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Para_uma_Etica_Territorio_capa_v6.

pdf 1 29-01-2014 18:59:41

do territorio
O conceito de território encontra-se frequentemente associado à ideia de um

do territorio
espaço onde uma ordem específica, seja ela proveniente da Natureza ou dos
vários tipos de jurisdição, é exercida. Assim, um território é um espaço onde a
ordem de qualquer coisa ou de alguém se manifesta e é respeitada. Tal implica

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que o mundo, nas diferentes perspectivas pelas quais se constitui, é acessível
através da descrição do conjunto dos seus territórios.

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Para Uma Ética do Território é o livro resultante das comunicações apresenta-
das no 3º seminário internacional no âmbito do projecto de investigação
“Arquitecturas do Mar” (PTDC/AUR-AQI/113587/2009) da Fundação para a
Ciência e Tecnologia.

para uma etica


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ACADEMIA DE ESCOLAS
Fundação para a Ciência e a Tecnologia FAC U L DA D E D E A R Q U I T E C T U R A DE ARQUITECTURA E URBANISMO

CY MINISTÉRIO DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA E ENSINO SUPERIOR U N I V E R S I DA D E D E L I S B OA DE LÍNGUA PORTUGUESA

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Investigação

Arquitectura
Urbanismo
Centro

Design
de

em

arquitecturas do mar
PARA UMA ÉTICA DO TERRITÓRIO

Coordenação
José Duarte Gorjão Jorge

Lisboa
2013
Título
Para uma Ética do Território
Coordenação
José Duarte Gorjão Jorge
Capa
J. D. G. J. / Joana Lopes / Ricardo Ribeiro
Arranjo Gráfico e Composição
Joana Lopes
Ricardo Ribeiro
Editor
Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa
Apoio
FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia
Ministério da Educação e Ciência

Tiragem
220 exemplares
Impressão e acabamento
DPI Cromotipo – Oficina de Artes Gráficas, Lda.
Depósito Legal

ISBN
978-972-9346-37-8
Este livro ou partes dele não poderão ser reproduzidos sob qualquer forma, mesmo electrónica,
sem explícita autorização do Editor.
É da inteira responsabilidade dos autores o conteúdo apresentado nos respectivos artigos, incluindo
a opção de considerar o novo acordo ortográfico, no caso da língua portuguesa.
Apresentação…………………………………………………………………………...……………5

Utopias Locais e Contra-cultura


A ecotopia da cidade-campo e o agro-urbanismo. De movimento de contra-cultura a cultura
dominante?
Andreia Saavedra Cardoso………………………………………………………….….……9
A gentrificação marginal: entre a utopia local do mix social e o movimento da contra-cultura
Luís Filipe Mendes……………….…………………………………………………….……17
Reflexos: os lugares da cidade
Miguel Baptista-Bastos…………………………………………………………..……….…23

Ética e Estética do Território


Notas para o Diário de um Zé-ninguém
José Duarte Gorjão Jorge ...........................................................................................35
A Estética da Terra
Maria José Varandas………………………………………………………………..………45
Objectivação e Interpretação: Para uma Leitura do Território
Teresa Madeira da Silva…………………………………………………………….………51
Critérios de autenticidade na reabilitação do património industrial em Lisboa relativamente ao
uso (função) do edificado
Nuno Miguel Monteiro e Carlos Alho………………………………………………………57
O arquitecto, a ética e a estética
Célia Maia……………………………………………….……………………………………67
Territórios de informação: visibilidade e estética das tecnologias da informação (TI)
Diogo Pereira Henriques………………………………………...…….……………………75
Antes e após o território – Paisagem como fim e possibilidade no estudo do território
Moirika Reker e Júlio Barêa Pastore……………………………………………....………85
Morphologic resetting and qualification of spaces for public use
Mariagrazia Leonardi………………………………………………………..………....……97

Para que serve o dinheiro?


Entre os valores da terra e o valor do mar
Francisco Felizol Marques…………………………………………………….……..……111
Cidades flutuantes – as futuras arquitecturas do mar
Maria da Graça Bachmann…………………………………………………………..……117
A génese da riqueza de Olhão na época Moderna
Cristina Garcia, Sofia Macedo e Sandra Romba……………………………….………125
Planeamento ou Desregulação
Regulação e desregulação: um caso exemplar. Ou as contradições de uma paisagem
(des)protegida – Aljezur e Costa Vicentina
Maria João Neto……………………………………………………………………………141

Expansión periférica y crisis urbana. La gestión de la ciudad de Saint-Louis de Senegal y la


transformación de su espacio antrópico en la búsqueda de un equilibrio social, económico y
ambiental
Lucía Martínez Quintana………………………………………….……….………………149
A influência da Reserva Ecológica Nacional no processo de urbanização: A utilização de
Autómatos Celulares no concelho de Albufeira
João Rodrigues…………………………………………………………….………….……157
O projecto urbano estratégico como resposta à crise do planeamento
Stefano Dettori e Carlos Alho ……………………………………………….……………165

Urbanismo e Antropologia
O território da noite nas Arquitecturas sem Fachada
Maria Dulce Loução ………………………………………………………………………179

