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TEXTOS DE APOIO

O mito1
A narrativa mítica
A presença dos mitos (do grego mythos = palavra, narrativa) na cultura é atestada desde o alvorecer
das sociedades humanas. Palavras proferidas para desvelar o sagrado, eles se apresentam como
uma iniciação a uma verdade profunda sobre a condição humana e sua relação com o divino.
Narrativas poéticas, eles ligam o mundo humano e o mundo divino em um pensamento totalizante
que mistura o natural e o sobrenatural e que se apresenta numa linguagem simbólica. O símbolo
no mito é, segundo seu significado etimológico, aquilo que une, e ele se oferece, em sua
ambiguidade e sua multiplicidade de sentidos, à interpretação. Na Grécia Antiga, eles são
transmitidos por uma tradição oral, simultaneamente poética e religiosa, de geração em geração, e
propõem respostas às perguntas que o homem se faz sobre ele mesmo, sua origem ou seu destino
final. A narrativa mítica, por seu poder encantatório e pela magia da palavra, seduz o ouvinte. Faz
nascer nele prazer e emoção, ao contar aventuras ocorridas em um outro tempo, envolvendo forças
sobrenaturais. Para uma sociedade, o mito constitui um poderoso fator de integração pela
participação afetiva de todos e sua comunhão na celebração de um passado imemorial.
Mito e logos
Mas, quando se constitui, nos séculos VI e V a. C., um pensamento racional preocupado com a
coerência e com a explicação fundamentada, esse logos2 rejeita o mito: ele o condena como
fabulação fantástica ou como futilidades e tolices, boas somente para serem contadas às crianças
por suas amas; ficção e mentira, o mito não atinge nem o real nem a verdade.
A história e a filosofia afirmam que temos o direito e mesmo o dever de nos desvencilhar do mito
em prol de um verdadeiro conhecimento do mundo e de nós mesmos. Os primeiros historiadores,
Heródoto e Tucídides, não recorrem mais aos deuses para explicar, como fazia Homero, os
acontecimentos do passado. Animados por uma ambição de verdade, eles buscam as causas e
interrogam as testemunhas de maneira crítica, tendo em vista o conhecimento. As considerações
sobre o nascimento do pensamento filosófico como pensamento racional conduzem também a
marcar claramente a distinção entre mito e logos. Esta distinção está no cerne da obra de Platão.
Se levarmos em conta as críticas que Platão dirige ao mito, a distinção se transforma em oposição.
O mito sofre o duro destino da poesia. Os poetas são expulsos da República e os criadores de
mitos são fustigados por sua irracionalidade delirante. Se os deuses são tal como eles os pintam
para nós, ciumentos, mesquinhos e adúlteros, então não são deuses e não merecem nenhum
respeito. Platão vai ao encontro aqui da condenação de Eurípides. Mas logo nasce uma suspeita:
Platão não é também poeta? E ele não recorre insistentemente aos mitos nos seus diálogos?
Mito e diálogo
Ao estabelecer a distinção do mito e do logos numa oposição estática, não corremos o risco
de cair na antilogia3 sofística, que elimina o movimento, o tempo, isto é, o próprio pensamento
afinal? Não jogamos Platão contra ele mesmo, desprezando o que ele procura nos ensinar? De
tanto considerar de maneira unilateral as críticas platônicas, ocultamos a presença insistente do
mito na hora de remediar as deficiências do interlocutor e/ou do logos. Ora, o interlocutor, aconteça
o que acontecer, continua sendo um interlocutor, e Sócrates só leva em consideração o que ele
oferece. Ao contrário do discurso do sofista, que fala sozinho e reduz o outro ao silêncio, seja pela

1
Retirado de: RAFFIN, Françoise. Pequena introdução à filosofia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009
2
Logos - Discurso racional preocupado com a explicação e o fundamento.
3
Antilogia - Conjunto de dois pensamentos contraditórios utilizado pelos sofistas para paralisar o pensamento incapaz de decidir.
exibição de uma eloquência que se impõe, seja pelo jogo rápido de uma erística 4 virtuosística, o
mythos é uma palavra que mantém aberta a dimensão do diálogo. Quando Mênon se esquiva e
tenta abandonar o terreno da dialética, o mito da reminiscência o traz de volta às exigências do
pensamento. Mas o faz tocando-o, convidando-o à reflexão, relegando momentaneamente ao
segundo plano as duras imposições da argumentação racional. O mito obscuro é uma palavra que
faz pensar. Ele requer uma interpretação que é o seu prolongamento necessário e nada mais é que
o diálogo interior da alma com ela mesma que define o pensamento. Seria, portanto, simplista ver
no mito somente o outro do logos. Ele convida ao diálogo lá onde este parecia ter-se tornado
impossível. Ele convida a pensar lá onde o conhecimento encontra limites. Para além das
aquisições do conhecimento, ele preserva as possibilidades futuras do pensamento contra os riscos
do dogmatismo5, e por isso nos predispõe a nos tornarmos dialéticos melhores. Somos assim
encorajados a ultrapassar a literalidade da distinção do mito e do logos para recuperarmos seu
espírito. A fecundidade desta distinção desaparece do momento em que os dois termos são fixados
dogmaticamente numa oposição rígida que paralisa e mata o pensamento.
Vemos por aí que Platão é bastante consciente da ambiguidade e da ambivalência do mito.
Diferentemente da figura geométrica, da qual todos os pontos são simultaneamente sensíveis e
inteligíveis, e que é definida por um conceito unívoco, o mito exibe uma multiplicidade de sentidos
e requer interpretação. O cavalo preto e o cavalo branco do mito da alma como parelha alada, no
Fedro, só são simbólicos por sua cor, e talvez também por seu ímpeto, mas certamente não
enquanto mamíferos quadrúpedes… No mito, o pensamento deve triar, mas é por isso que ele é
fecundo para o pensamento que ele aciona. Em compensação, na figura geométrica, não podemos
suprimir nada.
A figura geométrica e o mito são dois tipos de imagens que têm o poder de impelir a alma a uma
superação; eles estimulam e levam à reflexão filosófica.

