfico:

Com a noção de fotogenia, nasce a idéia do cinema-arte, pois, como


definir melhor a fotogenia indefinível do que dizendo: a fotogenia é
para o cinema o que a cor é para a pintura, o volume para a escultura: o
elemento específico dessa arte (EPSTEIN apud AUMONT, 2004,
p.92).
38

Epstein, então, se dedica a desenvolver melhor o aspecto da fotogenia,

determinando condições à sua existência:

[...] só são fotogênicos os aspectos móveis das coisas; 2) essa


mobilidade não é só especial, mas também temporal (os aspectos
fotogênicos de um objeto são o resultado de suas variações no espaço-
tempo); 3) além de móveis, os aspectos devem imantar-se de
personalidade [...] (SALLES, 1988, p.60)

O princípio da fotogenia subentende outros pressupostos teóricos apontados por

Epstein: personalização dos objetos, utilização de planos aproximados, aceleração e

retardamento da velocidade. Um simples objeto de mise en scène, para Epstein, ganha

"personalidade", ou seja, adquire status de personagem do filme, à medida que este é

captado em plano próximo. Dessa forma, tal objeto passa a sugerir algo importante à

compreensão da narrativa, obedecendo à premissa epsteiniana de que o cinema "não

mais narra, indica" (EPSTEIN apud AUMONT, 2004, p. 91) e, além disso, seria uma

máquina que consistiria em:

... um mecanismo dotado de subjetividade própria, uma vez que ele


representa as coisas não como elas são percebidas pelo olho humano,
mas, apenas, como ele mesmo as vê, de acordo com sua estrutura
particular, que lhe confere uma personalidade. (EPSTEIN apud
XAVIER, 1983, p.288)

A utilização do primeiro plano, apontada como condição necessária para a

fotogenia, se justifica pela propriedade que este procedimento tem, de acordo com

Epstein, de revelar facetas até então desconhecidas do objeto focalizado e de, com isso,

destacá-lo do conjunto do qual faz parte, atribuindo-o personalidade:

O primeiro plano lavra um outro tento contra a ordem familiar das


aparências. A imagem de um olho, mão, boca, que ocupe toda a tela –
não apenas porque ela é ampliada trezentas vezes, mas também porque
a vemos isolada da comunidade orgânica – reveste-se de uma espécie
de autonomia animal. Este olho, esses dedos, esses lábios já se tornam
39

seres que têm cada um seus próprios limites, seus movimentos, sua
vida, seu próprio fim. Eles existem por si mesmos. (EPSTEIN apud
XAVIER, 1983, p.284)

O tempo, que também constituiria um recurso revelador da fotogenia, segundo

as concepções do teórico, teria a propriedade de ser modelado pelo cinema, que

acumularia também capacidade de produzir tempo, já que conta com mecanismos

próprios para tal feito. A câmera lenta e os efeitos de aceleração, segundo Epstein,

trariam novas implicações ao objeto captado e, conseqüentemente, ao sentido do filme.

No ensaio L'inteligence d'une machine (1947), a reflexão sobre estes

procedimentos pode ser compreendida já através dos títulos dados às seções dedicadas

ao temas - "A aceleração do tempo vivifica e espiritualiza" e "O retardamento do tempo

mortifica e materializa" - que se relacionam diretamente com o efeito causado por cada

um destes recursos:

Numa projeção acelerada, a escala dos reinos é deslocada, -- variando


de acordo com a relação de aceleração – no sentido de uma maior
qualificação da existência. [...] Numa projeção lenta, ao contrário,
observa-se uma degradação das formas que, ao sofrerem uma
diminuição em sua mobilidade, perdem algo de sua qualidade vital.
(EPSTEIN apud XAVIER, 1983, pp. 291-292)

Mais uma vez percebemos o caráter vanguardista dos escritos epsteinianos, haja

vista a quantidade de filmes que até hoje lançam mão destes procedimentos (e de outros

que recorrem a recursos tecnológicos, mas que se apresentam igualmente empenhados

na manipulação do tempo) apontados ainda em 1947 como fatores relevantes à

atribuição de determinados efeitos à narrativa fílmica. É importante ressaltar que o

teórico se apodera do termo "tempo" de maneira aberta e poética, isto é, inventivamente

(AUMONT, 2004, p.41), não há pretensões de se utilizar do termo do ponto de vista


40

unicamente filosófico. O tempo no cinema seria, para Epstein, "pensado", seria

empregado de forma a se fazer perceptível ao espectador, a envolvê-lo de forma ativa

no processo de construção de sentido do filme:

Um outro mérito do cinema é multiplicar e abranger imensamente os


jogos da perspectiva temporal, levando a inteligência para uma
ginástica que lhe é sempre penosa: passar do absoluto arraigado a
instáveis condicionais. Neste ponto, ainda, esta máquina, que estica ou
condensa a duração, demonstrando a natureza variável do tempo, que
prega a relatividade de todos os parâmetros parece provida de uma
espécie de psiquismo. Sem essa máquina não veríamos materialmente o
que se poder ser um tempo cinqüenta mil vezes mais rápido ou quatro
vezes mais lento do que aquele em que vivemos. (EPSTEIN apud
XAVIER, 1983, p.289)

Dessa forma, grande parte dos procedimentos previstos por Jean Epstein

apresenta pontos de vista até então alternativos sobre a estética cinematográfica. Tais

procedimentos técnicos afetam a postura do espectador em relação à narrativa e recusam

o caráter de invisibilidade que a técnica cinematográfica assumia em função da

impressão de realidade com a qual a narrativa cinematográfica clássica se identifica.

Os escritos teóricos de Epstein abarcaram também a questão da relação entre cinema e

literatura. Em O cinema e as letras modernas, ensaio de 1921, o teórico trata da

questão, levando em consideração a literatura moderna:

A literatura moderna está saturada de cinema. Reciprocamente, esta


arte misteriosa muito assimilou da literatura. [...] Se um filme qualquer,
cujo realizador ignoro só conhece das letras a Academia e seus
consortes, nos faz pensar, apesar desse realizador e sem que ele o saiba,
na literatura moderna, é porque existe realmente entre esta literatura e o
cinema um natural intercâmbio que evidencia algo que vai além de um
parentesco. (EPSTEIN apud XAVIER, 19833, p.269)

Ressaltando uma provável semelhança entre cinema e literatura - que, segundo a

afirmação acima, torna-se perceptível mesmo sem intencionalidade do realizador -


41

Epstein trabalha na idéia de que cinema e literatura se encontrariam em oposição ao

teatro, pois, à época, grande parte dos filmes apresentava adaptações de peças de teatro.

Assim, ao longo do ensaio, desnuda características do cinema que o tornariam uma arte

superior em comparação com o teatro. A questão da proximidade, a possibilidade que o

cinema tem de valorizar detalhes relevantes que passariam despercebidos no teatro, a

capacidade que determinado filme tem de recriar a realidade de maneira a fazer com que

o espectador a penetre e a propriedade cinematográfica de narrar de diferentes maneiras

são aspectos apontados pelo teórico como elementos distintivos de superioridade do

cinema em relação ao teatro. Tal radicalismo é compreendido se for levado em

consideração o caráter renovador dos escritos de Epstein, que, assim como os

manifestos artísticos da vanguarda, assume uma postura de rompimento com o que era

produzido até então.

Mesmo diante desta tentativa de estabelecer o cinema como arte superior em

relação ao teatro, Epstein o põe em posição de igualdade com a literatura moderna e

lança uma idéia que, de forma geral contém um prenúncio dos aspectos tratados pela

questão da adaptação fílmica, ao afirmar que ambos devem superpor suas estéticas para

que consigam se manter mutuamente (XAVIER, 2003, p.270). Já em 1921, Jean Epstein

se mostra consciente de que a relação entre literatura e cinema compreende muito mais

uma interação entre ambos do que uma relação de perda para um dos dois, já

desbancando, de certa forma, a valorização da fidelidade como critério valorativo no

processo de adaptação fílmica e propondo a concepção de cinema do diabo, um cinema

autoconsciente, produto de reflexões estéticas que assumisse uma postura de desafio

diante de conceitos pré-estabelecidos e formas fixas do fazer cinematográfico e que se

empenhasse na busca de sua identidade enquanto obra de arte.


42

2.4 Literatura e Cinema: Adaptação fílmica

O caráter oscilante da relação entre literatura e cinema evidencia que suas

convergências e divergências funcionam como elementos intensificadores do processo

de interpenetração em que estes dois meios de expressão artística estão envolvidos.

Enquanto a literatura lida com a linguagem verbal através da qual atinge certo grau de

abstração e procura a formação de imagens e a construção de sentido, contando com

recursos (foco narrativo, descrições de ambientes, caracterização de personagens,

composição de atmosfera, utilização ou não de diálogos, ritmo, metáfora) cuja escolha

dependerá da intenção criadora; o cinema, trabalha com a imagem através de

procedimentos (fotografia, manipulação de planos variados, montagem, ritmo, mise en

scène e ainda a sonorização), que associados ou não à linguagem verbal são capazes de

orientar ou desorientar o espectador de acordo com as pretensões do realizador em

relação ao sentido do filme. Estes traços distintivos entre as modalidades artísticas em

questão podem gerar uma idéia de distanciamento entre as estéticas. Entretanto, entre

literatura e cinema narrativos, a narratividade apresenta-se como um traço de união que

neutralizaria o suposto caráter lacunar da relação cineliterária e possibilita a

interinfluência entre os dois discursos, já que

O texto fílmico narra freqüentemente uma história, uma seqüência de


eventos ocorridos a determinadas personagens num determinado espaço
e num determinado tempo, e por isso mesmo é tão freqüente e
congenial a sua relação intersemiótica com textos literários nos quais
também se narra ou se representa uma história (AGUIAR apud
CARDOSO, 2003, p. 63).

Essa interpenetração entre as modalidades artísticas em questão é perceptível já

em filmes que remetem ao período de formação da linguagem cinematográfica: D.W.

Griffith, responsável pelo estabelecimento da narrativa cinematográfica clássica,


43

inspirou-se no estilo de Charles Dickens na construção de um método de montagem e

de utilização dos planos em função dos caminhos apontados pela narrativa; atitude que

evidencia a influência que a literatura do século XIX exerceu sobre o primeiro cinema.

Em outro sentido, o impacto do surgimento e ascensão do cinema enquanto arte foi

refletido na literatura que ora assimilou, ora recusou a influência cinematográfica. O

estilo narrativo do cinema foi absorvido por autores como Ernest Hemingway e William

Faulkner (além de outros, que se afirmam influenciados pelo cinema) que apresentaram

uma alternativa à onisciência narrativa do romance clássico, valorizando, a exemplo do

cinema narrativo, mais o diálogo e o ponto de vista limitado de um personagem. Esta

mesma influência cinematográfica foi afastada por autores como James Joyce, que

valorizaram a vida interior das personagens, expressa pelo fluxo de consciência, em

detrimento da narrativa que é apresentada de maneira difusa e fragmentada (BRITO,

1996, p.15).

O mecanismo de trocas mútuas entre literatura e cinema parece se intensificar e

adquirir novas implicações quando se trata do processo de adaptação fílmica que, à

época da origem do cinema, servia ao interesse dos realizadores em - através da

associação de uma arte considerada jovem, com uma outra de status artístico

inquestionável e já amplamente aceita - estabelecer o cinema enquanto manifestação

artística e assim desvencilhá-lo do caráter de registro que marcava a maioria das

experiências fílmicas até então. Em vista disso, a Societé du Film d'Art (França, 1908),

dedica-se a realizar adaptações de temas literários como A Dama das Camélias,

estabelecendo uma tendência que foi seguida por alguns realizadores. Com o tempo,

chegamos a um contexto em que grande parte dos filmes lançados ou são adaptações

propriamente ditas, ou trazem consigo algum contato com a literatura na forma de

diálogos implícitos, alusões, citações ou referências.


44

A análise de filmes adaptados é realizada, algumas vezes, levando em

consideração a fidelidade como critério de qualidade: quanto mais a obra fílmica

conseguisse "reproduzir" os efeitos alcançados pelo texto literário (seja ele romance ou

conto) e "preservar" o sentido desta mesma obra, maior seria a probabilidade de ser

avaliada como uma boa adaptação. Diante de tal exigência, não é surpreendente que

uma quantidade mínima de filmes fosse considerada apta a receber esse conceito da

crítica em geral. Essa concepção, além de se ocupar unicamente de juízos de valor que

tornam a análise superficial e pouco relevante, desconsidera as particularidades da

linguagem literária e da cinematográfica. Além disso, percebe-se um preconceito que se

constrói a partir da idéia de que uma expressão artística "de massa" não seria capaz de

atingir a suposta superioridade da obra literária e se sustenta, segundo Robert Stam, por

pressuposições profundamente enraizadas, como:

1) antigüidade (o pressuposto de que as artes antigas são


necessariamente artes melhores); 2) o pensamento dicotômico (o
pressuposto de que o ganho do cinema constitui perdas para a
literatura); 3) iconofobia (o preconceito culturalmente enraizado
contra as artes visuais, cujas origens remontam não só às
proibições judaico-islâmico-protestantes dos ícones, mas também à
depreciação platônica e neo-platônica do mundo das aparências dos
fenômenos); 4) logofilia, (a valorização oposta, típica de culturas
enraizadas na "religião do livro", a qual Bakhtin chama de "palavra
sagrada" dos textos escritos); 5) anti-corporalidade, um desgosto
pela "incorporação" imprópria do texto fílmico, com seus
personagens de carne e osso, interpretados e encarnados, e seus
lugares reais e objetos de cenografia palpáveis; sua carnalidade e
choques viscerais ao sistema nervoso; 6) a carga de parasitismo
(adaptações vistas como duplamente "menos": menos do que o
romance porque uma cópia, e menos do que um filme por não ser
um filme "puro") (2006, p.20-21).

Com isso, percebemos que a atividade comparativa que trata o cinema em

função da literatura recairá sempre na avaliação negativa do filme adaptado em relação

à obra de origem.
45

Considerando, então, que literatura e cinema consistem em estéticas dotadas de

características específicas a cada um e que "ainda que sejam sistemas com inúmeros

pontos de contato, constituem obras de arte que valem por si" (CARDOSO, 2003, p.

68), o processo de adaptação apresenta deslocamentos que valorizam mais a idéia de

diálogo entre as obras do que a de reprodução do texto literário pelo cinema. Assim, a

adaptação fílmica analisada pelo viés da permutação de textualidades (STAM, 2006,

p.21) se sobrepõe à visão hierarquizante sobre a questão. Com o ensaio Pour un cinéma

impur: défense de l'adaptation, o teórico André Bazin classifica a noção de fidelidade

como ilusória e defende que o adaptador deve buscar equivalentes cinematográficos à

obra original; atitude que caracterizaria a adaptação como fiel ao "espírito" do texto

literário (BRITO, 1996, p.20).

Dessa forma, o texto fílmico adaptado constituiria uma interpretação de um

determinado texto de origem para um meio de expressão que envolve aspectos técnicos

e estéticos distintos. Sendo uma interpretação de uma obra anterior, conseqüentemente

apresenta a visão do cineasta sobre tal e resultam de um mecanismo de apropriação de

sentido do texto literário. Já que o texto fílmico é produto desta apropriação do literário,

os procedimentos de adaptação - relacionados diretamente com as escolhas operadas

pelo adaptador - refletirão uma série de fatores, desde a questão do estilo narrativo até

do contexto histórico e ideológico em que se inserem cada uma das obras. Um indício

dessas opções feitas pelos cineastas pode ser percebido através das seguintes tendências,

que dão conta da maneira através da qual a narração se opera:

Um filme pode exatamente estar mais atento à fábula extraída de um


romance, tratando de tramá-la de uma forma, mudando, portanto o
sentido, a interpretação das experiências focalizadas. Ou pode, no outro
pólo, querer reproduzir com fidelidade a trama do livro, a maneira
como estão lá ordenadas as informações e dispostas as cenas sem
mudar a ordem dos elementos. (XAVIER, 2003, p.66)
46

Além disso, o filme adaptado pode apresentar deslocamentos em relação ao

texto literário que resultam de uma necessidade de redimensionar aspectos do texto de

origem em nome da efetivação do processo de atribuição de sentido e da afirmação de

aspectos estéticos. Francis Vannoye estabelece categorias (redução, adição e

apropriação) através das quais este aspecto pode ser compreendido: a redução

consistiria na eliminação de elementos presentes no texto literário que não fossem

ligados diretamente à história na intenção de diminuir sua extensão e possibilitar seu

encaixe no tempo do filme. Os procedimentos operados pela redução seriam os resumos

(raccourcis) e cortes propriamente ditos e estariam mais relacionados ao caso da

adaptação de um romance, que compõe um gênero literário de maior extensão. A adição

acrescentaria elementos ausentes no texto primário ou dilataria os que já existissem e

que têm potencial cinematográfico e valor semântico. Já a apropriação compreenderia o

processo de assimilação da obra como um todo ou de um aspecto dela que passariam

por uma adaptação ao ponto de vista, à visão, à estética, à ideologia relacionados ao

contexto em que se dá o processo de adaptação (BRITO, 1996, p.23).

Os contextos histórico e ideológico são, de fato, alguns dos fatores que

influenciam as escolhas do adaptador e enfatizam a questão da apropriação da obra.

Robert Stam (2003, p. 45) cita o exemplo das "adequações estéticas às tendências

dominantes" que alguns filmes de Hollywood realizam no processo de adaptação na

tentativa de incrementar sua aceitabilidade pela indústria cinematográfica e pelo

público. Há também casos em que acontece a atualização: textos literários de uma época

determinada são transpostos para outro momento histórico, envolvendo questões que se

encontram na narrativa, redimensionando-as e adaptando-as ao momento em que se

passa a narrativa fílmica.


47

Todos esses procedimentos que compõem o processo de adaptação fílmica

chamam atenção para o caráter de dialógico dessa prática que se configura como uma

necessidade. O cinema, enquanto arte que mantém relações com diversos outros

aspectos como configurações sociais, tendências culturais e momento histórico, tem sua

sobrevivência atrelada a essa interação e, no caso da adaptação, não pode se submeter

ao escrutínio de "traições" ou "violações" do original. Afinal, o texto literário

[...] é uma densa rede informacional, uma série de pistas verbais que o
filme que vai adaptá-lo pode escolher, amplificar, ignorar, subverter ou
transformar. A adaptação cinematográfica de um romance [de um
conto, ou de outros gêneros literários narrativos] faz essas
transformações de acordo com protocolos de um meio distinto,
absorvendo e alterando os gêneros disponíveis e intertextos através do
prisma dos discursos e ideologias em voga, e pela mediação de uma
série de filtros: estilo de estúdio, moda ideológica, constrições políticas
e econômicas, predileções autorais, estrelas carismáticas, valores
culturais e assim por diante. (XAVIER, 2003, p.49)

Assim, a questão da adaptação fílmica consiste muito mais em um processo de

trocas mútuas do que de perdas em que as particularidades estéticas de cada uma das

mídias envolvidas deve ser levada em consideração enquanto aspectos que fomentam o

diálogo entre os textos e evidenciam o caráter esteticamente autônomo do texto fílmico.

Nestas condições, Robert Stam (2003) propõe a substituição de termos como

"infidelidade", "traição", "vulgarização" e "profanação", ligados a uma perspectiva

hierarquizante, por "dialogização", "recriação", "crítica" e "ressuscitação", que denotam

que o texto fílmico adaptado possui suas próprias implicações e é resultado de uma

postura de liberdade do adaptador em relação ao texto literário.


48

3 A queda da casa de Usher: conto

A queda da casa de Usher (The fall of the house of Usher) - conto publicado em

1840, na revista Burton's Gentleman Magazine e na coletânea Histórias Extraordinárias

(The Tales of the Grotesque a nd the Arabesque) - traz Roderick Usher, um homem que

vive isolado em sua mansão com sua única irmã, Madeline Usher, que, atormentado por

estranhos elementos e pela proximidade da morte de Lady Madeline, solicita a visita de

um velho amigo através do qual teremos acesso à história. Com a chegada do visitante,

tem início uma série de acontecimentos misteriosos, permeados por uma atmosfera

fantástica que se faz presente desde os primeiros momentos e se apresenta como aspecto

determinante não só das estratégias de construção textual, como também do processo de

atribuição de sentido ao texto.

Além disso, o conto apresenta aspectos discursivos que refletem algumas

concepções de Edgar Allan Poe em relação à construção do texto literário, sendo, uma

delas, a sua preferência pela forma narrativa breve. Tal preferência remonta à questão

da extensão, especificamente à brevidade - característica que, segundo Poe, "deve estar

na razão direta da intensidade do efeito pretendido" (POE, 1999, p.104) - que permitiria

o acesso ao texto em sua totalidade e, assim, proporcionaria um domínio mais intenso

da história sobre o leitor.

Esse domínio que o autor literário deveria exercer em relação à "alma do leitor"

(POE, 1976 p.47) diz respeito não a hierarquias, mas à necessidade de manter o

envolvimento do leitor com a história. O conto poeano, então, devido ao seu caráter

conciso, seria uma "máquina literária de criar interesse" (CORTÁZAR, 2006, p.122-

123) que obedeceria a duas das considerações fundamentais de seu autor com relação à
49

composição: o estabelecimento prévio de um efeito único a ser obtido e a mobilização

dos elementos textuais, desde o primeiro momento do texto, em função disso.

