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PEDRO PAULO SALLES


A sociedade secreta das Iyamaka, as “flautas” paresi haliti E
DEBATES | UNIRIO, n. 19, p.208- 235, nov., 2017.

A sociedade secreta das Iyamaka, B


as “flautas” Paresi Haliti A
________________________________________________
T
Pedro Paulo Salles
E
Universidade de São Paulo
S
Resumo: Este artigo trata do conjunto de flautas Iyamaka e de seu papel na dinâmica
social e cosmopolítica dos índios Paresi Haliti, do Mato Grosso, grupo de fala Arawak
Maipure, tendo como base um trabalho de pesquisa etnográfica realizado em 2014 e
2016 em oito aldeias: Bakaval, Utiarity, Kotítiko, Kolídiki, Queimada-Koteroko, Kamae, 19
JM-Korehete e Rio Formoso-Hohako. Procurou-se apresentar cada um dos indivíduos-
flauta desse complexo, sua constituição onomástica, organológica e ontológica, sua
origem na mitologia histórica deste povo, sua natureza, suas humanidades, suas
agências e imanências sonoras na construção da pessoa Paresi Haliti, sobretudo
durante as festas de nominação. Também foi considerado o papel dos donos de flauta
(Zetati waikyate), das oferendas (fetazaita) e dos cantos de flauta (Iyamaka zerane)
nessa dinâmica, a fim de compreendermos as relações de reciprocidade entre os
humanos e as outras humanidades.

Palavras-chave: Etnomusicologia. Música indígena. Flautas secretas. Paresi Haliti.


________________________________________________
The secret society of the Iyamaka, the Paresi Haliti "flutes"

Abstract: This article deals with the set of Iyamaka flutes and its role in social
dynamics and cosmopolitics of the Paresi Haliti Indians of Mato Grosso, group that talks
Arawak Maipure, based on an ethnographic research work carried out in 2014 and
2016 in eight villages: Bakaval, Utiarity, Kotítiko, Kolídiki, Queimada-Koteroko, Kamae,
JM-Korehete and Rio Formoso-Hohako. We sought to present each of the individuals-
flute of this complex, their onomastic, organological and ontological constitution, their
origin in the historical mythology of this people, their nature, their humanities, their
agencies and sound immanence in the construction of the Paresi Haliti person,
especially during the nomination parties. The role of the flute owners (Zetati waikyate),
offerings (fetazaita) and flute chants (Iyamaka zerane) was also considered, in order to
understand the reciprocal relations between humans and the other humanities.

Keywords: Ethnomusicology. Indigenous music. Secret flutes. Paresi Haliti.

Lista de sinais
{ } para configurar morfemas curtos
[ ] para fonemas e morfemas curtos em estado sonoro e para comentários
‘ ’ para traduções em português
= para o resultado de soma de morfemas e igualdade semântica

Convenções
Paresi Haliti – substantivo que designa o idioma e o povo ou o indivíduo nativo
masculino
Paresi Haloti – substantivo que designa o indivíduo nativo feminino
paresi – adjetivo

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Introdução de outro, então darei uma descrição