4
Erística (do grego éris = luta, querela) - Arte sofística destinada a vencer o adversário com uma sequência de questões muito
rápidas. Encontramos seu modelo no Eutidemo de Platão.
5
Dogmatismo -É dogmático aquele que propõe ou impõe uma afirmação que é dada como verdadeira, recusando que ela seja
examinada e discutida. O dogmatismo é a pretensão de deter a verdade, e se opõe ao relativismo, que sustenta que “cada um
tem a sua verdade”.
Textos 6

1. Na sua maior parte, os primeiros filósofos pensaram que os princípios, sob a forma de matéria, foram
os únicos princípios de todas as coisas: pois a fonte original de todas as coisas que existem, aquela
a partir da qual uma coisa é primeiro originada e na qual por fim é destruída, a substância que
persiste, mas se modifica nas suas qualidades, essa, afirmam eles, é o elemento e o primeiro
princípio das coisas existentes, e por essa razão consideram que não há geração ou morte absolutas,
com base no fato de uma tal natureza ser sempre preservada ... pois deve haver alguma substância
natural, uma ou mais do que uma, de que provêm as outras coisas, enquanto ela é preservada.
Contudo, sobre o número e a forma desta espécie de princípio nem todos estão de acordo; mas
Tales, o fundador deste tipo de filosofia, diz que é a água (e por consequência declarou que a terra
está sobre a água), tendo talvez formulado esta suposição por ver que o alimento de todas as coisas
é úmido, e que o próprio calor dele provém e vive graças a ele (aquilo de que provêm é o princípio
de todas as coisas) — formulou a hipótese não só a partir disto, como ainda do fato de os embriões
de todas as coisas terem uma natureza úmida, sendo a água o princípio natural das coisas úmidas.
(Aristóteles, Metafísica)

2. Tales foi principalmente conhecido pelas suas proezas como astrônomo prático, geômetra, e sábio
em geral. A predição que fez do eclipse foi provavelmente possível graças à utilização dos registos
babilônicos, obtidos, talvez, em Sardes; é também provável que tenha visitado o Egito. A sua teoria
de que a terra flutua na água foi derivada, segundo parece, dos mitos cosmogónicos do Próximo-
Oriente, talvez diretamente; a água como origem das coisas fazia também parte desses mitos, mas
fora já mencionada num contexto grego muito antes de Tales. O desenvolvimento que Tales deu a
este conceito pôde, em si mesmo, apresentar-se aos olhos de Aristóteles como garantia suficiente
para afirmar que Tales considerava a água como arqué, no sentido aristotélico de substrato
permanente. Contudo, Tales podia efetivamente ter reconhecido que, sendo a água essencial para
a subsistência das plantas e da vida animal — desconhecem-se os argumentos meteorológicos por
ele empregados —, ela permanece ainda como constituinte básico das coisas. Embora estas ideias
fossem profundamente afetadas, direta ou indiretamente, por precedentes mitológicos, o que é certo
é que Tales abandonou as formulações míticas; isto, por si só, justifica a afirmação de ter sido ele o
primeiro filósofo, por muito ingênuo que fosse ainda o seu modo de pensar. Além disso, ele notou
que mesmo certas espécies de pedras podiam ter uma capacidade limitada de movimento e, por

6
G. S. KIRK • J. E. RAVEN • M. SCHOFIELD. OS FIL0S0F0S
PRÉ-SOCRÁTICOS
conseguinte, pensava ele, de alma transmissora de vida; o mundo como um todo estava,
consequentemente, de certo modo penetrado (embora, como é provável, não completamente) de
uma força vital que, devido ao seu alcance e persistência, podia naturalmente ser chamada divina.
Se ele associou esta força vital à água, origem e talvez constituinte essencial do mundo, é fato de
que não temos notícia.

3. Entre os que admitem um só princípio móvel e infinito, Anaximandro de Mileto, filho de Praxíades,
sucessor e pupilo de Tales, disse que o princípio o elemento das coisas que existem era o apeiron,
[indefinido ou infinito], tendo sido ele o primeiro a introduzir este nome do princípio material. Diz ele
que tal princípio não é nem água nem qualquer outro dos chamados elementos, mas uma outra
natureza apeiron, de que provêm todos os céus e os mundos neles contidos. E a fonte da geração
das coisas que existem é aquela em que se verifica também a destruição “segundo a necessidade;
pois pagam castigo e retribuição umas às outras, pela sua injustiça, de acordo com o decreto do
Tempo”, sendo assim que ele se exprime, em termos assaz poéticos. (Simplício)