A "máquina" em questão põe o leitor desde o início da narrativa diante de

sensações e eventos que parecem desafiá-lo, convidá-lo a um processo de construção de

sentido diferenciado. O caráter excepcional dos elementos que se delineiam introduz um

"sentimento do fantástico", que segundo Cortázar:

(...) não reside tanto nas estreitas circunstâncias narradas, mas na sua
ressonância de pulsação, de palpitar surpreendente de um coração
alheio ao nosso, de uma ordem que nos pode usar a qualquer momento
para um de seus mosaicos para nos pôr um lápis ou um cinzel na mão.
(2006, p. 179)

As sensações resultantes do contato com as mais variadas nuances da história,

desde a descrição do espaço físico, até o jogo de opacidade e transparência do processo

narrativo trazem à tona questionamentos sobre a ordem dos acontecimentos, que nem

sempre encontram respostas objetivas. É a partir desta questão que se constitui o

fantástico: através da subversão do que se considera "real" que desencadeia no leitor a

dúvida e a insegurança diante de possíveis explicações para os fatos aos quais é exposto,

explicitando, dessa forma, a convivência próxima de elementos antes pertencentes a

noções diametralmente opostas.

Como vimos anteriormente, de acordo com Todorov, a sensação experimentada

pelo leitor virtual seria a de hesitação diante da ambigüidade, tanto dos elementos de

composição, como dos eventos diegéticos que se apresentam. Assim, o fantástico estaria

intimamente ligado à indefinição, à imprecisão e à duplicidade, mas, sobretudo, à

maneira pela qual o sobrenatural insurge em meio ao familiar, suscitando, de acordo

com Filipe Furtado:


50

[...] uma constante e nunca resolvida dialética entre ele e o mundo


natural em que irrompe, sem que o texto alguma vez explicite se aceita
ou se exclui inteiramente a existência de qualquer deles [...] a primeira
condição para que o fantástico seja construído é a de o discurso evocar
a fenomenologia meta-empírica de uma forma ambígua e manter até o
fim uma total indefinição perante ela. [...] para além da oposição básica
entre o mundo empírico e o mundo meta-empírico, qualquer narrativa
fantástica faz surgir e mantém uma série de elementos contraditórios de
mais diversa índole, como "real"/imaginário; racional/irracional;
verossímil/inverossímil;transparência/ocultaçãoespontaneidade/sujeição
à regra; valores positivos/valores negativos [...] Porém, longe de se
decidir por um deles, a narrativa fantástica deixa permanecer a dúvida,
nunca definindo uma escolha e tentando comunicar ao destinatário
idêntica irresolução perante tudo que lhe é proposto. (1980, p.36)

Furtado define o termo fenomenologia meta-empírica como uma série de

acontecimentos cuja explicação "está para além do que é verificável ou cognoscível a

partir da experiência" (p. 20), isto é, incidentes que desafiam a posição de relativa

estabilidade do leitor em relação à história, já que fogem ao que é considerado natural.

Em A queda da casa de Usher, tal manifestação meta-empírica é anunciada e preparada

por diversos aspectos que explicitam essa ambigüidade da qual sobrevive o fantástico e

que dialogam intensamente com o incidente principal, mantendo sempre a indefinição

em relação à natureza do que se mostra.

Esta mobilização de elementos textuais em prol de um efeito a ser atingido

evoca a teoria do próprio Allan Poe, na qual Furtado parece apoiar sua visão sobre a

construção do discurso fantástico:

[...] todos os recursos da narrativa devem ser colocados ao serviço


dessa permanente incerteza entre os dados objectivos e familiares que a
experiência se habitou a apreender e a ocorrência, também apresentada
como inegável de fenômenos ou entidades completamente alheios à
natureza conhecida. Assim, para além das funções particulares que
porventura desempenhem no contexto de cada narrativa, todos esses
elementos são nela organizados de modo a propiciarem a construção do
gênero, desenvolvendo, portanto, uma influência mais ou menos
acentuada na reiteração e ampliação do debate que a natureza ambígua
daquele suscita. (1980, p. 37)
51

Com A queda da casa de Usher é possível perceber a concentração dos mais

diversos recursos (da seleção vocabular à escolha da instância narrativa) em prol da

construção (e da manutenção) de um efeito, de uma atmosfera em que predomina a

dúvida, a ambigüidade e a perplexidade diante da ruptura da ordem natural dos

acontecimentos cotidianos: uma atmosfera fantástica.

3.1 O mundo de Usher: a configuração espacial e o fantástico

O conto A queda da casa de Usher8 é permeado por uma atmosfera diretamente

ligada à ordem dos acontecimentos e à configuração insólita do espaço, aspectos que

mobilizam elementos e recursos discursivos A ação tem início com a chegada do

visitante, que acumula a função de narrador da história, às imediações da mansão. A

partir deste momento é possível perceber a formação de um clima de opressão ao longo

das primeiras descrições das imediações da casa:

Durante um dia inteiro de outono, escuro, sombrio, silencioso, em que


as nuvens pairavam, baixas e opressoras, nos céus, passava eu, a
cavalo, sozinho, por uma região singularmente monótona - e, quando as
sombras da noite se estendiam, finalmente me encontrei diante da
melancólica Casa de Usher. Não sei como foi - mas, ao primeiro olhar
lançado à construção, uma sensação de insuportável tristeza me invadiu
o espírito (POE, 1978, p. 7)9

Este artifício narrativo de dedicar certo esforço em descrever aspectos físicos e

sensações pode entrar em conflito com as características do gênero literário conto

8
Em se tratando de um trabalho escrito em português, optamos pela utilização da tradução para as
citações ao longo do texto. No entanto, a versão original foi utilizada como fonte principal para o estudo,
razão pela qual é fornecida como nota de rodapé.
9
During the whole of a dull, dark and soundless day in the autumn of the year, when the clouds hung
oppressively low in the heavens, I had been passing alone, on horseback, through a singularly dreary tract
of country, and at length found myself, as the shades of the evening drew on, within view of the
melancholy House of Usher. I know not how it was, but with the first glimpse of the building, a sense of
insufferable gloom pervaded my spirit.
52

(apontados, inclusive, pelo próprio Poe), mas, ao invés disto, estes elementos estão

semanticamente vinculados com os eventos que estão por vir. A dedicação à

configuração do ambiente corresponderia, então, a um "falso rodeio", conforme

explicita Julio Cortázar:

[...] Todo rodeio é desnecessário sempre que não seja um falso rodeio,
ou seja, uma aparente digressão por meio da qual o contista nos agarra
desde a primeira frase e nos predispõe para recebermos em cheio o
impacto do acontecimento. (2006, p.124)

A descrição do dia da chegada do narrador reserva algumas antecipações do teor

dos acontecimentos que este testemunhará. Encontrar seu destino em "um dia de

outono, escuro, sombrio, silencioso" traz algumas nuances relevantes ao sentido do

texto. A estação do ano outono, fall em inglês (além de autumn, como o autor utiliza na

versão original), apresenta o primeiro indício do que transcorrerá, podendo indicar tanto

a queda física da casa, como a decadência dos indivíduos que a habitam, como também

evocar a idéia de morte e a possibilidade de retorno, já que o outono é época de

renovação, durante a qual as folhas caem das árvores para iniciar um novo ciclo de vida,

coincidindo, assim, com os incidentes narrativos mais impactantes da narrativa: morte e

retorno de Madeline Usher e queda da mansão.

Já o aspecto sombrio, escuro e silencioso do dia, além de auxiliar na composição

da atmosfera que se manifesta desde o início, funciona como um anúncio do caráter

obscuro não só da construção em si, mas da própria família Usher, como também das

relações existentes entre tais indivíduos e dos episódios protagonizados por eles. A

presença de nuvens caracterizadas como "opressoras" no céu fornece o primeiro contato

do visitante com a sensação que o acompanhará em grande parte do relato, revelando-se

pela primeira vez através da "insuportável tristeza" que o contato visual com a casa
53

desencadeia no narrador. O trecho em questão traz ainda a informação de que o

visitante, que passara o dia todo a caminho, chega à casa quando já é noite. Tal aspecto,

além de revelar o isolamento em que se encontrava a Casa de Usher, reforça o tom de

obscuridade: a noite, relacionada com a escuridão, diminui a visibilidade e cria dúvidas

a respeito do que se passa. Por conseguinte, é possível inferir que a incerteza, assim

como a opressão e a melancolia, também integrarão atmosfera dos acontecimentos e a

gama de sensações que afetarão o narrador-personagem e, por conseqüência, o leitor.

Esta apresentação do cenário externo da casa de Usher, composto através de

elementos que se relacionam entre si e se organizam em função da intenção do autor em

construir um ambiente marcado por determinadas nuances, manifesta claramente o

mecanismo de composição de Poe, no qual "cada palavra deve confluir, concorrer para

o acontecimento" (CORTÁZAR, 2006, p.122).

Além disso, a impressão gerada pela utilização de expressões representativas

como "monótono/dull" "melancólica/melancoly" "sombrio/gloom", "outono/fall", a

relação que há entre o sentimento incomum que acomete o personagem e a natureza

ambígua e inusitada dos eventos que ainda serão narrados denunciam o vínculo desses

primeiros momentos do conto com o seu desenvolvimento e, sobretudo, com o

desfecho, aspecto explicado pela estratégia de composição poeana exposta em A

filosofia da composição:

Nada é mais claro do que deverem todas as intrigas, dignas deste nome,
ser elaboradas em relação ao epílogo, antes que se tente qualquer coisa
com a pena. Só tendo o epílogo constantemente em vista, poderemos
dar ao enredo seu aspecto indispensável de conseqüência, ou de
causalidade, fazendo com que os incidentes e, especialmente, o tom da
obra tendam para o desenvolvimento de sua intenção (POE, 1999,
p.101).
54

As descrições da atmosfera que circundava a casa continuam até que o narrador

encontra, finalmente, a sensação de melancolia que se fará presente, de forma mais ou

menos intensa e evoluindo para outros sentimentos, ao longo de sua visita:

Era uma sensação de alguma coisa gelada, um abatimento, um aperto


no coração, uma aridez irremediável de pensamento que nenhum
estímulo da imaginação poderia elevar ao sublime. Que era aquilo - que
detive-me a pensar -, que era aquilo que tanto me enervava, ao
contemplar a Casa de Usher? Era um mistério de todo insolúvel; não
podia lutar contra as sombras visões que se amontoavam sobre mim
enquanto pensava naquilo (POE, 1978, pp. 7-8)10

Como vimos, vítima de sensações mórbidas e impedido de combatê-las, o

narrador lança um questionamento sobre o caráter insólito das impressões que a simples

contemplação da casa ocasionava e, chegando à conclusão de que se tratava de um

mistério insolúvel, explicita a dúvida que se impõe já nos primeiros momentos, antes

mesmo de qualquer evento de impacto se esboçar. De certa forma, questões desta

mesma natureza permearão toda a narrativa e, assim como o questionamento inicial do

narrador, têm função de construir o tom de dubiedade presente na história. Um elemento

revelador se apresenta quando o visitante, em busca de alívio para as impressões que a

visão da Casa de Usher lhe causava, contempla o lago que rodeava a propriedade e se

depara com uma imagem que lhe causa sensações opostas à que esperava encontrar:

[…] Dirigi meu cavalo até a margem escarpada do negro e sombrio


lago, que estendia o seu tranqüilo brilho junto à casa, e fitei, mas com
um estremecimento ainda mais vivo do que antes, as imagens
reconstituídas e invertidas dos carriços cinzentos, dos troncos
fantasmagóricos e das janelas que se assemelhavam a olhos vazios
(POE, 1979, p. 7)11

10
There was na iciness a sinking, a sickening of the heart – an unredeemed dreariness of thought which
no goading of the imagination could torture into aught sublime. What was this – I paused to think – what
was that so unnerved me in contemplation of the House of Usher? It was a mistery all insoluble; nor could
I grapple with shadowy fancies that crowded upon me as I pondered. (POE, 1961, pp. 1-2)
11
[...] I reined my horse to the precipitous brink of a black and lurid tarn lay in unruffled lustre by the
dwelling, and gazzed down – but with a shudder even more thrilling than before – upon the remodeled
55

O lago, além de ter um aspecto sombrio, reflete a paisagem que tanto incomoda

o narrador e altera a imagem da própria casa. O fato de tal reflexo ser invertido poderia

ser considerado como normal, já que se trata de um fenômeno cientificamente

explicado. Entretanto, com relação ao texto, intensifica ainda mais o sentimento de

opressão que afeta o narrador. As "imagens reconstituídas e invertidas" que se projetam

nas águas trazem a duplicação e, ao mesmo tempo, a distorção dos elementos externos à

casa, implicando, então, a necessidade de se lançar um olhar diferenciado sobre os

acontecimentos do conto, que a exemplo do que postulou Poe, consistem muito mais em

sugestões do que em fatos que se esgotam em si mesmos, acrescentando, dessa forma,

maior complexidade ao texto, já que "certa soma de sugestividade [...] é que dá a uma

obra de arte tanto daquela riqueza" (POE, 1999, p.113). As imagens invertidas da casa e

da paisagem reforçam também a singularidade das sensações que surgiam no visitante e

indicam o teor insólito dos eventos narrativos.

O aspecto ambíguo, estabelecido desde o início da narrativa, se intensifica nos

momentos em que o visitante dá conta do aspecto externo da Casa de Usher:

Afastando de meu espírito o que não podia ser senão um sonho,


examinei mais atentamente o aspecto real da casa. Sua característica
principal parecia ser a de uma excessiva antiguidade. A descoloração
causada pelos séculos tinha sido grande. Minúsculos cogumelos
estendiam-se por todo o exterior, perdendo, em emaranhada e fina
tessitura, dos beirais. Mas nada disso implicava qualquer estrago
extraordinário. Nenhuma parte da alvenaria desmoronara, e parecia
haver uma violenta contribuição entre aquela ainda perfeita adaptação
das partes e o estado das pedras desgastadas. [...] Afora essa indicação
de ostensiva decadência, a casa não apresentava sinal algum de
instabilidade (POE, 1979, p. 10)12

inverted images of the gray sedge, and the ghastly tree-stems, and the vacant eye-like windows. (POE,
1961, p. 2)
12
Shaking off from my spirit what must have been a dream, I scanned more narrowly the real aspect of
the building. Its principal feature seemed to be that of an excessive antiquity. The discoloration of ages
had been great. Minute fungi overspread the whole exterior, hanging in a fine web-work form the eaves.
56

A convivência próxima de aspectos aparentemente opostos como antigüidade e

integridade; decadência e estabilidade, sugere um clima de dúvida e um jogo de

oposições responsável pelo processo de construção da ambigüidade no texto, já que não

se apresenta nenhuma solução a tal oposição. Essa relação entre elementos

supostamente opostos dialoga diretamente com a construção do fantástico, que se

apoiaria na coexistência e na diluição de limites entre conceitos pré-estabelecidos. Com

a utilização da palavra web-work, temos não só a ilustração de um aspecto da casa, como

também uma sugestão de como se compõe o discurso fantástico e, conseqüentemente,

como se dará o processo de significação: através do desmembramento de uma

verdadeira rede composta por elementos cuja coexistência parecia, até então,

impossível. A continuação descrição da casa de Usher traz um elemento bastante

representativo para a narrativa:

Talvez o olhar de um observador metiduloso pudesse ter descoberto


uma fenda moral perceptível, que, estendendo-se desde o telhado da
fachada, descia em zigue-zague até perder-se nas águas sombrias do
lago. (POE, 1979, p.10)13

Ao perceber a existência de uma fissura, ou fenda na estrutura do prédio, o

narrador destaca que apenas o olhar de um "observador mais meticuloso" (POE, 1981,

p. 10) remarcaria este detalhe. A imagem da fenda, além de destituir a aparente

resistência da construção, é um índice de que até mesmo os aspectos pouco perceptíveis

ou aparentemente pouco relevantes devem ser considerados como parte importante da

Yet all this was apart from any extraordinary dilapidation. No portion of the masonry had fallen; and
there appeared to be a wild inconsistency between its still perfect adaptation of parts, and the crumbling
of the individual stones. […] Beyond this indication of extensive decay, however, the fabric gave little
token of instability. (POE, 1961, p. 4)
13
Perhaps the eye of a scrutinizing observer might have discovered a barely perceptible fissure, which,
extending from the roof of the building in front, made its way down the wall in a zigzag direction, until it
became lost in sullen waters of the tarn. (POE, 1961, p. 4)
57

história, relacionando-se, neste caso, diretamente com o desfecho. Dessa forma, a

exposição dos elementos que compõem o ambiente no conto de Poe ultrapassa o caráter

meramente descritivo. Tais aspectos físicos e as sensações provocadas por eles

coincidem com os eventos e até mesmo com a natureza da narrativa, relacionando-se

não apenas com o princípio poeano que dá conta da mobilização dos elementos textuais

na construção de um efeito, mas também denunciando o atrelamento entre a expressão

verbal e o plano narrativo do texto.

Os primeiros momentos do conto são repletos de descrições que, à primeira

vista, podem parecer desnecessárias ou excessivas. Entretanto, o olhar de um

"observador mais meticuloso" é capaz de considerar tais elementos como fundamentais

à narrativa, uma vez que, segundo Lúcia Santaella:

[...] os cenários não têm, nos contos de Poe, uma função simplesmente
ilustrativa. Não são halos para o acontecimento. Estão
indissoluvelmente atados ao tom, à situação, às modulações temáticas.
São molduras tonais que criam sintonias e isomorfismos entre o que se
conta, o modo como é contado e o efeito que se vai consubstanciando.
(1986, p. 155)

Dessa forma, percebe-se que o conto de Poe compõe um sistema complexo em

que determinados elementos refletem, antecipam, anunciam e dialogam com os eventos

narrativos ou consistem em índices que intensificam a ambigüidade que sustenta a

atmosfera fantástica ao longo do texto. Em se tratando da composição poeana, sabe-se

que haverá a mobilização dos aspectos discursivos em sua totalidade em função da

construção de um efeito. Assim, deve-se considerar desde aspectos lexicais até recursos

discursivos típicos da narrativa.

No que diz respeito à seleção vocabular, um exemplo merece destaque: a escolha

do sobrenome Usher para designar a estranha família. Segundo o narrador, o termo


58

house of Usher era dotado de dupla configuração, denominando tanto a estirpe, como a

casa, evidenciando uma relação de simbiose entre a casa e seus habitantes e a influência

que a mansão e sua atmosfera exercem sobre a família. O fato de a palavra usher conter

os pronomes pessoais he (ele), she (ela), us (nós) (como percebe Ricardo Araújo)

evidencia o aspecto multifacetado do vocábulo e até mesmo da narrativa, indicando a

fusão entre ele, ela e nós, ou seja, podendo indicar que, assim como as noções de real e

ilusório, os personagens da história (neste caso, Roderick, Madeline) também podem se

confundir, vítimas de intensa relação que preservam, chegando até mesmo a formar um

só. Com relação às idéias de real e ilusório, a fusão entre dois elementos encontrada na

palavra usher pode indicar também a convivência próxima e o apagamento de limites

entre estas duas noções na narrativa.

Além do aspecto anagramático da palavra, o significado do vocábulo usher

deflagra outras possibilidades: enquanto verbo, o vocábulo usher significa "introduzir",

"anunciar", "conduzir" "acompanhar"; enquanto substantivo, pode ser traduzido como

"porteiro" "indicador de lugar". Ambos os significados transmitem idéias vinculadas à

relação visitante/anfitrião: a casa de Usher e o próprio Roderick introduzirão o narrador

em um mundo que escapa do senso comum, ao mundo de Usher, permeado de

opacidades duplicidades, e de subversões, como também explicita Araújo:

[...] Usher aponta para o verbo introduzir e para a figura guardião,


porteiro, guardião do guardião, Usher do Usher ou a casa do Usher, ou
ainda o domínio da linhagem linear do varão. E, ainda em outro
sentido, usher (introduzir) coloca na mão do leitor a chave para
desvendar as cifras usherianas do interior do texto. (2002, p. 108)

Assim como Roderick, a atmosfera da casa e os eventos narrativos introduzem o

narrador nesse mundo que escapa ao familiar, o narrador, por sua vez, será o veículo

que conduzirá o leitor a essa esfera. Enquanto visitante que testemunha e participa da
59

história, é a partir do ponto de vista deste personagem que o leitor percorrerá a casa e

tomará conhecimento dos incidentes que lá decorrem.

3.2 O guardião do mundo de Usher: o narrador homodiegético

A narrativa fantástica caracteriza-se como um tipo de construção literária em que

os mais diversos artifícios e recursos literários envolvem-se na composição de

determinado efeito de leitura. Elementos comuns a outros gêneros literários, no

fantástico, funcionam como verdadeiros ilusionistas, aspectos discursivos que, ao

mesmo tempo em que propiciam o envolvimento do leitor com os acontecimentos que

desafiam o senso comum, não descartam a possibilidade de uma explicação racional

para tais enigmas. Dessa coexistência entre duas possibilidades de explicação, surge a

perplexidade do leitor diante de sua incapacidade em decidir por uma delas,

perpetuando, assim, a ambigüidade apresentada.

A concentração de elementos e recursos discursivos em nome de um efeito

envolve diretamente a questão da adesão do leitor virtual ou narratário, termos que

correspondem ao receptor do discurso, não enquanto leitor real, mas enquanto figura

implícita ao texto que propõe ao leitor real determinadas reações à fenomenologia meta-

empírica apresentada, cabendo a este último acatá-las ou não.

