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JOÃO PESSOA
2008
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JOÃO PESSOA
2008
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BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________
Profa. Dra. Genilda Azerêdo
(Orientadora)
______________________________________________________
Prof. Dr. Luis Antônio Mousinho Magalhães
(PPGL/UFPB)
______________________________________________________
Profa. Dra. Maria de Fátima Barros Neves
(UFPE)
Agradecimentos
A meu pai, de quem herdei a paixão pela imagem em movimento e pelas boas
histórias e de quem sempre encontrei apoio nas mais variadas decisões. A minha mãe,
incentivo, pela confiança inabalável e, principalmente, pela paciência. Aos dois, pelo
carinho e pela companhia que me fizeram também nos momentos anteriores às inúmeras
ainda faltava foco sobre como se daria o estudo. Agradeço, sobretudo, pelo equilíbrio e
inquietações e pela confiança que depositou em meu trabalho e por ter sido muito mais
funcionários, que foram pacientes diante de minhas dúvidas acerca das questões
serem feitas.
5
Aos colegas Anacã Agra, que me ajudou ainda nos momentos de elaboração do
projeto inicial e Zonda, que sempre me auxiliou tanto com sugestões relacionadas à
pesquisa, como com questões de ordem prática, como a sobrevivência em João Pessoa.
os de silêncio. Foi um leitor atento e disposto a me ajudar nos detalhes formais dos
carinho.
equilíbrio.
Resumo
Com este trabalho, realizamos uma análise do conto A queda da casa de Usher, de
Edgar Allan Poe e de sua adaptação para as telas: o filme homônimo, realizado em
1928, por Jean Epstein. Nosso objetivo principal é, através do delineamento da
construção da atmosfera fantástica em ambos os textos, estabelecer como o conto
poeano se empenha na composição desse aspecto e a forma pela qual o filme realiza o
redimensionamento da obra literária sem recorrer a formas consideradas mais ligadas ao
cinema de horror, valorizando o caráter plural da linguagem poeana. Assim, o filme,
contando com as possibilidades técnicas e discursivas peculiares ao cinema, realizaria
um diálogo com o texto de origem, de forma a recriar o fantástico na tela. Para
compreender e analisar a construção do conto, utilizamos os conceitos poeanos sobre a
composição literária e alguns princípios da narratologia. A análise da construção do
fantástico apóia-se basicamente nas teorias de Tzvetan Todorov e Filipe Furtado, que
privilegiam a questão da ambigüidade do discurso em detrimento da mera sensação de
terror que tal aspecto evocaria. No que se relaciona ao filme, alguns princípios teóricos
desenvolvidos por Epstein se mostram fundamentais ao entendimento dos rumos
tomados no processo de recriação do texto literário, revelando o caráter vanguardista da
práxis do cineasta. Já a teoria da adaptação se estabelece como pressuposto teórico
necessário à análise da relação entre os textos envolvidos no processo e à compreensão
dos mecanismos de construção de sentido da obra fílmica.
Abstract
This work analyzes Edgar Allan Poe’s short story and its movie adaptation directed by
Jean Epstein in 1928 – both entitled The Fall of the House of Usher. Our objective has
been to establish the way the short story proceeds and the motion picture redimensions
Poe’s work concerning to the fantastic atmosphere present in them without making use
of horror strategies that are considered cliches. The technical possibilities of the cinema
and its language peculiarities made it possible for the film to set a dialogue with the
short story. On the purpose of studying the text structure, Poe’s ideas about Literary
Compositon and some Narratology points are relevant. For analyzing the text structure,
Tzvetan Todorov’s and Felipe Furtado’s theoretichal considerations, that privilege the
ambiguity present in discourse instead of the normal horror sensation caused by this
aspect are also fundamental. For associating this study with the film, a rescue from
some Epstein own theoretical principles are essencial specially when the focus lies on
the inventive process of recreating literature and revealing the typical sense of
vanguardism related to the cinema. In addition, for examining the connexion between
the theoretical basis for this recreation of literature and the languages involved in the
process, the Theory of Adaptation is considered helpful.
Key-words: fantastic discourse, The Fall of the House of Usher, Poe, Epstein, filmic
adaptation.
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Sumário
1 Introdução ................................................................................................................. 09
6 Conclusão .................................................................................................................125
Bibliografia ..................................................................................................................129
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1 Introdução
fantástica no conto e de que maneira o filme realizará a recriação desse aspecto para as
telas.
pela concisão de elementos e pela intensidade do efeito (ou impressão) que permeia o
texto com a função de exercer domínio sobre o leitor, mantendo a tensão até o desfecho.
Segundo o próprio Allan Poe, o efeito corresponderia à impressão ou reação que o texto
literário causa em seu leitor, devendo ser único e estabelecido pelo autor antes de iniciar
o processo de escrita. Somente após defini-lo, pode se iniciar a criação dos demais
singular1.
são freqüentes nos contos de Edgar Allan Poe, aproximando-o do fantástico. A queda da
casa de Usher é um texto em que o estilo poeano constitui um reflexo (ou produto) de
O conto poeano em questão, mesmo apresentando um enredo que poderia ser facilmente
1
A questão do efeito único, defendida por Edgar Allan Poe, aparece nos artigos Review of Twice-tld tales
(1842) e The philosophy of composition (1846)
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de uma teoria que elucide o discurso literário fantástico. O aspecto sobrenatural, sempre
terror e pavor que o texto deveria evocar no leitor, até os que voltam a atenção para as
aspecto fantástico à reação que o leitor apresenta ao tomar conhecimento dos eventos
narrativos. A sensação despertada no receptor deveria ser o terror, que seria responsável
No entanto, uma abordagem do discurso literário de uma forma geral exige uma
visão mais abrangente, que contemple aspectos mais relevantes. A teoria de Tzvetan
fantástico.
vanguarda, que marcou a produção artística na Europa dos anos 20. Jean Epstein, seu
realizador, enquanto também teórico do cinema, constitui uma obra que se distingue das
espectador.
filme enquanto discurso artístico autônomo, uma vez que orienta as escolha do cineasta
forma pela qual o cineasta recria a atmosfera fantástica do conto para a tela, buscando
contato: a literatura lida com dados abstratos, evocando uma imagem conceitual através
um certo grau de superioridade em relação ao cinema, que, por sua vez, estaria em
desvantagem por estar mais ligado à cultura de massa e ser considerado mais
"acessível" ao grande público. Tal concepção denuncia uma visão preconcebida de que
uma arte mais "fácil" ou "de massa" não possui a mesma grandeza da literatura. Traz
características únicas.
que os deslocamentos são necessários. Dessa forma, temos como resultado do processo
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Como sabemos, a iconicidade do cinema também tem a capacidade de ser opaca e metafórica.
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literária por meio da linguagem cinematográfica. Este fator chama a atenção para a
com isso, permita uma posterior análise do processo de interação entre eles.
entre cinema e literatura ocorre de forma diferenciada. O conto de Edgar Allan Poe,
literária, reflete esses aspectos em sua produção literária, apresentando algo que pode
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Referimo-nos, aqui, tanto ao conto como ao filme. O conto de Edgar Allan Poe, foi publicado com o
título The fall of the house of Usher inicialmente em 1840 na revista Burton’s Gentleman Magazine e
posteiriormente na reunião de contos The tales of the grotesque and the arabesque. O filme, de Jean
Epstein, cujo título original é La chute de la Maison Usher, foi lançado em 1928.
4
A questão do fantástico será tratada na seção 2.2.
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fundamento as considerações teóricas de seus dois autores - já que ambos, Allan Poe e
respectivamente - sobre sua práxis artística. Além disso, lançaremos mão de teorias
teoria do conto se faz necessária, uma vez que auxiliará na compreensão da estrutura e
encontrará apoio nas teorias desenvolvidas pelos teóricos H.P. Lovecraft, Tzvetan
Todorov e outros estudiosos relacionados à temática como Julio Cortázar, que, mesmo
também enquanto obra adaptada, uma vez que, através destes escritos, o autor revela seu
encontrará suporte nas teorias da adaptação, além de textos de outros autores que
trabalharam a questão.
A produção literária de Edgar Allan Poe se deu durante período que coincide
visões de mundo dessa corrente literária, que acabou por agitar os círculos intelectuais e
social americano na época foi marcado pela crescente industrialização e pelo progresso
racionalismo, apresentando uma arte dotada de intensidade emocional. Por outro lado, a
Waldo Emerson e Henry David Thoreau) que defendiam a idéia de que as identidades
ainda ensaiava seus primeiros passos e carecia de uma identidade estética consistente.
colocados pelo contexto cultural da América do Norte. Embora, algumas vezes, tenha
Hoffman, a escrita poeana constitui uma contribuição relevante que vai além da
contexto literário, sobretudo da Europa, é inegável, uma vez que aspectos como a
seus textos assim como a produções típicas do Romantismo alemão, francês ou inglês.
Por outro lado, o diferencial entre o contexto romântico e a literatura de Poe pode estar
paixões, mas a elementos mais obscuros da experiência humana. Outro fator que
poderia ter causado seu isolamento literário é o estilo conciso de sua prosa, que entrava,
seus contemporâneos, o fato de o conto ter sido eleito pelo autor o gênero narrativo para
importantes representantes e teóricos do gênero. Além disso, essa escolha reflete seu
ao longo de alguns de seus ensaios. Os contos de Edgar Allan Poe apresentam como
poema. Através do ensaio Review of Twice-told Tales5 (1842) ele sai em defesa do
pelo menos, não lhes dá senão um valor mínimo. Graças a esta sobriedade cruel, a idéia
geradora se faz ver melhor e o tema se destaca ardentemente, sobre esse fundo nu.".