4. Anaxímenes é o último dos grandes pensadores milésios. O seu pensamento estava claramente em
dívida não só para com Anaximandro, mas, provavelmente, também para com Tales, a cuja
concepção da substância originadora, como um componente real do mundo, ele pôde voltar, graças
à sua notável ideia de condensação e rarefação — um meio observável de mudança, através do qual
a quantidade regula a espécie. Esta ideia foi provavelmente aceita por Heráclito e integrada num
sistema de carácter bastante diferente: é que foi depois dos Milésios que se ampliou e modificou a
antiga maneira de encarar a cosmogonia, segundo a qual o objetivo mais importante consistia em
dar nome a uma única espécie de matéria, a partir da qual todo o mundo diferenciado podia ter-se
desenvolvido. Os sucessores de Anaxímenes, Xenófanes e Heráclito — apesar de serem também
jónios (se bem que o primeiro tenha emigrado) — ocuparam-se de novos problemas, respeitantes à
teologia e à unidade na disposição das coisas, mais do que do problema da substância material.
Desvios da tradição milésia, ainda mais essenciais, vieram a ocorrer no Ocidente. Mas quando os
pensadores orientais e do continente (Anaxágoras, Diógenes, Leucipo e Demócrito) se libertaram,
no século quinto, da refutação ocidental dos Eleatas, foi para os Milésios, e particularmente para
Anaxímenes, que eles principalmente se voltaram no tocante a pormenores de cosmologia; não tanto
devido à grande intuição de uma espécie de alma-alento cósmica, mas pelo fato de esses
pormenores terem sido em parte adaptados da tradição popular, não-científica, e estarem ainda sob
a sua proteção.

2. E agora vou falar; e tu, escuta as minhas palavras e guarda-as bem, pois vou dizer-te dos únicos caminhos
de investigação concebíveis. O primeiro [diz] que [o ser] é e que o não-ser não é; este é o caminho da
convicção, pois conduz à verdade. O segundo, que não é, é, e que o não-ser é necessário; esta via, digo-
te, é imperscrutável; pois não podes conhecer aquilo que não é — isto é impossível —, nem expressá-lo em
palavra.
3. Pois pensar e ser é o mesmo.
[...]
8. Resta-nos assim um único caminho: o ser é. Neste caminho há grande número de indícios; não sendo
gerado, é também imperecível; possui, com efeito, uma estrutura inteira, inabalável e sem meta; jamais foi
nem será, pois é, no instante presente, todo inteiro, uno, contínuo. Que geração se lhe poderia encontrar?
Como, de onde cresceria? Não te permitirei dizer nem pensar o seu crescer do não-ser. Pois não é possível
dizer nem pensar que o não-ser é. Se viesse do nada, qual necessidade teria provocado seu surgimento
mais cedo ou mais tarde? Assim pois, é necessário ser absolutamente ou não ser. E jamais a força da
convicção concederá que do não-ser possa surgir outra coisa. Por isto, a deusa da Justiça não admite, por
um afrouxamento de suas cadeias, que nasça ou que pereça, mas mantém-no firme. A decisão sobre este
ponto recai sobre a seguinte afirmativa: ou é ou não é. Decidida está, portanto, a necessidade de abandonar
o primeiro caminho, impensável e inominável (não é o caminho da verdade); o outro, ao contrário, é presença
e verdade. Como poderia perecer o que é? Como poderia ser gerado? Pois se gerado, não é, e também
não é se devera existir algum dia. Assim, o gerar se apaga e o perecimento se esquece.
Também não é divisível, pois é completamente idêntico. E não poderia ser acrescido, o que impediria a sua
coesão, nem diminuído; muito mais, é pleno de ser; por isto, é todo contínuo, porque o ser é contíguo ao
ser.
Por outro lado, imóvel nos limites de seus poderosos liames, é sem começo e sem fim; pois geração e
destruição foram afastadas para longe, repudiadas pela verdadeira convicção. Permanecendo idêntico e em
um mesmo estado, descansa em si próprio, sempre imutavelmente fixo e no mesmo lugar; pois a poderosa
necessidade o mantém nos liames de seus limites, que o cercam por todos os lados, porque o ser deve ter
um limite; com efeito, nada lhe falta; fosse sem limite, faltar-lhe-ia tudo.
O mesmo é pensar e o pensamento de que o ser é, pois jamais encontrarás o pensamento sem o ser, no
qual é expressado. Nada é e nada poderá ser fora do ser, pois Moira o encadeou de tal modo que seja
completo e imóvel. Em consequência, será (apenas) nome tudo o que os mortais designaram, persuadidos
de que fosse verdade: geração e morte, ser e não-ser, mudança de lugar e modificação do brilho das cores.
Porque dotado de um último limite, é completo em todos os lados, comparável à massa de uma esfera bem
redonda, equilibrada desde seu centro em todas as direções; não poderia ser maior ou menor aqui ou ali.
Pois nada poderia impedi-lo de ser homogêneo, nem aquilo que é não é tal que possa ter aqui mais ser do
que lá, porque é completamente íntegro; igual a si mesmo em todas as suas partes, encontra-se de maneira
idêntica em seus limites.
Com isto ponho fim ao discurso digno de fé que te dirijo e às minhas reflexões sobre a verdade; e a partir
deste ponto aprende a conhecer as opiniões dos mortais, escutando a ordem enganadora de minhas
palavras.
(Parmênides)