A escolha da voz narrativa compreende mais um esforço em função das

sensações que devem afetar o leitor ao longo da narrativa. Em A queda da casa de

Usher, a figura do narrador coincide com a de testemunha e participante dos fatos: a

narrativa só tem início a partir da chegada do visitante à mansão e, enquanto

coadjuvante de Roderick Usher, permite o acesso ao que se passa no lugar. Inicialmente,

tal personagem se ocupa em apresentar a si próprio, em explicar as circunstâncias que o


60

levaram ao espaço da narrativa e em fornecer informações necessárias para que o

narratário o aceite como guia do universo de Usher:

[…] propunha-me a permanecer naquela lôbrega mansão. Seu


proprietário, Roderick Usher, tinha sido um de meus joviais
companheiros de infância; mas haviam transcorrido muitos anos desde
o nosso último encontro. (POE, 1978, p. 8)14

Sendo, portanto, um personagem secundário que acumula a função de narrador,

a instância narrativa de A queda da casa de Usher pode ser classificada, de acordo com

as categorias narratológicas de Gerard Genette, como narrador homodiegético:

entidade que veicula informações advindas da sua própria experiência


diegética; quer isto dizer que, tendo vivido a história como personagem,
o narrador retirou daí as informações de que carece para construir o
relato, assim se distinguindo do narrador heterodiegético, na medida em
que este último não dispõe de um conhecimento direto. Por outro lado,
embora funcionalmente se assemelhe ao narrador autodiegético, o
narrador homodiegético difere dele por ter participado na história não
como protagonista, mas como figura cujo destaque pode ir da posição
de simples testemunha imparcial a personagem secundária
estreitamente solidária com a central. (REIS & LOPES, 1988, p. 124)

A adoção deste tipo de narrador, assim como a utilização de outras estratégias

discursivas, corresponde ao principal traço distintivo da narrativa fantástica: a

irresolução da dúvida que emerge dos eventos que se apresentam. O narrador

homodiegético implica características convenientes à composição/manutenção da

dualidade do discurso fantástico - principalmente no que se relaciona com o caráter

limitado de seu ponto de vista, resultante de sua representatividade na história - como

afirma Todorov:

14
[…] in this mansion of gloom I now proposed to myself a sojourn of some weeks. Its proprietor,
Roderick Usher, had been one of my boon companions in boyhood; but many years had elapsed since our
last meeting. A letter, however, had lately reached me in a distant country – a letter from him – which, in
its wildly importunate nature, had admitted of no other than a personal reply. (POE, 1961, p. 2)
61

[...] o narrador representado convém ao fantástico pois facilita a


necessária identificação do leitor com as personagens. O discurso deste
narrador possui um estatuto ambíguo [...] quando concerne ao narrador,
o discurso se acha aquém da prova de verdade; quando à personagem,
deve se submeter à prova. (TODOROV, 2004, p.94)

O narrador implicado na ação, sobretudo enquanto narrador homodiegético,

também é apontado por Furtado como a voz narrativa mais característica do fantástico:

O narrador mais freqüente do género fantástico é do tipo extradiegético,


situando-se, desse modo, no que Gerard Genette chama de primeiro
nível narrativo. [...] Já sob a perspectiva da relação que mantém com a
intriga por ele relatada [...] o narrador mais comum no género é [...]
aquele que coincide com uma personagem. Trata-se, portanto, de uma
figura com dupla incumbência, de um narrador-actor, que na maioria
das vezes, coincide com um comparsa e não propriamente com o
protagonista. Por isso, [...] é em geral homodiegético [...]. (1980, p.
110)

A presença do narrador homodiegético no conto fantástico subverte, de certa

forma, o aspecto mais natural de tal instância narrativa, já que, além de oferecer um tom

mais subjetivo à história, permite uma maior aproximação com o leitor virtual,

adquirindo, assim, uma certa credibilidade que será fundamental à manutenção da

atmosfera fantástica. Tal adesão do leitor às impressões do narrador resulta do caráter

testemunhal através do qual a narrativa se constrói: amparado pelo fato de ter

participado dos incidentes, e de tê-los presenciado o narrador homodiegético parece

realizar um relato confiável. No entanto, a voz narrativa em questão atua tanto em

função de confirmar a fenomenologia meta-empírica, como de enfocar possíveis

explicações para tais eventos.

O visitante que nos mostra a casa de Usher é uma figura sobre a qual o leitor não

recebe muitas informações. Sabe-se apenas que se trata de um amigo de infância de

Roderick que fora convidado à mansão depois de alguns anos de ausência. Tal lacuna
62

implica a falta de conhecimento do narrador em relação a esse tempo em que esteve

distante do amigo, agravada ainda mais pelo comportamento reservado do protagonista.

Assim, o narrador-visitante tem pouco acesso às informações anteriores à sua chegada,

realizando um relato de caráter parcial, já que, além de se tratar de um sujeito que está

envolvido com os eventos, tal personagem ainda está em posição de subalternidade em

relação a Roderick. Tudo isso contribui para a limitação de seu conhecimento e permeia

a narração de um tom de incerteza. Sendo participante da história, tal narrador só está

apto a contar o que fez parte de sua experiência, o que presenciou (e mesmo assim, o

relato pode se contaminar das impressões particulares desse sujeito):

Adotada uma posição secundária mais ou menos marcada, o narrador


homodiegético subordina a construção do relato ao respeito por essa
atitude de subalternidade [...]. O que significa que o narrador
homodiegético não só patenteia a oscilação entre dois eus (eu-narrador
e eu-narrado; narrating self e experiencing self, segundo Stanzel - 1971:
60-61), como pode também referir-se à distância mais ou menos cavada
que o separe do protagonista. (REIS & LOPES, 1988, p.125)

A apresentação do protagonista pelo narrador ressalta o caráter subjetivo e

comprometido da enunciação. Com base na imagem de Roderick Usher dos tempos de

infância, o visitante traça o novo perfil do anfitrião:

À minha entrada, Usher levantou-se do sofá em que estava estendido


por completo, e me saudou com calorosa vivacidade, na qual havia -
conforme pensei a princípio - exagerada cordialidade, o obrigado
esforço de um homem da sociedade ennuyyée. [...] olhei com um
sentimento misto de piedade e pavor. Seguramente, jamais homens
algum sofrera tão terrível transformação, em tão curto espaço de tempo,
como Roderick Usher! Era-me difícil persuadir-me de que a identidade
do homem abatido que tinha à minha frente era a mesma da de meu
companheiro de infância. (POE, 1978, p. 11)15

15
Upon my entrance, Usher arose from a sofá on which he had been lying at full lenght, and greeted me
with a vivaccious warmth which had musch in it, I at first thought, of an overdone cordiality of the
constrained effort of the ennuyé man of the world. A glance, however, at his countenance convinced me
of his perfect sincerity […] I gazed upon him with a feeling half of awe. Surely, man had never before so
terribly altered, in so brief a period, as Roderick Usher! It was a difficulty that I could bring myself to
admit the identity of the wan being before me with the companion of my boyhood. (POE, 1961, p. 5)
63

Tal visão - comprometida com dados do passado, contaminada de impressões

conflitantes sobre a personalidade do protagonista e permeada de sensações

essencialmente pessoais, como o "sentimento misto de piedade e pavor" que atinge o

visitante ao se deparar com o amigo - se relaciona diretamente com o aspecto parcial da

homodiegese que orienta, inclusive o delineamento das personagens:

[...] a análise do discurso narrativo de um narrador homodiegético


valorizará também os termos em que se configura a imagem do
protagonista, a partir de um critério de observação genericamente
testemunhal e exterior; daí que assuma, neste caso, um especial
destaque a análise dos registros da subjetividade, na medida em que
neles se projetam os juízos que o narrador homodiegético perfilha.
(REIS&LOPES, 1988, p.128)

Assim, através de seu ponto de vista peculiar, o companheiro de Usher dá conta

de uma atmosfera que o contaminava de sensações estranhas, denunciando certo grau de

envolvimento que o desabilita a realizar um relato imparcial e monossêmico. Como

reflexo do seu crescente envolvimento com a atmosfera do ambiente, surgem

acontecimentos sobre os quais paira a dúvida se de fato aconteceram ou se se tratam de

devaneios do narrador, já contaminado ou influenciado pelo terror que tomava conta de

seu amigo e pela atmosfera lúgubre da casa. O próprio narrador mostra-se incapaz de

decidir pelo caráter das sensações que o afetam:

O sono não queria aproximar-se de meu leito, enquanto passavam e


repassavam as horas. Lutei por afastar, por meio do raciocínio, o
nervosismo que se apoderara de mim. Procurei convencer-me de que
muito, senão tudo, do que sentia era devido à influência perturbadora
do sombrio mobiliário do aposento - das negras e esfrangalhadas
cortinas que, agitadas pelo sopro de uma tempestade que se iniciava,
oscilavam de um lado para outro nas paredes e farfalhavam inquietas
em torno dos adornos do leito. [...] Mas meus esforços foram em vão.
Irreprimível tremor invadiu, pouco a pouco, o meu espírito - e, no fim,
64

pousou sobre o meu coração um verdadeiro pesadelo de sobrassaltos


sem causa. (POE, 1978, p.22)16

Enfatizando a influência do lugar e do seu "mobiliário", oscilando entre uma

tendência racional e a total entrega à sensação de crescente terror - ao buscar explicação

para o que sente nessa influência - o visitante ressalta ainda mais sua carência de

informações com relação ao que se passa na casa de Usher. Ao mesmo tempo em que

parece ser orientado pelo ceticismo, ignora explicações contundentes para suas

sensações, compondo uma escolha conveniente à construção e a permanência da

ambigüidade no conto, já que:

[...] o conhecimento total dos meandros da intriga por parte dele pode
ser desfavorável ao equilíbrio do gênero. Com efeito, se tal
conhecimento transparecer demasiado na narração (sob forma de
explicações minuciosas ou previsões sempre correctas do evoluir da
acção, por exemplo) pode fazer perigar a necessária ambigüidade por
conferir desigual peso às duas interpretações possíveis da história (a
natural ou a sobrenatural). (FURTADO, 1980, p. 112)

Em alguns momentos da narração, o visitante omite informações tanto pelo fato

de tais dados chegarem a ele de forma nebulosa ou mesmo pelo interesse narrativo em

sonegar elementos que poderiam apresentar possíveis soluções ao mistério de Usher,

como é possível perceber no trecho em que o visitante trata de uma das questões

fundamentais da trama, o aspecto mental de Roderick:

Também tomei conhecimento, a intervalos, por insinuações


interrompidas e ambíguas, de outra particularidade singular de sua
condição mental. Estava acorrentado por certas impressões
supersticiosas relativas à mansão em que vivia, de onde, durante muitos

16
Sleep came not near to my couch – while the hours waned away. I struggled to reason off the
nervousness which had dominion over me. I endeavoured to believe that much, if not all oh what I felt,
was due to bewildering influence to gloomy furniture of the room – of the dark and tattered draperies,
which, tortured into motion by the breath of a rising tempest, swayed fitfully to and from upon the walls
[…] An irrepressible tremour gradually pervaded my frame; and, at length, there sat upon my very heart
of utterly causeless alarm. (POE, 1961, p. 15)
65

anos, não ousara sair... relativos a uma influência cuja suposta força era
por ele expressa em termos demasiados sombrios para serem aqui
repetidos [...] (POE, 1979, p. 13)17

É através dessa sonegação de informações que o clima de dúvida vai se

intensificando: a voz narrativa é utilizada de acordo com as intenções criadoras,

envolvendo o leitor virtual em uma história permeada de lacunas a serem preenchidas

com base em dados sempre imprecisos.

Todos estes aspectos são essenciais para a atribuição de sentido ao texto. A

homodiegese consiste num jogo de claro e escuro que transforma a narrativa num jogo

no qual o leitor não tem acesso a todas as informações diegéticas, mas pode encontrar

ao longo da trama alguns dados que servirão ao processo de construção de sentido.

O fato de o conto A queda da casa de Usher ser narrado por um personagem, de

que tal sujeito está inserido num ambiente em que predomina uma atmosfera fantástica

e de que este mantém uma relação de subalternidade em relação ao personagem central

da história acentua ainda mais o caráter misterioso e ambíguo da narrativa. O narrador é

uma testemunha do que se passa na casa, realiza um relato repleto de ambigüidades, já

que não tem acesso aos fatos anteriores à sua chegada: como o que teria acontecido a

Madeline antes de ser acometida do misterioso mal ou quais os motivos de Roderick

para desenvolver tamanho terror em relação à casa de Usher.

O narrador, portanto, assumirá a função de um sentinela do mundo

pretensamente fantástico que se constrói. Tal qual um guardião, orienta o narratário ou

17
I learned, moreover, at intervals, and through broken and equivocal hints, another singular feature of
his mental condition. He was enchained by certain superstitious impressions in regard to the dwelling
which he tenanted, and whence, for many years, he had never ventured forth – in the regard to an
influence whose supposituis force was conveyed in terms too shadowy here to be re-stated […] (POE,
1961, p. 7)
66

leitor virtual em relação ao que se passa. Entretanto, realiza essa tarefa de maneira

parcial: só revela o que é conveniente à composição de um efeito de perplexidade e o

que faz parte de seu conhecimento, também limitado, sobre o caráter dos

acontecimentos diegéticos. Age tanto como desbravador do mundo de Usher, como

protetor de seus mistérios, sendo, assim, um dos responsáveis pelo equilíbrio ente

natural e sobrenatural e pela sustentação do tom de incerteza ao longo da narrativa.

Confirmando o que o próprio Edgar Allan Poe afirma sobre a combinação de

recursos e elementos textuais em função da construção de efeito único, a escolha de

determinados elementos textuais, neste caso, de um narrador cujo campo de visão é

restrito e cujo campo de consciência se contamina com a atmosfera do ambiente, é vital

para a manutenção de um "tom" único à narrativa e no estabelecimento de um

determinado "efeito". De fato, se todas as nuances da trama estivessem colocadas de

maneira transparente e direta, haveria, além da diluição do efeito pré-concebido pelo

autor, a evanescência da atmosfera fantástica, ligada de maneira indissociável à dúvida.

3.3 A atmosfera fantástica em Usher: reflexos e duplicações

A ambigüidade da qual surge e sobrevive o fantástico subentende relações de

duplicidade entre determinados elementos. Logo, se o conto poeano tem como

característica recorrente a atmosfera fantástica, é possível concluir que relações de

duplicação compõem seus textos. Tais relações, assim como os demais elementos

discursivos e, a exemplo da utilização do narrador homodiegético, são responsáveis pela

tessitura de um discurso em que predomina a incerteza.

De um modo geral, a principal dialética que envolve o fantástico é a existente

entre as idéias de real e ilusório. Ao mesmo tempo em que tais noções se posicionam
67

em extremos opostos, imbricam-se e confundem-se, originando, assim, um universo em

que a fenomenologia meta-empírica pode se apresentar de forma mais contundente.

Dessa relação entre real e ilusório surgem outras igualmente importantes à construção

do fantástico: natural/sobrenatural; racional/irracional; vida/morte; bem/mal entre

outras. Todas elas se encontram intimamente ligadas ao comprometimento do fantástico

em manter o tom de dúvida.

A apresentação de fenômenos insólitos e a aparente oposição entre os conceitos

de real e imaginário orientam o delineamento do caráter mais fundamental do fantástico:

a apresentação de uma alternativa ao que até então se chamava realidade, uma "ruptura

da ordem reconhecida, irrupção do inadmissível no seio da inalterável legalidade

quotidiana" (CAILLOIS apud FURTADO, 1980, p.19). Entretanto, além de apresentar

uma simples subversão do real, o texto fantástico deverá tanto confrontar os conceitos

envolvidos em tal estratégia, como relacioná-los de forma inextrincável:

De facto, a essência do fantástico reside na sua capacidade de expressar


o sobrenatural de uma forma convincente e de manter constante e
nunca resolvida dialéctica entre ele e o mundo natural em que irrompe,
sem que o texto alguma vez explicite se aceita ou se exclui inteiramente
a existência de qualquer um deles. (FURTADO, 1980, p. 36)

O jogo de duplas possibilidades que compõe o discurso fantástico deve,

portanto, buscar perpetuar a coexistência entre tendências opostas, sem nunca apresentar

uma explicação unívoca aos eventos que desafiam o senso comum.

No universo de Usher, é possível constatar uma série de relações dialéticas

orientadas pela oposição fundamental real/imaginário que se transfigura, inicialmente,

na relação entre os personagens centrais da narrativa: Roderick e Madeline, irmãos

gêmeos, como percebe, tardiamente, o narrador:


68

Chamou-me a atenção, antes de mais nada, a extraordinária semelhança


existente entre irmão e irmã, e Usher, adivinhando, talvez, os meus
pensamentos, e murmurou algumas palavras, pelas quais fiquei sabendo
que a morta e ele eram gêmeos, e que sempre existira entre ambos certa
simpatia de natureza quase inexplicável. (POE, 1978, p. 20)18

Além de indicar a proximidade entre os irmãos, afirmada ao longo do texto pelo

narrador, o fato de serem gêmeos traz à tona também a questão da identidade: por serem

parecidos inclusive fisicamente, os irmãos Usher sofrem um aprofundamento ainda

maior de sua relação, podendo até mesmo se confundir, motivados pela "simpatia de

natureza quase inexplicável" que existia entre eles. A relação eu/outro é um aspecto

recorrente na literatura fantástica. De acordo com Selma Calasans Rodrigues:

Variam as formas de representação do duplo: temos personagens que,


além de semelhantes fisicamente (ou iguais), têm sua relação acentuada
por processos mentais que saltam de um para outro (telepatia), de modo
que um possui conhecimento, sentimentos e experiência em comum
com o outro. (1988, p. 44)

No caso de A queda da casa de Usher, a questão eu/outro está ligada igualmente

à construção discursiva, uma vez que tal dialética parece ser representada na própria

configuração do texto, apoiado sempre em duplicações, reflexões, reverberações e

similitudes (aspectos percebidos por Lúcia Santaella a partir do ponto de vista do signo

verbal) remetendo, assim, ao caráter dual da relação entre irmãos gêmeos. Além disso,

embora à primeira vista as dialéticas detectadas no texto pareçam paradoxos, elas estão

muito mais empenhadas em estabelecer uma relação de proximidade que remete

diretamente ao apagamento dos limites entre real e ilusório.

18
A striking similitude between the brother and the sister now first arrested my attention; and Usher,
divining perhaps, my thoughts, murmured out some few words from which I learned that the deceased
and himself had been twins, and the sympathies of a scarcely intelligible nature had always existed
between them. (POE, 1961, p. 14)
69

A questão de coexistência entre elementos inicialmente opostos é perceptível

especialmente no universo de Usher. Outros contos poeanos privilegiam, em lugar

disso, o confronto entre eles. Em William Wilson - conto no qual o conflito central gira

em torno do aparecimento aparentemente inexplicável de um sósia do personagem

central - a relação entre os duplos é de constante oposição, como afirma Julian Nazário:

Trata-se [...] de uma duplicação nada estável que leva ao conflito, um


fato que se torna patente com o aparecimento do "segundo William
Wilson", momento em que o narrador se sente duplamente desgostoso,
com o nome do seu sósia, a causa de sua "dupla repetição". O conflito
entre os dois, por sua vez, estabelece uma linha divisória entre duas
espécies de aparência: uma externa, outra interna. (p. 66)

Em Ligéia, assim como em O retrato ovalado, a dialética vida/morte se

apresenta através de uma relação de antinomia, que necessita de elementos mediadores

para que tal oposição se resolva:

A mesma dialética vida-morte, entrevista em "O Retrato Ovalado" pela


mediação da arte, desloca-se agora em "Ligéia" para a mediação do
amor. Se lá a arte se dá como signo-síntese dentro do qual se embute
resolve a contradição entre finito e terreno, aqui, em "Lígeia", é a idéia
do amor que aparece como signo mediador entre vida e morte.
(SANTAELLA, 1986, p. 166)

Com A queda da casa de Usher, a dialética fundamental do discurso fantástico

adquire novas dimensões. Roderick e Madeline, inicialmente, parecem representar a

oposição entre real e imaginário, uma vez que o narrador não permite acesso à figura da

mulher, cujo aparecimento guarda características semelhantes às de um espectro:

Enquanto falava, Lady Madeline (pois assim se chamava ela) passou,


lentamente, pela parte mais distante do aposento e, sem ter notado
minha presença, desapareceu. Olhei-a tomando de profundo assombro,
70

não destituído de ferror - e, no entanto, percebi que me era impossível


explicar tais sentimentos. (POE, 1978, p.14)19

O contato entre narrador e Madeline, além de evidenciar aspectos da

homodiegese como a parcialidade da narração, aproxima a personagem do

fantasmagórico: não há descrição de seu aspecto exterior e o que se torna mais evidente

é a impressão de "assombro" que tal aparição causa ao visitante. Enquanto a descrição

de Roderick, mesmo passando pelo mesmo crivo subjetivo do narrador, constitui-se de

forma mais minuciosa a ponto de se tomar conhecimento de suas características físicas,

de seu estado mental e de como tais aspectos aterrorizam o visitante, a figura de Lady

Madeline permanece espectral e sua rápida aparição ocasiona ao narrador sentimentos

que este julga inexplicáveis.

