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CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA POÉTICA – EMIL STAIGER

(Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro, 1977)


ESTILO DRAMÁTICO: A TENSÃO

O palco foi, realmente, criado segundo o espírito da obra ribalta, ou outra elevação, dissipa qualquer engano de que
dramática, como único instrumento que se adaptava ao novo haja um mesmo nível entre orador e ouvinte, quando aquele
gênero poético. Mas uma vez existente, esse mesmo toma a palavra. Deixa visivelmente claro o quanto o ouvinte
instrumento pode servir a outras formas de criação e tem indolente terá ainda que se elevar para alcançar o orador,
sido utilizado das maneiras mais diversas através dos ativando assim a força patética. Portanto, quando
tempos. Procuraremos tornar isso mais claro adiante. Aqui dramaturgos modernos tentam suprimir a ribalta, mostram
pretendo apenas explicar porque o capítulo não começa com que lhes falta o sentido do patético, que esperam do teatro
o palco mas, apesar de estar sempre em contato com o algo diferente, talvez efeitos líricos ou espetáculos épicos.
drama, ocupa-se inicialmente de duas expressões do estilo de (P. 66)
tensão — o pathos e o problema — que também fora do
palco são ambos possíveis e legítimos. (P. 61 – 62) O palco torna-se novamente importante, mas não mais como
tribuna, como elevação de alguém que está mais avançado, e
Dissemos que o lírico descontrai (pág. 66). Falamos do sim como enquadramento cênico para o desenrolar de um
derreter-se lírico. Ele derrama-se em nosso íntimo como acontecimento variado. O público aglomera-se em torno da
substância fluida, diluindo o que estava firme, levando nossa antiga orquestra, ou em frente de um tablado que na era
existência em seu curso. A ação quase não se nota, é interior; moderna deverá representar o mundo. Por algumas horas
pressupõe a simpatia de uma alma igualmente disposta. consegue conservar os olhos fixos no lugar em que se passa
Onde não existe essa compreensão, a ação se perde, a ação. Daí surgiu a expressão — unidade de lugar, ação e
desaparece. A ação do pathos, ao contrário, não é tão tempo. No drama moderno desaparece o coro que entre os
discreta. Pressupõe sempre uma resistência — choque gregos permanecia durante todo o espetáculo no palco, e
brusco ou simples apatia — que tenta romper com ímpeto. torna-se possível, graças aos bastidores modificar-se a cena à
Particularidades estilísticas explicam-se, assim, a partir vontade. (P. 69 – 70)
dessa nova situação. O pathos não se derrama em
nosso íntimo; tem muitas vezes que nos ser gravado à Abordemos aqui, embora apenas superficialmente, algumas
força. (P.63) Qualquer ouvinte sofre o impacto de um conhecidas regras de dramaturgia, que vêm reafirmar esse
discurso patético. Mas quando o pathos é autêntico, traço característico do palco. A exposição terá que ser
contagia o próprio orador. (P. 64) justificável, isto é, deverá já estar envolvida na ação
principal. Nenhum retardamento da ação é permitido.
Portanto, é até possível que o pathos venha a acender-se Episódios são considerados prejudiciais. Todas essas são
em decorrência de um ideal, mas ele independe da mediação conseqüências práticas da idéia do estilo problemático, em
desse ideal. É uma comoção espontânea, sem que o objetivo da história está no fim, e, assim sendo, cada
necessidade de conscientização de sua origem ou parte terá que ser examinada exclusivamente em função do
finalidade. Mas tem tanto origem, como objetivo, o que não todo que no fim virá a se revelar. Num drama mais ou menos
acontece com o arrebatamento lírico. O homem patético é puro, os atas, isolados também não são independentes.
levado pelo que deve ser e seu arrebatamento investe (...)Quando desce o pano, o público pensa no que assistiu e
contra o status quo. (P. 65) procura examinar como isso virá a preparar o que se segue,
papel que cabia em parte ao coro no teatro grego. Os atos
Mas o que ainda não é deve vir a ser. E tudo leva a isso: o facilitam a visão geral, são uma espécie de balancetes.
ritmo fogoso decorrente da tensão entre o presente e o Mesmo dentro de cada ato, há; às vezes esses balanços
futuro, os golpes que abalam qual exigência irrefutável, e as parciais. Tanto herói como coadjuvantes resumem, por
pausas que mostram o vazio do inexistente como vácuo em vezes, em uma frase, suas idéias ou seus pontos de vista. (p.
que é absorvido o status quo, a situação a ser mudada. 70)
Até as elipses gramaticais têm aqui um sentido exato: "Dor!"
quer dizer: é dor!; no lamento de Electra, "aquele dia" Tudo determinado por um "para quê", e exigindo a pergunta
significa foi aquele dia, e quando Ferdinando imagina seu "por que razão?". Os diálogos, do mesmo modo. Toda frase,
por casual e arbitrária que pareça, tem uma função
destino e o da amada, ele quer dizer: seremos
determinada. Somos tentados a afirmar que para
"eternamente torturados com o suplício da perdição". A
compreensão exata e completa do drama, não se pode deixar
forma do verbo "ser", que falta às frases, subentende-se do
escapar uma única frase. Leva-se a funcionalidade das partes
próprio pathos, como realidade da consciência, apenas
às últimas conseqüências. (p. 71)
ainda não alcançada pela linguagem. (...) Além da língua,
também os gestos integram a expressão patética. Os braços
estirados aos céus parecem elevar o homem acima de sua Aqui conseguimos compreender porque as duas modalidades
condição terrena, e carregam de força a emoção. (P. 65) do estilo de tensão — o patético e o problemático — unem-
se tão facilmente. Um como o outro conduzem a ação para
adiante. O phatos quer, o problema pergunta. Querer e
O estilo patético exige, conseqüentemente, um palco
questionar residem igualmente numa existência futura, que a
qualquer, mesmo que seja simplesmente uma tribuna. Já o
depender da índole e da intensidade, decide-se por um ou
primeiro homem que subiu a uma pedra, ou a uma elevação
outro caminho. E enquanto as questões de um problema
para falar a algumas pessoas e mostrar-lhes que estava
podem ameaçar uma abstração excessiva, exigindo a mais
adiante ou mais avançado que eles, preparava o palco. A
refinada arte para assegurar a participação do público, o caso a julgar. Ele se esforça por um conhecimento exato do
pathos leva esse público obrigatoriamente à simpatia e caso, mas deixará de ser exato, se examinar minuciosamente