1. Este logos, os homens, antes ou depois de o haverem ouvido, jamais o compreendem. Ainda que tudo
ocorra de acordo com este logos, eles parecem não ter experiência, cada vez que experimentam palavras
e atos tais como os exponho, analisando cada coisa segundo a sua natureza e interpretando-a como é. Os
demais homens ignoram o que fazem quando acordados, assim como esquecem o que fazem durante o
sono.
2. Por isso, é preciso seguir-se o comum. Mas, apesar de o logos ser comum, a grande multidão vive como
se cada um tivesse um entendimento próprio.
4. Se a felicidade consistisse nos prazeres do corpo, deveríamos considerar felizes os bois quando
encontram ervilhas para comer.
8. Tudo se faz por contraste, da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia.
10. Correlações: completo e incompleto, concorde e discorde, harmonia e desarmonia, e todas as coisas,
um, e de um, todas as coisas.
12 Para os que entram nos mesmos rios, correm outras e novas águas. Mas também almas (psychai) são
exaladas do úmido.
17. A grande multidão não entende estas coisas, mesmo quando as encontra em seu caminho, e não as
entende quando ensinada; mas pensa saber.
18. Quem não espera, não encontrará o inesperado, que é inexplorável e inacessível.
30. Este cosmo, igual para todos, não o fez nenhum dos deuses, nem nenhum dos homens, mas sempre
foi, é e será um fogo eternamente vivo, acendendo-se e extinguindo-se conforme a medida.
31. As transformações do fogo: primeiro o mar; do mar, uma metade terra, a outra, ar incandescente. A terra
dilui-se em mar, e esta recebe a sua medida segundo a mesma lei, tal como era antes de se tornar terra.
32. O Uno, o único sábio, recusa-se e aceita ser chamado pelo nome de Zeus.
35. Homens que amam a sabedoria precisam ter muitos conhecimentos.
36. Para as almas (psychai), morrer é transformar-se em água, para a água, morrer é transformar-se em
terra. Da terra, contudo, forma-se a água, e da água a alma.
41. Há só uma coisa sábia: conhecer o pensamento que governa tudo através de tudo.
45. Mesmo percorrendo todos os caminhos, jamais encontrarás os limites da alma (psyche), tão profundo é
o seu logos.
47. Não devemos fazer conjecturas apressadamente sobre as coisas mais elevadas.
49A. Descemos e não descemos para dentro dos mesmos rios; somos e não somos.
50. Se ouvirem não a mim, mas ao logos, provarão ser sábios se admitirem que tudo é um.
51. Não compreendem como separando-se podem se harmonizar: harmonia de forças contrárias como o
arco e a lira.
52. O tempo (aion) é uma criança que brinca jogando dados: governo de criança.
53. A guerra (polemos) é pai de todas as coisas, rei de tudo; de uns fez deuses, de outros homens; de uns,
escravos, de outros, homens livres.
54. A harmonia invisível é superior à visível.
55. Prefiro tudo aquilo que se pode ver, ouvir e entender.
59. O caminho da espiral sem fim é reto e curvo, é um e o mesmo.
60. O caminho para o alto e para baixo é um e o mesmo.
61. O mar, a água mais pura e a mais poluída: aos peixes, potável e saudável; aos homens, impotável e
prejudicial.
62. Imortais, mortais; mortais, imortais. A vida destes é a morte daqueles, e a vida daqueles a morte destes.
65. O Fogo (Pyr): carência e fartura.
66. Aproximando-se, o fogo julgará e apreenderá tudo.
67. O deus é dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, abundância e fome. Toma formas várias como o
fogo, quando misturado a especiarias toma o perfume de cada uma.
67A. Assim como a aranha no centro de sua teia sente quando uma mosca rompe um de seus fios e por
isso corre rapidamente como que apreensiva pela ruptura, do mesmo modo a alma humana, ao ser ferida
alguma parte do corpo, acode apressadamente, como que não tolerando a lesão do corpo ao qual está
ligada firme e harmoniosamente.
72. Do logos, com que mantêm um contato constante, os homens discordam; e as coisas que encontram
todos os dias lhes parecem estranhas.
88. Trata-se de uma única e mesma coisa: a vida e a morte, a vigília e o sono, a juventude e a velhice; pois
a mudança de um leva ao outro e vice-versa.
90. O fogo se transforma em todas as coisas e todas as coisas se transformam em fogo, assim como se
trocam mercadorias por ouro e ouro por mercadorias.
91. Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio. Dispersa-se e se junta novamente, aproxima-se e se
distancia.
93. O senhor, cujo oráculo está em Delfos, não se oculta nem se revela, mas dá um sinal (semainei).
112. Pensar sensatamente é a mais elevada perfeição; a sabedoria consiste em dizer a verdade e agir de
acordo com a natureza, ouvindo a sua voz.
113. O pensar sensatamente é comum a todos.
114. Aqueles que falam com inteligência devem apoiar-se no que é comum a todos, como a cidade (polis)
em suas leis, e mais ainda. Todas as leis humanas nutrem-se de uma única lei divina, que estende o seu
poder até aonde quer, é bastante para todos e tudo, e ainda os ultrapassa.
115. A alma possui um logos que aumenta a si próprio.
116. Todos os homens podem conhecer a si mesmos e pensar sensatamente.
123. A natureza tende (philei) a ocultar-se.
126. O frio torna-se quente, o quente frio, o úmido seco, e o seco úmido.”
(HERÁCLITO)

