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Paul Celan - Fuga da Morte

Paul Celan, que, segundo George Steiner (2005, p. 205), teria sido “o maior poeta
europeu do período posterior a 1945”, é daqueles autores difíceis de traduzir e
mais ainda de interpretar, como se pode constatar nas duas versõ es ao
português do poema em epígrafe, abaixo transcritas, de autoria,
sequencialmente, de Claudia Cavalcanti e Modesto Carone.

Trata-se de uma voz judia depois do holocausto, poeta romeno de


escrita em idioma alemão, ele próprio durante algum tempo prisioneiro
num acampamento durante a 2GM, mesma oportunidade em que seus
pais sucumbiram.

Os símbolos usados por Celan são mais ou menos compreensíveis


sobre o que representam, como leite, víboras e violinos. Todavia a
sucessão de versos, por vezes, mostra-se truncada, com ideias sem
conexão colocadas lado a lado, de forma a desorientar o leitor.

Pergunto-me por que, num poema a tratar de tema tão lúgubre,


aparecem os nomes de Margarete (ariana, se, como imagino, o poeta
se refere à personagem de “Fausto”, de Goethe) e Sulamita (judia),
figuras femininas de associação imediata com práticas de sedução. Ou
tudo não terá passado de mera coincidência, pretendendo o poeta tão
somente contrastar dois símbolos humanos de culturas distintas,
orientando-os à sua identificação conflituosa, enquanto judeu, com os
alemães?

Entre os intérpretes do poema, apesar de tudo, há um consenso: o


termo “fuga”, constante no título, apresenta mais de um sentido, pois
significa tanto a sua acepção imediata de escapar a uma situação
opressiva, quanto “fuga” como textura musical, ou ainda, “fuga”
enquanto estado de perda de consciência da própria identidade.

J.A.R. – H.C.

Fuga sobre a Morte (Traduçã o de Claudia Cavalcanti)


Leite-breu d’aurora nó s o bebemos à tarde
nó s o bebemos ao meio-dia e de manhã nó s o bebemos à noite
bebemos e bebemos
cavamos uma cova grande nos ares onde nã o se deita ruim
Na casa mora um homem que brinca com as serpentes e escreve
ele escreve para a Alemanha quando escurece teus cabelos de ouro
Margarete
ele escreve e aparece em frente à casa e brilham as estrelas ele assobia
e chama seus mastins
ele assobia e chegam seus judeus manda cavar uma cova na terra
ordena-nos agora toquem para dançarmos

Leite-breu d’aurora nó s te bebemos à noite


nó s te bebemos de manhã e ao meio-dia nó s te bebemos à tarde
bebemos e bebemos
Na casa mora um homem que brinca com as serpentes e escreve
que escreve para a Alemanha quando escurece teus cabelos de ouro
Margarete
Teus cabelos de cinza Sulamita cavamos uma cova grande nos ares
onde nã o se deita ruim

Ele grita cavem mais até o fundo da terra vocês ai vocês ali cantem e
toquem
ele pega o ferro na cintura balança-o seus olhos sã o azuis
cavem mais fundo as pá s vocês aí vocês ali continuem tocando para
dançarmos

Leite-breu d’aurora nó s te bebemos à noite


nó s te bebemos ao meio-dia e de manhã nó s te bebemos à tardinha
bebemos e bebemos
Na casa mora um homem teus cabelos de ouro Margarete
teus cabelos de cinza Sulamita ele brinca com as serpentes

Ele grita toquem mais doce a morte a morte é uma mestra


d’Alemanha
Ele grita toquem mais escuro os violinos depois subam aos ares como
fumaça
e terã o uma cova grande nas nuvens onde nã o se deita ruim