lança questões ao coração do espectador, não a sua mente. tudo que tiver alguma relação com o réu. Deverá, escolher
(p. 73) dentre todo o material apenas o que lhe venha a servir para o
justo veredicto. Pedirá igualmente ao advogado para evitar
É condição do homem avançar-se sempre a si mesmo e nisso abordar fatos que não digam respeito ao crime, pois seu
fundamenta-se a perspectiva da criação problemática e tempo é limitado e divagações só farão dificultar a visão
patética, ou — resumindo as duas — da criação dramática. global. Por outro lado, submete às mais detalhadas provas
Aqui se segue um exemplo desse avanço: no mesmo tudo que se relacionar ao fato. Combina ocorrências as mais
momento em que alguém reconhece algo, ou simplesmente distantes. Tem uma rede de relacionamentos, forja com
percebe esse algo, já está a mover-se dentro de um contexto honestidade as premissas, deduz grande número de
que o articula. O mesmo objeto pode subordinar-se a conclusões, e dá o veredicto segundo a lei já de antemão
diferentes contextos e ser, assim, coisas diferentes. O vigente e reconhecida. Tudo depende desse julgamento
camponês, por exemplo, que pisa sua terra, considera-a baseado na lei preexistente. Novamente sob este ponto de
fértil, visando a colheita, ou vê as encostas de um morro vista, encontram-se lado a lado ambas as modalidades do
como impraticáveis à plantação. O oficial considera essa estilo dramático — o problemático e o patético. (p. 74 – 75)
mesma terra com vistas a táticas militares, como campo de
tiro, ponto cego ou cobertura. O pintor — pensando num Precisamos esclarecer o uso da palavra trágico. (...) A
quadro — vê, apenas, linhas e complexo de cores. Ninguém Trágica, assim compreendida, não se relaciona à
vê algo sem esse "enfoque" dado previamente. O que dramaturgia, mas à metafísica. Um cético que fracassa em
determina "a prion" o mesmo enfoque é o que Heidegger sua verdade leva seu ceticismo a sério, e desesperado dá
chama de mundo. Assim, falamos do mundo do camponês, cabo de sua existência; ou um crente que vê seu amor a deus
do oficial, do pintor, sem querer dizer com isso a soma das escarnecido por algo terrível, como por exemplo o terremoto
coisas com que eles se ocupam, mas sim a organização, o de Lisboa no século XVIII, e por isso não consegue mais se
cosmos, dentro do qual e só então uma coisa passa a poder aprumar; ou ainda um amante como Werther para quem a
aparecer como tal coisa. (p. 73) paixão é o valor supremo e que chega a conclusão de que
sua paixão destrói a ele e aos outros; todas essas são figuras
Será então que o escritor lírico e o épico não estarão também trágicas e terminam naquela situação-limite em que se
adiante de si mesmos? Também eles não criam sob um rompem todas as normas e anula-se a realidade humana. O
enfoque, e as coisas não se aproximam deles dentro de um trágico, porém, não frustra apenas um desejo ou uma
mundo, aberto aprioristicamente, que igualmente se esperança casual, mas destrói a lógica de um contexto, do
apresenta e se afirma pelas coisas? Exato. Do contrário um mundo mesmo. Quando a idéia da existência exclui o acaso,
como outro deixariam de ser homens, ou não falariam como no mundo do racionalismo por exemplo, quando o
linguagem humana. Do mesmo modo que qualquer pessoa homem confia em que nada pode acontecer que venha a
ao dizer uma frase terá que ter em mente desde a primeira contradizer a razão, nesses casos o próprio acaso é também
palavra toda a estrutura frasal, assim também quem observa trágico (...)Para que o trágico apareça como verdadeira
algo terá que conhecer o todo a que esse algo pertence. Para catástrofe "mundial" é necessário inferir um mundo e
o homem não existe nada. isolado, ele éo zõon lógon compreendê-lo como a ordem generalizada. Para que o
échon., ser que agrupa e seleciona. (p. 73) trágico cause efeito e espalhe sua torça fatal, deverá atingir
um homem que viva! coerente com sua idéia e não vacile um
O herói patético esforça-se por uma decisão, decide-se e vai, momento sobre a validez desta idéia. Somente o espírito
então, à ação. Decisão e ação são, porém, condenadas, ao dramático satisfaz essas exigências. Conhecemo-lo como
menos, pelo fato de que a ação penitencia-se com o força que retém com firmeza a singularidade e relaciona-a
desfecho. Até a passagem de monólogo a diálogo e vice- com o objetivo central, o problema. O trágico surpreende o
versa lembra um tribunal. O monólogo comunica a intenção herói dramático inesperadamente. Este preocupa-se com seu
e as razões ocultas do agir. Esclarece-nos sobre como uma problema, seu deus ou sua idéia. Abandona o que não se
ação deve ser apreciada, quais as suas circunstâncias relaciona com essa idéia, e não lhe dá maiores atenções,
agravantes ou atenuantes. No diálogo discutem-se prós e como já insinuamos. Pode acontecer que o que ele deixa de
contras, em interlocuções longas ou em rápidos dísticos. Um lado não possa ajustar-se à sua idéia, mas também não lhe
questiona, o outro discorre. Um acusa o outro defende. seja indiferente, hostilize-a. (p. 77 – 78)
Assim nem no drama nem no tribunal, representamos a vida,
e sim a julgamos. De acordo com o mundo conscientemente O homem é, contudo, uma criatura tenaz e a mesma sina da
apreendido, o autor dramático ordena todas as limitação, que o ameaça de desespero trágico, abre-lhe uma
particularidades do drama e não descansa até fazer tudo girar saída inesperada para a comodidade do cômico. Se dizemos
em torno dessa idéia única, dirigir-se a ela, e tornar-se à sua que o trágico faz explodir os contornos de um mundo,
luz inteiramente claro e transparente. Afasta diremos do cômico que ele extravasa as bordas desse mundo
indiferentemente tudo que não lhe diga respeito. Por isso, e acomoda-se à margem numa vidência despreocupada. (p.
olhando-se de parte, pode-se julgar sua obra mais pobre que 80 – 81)
a composição épica. Seus personagens não terão aquela
versatilidade despreocupada que nos encanta nos heróis
homéricos. (...) Via de regra não se dá mais atenção especial
ao comer ou beber, o autor dramático negligencia-os como a
tudo que não se relacione intimamente com o problema
central. É comparável aqui ao juiz a quem apresentamos um
Quanto mais um autor tende ao cômico, tanto mais é tentado
a criar tensão dramática, mas apenas para desencadear o riso,
e dispersar-se em uma infinidade de minúcias ridículas.
(p.84)