Invocarei o deus em Delfos como testemunha quanto à existência e à natureza da minha sabedoria, se ela for tal. Vós
conheceis Querefonte. Ele era meu amigo desde a juventude, e amigo da maioria de vós, visto que participou do vosso
exílio e do vosso retorno. Vós certamente conheceis o tipo de homem que era, o quão impulsivo em qualquer curso de
ação. Ele foi a Delfos uma vez e aventurou-se a fazer uma pergunta ao oráculo – como digo, cidadãos, não crieis uma
confusão; ele perguntou se algum homem era mais sábio do que eu, e a Pítia respondeu que nenhum homem era mais
sábio. Querefonte está morto, mas o seu irmão testemunhará a vós sobre isso.
Considerai que eu vos conto isso porque vos informaria sobre a origem da calúnia. Quando ouvi dessa resposta,
perguntei a mim mesmo: “O que quer dizer o deus? Qual é o seu enigma? Estou muito consciente de que não sou
sábio; o que então ele quer dizer ao dizer que sou o mais sábio? Sem dúvida, ele não mente; não lhe é legítimo agir
assim”. Por um longo tempo, eu estava desorientado quanto ao seu significado; então, com muita relutância, voltei-me
a uma investigação tal como esta: fui a um daqueles reputados sábios, pensando que ali, se em algum lugar, eu poderia
refutar o oráculo e dizer a ele: “Esse homem é mais sábio do que eu, mas disseste que eu o era”. Então, quando
examinei esse homem – não tenho nenhuma necessidade de dizer-vos o seu nome, pois ele era um dos nossos
homens públicos –, a minha experiência foi mais ou menos assim: pensei que ele aparecia sábio a muitas pessoas e
especialmente a si mesmo, mas ele não o era. Tentei mostrar-lhe que pensava a si mesmo como sábio, mas que não
o era. Como resultado, ele veio a desgostar de mim, e assim fizeram muitos dos circunstantes. Assim, retirei-me e
pensei comigo mesmo: “Eu sou mais sábio do que esse homem; é provável que nenhum de nós saiba qualquer coisa
que valha a pena, mas ele pensa que sabe alguma coisa, quando não sabe, ao passo que, quando não sei, tampouco
penso que sei; portanto, é provável que eu seja mais sábio do que ele nessa pequena medida, a saber, que não creio
que eu saiba o que não sei”. 2 Depois disso, abordei um outro homem, um daqueles considerado como sendo mais
sábio do que ele, e pensei a mesma coisa, de modo que vim a ser antipatizado tanto por ele quanto por muitos outros.
[...]

Esta é a verdade da questão, cidadãos do júri: onde quer que um homem tenha assumido uma posição que crê ser a
melhor, ou tenha sido colocado pelo seu comandante, ali, eu creio, deve ele permanecer e encarar o perigo, sem ficar
pensando na morte ou em alguma outra coisa, a não ser na ignomínia. Teria sido um modo terrível de comportar-se,
cidadãos do júri, se... quando o deus me ordenou, como pensava e acreditava, viver a vida de um filósofo, examinar a
mim mesmo e aos outros, eu tivesse abandonado o meu posto por medo da morte ou de qualquer outra coisa. Isso
teria sido uma coisa terrível, e, nesse caso, eu realmente poderia ter sido trazido, com justiça, para cá, por não crer
que existem deuses, desobedecer ao oráculo, temer a morte e pensar que eu era sábio, quando não o era. Temer a
morte, cidadãos, não é outra coisa senão considerar a si mesmo sábio, quando não se o é, pensar que se sabe o que
não se sabe. Ninguém sabe se a morte não pode ser a maior de todas as bênçãos para um homem; contudo, os
homens a temem como se soubessem que ela é o maior dos males. E certamente é a mais repreensível ignorância
crer que se sabe o que não se sabe. É talvez nesse ponto e nesse aspecto, cidadãos, que difiro da maioria dos homens,
e se eu fosse alegar que sou mais sábio do que alguém em alguma coisa, seria nisso, que, enquanto não tenho nenhum
conhecimento adequado de coisas no submundo, assim não acho que eu o tenha. Sei de fato, porém, que é mau e
vergonhoso fazer o mal, desobedecer ao seu superior, seja ele deus ou homem. Jamais deverei temer ou evitar coisas
das quais não tenho conhecimento se podem não ser boas, ao invés de coisas que sei serem más. Mesmo se vós me
absolvêsseis agora e não acreditásseis em Anito,... se dissésseis a mim nesse sentido: “Sócrates, não acreditamos
em Anito agora; absolvemos a ti, mas só na condição de que não gastes mais nenhum tempo nessa investigação nem
pratiques filosofia e, se fores pego fazendo isso, morrerás”; se, como digo, fôsseis me absolver nesses termos, eu vos
diria: “Cidadãos do júri, sou grato e amigo vosso, mas obedecerei ao deus e não a vós. Enquanto respiro e sou capaz,
não cessarei de praticar filosofia, de exortar-vos e, na minha maneira habitual, de apontar para qualquer de vós que
me ocorrer de encontrar: “Bom senhor, és um ateniense, um cidadão da maior cidade, com a maior reputação tanto
por sabedoria quando por poder; não estás envergonhado da tua avidez em possuir tanta riqueza, reputação e honras
quanto possível, embora não te importes com nem penses na sabedoria, ou na verdade, ou no melhor estado possível
da tua alma?”. Então, se um de vós disputar isso e disser que ele se importa, não deixarei que ele vá sem mais nem o
deixarei, mas o questionarei, examinarei e testarei; e, se não crer que ele atingiu a bondade que diz possuir, deverei
repreendê-lo, porque deposita pouca importância nas coisas mais importantes e importância maior em coisas inferiores
(APOLOGIA A SOCRATES)

ETICA A NICOMACO
Ora, nós chamamos aquilo que merece ser buscado por si mesmo mais absoluto do que aquilo que merece ser buscado
com vistas em outra coisa, e aquilo que nunca é desejável no interesse de outra coisa mais absoluto do que as coisas
desejáveis tanto em si mesmas como no interesse de uma terceira; por isso chamamos de absoluto e incondicional
aquilo que é sempre desejável em si mesmo e nunca no interesse de outra coisa.
Ora, esse é o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade. É ela procurada sempre por si mesma e nunca
com vistas em outra coisa, ao passo que à honra, ao prazer, à razão e a todas as virtudes nós de fato escolhemos por
si mesmos (pois, ainda que nada resultasse daí, continuaríamos a escolher cada um deles); mas também os
escolhemos no interesse da felicidade, pensando que a posse deles nos tornará felizes. A felicidade, todavia, ninguém
a escolhe tendo em vista algum destes, nem, em geral, qualquer coisa que não seja ela própria.
[...]