5
In: MAY, Charles E. Short story theories, 1976.
6
In: POE, E. A. Poemas e ensaios. São Paulo: Globo, 1999
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racionalidade que orientava a composição literária de Poe e o domínio que seu conto
exerce no leitor, a quem a narrativa é apresentada de maneira brusca, sem rodeios, nem
história.
tom e até mesmo a utilização das epígrafes são elementos de grande relevância ao
interpretações distintas das que resultam de uma leitura mais superficial. A prosa
ficcional de Poe, freqüentemente orientada pela fantasia e pela imaginação, traz uma
construção do texto envolva dados concretos, eles "são sempre subordinados à pressão e
vezes relacionada à personalidade do autor e citada, por alguns críticos, como aspecto
dominante de sua obra - é apontada em diversos textos de Poe ainda por Cortázar que,
por outro lado, também põe em questionamento a validade da crítica literária que toma
o fator pessoal de quem escreve como único aspecto orientador de seu discurso:
Já é tempo de dizer com certa ênfase aos clínicos de Poe, que se este
não pode fugir das obsessões, que se manifestam em todos os planos de
seus contos, mesmo que no que ele julga mais independentes e mais
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Termos colocados por Gerard Genette em O discurso da narrativa (1995). Segundo ele, o discurso
corresponderia ao texto narrativo em si, à maneira pela qual os diversos elementos são dispostos,
compondo o significante do texto. Já a história (ou narrativa) seria o conteúdo narrativo, que corresponde
ao termo fábula, colocado pelos formalistas russos.
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que, uma vez interpretado de maneira limitada ou mais literal, o tema ficaria mais
exemplo. A narrativa de Allan Poe se localiza numa área limítrofe em que o bom-senso
e a racionalidade ganham novas funções que não envolvem apenas a atribuição de dados
reais a uma determinada situação. A leitura de Poe deve abrir espaço a diferentes formas
mantêm uma relação muito próxima com o fantástico: o conceito de realidade ganha
insólito, do excepcional, das exceções se faz de maneira mais eficaz, pois concentra tais
21
pelo próprio Poe (1976, p.47), em Review of Twice-told tales: a brevidade e o efeito de
totalidade.
Essa brevidade remete aos primórdios do conto enquanto forma narrativa. O ato
uma determinada platéia constitui a raiz do conto como é conhecido hoje, o qual, no
atenção da platéia ouvinte e, no caso do conto literário, a atenção do leitor. Dessa forma,
o conto, que era um ato público que envolvia a interação entre o contador de histórias e
a audiência, passa a ser uma experiência individual, particular de relação entre leitor e
Nádia Batella Gotlib (1990, pp.5-6) identifica fases do conto referentes à sua
difuso de escritos ainda distantes das características do gênero conto, que iriam de
episódios bíblicos aos contos das Mil e uma noites, textos que têm em comum seu
estética do conto, quando são organizados registros escritos das narrativas orais
Chaucer são típicas deste período e conservam uma característica comum que se refere
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revistas nas quais houve a publicação de contos. Nesta época, o conto finalmente atinge
status literário, já que deixa de ser apenas registro da oralidade para ser também
resultado um processo de criação estética e, com isso, passando a ser mais estudado de
Ainda tratando da origem mais remota do conto, surgem traços em comum entre
conto e narrativa épica, apontados por Ernst Cassirer (apud MAY, 1995, p. 1) que se
experiência única, isolada, distante do lugar-comum que converge para um alto grau de
textual: Poe defende ainda que apenas com o efeito pré-estabelecido, haveria a definição
defendido pelo autor de Review of Twice-told Tales como o mais adequado à produção
de um efeito único, em comparação com o romance, que exigiria mais tempo de leitura.
o conto passa a ser conhecido pela brevidade, um termo mais eficaz que não implica que
o conto deva ser necessariamente curto, já que, de acordo com a concepção poeana, esta
brevidade "deve estar na razão direta da intensidade do efeito pretendido, e isto com
uma condição, a de que certo grau de duração é exigido, absolutamente, para a produção
de qualquer efeito." (POE, 1999, p. 104). Além de conceber o efeito no período que
antecede a escrita em si, é importante que seja definido também o meio através do qual
Corresponderia na pintura, à opção pelas cores e recursos que comporiam a tela: tons
mais escuros transmitindo uma impressão de frieza, de obscuridade; tons mais vibrantes
estabelecido; tal princípio chama ainda mais atenção para a racionalidade da produção
literária de Poe:
Nada é mais claro do que deverem todas as intrigas, dignas deste nome,
ser elaboradas em relação ao epílogo, antes que se tente qualquer coisa
com a pena. Só tendo o epílogo constantemente em vista, poderemos
dar a um enredo seu aspecto indispensável de conseqüência, ou
causalidade, fazendo com que os incidentes e, especialmente, o tom da
obra tendam ao desenvolvimento de sua intenção. (1999, p.101)
importância deste tipo de reflexão. Os ensaios escritos por ele apresentam uma
gênero que dava seus primeiros passos como literatura de fato, tendo colaborado para
sua disseminação e para sua compreensão. Conceitos apontados por ele como "unidade
de efeito", "totalidade", "brevidade", entre outros, são adotados por diversos teóricos
mesmo enquanto ponto de partida para suas considerações. Dessa forma, Allan Poe
seus conceitos para realizar uma comparação entre o conto e diversos gêneros literários,
Como vimos, esta afirmação é uma retomada da defesa que Poe fez do conto
como gênero literário capaz de produzir e sustentar o efeito único e serve como ponto
de partida às considerações gerais sobre o gênero. O efeito, então, aparece como aspecto
fundamental do conto que acaba por influenciar todos os outros, entre eles a extensão, o
que se explica pela efemeridade das sensações mais intensas ocasionadas pelo efeito.
Esta definição exige dois aspectos da história: (1) que ela deve ser curta
e (2) que ela deve possuir coerência suficiente para prender o interesse
do leitor ou do ouvinte do começo ao fim. Os termos da definição são
relativos. É impossível, obviamente, traçar uma linha geral e afirmar
que qualquer história que tem menos do que cem palavras é curta,
enquanto um conto que contenha uma palavra a mais do que é estimado
é longo. [...] Se for aceito o teste da brevidade e da coerência que esta
definição propõe, a questão que surge é a de sua adequação. Brevidade
e coerência são aceitas como as únicas marcas distintivas do gênero?
Ou é necessário introduzir outras características que formularão uma
concepção mais concreta do conto? (1976, p.61-62, tradução nossa)
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dos elementos. Nem todo gênero narrativo curto pode ser classificado como tal. O conto
forma mais completa, enquanto obra literária. As diversas teorias elaboradas têm caráter
Allan Poe parece mais orientada ao conto de terror, de mistério, ou a contos fantásticos.
Porém, mesmo com estas peculiaridades, pode haver traços comuns que auxiliam na
matemática, a visão poeana do conto explicitou pontos importantes, que obviamente não
devem ser tomados como verdades absolutas, e fatores determinantes das características
do conto em função da tensão parecem ser aspectos que compõem o caráter econômico
do gênero, o qual não lida com grandes evoluções temporais (embora existam exemplos
tempo e em espaços determinados - aspectos sobre os quais o próprio Poe (1999, p. 110)
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menos que não se relacionem com o evento central da história. Todas estas
levando o receptor ou leitor a inferir significados. Já de acordo com A.E. Coppard (apud
com o texto literário. Enquanto o conto, sobretudo o de Edgar Allan Poe, detém
recursos capazes de produzir uma atmosfera em que predomina o caráter enigmático dos
delinear a maneira pela qual se dá a relação entre eles. No caso de A queda da casa de
Usher, conto e filme, será possível compreender o processo que leva à criação e
recriação da atmosfera fantástica que permeia ambas as narrativas. Para isso, além da
2.2 O fantástico
Durante o século XIX, o fantástico foi atribuído a obras cuja temática era
uma vez que classificou textos em prosa levando em conta um único elemento
narrativos e estéticos, o texto produziria uma realidade aparente, frágil, que ofereceria
indícios de anormalidade até, finalmente, romper com o senso comum. É a partir desse
Todorov:
por acontecimentos sem possibilidades de explicação pelo senso comum. Dessa forma,
atmosfera que afeta emocionalmente o leitor, que se deixaria influenciar pelos artifícios
30
questão que envolve os limites entre realidade e sonho. A ambigüidade é apontada como
relação à natureza dos acontecimentos - que não necessariamente causa horror ao leitor,
como propôs Lovecraft - admite novas configurações à medida que cede a algum tipo de
explicação:
que se forma através da narrativa ao qual o leitor deve estar integrado: nesse caso, este
semelhante ao personagem. Este leitor seria, aqui, uma noção que se assemelha à de
narrador:
fantástico é definido por Todorov como um gênero sempre evanescente (p. 48), que se
mantém enquanto existe a hesitação do leitor em relação aos fatos narrativos. Esta
história, estaria relacionado ao tempo que o leitor é exposto à dúvida. De fato, o contato
com uma narrativa permeada pelo fantástico é marcado pela imprecisão e pela
maioria, por formas narrativas breves. Como Todorov (2004) afirma, nos momentos
a novas configurações.