específica de cada indivíduo-flauta.
As Iyamaka dos Paresi Haliti O termo paresi arawak “Iyamaka”
compreendem um complexo de designa este mesmo conjunto de
instrumentos cerimoniais de sopro com instrumentos, abrangendo às vezes
presença maciça na mitologia deste outros dois elementos: o chocalho de
povo. Para que se tenha a dimensão cura Walatse (que significa literalmente
dessa presença, no livro O Pensamento ‘cabacinha’)3 e as varas-guardas Yohoho,
Mítico do Paresí, de Adalberto Holanda expressão material de uma parcela de
Pereira, dentre as 50 narrativas ferozes entes protetores das flautas4.
coletadas e traduzidas no primeiro Todas as Iyamaka são
volume, há 185 menções às flautas consideradas entes mais ou menos
Iyamaka ou à sua morada, Iyamaka perigosos (zalitxinihare) e, por essa
hana (‘casa da flauta’)1, sendo que mais razão, ficam reclusas na Iyamaka hana,
da metade destes mitos (29) as uma pequena maloca feita
menciona pelo menos uma vez. Há especialmente para elas, como é usual
também, dentre eles, quatro em que as em outras sociedades ameríndias das
flautas têm papel de protagonista, terras baixas sul-americanas. Essa
sendo que, com exceção do último (bem reclusão também se deve ao fato de
ao feitio de “fábula”), são todos mitos que grande parcela das Iyamaka não
de origem: “A origem do Paresí” deve ser vista ou tocada pelas mulheres
(PEREIRA, 1986:31-101), “A origem da (por essa mesma razão, comprometi-
flauta-de-nariz e do timbó” (1986:131- me com os Paresi Haliti a não publicar
149), “Os caminhos das flautas- imagens destas flautas). A
secretas” (1986:224-235) e “A flauta do periculosidade das flautas tem vários
jabuti” (1986:379-384). sentidos e origens, atuando na pessoa
Os Paresi Haliti – assim como a paresi de muitas maneiras, conforme
literatura etnológica – têm chamado de veremos adiante.
“flautas” todo o conjunto de aerofones
(instrumentos de sopro) que compõem Os primeiros Paresi Haliti e suas
o arsenal musical da aldeia, inclusive flautas de pedra
um trompete, um instrumento de
palheta livre (como a gaita) e até um Os Paresi Haliti, falantes da língua
kazoo de taquara, instrumento cujo som do ramo Arawak Maipure (SILVA, 2013),
é produzido pela vibração de que habitam o planalto mato-grossense
membranas acionadas pela voz (um desde as primeiras notícias conhecidas
híbrido de membranofone e aerofone). de contato no século XVIII 5 (quando
A fim de respeitar essa onomástica local,
adotarei este mesmo critério, chamando
de “flautas” ou “flautas secretas” todos 3
O radical wala- é normalmente empregado em
os aerofones envolvidos 2 . Quando nomes de plantas (como as cabaças e as
formos falar particularmente de um ou taquaras) e de peixes: walako (piraputanga),
walahore (dourado), walakotse (piava), walahare
(junqueira), walahiti (raiz), wala (cabaça ou
chocalho genérico), Walalo (uma das flautas de
taquara vindas das águas, a flauta de “Nozani-
1
São quase 4 citações por narrativa (3,7). ná”).
2 4
Assumo essa variedade de expressões por ser Talvez por isso Rondon e Faria (1948) tenham
comum o seu uso pelos Paresi-Haliti, com se confundido, a ponto de chamar as varas
exceção da última (flautas cerimoniais), que Yohoho (que eles chamaram de Iuhuhú) de
ofereço como alternativa ao termo “flautas “Instrumento musical usado pelos Parici”.
5
sagradas”, largamente empregado, inclusive O primeiro registro conhecido de contato data
pelos próprios Paresi- Haliti. de 1723, na Breve Notícia escrita pelo
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eram capturados como escravos), lhe um raio. Através da fenda provocada