Antropologia do espaço ou espaço da arquitectura


Teresa Vasconcelos e Sá……………………………………………….…………...……185

Rua: convívio, ocupação e resistência


Vítor Braz………………………………………………………………………...………….193

Dinâmicas Narrativas em Áreas Protegidas: O Parque Natural da Ria Formosa


Carlos Mendes e Rita Reis...…………………………..……………………...………….199

Lagoa de Albufeira e Localidades Envolventes: Semelhanças e Contrastes


Carlos Manuel Figueiredo, Alexandra H. Leal….....………………………...………….209
A Génese da Riqueza de Olhão na Época Moderna

Cristina Teté Garcia *


Sandra Romba**
Sofia Costa Macedo***

Resumo

O logo de Olhão, como lugar de habitação (MACHADO, 1956) existiu


provavelmente já na época medieval. Infortunadamente, estas póvoas marítimas,
habitadas sazonalmente em areais de frente para baías e em boas zonas de pescaria,
constituídas essencialmente por cabanas feitas de canas, junco e adobe, não constavam
das enumerações da administração ou das corografias oficiais, pelo menos até ao século
XIX.
A formação da comuna marítima de Olhão é um caso de estudo raro na história
peninsular.
A evolução de Olhão para povoação, na segunda metade do século XVII, esteve
relacionada com a construção de riqueza pelos mareantes e consequente aquisição de
influência junto das autoridades, com o objectivo de alterar o estatuto da sua comunidade.
Contudo, o reconhecimento oficial só aconteceu no início do século XIX, quando os
olhanenses conseguiram a elevação do lugar a “Vila de Olhão da Restauração” por D.
João VI. A população de Olhão teve um papel fundamental no início da revolta contra a
ocupação francesa do Algarve. Mas esta acção corajosa e patriótica teria caído no
esquecimento, não fora a iniciativa de um grupo de audazes ter atravessado o oceano
Atlântico para dar a boa nova aos monarcas portugueses, exilados no Brasil.
Neste pequeno trabalho de investigação desenrolou-se a pesquisa sobre o
processo de formação da povoação. Procurou-se relacionar os principais momentos de
crescimento e mudança da estrutura urbana e social com a construção de riqueza em
Olhão.

* Universidade de Huelva. CAM, Portugal.


** Câmara Municipal de Olhão. CEPHA/ UALG, Portugal.
*** Campo Arqueológico de Mértola, Portugal.
Para que serve o dinheiro?

“O Novo Argonauta”

O espaço natural
O lugar de Olhão situa-se na orla costeira do sotavento algarvio, em zona plana de
areal banhado pelas águas calmas da Ria Formosa. Integrado neste sistema lagunar,
constituído por um conjunto de 5 ilhas e 2 penínsulas separadas por 6 barras, o areal de
Olhão localizava-se em frente à Barra Grande, passagem que permitia o acesso ao porto
e cidade de Faro.
O sítio possuía fartas reservas de água doce, sob a forma de “olhos de água” que
brotavam na praia, além de poços que se encontravam dispersos por boas áreas de
cultivo.

Fig. 1 - Localização de Olhão na Carta Militar de Portugal. esc.: 1:25 000, folha 611. 2005. Fonte:
Instituto Geográfico do Exército.

Em época medieval, as terras eram cultivadas com vinha e figueirais, existindo


ainda zonas de pinhal nas imediações (COELHO, 2008, p. 38, 46).
Na segunda metade do século XVI, a Barra Grande, também denominada Barra da
Armona, foi a porta de entrada dos navios mercantes e de pesca que se dirigiam para o
porto de Faro. As embarcações entravam num canal largo e profundo, o Rio Salgado, que
permitia que navios de grande tonelagem (chegavam a atingir 200 toneladas)
navegassem em segurança até à capital da província (GUERREIRO e MAGALHÃES,
1983, p. 46). Assim, a cidade de Faro era porto de escala para o tráfego marítimo que
circulava entre o norte Atlântico e o Mediterrâneo central. A administração da cidade e
seu termo pertencia à Rainha que igualmente detinha a feitoria do atum. Não seria por
isso de estranhar que a maior parte dos moradores fossem mareantes que viviam das
pescarias (GUERREIRO e MAGALHÃES, 1983, p. 163).
Na pequena “angra azul” que banhava o areal de Olhão, larga, lisa e de águas
calmas, podiam fundear as embarcações, enquanto aguardavam pela maré para entrar
no canal em direcção a Faro. Tinham ainda abastecimento fácil de água doce a partir do
areal e dos ilhotes (GUEDES, 1988, p.106).

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Para que serve o dinheiro?