Dessa forma, há a aproximação entre as personagens e a noções de real e de

imaginário: Roderick Usher se faz presente de forma mais intensa na narrativa,

enquanto Madeline permanece entre sombras. Entretanto, tal relação, além de

representar a oposição básica comum à maioria dos textos fantásticos, indicará também

a convivência próxima, a coexistência de tais elementos, já que, mesmo aparentando

habitar extremos opostos, os irmãos Usher guardam, além de semelhança física, uma

relação de proximidade que os une de forma intensa, denotando, assim, a simbiose

existente entre os conceitos de real e de imaginário.

Assim, em A queda da casa de Usher, encontra-se muito mais a diluição e a

interpenetração dos conceitos citados, originando um universo em que o nível de

aceitabilidade de ambas as noções (familiar/insólito ou natural/sobrenatural) será

19
While he spoke, the Lady Madeline (for so was she called) passed slowly through a remote portion of
the apartment, and, without having noticed my presence, dissapeared. I regarded her with an utter
astonishment not unmingled with dread; and yet I found impossible to account for such feelings. (POE,
1961, p. 8)
71

equivalente e, assim, sustentará a atmosfera fantástica do texto até o desfecho. O

dualismo, portanto, orienta a construção do discurso fantástico, que se apóia neste

aspecto para efetivar a composição de um jogo de aceitação/negação do sobrenatural,

contando com recursos que operam por falsificação - processo que resulta na

equiparação dos níveis de aceitabilidade tanto do real, como do imaginário - e que,

segundo Furtado, induz o leitor:

[...] a quase aceitar que a subversão das leis naturais que a sua razão
recusa é uma séria possibilidade no mundo falsamente normal em que o
fantástico o mantém instalado. Isto através de dolos, trucagens e
omissões habilmente ocultados por um conjunto de elementos que
aparentam facilitar-lhe uma decisão e dar-lhe a conhecer com imparcial
objetividade tudo que acontece na narrativa. (1980, p.45)

É nesse constante embate, diálogo e interpenetração de noções consideradas

opostas que se estabelecerá a atmosfera da casa de Usher. A exemplo de Roderick e

Madeline, vários outros elementos textuais apresentam relações entre duplos

relacionadas direta ou indiretamente à dialética essencial do fantástico.

Tal jogo é perceptível quando o visitante descreve os objetos com os quais

mantém contato à medida que tem acesso ao interior da mansão:

Os objetos que me rodeavam - os entalhes dos tetos, as sombrias


tapeçarias das paredes, a negrura de ébano dos assoalhos e os
fantasmagóricos troféus de armas que tilintavam à minha passagem -
eram, para mim, coisas muito conhecidas, com as quais estava
familiarizado desde a infância, e, embora não hesitasse em reconhecê-
las como tais, fiquei surpreso ante as visões insólitas que aquelas
imagens ordinárias despertavam em minha imaginação. (POE, 1978,
p.1120)

20
While the objects around me – while the carvings of the cielings, the sombre tapestries of the walls, the
ebon blackness of the floors, and the phantasmagoric armorial trophies which rattled as I strode, were but
matters to which, or such which, I had been accustomed from my infancy – while i from hesitated not to
acknowledge how familiar was all this – I still wondered to find how unfamiliar were the fancies which
ordinary images stirring me up. (POE, 1961, p. 4-5)
72

Mesmo sendo familiares ao narrador, os elementos encontrados no espaço

interno despertam sensações insólitas, denotando, assim, a convivência próxima entre

familiar e estranho, conhecido e desconhecido que atravessa a narrativa, já que, à

primeira vista, o que se percebe é a inadequação entre a familiaridade de tais objetos e

as impressões estranhas que estes causam, revelando o caráter excepcional da

configuração do ambiente e dos eventos que transcorrem nele. Ainda em sua incursão à

casa, o narrador se depara com a ambígua figura do médico da família:

Numa das escadas, deparei-me com o médico da família. Sua


fisionomia, pensei, revelava um misto de argúcia e perplexidade.
Saudou-me, um tanto perturbado e passou. O mordomo, então, abriu
uma porta e conduziu-me à presença de seu amo. (POE, 1978, p. 12)21

A aparência astuta da personagem entra em conflito com as implicações mais

comuns à figura do médico, geralmente associada à confiabilidade e à racionalidade,

mas que no conto se relaciona com os efeitos inexplicáveis ocasionados pela atmosfera

fantástica, uma vez que mesmo a personagem que poderia permanecer impassível a tais

influências se apresenta como mais um elemento perturbado por elas, evidenciando uma

oposição latente entre racional e irracional.

A descrição dos aposentos de Roderick Usher traz ao leitor um ambiente em que

a obscuridade apresenta-se como fator de destaque:

O aposento em que me encontrei era muito amplo e alto. As janelas,


compridas, estreitas e ogivais, achavam-se a tal distância do negro
assoalho de carvalho, que se tornavam inteiramente inacessíveis por
dentro. Fracos raios de luz avermelhada atravessavam as vidraças
guarnecidas de gelosia, tornando suficientemente claros os principais

21
On one of the staircases, I met the physician of the family. His countenance, I thought, wore a mingled
expression of low cunning and perplexity. He accosted me with trepidation and passed on. The valet now
threw upon a door and ushered me into the presence of his master. (POE, 1961, p. 5)
73

objetos ali existentes. O olhar, no entanto, esforçava-se em vão para


alcançar os cantos mais distantes do aposento, ou os recessos do teto
abobadado e trabalhado a cinzel. (POE, 1978, p. 11)22

As imagens que se formam a partir do trecho acima - aposento "amplo e alto" -

remetem ao aspecto gótico do lugar e à recorrência de espaços circunscritos na

composição de Poe, que defendeu em A filosofia da composição que:

[...] uma circunscrição fechada do espaço é absolutamente necessária


para o efeito do incidente insulado e tem a força de uma moldura para o
quadro. Tem indiscutível força moral, para conservar concentrada a
atenção e, naturalmente, não deve ser confundida com simples unidade
de lugar. (POE, 1999, p. 110)

De fato, no caso específico do ambiente em questão, o vazio e o isolamento são

aspectos que se destacam. Já os limites definidos do espaço dão conta do caráter de

sufocamento e de melancolia da narrativa. Entretanto, o que se torna mais relevante

semanticamente é a imagem das janelas "compridas e ogivais", distantes do solo e

"inteiramente inacessíveis por dentro".

Se o elemento janela indica a possibilidade de comunicação com a realidade

exterior, escapismo, alívio para o isolamento, e, na casa, tal peça é inacessível, o contato

com o que existe fora da mansão é negado, intensificando mais ainda a separação entre

o mundo de Usher - onde a atmosfera e os acontecimentos desafiam o senso comum - e

o mundo exterior, ou real. Entretanto, a simples existência do elemento indica a

possibilidade de contato com o mundo considerado real, estabelecendo, mesmo de

forma remota, uma ponte entre as duas tendências.

22
The room in which I found myself was very large and lofty. The windows were long, narrow, and
pointed, and at so vast a distance from the black oaken floor as to be altogether inaccessible from within.
Feeble gleams of encrimsoned light made their way through the trellised panes, and served to render
sufficiently distinct the more prominent objects around; the eye, however, struggled in vain to reach the
remoter angles of the chamber, or the recesses of the vaulted and fretted ceiling. (POE, 1961, p.5)
74

Tal oposição é abordada por Charles E. May, que, ao apontar a convicção

romântica de Poe de que a realidade não é física, nem social, mas estética (1995, p.32)

como aspecto chave à compreensão do conto, encontra reflexos desse aspecto do

pensamento poeano na relação do protagonista com a arte. Segundo May (p.33),

Roderick Usher é a personificação de sua própria obsessão, a qual se relaciona

diretamente com a oposição mundo externo/mundo interno, já que o anfitrião "se

excluiu de qualquer estímulo externo" (p.33).

A misantropia, portanto, resulta em um fazer artístico em que predomina o

abstracionismo e aproxima o protagonista dos ideais românticos de idealismo e

individualismo. Assim, "Roderick Usher é o ultimo artista romântico que deseja se

isolar da realidade externa e viver em um reino de pura imaginação" (MAY, tradução

nossa, 1995, p.35): o reino ou o universo da casa Usher.

Além de refletir características românticas, a personagem central e seu fazer

artístico ressaltam a dialética concreto/abstrato, uma vez que ambos os aspectos se

fazem presentes nas telas pintadas por ela, revelando uma interpenetração entre essas

duas noções:

Quanto às pinturas a que se entregava a sua incansável fantasia - e que


se transformavam, traço a traço, em qualquer coisa de vago que me
fazia estremecer com maior emoção, pois eu estremecia sem saber por
que -, quanto a essas pinturas (tão vívidas, que suas imagens ainda se
acham presentes em meu espírito), eu em vão procuraria extrair delas a
mínima parte que pudesse estar contida no âmbito das simples palavras
escritas. Pela extrema simplicidade e nudez de seus desenhos, ele
detinha e subjugava a atenção. Se é que algum mortal jamais pintou
uma idéia, esse mortal foi Roderick Usher. (POE, 1978, p. 15)23

23
From the paintings over which his elaborate fancy brooded, and which grew, touch by touch, into
vagueness at which I shuddered the more thrillingly, because I shuddered knowing not why; – from these
paintings (vivid as their images now are before me) I would in vain endeavour to educe more than a small
portion which should lie within the compass of merely written words. By the utter simplicity, by the
nakedness of his designs, he arrested and overawed attention. If ever mortal painted an idea, that mortal
was Roderick Usher. (POE, 1961, p. 9)
75

Mesmo sendo dotadas de "qualquer coisa de vago" e guardando características

abstratas, as telas de Roderick tocam profundamente o narrador e são ímpares de tal

forma a ponto de serem inexprimíveis através de palavras. Paradoxalmente, os desenhos

de Usher aprisionavam a atenção pela sua extrema simplicidade, produzindo obras que

vislumbravam representar o mundo de imaginação que dominava os sentidos de seu

autor e, por isso, assumiam um caráter pouco objetivo, ou figurativo. Ao pintar uma

idéia, como afirma o narrador, Roderick Usher revela sua autonomia em relação ao

mundo exterior (real) e compõe uma representação do próprio processo de significação

do texto ao qual é necessário certo grau de abstração a fim de efetivar a diluição dos

limites entre real e ilusório e, assim, admitir o caráter fantástico da narrativa.

Diante de obras em que o abstracionismo predomina, o narrador destaca uma

exceção:

Uma das concepções fantasmagóricas do meu amigo, em que o espírito


de abstração não participava de maneira tão rígida, pode ser esboçada,
embora debilmente, com palavras. Um pequeno túnel imensamente
longo e retangular, de muros baixos, lisos e brancos e sem interrupção e
adornos. Certos pontos do desenho serviam bem para dar a idéia de que
aquela escavação se achava a grande profundidade da terra. Não se via
nenhuma saída ao longo de sua vasta extensão, nem se observava
qualquer archote ou outra fonte de luz artificial; não obstante, uma onda
de raios intensos inundava tudo, banhando o seu interior de um
esplendor lívido e inadequado. (POE, 1978, pp. 15-16)24

24
One of the phantasmagoric conceptions of my friend, partaking not so rigidly of the spirit of
abstraction, may be shadowed forth, although feebly, in words. A small picture presented the interior of
an immensely long and rectangular vault or tunnel, with low, walls smooth, white and without
interruption or device. Certain accessory points of the design served well to convey the idea that the
excavation lay at an exceeding depth below the surface of earth. No outlet was observed in any portion of
its vast extent, and no torch or other artificial source of light was discernible; yet, a flood of intense rays
rolled throughout, and bathed the whole in a ghastly and inappropriate splendour. (POE, 1961, p.9)
76

A tela em questão apresenta características distintas das outras pintadas por

Roderick: nela há a figura de um túnel retratada com riqueza de detalhes, contrastando,

assim, com a tendência abstracionista dominante. O aspecto contrastante da pintura se

torna evidente através da relação claro/escuro que emerge da descrição do quadro: o

túnel se localizava numa área de grande profundidade que não recebia nenhum tipo de

luz artificial, mas era marcada pela presença da luminosidade. Aparentemente, a

penetração de qualquer iluminação é impossível, no entanto, há a incidência de raios

intensos. Assim, o desenho cumpre a função de esboçar o insólito e seu caráter

excepcional, aspecto que se apresenta de maneira recorrente, evidenciando um tom de

inadequação que compõe as personagens e percorre a narrativa.

A imagem do túnel tem valor semântico relevante no texto, já que segundo o

Dicionário de Símbolos, consiste em uma:

Via de comunicação, coberta e escura, na superfície subterrânea e


supraterrestre, que conduz, através da escuridão, de uma zona de luz a
outra, via de passagem que encontramos em todos os ritos de iniciação.
[...] O túnel é símbolo de todas as travessias obscuras, inquietas,
dolorosas que podem desembocar em outra vida. (CHEVALIER, 2003,
pp. 915-916)

Dessa forma, tal elemento se relaciona tanto com a travessia de Lady Madeline

da suposta morte à vida, como com o processo de construção de sentido do texto, no

qual o leitor deve percorrer caminhos livres de certezas e pouco delimitados,

participando de uma rede de elementos que atuam por ilusionismo, na intenção de

dificultar o acesso à significação, e compondo um processo em que predominam a

obscuridade e a carência (ou o falseamento) de informações que poderiam apresentar

possíveis resoluções ao insólito e, assim, fazer evanescer o fantástico.


77

O dualismo existente entre Roderick e Madeline, os dois elementos

fundamentais da narrativa, evidencia outra relação dialética de extrema relevância no

texto: a aparente oposição entre vida e morte. Como já foi visto, o narrador e a irmã

Usher têm um contato furtivo e obscuro e, logo após a chegada do visitante, Madeline,

que até então parecia suportar a doença, morre:

Até então, ela suportara com firmeza a pressão de sua doença, sem que
se dispusesse a firmeza a pressão de sua doença, sem que se dispusesse
a recolher-se ao leito; mas, ao cair da tarde da minha chegada à casa,
sucumbira (como seu irmão me disse, à noite, com inexprimível
agitação) ao poder prostrador do mal, e soube que o olhar que dirigi à
sua pessoa seria, provavelmente, o último: que aquela dama, pelo
menos enquanto vivesse, já não seria mais vista. (POE, 1978, p. 14)25

O desaparecimento de Madeline logo no início da ação poderia trazer à tona a

oposição morte/vida, já que Roderick parece sobreviver aos males que afetam a família.

Entretanto, o irmão Usher amarga muito mais uma "morte em vida" do que resiste às

influencias da atmosfera da casa, enquanto a irmã continua viva em cada mudança no

aspecto de Roderick:

Então, decorridos alguns dias de amargo pesar, verificou-se uma


transformação visível nos sintomas da enfermidade mental de meu
amigo. Suas maneiras habituais haviam desaparecido. Suas ocupações
ordinárias foram negligenciadas ou esquecidas. Andava de um aposento
para outro com passos apressados, desiguais e sem finalidade. A
palidez de seu rosto adquirira, se possível, um tom mais cadavérico -
mas a luminosidade de seus olhos se dispara por completo. (POE,
1978, p. 21)26

25
[...] she had already borne up against the pressure of her malady, and had not betaken herself finally to
bed; but closing in of the evening of my arrival at the house, she succumbed (as her brother told me at
night with inexpressible agitation) to the prostrating power of the destroyer; and learned that the glimpse
that I had obtained of her person would thus probably the last I should obtain – that the lady, at least
while living, would be seen no more. (POE, 1961 p. 8)
26
And now, some days of bitter grief having elapsed, na observable change came over the features of the
mental disorder of my friend. His ordinary manner had vanished. His ordinary occupations were
neglected or forgotten. He roamed from chamber to chamber with hurried, unequeal and objectless step.
The pallor of his countenance had assumed, if possible, a more ghastly hue – but the luminousness utterly
gone out. (POE, 1961, p. 15)
78

A proximidade e, ao mesmo tempo, o mistério característicos da convivência

entre os irmãos evidenciam o diálogo entre conceitos opostos: o dualismo que rege a

relação Roderick/Madeline não permite que tais personagens ocupem limites bem

determinados. Logo, os irmãos apresentam caracteres comuns aos dois, evidenciando

uma relação especular, em que as noções de individualidade, alteridade e identidade se

diluem e, em lugar delas, estabelecem-se a indefinição e a ambigüidade.

O desfecho da narrativa traz à tona a fusão de Roderick (he) e Madeline (she) em

meio ao cenário da casa de Usher (us). O retorno da irmã apresenta-se como incidente

central da narrativa e evidencia mais ainda o caráter de dependência de sua relação com

o irmão. Por outro lado, a cena final denota o ponto máximo da singularidade dos

eventos narrativos: a (re)união dos irmãos e subseqüente queda da casa indica o fim da

família e a fusão entre os personagens, inclusive a casa, que, como se mostra no início

da narrativa, tem relevância equiparável à de personagem da história e concentra toda a

estirpe dos Usher, podendo ser associada, portanto, ao pronome pessoal us.

Quando Roderick e Madeline, representações das noções de real e imaginário,

respectivamente, se encontram pela última vez, é possível concluir que esse reencontro,

agora definitivo, indica o apagamento e a confusão de limites entre tais conceitos. A

queda física da casa, além de indicar o fim dos Usher, propõe a destruição da noção de

realidade considerada razoável e a aceitação de uma outra: a realidade do universo de

Usher, no qual predomina a atmosfera fantástica.

Com isso, o caráter auto-referencial do conto é evidente: grande parte de seus

elementos discursivos, incluindo o espaço, a configuração do ambiente, a caracterização

e a ação das personagens remetem à narrativa fundamental e aos meandros da

construção do fantástico. Assim, o texto A queda da casa de Usher é composto de


79

outros pequenos textos que se imbricam e se relacionam de forma a compor uma rede

de duplicações, reduplicações e reflexões.

3.4 O abismo no universo de Usher: narrativas em reflexo

Como foi visto, a relação existente entre Roderick e Madeline Usher remete a

um sistema de reflexão, evidenciado não apenas pelo fato de se tratarem de irmãos

gêmeos, mas principalmente pelo caráter intenso de tal ligação, que praticamente anula

a diferença entre os indivíduos em questão, fazendo-os reflexo um do outro. Esse

aspecto também se faz presente no conto através de um emaranhado de outros

elementos que compõem verdadeiros textos que contêm representações da narrativa

central de A queda da casa de Usher.

Esse caráter dialógico da relação entre os elementos textuais se apresenta já com

a epígrafe de De Béranger utilizada no texto: Son coeur est a luth suspendu; Sitôt qu'on

le touche il résonne27. Tais versos se relacionam de certa forma com o que se configura

posteriormente ao leitor: a expressão "alaúde suspenso" - metaforizando "coração",

órgão vital - o fato de estar "suspenso" implica em estaticidade, morte; estado o qual

será alterado pelo toque, que o fará "ressoar", voltar à vida.

Assim, temos uma representação de um dos eventos mais significativos do

conto: o retorno de Madeline Usher. Tal aspecto remete ao caráter auto-consciente da

composição poeana e constitui uma constante em seus textos, como percebe Cortázar:

Em Morella a epígrafe de Platão se cumpre na reencarnação da alma da


heroína; Lígeia dá corpo a uma afirmação de Glanville; O tonel de
amontillado parte da premissa de que a vingança não deve prejudicar o
vingador, e que a vítima deve saber de quem procede a desforra; Uma
descida ao Maelström ilustra os benefícios de um princípio de
Arquimedes. (2006, p.126)

27
Seu coração é um alaúde suspenso; logo que tocado, ele ressoa.
80

Com isso, desde o início da leitura, já é possível obter uma amostra do recurso

que se delineará por diversas vezes ao longo do texto, o mise en abyme (ou mise en

abîme), definido por André Gide como "todo espelho interno que reflete o conjunto da

narrativa por reduplicação simples, repetida ou complexa" (apud MOISÉS, 2004, p.

298), procedimento comum a diferenciados discursos artísticos, inclusive às artes

plásticas, resultando:

[…] por meio da visão em profundidade, na reprodução do objeto


estético em tamanho menor: mirando o todo, o olhar converge
para o detalhe que reproduz. Fixando a retina no pormenor, tem-
se a súmula reveladora da totalidade em que se inscreve.
(MOISÉS, 2004, p.298)

A aplicação do mise en abyme, entretanto, não se resume apenas à epígrafe, que

possui caráter antecipatório em relação à narrativa. Vimos anteriormente que até mesmo

um dos quadros pintados por Roderick parece se relacionar de forma especular com a

narrativa, representando, embora de maneira menos direta, o retorno de Madeline à vida

e o caráter opaco da trajetória que o leitor deve cumprir a fim de completar o processo

de atribuição de sentido ao texto.

Ainda se referindo à sensibilidade artística de seu anfitrião, o narrador aponta o

talento de Usher para a música. Assim, o leitor tem acesso ao poema The Haunted

Palace (O Palácio Assombrado) que, segundo Lúcia Santaella, corresponderia

semioticamente à fenda que ameaçava a estrutura da casa. Entretanto, além dessa

relação com a configuração externa da mansão, tal texto consiste em um anúncio dos

eventos que transcorrerão e explicita alguns elementos capazes de contribuir com o


81

processo de significação. No poema28, encontra-se a história de apogeu de decadência

de um certo palácio e, na primeira estrofe, encontra-se um aspecto relevante à

compreensão e à aceitação dos eventos aparentemente sobrenaturais que insurgem no

universo diegético:

In the greenest o four valleys,


By good angels tenanted,
Once a fair and stately palace
Radiant palace - reared its head.
In the monarch Trought's dominion
It stood there!
Never seraph spread a pinion
Over, fabric half so fair.
In that sweet day,
Along the ramparts plumed and pallid,
A winged odour went away. (POE, 1961, pp.10-11)29

O trecho inicial introduz o palácio ao leitor, caracterizando-o de forma similar

aos dos textos românticos, o que revela mais uma vez o caráter idealista de Roderick

Usher. Os versos trazem a informação de que o palácio se localiza "nos domínios do rei

Pensamento", aspecto que se relaciona diretamente com a orientação dos eventos não só

no poema, como no conto, já que se deve privilegiar uma visão menos comprometida

com as delimitações estanques entre as noções de real e imaginário. Logo, se o palácio

se localizava nos domínios do pensamento é possível concluir que este, assim como a

casa de Usher, será cenário de acontecimentos pouco comuns.