A vida parece ser comum até às próprias plantas, mas agora estamos procurando o que é peculiar ao homem.
Excluamos, portanto, a vida de nutrição e crescimento. A seguir há uma vida de percepção, mas essa também parece
ser comum ao cavalo, ao boi e a todos os animais. Resta, pois, a vida ativa do elemento que tem um princípio racional;
desta, uma parte tem tal princípio no sentido de ser-lhe obediente, e a outra no sentido de possuí-lo e de exercer o
pensamento. E, como a “vida do elemento racional" também tem dois significados, devemos esclarecer aqui que nos
referimos a vida no sentido de atividade; pois esta parece ser a acepção mais própria do termo.
Ora, se a função do homem é uma atividade da alma que segue ou que implica um princípio racional, e se dizemos
que "um tal-e-tal" e "um bom tal-e-tal" têm uma função que é a mesma em espécie (por exemplo, um tocador de lira e
um bom tocador de lira, e assim em todos os casos, sem maiores discriminações, sendo acrescentada ao nome da
função a eminência com respeito à bondade — pois a função de um tocador de lira é tocar lira, e a de um bom tocador
de lira é fazê-lo bem); se realmente assim é [e afirmamos ser a função do homem uma certa espécie de vida, e esta
vida uma atividade ou ações da alma que implicam um princípio racional; e acrescentamos que a função de um bom
homem é uma boa e nobre realização das mesmas; e se qualquer ação é bem realizada quando está de acordo com
a excelência que lhe é própria; se realmente assim é], o bem do homem nos aparece como uma atividade da alma em
consonância com a virtude, e, se há mais de uma virtude, com a melhor e mais completa.
Mas é preciso ajuntar "numa vida completo". Porquanto uma andorinha não faz verão, nem um dia tampouco; e da
mesma forma um dia, ou um breve espaço de tempo, não faz um homem feliz e venturoso.

[...]

A resposta à pergunta que estamos fazendo é também evidente pela definição da felicidade, por quando dissemos que
ela é uma atividade virtuosa da alma, de certa espécie. Do demais bens, alguns devem necessariamente estar
presentes como condições prévias da felicidade, e outros são naturalmente cooperantes e úteis como instrumentos. E
isto, como é de ver concorda com o que dissemos no princípio, isto é, que o objetivo da vida política é o melhor dos
fins, e essa ciência dedica o melhor de seus esforços a fazer com que os cidadãos sejam bons e capazes de nobres
ações.
É natural, portanto, que não chamemos feliz nem ao boi, nem ao cavalo nem a qualquer outro animal, visto que nenhum
deles pode participar de tal atividade. Pelo mesmo motivo, um menino tampouco é feliz, pois que, devido à sua idade,
ainda não é capaz de tais atos; e os meninos a quem chamamos felizes estão simplesmente sendo congratulados por
causa das esperanças que neles depositamos. Porque, como dissemos, há importante não só de uma virtude completa
mas também de uma vida completa, já que muitas mudanças ocorrem na vida, e eventualidades de toda sorte: o mais
próspero pode ser vítima de grandes infortúnios na velhice, como se conta de Príamo no Ciclo Troiano; e a quem
experimentou tais vicissitudes e terminou miseravelmente ninguém chama feliz.

Já que a felicidade é uma atividade da alma conforme à virtude perfeita, devemos considerar a natureza da virtude:
pois talvez possamos compreender melhor, por esse meio, a natureza da felicidade.

A virtude também se divide em espécies de acordo com esta diferença, porquanto dizemos que algumas virtudes são
intelectuais e outras morais; entre as primeiras temos a sabedoria filosófica, a compreensão, a sabedoria prática; e
entre as segundas, por exemplo, a liberalidade e a temperança. Com efeito, ao falar do caráter de um homem não
dizemos que ele é sábio ou que possui entendimento, mas que é calmo ou temperante. No entanto, louvamos também
o sábio, referindo-nos ao hábito; e aos hábitos dignos de louvor chamamos virtudes.

Sendo, pois, de duas espécies a virtude, intelectual e moral, a primeira, por via de regra, gera-se e cresce graças ao
ensino — por isso requer experiência e tempo; enquanto a virtude moral é adquirida em resultado do hábito, donde ter-
se formado o seu nome por uma pequena modificação da palavra (hábito). Por tudo isso, evidencia-se também que
nenhuma das virtudes morais surge em nós por natureza; com efeito, nada do que existe naturalmente pode formar
um hábito contrário à sua natureza. Por exemplo, à pedra que por natureza se move para baixo não se pode imprimir
o hábito de ir para cima, ainda que tentemos adestra-la jogando-a dez mil vezes no ar; nem se pode habituar o fogo a
dirigir-se para baixo, nem qualquer coisa que por natureza se comporte de certa maneira a comportar-se de outra. Não
é, pois, por natureza, nem contrariando a natureza que as virtudes se geram em nós. Diga-se, antes, que somos
adaptados por natureza a recebê-las e nos tornamos perfeitos pelo hábito.