A origem do povoamento
A informação da existência de cetárias de época romana, onde agora se espraia a
doca de pesca de Olhão (SANTOS, 1971, p. 215), conjuntamente com o achado de
anzóis (IRIA, 1956, p. 204), testemunham a prática da pesca e da salga de pescado. Esta
seria a ocupação humana mais antiga, provavelmente relacionada com o importante
estabelecimento marítimo-portuário de Marim, localizado a nascente de Olhão.
Deve-se a ALBERTO IRIA a informação escrita mais antiga sobre o lugar de Olhão,
inserta numa carta de aforamento, datada de 1378. Neste documento é feita referência a
“(…) hua courella de vinha e figueiral e herdade que el ha em Faarom em logo que
chamam Olham e parte com herdade que foe de Adella moro e com herdade que foe de
Palhavaam / a Joham Barriom” (IRIA, 1948; IRIA, 1956, p. 121, 327) 1.
Este documento confirma que o lugar de Olhão, espaço habitado, já existiria no
século XIV e teria, provavelmente, origem mais antiga.
De facto, o local apresenta condições naturais que permitiram o estabelecimento
sazonal de marítimos nas épocas romana e medieval, à semelhança de outros areais da
costa algarvia, como Manta Rota (GARCIA, 2008) e Monte Gordo (MACEDO e GARCIA,
2012, no prelo). Contudo, a sujeição aos ciclos das marés especialmente as enchentes
recorrentes e inundações nas marés vivas, foi uma desvantagem para a consolidação
destes núcleos sazonais. Mas a localização junto da barra ter-se-á revelado estratégica
para o florescimento de riqueza em Olhão. Os marítimos podiam aceder directamente às
embarcações e concretizar os seus negócios antes dos navios aportarem a Faro,
furtando-se, deste modo, aos direitos régios (MAGALHÃES, 1993, p. 112-113).
Existem algumas concomitâncias com o povoamento de Olhão, que podem ou não
ter interferido neste processo. Por exemplo, o clima de repressão social que ocorreu
durante os séculos XVII e primeira metade do século XVIII com as actividades da
Inquisição. Um regulamento obrigava à pesquisa nos navios que entravam no porto, da
presença de livros proibidos ou suspeitos. Entre 1633 e 1638, a população de Faro viveu
o horror da Inquisição, com denúncias, perseguições, interrogatórios, prisões e
consequente fuga por terra e por mar de inúmeras famílias farenses, que se prolongaram
na centúria seguinte (CAVACO, 1996, p. 92; VIEIRA, 2010). A praia de Olhão, afastada
da vigilância apertada que se fazia sentir na cidade de Faro, era o local indicado para
fretar uma embarcação e sair rapidamente para o mar ou navegar pelo esteiro interior na
direcção de Tavira.
Por outro lado, o ambiente de insegurança e militarização geral ocorridos entre
1637 e 1640 e, posteriormente a peste de 1649-50, que afectou no Algarve as zonas
urbanas, principalmente Lagos, Silves, Loulé e Faro, provocaram a desertificação das
cidades e o aumento da população rural, dispersa por lugares e casais (MAGALHÃES,
1993, p. 62, 87-89).
A ermida de Nossa Senhora do Rosário, datada dos inícios do século XVII, é o
templo cristão mais antigo conhecido em Olhão e os primeiros registos documentais
sobre pessoas naturais de Olhão remontam a 1614. Em 1660, os mareantes de Olhão
tinham confraria própria, da invocação de Nossa Senhora do Rosário, que funcionava na
igreja de Quelfes. E conhece-se o registo de um casamento realizado na ermida em
Olhão em 1691, em que os familiares eram “todos naturais e moradores nesta praia de
Olhão” (MASCARENHAS, 1987).
A criação formal da freguesia de Olhão ocorreu em 1695, ocupando uma área de
cerca de 5km2. Em 1698 os fregueses iniciaram a construção da igreja matriz, de
dimensão exacerbada face à paisagem envolvente. Com a fachada virada a sul e à praia,

1 Um forte agradecimento a José Cabaço do Arquivo Municipal de Olhão, a Nuno Beja da Câmara
Municipal de Faro e às colegas da Biblioteca Municipal do Porto, que fizeram chegar o fascículo d’ O
Correio Olhanense”, ausente nos principais acervos arquivísticos de Faro e Olhão.

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Para que serve o dinheiro?

a igreja marcava o limite norte da recém criada freguesia. Na inscrição existente na igreja
lê-se: "À custa dos homens do mar deste povo se fez este templo novo, no tempo em que
só haviam umas palhotas em que viviam. Primeiro fundamento 1698 “Esperava-se e
antevia-se que o número de fieis iria aumentar”.
Olhão beneficiou ainda da falta de articulação entre municípios, como a rivalidade
entre os concelhos de Loulé e Faro relativamente ao abastecimento e comércio de
produtos naquelas cidades. “(…) De entre os alimentos um único parece fugir a estes
apertos: o peixe (…) pode imaginar-se que não seria branda a guerrilha com os
pescadores ”. Os vizinhos da terra e dos termos anexos frequentavam a praia de Olhão e
ali chegavam almocreves que faziam o abastecimento das populações (MAGALHÃES,
1993, p. 243, 251, 255).
Assim, ao longo do século XVII, Olhão foi acolhendo novos habitantes em
diferentes circunstâncias, sendo já um importante abastecedor de pescado das cidades
algarvias.

Fig.2 - Descarga do pescado na praia de Olhão, (s.d.). Fonte: Arquivo Municipal de Olhão.