A descrição pormenorizada do lugar entra em consonância com a também

detalhada descrição da casa de Usher. Entretanto, o aspecto inicial do Palácio

Assombrado contrasta com a imagem que o leitor tem do cenário do conto portanto, é

28
Aqui serão colocados trechos da versão original, em inglês, pela questão da visualidade, uma vez que a
tradução para o português apresenta o poema com outra forma de disposição física dos versos.
29
No mais verde de nossos vales,/ habitado por anjos bons,/ antigamente um belo e imponente palácio/ -
um palácio radiante – se erguia./ Nos domínios do rei Pensamento, lá se achava ele!/ Jamais um serafim
espalmou a asa sobre um edifício só metade tão belo. (POE, 1978, p. 16-17)
82

possível concluir que o palácio do poema equivale à casa de Usher num estágio anterior

ao do tempo da narrativa, já que, com a evolução dos versos, percebe-se a mudança da

atmosfera do palácio:

But evil things, in robes of sorrow,


Assailed the monarch's high state;
(Ah, let us mourn, for never morrow
Shall dawn upon him, desolate!)
And, round about his home, the glory
That blushed and bloomed
Is but a dim-remembered story
Of the old time entombed. (POE, 1961, p.12)30

O aparecimento de seres do mal no "reino do pensamento" traz a derrocada do

antes imponente palácio. Em nenhuma passagem do poema se apresentam maiores

explicações para este domínio maléfico e o efeito que ele ocasiona no palácio, o que

remete ao caráter insólito da narrativa e à manutenção da incerteza e da indefinição em

relação à ordem dos acontecimentos.

Ainda compondo uma espécie de reflexo da narrativa central de Usher, o poema

composto por Roderick se encerra com a caracterização de uma atmosfera de

sufocamento e melancolia:

And travelers now within that valley,


Through the red-litten windows seee
Vast forms that move fantastically
To a discordant melody;
While, like a rapid ghastly river,
Through the pale door,
A hideous throng rush out forever,
And laugh - but smile no more. (POE, 1961, p. 12)31

30
Mas seres maus, trajados de luto/ assaltaram o alto trono do monarca/ (ah, lamentemo-nos, visto que
nunca mais a alvorada despontará sobre ele, o desolado!)/ e, em torno de sua mansão, a glória,/ que,
rubra, florescia,/não passa, agora de uma história quase esquecida/ dos velhos tempos já sepultados.
(POE, 1978, p. 18)
31
E agora os caminhantes nesse vale,/ através das janelas de luz avermelhada, vêem/ grandes vultos que
se movem fantasticamente ao som de desafinada melodia;/ enquanto isso, qual rápido e medonho,/ através
da porta descorada, odiosa turba se precipita sem cessar, rindo – mas sem sorrir nunca mais. (POE, 1978,
pp. 18)
83

Neste ponto, o diálogo entre O palácio assombrado e A queda casa de Usher se

torna ainda mais intenso: a mansão do poema finalmente é mostrada como assombrada,

trazendo em sua caracterização elementos que remetem ao universo de Usher, como a

expressão "desafinada melodia" que evoca desequilíbrio e excepcionalidade,

relacionando-se com o estado mental dos personagens que fazem parte da história e com

a natureza dos eventos que se seguem. Assim, O palácio Assombrado com seus

momentos de apogeu e decadência associados a forças aparentemente inexplicáveis

constitui um texto que se configura como um protótipo do conto em que está inserido.

Mais adiante, afetado pela morte da irmã e dominado pela influência da

atmosfera mórbida da casa, Roderick assume um estado de extrema agitação. Na

intenção de amenizar as sensações do amigo, o visitante inicia a leitura de Mad Trist, de

Sir Launcelot Cannig um conto em que o herói, Ethelred, invade a casa de um ermitão

mas, no lugar dele, encontra um dragão que ao qual atinge com golpe, matando-o.

O primeiro e mais superficial contato dessa micronarrativa com a narrativa

fundamental é a presença da palavra mad no título, evocando a personagem Madeline.

De fato, é ao retorno de Lady Usher à casa que a pequena narrativa parece se relacionar:

Ethelred, o protagonista, pode ser entendido como Madeline; o ermitão pode representar

Roderick ou até mesmo a própria mansão; e o dragão, por sua vez, seria um reflexo da

morte ou até mesmo da desconstrução do senso comum (já que é assumindo uma

postura de desafio à nação conhecida de realidade que se torna possível o envolvimento

com o universo de Usher).

O próprio processo dircursivo através do qual a relação entre as duas narrativas

se encontra representado em Mad Trist quando o visitante lê o trecho em que ruídos


84

produzidos pelo cavaleiro ecoam pela floresta (POE, 1961, p.18): o que se percebe com

a observação das narrativas é exatamente um processo de reverberação contínua: a

história do cavaleiro produz seus reflexos e ecos no universo diegético de A queda da

casa de Usher.

Acentuando o caráter inexplicável dos eventos, e, conseqüentemente, a

atmosfera fantástica vigente na casa de Usher, os eventos de Mad Trist se reproduzem

no conto de forma contundente, ocasionando mais um questionamento ligado à dialética

fundamental real/imaginário e que deve permanecer sem reposta: a correspondência

entre os eventos narrativos de Mad Trist e da casa de Usher era resultado da alteração

dos sentidos do narrador (influenciado pela atmosfera da casa e pelo estado mental de

seu amigo) ou de fato acontecia? Com isso, estabelece-se de forma notável a hesitação -

a condição fundamental para que o fantástico se estabeleça, segundo Todorov - do

narrador-personagem em relação ao viés que deve admitir na tentativa de explicar os

eventos que testemunha.

Com isso, o desfecho do conto, na tentativa de sustentar o fantástico, encontra-se

intrinsecamente ligado à história contada pelo visitante que não permanece totalmente

imune às impressões de que está envolvido em um universo insólito mas, ao mesmo

tempo, procura manter a racionalidade diante de tais fenômenos, remetendo à estratégia

fundamental do discurso fantástico:

Ao terminar de ler essa frase, estremeci e, por um momento, fiz uma


pausa, pois me parecera (embora logo concluísse que minha excitada
imaginação me havia enganado) que, de uma parte muito distante da
mansão, chegava exata semelhança, dir-se-ia um eco (mas sufocado e
surdo, certamente) dos próprios estalidos e estragos descritos, de
maneira tão minuciosa, por Sir Launcelot. Era, sem dúvida alguma,
apenas a coincidência que me atraíra a atenção, visto que, em meio do
bater incessante dos caixilhos das janelas e dos ruídos que se
85

misturavam à tempestade ainda crescente, aquele barulho nada tinha,


por certo, que me pudesse interessar ou perturbar. (POE, 1978, p. 24)32

No entanto, as tentativas de compreensão dos eventos pelo viés racional parecem

ser aniquiladas a cada movimento da narrativa do cavaleiro Ethelred. O ponto máximo

da narrativa é marcado pela chegada do herói à casa do ermitão, após ter derrotado o

dragão:

"E então, o campeão, tendo escapado da terrível fúria do dragão, e


lembrando-se do escudo de bronze e de que o encantamento que sobre
ele pesava estava desfeito, afastou os destroços de seu caminho e
avançou, corajosamente, pelo pavimento de prata do castelo, na direção
do escudo que estava preso à parede, o qual, na verdade, não esperou
que ele chegasse até perto, caindo-lhes aos pés, sobre o assoalho de
prata, com violento e terrível ruído". (POE, 1978, p. 26)33

Tais acontecimentos ecoam imediatamente no universo de Usher, aprofundando

ainda mais o estado de agitação de Roderick, que, neste momento, é tomado pelo

devaneio e anuncia o retorno de Madeline, que ocorre de fato, surpreedendo o narrador:

No mesmo instante, como se a energia sobre-humana de suas


palavras houvesse adquirido a força de um encantamento, as
enormes e antigas folhas da porta que ele indicava entreabriram,
lentamente, as suas pesadas mandíbulas de ébano. Aquilo que era
obra de uma rajada de vento, mas, no marco daquela porta, surgiu
alta e amortalhada, a figura de Lady Madeline Usher. (POE,

32
At the termination of this sentence I started and, for a moment, paused; for it appeared to me (although
I at once concluded that my excited fancy had deceived me) – It appeared for me that, from some very
remote portion of the mansion, there came, indistinctly, to my ears, what might have been in its exact
similarity of character, the echo (but a stifled and dull one certainly) of the very cracking and ripping
sound which Sir Launcelot had so particulary described. It was, beyond doubt, the coincidence alone
which had arrested my attention; for amid the rattling of the sashes of the casements, and the ordinary
commingled noises of the still increasing storm, the sound, in itself, had nothing, surely, which should
have interested or disturbed me. (POE, 1961, p. 18)
33
And now, the champion, having escaped form the terrible fury of the dragon, bethinking himself of the
brazen shield, and the breaking up of the enchantement which was upon it, removed the carcass from out
of the way before him, and approached valorously over the silver pavement of the castle to where the
shield was upon the wall; which in sooth tarried not for his full coming, but fell down at his feet upon the
silver floor with a mighty great terrible sound. (POE, 1961 p. 19)
86

1978,p.27)34

Com esse momento da narrativa - além de se detectar que de fato a relação entre

Mad Trist e A queda da casa de Usher guarda características de um sistema de reflexos

e reverberações, assim com a relação dos irmãos Usher e como as outras dialéticas que

se estabelecem ao longo do texto - estabelece-se um tom terrificante que toma conta do

narrador e por, conseqüência, do leitor. Os acontecimentos parecem adquirir

características ainda mais impactantes, até culminarem com a queda da casa:

Fugi, aterrorizado, daqueles aposentos e daquela mansão. A tempestade


se desencadeava ainda com toda a sua fúria, quando atravessei o velho
caminho. Súbito, uma luz intensa se projetou diante de mim, e voltei-
me para ver de onde provinha uma claridade tão estranha - pois
somente a imensa mansão e suas sombras se achavam para trás. A
irradiação provinda da lua cheia, de um vermelho cor de sangue, já
baixa no horizonte, brilhava agora através daquela fenda antes mal
perceptível, a que já me referi, e que se estendia, em ziguezague, desde
o telhado do edifício até sua base. Enquanto a olhava, a fenda alargou-
se rapidamente - e o disco inteiro do satélite irrompeu de repente à
minha vista. Meu cérebro se transtornou quando vi as pensadas paredes
se desmoronarem, partidas ao meio; ouviu-se longo e tumultuoso
estrondo, como o reboar de mil cataratas - e o lago fétido e profundo, a
meus pés, se fechou, tétrica e silenciosamente, sobre os restos da Casa
de Usher. (p. 27)35

Como é possível perceber pelo trecho acima, o desfecho do conto se encontra

mobilizado em função do efeito de leitura a ser produzido: a perplexidade. O visitante,

incapaz de encontrar explicações aceitáveis para a configuração do evento final, deixa-

34
As if in the superhuman energy of utterance there had been found the potency of a spell, the huge
antique panels to which the speaker pointed threw slowly back, upon the instant, their ponderous and
ebony jaws. It was the work of the rushing gust – but then without those doors there DID stand the lofty
and enshrouded figure of the Lady Madeline Usher. (POE, 1961 p. 21)
35
From that chamber, and from the mansion, I fled aghast. The storm was still abroad in all its wrath as I
found myself crossing the old causeway. Suddenly there shot along the path a wild light, and I turned to
see whence a gleam unseals could have issued; for the vast house of shadows were alone behind me. The
radiance was that of the full, setting and blood-red moon, which now shone vividly through that once
barely discernible fissure, of which I have before spoken as extending from the roof of the building, in a
zigzag direction to the base. While I gazed, this fissure rapidly widened – there came a fierce breath of the
whirlwind – the entire orb of the satellite burst at once upon my sight – my brain reled as I saw the
mighty walls rushing asunder -- there was a long tutmultuous shouting sound like the voice of a thousand
waters – and the deep and dank tarn at my feet closed sullenly over the fragments of the HOUSE OF
USHER. (POE, 1961 p. 21)
87

se influenciar ainda mais pelo aspecto insólito do que presencia, transmitindo ao

narratário, ou leitor virtual, a mesma impressão de impotência diante do que parece

inexplicável. Tais sensações se sustentam através da constante tensão existente entre

tendências opostas que dialogam ao infinito, promovendo a permanência da

ambigüidade e a ausência de explicações razoáveis para os eventos que se apresentaram.

A retomada dos elementos citados no início da narrativa, como a fenda que

parecia dividir a estrutura do prédio, e o lago que refletia a imagem invertida da

paisagem dos arredores e da própria casa oferece um caráter cíclico à narrativa. Agora,

tais elementos cumprem a atribuição de representar a desconstrução do universo de

Usher: a fenda, que chama atenção por se estender em ziguezague e por consistir em

uma falha, um desvio, representa, assim, a desordem e a inadequação desse universo ao

que se considera realidade. Já a figura do lago traz consigo a metáfora do sistema de

reflexos, duplicações e reverberações que orientam a construção da atmosfera fantástica

e, ao se fechar sobre os escombros da casa de Usher, indica a destruição do mundo de

Usher e evoca a idéia da fusão entre conceitos opostos - vida/morte; real/imaginário;

concreto/abstrato - representados em Roderick e Madeline, agora irreversivelmente

juntos.
88

4 A queda da casa de Usher: filme

A queda da casa de Usher (La chute de la maison Usher, de 1928) compõe um

manifesto das convicções teóricas de seu realizador, Jean Epstein. Tendo surgido em

meio a um contexto ainda de legitimação do cinema enquanto arte e de formação da

linguagem, o filme apresenta as idéias epsteinianas acerca da produção e construção do

discurso cinematográfico.

Jean Epstein - juntamente com Abel Gance, Marcel L'Herbier, Louis Delluc e

Germain Dulac, cineastas franceses que compunham a vanguarda francesa e que

buscavam atrelar a produção cinematográfica à pesquisa teórica - está ligado ao

impressionismo, estética comprometida com formas alternativas de composição do

discurso cinematográfico e oposta à narrativa clássica, que, por sua vez, se relacionava

com a noção de transparência, isto é, com o emprego da técnica em nome da

transmissão clara de uma determinada história, que se desenvolveria de forma linear

através do encadeamento lógico de planos e seqüências.

O grau de representatividade do cinema clássico no contexto cinematográfico

dos anos 20, portanto, deflagra o interesse dos cineastas considerados impressionistas

em apresentar uma proposta ao olhar dominante e, assim, compor uma estética nova em

que:

Todos os recursos fílmicos são convocados e explorados para compor


'sinfonias visuais e rítmicas': montagem acelerada, câmeras lentas,
duplas exposições simples ou múltiplas, passagem ao negativo,
imagens flous, jogos sobre motivos visuais, trabalho do preto e branco.
(VANOYE, 1994, p. 32)
89

As formas narrativas impressionistas apresentam, assim, alternativas ao realismo

e à transparência predominantes na narrativa clássica, responsabilizando-se pela criação

de um universo diegético mais ligado ao onírico e ao fantástico que desafia a posição de

relativo conforto do espectador em relação à obra fílmica. De certa forma, a estética

impressionista autoriza a representação de camadas mais profundas da narrativa e até

mesmo do estado psíquico dos personagens, já que a manipulação mais livre da técnica

desafia a impressão de realidade com a qual o cinema clássico se associava e inaugura

uma nova forma narrativa.

A narrativa impressionista prescinde de acontecimentos de grande impacto,

valorizando, em lugar disso, o universo das sensações que afetam personagens na

intenção de torná-las perceptíveis através de diversos recursos técnicos e estilísticos.

Além disso, há a valorização da sugestão e da capacidade de inferência do espectador,

do qual será exigida uma maior sensibilidade com relação aos elementos fílmicos em

sua totalidade.

Com A queda da casa de Usher, Epstein, além de pôr em prática esses

princípios, compõe uma obra adaptada que dialoga de forma prolífica com o texto de

origem, revelando um potencial narrativo que explicita o equilíbrio existente na

mobilização dos diversos recursos (fotografia, décor, interpretação e caracterização de

atores, montagem) em função da composição de um determinado universo narrativo.

Esse equilíbrio entre os distintos elementos fílmicos remete à colocação primordial de

Epstein acerca do fazer cinematográfico: a que advoga em favor de um cinema orgânico

ou total, (Salles, 1988, p. 61) um cinema em que os recursos estariam empenhados,

igualmente, na construção de sentido, sem que houvesse sobreposição de um em relação

ao outro. Tal pressuposto remete à teoria poena da unidade efeito que dá conta da
90

mobilização de todos os elementos de composição literária em função da unidade de

efeito.

As teorias de Epstein se vinculam com o interesse de legitimação do cinema

enquanto discurso artístico. Tendo suas origens ligadas ao registro de cenas cotidianas

e, mais tarde a uma tendência intensamente comprometida com a narrativa transparente,

o cinema se inseria em um contexto em que a necessidade de renovação e de formação

de um novo olhar era crescente. Assim, os princípios de Epstein configuram uma

postura de desafio em relação às idéias até então vigentes, apresentando propostas de

ruptura em relação aos discursos artísticos que eram geralmente associados ao cinema,

como o teatro, por exemplo.

As proposições teóricas do cineasta, portanto, revelam-se também como

aspectos relevantes à compreensão do processo de composição de A queda da casa de

Usher. Conceitos como fotogenia, personalização dos objetos, manipulação da tipologia

dos planos, alteração da velocidade e perda da impassibilidade da câmera, dentre outros,

fazem-se presentes na obra e, além de funcionarem como promotores de uma linguagem

cinematográfica vanguardista, constituem elementos relevantes à compreensão da forma

através da qual Epstein opera a construção do sentido do filme e trabalha a questão da

adaptação.

4.1 A queda da casa de Usher segundo Jean Epstein

Baseado na obra de Edgar Allan Poe de uma forma geral36 mas sobretudo no

conto homônimo, A queda da casa de Usher traz o universo poeano às telas através de

36
Os créditos iniciais do filme apontam a expressão “d’après lês motifs d’Edgar Allan Poe”, o que indica
que há um contato intertextual do filme com outros textos do autor e não apenas ao que lhe dá título. Tal
expressão pode ser também um indicativo de que o filme travará um diálogo mais livre com a obra de
Poe, aspecto que já explicita a visão do cineasta acerca da questão da adaptação fílmica.
91

um processo de recriação que foge às fórmulas cinematográficas mais comuns. Ao ser,

geralmente, relacionada ao horror - embora ultrapasse esses limites, como vimos,

constituindo textos aos quais é necessário lançar um olhar diferenciado e livre de

proposições estanques e conceitos pré-determinados e se relacionando muito mais com

o fantástico - a obra de Poe, de certa forma, evoca tendências que valorizam o aspecto

gótico em detrimento do potencial fantástico e plural de seus textos: algumas adaptações

- como O gato preto (1934), de Edgar G. Ulmer, A queda da casa de Usher (1960), O

poço e o pêndulo (1961), O corvo (1963), de Roger Corman - se associam muito mais

ao enfoque do terror de forma mais explícita do que ao aspecto ambíguo dos enredos

poeanos. Essas características dos filmes citados acima não necessariamente os

subordinam qualitativamente à obra de Epstein (uma vez que eles apresentam visões

distintas, mas igualmente válidas sobre a obra de Poe), mas evidenciam a visão peculiar

que o fazer cinematográfico epsteiniano lança sobre o texto de origem.

A visão de Epstein com relação à cinematografia clássica se faz presente em

alguns de seus escritos, entre eles, Le cinéma du diable (1947), obra através da qual é

possível perceber a postura de oposição ao estilo narrativo do cinema americano da

época, no qual, segundo o teórico:

O empirismo domina e uma superabundância de experiências,


avançando ao acaso, desdenham da construção de uma teoria. A imensa
riqueza das imagens dinâmicas não é precisamente elaborada, mas
surge espontaneamente da natureza e sua democrática simplicidade de
significação propiciou uma vitória rápida e fácil aos filmes de além-
Atlântico, de acordo com o julgamento da maioria do público mundial.
(2002, p.18 tradução nossa)

Radicalismos à parte - já que se sabe que também a narrativa clássica americana

resultou de uma série de reflexões estilísticas, a exemplo do desenvolvimento da

tipologia dos planos por D.W. Griffth - é com base nessa postura de ruptura com a
92

ordem vigente que Epstein orientará a composição de A queda da casa de Usher. Em

lugar de uma estética voltada para a transmissão do conteúdo da forma mais homogênea

e clara, o teórico - associando o processo de composição cinematográfica à manipulação

incessante dos aspectos técnicos - defende que:

Os aspectos estáveis, as formas fixas não interessam ao cinema […] a


afinidade que há entre cinema e movimento vai até o descobrimento
daquilo que o nosso olho não sabe enxergar. Assim, a aceleração acusa
a gesticulação nos vegetais, o caminho e a metamorfose das nuvens,
revela a mobilidade dos cristais, das geleiras, das dunas. Utilizando
relações de aceleração sobre longos períodos de tempo, um filme
mostraria que nada é imóvel no universo, que tudo se move e se
transforma. (EPSTEIN, 2002, p. 16, tradução nossa)

Com isso, evidencia-se um dos aspectos marcantes de A queda da casa de Usher,

filme: a construção de uma obra fílmica em que os objetos de cena parecem participar

da história, dotada de um ritmo peculiar e de uma atmosfera que transmite uma

impressão de suspensão, fluidez. No filme, as personagens, o cenário e seus elementos

constituintes parecem levitar; as cortinas da casa de Usher se agitam de forma permante;

percebe-se, através de tais características, que aquele universo que se adentra ao longo

da narrativa constitui uma alternativa à impressão de realidade que o cinema, até então,

buscava transmitir ao espectador.