Isso, pois, é o que também ocorre com as virtudes: pelos atos que praticamos em nossas relações com os homens
nos tornamos justos ou injustos; pelo que fazemos em presença do perigo e pelo hábito do medo ou da ousadia, nos
tornamos valentes ou covardes. O mesmo se pode dizer dos apetites e da emoção da ira: uns se tornam temperantes
e calmos, outros sem limites e irascíveis, portando-se de um modo ou de outro em igualdade de circunstâncias. Numa
palavra: as diferenças de caráter nascem de atividades semelhantes. É preciso, pois, atentar para a qualidade dos atos
que praticamos, porquanto da sua diferença se pode aquilatar a diferença de caracteres. E não é coisa de somenos
que desde a nossa juventude nos habituemos desta ou daquela maneira. Tem, pelo contrário, imensa importância, ou
melhor: tudo depende disso.

Por exemplo, tanto o medo como a confiança, o apetite, a ira, a compaixão, e em geral o prazer e a dor, podem ser
sentidos em excesso ou em grau insuficiente; e, num caso como no outro, isso é um mal. Mas senti-los na ocasião
apropriada, com referência aos objetos apropriados, para com as pessoas apropriadas, pelo motivo e da maneira
conveniente, nisso consistem o meio-termo e a excelência característicos da virtude.
Analogamente, no que tange às ações também existe excesso, carência e um meio-termo. Ora, a virtude diz respeito
às paixões e ações em que o excesso é uma forma de erro, assim como a carência, ao passo que o meio-termo é uma
forma de acerto digna de louvor; e acertar e ser louvada são características da virtude. Em conclusão, a virtude é uma
espécie de mediania, já que, como vimos, ela põe a sua mira no meio-termo.