A afirmação da comuna marítima de Olhão no século XVII


A liberdade e a aptidão de um grupo de mareantes, no espaço de cem anos,
conseguiu alterar a sua condição marginal na sociedade e obter o reconhecimento formal
do Estado. Neste pequeno trabalho, tentamos perceber como souberam angariar sucesso
pessoal, proveitos financeiros e melhorar a sua habitabilidade, desenvolvendo actividades
fora do controlo das autoridades e oligarquias de Faro. Ficaram por abordar, entre outras,
as não menos importantes e porventura, as mais difícieis questões da inserção social,
vida quotidiana e educação. Por exemplo, em 1738 Olhão fez uma petição a Faro,
solicitando mais um mestre escolar, recusada com o seguinte despacho: “com um podia
passar aquele povo” (MAGALHÃES, 1993, p. 112).
A afirmação do lugar de Olhão radicou numa atitude constante e concertada de
fuga ao pagamento dos tributos à Câmara de Faro e ao Cabido da Sé, dos quais
sobressaíam as taxações sobre o pescado que se estruturavam da seguinte forma no
século XVII: a dízima velha e a dízima nova (20% de todo o peixe capturado); a sisa
(10%) sobre o peixe vendido; propinas, despachos e alcavalas para os oficiais das
portagens e das alfândegas; taxas de almotaçaria quando os almocreves levassem o
peixe por terra e a dízima eclesiástica cobrada sob pena de excomunhão (MENDES,
2009).
A polémica criada em torno da fortificação da costa algarvia e construção da
fortaleza da Barra entre o cabido da Sé de Faro e o Governador do Algarve proporcionou

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Para que serve o dinheiro?

alguns dados sobre as actividades dos habitantes das cabanas de Olhão, entre a vasta
documentação produzida. CARLOS CALLIXTO publicou parte deste espólio, ao qual
recorremos no âmbito do presente trabalho.
O assolamento frequente das costas algarvias por piratas e corsários, deixadas
sem proteção pelo governo filipino e a escassa vigilância existente, tinha contribuido para
a generalização da insegurança no Algarve. Faro, a cidade mais importante do Reino nos
domínios da pesca e do comércio, tinha uma barra única, que tinha condições naturais
para receber uma armada e embarcações até mil toneladas, mas “sem nenhum amparo”.
Deste modo, os especialistas militares justificaram a construção da fortaleza na barra de
Faro, “uma empresa quase impossível”, com a necessidade de defesa da cidade contra a
eventual invasão de Castela e os ataques constantes da pirataria saletina, atrevida, que
chegava a perseguir as embarcações no interior da barra e ainda, como forma de evitar a
actividade contrabandística nos canais que ligavam a barra ao porto da cidade
(CALLIXTO, 1981, p. 202-212).
No ano de 1654 foi iniciada a obra da fortaleza da Barra no ilhote do Boi,
desenhada pelo engenheiro Pedro de Santa Colomba, encontrando-se artilhada e
guarnecida em 1707. Os custos foram suportados pelo Reino, com pouco dispêndio da
Fazenda Real e mereceram o apoio da Câmara da Cidade e dos “homens de negócios e
mercadores da Cidade”, que se propuseram contribuir com o pagamento de um imposto
extraordinário (CALLIXTO, 1978, p. 87; CALLIXTO, 1981, p. 215).
Mas o cabido da Sé de Faro, numa carta em que reprovou a iniciativa, acusou os
homens do mar que habitavam as cabanas de Olhão porque eram os primeiros a avistar
as embarcações, eram amigos dos mercadores e “refundiam fazendas e furtavam
dinheiros à Fazenda Real” (CALLIXTO, 1981, p. 221). No relatório emitido, o Conselho de
Guerra informou que “sempre ouviu a mesma queixa e examinando as razões dela as
achou mais aparentes que verdadeiras porque aquilo é uma habitação de pescadores
pobres, que pela comodidade de terem os seus barcos perto do mar, para saírem a ele
mais depressa, escolheram aquele lugar onde pagam como vassalos os tributos que
devem e nos descaminhos dos navios que vêm de fora, tanta parte têm os da cidade
como eles” (CALLIXTO, 1981, p. 212). O Estado cuidou em defender Olhão, que lhe daria
bons proveitos, pois cada barca tinha uma avença com a Fazenda Real, “que pagava
pontualmente”.
Conclui-se que Olhão seria já um aglomerado considerável na segunda metade do
século XVII e não parece plausível que a edificação do forte tivesse desencadeado o
aumento da população, como defenderam alguns autores (MAGALHÃES, 1993,p. 112).
No século XVIII, a fama dos marítimos de Olhão ficou perpetuada em registos da
época: “os mais hábeis e práticos que tem toda a costa do Algarve, e por isso muito
dignas de crédito as suas informações hidrográficas (…). As pescarias que fazem não se
limitam a pequenas distâncias: eles procuram o peixe em mares distantes, fazendo
normalmente em quase todas as suas pescarias longas e trabalhosas viagens” (LOBO,
1790, cit. por Iria, 1956, vol.II, p. 327). De facto, navegavam numa área alargada entre as
costas atlânticas de Marrocos, a sul e a portuguesa, a norte e para oriente, o rochedo de
Gibraltar. Este porto de mar, sob o domínio britânico desde 1704, foi importante centro de
contrabando e comércio, envolvendo especialmente o açúcar e tabaco do Brasil.
Pescava-se todo o tipo de pescado, entre os canais interiores da ria, a plataforma
continental e o “Mar Negro”. Hábeis no uso de uma grande diversidade de artes e redes,
em terra vendiam pescado fresco, salgado ou escalado e salgado. Das entranhas e
fígados era retirado o azeite e as peles de algumas espécies eram utilizadas como lixas.
Na segunda metade do século XVIII, Olhão tornou-se o maior produtor e exportador
de azeite de peixe e pele de lixa (CAVACO, 1996, vol. II, p. 162).
Na “selva de mastros que povoavam a pequena angra azul”, misturavam-se barcas,
calões e lanchas com naus e sétias de Lisboa, Andaluzia, Catalunha e as não declaradas