DA FUNDAMENTAÇÃO DOS GÊNEROS


POÉTICOS
O que o poeta lírico recorda, o épico torna presente. Isso
quer dizer que para ele a vida, como quer que esteja datada,
está aí defronte. Quer narre o pecado de Adão e Eva ou o
Juízo Final, o épico traz tudo para diante de nossos olhos,
como se estivesse vendo com os seus. Não dizemos portanto
que ele se restringe ao que acontece agora. Isso ocorre
quando ele resolve uma vez descrever seu próprio tempo,
como Goethe no "Hermano e Dorotéia". Mas sem dúvida
alguma, ele configura o presente e fundamenta a vida
tornada presente, mostrando de onde ela procede. Sua arte é
a mais fácil de compreendermos, porque nossa existência
cotidiana move-se quase sempre por vias épicas. Nós
também tornamos comumente o passado presente e
delineamo-nos, tornando presente o futuro. Tal modo de
proceder em relação ao futuro não tem, porém, nada que ver
com a existência dramática. Aqui deveríamos dizer: O que o
autor épico torna presente, o dramático projeta. Este vive tão
pouco ''no" futuro como o épico "no" presente. Sua
existência dirige-se, tensiona-se em relação ao que virá a ser.
O que será a sua saída, o que vai interessar no fim, é que. ele
grava de antemão nos olhos. Na poesia problemática de
antemão está claro o que lhe vai interessar; na patética, ele
ainda ,seleciona e procura no escuro o objetivo. Mas aqui e
lá, move-se do mesmo modo num futuro ,pressuposto. Nesse
pressupor é que se baseia o julgamento. Só posso julgar,
quando examino algo com vistas a uma ordem pré-
estabelecida. (p. 91)

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