localizam-se no chapadão homônimo pela descarga elétrica, pôde entrever na
(Chapada dos Parecis) situado na penumbra subterrânea uma multidão de
porção ocidental do Mato Grosso, região seres enfeitados com trajes festivos e
que alterna zonas de cerrado, de campo portando flautas 6 , agora atordoados e
e de mata, cortada por diversos rios que, caídos. Lá dentro, Wazare, herói
ao norte da chapada, deságuam no rio civilizador paresi, curioso para conhecer
Tapajós (Bacia do Amazonas) e, ao sul, o mundo de fora depois que o tio
no rio Paraguai (Bacia do Paraná). urubuzinho (koko mazazalane) 7 , que
A narrativa que conta dos tempos havia conseguido sair pela fenda, lhe
antigos e que desenha a cosmologia trouxera uma flor do cerrado, ponderou
histórica deste povo, revela como os que a rachadura deveria ser alargada
ancestrais dos Paresi Haliti (Kinohaliti), para que todos pudessem passar por ela
seus subgrupos e outros grupos e sair ao aberto. Então, os bichos que
(inclusive tribos inimigas e os próprios viviam no fundo e que tinham dentes
brancos, denominados Imuti) vieram do fortes ou bico (kaikoliye) foram
mundo de baixo, do fundo da pedra, convocados para ajudar na abertura da
saindo por uma rachadura para o passagem (pica-pau, tucano, formiga
mundo da superfície terrena, e localiza etc.). Wazare, como recompensa, lhes
seu ponto de origem em um local deu suas cores, seus cantos e outros
conhecido como Ponte de Pedra – uma dons.
singular formação rochosa chamada por Com a fenda finalmente alargada, o
eles de Sakuriuwinã, de onde povo de Wazare foi o primeiro a sair,
provavelmente vem o nome do rio que esgueirando-se pela abertura; como não
esta zona arqueológica margeia, o rio estavam enxergando direito, cada um
Sucuruina, também chamado de rio segurou no companheiro da frente e foi
Ponte de Pedra – e indica seus locais de andando em fila. Ao saírem,
povoamento, para onde deveriam ir e se enxergaram-se à luz do dia e então
estabelecer. perceberam que eram peludos, tinham
A narrativa conta que Enore, os dedos ligados por membranas e um
literalmente ‘homem do alto [do céu]”, rabo (descrito por Nelsão Barowa, da
o dono do raio, que vivia no mundo aldeia Queimada, como rabo de quatá8);
terreno, estava sentado embaixo de cada um estava segurando no rabo do
uma figueira enfeitando sua borduna- companheiro da frente. Depois do povo
de-raio quando pediu a seu filho de Wazare, saíram os povos de seus
Himahazare (‘teu-mel-homem’) e sua irmãos Zaloya, Zaolore, Kamazo, Tahoe,
filha Zokozokoidyo (‘formiga-mulher’) Kono, Kamaehiye, Nare e muitos outros,
que fossem buscar água no rio inclusive o povo de Kuytihore, avô dos
Sakuriuwinã. Ao retornarem, contam brancos, chamados até hoje de Imuti.
que haviam escutado um barulhão
assustador vindo do fundo do chão de
pedra. Desconfiado, curioso e decidido a 6
Algumas versões descrevem estas flautas como
desvendar este mistério, Enore vai até a sendo de pedra.
7
beira do rio e bate com sua borduna Chelidoptera tenebrosa, também conhecida
poderosa no chão de pedra, lançando- como andorinha-da-mata ou chico-viúvo. A
etiologia paresi (explicação da origem das coisas)
presente nesta narrativa elucida que este
pássaro tem a cabecinha achatada de tanto fazer
bandeirante Antonio Pires de Campos (1862) força com ela para ampliar a rachadura da pedra
quando esteve na área que denominou “Reino e ser o primeiro a sair.
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dos Parecis” em busca de índios para vender Também conhecido como macaco-aranha-preto
como escravos. (Ateles paniscus).

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Uma visão estrutural das relações descreve essa distribuição, são