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Para que serve o dinheiro?

embarcações vindas da costa africana. No areal juntavam-se à azáfama do peixe,


almocreves da região e de todo o Alentejo, que ali encontravam pescado, verduras, frutas
e “tudo o que lhes é necessário” (CALLIXTO, 1981; MAGALHÃES, 1993).
Pesca e contrabando, modos de vida conciliáveis, tirando o maior proveito possível
das longas e perigosas viagens, num vai-e-vem contínuo. Em terra, a mulher era a
companheira que assegurava uma multidão de tarefas, sempre com os filhos pendurados
nas saias, “com o seu ar resoluto e o à-vontade de quem olha a vida de frente,
conhecendo todas as lutas e amarguras, sem perder a confiança em si própria” (LAMAS,
1948).
Membro da comuna, onde imperava um “sentimento de igualdade”, o respeito pela
actividade que cada um realizava e o espírito de entrejuda nos assuntos do mar.

Fig. 3 - Foto de Artur Pastor, inserida em LAMAS, 1948. A Fonte:


http://alexandrepomar.typepad.com
/alexandre_pomar/2008/11/artur-pastor-e-maria-lamas.htm.

A criação do espaço urbano no século XVIII 2


Em 1715 abria ao culto a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário. O edifício
situava-se a norte da povoação, num amplo terreiro que assumia a importância de praça.
Naquele ano, a rainha Maria Ana de Áustria, donatária do termo de Faro onde
Olhão se incluía, recebeu um pedido de “João Pereira, mareante e morador na praia de
Olhão, para construir uma morada de casas para sua vivenda e habitação por assim se
livrar dos incêndios que continuamente estavam sucedendo”. A Rainha, após consulta da
Fazenda e do Estado, considerou “conveniente que na dita praia se fabriquem casas de
pedra e cal” e estipulou o valor do aforamento de cada vara de terra (IRIA, 1955/6).
Uma vitória para os moradores de Olhão, que desde 1680, estavam inibidos por um
acórdão camarário de fazer construções sólidas e deviam obter licença e despacho para
construção de cabanas, sob pena de pagamento de coima e destruição da cabana pelo
fogo (MAGALHÃES, 1993, p.112).
Desconhecemos se aquele foi o primeiro pedido à Fazenda Real. Mas seguiram-se
com certeza vários requerimentos semelhantes, pois em 1718 era acrescentada nova
norma: “que a casa se faça direita e não atravessada”. Em 1722, foi necessário alargar a
área da freguesia, denominada Nossa Senhora do Rosário. Passou a existir nos
documentos a distinção entre a “praia de Olhão” e o “lugar de Olhão”. Neste, viviam, entre
outros, alguns capitães da praça de guerra de Faro. Olhão já existia certamente como
aglomerado organizado com algumas infraestruturas e serviços, como se verificou com o
aumento de licenças para fazer fornos de pão. A toponímia local continuava a ser muito

2 O estado da documentação do século XVIII que se pretendia analisar nos AMO e ADF limitou esta
pesquisa histórica.

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Para que serve o dinheiro?

simples, associada normalmente às vias que conduziam a outras povoações ou ao nome


de moradores proprietários de vários lotes de terreno e casas numa rua: rua pública
(1728), baldio da fazenda Real, rua pública que vai para Faro (1737), estrada pública que
vai para Pechão (1737) ou rua de Thomé Lopes (1728) (ANTT, Chancelaria da Casa das
Senhoras Rainhas, Livro 6, 7 e 8, 1714-1740; CALLIXTO, 1978, p. 89; ROMBA, 2008, p.
19).
Em 1725 foi implementada nova regra para a emissão de alvará de construção, a
posse de título de propriedade legítimo. O aumento populacional e consequente
expansão da construção de casario clandestino terá originado desordem urbanística e
fortes dificuldades de fiscalização por parte do Estado. A partir de 1727, alguns
requerimentos solicitam o aumento da área da parcela, por necessidade de “fazer casas
com mais largueza”. As construções acabavam por preencher o lote de terreno aforado e
perdiam a área de quintal.
Em 1696 existiam 264 fogos e 727 moradores maiores de comunhão na praia de
Olhão. Em 1765 foram registados 850 fogos e 2440 moradores. O prior de Olhão
contabilizou em 1758 “quinhentas moradas de casas e mais de trezentas cabanas, que
cada dia se vão diminuindo, e pondo em seu lugar casas”. A lista de cobrança de foros
dos prédios urbanos e rústicos de 1789 não difere dos números apresentados, tendo em
conta que correspondem aos lotes autorizados: total de 754 foros, distribuídos por 151
casas, 339 cabanas, 4 casas mistas, 34 lotes (chão), 12 courelas, 49 casas com quintal,
186 casas e câmara, 7 fornos de cozer pão, 1 estalagem, 1 cocheira, 1 estrebaria, 2
adegas e 6 moinhos (LAPA, 1975; ANTT, Memórias Paroquiais; CAVACO, 1996, vol. II, p.
30).
A casa de pedra e cal foi substituindo a cabana feita de material vegetal. Leite de
Vasconcelos, observou ainda em 1933 em algumas praias algarvias, a disposição das
cabanas, alinhadas ao longo de arruamentos mais ou menos regulares, paralelos entre si
e respeitando a linha do mar. Um grupo de 15 a 20 cabanas constituía um bairro
(VASCONCELOS, 1983).