O estilo epsteiniano dialoga intensamente com a questão da manipulação da

realidade, aspecto que se torna fundamental à adaptação de um texto, como o de Poe,

em que a subversão da noção aceitável de real é o aspecto mais marcante. No filme,

Epstein realiza um trabalho que se ocupa em

[…] comprometer a realidade com uma certa interpretação, não apenas


registrá-la. Mas interpretá-la pelo simples jeito de surpreendê-la, pela
maneira de manipulá-la. Para isso, lança mão freneticamente de todos
os recursos, alguns ostensivamente virtuosísticos, para enervar de
93

psicologia, de temperamento, os aspectos mais neutros da realidade.


(SALLES, 1988, p. 59)

Uma das formas através das quais Epstein afirma ser possível "contaminar" a

realidade com um certo grau de pessoalidade seria promovendo a perda da

impassibilidade da câmera, isto é, fazendo com que ela adquirisse status de máquina

reveladora de emoções. Dessa nova atribuição da câmera surge um dos princípios

fundamentais da estética epsteiniana, o da personalização da imagem, dos objetos

captados, isto é, o "olhar" lançado pela câmera sobre os elementos de mise-en-scène,

por exemplo, deveria ser dotado de uma subjetividade automática (SALLES, 1988, p.

59) capaz de atribuir novas dimensões de significado a esses objetos. Assim, a proposta

de Epstein atenta para as "várias singularidades da representação das coisas que o filme

pode dar", corroborando o fato de que: afirmando que no cinema:

Descobrir é aprender sempre que os objetos não são o que


acreditávamos que fossem; conhecer mais é, antes de tudo, abandonar o
claro e mais seguro do conhecimento estabelecido. Não é certo nem
inacreditável que o que nos parece estranha perversidade,
inconformismo surpreendente, desobediência, possa servir para dar
mais um passo em direção ao 'terrível oculto das coisas' […] (apud
XAVIER, 1983, p. 287)

A visão epsteiniana sobre o tratamento que os objetos de cena devem receber no

processo de captação, além de apontar para preferência vanguardista por uma narrativa

fílmica que indica muito mais do que oferece informações transparentes ao espectador,

transforma tais objetos em elementos relevantes à superação de carências discursivas

típicas da estética do cinema mudo, como a economia de diálogos e a ausência, por

exemplo, do recurso voice-over, que poderia se responsabilizar por eventuais

esclarecimentos acerca das seqüências narrativas.


94

No início do filme há exemplos claros, embora simples, da importância

adquirida pelos objetos na estética epsteiniana. Durante a chegada do visitante, através

do close-up, a câmera focaliza muito mais detalhes da figura da personagem do que o

seu todo, destacando principalmente as malas que ele carrega. Logo, ao abrir a porta da

taverna, uma dessas malas é focalizada, funcionando, assim, como um recurso

discursivo que explica tanto aos personagens que avistam o visitante, como para o

espectador, que se trata de alguém recém-chegado às imediações. Assim, o objeto

aparentemente sem relevância ao contexto narrativo ganha novas atribuições,

contribuindo para o processo de construção de sentido na seqüência.

A atribuição de novas possibilidades discursivas e de significação aos objetos

exige, entretanto, uma maneira peculiar de captação: o close-up ou primeiríssimo plano,

que, para Epstein, representava a "alma do cinema" (XAVIER, 1983, p. 278). Tal

recurso é utilizado à exaustão em diversos momentos da narrativa, sempre

comprometido com a concessão de um novo potencial semântico aos objetos e até

mesmo a partes do corpo das personagens. A utilização do close-ups remete ao conceito

de fotogenia - enfocado amplamente pelos cineastas impressionistas, em busca de uma

identidade do cinema enquanto arte. Delineado como o específico cinematográfico, o

conceito de fotogenia era considerado como pertencente à ordem do inefável e,

portanto, de difícil definição.

Tal princípio estaria ligado à constituição de objetos-personagens, que

corresponderiam aos elementos de cena que, captados através do olhar mais subjetivo

da câmera (através dos planos aproximados), adquiririam importância diegética de

personagens, tornando-se responsáveis pelo desvelamento de detalhes importantes da

narrativa. A fotogenia, segundo Epstein, seria a capacidade exclusiva da arte


95

cinematográfica em revelar tais aspectos de objetos que, inicialmente, poderiam ser

considerados como acessórios (mais uma vez, é possível perceber ressonância da teoria

poeana sobre a composição literária, no que se relaciona à valorização de elementos

textuais aparentemente irrelevantes, a ponto de transformá-los em portadores de

informações fundamentais à atribuição de sentido).

Embora fosse considerado excessivamente abstrato, o conceito foi amplamente

discutido entre os cineastas franceses e estaria, então, relacionado à essência do cinema

e equivaleria a "qualquer aspecto das coisas, seres ou almas cujo caráter moral seja

realçado pela reprodução cinematográfica" (STAM, 2006, p. 50). Como vimos

anteriormente, tal aspecto teria sua viabilidade associada a aspectos como a mobilidade

espacial e temporal e a atribuição de personalidade aos objetos.

Assim, em A queda da casa de Usher, o espectador mantém contato com a

manifestação desse conceito. A utilização de close-ups é marcante e a atribuição de um

maior potencial discursivo a elementos que poderiam ser considerados desprovidos

disso. O exemplo citado anteriormente ilustra de forma clara a associação entre

mala/visitante/outsider (it). No entanto, ao longo da narrativa, apresentam-se outros

exemplos representativos da condição de mobilidade espacial e temporal, isto é, a

variação semântica que tais elementos apresentam em diferentes pontos da história.

A narrativa é repleta de objetos dotados de um certo grau de personalidade e,

conseqüentemente, de carga simbólica. As cortinas que se agitam com o vento, os livros

empilhados que em um determinado momento despencam lentamente, a armadura

medieval que também cai, o alaúde de Roderick que tem as cordas quebradas, parecem

participar da história. A variação desses elementos ao longo do tempo da narrativa torna

mais evidente o caráter pouco comum dos eventos.


96

A seqüência em que Madeline é sepultada ilustra perfeitamente a utilização da

fotogenia dos objetos na produção de um determinado sentido. O objeto em foco nela é

o martelo que lacra o caixão da mulher, mesmo contra a vontade do esposo. No

primeiro momento em que ele é colocado em plano aproximado, Roderick proíbe sua

utilização, indicando a não aceitação da morte ou ânsia do personagem em relação ao

retorno de sua esposa à vida. Num segundo momento, já na sepultura, o martelo é

colocado em close-up e em câmera lenta, lacrando o caixão, apesar dos protestos de

Usher: dessa vez, o objeto ganha uma outra carga semântica, pois passa a simbolizar a

condenação de Madeline à morte, servindo como um elemento que justifica a

perplexidade que toma conta do espectador quando presencia a volta da mulher à casa.

Nesse caso, esse elemento ganha a importância de um personagem, sendo

responsável por desencadear emoções ambíguas em Roderick, que tem suas esperanças

sufocadas ao ver que sua esposa foi confinada, mas mesmo assim ainda preserva a

expectativa pelo seu retorno. Assim, dessa vez, temos a associação de um elemento

cênico (e de sua atuação na narrativa) a um sentimento: martelo/desilusão,

desesperança. Tal exemplo traz à tona a atribuição de densidade emocional aos objetos,

aspecto que compõe, para Epstein, o diferencial da linguagem cinematográfica.

A câmera de cinema, para isso, se torna não apenas uma captadora de emoções,

mas a máquina que se responsabilizaria pela transmissão de tais emoções ao espectador.

No entanto, a máquina deveria se comprometer intensamente com a atmosfera da

narrativa, criando um envolvimento sensorial e emocional do espectador com os rumos

da obra fílmica. Um exemplo dessa associação entre câmera e mise-en-scène, são as

imagens de Roderick Usher: freqüentemente captado em primeiro plano ou em close-up,

contamina o espectador com suas emoções que oscilam entre obsessão, profunda
97

tristeza e angústia. Isso se dá através da adoção do ângulo aproximado de seu rosto e

das expressões colocadas pelo ator. Nesse caso, o comprometimento da câmera com a

narrativa cumpre o papel de intensificador das sensações do personagem e de seu estado

emocional. Segundo Epstein, esse recurso corresponderia a uma "estética da

proximidade":

A sucessão de detalhes que, nos autores modernos, substitui o


desenvolvimento e os close-ups de Griffith realçam esta estética de
proximidade. Entre o espetáculo e o espectador, nenhuma rampa. Não
olhamos a vida, nós a penetramos. Esta penetração permite todas as
intimidades. Um rosto, sob a lupa, rodopia, exibe uma geografia febril.
(...) Nenhum estremecimento me escapa. (apud XAVIER, 1983, p.270)

Em Usher a câmera realiza essa tarefa de se aproximar do elemento fílmico na

intenção de expor emoções e/ou sensações com competência. A captação das imagens é

totalmente comprometida com a sensação despertada pelo filme, e ao longo da

narrativa, ela parece estar cada vez mais envolvida com o que se passa, assemelhando-

se a um narrador literário diante dos eventos dos quais participa e relata. A perda da

impassibilidade da captação da câmera recai na noção de realidade imposta pelo cinema

de vanguarda. Uma vez contaminada pela atmosfera narrativa, a câmera adere ao

universo do filme e adquire a capacidade de (re)criar a mais diversas realidades.

A recriação da realidade pelo viés do olhar diferenciando que deverá ser

direcionado aos elementos fílmicos e à narrativa evoca a necessidade de manipulação de

recursos técnicos direcionados à composição dessa nova noção de real proposta pelo

cinema. Jean Epstein se posiciona a favor, por exemplo, da manipulação do tempo,

declarando que:

A câmera lenta, na verdade, conduz a dramaturgia a um novo patamar.


Seu poder para revelar a ampliação das emoções dramáticas, sua
98

infalibilidade ao assinalar os movimentos mais sinceros da alma são


tais que, neste momento, supera a todos os demais modos trágicos.
Estou seguro, e assim como todos os que assistiram a trechos de La
chute de la maison Usher, de que, se fosse realizado um filme em
câmera lenta sobre o interrogatório de um acusado, a verdade surgiria
para além de suas palavras, sagrada, única, evidente; de que não mais
haveria necessidade de indiciamento, de discursos de advogados, e
tampouco de qualquer outra prova além da oferecida desde as
profundezas da imagem. (EPSTEIN apud STAM, 2006, p. 52)

O empenho do cinema avant-gard em apresentar uma realidade diferenciada

orienta as escolhas estilísticas de Epstein na recriação do universo de Usher. Orientado

pela atmosfera fantástica que se desenvolve no conto, mas evitando as fórmulas mais

previsíveis de envolvimento do espectador, o cineasta lança mão das variadas

possibilidades técnicas, devidamente sintonizadas com seus princípios teóricos na

tentativa de compor um mundo em que as sensações têm mais relevância diegética do

que os próprios eventos narrativos.

4.2 Recriação da atmosfera fantástica

O tratamento dado ao aspecto fantástico de A queda da casa de Usher se

diferencia, por exemplo, do ilusionismo de Méliès e das imagens explícitas da estética

dos filmes de terror. A seqüência inicial faz referência mais clara ao Expressionismo -

estética que, em cinema, recorre essencialmente à composição visual do filme na

intenção de retratar estados psicológicos e emocionais - através do apelo de expressões

faciais impactantes, caracterização marcante de personagens, contrastes entre claro e

escuro e enquadramentos pouco comuns, como o que encerra a seqüência com a

focalização do rosto apavorado de uma mulher deslocado do centro do quadro (figura

3), compondo o mistério que envolve a casa e antecipando ao espectador que existe algo

terrificante à espera do visitante, ao qual é sonegada qualquer tipo de informação acerca

do seu destino.
99

Com o primeiro contato com a casa de Usher no filme, o que antes parecia

mistério e temor insinuado dos personagens da taverna ganha novas dimensões. O

anúncio da chegada do visitante se dá com a aplicação de um letreiro com a palavra

"Usher" tomando toda a tela, associando o sobrenome e o cenário anunciado a algo de

temeroso, ou sufocante. A partir desse momento, há um choque decorrente da mudança

de velocidade aplicada nas cenas internas à casa. O espectador presencia a diferença de

tom na narrativa que se faz perceber através da câmera lenta. O plano geral do aposento

principal da casa apresenta seus personagens mais relevantes: Roderick e Madeline

Usher. O deslocamento de Madeline de um ponto a outro do cenário, revela o recurso de

retardamento do tempo e sugere um clima de morbidez.

O recurso de manipulação do tempo é apontado por Epstein em A inteligência de

uma máquina (L'inteligente d'une machine) como uma possibilidade técnica que

acrescentaria profundidade à linguagem cinematográfica, já que, contando com ele, o

cinema seria capaz de:

[…] multiplicar e abrandar imensamente os jogos da perspectiva


temporal, levando a inteligência para uma ginástica que lhe é sempre
penosa: passar do absoluto arraigado a instáveis condicionais. Neste
ponto, ainda, esta máquina que estica ou condensa a duração,
demonstrando a natureza variável do tempo, que prega a relatividade de
todos os parâmetros, parece provida de uma espécie de psiquismo.
(XAVIER, 1983, p. 289)

Esse ritmo diferenciado através do qual se delineia a atmosfera da casa funciona

como indicador de uma outra realidade distinta daquela com a qual o espectador

manteve contato até então, instalando, portanto, o universo de Usher na tela e impondo

um contexto narrativo em que predomina o caráter excepcional dos acontecimentos.

Assim, tal recurso se torna um dos responsáveis pela composição do fantástico no filme.
100

A desaceleração do tempo é visível ao longo de todo a narrativa fílmica, mas

toma o sentido colocado nos textos de Epstein, sobretudo na seqüência em que

Madeline (além de doente, exausta pelo longo tempo que permanece posando para o

retrato que Roderick faz dela) desvanece: em primeiro plano, o movimento de sua

cabeça é colocado numa velocidade inferior, sendo possível visualizar os quadros, até

que em determinado momento seu rosto se assemelha ao de uma estátua, através de uma

sobreposição de imagens. Essa seqüência remete ao estado de impotência e fragilidade

da personagem em relação à obsessão de Roderick e ao aspecto sobrenatural da casa de

Usher, sem recorrer aos letreiros para explicitar tal situação. Tal seqüência traz à

superfície o caráter insólito da narrativa e circunscreve o espectador nesta atmosfera,

sem, no entanto, operar por ilusionismo. Ao invés de buscar compor uma cena que o

envolva pela impressão de realidade, o filme desafia o olhar do espectador, fugindo

completamente às regras narrativas ao explicitar um recurso técnico de tal forma a fazê-

lo perceber que essa manipulação da velocidade implica na percepção de um mundo em

desacordo com a realidade aceitável.

A sensação produzida pela seqüência do desvanecimento de Madeline remete às

intenções criadoras do cineasta que determina que o "retardamento do tempo mortifica e

materializa", de tal forma que:

[…] numa projeção lenta […] observa-se uma degradação das


formas que, ao sofrerem uma diminuição em sua mobilidade,
perdem algo de sua qualidade vital. Por exemplo, a aparência
humana é privada, em boa parte, da sua espiritualidade. […]
Quando a projeção é ainda mais lenta, toda substância viva
retorna à sua viscosidade fundamental, deixando vir à tona sua
natureza essencialmente coloidal. E finalmente quando não há
mais movimento visível num tempo bastante dilatado, o homem
torna-se estátua, o vivo confunde-se com o inerte, o universo
involui num deserto de matéria pura sem traço de espírito.
(EPSTEIN apud XAVIER, 1983, p. 292)
101

Dessa forma, a seqüência em questão evoca a proximidade das personagens

com a morte e ausência de fervor nas suas existências completamente subordinadas ao

desconhecido, ao aspecto sobrenatural do ambiente que ocupam. Após o sepultamento

de Madeline, a narrativa admite um ritmo diferenciado, na intenção de marcar a

monotonia e ansiedade pelas quais Roderick foi acometido. No início, quando são

mostradas imediações da casa para indicar passagem de tempo, os elementos indicam

uma aparente normalidade: árvores ao vento, a correnteza do lago, os movimentos das

nuvens. No entanto, quando o foco de atenção se volta ao espaço interno da casa e

câmera parece assumir o ponto de vista de Roderick, estabelece-se mais um choque.

A sonorização intensifica os acordes repetitivos da música, evocando monotonia

e impaciência e novamente a manipulação da velocidade se responsabilizará pela

transmissão de uma atmosfera sufocante que parece anunciar a ordem sobrenatural dos

eventos que se apresentarão. Aqui, o pêndulo do relógio, mostrado também em plano

aproximado, realiza um movimento ainda mais lento, enfatizando o estado emocional de

Usher e compõe a mise-en-scène, servindo como símbolo da espera do personagem.

Mais adiante, o mesmo ponteiro é focalizado em primeiríssimo plano e confirma

a associação relógio/espera. Quando a espera de Roderick atinge seu ponto máximo, as

imagens passam por um processo de desfoque (imagens flou): o relógio se multiplica

em dois, o assoalho parece se suspender, os adornos da casa parecem se mover de suas

posições firmadas e as mãos do personagem, em primeiríssimo plano, parecem

estremecer.

A seqüência em questão, além de comunicar ao espectador a espera de Roderick

por Madeline, compõe um exemplo em que se evidencia o redimensionamento do


102

aspecto fantástico para a tela. Evitando recorrer ao enredo (a seqüência é praticamente

isenta de acontecimentos dotados de potencial narrativo, tratando-se de uma ampliação

de eventos corriqueiros na intenção de intensificar o clima de monotonia da seqüência)

e negando centralizar a composição dessa atmosfera apenas na construção de um espaço

permeado de elementos estranhos ou na caracterização das personagens e na atuação

dos atores, o filme trata do fantástico de forma diferenciada, predendo-se mais ao seu

potencial polissêmico. Ao focalizar em close-up objetos que poderiam ser considerados

banais, ao distorcer a imagem ao invés de torná-la facilmente discernível e ao impor um

ritmo quase insuportável ao espectador, o filme dialoga diretamente com o discurso

fantástico, voltado ao caráter insólito e excepcional que determinados elementos

adquirem e ao enfoque pouco comum que lança sobre a realidade convencional.

Assim como o texto poeano, o filme baseia a construção do fantástico em um

sistema de insinuações e opacidades que exige uma verdadeira "ginástica" da percepção

e relativiza a noção conhecida de real. Esse aspecto relativo da realidade vigente,

segundo Epstein, pode se fazer visível através da linguagem cinematográfica:

[…] o espaço-tempo cinematográfico aparece antes de mais nada como


um campo de identidade muito virtual, muito conjectural, onde a
identificação se faz decididamente através de analogias, através de
hipóteses, que estão sempre se refazendo como a criação de uma
verdade sempre relativa e ameaçada de inacessibilidade, comportando
um grau de incerteza superior àquele do mundo real. (EPSTEIN, 2002,
p. 10, tradução nossa)

Com isso, Epstein dá a entender que o cinema, tratando a realidade convencional

apenas por aproximação, caracteriza-se como um eficiente meio de expressão do

fantástico, uma vez que trabalhará com um grau de incerteza que contrasta com a noção

de realidade à qual temos acesso. Além disso, a manipulação técnica viabiliza diversas
103

possibilidades de abordagem do fantástico, tendo sido, no caso da obra epsteiniana,

utilizada em nome dessa incerteza apontada pelo teórico.

Embora voltadas ao discurso literário, às teorias acerca do fantástico apresentam

alguns pressupostos que entram em consonância com o aspecto que esse assume no

cinema. Segundo a afirmação anterior de Epstein, a linguagem cinematográfica,

especificamente no que se relaciona ao tempo e ao espaço, origina uma relativização da

verdade. Essa nuance se relaciona com a questão da ambigüidade, apontada por Filipe

Furtado, como aspecto que determina a incursão da atmosfera fantástica em uma

determinada narrativa. A ambigüidade operaria pelo fato de desafiar o senso comum ao

promover o contato e a coexistência entre insólito e familiar e admitir a interpenetração

das noções de real e imaginário.

No cinema, sobretudo em A queda da casa de Usher, o fantástico se torna

perceptível basicamente pela diluição de limites entre real e imaginário - característica

fundamental da linguagem cinematográfica - através da criação de um universo

narrativo que desafia freqüentemente o olhar do espectador.