terror que teriam relação com os sentimentos das próprias personagens, e não com
acontecimentos que, devido ao seu caráter insólito, parecem sobrenaturais, mas que
explicação aos eventos, restando, por isso, admitir o sobrenatural. O maravilhoso puro
são compostos por três etapas: preparação, durante a qual acontece a apresentação de
excluído dos subgêneros apontados, já que sua existência é notada ora ao desencadear
A escrita de Edgar Allan Poe (a maior parte de suas narrativas, com exceção de
racional ao final da história. Por outro lado, o teórico reconhece que o fantástico se faz
presente na obra poeana principalmente no que se relaciona com a sua práxis literária
possível elaborar diagramas e traçar estruturas fixas às quais o texto literário serviria ou
Cortázar (2006, p.129) ao afirmar que "...o realismo em Poe não existe como tal. Nos
domínio do tema central, que não é realista.". A obra de Edgar Allan Poe é permeada de
elementos que mantêm relação próxima com o gênero fantástico, principalmente no que
estão tapando buracos (Idem, 2006, p.178), cumprindo o papel literário de sugerir (ou
gerar ambigüidade) muito mais do explicitar. O texto poeano traz, em meio ao enredo
Todorov. Por outro lado, o processo de composição textual, que consiste num jogo de
travando uma relação direta com o aspecto fantástico, intensificando, assim, o potencial
inspirado pela literatura de Balzac, gerava a tipologia dos planos, ao buscar formas mais
Méliès em Viagem à Lua (Le voyage dans la Lune, 1902) e contava com representantes
como Marcel l'Herbier (L'homme du large, 1920), Abel Gance (Napoléon, 1926) e
Louis Delluc (Fièvre, 1921), que dialogaram com as vanguardas artísticas, apresentando
[...] termo [...] proposto pela crítica para designar uma tendência do
cinema francês mudo, refere-se a um só tempo, ao Impressionismo em
pintura e em literatura e (por oposição) ao Expressionismo em cinema.
Os filmes 'impressionistas' caracterizam-se pela vontade de exprimir
sentimentos, estados da alma, pelo jogo da câmera, no mais das vezes
muito móvel, pelo quadro (emprego do primeiro plano, notadamente
em Epstein), por ângulos trabalhados,'subjetivados', pela montagem
(montagem rápida de La Roue, de Gance; abundância de flash-backs) –
em suma, por todos os meios cinematográficos, ao passo que o
Expressionismo visualizava tais estados de alma, projetando-os no
cenário. (2003, p. 166)
diferenciado que seria capaz de atribuir emoção às imagens captadas, negando a herança
princípio que rege sua produção quando declara que: "Mais que uma idéia, o cinema
através de textos como Bonjour cinéma (Bom dia cinema, 1921), L'inteligence d'une
diabo, 1947), além de uma filmografia que compõe um manifesto para suas teorias -
ensaios que Epstein revela, assim como Edgar Allan Poe, a visão que influenciou seu
próprio fazer artístico. O sentimento que o cineasta e teórico afirma ter sido trazido pelo
captadora de imagens e, além de um olho artificial, deveria ser um olho que contasse
esta deveria ser manipulada de forma a se compor não apenas um registro, mas uma
emprestado da fotografia que, em linhas gerais, designa aquilo que produziria uma
imagem nítida - em cinema teria implicações distintas, uma vez que este lida com o
movimento. Seria um conceito de difícil definição, ligado ao inefável que, para Delluc,
seria capaz de desvelar (SALLES, 1988, p.60) e, por isso, corresponderia ao específico
cinematográfico:
captado em plano próximo. Dessa forma, tal objeto passa a sugerir algo importante à
mais narra, indica" (EPSTEIN apud AUMONT, 2004, p. 91) e, além disso, seria uma
fotogenia, se justifica pela propriedade que este procedimento tem, de acordo com
Epstein, de revelar facetas até então desconhecidas do objeto focalizado e de, com isso,
seres que têm cada um seus próprios limites, seus movimentos, sua
vida, seu próprio fim. Eles existem por si mesmos. (EPSTEIN apud
XAVIER, 1983, p.284)
próprios para tal feito. A câmera lenta e os efeitos de aceleração, segundo Epstein,
procedimentos pode ser compreendida já através dos títulos dados às seções dedicadas
mortifica e materializa" - que se relacionam diretamente com o efeito causado por cada
um destes recursos:
Mais uma vez percebemos o caráter vanguardista dos escritos epsteinianos, haja
vista a quantidade de filmes que até hoje lançam mão destes procedimentos (e de outros
Dessa forma, grande parte dos procedimentos previstos por Jean Epstein
apresenta pontos de vista até então alternativos sobre a estética cinematográfica. Tais
teatro, pois, à época, grande parte dos filmes apresentava adaptações de peças de teatro.
Assim, ao longo do ensaio, desnuda características do cinema que o tornariam uma arte
capacidade que determinado filme tem de recriar a realidade de maneira a fazer com que
manifestos artísticos da vanguarda, assume uma postura de rompimento com o que era
lança uma idéia que, de forma geral contém um prenúncio dos aspectos tratados pela
questão da adaptação fílmica, ao afirmar que ambos devem superpor suas estéticas para
que consigam se manter mutuamente (XAVIER, 2003, p.270). Já em 1921, Jean Epstein
se mostra consciente de que a relação entre literatura e cinema compreende muito mais
uma interação entre ambos do que uma relação de perda para um dos dois, já
Enquanto a literatura lida com a linguagem verbal através da qual atinge certo grau de
scène e ainda a sonorização), que associados ou não à linguagem verbal são capazes de
questão podem gerar uma idéia de distanciamento entre as estéticas. Entretanto, entre
de utilização dos planos em função dos caminhos apontados pela narrativa; atitude que
evidencia a influência que a literatura do século XIX exerceu sobre o primeiro cinema.
estilo narrativo do cinema foi absorvido por autores como Ernest Hemingway e William
Faulkner (além de outros, que se afirmam influenciados pelo cinema) que apresentaram
mesma influência cinematográfica foi afastada por autores como James Joyce, que
1996, p.15).
associação de uma arte considerada jovem, com uma outra de status artístico
experiências fílmicas até então. Em vista disso, a Societé du Film d'Art (França, 1908),
estabelecendo uma tendência que foi seguida por alguns realizadores. Com o tempo,
chegamos a um contexto em que grande parte dos filmes lançados ou são adaptações
conseguisse "reproduzir" os efeitos alcançados pelo texto literário (seja ele romance ou
conto) e "preservar" o sentido desta mesma obra, maior seria a probabilidade de ser
avaliada como uma boa adaptação. Diante de tal exigência, não é surpreendente que
uma quantidade mínima de filmes fosse considerada apta a receber esse conceito da
crítica em geral. Essa concepção, além de se ocupar unicamente de juízos de valor que
constrói a partir da idéia de que uma expressão artística "de massa" não seria capaz de
atingir a suposta superioridade da obra literária e se sustenta, segundo Robert Stam, por
à obra de origem.
45
características específicas a cada um e que "ainda que sejam sistemas com inúmeros
pontos de contato, constituem obras de arte que valem por si" (CARDOSO, 2003, p.
diálogo entre as obras do que a de reprodução do texto literário pelo cinema. Assim, a
p.21) se sobrepõe à visão hierarquizante sobre a questão. Com o ensaio Pour un cinéma
obra original; atitude que caracterizaria a adaptação como fiel ao "espírito" do texto
determinado texto de origem para um meio de expressão que envolve aspectos técnicos
sentido do texto literário. Já que o texto fílmico é produto desta apropriação do literário,
pelo adaptador - refletirão uma série de fatores, desde a questão do estilo narrativo até
do contexto histórico e ideológico em que se inserem cada uma das obras. Um indício
dessas opções feitas pelos cineastas pode ser percebido através das seguintes tendências,
apropriação) através das quais este aspecto pode ser compreendido: a redução
Robert Stam (2003, p. 45) cita o exemplo das "adequações estéticas às tendências
público. Há também casos em que acontece a atualização: textos literários de uma época
determinada são transpostos para outro momento histórico, envolvendo questões que se
chamam atenção para o caráter de dialógico dessa prática que se configura como uma
necessidade. O cinema, enquanto arte que mantém relações com diversos outros
aspectos como configurações sociais, tendências culturais e momento histórico, tem sua
[...] é uma densa rede informacional, uma série de pistas verbais que o
filme que vai adaptá-lo pode escolher, amplificar, ignorar, subverter ou
transformar. A adaptação cinematográfica de um romance [de um
conto, ou de outros gêneros literários narrativos] faz essas
transformações de acordo com protocolos de um meio distinto,
absorvendo e alterando os gêneros disponíveis e intertextos através do
prisma dos discursos e ideologias em voga, e pela mediação de uma
série de filtros: estilo de estúdio, moda ideológica, constrições políticas
e econômicas, predileções autorais, estrelas carismáticas, valores
culturais e assim por diante. (XAVIER, 2003, p.49)
trocas mútuas do que de perdas em que as particularidades estéticas de cada uma das
mídias envolvidas deve ser levada em consideração enquanto aspectos que fomentam o
que o texto fílmico adaptado possui suas próprias implicações e é resultado de uma
A queda da casa de Usher (The fall of the house of Usher) - conto publicado em
(The Tales of the Grotesque a nd the Arabesque) - traz Roderick Usher, um homem que
vive isolado em sua mansão com sua única irmã, Madeline Usher, que, atormentado por
um velho amigo através do qual teremos acesso à história. Com a chegada do visitante,
tem início uma série de acontecimentos misteriosos, permeados por uma atmosfera
fantástica que se faz presente desde os primeiros momentos e se apresenta como aspecto
concepções de Edgar Allan Poe em relação à construção do texto literário, sendo, uma
delas, a sua preferência pela forma narrativa breve. Tal preferência remonta à questão
na razão direta da intensidade do efeito pretendido" (POE, 1999, p.104) - que permitiria
Esse domínio que o autor literário deveria exercer em relação à "alma do leitor"
(POE, 1976 p.47) diz respeito não a hierarquias, mas à necessidade de manter o
envolvimento do leitor com a história. O conto poeano, então, devido ao seu caráter
conciso, seria uma "máquina literária de criar interesse" (CORTÁZAR, 2006, p.122-
123) que obedeceria a duas das considerações fundamentais de seu autor com relação à
49
(...) não reside tanto nas estreitas circunstâncias narradas, mas na sua
ressonância de pulsação, de palpitar surpreendente de um coração
alheio ao nosso, de uma ordem que nos pode usar a qualquer momento
para um de seus mosaicos para nos pôr um lápis ou um cinzel na mão.