Fig. 4 - Evolução das construções para habitação em Olhão. Cabana na ilha da Armona (Oliveira, F.
Galhardo e B. Pereira, 1994). Casa térrea com cobertura de quatro águas em Olhão (s.d.). Fonte:
Arquivo Municipal de Olhão. A mesma casa sem telhado e com um primeiro piso recuado com açoteia,
2008. Fonte: Arquivo Sandra Romba.

Na construção das cabanas era feita inicialmente uma armação com varas de
madeira enterradas oblíquamente no solo, nas quais assentavam longitudinalmente ripas
de cana. A estrutura era coberta com junco, estorno, barrão ou palha atada com cordas
de piteira ou palma. Tinha uma porta baixa e estreita, por vezes com postigo. Com
cobertura de duas águas inclinadas, a cabana tinha duas divisões, que funcionavam
como habitação sazonal dos homens do mar e das suas famílias e nelas se guardavam
as redes e utensílios necessários para a pesca. Uma cabana durava em média 20 anos
(VASCONCELOS, 1983, p. 278-283; OLIVEIRA,1994).

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Para que serve o dinheiro?

Fig. 5 - Localização de Olhão (letra g) ao centro. Do lado esquerdo está situada a povoação da Fuzeta
(letra h) e do lado direito está situada a cidade de Faro (letra f). Planta de Francisco Lobo Cardinal,
1754. Fonte: Anais do Município de Faro, vol.VIII,1982.

Inicialmente as cabanas da praia teriam aproximadamente 5 a 6 metros de


comprimento e 3 a 5 metros de largura. No século XVIII, a área de construção de cada
morada legalizada aumentou significativamente. Praticamente as construções duplicaram
o seu comprimento, passando a ter entre 6 a 20 varas, mantendo uma largura média de 5
a 6 metros. A casa em alvenaria era térrea e tinha quintal na parte de trás. Na frente
predominou um ritmo de fachadas de porta-janela e a moldura dos vãos com
ornamentação simples. A cobertura de duas águas era feita de caniçado sobre traves de
madeira e forrado com telha de meia cana. O compartimento mais importante da
habitação, a “casa de fora” ou sala, podia ostentar um telhado de tesouro. A habitação
incluía ainda um quarto com espaço suficiente para colocar um ou dois estrados ou
esteiras no chão para a família dormir e, nos fundos da casa, uma cozinha, composta por
uma espécie de pequena bancada a um canto com uma chaminé onde se fazia o fogo.
Tudo forrado a ladrilho. A rua funcionava como complemento da casa, realizando-se ali
tarefas domésticas e trabalhos relacionados com a pesca (ROMBA, 2008).
Olhão adquiriu escala e passou a integrar a cartografia do Estado. A carta de 1754,
desenhada pelo engenheiro Francisco Lobo Cardinal inaugurou a sua representação
geográfica. Surpreende como um espaço até este momento “vazio”, adquiriu com tanta
celeridade emblema semelhante ao da capital da província (deixando um rastilho na
Fuzeta).
A arquitectura e evolução urbana no século XIX
A partir dos finais do século XVIII verificaram-se maiores alterações nas primitivas
casas, circunstância relacionada com a obtenção de mais riqueza e o crescimento
demográfico. De facto, em 1802 o número de habitantes sobe para 4781 (NOBRE, 2008,
p. 15 e 17).
Definiram-se dois bairros urbanos, denominados Barreta e Sete Cotovelos,
estabelecendo ligações com equipamentos religiosos, artesanais e comerciais.
Possívelmente, o primeiro bairro que nos séculos XVII e XVIII cresceu na praia de Olhão
corresponderia, a partir da década de 40 do século XIX, ao “bairro da Barreta”, localizado
no extremo poente da povoação. “Barreta” foi sempre uma designação popular que
incorporava as ruas do Sol Posto, de Faro, dos Mohicanos, do Duque, de Salá e do

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Para que serve o dinheiro?

Pinheiro. No extremo oriental da povoação, desenvolveu-se o bairro dos Sete Cotovelos,


delimitado a sul e a nascente pela ria e a norte pelo sapal, circundado pelas actuais ruas
das Lavadeiras, de S. José, do Peti, de António Lopes, do Rosário e de José Pacheco. A
existência do topónimo “rua da Lagoa” na zona central, permite alvitrar que os bairros
poderiam estar separados por um elemento hidrográfico. Na Barreta, as casas foram
sendo construídas ao longo de caminhos antigos, posteriormente transformados em ruas.
Nos Sete Cotovelos, os quarteirões de casas teriam definido as ruas. Continuando a
observação do lugar, na Barreta os eixos possuem um traçado mais regular e respeitam a
orientação sudoeste nordeste. Nos Sete Cotovelos os eixos possuem um traçado
irregular e possuem uma orientação este-oeste (ROMBA, 2008, p. 24-60).
A densidade do loteamento da Barreta era claramente superior ao bairro dos Sete
Cotovelos. Os moradores da Barreta iam subdividindo os seus lotes em fracções, o que
indicia o aumento do agregado familiar e uma situação económica carenciada. Alguns
quarteirões foram rematados por becos e travessas de traçado irregular, originados pela
composição dos lotes. A procura de habitação na Barreta conduziu ainda à ocupação dos
terreiros e zonas de circulação, para onde davam as vias exteriores, a rua de S.
Bartolomeu, rua de Faro e a rua da Soledade, que faziam a ligação com a Igreja e com a
estrada de Quelfes (ROMBA, 2008, p. 24).
Os quarteirões do bairro dos Sete Cotovelos desenhavam-se com formas e
dimensões diversas. Os lotes tinham boas dimensões com fachadas paralelas à ria e
logradouros nas traseiras, não tendo sofrido modificações dignas de nota, exceptuando a
construção do piso superior. Estes dois bairros habitacionais indicam uma clara
diferenciação social em Olhão neste período (ROMBA, 2008, p. 56).