Ao contrário do discurso fantástico na literatura, o filme de Epstein apela menos

para a fenomelogia meta-empírica (eventos insólitos de grande impacto) e,

aproximando-se mais da visão de Poe sobre esse aspecto, privilegia o mundo das

sensações e emoções que o conjunto de elementos desperta nos personagens. O caráter

lúdico da relação entre real e irreal imposta pelo fantástico, na visão da teoria

epsteiniana, compõe as particularidades da linguagem cinematográfica. Embora não

tenha se referido diretamente ao tratamento do fantástico pelo cinema, Epstein apresenta

uma visão bem próxima ao que foi apontado pelos teóricos como uma das
104

características mais relevantes - a realidade como uma soma de irrealidades:

O cinema nos indica que o contínuo e o descontínuo, o repouso e o


movimento, longe de serem dois modos incompatíveis de realidade, são
dois modos de realidade facilmente inter-relacionáveis […] Não há
exclusividade de um ou de outro […] Contínuo e descontínuo repouso e
movimento, cor e branco jogam simultaneamente o jogo da realidade.
(p.8 tradução nossa)

Assim, o universo de Usher na tela resulta da apresentação de uma realidade

alternativa, de um esforço estético em redimensionar semanticamente elementos

fílmicos, transformando-os em condutores do espectador a essa nova concepção.

A fotografia epsteniana é realizada de forma a ressaltar as sombras: auxiliado

pela estética do preto e branco, o cineasta opta pela valorização de uma iluminação

pouco realista, que produz a impressão de que no espaço interno da casa de Usher é

sempre noite, aspecto realçado pela presença constante de velas. Em praticamente todas

as seqüências internas predomina o tom negro e a obscuridade, aspectos que remetem ao

caráter sombrio da narrativa e à opacidade à qual o fantástico deve estar associado,

evitando lançar luz sobre elementos que possam prejudicar o tom de indefinição. A

nebulosidade através da qual o mundo de Usher se mostra ao espectador entra em

choque com a visão convencional de realidade, indica que lá se estabelecerá um jogo de

claro e escuro perceptível não apenas pelo aspecto plástico do filme, mas pela maneira

de se orientar o desenvolvimento da narrativa.

Ainda no que se relaciona com a configuração visual do filme, temos a questão

do espaço no qual predomina a ação. O primeiro aposento da casa de Usher é uma sala

ampla, captada através de um plano geral que revela a existência de poucos objetos

cênicos, permitindo uma maior percepção do espaço em si. Os poucos elementos que
105

compõem o cenário encontram-se dispersos no espaço, sempre envoltos em sombras.

Além de enfatizar o tom de melancolia e abandono da casa, esses caracteres evocam um

olhar mais apurado sobre a composição visual e principalmente sobre as lacunas que

deverão ser preenchidas pelo espectador no processo de incursão à atmosfera fantástica

do filme.

Refletindo o pensamento epsteiniano sobre o cinema orgânico ou total, há

também o envolvimento de estratégias narrativas na transmissão da atmosfera fantástica

pelo filme. Um dos aspectos que assumem a função de desorientadores do espectador é

a economia de letreiros indicadores dos diálogos. Inúmeras seqüências em que há troca

de informações entre as personagens são mostradas sem que haja a posterior colocação

de letreiros. Com isso, o espectador é levado a, com base em uma gama limitada de

informações verbais e em dependência dos elementos que se apresentam de forma mais

ou menos clara, a inferir o que foi dito. Tal recurso é responsável pela construção de

uma ambigüidade que acompanha a toda ação, uma vez que nada é revelado de forma

explícita e grande parte dos indícios significativos se encontram imersos na

nebulosidade do mundo de Usher.

A variação do ponto de vista da câmera também realiza um papel fundamental

para o fantástico em A queda casa de Usher. Em diversos momentos, obedecendo às

proposições teóricas de Epstein, a câmera perde sua impassibilidade e transpõe a função

de máquina meramente registradora da ação, assumindo diferentes pontos de vista. No

entanto, o aspecto fantástico se torna ainda mais marcante quando se mostra o ângulo de

visão de Roderick sobre a ação. A partir do momento em que se percebe que o recurso

da câmera subjetiva se voltou para o protagonista, a ação parece assumir uma dimensão

de absurdo, levando o espectador a duvidar das imagens que se formam: desfoque e a


106

desaceleração radical dos movimentos são apenas alguns dos aspectos que, pelos olhos

de Roderick, compõem a tensão entre real e irreal, verdade e sonho. Assim como no

discurso fantástico literário, o filme epsteiniano traz a possibilidade da coexistência

entre diferentes visões sobre o fantástico, criando, na verdade, uma outra dimensão de

real em que é possível o embate e a diluição de limites.


107

5 A queda da casa de Usher: do conto ao filme

A queda da casa de Usher explicita uma relação ímpar entre literatura e cinema.

No filme é possível encontrar não apenas o enredo do conto homônimo, como

referências, alusões e intertextualidades com a obra de Edgar Allan Poe de uma forma

geral. A visão de Jean Epstein acerca de tal relação esclarece suas escolhas discursivas

no processo de adaptação do conto e revela o caráter revolucionário de seu ponto de

vista diante de uma questão que, na época, apresentava-se como um problema, dentre

outros aspectos, hierárquico:

Epstein, que também se contrapunha à mera imitação de processos


literários na construção de um filme, defendia o que se chamava de um
'cinema do diabo', ou seja, um cinema rebelionário em relação aos
modelos instituídos, capaz de promover um 'equilíbrio instável' entre o
racional, as forças institivas do inconsciente e o jogo 'demoníaco' das
analogias [...] (MACIEL, 2003, p. 114)

O contexto da produção cinematográfica epsteiniana trazia um cinema que,

considerado um meio de expressão ainda jovem, associava-se a textos literários

canônicos na tentativa de adquirir status de arte respeitável. De certa forma, tais

esforços acabaram por gerar um discurso comparativo que geralmente relegava a obra

fílmica a uma posição de inferioridade em relação ao texto tomado como fonte.

Em relação a esse aspecto, Epstein assume uma postura radical, mas que

explicita sua visão sobre a questão da associação literatura/cinema. Em Le cinema du

diable (O cinema do diabo, 1947), o teórico defendia uma maior autonomia para a

linguagem cinematográfica:

[...] se, ao invés de pretender imitar os processos literários, o filme


tivesse se empenhado em utilizar os encadeamentos do sonho e do
devaneio, já teria podido constituir um sistema de expressão de extrema
108

sutileza, de extraordinária potência e rica originalidade. E essa


linguagem não pareceria desaprumada, desnaturada, meio perdida em
esforços ingratos para apenas repetir o que a palavra e a escrita
significavam com facilidade. Ao contrário teria aprendido a captar,
seguir a trama fina e móvel de um pensamento menos superficial, mais
próximo da realidade subjetiva, mais obscura e verdadeira. (apud
XAVIER, 1983, p. 298)

Tal afirmação remete à convicção epsteiniana que dá conta de que o cinema

seria uma arte capaz de realizar a abordagem de uma realidade alternativa de forma

mais eficiente, graças ao seu aparato técnico. Além disso, evoca a concepção então

vanguardista de desvencilhamento do cinema em relação às outras artes, mas antecipa o

teor que a relação entre literatura e cinema deveria assumir. Ainda segundo Epstein, tal

relação deveria priorizar a superposição das estéticas (apud XAVIER, 1983, p. 270), já

que ambas contavam com procedimentos discursivos complementares (como a

capacidade narrativa, a possibilidade de construir textos opacos, o processo de

metaforização) colocação que justifica os rumos que A queda da casa de Usher toma no

processo de adaptação fílmica.

Apesar da manutenção do título - La chute de la maison Usher - a obra fílmica

de Epstein apresenta um enredo diferenciado do conto de origem. Além disso, é

possível perceber contatos intertextuais com outros textos poeanos, como Ligeia

(Ligéia) e The oval portrait (O retrato ovalado). Dessa forma, o filme compõe uma rede

de reflexos da obra poeana, fator que vai de encontro a noções relacionadas ao processo

de adaptação fílmica, como a fidelidade. A questão da fidelidade enquanto critério

qualitativo da obra adaptada consiste em um aspecto que se mostra acessório diante da

gama de relações que o texto literário e filme podem travar.

A idéia de fidelidade, geralmente atrelada a preconceitos culturais, traz à tona

questões ligadas à hierarquização dos discursos envolvidos no processo de adaptação: a


109

literatura associada à inatingibilidade e a impossibilidade de "reprodução" por um outro

meio de expressão, o cinema relacionado à cultura de massa e, por isso, relegado à

condição de inferioridade e insuficiência diante do poder da palavra escrita. Como

vimos, a teoria epsteiniana, devido à sua orientação vanguardista, compõe uma

alternativa a esse pensamento que se reflete na construção do universo de Usher nas

telas. Assim, a idéia de fidelidade, também no caso da cinematografia de Epstein,

apresenta-se como uma noção impossível de ser aplicada à relação literatura/cinema

pelo fato de que os veículos envolvidos compõem uma série de procedimentos estéticos

distintos e pressupõem características específicas a cada um deles. Logo, para Robert

Stam, o discurso a favor da fidelidade deve ceder lugar ao reconhecimento das

particularidades de cada meio de expressão:

Nós podemos falar em adaptações bem feitas ou mal feitas, mas desta
vez orientados não por noções rudimentares de 'fidelidade', mas sim,
pela atenção à 'transferência de energia criativa', ou às respostas
dialógicas específicas a 'leituras' e 'críticas' e 'interpretações' e 're-
elaboração' do romance original, em análises que sempre levam em
consideração a lacuna entre meios e materiais de expressão bem
diferentes. (2006, p.51)

De uma forma geral, as escolhas discursivas de Epstein refletem sua postura de

liberdade em relação ao texto poeano. O enredo, de maneira geral, traça relações com

outros contos de Poe: Roderick e Madeline Usher são, para as telas, casados. O

espectador conhece um Roderick obcecado pela esposa, canalizando tal obsessão para

um quadro através do qual tenta representá-la com perfeição. Essa visibilidade da arte

no filme ganha mais espaço quando o retrato de Madeline parece roubar sua vida,

configurando uma relação intertextual do filme com outro conto de Poe, O retrato

ovalado. Esse aspecto diz respeito a uma das categorias para análise do processo

adaptação fílmica estabelecida por Francis Vannoye, a da adição:


110

[...]os adaptadores normalmente sentem a necessidade de introduzir


elementos novos que façam a tradução não-literal de aspectos do
romance [ou conto] que não poderiam ser traduzidos de outra forma
[...] a adição pode consistir do mero acréscimo de novos elementos
(imagens, ações, personagens, cenários, diálogos, etc.) ou da dilatação
dos já existentes. Deste modo, um pequeno detalhe, físico ou psíquico,
que não havia no romance pode aparecer no filme como um deflagrador
semântico importante [...] (apud BRITO, 1996, p.22)

No caso do filme em questão, houve a adição de elementos pertencentes a um

outro texto do mesmo autor, isto é, ao invés de inserir uma idéia sua, o adaptador se

serviu da obra de Poe. Esta estratégia serve aos interesses diegéticos do filme, já que em

A queda da casa de Usher, conto, privilegia-se muito mais a construção de uma

atmosfera, relegando a segundo plano a ocorrência de pequenos eventos narrativos que

auxiliem no desenvolvimento da história. Essa ênfase à atmosfera e a carência

acontecimentos ao longo da história no conto se configura como um possível problema

à narratividade do filme. Esse aspecto orienta, portanto, a colocação de cenas relevantes

à narrativa fílmica que, no texto escrito, são apenas sugeridas, ou tratadas de forma sutil.

A morte de Madeline no conto mobiliza apenas um breve comentário do narrador,

enquanto no filme, ganha destaque ao qual é de fundamental importância a

intertextualidade com O retrato ovalado, já que, a seqüência, além de mostrar Roderick

pintando o retrato de sua esposa, responsabiliza essa atitude pela morte da mulher,

levando o espectador a inferir que o quadro "roubou" a vitalidade de Madeline. Essa

conclusão é orientada pelo letreiro que traz a fala de Usher após o término da pintura:

"En verité, c'est la vie même", diz o personagem com relação ao quadro, ignorando

completamente a morte da esposa.

Epstein, então, realizou a dilatação de elementos diegéticos de pouca

visibilidade no conto, através da adição de outros aspectos pertencentes a outras obras

de Poe, valorizando muito mais a idéia de recriar a história do conto, através de uma
111

relação intertextual entre o filme e outros textos de Edgar Allan Poe. Dessa forma, os

procedimentos do cineasta se aproxima do que Brian McFarlane definiu como

deslocamento (transfer), em que as obras envolvidas se distanciam no que se relaciona

ao modo como a trama é arquitetada:

Romance e filme podem compartilhar a mesma história, o mesmo


'material bruto', mas distinguem-se pelas diferentes estratégias de
trama, que alteram seqüências, destacam diferentes aspectos, que – em
uma palavra – desfamiliarizam a história. (1996, p. 23, tradução nossa)

Nesse caso, o termo "desfamiliarização" remete a possíveis mudanças que o texto fonte

possa sofrer no processo de adaptação. Esse aspecto atenta às peculiaridades de cada

uma das linguagens e contempla a capacidade de cada um em tratar de um mesmo tema

de formas distintas.

O universo de Usher na tela compreende uma série de opções do adaptador com

relação à composição fílmica e revela sua visão sobre o "material bruto" que emerge do

conto. Alguns exemplos ilustrativos dessas escolhas consistem em elementos

deflagradores do caráter dialógico do processo adaptação de A queda da casa de Usher,

orientado por mudanças, deslocamentos e redimensionamentos necessários à

sobrevivência do aspecto polissêmico da obra fílmica.

5.1 O universo de Usher nas telas : deslocamentos, redimensionamentos,

adaptações

Nos primeiros momentos de A queda da casa de Usher, é possível perceber

algumas distinções entre conto e obra fílmica. No entanto, tais distinções não

desvalorizam o texto fílmico, pelo contrário, transforma-o em um discurso autônomo

resultado da consciência de que: "Uma única história pode ser contada de vários modos;
112

ou seja, uma única fábula pode ser constituída por meio de inúmeras tramas, com

formas distintas de dispor dados, de organizar o tempo" (XAVIER, 2003, p. 65).

Assim, orientado pela práxis cinematográfica de vanguarda, Epstein lança mão

das possibilidades da linguagem cinematográfica no sentido de recriar a obra de Poe

para as telas, atentando para o valor de cada um desses recursos em relação à construção

da narrativa fílmica. Dessa forma, o adaptador traça uma relação mais atenta às nuances

ao texto de origem, manipulando-o de acordo com seus interesses discursivos, como

afirma Robert Stam:

[...] é uma densa rede informacional, uma série de pistas verbais que o
filme vai adaptá-lo pode escolher, amplificar, ignorar, subverter ou
transformar. A adaptação cinematográfica de um romance [ou de um
conto] faz essas transformações de acordo com os protocolos de um
meio distinto, absorvendo e alterando os gêneros e intertextos através
do prisma dos discursos e ideologias em voga, e pela mediação de uma
série de filtros [...] (2006, p.50)

O início do filme traz uma breve exibição do ambiente externo às proximidades

de Usher e de um personagem que parece perdido. A chegada a tal conclusão é possível

através da colocação de uma placa aparentemente abandonada com o nome da família

entre folhas. Dessa placa só é possível visualizar uma parte da palavra: she, que se

relaciona de forma intrínseca com o problema central da narrativa, a ligação insolúvel e

doentia que há entre os personagens Roderick e Madeline com a casa. O pronome

pessoal she inserido na palavra Usher está ligado a essa simbiose existente entre esses

três elementos.

Tal detalhe, portanto, age também como um índice ao conflito principal e abre

diversas possibilidades de interpretação, cumprindo a função de objeto-personagem, já

que assume importância discursiva tanto na construção da narrativa em si, como na


113

composição de um indício relevante à atribuição de sentido. Além disso, caracteriza-se

uma estratégia do processo de adaptação no sentido de indicar ao espectador a natureza

da relação personagens/casa de Usher e da atmosfera da narrativa antes mesmo de

recorrer à ação no ambiente interno da casa.

A figura do narrador - fisicamente representada, tanto no conto, como no filme,

através de um visitante que testemunha os acontecimentos - chega a uma taverna, onde

transcorrerá a seqüência responsável pela introdução da narrativa. Enquanto o conto se

inicia com passagens em que predomina a descrição já do aspecto externo da casa de

Usher através da qual se constrói o clima de mistério, o filme recorre a mise-en-scène na

intenção de estabelecer esse aspecto no filme.

Assim, as expressões faciais dos atores, a iluminação do cenário e o clima de

cumplicidade que se percebe haver entre os personagens e a colocação da carta de

Roderick na cena são elementos fundamentais à compreensão dos momentos iniciais da

narrativa. Essa adição foi realizada em função da narratividade, uma vez que, sem essa

breve introdução, o espectador dificilmente teria acesso a informações necessárias à

continuidade do processo de construção de sentido.

O estabelecimento de uma atmosfera de obscuridade nessa seqüência, portanto,

ocorre não apenas através da utilização de objetos cênicos, mas também através da ação

das personagens, que produzem tal efeito através da indicação de que a palavra Usher

evoca algo assustador ou misterioso. Além disso, a manipulação dos letreiros - com o

sobrenome da família em tamanhos reduzidos, indicando o tom sempre sussurrante da

fala das personagens – indica que os freqüentadores da taverna preservam um certo

terror em relação à casa de Usher e que guardam informações que não são repassadas ao

visitante.
114

A seqüência que apresenta o espectador ao cenário da casa de Usher já explicita

a inserção de O retrato ovalado na adaptação através do letreiro, que anuncia que

Roderick e Madeline são casados, e da ação, que confirma o contato intertextual com o

conto em questão: o espectador presencia Roderick pintando o retrato da esposa. O

cruzamento dos contos A queda da casa de Usher e O retrato ovalado consiste também

na "amplificação" (STAM, 2006, p. 40) de uma característica da personagem Roderick

(o gosto pelas artes e o talento para a pintura) que, no texto escrito, apresenta relevância

diegética, sem, contudo, consistir em um elemento interessante à composição da

narrativa, como acontece no filme.

Com a chegada do visitante à casa, surge uma personagem também existente no

conto, mas que, no filme, ganha maior representatividade. O texto escrito se utiliza da

figura do médico como mais um elemento relacionado à ambigüidade, já que mesmo

sendo dotada de uma carga simbólica relacionada à confiabilidade, a personagem se

apresenta tão imersa no sobrenatural, quanto Roderick . No filme, percebe-se a

manutenção da associação médico/racionalidade: a caracterização e a ação da

personagem denotam seu interesse em chamar o protagonista à realidade e em manter a

razoabilidade, fomentando a oposição entre real/ilusório.

A composição do cenário principal também representa estratégias discursivas do

filme no sentido de produzir a dialética supracitada. O plano geral do aposento de

entrada da casa revela uma notável amplitude e a presença de elementos reveladores. A

escada que se mostra ao fundo do campo traz a imagem do médico e na parte inferior,

percebem-se as figuras de Roderick e do visitante. Essa configuração se relaciona com a

idéia de contraste entre a parte mais alta e a mais baixa do cenário, auxiliando na

construção de uma idéia de oposição entre as diferentes realidades das personagens


115

envolvidas na mise en scène. Além disso, a própria colocação de uma escada no cenário

possui relevância semântica, já que esse elemento se relaciona com as idéias de acesso a

um local elevado que, no filme, pode estar relacionado à racionalidade ou ao senso

comum.

Ainda no que se relaciona ao expediente cenográfico, percebe-se uma referência

imagética a Madtrist, a novela de cavalaria lida pelo narrador a Roderick, a qual

compõe uma relação reflexiva com os últimos momentos do conto e também se faz

presente no filme com o mesmo caráter intertextual. Entretanto, no filme, o texto se

encontra transfigurado no cenário: na sala de jantar da família, é possível visualizar uma

espécie de lareira ornamentada por um escudo (instrumento usado pelos caveleiros,

como Ethelred em Madtrist) e cabeças de dragão (como o que o personagem abate para

poder entrar na casa do ermitão). Além disso, em vários momentos da narrativa é

possível perceber a presença de armaduras de ferro. Essa estratégia compõe um jogo de

intertextualidades que revela um interesse do adaptador por todos os aspectos da

composição fílmica e pela manipulação criativa do texto literário, refletindo o

pensamento de Béla Balasz sobre a postura do cineasta em relação ao texto escrito:

O adaptador deve usar a obra existente apenas como matéria-prima,


considerando-a sob o ângulo específico de sua própria forma de arte,
como se fosse a realidade bruta; não tem de se ocupar da forma já
conferida a essa realidade. (apud BRETON, 1987, p. 119)

Ainda na seqüência inicial do filme, o médico chama atenção para uma moldura

de quadro no qual se encontram as inscrições "Ligeia, Lady Usher 1717". Esse elemento

de cena implica tanto em uma alusão ao conto Ligéia, de Poe como em uma inserção do

conto em questão no filme. Percebe-se que Epstein, provavelmente impelido pela

semelhança entre a história de Ligéia e de Madeline, insere a personagem (mesmo que


116

virtualmente) no filme, indicando um parentesco entre elas, enfatizando, na a narrativa

fílmica, o caráter hereditário da obsessiva relação de Roderick e Madeline. Esse contato

intertextual do filme com outras obras de Poe relaciona-se com o procedimento ao qual

Francis Vanoye denominou "apropriação":

termo que [...] designa o processo de integração, de assimilação da


obra, ou de algum aspecto da obra, adaptado ao ponto de vista, à visão,
á estética, à ideologia próprias ao contexto da adaptação. Ela pode
variar da recusa a intervir sobre a obra [...] ao afastamento. (BRITO,
1996, p. 24)

A adaptação de Usher para as telas, além de apresentar diversas estratégias

relacionadas às concepções teóricas do cineasta, traz à tona a prioridade que dada à

questão da sugestão; isto é, o adaptador, ao se apropriar da obra poeana de uma forma

mais geral, transforma tais aspectos intertextuais em elementos relevantes à construção

de sentido, admitindo uma prática discursiva que se baseia na intervenção e na

manipulação da obra de origem.