Leite-breu d’aurora nó s te bebemos à noite


nó s te bebemos ao meio-dia a morte é uma mestra d’Alemanha
nó s te bebemos à tarde e de manhã bebemos e bebemos
a morte é uma mestra d’ Alemanha seu olho é azul
ela te atinge com bala de chumbo te atinge em cheio
na casa mora um homem teus cabelos de ouro Margarete
ele atiça seus mastins contra nó s dá -nos uma cova no ar
ele brinca com as serpentes e sonha a morte é uma mestra
d’Alemanha

teus cabelos de ouro Margarete


teus cabelos de cinza Sulamita
Fuga da Morte
(Tradução de Modesto Carone)
Leite negro da madrugada nós o bebemos de noite
nós o bebemos ao meio-dia e de manhã nós o bebemos de noite
nós bebemos bebemos
cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
Um homem mora na casa bole com cobras escreve 
escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro
Margarete 
escreve e se planta diante da casa e as estrelas faíscam ele assobia para
os seus mastins 
assobia para os seus judeus manda cavar um túmulo na terra
ordena-nos agora toquem para dançar

Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite


nós te bebemos de manhã e ao meio-dia nós te bebemos de noite
nós bebemos bebemos
Um homem mora na casa e bole com cobras escreve
escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro
Margarete
Teu cabelo de cinzas Sulamita cavamos um túmulo nos ares lá
não se jaz apertado

Ele brada cravem mais fundo na terra vocês aí cantem e toquem


agarra a arma na cinta brande-a seus olhos são azuis
cravem mais fundo as pás vocês aí continuem tocando para dançar

Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite


nós te bebemos ao meio-dia e de manhã nós te bebemos de noite
nós bebemos bebemos
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita ele bole com cobras
Ele brada toquem a morte mais doce a morte é um dos mestres da
Alemanha
ele brada toquem mais fundo os violinos vocês aí sobem como
fumaça no ar 
aí vocês têm um túmulo nas nuvens lá não se jaz apertado

Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite


nós te bebemos ao meio-dia a morte é um dos mestres da Alemanha 
nós te bebemos de noite e de manhã nós bebemos bebemos
a morte é um dos mestres da Alemanha seu olho é azul
acerta-te com uma bala de chumbo acerta-te em cheio
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
ele atiça seus mastins sobre nós e sonha a morte é um dos mestres da
Alemanha

eu cabelo de ouro Margarete 


teu cabelo de cinzas Sulamita

FUGA DA MORTE

(Paul Celan)
Leite negro da aurora bebemos-te à tarde
bebemos-te cedo e no dia bebemos-te à noite
e bebemos bebemos
cavamos um tú mulo no ar onde nã o se há de estar apertado
Mora um homem na casa que lida com cobras que escreve
quando descem as sombras escreve à Alemanha teu á ureo cabelo Margarete
ele escreve e se afasta da casa e cintilam estrelas assovia chamando os mastins
e assovia judeus seus judeus cavem fundo uma cova na terra
agora nos manda tocar para a dança

Leite negro da aurora bebemos-te à noite


bebemos-te cedo e no dia bebemos-te à tarde
e bebemos bebemos
Mora um homem na casa ele brinca com cobras e escreve
quando baixam as sombras escreve à Alemanha teu á ureo cabelo Margarete
Teu cabelo de cinza Sulamita cavamos um tú mulo no ar onde nã o se há se estar
apertado

Grita cavem mais fundo essa terra vocês acolá vocês cantem e toquem
pega o ferro do cinto balança-o seus olhos azuis
cavem fundo essas pá s vocês estes aqueles nã o parem a mú sica a dança

Leite negro da aurora bebemos-te à noite


bebemos-te cedo e no dia bebemos-te à tarde
e bebemos bebemos
mora um homem na casa teu á ureo cabelo Margarete
teu cabelo de cinza Sulamita ele brinca com cobras

Grita toquem a morte mais doce é a morte um dos mestres senhor da Alemanha
grita toquem mais sombra os violinos depois subam como fumaça
e hã o de ter uma cova nas nuvens que lá nã o se fica apertado

Leite negro da aurora bebemos-te à noite


bebemos-te à tarde é a morte um dos mestres senhor da Alemanha
bebemos-te à noite ou bem cedo e bebemos bebemos
a morte é um mestre senhor da Alemanha seu olho é azul
ele acerta-te a bala de chumbo te acerta na mosca
mora um homem na casa teu á ureo cabelo Margarete
ele atiça os mastins contra nó s e nos dá uma cova nos ares
ele lida com cobras e sonha é a morte um dos mestres senhor da Alemanha

teu á ureo cabelo Margarete


teu cabelo de cinza Sulamita

(Traduçã o de Renato Suttana)

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