Fig. 6 - Planta de Olhão, 1871-3, com identificação do bairro da Barreta (A), do bairro dos Sete
Cotovelos (B) e da Igreja Matriz (C). Escala 1:2500. Autores: Eng.º B.M.F. d’Andrade e Cap.º do
Exército A.J. Pery. Fonte: I.G.P.

Um novo elemento arquitectónico foi introduzido nas casas da baixa-mar de Olhão


nos meados do século XIX: o mirante. Ou como acrescento da pequena casa térrea ou
como divisão no piso superior, tinha como função “mirar o mar”. O acesso para o mirante
era feito através do quintal ou pelo interior da habitação. Posteriormente, talvez já nos
inícios do século XX, o mirante adoptou uma forma simples, composta por uma pequena
dependência com cobertura de telhado de uma água situada num canto da açoteia.

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Para que serve o dinheiro?

Raúl Brandão (1978) 3 reteve para futura memória a vida nos bairros antigos de
Olhão, “vive-se ao ar livre, come-se ao ar livre, dorme-se ao ar livre. A rua, fedorenta e
animada, pertence aos pobres. Abancam no meio das vielas. Mulheres curvam-se sobre
as frigideiras frigindo peixe (…). À roda, encostados às paredes, os remos, os cabazes,
as redes; ao lado o cano de esgoto que passa à mostra pelo meio da rua num escorro
fétido (…). Mas, se a rua é suja, a casa é limpa (…) caia-se tudo (…) caia-se sempre. É
um delírio de branco”.

Fig. 7- A rua como um prolongamento da casa onde se


realizava algumas tarefas domésticas e trabalhos
relacionados com a pesca. Rua do Gaibéu, (s.d.). Fonte:
Arquivo Municipal de Olhão.

Caminhos e descaminhos do dinheiro


Durante os séculos XVII e XVIII, as actividades lícitas e ilícitas associadas ao
comércio, pesca e navegação no Algarve geraram muitos negócios e circulação de
dinheiro. A feira franca realizava-se nos ultimos 3 dias de Setembro em Olhão e foi
legalizada em 1753 (MAGALHÃES, 1993, p. 271).
Olhão beneficiava da proximidade com a cidade de Faro, onde várias casas
comerciais inglesas estavam sedeadas. “As embarcações, que mais frequentam esta
Barra, são Inglesas, e Holandesas, que vêm carregar figos, passas, amêndoas, vinhos,
azeite e cortiça, as quais costumam vir carregadas de trigo, e mais fazendas de roupas,
ferro, e madeiras. Também entram muitas Setias de Espanha e Catalunha, que vêm
carregar de atum no tempo das armações, e peixe seco, e salgado” (ANTT, Memórias
Paroquiais).
A actividade do contrabando estabeleceu-se no Algarve e Andaluzia, envolvendo
tudo e todos. Entre 1755 e 1759, o Corregedor da comarca de Lagos, Antão Bravo de
Sousa Castelbranco efectuou uma auditoria em algumas casas comerciais inglesas
estabelecidas em Faro e concluiu: “a Real fazenda tem sido roubada consideravelmente
há muitos e muitos anos e se mostra dos mesmos um conluio e descaminho notório da
Real Fazenda entre os oficiais e as principais casas de comércio desta cidade”. Naquele
relatório longo e detalhado sobre os desvios feitos ao Estado, enumerou a origem de
todas as embarcações implicadas naquelas actividades nos anos inspeccionados:
ingleses, castelhanos, dinamarqueses, holandeses, portugueses de Lisboa, Faro e vários
olhanenses. As embarcações de Olhão eram recorrentes e os destinos preferidos eram

3 O texto de Raúl Brandão sobre Olhão (e a obra) merece ser lido na íntegra.

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Para que serve o dinheiro?