(2006, p. 179)
narrativo trazem à tona questionamentos sobre a ordem dos acontecimentos, que nem
dúvida e a insegurança diante de possíveis explicações para os fatos aos quais é exposto,
pelo leitor virtual seria a de hesitação diante da ambigüidade, tanto dos elementos de
composição, como dos eventos diegéticos que se apresentam. Assim, o fantástico estaria
partir da experiência" (p. 20), isto é, incidentes que desafiam a posição de relativa
por diversos aspectos que explicitam essa ambigüidade da qual sobrevive o fantástico e
evoca a teoria do próprio Allan Poe, na qual Furtado parece apoiar sua visão sobre a
8
Em se tratando de um trabalho escrito em português, optamos pela utilização da tradução para as
citações ao longo do texto. No entanto, a versão original foi utilizada como fonte principal para o estudo,
razão pela qual é fornecida como nota de rodapé.
9
During the whole of a dull, dark and soundless day in the autumn of the year, when the clouds hung
oppressively low in the heavens, I had been passing alone, on horseback, through a singularly dreary tract
of country, and at length found myself, as the shades of the evening drew on, within view of the
melancholy House of Usher. I know not how it was, but with the first glimpse of the building, a sense of
insufferable gloom pervaded my spirit.
52
(apontados, inclusive, pelo próprio Poe), mas, ao invés disto, estes elementos estão
[...] Todo rodeio é desnecessário sempre que não seja um falso rodeio,
ou seja, uma aparente digressão por meio da qual o contista nos agarra
desde a primeira frase e nos predispõe para recebermos em cheio o
impacto do acontecimento. (2006, p.124)
dos acontecimentos que este testemunhará. Encontrar seu destino em "um dia de
texto. A estação do ano outono, fall em inglês (além de autumn, como o autor utiliza na
versão original), apresenta o primeiro indício do que transcorrerá, podendo indicar tanto
a queda física da casa, como a decadência dos indivíduos que a habitam, como também
renovação, durante a qual as folhas caem das árvores para iniciar um novo ciclo de vida,
obscuro não só da construção em si, mas da própria família Usher, como também das
relações existentes entre tais indivíduos e dos episódios protagonizados por eles. A
pela primeira vez através da "insuportável tristeza" que o contato visual com a casa
53
visitante, que passara o dia todo a caminho, chega à casa quando já é noite. Tal aspecto,
a respeito do que se passa. Por conseguinte, é possível inferir que a incerteza, assim
mecanismo de composição de Poe, no qual "cada palavra deve confluir, concorrer para
ambígua e inusitada dos eventos que ainda serão narrados denunciam o vínculo desses
filosofia da composição:
Nada é mais claro do que deverem todas as intrigas, dignas deste nome,
ser elaboradas em relação ao epílogo, antes que se tente qualquer coisa
com a pena. Só tendo o epílogo constantemente em vista, poderemos
dar ao enredo seu aspecto indispensável de conseqüência, ou de
causalidade, fazendo com que os incidentes e, especialmente, o tom da
obra tendam para o desenvolvimento de sua intenção (POE, 1999,
p.101).
54
narrador lança um questionamento sobre o caráter insólito das impressões que a simples
mistério insolúvel, explicita a dúvida que se impõe já nos primeiros momentos, antes
visão da Casa de Usher lhe causava, contempla o lago que rodeava a propriedade e se
depara com uma imagem que lhe causa sensações opostas à que esperava encontrar:
10
There was na iciness a sinking, a sickening of the heart – an unredeemed dreariness of thought which
no goading of the imagination could torture into aught sublime. What was this – I paused to think – what
was that so unnerved me in contemplation of the House of Usher? It was a mistery all insoluble; nor could
I grapple with shadowy fancies that crowded upon me as I pondered. (POE, 1961, pp. 1-2)
11
[...] I reined my horse to the precipitous brink of a black and lurid tarn lay in unruffled lustre by the
dwelling, and gazzed down – but with a shudder even more thrilling than before – upon the remodeled
55
O lago, além de ter um aspecto sombrio, reflete a paisagem que tanto incomoda
o narrador e altera a imagem da própria casa. O fato de tal reflexo ser invertido poderia
nas águas trazem a duplicação e, ao mesmo tempo, a distorção dos elementos externos à
acontecimentos do conto, que a exemplo do que postulou Poe, consistem muito mais em
maior complexidade ao texto, já que "certa soma de sugestividade [...] é que dá a uma
obra de arte tanto daquela riqueza" (POE, 1999, p.113). As imagens invertidas da casa e
inverted images of the gray sedge, and the ghastly tree-stems, and the vacant eye-like windows. (POE,
1961, p. 2)
12
Shaking off from my spirit what must have been a dream, I scanned more narrowly the real aspect of
the building. Its principal feature seemed to be that of an excessive antiquity. The discoloration of ages
had been great. Minute fungi overspread the whole exterior, hanging in a fine web-work form the eaves.
56
verdadeira rede composta por elementos cuja coexistência parecia, até então,
narrador destaca que apenas o olhar de um "observador mais meticuloso" (POE, 1981,
Yet all this was apart from any extraordinary dilapidation. No portion of the masonry had fallen; and
there appeared to be a wild inconsistency between its still perfect adaptation of parts, and the crumbling
of the individual stones. […] Beyond this indication of extensive decay, however, the fabric gave little
token of instability. (POE, 1961, p. 4)
13
Perhaps the eye of a scrutinizing observer might have discovered a barely perceptible fissure, which,
extending from the roof of the building in front, made its way down the wall in a zigzag direction, until it
became lost in sullen waters of the tarn. (POE, 1961, p. 4)
57
exposição dos elementos que compõem o ambiente no conto de Poe ultrapassa o caráter
não apenas com o princípio poeano que dá conta da mobilização dos elementos textuais
[...] os cenários não têm, nos contos de Poe, uma função simplesmente
ilustrativa. Não são halos para o acontecimento. Estão
indissoluvelmente atados ao tom, à situação, às modulações temáticas.
São molduras tonais que criam sintonias e isomorfismos entre o que se
conta, o modo como é contado e o efeito que se vai consubstanciando.
(1986, p. 155)
construção de um efeito. Assim, deve-se considerar desde aspectos lexicais até recursos
house of Usher era dotado de dupla configuração, denominando tanto a estirpe, como a
casa, evidenciando uma relação de simbiose entre a casa e seus habitantes e a influência
que a mansão e sua atmosfera exercem sobre a família. O fato de a palavra usher conter
os pronomes pessoais he (ele), she (ela), us (nós) (como percebe Ricardo Araújo)
fusão entre ele, ela e nós, ou seja, podendo indicar que, assim como as noções de real e
confundir, vítimas de intensa relação que preservam, chegando até mesmo a formar um
só. Com relação às idéias de real e ilusório, a fusão entre dois elementos encontrada na
narrador nesse mundo que escapa ao familiar, o narrador, por sua vez, será o veículo
que conduzirá o leitor a essa esfera. Enquanto visitante que testemunha e participa da
59
história, é a partir do ponto de vista deste personagem que o leitor percorrerá a casa e
para tais enigmas. Dessa coexistência entre duas possibilidades de explicação, surge a
correspondem ao receptor do discurso, não enquanto leitor real, mas enquanto figura
implícita ao texto que propõe ao leitor real determinadas reações à fenomenologia meta-
a instância narrativa de A queda da casa de Usher pode ser classificada, de acordo com
afirma Todorov:
14
[…] in this mansion of gloom I now proposed to myself a sojourn of some weeks. Its proprietor,
Roderick Usher, had been one of my boon companions in boyhood; but many years had elapsed since our
last meeting. A letter, however, had lately reached me in a distant country – a letter from him – which, in
its wildly importunate nature, had admitted of no other than a personal reply. (POE, 1961, p. 2)
61
também é apontado por Furtado como a voz narrativa mais característica do fantástico:
forma, o aspecto mais natural de tal instância narrativa, já que, além de oferecer um tom
mais subjetivo à história, permite uma maior aproximação com o leitor virtual,
O visitante que nos mostra a casa de Usher é uma figura sobre a qual o leitor não
Roderick que fora convidado à mansão depois de alguns anos de ausência. Tal lacuna
62
realizando um relato de caráter parcial, já que, além de se tratar de um sujeito que está
relação a Roderick. Tudo isso contribui para a limitação de seu conhecimento e permeia
apto a contar o que fez parte de sua experiência, o que presenciou (e mesmo assim, o
15
Upon my entrance, Usher arose from a sofá on which he had been lying at full lenght, and greeted me
with a vivaccious warmth which had musch in it, I at first thought, of an overdone cordiality of the
constrained effort of the ennuyé man of the world. A glance, however, at his countenance convinced me
of his perfect sincerity […] I gazed upon him with a feeling half of awe. Surely, man had never before so
terribly altered, in so brief a period, as Roderick Usher! It was a difficulty that I could bring myself to
admit the identity of the wan being before me with the companion of my boyhood. (POE, 1961, p. 5)
63
seu amigo e pela atmosfera lúgubre da casa. O próprio narrador mostra-se incapaz de
para o que sente nessa influência - o visitante ressalta ainda mais sua carência de
informações com relação ao que se passa na casa de Usher. Ao mesmo tempo em que
parece ser orientado pelo ceticismo, ignora explicações contundentes para suas
[...] o conhecimento total dos meandros da intriga por parte dele pode
ser desfavorável ao equilíbrio do gênero. Com efeito, se tal
conhecimento transparecer demasiado na narração (sob forma de
explicações minuciosas ou previsões sempre correctas do evoluir da
acção, por exemplo) pode fazer perigar a necessária ambigüidade por
conferir desigual peso às duas interpretações possíveis da história (a
natural ou a sobrenatural). (FURTADO, 1980, p. 112)