O desfecho do filme se configura como exemplo relevante dessa estratégia de

adaptação. No conto, Madeline retorna à casa e aparentemente à vida; a fenda existente

na estrutura do prédio se abre ocasionando a queda da casa; Madeline e Roderick

permanecem no interior da casa, enquanto o visitante que conta a história foge,

aterrado.No filme, todos os personagens conseguem fugir da casa a tempo. Tal escolha

pode refletir a preferência de Epstein em associar o caráter fantástico da narrativa mais à

casa de Usher do que aos personagens em si, diluindo assim o caráter simbiótico da

relação que havia entre eles. No entanto, há, ao invés disso, a associação do fantástico

aos personagens e à casa. Assim, a casa cede à opressão e os personagens,

sobreviventes, perpetuarão sua relação obsessiva e, conseqüentemente, o caráter

fantástico que rege suas existências.


117

A queda da casa de Usher, conto e filme, trabalham com o inexplicável de forma

singular. O conto recorre à construção de uma atmosfera através de elementos

diegéticos e da limitação do ponto de vista. Epstein assume uma postura de liberdade

em relação à obra de Edgar Allan Poe, transformando o que poderia significar entraves

ao processo de adaptação em novas propostas para a linguagem cinematográfica,

construindo uma obra que, apesar de se basear numa outra preexistente, desvencilha-se

da idéia de fidelidade, travando uma relação de intercâmbio com a literatura.

Com isso, Epstein parece ter percebido o caráter recorrente da temática poeana e

o caráter auto-referencial de sua obra literária como um todo. Optando por não ignorar

tais características, o adaptador se apropria de textos de Poe, compondo uma adaptação

mais comprometida com o "espírito" (BAZIN apud BRITO, 1996, p. 20) da obra de

origem. Assim, o filme compõe uma adaptação não só do conto que lhe deu nome, mas

um diálogo criativo com a obra de Poe.

5.2 A máquina inteligente: o narrador de A queda da casa de Usher

Além dessas peculiaridades de La chute de la maison Usher, é possível também

chamar atenção para o modo como os efeitos produzidos pela homodiegese no conto

são colocados no filme. Já que o cinema não conta com as possibilidades narrativas da

literatura, este aspecto compõe uma questão importante para a adaptação,

principalmente no caso de um texto literário em que o narrador homodiegético é um dos

responsáveis pela atribuição do tom de imprecisão, para o qual contribuem a atmosfera

melancólica e fantástica da narrativa.

O principal efeito estabelecido pela adoção de um narrador inserido na ação do

conto é o de indefinição, responsável pela construção de um texto em que as


118

informações não estão explicitadas, devendo ser deduzidas pelo leitor. O filme, embora

impossibilitado de adotar tal modalidade narrativa, consegue recriar esse aspecto do

conto através dos elementos de que dispõe.

Durante todo o filme, o espectador é envolvido em uma atmosfera melancólica e

tensa enfatizada pela iluminação, pelo décor, pela linguagem impressionista (que

destaca o aspecto de opressão e obsessão), pela música e caracterização e interpretação

dos atores. Tal aspecto reflete um dos princípios adotados por Epstein na composição

cinematográfica que ressaltava a importância de cada elemento fílmico, sem que um

fosse mais valorizado em detrimento de outro, dando início a um cinema orgânico ou

total:

[...] cinema em que nenhum elemento parcial de criação adquire


proeminência sobre os demais. Nesse tipo de cinema, que chamamos
orgânico e total, à falta de outro nome, a fotografia não domina, nem a
montagem (como na obra dos russos), nem a cenografia (como no
expressionismo alemão caligarista), nem a interpretação dos atores
(como em todas as variantes da aplicação do cinema ao teatro), mas
todos os elementos estão a serviço da transmissão de um determinado
conteúdo, que deverá estar presente ao máximo não só na fita inteira,
como em cada tomada. (SALLES, 1988, p. 61)

A reunião de elementos fílmicos, portanto, pode assumir a função de instância

narrativa, isto é: "o lugar abstrato em que se elaboram as escolhas para uma conduta da

narrativa e da história, de onde trabalham ou são trabalhados os códigos de onde se

definem os parâmetros de produção da narrativa fílmica" (AUMONT, 2005, p. 111).

Dessa forma, no cinema, o ato narrativo seria de responsabilidade dos mais variados

aspectos peculiares à sua linguagem, da colocação de um simples objeto em meio a

cena, passando pelos diálogos ou utilização de voice-over, até a composição de cenários

e a manipulação da fotografia.
119

Assim, "máquina inteligente" apontada por Epstein, corresponde à práxis

cinematográfica de uma forma geral e às suas possibilidades técnicas e estéticas e

assume a responsabilidade pela narração no filme. A mobilização dos recursos fílmicos

em função da transmissão de conteúdo e da construção de um discurso opaco e

polissêmico, se relacionam diretamente com a concepção do teórico. Com base nessa

teoria, é possível inferir que a máquina inteligente corresponde ao cinema que lança

mão dos elementos possíveis e manipula de forma consciente seus recursos técnicos.

Essa convicção orienta, portanto, a construção de uma narrativa que recria de maneira

eficaz o caráter subjetivo produzido pela homodiegese no texto escrito.

Segundo Epstein, a câmera deveria abandonar a impassibilidade. Para ele, essa

seria a diferença fundamental entre a estética francesa e a americana, na qual, até então,

a câmera era responsável pela simples captação das emoções, mas de maneira impessoal

e fria. A câmera, segundo o cineasta deveria ser dotada de uma certa subjetividade,

deveria estar envolvida no processo cinematográfico não só como captadora de

imagens, mas também com a responsabilidade de, juntamente com os outros recursos,

atribuir às imagens uma certa densidade emocional.

Assim, o modo como se opera a captação das imagens é totalmente relacionado

com a sensação que o filme se propõe a despertar no espectador e ao longo da narrativa

ela parece estar cada vez mais envolvida com o que se passa, assemelhando-se a um

narrador literário diante dos eventos dos quais participa e relata. Na seqüência em que o

corpo de Madeline é levado à sepultura, o movimento de câmera assume a cadência dos

passos dos homens que carregam o caixão e uma superposição de imagens de velas e

folhas flutuando acentua o tom de morbidez e já prenuncia o que estaria por acontecer.
120

Nessa mesma seqüência, temos a focalização alternada do médico e de Roderick,

a câmera assume o ponto de vista de cada um deles, denotando a oposição entre a

racionalidade e a perplexidade, respectivamente. A oscilação entre os pontos de vista do

médico (que, no filme, está diretamente ligado ao aspecto racional) e de Roderick

(vítima do desequilíbrio emocional) associada à contaminação da câmera pela mise em

scène apresentada, supre as carências da linguagem cinematográfica em relação à

questão do narrador no processo de adaptação.

Como já foi visto anteriormente, o narrador homodiegético se caracteriza,

basicamente, pelo caráter parcial e limitado de seu ponto de vista que resulta em um

relato permeado de incertezas. No filme, assim como no conto, esse narrador se faz

presente através de uma personagem que, em vários momentos da narrativa, necessita

do auxílio de uma lupa e de uma espécie de aparelho amplificador da audição. Tais

elementos indicam limitações físicas do visitante e se, analisados pelo viés da teoria da

personalização dos objetos, relacionam-se com as limitações discursivas de um narrador

envolvido com a história.

Outro aspecto relevante à questão das lacunas impostas pelo narrador, é o fato de

não haver encontro entre Lady Usher (ainda com vida) e o visitante. Dessa forma,

mantém-se a dúvida acerca de Madeline: enquanto no conto há um encontro rápido no

qual o narrador não consegue discernir a figura da mulher; no filme, o visitante só a

encontra depois de morta. Assim, a seu modo, a obra fílmica consegue estabelecer a

imprecisão e, portanto, a atmosfera fantástica em torno também das personagens,

sobretudo Madeline que é freqüentemente associada à morte e ao imaginário.

A seqüência em que Roderick descobre que sua esposa perdeu a vida compõe

outra adição. Como vimos, no conto, há apenas um comentário sobre o acontecimento;


121

já no filme, tal evento assume importância narrativa e mobiliza os esforços criadores em

função da produção de um tom de perplexidade. Além da expressão desesperada da

personagem e da mise en scène, é notável a manipulação dos recursos técnicos. Há uma

aceleração do ritmo através de travelings rápidos e incomuns com a câmera focalizando

o chão do cenário e, alternadamente, o rosto de Roderick em close-up. É possível

visualizar também angulações inusitadas da câmera em relação ao personagem em

questão, por vezes captando sua imagem em ângulo alto (câmera captando a imagem da

personagem de cima para baixo), enfatizando, assim, a situação de opressão e de

desespero à qual o protagonista foi exposto.

Outra evidência de que em Usher o ato narrativo é resultado do empenho dos

mais variados elementos fílmicos é a presença constante de velas ao longo da narrativa.

Entrando em consonância com o conceito de fotogenia, isto é, apresentando variações

espaço-temporais e assumindo a importância de um personagem da história, as velas são

dotadas de um acentuado potencial narrativo e semântico.

Nos primeiros momentos do filme, elas são a única fonte de luz do casarão e

apresentam uma certa integridade, apesar do aspecto obscuro que o objeto em si evoca.

Com o desenvolvimento da narrativa, elas passam a ter seu desgaste associado à

decadência física de Madeline, sendo colocadas ao lado da personagem no quadro, no

momento em que ela, enfraquecida, cai lentamente.

Na seqüência em que o corpo da mulher é levado à sepultura, há uma

incrustação de enormes velas no quadro. Essas imagens acompanham todo o cortejo,

enfatizando a tom de morbidez da cena e explicitando o caráter insólito da narrativa, já

que tal recurso não tem nenhum comprometimento com a noção de realidade, pelo
122

contrário, empenha-se em desafiar o olhar do espectador em relação à seqüencia em

questão.

Por fim, na seqüência posterior ao sepultamento da mulher, a câmera a focaliza

as velas completamente desgastadas. Dessa forma, o elemento "vela" se relaciona com

as idéias de vida e morte, compondo o processo de criação de metáforas visuais

utilizado à exaustão pela práxis epsteiniana e supre as limitações discursivas do filme

(especificamente por pertencer à estética do cinema mudo) que não dispõe amplamente

da linguagem verbal. Segundo Aumont, o tratamento de objetos de cena enquanto

elementos dotados de valor simbólico se relaciona com o aspecto de irrealismo peculiar

ao cinema sem som:

Observou-se, muitas vezes, que o cinema sem palavras, cujos meios


expressivos são atingidos por um certo coeficiente de irrealismo (não
há som, nem cores), favorecia de certo modo o irrealismo da narração e
da representação. A época do apogeu do 'mudo' também foi, ao mesmo
tempo, a que viu culminar o trabalho sobre a composição espacial, o
quadro [...] e, mais geralmente, sobre a materialidade não-figurativa da
imagem (sobre-impressões, ângulos de tomada 'trabalhados') -- e por
outro lado, uma época de grande atenção, nos temas dos filmes, ao
sonho, ao fantasístico, ao imaginário e também da dimensão 'cósmica'
dos homens e de seus destinos. (2005, p. 47)

Em A queda da casa de Usher, Jean Epstein realiza com êxito uma narrativa

contínua, conseguindo uma recriação do texto literário a partir do que é próprio ao

cinema. Além disso, apresenta alternativas à questão da instância narrativa do texto

literário, utilizando-se equilibradamente dos recursos fílmicos, sem prejudicar o aspecto

polissêmico do discurso. Como o próprio cineasta afirma sobre a narrativa

cinematográfica: "Não se conta mais, indica-se. O que permite o prazer de uma

descoberta e de uma construção. Mais pessoal e sem entraves, a imagem se organiza."

(apud XAVIER, 1983, p. 271)


123

Edgar Allan Poe e Jean Epstein têm em comum o caráter autoconsciente de suas

produções artísticas. No âmbito literário, Poe se posicionou a favor de uma produção

escrita consciente e minuciosamente planejada, estabelecendo princípios que orientaram

sua composição literária e contribuíram, de certa forma, para o desenvolvimento de uma

visão mais racional sobre o processo de criação. Epstein, ligado ao cinema de

vanguarda, empenhou-se na elaboração de conceitos teóricos que ainda hoje têm

relevância ao entendimento do cinema enquanto prática discursiva, sendo responsável

por uma filmografia em que é possível perceber a mobilização em torno da construção

de uma linguagem cinematográfica que apresentasse valor estético e, finalmente, se

estabelecesse enquanto arte.

No conto poeano, é evidente o interesse criador em manter a incerteza e em

desafiar o leitor penetrar no sistema de falsas pistas, indícios pouco contundentes,

insinuações e opacidades. A instância narrativa assume boa parte da responsabilidade

por esse processo; no entanto, os elementos textuais de uma forma geral integram a

construção de sentido do texto. Assim, o conto de Poe, por sugestionar e deter-se mais

com a produção de uma atmosfera – fator que, de certa forma, prejudica o caráter

narrativo do texto, uma vez que há uma dedicação maior às (necessárias) descrições --

poderia apresentar dificuldades ou orientar um processo de adaptação voltado para

soluções mais "fáceis", como seguir a linha interpretativa mais ligada ao terror explícito.

O fazer cinematográfico apresenta uma proposta de renovação do texto escrito ao

estabelecer a relação intertextual com outras obras de Poe. A questão do narrador,

entretanto, torna-se de fundamental importância à manutenção da imprecisão ao longo

da narrativa, já que o olhar que a câmera lança sobre os objetos e personagens os

compromete de forma intensa com este aspecto de ambigüidade, que se responsabiliza

pelo surgimento e pela manutenção da atmosfera fantástica. Já o aspecto fantástico é


124

recriado também evitando recorrer a elementos explícitos, a sugestividade da narrativa

se mantém e a utilização intensa de recursos técnicos (devidamente estudados pela

teoria epsteiniana) se responsabiliza pelo constante desafio que se lança ao espectador,

retirando-o de uma situação de relativo conforto e levando-o a levantar questionamentos

sobre a natureza dos eventos que se mostram através do filme.


125

6 Conclusão

O processo de criação e recriação da atmosfera fantástica em A queda da casa de

Usher tanto no conto de Edgar Allan Poe, como no filme de Jean Epstein, encontra-se

intrinsecamente relacionado com o fazer artístico de cada um dos autores. Poe, cuja

visão sobre a composição literária revela o aspecto mais racional da criação artística,

apresenta uma teoria em que colocações como a questão da preconcepção de um efeito

único e a concentração de todos os elementos discursivos (da escolha vocabular à

construção da voz narrativa) em função da transmissão de tal efeito se responsabilizam

por uma obra literária autoconsciente e se tornam os princípios fundamentais para a

compreensão da maneira pela qual se constrói o discurso literário poeano.

O conhecimento das nuances do processo de criação de Poe se estabelece como

um relevante guia de leitura, uma vez que conscientiza o leitor de que o mais

imperceptível dos recursos literários empregados possui importância textual. É através

desses mecanismos de composição que se dá a construção de uma atmosfera fantástica

no conto A queda da casa de Usher . Tal aspecto consiste na forma pela qual os objetos,

a configuração do espaço, a caracterização das personagens e a narrativa em si fazem

emergir a sensação (ou impressão, segundo Poe) de perplexidade (ou estranhamento) ao

longo da leitura. O fantástico, em Poe, constitui-se através da opacidade da narrativa, da

imprecisão que se paresenta em torno da natureza dos eventos diegéticos e da

permanente tensão entre duas possibilidades de explicação a tais acontecimentos.

Logo, a atmosfera fantástica no conto em questão se distingue da literatura de

terror, em que o leitor implícito é "contaminado" pelo absurdo. O aspecto fantástico em

Poe opera através de relações dialéticas que ora obrigam esse leitor implícito a se ligar à
126

racionalidade (ao procurar uma explicação razoável para os fatos), ora aproximam-no

do sobrenatural (ao reconhecer a pretensa impossibilidade de explicação). Assim,

através desse diálogo ad infinitum entre tendências aparentemente opostas, estabelece-se

o fantástico. No entanto, Tzvetan Todorov, ao perceber a evanescência do gênero

fantástico atenta para o fato de que nenhuma das tendências deve prevalecer sobre a

outra sob pena de se adentrar em outros gêneros também relacionados com o insólito

(ao orientar o leitor implícito a encontrar uma explicação racional, o texto se configura

como pertecente ao gênero estranho; ao levar o leitor implícito a admitir a existência do

extraordinário no universo diegético, o texto pertence ao gênero maravilhoso).

O conto trabalha contorna essa evanescência trazendo à tona um constante clima

de ambigüidade e construindo um "problema" para o qual não há solução. Não são

fornecidas informações claras o bastante que possibilitem a opção por uma das

possibilidades de explicação, logo, a dúvida permanece até o desfecho da narrativa.

Assim, o fantástico sobrevive desse tênue equilíbrio entre real/ilusório;

racional/irracional. Tais tendências, apesar de opostas, assumem uma relação de

coexistência no discurso fantástico e no conto em questão.

Escolhas discursivas como o estabelecimento do narrador homodiegético (além

de elementos discursivos que contribuem com a construção da dúvida), são decisivas

aos esforços de construção e manutenção da atmosfera fantástica. A homodiegese

propicia um ponto de vista comprometido com a narrativa. Como a figura do narrador

se faz presente na história através de um personagem secundário, tal aspecto evidencia o

tom ambíguo e o ponto de vista testemunhal, comprometido com as sensações e

julgamentos desse personagem. Com isso, a dúvida se instala ao longo de toda a

narrativa, uma vez que o narrador homodiegético trabalha através da doação e da


127

sonegação de informações significativas; operação protegida por uma falsa

credibilidade em relação ao receptor, uma vez que o narrador-personagem constitui um

veículo de identificação entre leitor e história.

A criação da atmosfera fantástica, portanto, se dá através de uma intensa

mobilização de elementos textuais e da coexistência de tendências, idéias, pensamentos

que até então ocupavam pólos opostos. A postura de impotência do leitor implícito

diante do insólito determina a perpetuação da ambigüidade do discurso e, assim, a do

aspecto fantástico. Em A queda da casa de Usher, o leitor não detém informações

suficientes que propiciem explicações para o caráter sobrenatural dos eventos. Por

conseguinte, o efeito de perplexidade se instaura e a dúvida em relação aos

acontecimentos em si permanece, restando o caráter polissêmico da narrativa que

pretende muito mais do que "contar uma história" de terror; desafiar o leitor implícito a

traçar novas formas de atribuição de sentido ao texto.

O filme de Jean Epstein lida com o suposto problema que o aspecto fantástico do

texto poeano traz ao cinema: como realizar a adaptação de um texto literário em que

predomina um universo de sensações? Essa questão se mostra um desafio para um

discurso artístico que se apóia, de uma maneira geral, na narratividade. A solução

encontrada pelo adaptador se relaciona diretamente com suas reflexões teóricas e com a

orientação vanguardista de sua produção fílmica. Epstein, portanto (evidenciando uma

atitude criadora muito próxima da de Poe), lança mão dos recursos cinematográficos e

das possibilidades técnicas do cinema em função da recriação dessa atmosfera.

O conceito de fotogenia é afirmado ao longo de todo o filme e dele provém a

maioria das estratégias discursivas adotadas. A desaceleração do movimento, a

utilização de primeiros e de primeríssimos planos, o posicionamento e o movimento de


128

câmera e a personalização dos objetos (aspecto que resulta da utilização de planos

aproximados) são procedimentos que assumem a função de requisitar um olhar

diferenciado sobre a obra fílmica. Assim, alterando os princípios de transparência e

impressão de realidade vigentes na narrativa cinematográfica clássica, Epstein recria o

universo fantástico da casa de Usher sem recorrer a imagens explícitas, valorizando o

poder de sugestão que o cinema também apresenta.

O suposto problema da narratividade é contornado através do contato

intertextual que o filme mantém com outros textos da produção ficcional de Poe. O

retrato ovalado se apresenta como uma solução para as lacunas narrativas que, no texto

literário, sustentam a atmosfera fantástica, mas que, no filme, poderiam causar prejuízos

ao desenvolvimento da história e afetar o processo de significação. Logo, alguns

deslocamentos e redimensionamentos do texto escrito são fundamentais à construção da

narrativa fílmica.

Em última análise, as escolhas discursivas de Epstein em relação ao texto de

origem, além de evidenciarem sua orientação vanguardista, evidenciam seu olhar

diferenciado que lançava sobre o processo de adaptação fílmica. Já em 1928, quando o

cinema ainda mantinha uma relação hierárquica com a literatura em busca da

legitimação enquanto arte, o cineasta apropria-se de um texto literário consagrado e

assume uma postura de liberdade, manipulando-o livremente, em função da construção

de uma obra fílmica autônoma. Com isso, a idéia de fidelidade do filme com relação ao

texto literário se torna ainda mais distante e dá espaço ao estabelecimento de uma

relação dialógica entre esses discursos artísticos.


129

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