Castela, Lisboa e Gibraltar. Por exemplo o barco de José Friz, que foi apanhado várias
vezes com cargas de Gibraltar e de Castela; o iate de Manuel Machado viajou para
Castela, Lisboa e Mazagão; o barco de João Rabelo viajou para Gibraltar e Castela; o
iate de Diogo Viegas foi a Lisboa; e o rol continuava (CAVACO, 1996, vol. II, p. 254, 307-
321).
No ano de 1787, as autoridades procederam ao arrolamento de todas as
embarcações registadas no Algarve. Das 427 identificadas, o porto de Olhão tinha 69
embarcações, 11 barcos, 8 caíques, 6 hiates, 33 lanchas e 11 rascas. Num universo de
cerca de 100.000 habitantes no Algarve, foram identificados 3908 mareantes, dos quais
1421 eram de Olhão (CAVACO, 1996, vol. II, p. 149). Ora sabemos que por estes anos
trabalhavam na faina marítima em Olhão perto de 2000 homens, portanto estes números
devem ser considerados em sentido relativo.
Ganharam fama de ser gente rica que vivia da pesca: “todos os dias vão pescar na
costa mais de trinta barcos, com perto de quinhentos homens, e todos os dias pela tarde
se acham na praia com as suas pescarias, que em menos de uma hora vendem todos
cada barco a sua porção em lota aos muitos arrieiros do Alentejo, e de toda esta
província, pois todos vêm a esta praia prover-se de peixe” (COSTA, 1712; ANTT,
Memórias Paroquiais). Não faltavam os oficiais da Alfândega que entre outras acções de
fiscalização na praia, mediam a alfarroba e outros produtos algarvios que eram
embarcados para fora (CAVACO, 1996, p. 67). Mas, antecipando-se à acção dos fiscais
em terra, os moradores de Olhão mantinham à sua custa uma Companhia de
Ordenanças para “sua defesa e da barra”, governada por capitão e alferes (NOBRE,
2008, p. 7), imiscuíndo-se, deste modo, no negócio da navegação comercial.
Pagavam os impostos suficientes para manter o Estado sereno. Pagavam a dupla
dízima de todo o pescado fresco à casa da Rainha, o pagamento imediato do maneio e
da sisa aos rendeiros da portagem (pago na praia ao desembarque) e o pagamento à
Fazenda de um valor por cada vara de terreno para habitação. Em 1787 a dízima cobrada
em Olhão foi de 2880$620 contrapondo por exemplo a dizima de Faro que foi de apenas
690$694 (MENDES, 2009).

Fig. 8 - Edifícios de Olhão setecentista construídos com o dinheiro dos marítimos: a Igreja Matriz de
Nossa Senhora do Rosário e o Compromisso Marítimo (s.d.). Fonte: Arquivo Municipal de Olhão.

O marítimo é temente a Deus. Duas tábuas, os companheiros e a fragilidade no


meio da incerteza do mar. “Em nome de Deus e do altar, esta rede ao mar!”.
E os santos “não eram esquecidos nos lucros, ganhando também o seu quinhão” 4.

4 Adaptado de Raúl Brandão (1987).

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Com vaidade, os mareantes construiram a enorme igreja matriz, anunciaram a


riqueza do Compromisso Marítimo, o mais rico do Algarve para o qual contribuíam todas
as embarcações com metade do seu rendimento e a outra metade para a fábrica da
freguesia e confrarias. Após várias tentativas, o Compromisso Marítimo de Olhão foi
desanexado do Compromisso Marítimo de Faro apenas em 1765 (LAPA, 1975).
Analisando a documentação disponível verifica-se que em 1665 já a capela de
Nossa Senhora do Rosário dispunha de um capelão privado, pago pela população da
praia a quem pagavam a soma considerável 30 mil reis anuais (NOBRE, 1984).
O dinheiro circulava de forma abundante. Em 1694 António Dias, mareante de
Olhão deixou em testamento “2 500 reis à fábrica da Igreja de Nossa Senhora do Rosário,
300 reis cada às Confrarias da Igreja de São Sebastião de Quelfes e da Senhora da
Conceição, 7 000 reis ao padre cura António Fernandes de Ataíde, 10 000 reis para um
irmão e o remanescente da terça, 19 800 reis, para rezar missas por sua alma e da sua
mulher” (MENDES, 2009).
A distribuição dos rendimentos entre os homens do mar não era homogénea e
reflectem a estruturação social existente na praia de Olhão. Existiam poucos armadores,
detentores dos maiores barcos, redes e alfaias marítimas para a pesca do arrasto, que
detinham capacidade de investimento e fontes de rendimento para a exploração dos
recursos marítimos no alto mar e exploração em terra. Os mestres eram a classe
dominante em Olhão. Tinham a seu cargo o mando das companhas e eram os detentores
do conhecimento no mar, as correntes, os fundos, a lua e as marés, as pescarias e as
artes. Será sobre o exercício da actividade por parte destes mestres que se virá a
produzir a ideia de uma gente rica em Olhão, que vivia da pesca e detentora de barcos
(embora pequenos). Contudo, os companheiros constituíam a maioria anónima, que
menos recebia pelos trabalhos braçais que uma companha exigia. Em caso de defeso
(impossibilidade de pescar) eram os companheiros que ficavam mais sujeitos à
inexistência de rendimentos ou a uma partilha excessiva dos mesmos entre si. O Estado
recorria com frequência aos companheiros para o recrutamento forçado para o serviço
militar e para o fornecimento de mão-de-obra para os estaleiros reais da Ribeira das
Naus. Muitos escapavam para a vizinha Andaluzia, sabendo-se que em 1790, cerca de
800 olhanenses estavam ausentes em Espanha (MENDES, 2009).
A partir do século XIX, Olhão sofreu novo impulso no seu capital social que alterou
de forma complexa e indelével a estrutura até aí existente. Contudo, a cidade resiste e
percorrer as suas vielas, passear ao longo do cais, percorrer a decadente doca de pesca
é, igualmente, um acto de resistência.

Fig. 9 - Vista aérea de Olhão. Note-se a dimensão da Igreja face ao seu entorno geral. Meados do séc.
XX. Fonte: Arquivo Municipal de Olhão.

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