de tais dados chegarem a ele de forma nebulosa ou mesmo pelo interesse narrativo em
como é possível perceber no trecho em que o visitante trata de uma das questões
16
Sleep came not near to my couch – while the hours waned away. I struggled to reason off the
nervousness which had dominion over me. I endeavoured to believe that much, if not all oh what I felt,
was due to bewildering influence to gloomy furniture of the room – of the dark and tattered draperies,
which, tortured into motion by the breath of a rising tempest, swayed fitfully to and from upon the walls
[…] An irrepressible tremour gradually pervaded my frame; and, at length, there sat upon my very heart
of utterly causeless alarm. (POE, 1961, p. 15)
65
anos, não ousara sair... relativos a uma influência cuja suposta força era
por ele expressa em termos demasiados sombrios para serem aqui
repetidos [...] (POE, 1979, p. 13)17
homodiegese consiste num jogo de claro e escuro que transforma a narrativa num jogo
no qual o leitor não tem acesso a todas as informações diegéticas, mas pode encontrar
que tal sujeito está inserido num ambiente em que predomina uma atmosfera fantástica
que não tem acesso aos fatos anteriores à sua chegada: como o que teria acontecido a
17
I learned, moreover, at intervals, and through broken and equivocal hints, another singular feature of
his mental condition. He was enchained by certain superstitious impressions in regard to the dwelling
which he tenanted, and whence, for many years, he had never ventured forth – in the regard to an
influence whose supposituis force was conveyed in terms too shadowy here to be re-stated […] (POE,
1961, p. 7)
66
leitor virtual em relação ao que se passa. Entretanto, realiza essa tarefa de maneira
que faz parte de seu conhecimento, também limitado, sobre o caráter dos
protetor de seus mistérios, sendo, assim, um dos responsáveis pelo equilíbrio ente
duplicação compõem seus textos. Tais relações, assim como os demais elementos
entre as idéias de real e ilusório. Ao mesmo tempo em que tais noções se posicionam
67
Dessa relação entre real e ilusório surgem outras igualmente importantes à construção
a apresentação de uma alternativa ao que até então se chamava realidade, uma "ruptura
uma simples subversão do real, o texto fantástico deverá tanto confrontar os conceitos
portanto, buscar perpetuar a coexistência entre tendências opostas, sem nunca apresentar
narrador, o fato de serem gêmeos traz à tona também a questão da identidade: por serem
maior de sua relação, podendo até mesmo se confundir, motivados pela "simpatia de
natureza quase inexplicável" que existia entre eles. A relação eu/outro é um aspecto
à construção discursiva, uma vez que tal dialética parece ser representada na própria
similitudes (aspectos percebidos por Lúcia Santaella a partir do ponto de vista do signo
verbal) remetendo, assim, ao caráter dual da relação entre irmãos gêmeos. Além disso,
embora à primeira vista as dialéticas detectadas no texto pareçam paradoxos, elas estão
18
A striking similitude between the brother and the sister now first arrested my attention; and Usher,
divining perhaps, my thoughts, murmured out some few words from which I learned that the deceased
and himself had been twins, and the sympathies of a scarcely intelligible nature had always existed
between them. (POE, 1961, p. 14)
69
disso, o confronto entre eles. Em William Wilson - conto no qual o conflito central gira
central - a relação entre os duplos é de constante oposição, como afirma Julian Nazário:
oposição entre real e imaginário, uma vez que o narrador não permite acesso à figura da
fantasmagórico: não há descrição de seu aspecto exterior e o que se torna mais evidente
de seu estado mental e de como tais aspectos aterrorizam o visitante, a figura de Lady
representar a oposição básica comum à maioria dos textos fantásticos, indicará também
habitar extremos opostos, os irmãos Usher guardam, além de semelhança física, uma
19
While he spoke, the Lady Madeline (for so was she called) passed slowly through a remote portion of
the apartment, and, without having noticed my presence, dissapeared. I regarded her with an utter
astonishment not unmingled with dread; and yet I found impossible to account for such feelings. (POE,
1961, p. 8)
71
contando com recursos que operam por falsificação - processo que resulta na
[...] a quase aceitar que a subversão das leis naturais que a sua razão
recusa é uma séria possibilidade no mundo falsamente normal em que o
fantástico o mantém instalado. Isto através de dolos, trucagens e
omissões habilmente ocultados por um conjunto de elementos que
aparentam facilitar-lhe uma decisão e dar-lhe a conhecer com imparcial
objetividade tudo que acontece na narrativa. (1980, p.45)
20
While the objects around me – while the carvings of the cielings, the sombre tapestries of the walls, the
ebon blackness of the floors, and the phantasmagoric armorial trophies which rattled as I strode, were but
matters to which, or such which, I had been accustomed from my infancy – while i from hesitated not to
acknowledge how familiar was all this – I still wondered to find how unfamiliar were the fancies which
ordinary images stirring me up. (POE, 1961, p. 4-5)
72
configuração do ambiente e dos eventos que transcorrem nele. Ainda em sua incursão à
mas que no conto se relaciona com os efeitos inexplicáveis ocasionados pela atmosfera
fantástica, uma vez que mesmo a personagem que poderia permanecer impassível a tais
influências se apresenta como mais um elemento perturbado por elas, evidenciando uma
21
On one of the staircases, I met the physician of the family. His countenance, I thought, wore a mingled
expression of low cunning and perplexity. He accosted me with trepidation and passed on. The valet now
threw upon a door and ushered me into the presence of his master. (POE, 1961, p. 5)
73
exterior, escapismo, alívio para o isolamento, e, na casa, tal peça é inacessível, o contato
com o que existe fora da mansão é negado, intensificando mais ainda a separação entre
22
The room in which I found myself was very large and lofty. The windows were long, narrow, and
pointed, and at so vast a distance from the black oaken floor as to be altogether inaccessible from within.
Feeble gleams of encrimsoned light made their way through the trellised panes, and served to render
sufficiently distinct the more prominent objects around; the eye, however, struggled in vain to reach the
remoter angles of the chamber, or the recesses of the vaulted and fretted ceiling. (POE, 1961, p.5)
74
romântica de Poe de que a realidade não é física, nem social, mas estética (1995, p.32)
fazem presentes nas telas pintadas por ela, revelando uma interpenetração entre essas
duas noções:
23
From the paintings over which his elaborate fancy brooded, and which grew, touch by touch, into
vagueness at which I shuddered the more thrillingly, because I shuddered knowing not why; – from these
paintings (vivid as their images now are before me) I would in vain endeavour to educe more than a small
portion which should lie within the compass of merely written words. By the utter simplicity, by the
nakedness of his designs, he arrested and overawed attention. If ever mortal painted an idea, that mortal
was Roderick Usher. (POE, 1961, p. 9)
75
de Usher aprisionavam a atenção pela sua extrema simplicidade, produzindo obras que
autor e, por isso, assumiam um caráter pouco objetivo, ou figurativo. Ao pintar uma
idéia, como afirma o narrador, Roderick Usher revela sua autonomia em relação ao
do texto ao qual é necessário certo grau de abstração a fim de efetivar a diluição dos
exceção:
24
One of the phantasmagoric conceptions of my friend, partaking not so rigidly of the spirit of
abstraction, may be shadowed forth, although feebly, in words. A small picture presented the interior of
an immensely long and rectangular vault or tunnel, with low, walls smooth, white and without
interruption or device. Certain accessory points of the design served well to convey the idea that the
excavation lay at an exceeding depth below the surface of earth. No outlet was observed in any portion of
its vast extent, and no torch or other artificial source of light was discernible; yet, a flood of intense rays
rolled throughout, and bathed the whole in a ghastly and inappropriate splendour. (POE, 1961, p.9)
76
túnel se localizava numa área de grande profundidade que não recebia nenhum tipo de
Dessa forma, tal elemento se relaciona tanto com a travessia de Lady Madeline
texto: a aparente oposição entre vida e morte. Como já foi visto, o narrador e a irmã
Usher têm um contato furtivo e obscuro e, logo após a chegada do visitante, Madeline,
Até então, ela suportara com firmeza a pressão de sua doença, sem que
se dispusesse a firmeza a pressão de sua doença, sem que se dispusesse
a recolher-se ao leito; mas, ao cair da tarde da minha chegada à casa,
sucumbira (como seu irmão me disse, à noite, com inexprimível
agitação) ao poder prostrador do mal, e soube que o olhar que dirigi à
sua pessoa seria, provavelmente, o último: que aquela dama, pelo
menos enquanto vivesse, já não seria mais vista. (POE, 1978, p. 14)25
oposição morte/vida, já que Roderick parece sobreviver aos males que afetam a família.
Entretanto, o irmão Usher amarga muito mais uma "morte em vida" do que resiste às
aspecto de Roderick:
25
[...] she had already borne up against the pressure of her malady, and had not betaken herself finally to
bed; but closing in of the evening of my arrival at the house, she succumbed (as her brother told me at
night with inexpressible agitation) to the prostrating power of the destroyer; and learned that the glimpse
that I had obtained of her person would thus probably the last I should obtain – that the lady, at least
while living, would be seen no more. (POE, 1961 p. 8)
26
And now, some days of bitter grief having elapsed, na observable change came over the features of the
mental disorder of my friend. His ordinary manner had vanished. His ordinary occupations were
neglected or forgotten. He roamed from chamber to chamber with hurried, unequeal and objectless step.