A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente numa mediania, isto é, a mediania
relativa a nós, a qual é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática. E é um
meio-termo entre dois vícios, um por excesso e outro por falta; pois que, enquanto os vícios ou vão muito longe ou
ficam aquém do que é conveniente no tocante às ações e paixões, a virtude encontra e escolhe o meio-termo. E assim,
no que toca à sua substância e à definição que lhe estabelece a essência, a virtude é uma mediania; com referência
ao sumo bem e ao mais justo, é, porém, um extremo.
Carta sobre a felicidade
(a Meneceu)
Epicuro envia suas saudações a Meneceu
Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque
ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora
de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já
passou a hora de ser feliz. Desse modo, a filosofia é útil tanto ao jovem quanto ao velho: para quem está envelhecendo
sentir-se rejuvenescer através da grata recordação das coisas
que já se foram, e para o jovem poder envelhecer sem sentir medo das coisas que estão por vir; é necessário, portanto,
cuidar das coisas que trazem a felicidade, já que, estando esta presente, tudo temos, e, sem ela, tudo fazemos para
alcançá-la. Pratica e cultiva então aqueles ensinamentos que sempre te transmiti, na certeza de que eles constituem
os elementos fundamentais para uma vida feliz.
Em primeiro lugar, considerando a divindade como um ente imortal e bem-aventurado, como sugere a percepção
comum de divindade, não atribuas a ela nada que seja incompatível com a sua imortalidade, nem inadequado à sua
bem-aventurança; pensa a respeito dela tudo que for capaz de conservar-lhe felicidade e imortalidade.
Os deuses de fato existem e é evidente o conhecimento que temos deles; já a imagem que deles faz a maioria das
pessoas, essa não existe: as pessoas não costumam preservar a noção que têm dos deuses, ímpio não é quem rejeita
os deuses em que a maioria crê, mas sim quem atribui aos deuses os falsos juízos dessa maioria. Com efeito, os juízos
do povo a respeito dos deuses não se baseiam em noções inatas, mas em opiniões falsas. Daí a crença de que eles
causam os maiores malefícios aos maus e os maiores benefícios aos bons. Irmanados pelas suas próprias virtudes,
eles só aceitam a convivência com os seus semelhantes e consideram estranho tudo que seja diferente deles.
Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a
morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós
proporciona a fruição da vida efémera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade.
Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar
de viver. É tolo portanto quem diz ter
medo da morte, não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera: aquilo que não
nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado.
Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos
vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos. A morte,
portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes
não estão mais aqui. E, no entanto, a maioria das pessoas ora foge da morte como se fosse o maior dos males, ora a
deseja como descanso dos males da vida.
O sábio, porém, nem desdenha viver, nem teme deixar de viver; para ele, viver não é um fardo e não-viver não é um
mal.
Assim como opta pela comida mais saborosa e não pela mais abundante, do mesmo modo ele colhe os doces frutos
de um tempo bem vivido, ainda que breve.
Quem aconselha o jovem a viver bem e o velho a morrer bem não passa de um tolo, não só pelo que a vida tem de
agradável para ambos, mas também porque se deve ter exatamente o mesmo cuidado em honestamente viver e em
honestamente morrer. Mas pior ainda é aquele que diz: bom seria não ter nascido, mas, uma vez nascido, transpor o
mais depressa possível as portas do Hades.
Se ele diz isso com plena convicção, por que não se vai desta vida? Pois é livre para fazê-lo, se for esse realmente
seu desejo; mas se o disse por brincadeira, foi um frívolo em falar de coisas que brincadeira não admitem.
Nunca devemos nos esquecer de que o futuro não é nem totalmente nosso, nem totalmente não-nosso, para não
sermos obrigados a esperá-lo como se estivesse por vir com toda a certeza, nem nos desesperarmos como se não
estivesse por vir jamais.
Consideremos também que, dentre os desejos, há os que são naturais e os que são inúteis; dentre os naturais, há uns
que são necessários e outros, apenas naturais; dentre os necessários, há alguns que são fundamentais para a
felicidade, outros, para o bem-estar corporal, outros, ainda, para a própria vida. E o conhecimento seguro dos desejos
leva a direcionar toda escolha e toda recusa para a saúde do corpo e para a serenidade do espírito, visto que esta é a
finalidade da vida feliz: em razão desse fim praticamos todas as nossas ações, para nos afastarmos da dor e do medo.
Uma vez que tenhamos atingido esse estado, toda a tempestade da alma se aplaca, e o ser vivo, não tendo que ir em
busca de algo que lhe falta, nem procurar outra coisa a não ser o bem da alma e do corpo, estará satisfeito. De fato,
só sentimos necessidade do prazer quando sofremos pela sua ausência; ao contrário, quando não sofremos, essa
necessidade não se faz sentir.
É por essa razão que afirmamos que o prazer é o início e o fim de uma vida feliz. Com efeito, nós o identificamos como
o bem primeiro e inerente ao ser humano, em razão dele praticamos toda escolha e toda recusa, e a ele chegamos
escolhendo todo bem de acordo com a distinção entre prazer e dor.
Embora o prazer seja nosso bem primeiro e inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer: há ocasiões em que
evitamos muitos prazeres, quando deles nos advêm efeitos o mais das vezes desagradáveis; ao passo que
consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos prazeres, se um prazer maior advier depois de suportarmos essas
dores por muito tempo. Portanto, todo prazer constitui um bem por sua própria natureza; não obstante isso, nem todos
são escolhidos; do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem todas devem ser sempre evitadas. Convém, portanto,
avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e dos danos. Há ocasiões em que
utilizamos um bem como se fosse um mal e, ao contrário, um mal como se fosse um bem.
Consideramos ainda a autossuficiência um grande bem; não que devamos nos satisfazer com pouco, mas para nos
contentarmos com esse pouco caso não tenhamos o muito, honestamente convencidos de que desfrutam melhor a
abundância os que menos dependem dela; tudo o que é natural é fácil de conseguir; difícil é tudo o que é inútil.
Os alimentos mais simples proporcionam o mesmo prazer que as iguarias mais requintadas, desde que se remova a
dor provocada pela falta: pão e água produzem o prazer mais profundo quando ingeridos por quem deles necessita.
Habituar-se às coisas simples, a um modo de vida não luxuoso, portanto, não só é conveniente para a saúde, como
ainda proporciona ao homem os meios para enfrentar corajosamente as adversidades da vida: nos períodos em que
conseguimos levar uma existência rica, predispõe o nosso ânimo para melhor aproveitá-la, e nos prepara para enfrentar
sem temor as vicissitudes da sorte.
Quando então dizemos que o fim último é o prazer, não nos referimos aos prazeres dos intemperantes ou aos que
consistem no gozo dos sentidos, como acreditam certas pessoas que ignoram o nosso pensamento, ou não concordam
com ele, ou o interpretam erroneamente, mas ao prazer que é ausência de sofrimentos físicos e de perturbações da
alma. Não são, pois, bebidas nem banquetes contínuos, nem a posse de mulheres e rapazes, nem o sabor dos peixes
ou das outras iguarias de urna mesa farta que tomam doce uma vida, mas um exame cuidadoso que investigue as
causas de toda escolha e de toda rejeição e que remova as opiniões falsas em virtude das quais uma imensa
perturbação toma conta dos espíritos. De todas essas coisas, a prudência é o princípio e o supremo bem, razão pela
qual ela é mais preciosa do que a própria filosofia; é dela que originaram todas as demais virtudes; é ela que nos ensina
que não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça, e que não existe prudência, beleza e justiça sem felicidade.
Porque as virtudes estão intimamente ligadas à felicidade, e a felicidade é inseparável delas.
Na tua opinião, será que pode existir alguém mais feliz do que o sábio, que tem um juízo reverente acerca dos deuses,
que se comporta de modo absolutamente indiferente perante a morte, que bem compreende a finalidade da natureza,
que discerne que o bem supremo está nas coisas simples e fáceis de obter, e que o mal supremo ou dura pouco, ou
só nos causa sofrimentos leves? Que nega o destino, apresentado por alguns como o senhor de tudo, já que as coisas
acontecem ou por necessidade, ou por acaso, ou por vontade nossa; e que a necessidade é incoercível, o acaso,
instável, enquanto nossa vontade é livre, razão pela qual nos acompanhara a censura e o louvor?
Mais vale aceitar o mito dos deuses, do que ser escravo do destino dos naturalistas: o mito pelo menos nos oferece a
esperança do perdão dos deuses através das homenagens que lhes prestamos, ao passo que o destino é uma
necessidade inexorável.
Entendendo que a sorte não é uma divindade, como a maioria das pessoas acredita (pois um deus não faz nada ao
acaso), nem algo incerto, o sábio não crê que ela proporcione aos homens nenhum bem ou nenhum mal que sejam
fundamentais para uma vida feliz, mas, sim, que dela pode surgir o início de grandes bens e de grandes males. A seu
ver, é preferível ser desafortunado e sábio, a ser afortunado e tolo; na prática, é melhor que um bom projeto não chegue
a bom termo, do que chegue a ter êxito um projeto mau.
Medita, pois, todas estas coisas e muitas outras a elas congêneres, dia e noite, contigo mesmo e com teus semelhantes,
e nunca mais te sentirás perturbado, quer acordado, quer dormindo, mas viverás como um deus entre os homens.
Porque não se assemelha absolutamente a um mortal o homem que vive entre bens imortais.

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