The pallor of his countenance had assumed, if possible, a more ghastly hue – but the luminousness utterly
gone out. (POE, 1961, p. 15)
78
entre os irmãos evidenciam o diálogo entre conceitos opostos: o dualismo que rege a
relação Roderick/Madeline não permite que tais personagens ocupem limites bem
meio ao cenário da casa de Usher (us). O retorno da irmã apresenta-se como incidente
central da narrativa e evidencia mais ainda o caráter de dependência de sua relação com
o irmão. Por outro lado, a cena final denota o ponto máximo da singularidade dos
eventos narrativos: a (re)união dos irmãos e subseqüente queda da casa indica o fim da
família e a fusão entre os personagens, inclusive a casa, que, como se mostra no início
estirpe dos Usher, podendo ser associada, portanto, ao pronome pessoal us.
respectivamente, se encontram pela última vez, é possível concluir que esse reencontro,
queda física da casa, além de indicar o fim dos Usher, propõe a destruição da noção de
outros pequenos textos que se imbricam e se relacionam de forma a compor uma rede
Como foi visto, a relação existente entre Roderick e Madeline Usher remete a
gêmeos, mas principalmente pelo caráter intenso de tal ligação, que praticamente anula
a epígrafe de De Béranger utilizada no texto: Son coeur est a luth suspendu; Sitôt qu'on
le touche il résonne27. Tais versos se relacionam de certa forma com o que se configura
órgão vital - o fato de estar "suspenso" implica em estaticidade, morte; estado o qual
composição poeana e constitui uma constante em seus textos, como percebe Cortázar:
27
Seu coração é um alaúde suspenso; logo que tocado, ele ressoa.
80
Com isso, desde o início da leitura, já é possível obter uma amostra do recurso
que se delineará por diversas vezes ao longo do texto, o mise en abyme (ou mise en
abîme), definido por André Gide como "todo espelho interno que reflete o conjunto da
plásticas, resultando:
possui caráter antecipatório em relação à narrativa. Vimos anteriormente que até mesmo
um dos quadros pintados por Roderick parece se relacionar de forma especular com a
e o caráter opaco da trajetória que o leitor deve cumprir a fim de completar o processo
talento de Usher para a música. Assim, o leitor tem acesso ao poema The Haunted
relação com a configuração externa da mansão, tal texto consiste em um anúncio dos
universo diegético:
aos dos textos românticos, o que revela mais uma vez o caráter idealista de Roderick
Usher. Os versos trazem a informação de que o palácio se localiza "nos domínios do rei
Pensamento", aspecto que se relaciona diretamente com a orientação dos eventos não só
no poema, como no conto, já que se deve privilegiar uma visão menos comprometida
se localizava nos domínios do pensamento é possível concluir que este, assim como a
Assombrado contrasta com a imagem que o leitor tem do cenário do conto portanto, é
28
Aqui serão colocados trechos da versão original, em inglês, pela questão da visualidade, uma vez que a
tradução para o português apresenta o poema com outra forma de disposição física dos versos.
29
No mais verde de nossos vales,/ habitado por anjos bons,/ antigamente um belo e imponente palácio/ -
um palácio radiante – se erguia./ Nos domínios do rei Pensamento, lá se achava ele!/ Jamais um serafim
espalmou a asa sobre um edifício só metade tão belo. (POE, 1978, p. 16-17)
82
possível concluir que o palácio do poema equivale à casa de Usher num estágio anterior
atmosfera do palácio:
explicações para este domínio maléfico e o efeito que ele ocasiona no palácio, o que
sufocamento e melancolia:
30
Mas seres maus, trajados de luto/ assaltaram o alto trono do monarca/ (ah, lamentemo-nos, visto que
nunca mais a alvorada despontará sobre ele, o desolado!)/ e, em torno de sua mansão, a glória,/ que,
rubra, florescia,/não passa, agora de uma história quase esquecida/ dos velhos tempos já sepultados.
(POE, 1978, p. 18)
31
E agora os caminhantes nesse vale,/ através das janelas de luz avermelhada, vêem/ grandes vultos que
se movem fantasticamente ao som de desafinada melodia;/ enquanto isso, qual rápido e medonho,/ através
da porta descorada, odiosa turba se precipita sem cessar, rindo – mas sem sorrir nunca mais. (POE, 1978,
pp. 18)
83
torna ainda mais intenso: a mansão do poema finalmente é mostrada como assombrada,
relacionando-se com o estado mental dos personagens que fazem parte da história e com
a natureza dos eventos que se seguem. Assim, O palácio Assombrado com seus
constitui um texto que se configura como um protótipo do conto em que está inserido.
Sir Launcelot Cannig um conto em que o herói, Ethelred, invade a casa de um ermitão
mas, no lugar dele, encontra um dragão que ao qual atinge com golpe, matando-o.
De fato, é ao retorno de Lady Usher à casa que a pequena narrativa parece se relacionar:
Ethelred, o protagonista, pode ser entendido como Madeline; o ermitão pode representar
Roderick ou até mesmo a própria mansão; e o dragão, por sua vez, seria um reflexo da
morte ou até mesmo da desconstrução do senso comum (já que é assumindo uma
produzidos pelo cavaleiro ecoam pela floresta (POE, 1961, p.18): o que se percebe com
casa de Usher.
entre os eventos narrativos de Mad Trist e da casa de Usher era resultado da alteração
dos sentidos do narrador (influenciado pela atmosfera da casa e pelo estado mental de
seu amigo) ou de fato acontecia? Com isso, estabelece-se de forma notável a hesitação -
intrinsecamente ligado à história contada pelo visitante que não permanece totalmente
da narrativa é marcado pela chegada do herói à casa do ermitão, após ter derrotado o
dragão:
ainda mais o estado de agitação de Roderick, que, neste momento, é tomado pelo
32
At the termination of this sentence I started and, for a moment, paused; for it appeared to me (although
I at once concluded that my excited fancy had deceived me) – It appeared for me that, from some very
remote portion of the mansion, there came, indistinctly, to my ears, what might have been in its exact
similarity of character, the echo (but a stifled and dull one certainly) of the very cracking and ripping
sound which Sir Launcelot had so particulary described. It was, beyond doubt, the coincidence alone
which had arrested my attention; for amid the rattling of the sashes of the casements, and the ordinary
commingled noises of the still increasing storm, the sound, in itself, had nothing, surely, which should
have interested or disturbed me. (POE, 1961, p. 18)
33
And now, the champion, having escaped form the terrible fury of the dragon, bethinking himself of the
brazen shield, and the breaking up of the enchantement which was upon it, removed the carcass from out
of the way before him, and approached valorously over the silver pavement of the castle to where the
shield was upon the wall; which in sooth tarried not for his full coming, but fell down at his feet upon the
silver floor with a mighty great terrible sound. (POE, 1961 p. 19)
86
1978,p.27)34
Com esse momento da narrativa - além de se detectar que de fato a relação entre
e reverberações, assim com a relação dos irmãos Usher e como as outras dialéticas que
34
As if in the superhuman energy of utterance there had been found the potency of a spell, the huge
antique panels to which the speaker pointed threw slowly back, upon the instant, their ponderous and
ebony jaws. It was the work of the rushing gust – but then without those doors there DID stand the lofty
and enshrouded figure of the Lady Madeline Usher. (POE, 1961 p. 21)
35
From that chamber, and from the mansion, I fled aghast. The storm was still abroad in all its wrath as I
found myself crossing the old causeway. Suddenly there shot along the path a wild light, and I turned to
see whence a gleam unseals could have issued; for the vast house of shadows were alone behind me. The
radiance was that of the full, setting and blood-red moon, which now shone vividly through that once
barely discernible fissure, of which I have before spoken as extending from the roof of the building, in a
zigzag direction to the base. While I gazed, this fissure rapidly widened – there came a fierce breath of the
whirlwind – the entire orb of the satellite burst at once upon my sight – my brain reled as I saw the
mighty walls rushing asunder -- there was a long tutmultuous shouting sound like the voice of a thousand
waters – and the deep and dank tarn at my feet closed sullenly over the fragments of the HOUSE OF
USHER. (POE, 1961 p. 21)
87
paisagem dos arredores e da própria casa oferece um caráter cíclico à narrativa. Agora,
Usher: a fenda, que chama atenção por se estender em ziguezague e por consistir em
juntos.
88
manifesto das convicções teóricas de seu realizador, Jean Epstein. Tendo surgido em
discurso cinematográfico.
Jean Epstein - juntamente com Abel Gance, Marcel L'Herbier, Louis Delluc e
discurso cinematográfico e oposta à narrativa clássica, que, por sua vez, se relacionava
dos anos 20, portanto, deflagra o interesse dos cineastas considerados impressionistas
em apresentar uma proposta ao olhar dominante e, assim, compor uma estética nova em
que:
mesmo do estado psíquico dos personagens, já que a manipulação mais livre da técnica
do qual será exigida uma maior sensibilidade com relação aos elementos fílmicos em
sua totalidade.
princípios, compõe uma obra adaptada que dialoga de forma prolífica com o texto de
ao outro. Tal pressuposto remete à teoria poena da unidade efeito que dá conta da
90
efeito.
enquanto discurso artístico. Tendo suas origens ligadas ao registro de cenas cotidianas
ruptura em relação aos discursos artísticos que eram geralmente associados ao cinema,
adaptação.
Baseado na obra de Edgar Allan Poe de uma forma geral36 mas sobretudo no
conto homônimo, A queda da casa de Usher traz o universo poeano às telas através de
36
Os créditos iniciais do filme apontam a expressão “d’après lês motifs d’Edgar Allan Poe”, o que indica
que há um contato intertextual do filme com outros textos do autor e não apenas ao que lhe dá título. Tal
expressão pode ser também um indicativo de que o filme travará um diálogo mais livre com a obra de
Poe, aspecto que já explicita a visão do cineasta acerca da questão da adaptação fílmica.
91
o fantástico - a obra de Poe, de certa forma, evoca tendências que valorizam o aspecto
- como O gato preto (1934), de Edgar G. Ulmer, A queda da casa de Usher (1960), O
poço e o pêndulo (1961), O corvo (1963), de Roger Corman - se associam muito mais
ao enfoque do terror de forma mais explícita do que ao aspecto ambíguo dos enredos
subordinam qualitativamente à obra de Epstein (uma vez que eles apresentam visões
distintas, mas igualmente válidas sobre a obra de Poe), mas evidenciam a visão peculiar
alguns de seus escritos, entre eles, Le cinéma du diable (1947), obra através da qual é
tipologia dos planos por D.W. Griffth - é com base nessa postura de ruptura com a
92
lugar de uma estética voltada para a transmissão do conteúdo da forma mais homogênea
filme: a construção de uma obra fílmica em que os objetos de cena parecem participar
percebe-se, através de tais características, que aquele universo que se adentra ao longo
da narrativa constitui uma alternativa à impressão de realidade que o cinema, até então,
Uma das formas através das quais Epstein afirma ser possível "contaminar" a
impassibilidade da câmera, isto é, fazendo com que ela adquirisse status de máquina
por exemplo, deveria ser dotado de uma subjetividade automática (SALLES, 1988, p.
59) capaz de atribuir novas dimensões de significado a esses objetos. Assim, a proposta
de Epstein atenta para as "várias singularidades da representação das coisas que o filme
processo de captação, além de apontar para preferência vanguardista por uma narrativa
fílmica que indica muito mais do que oferece informações transparentes ao espectador,
seu todo, destacando principalmente as malas que ele carrega. Logo, ao abrir a porta da
discursivo que explica tanto aos personagens que avistam o visitante, como para o
que, para Epstein, representava a "alma do cinema" (XAVIER, 1983, p. 278). Tal
corresponderiam aos elementos de cena que, captados através do olhar mais subjetivo
considerados como acessórios (mais uma vez, é possível perceber ressonância da teoria
e equivaleria a "qualquer aspecto das coisas, seres ou almas cujo caráter moral seja
anteriormente, tal aspecto teria sua viabilidade associada a aspectos como a mobilidade
medieval que também cai, o alaúde de Roderick que tem as cordas quebradas, parecem
primeiro momento em que ele é colocado em plano aproximado, Roderick proíbe sua
Usher: dessa vez, o objeto ganha uma outra carga semântica, pois passa a simbolizar a
perplexidade que toma conta do espectador quando presencia a volta da mulher à casa.
responsável por desencadear emoções ambíguas em Roderick, que tem suas esperanças
sufocadas ao ver que sua esposa foi confinada, mas mesmo assim ainda preserva a
expectativa pelo seu retorno. Assim, dessa vez, temos a associação de um elemento
desesperança. Tal exemplo traz à tona a atribuição de densidade emocional aos objetos,
A câmera de cinema, para isso, se torna não apenas uma captadora de emoções,
contamina o espectador com suas emoções que oscilam entre obsessão, profunda
97
das expressões colocadas pelo ator. Nesse caso, o comprometimento da câmera com a
proximidade":
intenção de expor emoções e/ou sensações com competência. A captação das imagens é
narrativa, ela parece estar cada vez mais envolvida com o que se passa, assemelhando-
se a um narrador literário diante dos eventos dos quais participa e relata. A perda da
recursos técnicos direcionados à composição dessa nova noção de real proposta pelo
declarando que:
pela atmosfera fantástica que se desenvolve no conto, mas evitando as fórmulas mais
dos filmes de terror. A seqüência inicial faz referência mais clara ao Expressionismo -
3), compondo o mistério que envolve a casa e antecipando ao espectador que existe algo
do seu destino.
99
Com o primeiro contato com a casa de Usher no filme, o que antes parecia
tom na narrativa que se faz perceber através da câmera lenta. O plano geral do aposento
uma máquina (L'inteligente d'une machine) como uma possibilidade técnica que
como indicador de uma outra realidade distinta daquela com a qual o espectador
manteve contato até então, instalando, portanto, o universo de Usher na tela e impondo
Assim, tal recurso se torna um dos responsáveis pela composição do fantástico no filme.
100
Madeline (além de doente, exausta pelo longo tempo que permanece posando para o
retrato que Roderick faz dela) desvanece: em primeiro plano, o movimento de sua
cabeça é colocado numa velocidade inferior, sendo possível visualizar os quadros, até
que em determinado momento seu rosto se assemelha ao de uma estátua, através de uma
Usher, sem recorrer aos letreiros para explicitar tal situação. Tal seqüência traz à
sem, no entanto, operar por ilusionismo. Ao invés de buscar compor uma cena que o
monotonia e ansiedade pelas quais Roderick foi acometido. No início, quando são
transmissão de uma atmosfera sufocante que parece anunciar a ordem sobrenatural dos
estremecer.
dos atores, o filme trata do fantástico de forma diferenciada, predendo-se mais ao seu
fantástico, uma vez que trabalhará com um grau de incerteza que contrasta com a noção
de realidade à qual temos acesso. Além disso, a manipulação técnica viabiliza diversas
103
alguns pressupostos que entram em consonância com o aspecto que esse assume no
verdade. Essa nuance se relaciona com a questão da ambigüidade, apontada por Filipe
aproximando-se mais da visão de Poe sobre esse aspecto, privilegia o mundo das
lúdico da relação entre real e irreal imposta pelo fantástico, na visão da teoria
uma visão bem próxima ao que foi apontado pelos teóricos como uma das
104
pela estética do preto e branco, o cineasta opta pela valorização de uma iluminação
pouco realista, que produz a impressão de que no espaço interno da casa de Usher é
sempre noite, aspecto realçado pela presença constante de velas. Em praticamente todas
evitando lançar luz sobre elementos que possam prejudicar o tom de indefinição. A
claro e escuro perceptível não apenas pelo aspecto plástico do filme, mas pela maneira
do espaço no qual predomina a ação. O primeiro aposento da casa de Usher é uma sala
ampla, captada através de um plano geral que revela a existência de poucos objetos
cênicos, permitindo uma maior percepção do espaço em si. Os poucos elementos que
105
olhar mais apurado sobre a composição visual e principalmente sobre as lacunas que
do filme.
de informações entre as personagens são mostradas sem que haja a posterior colocação
de letreiros. Com isso, o espectador é levado a, com base em uma gama limitada de
ou menos clara, a inferir o que foi dito. Tal recurso é responsável pela construção de
uma ambigüidade que acompanha a toda ação, uma vez que nada é revelado de forma
entanto, o aspecto fantástico se torna ainda mais marcante quando se mostra o ângulo de
visão de Roderick sobre a ação. A partir do momento em que se percebe que o recurso
da câmera subjetiva se voltou para o protagonista, a ação parece assumir uma dimensão
desaceleração radical dos movimentos são apenas alguns dos aspectos que, pelos olhos
de Roderick, compõem a tensão entre real e irreal, verdade e sonho. Assim como no
entre diferentes visões sobre o fantástico, criando, na verdade, uma outra dimensão de
A queda da casa de Usher explicita uma relação ímpar entre literatura e cinema.
referências, alusões e intertextualidades com a obra de Edgar Allan Poe de uma forma
geral. A visão de Jean Epstein acerca de tal relação esclarece suas escolhas discursivas
vista diante de uma questão que, na época, apresentava-se como um problema, dentre
esforços acabaram por gerar um discurso comparativo que geralmente relegava a obra
Em relação a esse aspecto, Epstein assume uma postura radical, mas que
diable (O cinema do diabo, 1947), o teórico defendia uma maior autonomia para a
linguagem cinematográfica:
seria uma arte capaz de realizar a abordagem de uma realidade alternativa de forma
mais eficiente, graças ao seu aparato técnico. Além disso, evoca a concepção então
teor que a relação entre literatura e cinema deveria assumir. Ainda segundo Epstein, tal
relação deveria priorizar a superposição das estéticas (apud XAVIER, 1983, p. 270), já
metaforização) colocação que justifica os rumos que A queda da casa de Usher toma no
possível perceber contatos intertextuais com outros textos poeanos, como Ligeia
(Ligéia) e The oval portrait (O retrato ovalado). Dessa forma, o filme compõe uma rede
de reflexos da obra poeana, fator que vai de encontro a noções relacionadas ao processo
pelo fato de que os veículos envolvidos compõem uma série de procedimentos estéticos
Nós podemos falar em adaptações bem feitas ou mal feitas, mas desta
vez orientados não por noções rudimentares de 'fidelidade', mas sim,
pela atenção à 'transferência de energia criativa', ou às respostas
dialógicas específicas a 'leituras' e 'críticas' e 'interpretações' e 're-
elaboração' do romance original, em análises que sempre levam em
consideração a lacuna entre meios e materiais de expressão bem
diferentes. (2006, p.51)
liberdade em relação ao texto poeano. O enredo, de maneira geral, traça relações com
outros contos de Poe: Roderick e Madeline Usher são, para as telas, casados. O
espectador conhece um Roderick obcecado pela esposa, canalizando tal obsessão para
um quadro através do qual tenta representá-la com perfeição. Essa visibilidade da arte
no filme ganha mais espaço quando o retrato de Madeline parece roubar sua vida,
configurando uma relação intertextual do filme com outro conto de Poe, O retrato
ovalado. Esse aspecto diz respeito a uma das categorias para análise do processo
outro texto do mesmo autor, isto é, ao invés de inserir uma idéia sua, o adaptador se
serviu da obra de Poe. Esta estratégia serve aos interesses diegéticos do filme, já que em
à narrativa fílmica que, no texto escrito, são apenas sugeridas, ou tratadas de forma sutil.
pintando o retrato de sua esposa, responsabiliza essa atitude pela morte da mulher,
conclusão é orientada pelo letreiro que traz a fala de Usher após o término da pintura:
"En verité, c'est la vie même", diz o personagem com relação ao quadro, ignorando
de Poe, valorizando muito mais a idéia de recriar a história do conto, através de uma
111
relação intertextual entre o filme e outros textos de Edgar Allan Poe. Dessa forma, os
Nesse caso, o termo "desfamiliarização" remete a possíveis mudanças que o texto fonte
de formas distintas.
relação à composição fílmica e revela sua visão sobre o "material bruto" que emerge do
adaptações
algumas distinções entre conto e obra fílmica. No entanto, tais distinções não
resultado da consciência de que: "Uma única história pode ser contada de vários modos;
112
ou seja, uma única fábula pode ser constituída por meio de inúmeras tramas, com
para as telas, atentando para o valor de cada um desses recursos em relação à construção
da narrativa fílmica. Dessa forma, o adaptador traça uma relação mais atenta às nuances
[...] é uma densa rede informacional, uma série de pistas verbais que o
filme vai adaptá-lo pode escolher, amplificar, ignorar, subverter ou
transformar. A adaptação cinematográfica de um romance [ou de um
conto] faz essas transformações de acordo com os protocolos de um
meio distinto, absorvendo e alterando os gêneros e intertextos através
do prisma dos discursos e ideologias em voga, e pela mediação de uma
série de filtros [...] (2006, p.50)
entre folhas. Dessa placa só é possível visualizar uma parte da palavra: she, que se
pessoal she inserido na palavra Usher está ligado a essa simbiose existente entre esses
três elementos.
Tal detalhe, portanto, age também como um índice ao conflito principal e abre
narrativa. Essa adição foi realizada em função da narratividade, uma vez que, sem essa
ocorre não apenas através da utilização de objetos cênicos, mas também através da ação
das personagens, que produzem tal efeito através da indicação de que a palavra Usher
evoca algo assustador ou misterioso. Além disso, a manipulação dos letreiros - com o
terror em relação à casa de Usher e que guardam informações que não são repassadas ao
visitante.
114
Roderick e Madeline são casados, e da ação, que confirma o contato intertextual com o
cruzamento dos contos A queda da casa de Usher e O retrato ovalado consiste também
(o gosto pelas artes e o talento para a pintura) que, no texto escrito, apresenta relevância
conto, mas que, no filme, ganha maior representatividade. O texto escrito se utiliza da
escada que se mostra ao fundo do campo traz a imagem do médico e na parte inferior,
idéia de contraste entre a parte mais alta e a mais baixa do cenário, auxiliando na
envolvidas na mise en scène. Além disso, a própria colocação de uma escada no cenário
possui relevância semântica, já que esse elemento se relaciona com as idéias de acesso a
comum.
compõe uma relação reflexiva com os últimos momentos do conto e também se faz
como Ethelred em Madtrist) e cabeças de dragão (como o que o personagem abate para
Ainda na seqüência inicial do filme, o médico chama atenção para uma moldura
de quadro no qual se encontram as inscrições "Ligeia, Lady Usher 1717". Esse elemento
de cena implica tanto em uma alusão ao conto Ligéia, de Poe como em uma inserção do
intertextual do filme com outras obras de Poe relaciona-se com o procedimento ao qual
aterrado.No filme, todos os personagens conseguem fugir da casa a tempo. Tal escolha
casa de Usher do que aos personagens em si, diluindo assim o caráter simbiótico da
relação que havia entre eles. No entanto, há, ao invés disso, a associação do fantástico
em relação à obra de Edgar Allan Poe, transformando o que poderia significar entraves
construindo uma obra que, apesar de se basear numa outra preexistente, desvencilha-se
Com isso, Epstein parece ter percebido o caráter recorrente da temática poeana e
o caráter auto-referencial de sua obra literária como um todo. Optando por não ignorar
mais comprometida com o "espírito" (BAZIN apud BRITO, 1996, p. 20) da obra de
origem. Assim, o filme compõe uma adaptação não só do conto que lhe deu nome, mas
chamar atenção para o modo como os efeitos produzidos pela homodiegese no conto
são colocados no filme. Já que o cinema não conta com as possibilidades narrativas da
informações não estão explicitadas, devendo ser deduzidas pelo leitor. O filme, embora
tensa enfatizada pela iluminação, pelo décor, pela linguagem impressionista (que
dos atores. Tal aspecto reflete um dos princípios adotados por Epstein na composição
total:
narrativa, isto é: "o lugar abstrato em que se elaboram as escolhas para uma conduta da
Dessa forma, no cinema, o ato narrativo seria de responsabilidade dos mais variados
e a manipulação da fotografia.
119
teoria, é possível inferir que a máquina inteligente corresponde ao cinema que lança
mão dos elementos possíveis e manipula de forma consciente seus recursos técnicos.
Essa convicção orienta, portanto, a construção de uma narrativa que recria de maneira
seria a diferença fundamental entre a estética francesa e a americana, na qual, até então,
a câmera era responsável pela simples captação das emoções, mas de maneira impessoal
e fria. A câmera, segundo o cineasta deveria ser dotada de uma certa subjetividade,
imagens, mas também com a responsabilidade de, juntamente com os outros recursos,
ela parece estar cada vez mais envolvida com o que se passa, assemelhando-se a um
narrador literário diante dos eventos dos quais participa e relata. Na seqüência em que o
passos dos homens que carregam o caixão e uma superposição de imagens de velas e
folhas flutuando acentua o tom de morbidez e já prenuncia o que estaria por acontecer.
120
basicamente, pelo caráter parcial e limitado de seu ponto de vista que resulta em um
relato permeado de incertezas. No filme, assim como no conto, esse narrador se faz
elementos indicam limitações físicas do visitante e se, analisados pelo viés da teoria da
Outro aspecto relevante à questão das lacunas impostas pelo narrador, é o fato de
não haver encontro entre Lady Usher (ainda com vida) e o visitante. Dessa forma,
encontra depois de morta. Assim, a seu modo, a obra fílmica consegue estabelecer a
A seqüência em que Roderick descobre que sua esposa perdeu a vida compõe
questão, por vezes captando sua imagem em ângulo alto (câmera captando a imagem da
Nos primeiros momentos do filme, elas são a única fonte de luz do casarão e
apresentam uma certa integridade, apesar do aspecto obscuro que o objeto em si evoca.
que tal recurso não tem nenhum comprometimento com a noção de realidade, pelo
122
questão.
(especificamente por pertencer à estética do cinema mudo) que não dispõe amplamente
Em A queda da casa de Usher, Jean Epstein realiza com êxito uma narrativa
Edgar Allan Poe e Jean Epstein têm em comum o caráter autoconsciente de suas
por esse processo; no entanto, os elementos textuais de uma forma geral integram a
construção de sentido do texto. Assim, o conto de Poe, por sugestionar e deter-se mais
com a produção de uma atmosfera – fator que, de certa forma, prejudica o caráter
narrativo do texto, uma vez que há uma dedicação maior às (necessárias) descrições --
soluções mais "fáceis", como seguir a linha interpretativa mais ligada ao terror explícito.
6 Conclusão
Usher tanto no conto de Edgar Allan Poe, como no filme de Jean Epstein, encontra-se
intrinsecamente relacionado com o fazer artístico de cada um dos autores. Poe, cuja
visão sobre a composição literária revela o aspecto mais racional da criação artística,
um relevante guia de leitura, uma vez que conscientiza o leitor de que o mais
no conto A queda da casa de Usher . Tal aspecto consiste na forma pela qual os objetos,
Poe opera através de relações dialéticas que ora obrigam esse leitor implícito a se ligar à
126
racionalidade (ao procurar uma explicação razoável para os fatos), ora aproximam-no
fantástico atenta para o fato de que nenhuma das tendências deve prevalecer sobre a
outra sob pena de se adentrar em outros gêneros também relacionados com o insólito
(ao orientar o leitor implícito a encontrar uma explicação racional, o texto se configura
fornecidas informações claras o bastante que possibilitem a opção por uma das
que até então ocupavam pólos opostos. A postura de impotência do leitor implícito
suficientes que propiciem explicações para o caráter sobrenatural dos eventos. Por
pretende muito mais do que "contar uma história" de terror; desafiar o leitor implícito a
O filme de Jean Epstein lida com o suposto problema que o aspecto fantástico do
texto poeano traz ao cinema: como realizar a adaptação de um texto literário em que
encontrada pelo adaptador se relaciona diretamente com suas reflexões teóricas e com a
atitude criadora muito próxima da de Poe), lança mão dos recursos cinematográficos e
intertextual que o filme mantém com outros textos da produção ficcional de Poe. O
retrato ovalado se apresenta como uma solução para as lacunas narrativas que, no texto
literário, sustentam a atmosfera fantástica, mas que, no filme, poderiam causar prejuízos
narrativa fílmica.
de uma obra fílmica autônoma. Com isso, a idéia de fidelidade do filme com relação ao
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