em jogo pode elucidar alguns aspectos mencionados diversos subgrupos paresi:
relacionados aos chamados ruidosos, os Wáimare (netos de Zakalo e Zaloya),
assim chamados por Lévi-Strauss em O os Kaxíniti (netos de Zaolore) e os
Cru e o Cozido (2004:179-184), e aos Kozárini (netos de Kamazo, também
cruzamentos das relações ouvir/não chamados Enomaniere) (ROQUETTE-
ouvir, ver/não ver e suas consequências PINTO, 1917; MÉTRAUX, 1948), e ainda
nesta narrativa antropogônica: os poucos remanescentes dos Káwali
(netos de Tahoe) e dos Warére (netos
CHAMADO: RESPOSTA: de Kono), que hoje compartilham
som de flauta, canto som de trovão, raio praticamente a mesma cultura, com
SEM VISÃO: VISÃO TOTAL:
penumbra, fechado, abaixo luz, aberto, acima
pequenas variações, inclusive na língua,
na pronúncia e na maneira de falar,
estando relativamente misturados entre
si, e sua conformação em territórios
distintos já não existe mais, embora a
classificação persista (COSTA, 1985:57)
e haja predominância de um ou de
outro nas diferentes aldeias. Hoje, os
Paresi Haliti contam com
aproximadamente 2.015 indivíduos
(IBGE, 2010), divididos em sete
AUSCULTAR: ESPIAR: territórios e aproximadamente 40
Enohareze: atenção, Kinohaliti: silêncio, aldeias. Seus vizinhos, ao norte, são os
sentidos perda de sentidos Nambikwara Anunsu, com os quais
ESCUTA PARCIAL: ESCUTA TOTAL:
tiveram um passado de conflitos
pedra, fechado, fenda, abertura,
fronteira passagem constantes, e ainda mais ao norte os
Enawene Nawe, seus parentes mais
Dados geográficos também pontuam próximos.
o fluxo da narrativa, compondo a As flautas e sua música reaparecem
história da distribuição das diferentes no mesmo mito de origem, mas
parcialidades paresi ao longo das somente quando veio saindo da pedra o
cabeceiras dos tributários dos rios da povo de Nare, considerado um dos
região – Juruena, Arinos, Sepotuba e irmãos mais novos de Wazare e o último
Guaporé –, orientada pelo herói dos Kinohaliti a sair. Nare e sua gente
ancestral Wazare 9 . Quando a narrativa fizeram uma saída bem diferente da de
seus parentes: vieram dançando,
cantando e tocando a flauta de pã,
9
Nas versões colhidas por Rondon e Faria
chamada Zero (pronuncia-se [zêro]).
(1948:101-105), Steinen (1940:561) e Métraux Wazare, encantado com a saída do povo
(1942:169), da vagina da divindade Maisö teriam de Nare (e com uma ponta de decepção
brotado os rios da região e seu fundo de terra e por sua própria saída, que, diante da
pedras. Ela também teria dado à luz o primeiro saída de Nare, considerou sem graça),
ser, feito de pedra, seu filho Darúcavaitere
(Dadjukawaitere), que se acasala com a mulher cantou o seguinte:
Uarahiulu (Warahiyulu) para dar origem ao Sol
(Kamae) e a determinadas constelações. Mas
este acasalamento teria como objetivo final dar à
luz o primeiro ancestral dos Paresi-Haliti, que rachadura na versão acima) e sua aparência
depois foi chamado de Uazale (Wazale), um ser podem caracterizar esta fenda de pedra como
coberto de pelos negros, com rabo curto e sendo a vagina de Warahiyulu por onde os
membranas entre os dedos. A semelhança com o Paresi-Haliti e outros povos teriam saído ao
nome de Wazare (primeiro ancestral a sair pela mundo.

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Figura 1. Canto sobre Nare e sua saída da pedra, do ponto de vista de Wazare, conforme
cantada por João Ahezomae. (Fonte: Transcrição musical nossa; tradução nossa e de Geovani
10
Kezokemaece) .

10
Desta música, gravei duas versões: uma com Nelsão Omoizokae (na aldeia Koteroko, conhecida como
aldeia Queimada) e outra com o lendário João Ahezomae, conhecido como João Garimpeiro (na aldeia
Kamae, ‘Sol’). Esta é a versão de João. Embora sejam basicamente o mesmo canto, há pequenas
diferenças na letra, na rítmica e na melodia. Trovões prolongados ribombavam ao fundo durante toda a
seção de gravação, remetendo-nos ao mito de origem e ao raio que propiciou a saída dos Paresi-Haliti do
fundo da pedra, que a própria música comentava, formando insinuante dueto.

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Dessa maneira, a música paresi saiu nominação. A seguir, por meio de outro
ao mundo terreno junto com a dança, mito, trataremos da origem das demais
os enfeites e a flauta de pã Zero, flautas paresi, que não vieram do fundo
formada por cinco caniços paralelos, a da pedra, mas sim do fundo da água e
primeira flauta dos Paresi Haliti, mas a do fundo da mata.
última a ser tocada nas festas de

A origem aquática das Iyamaka e de começa a estufar; então, vai cortando-a


seu caráter secreto às mulheres em fatias (lembremo-nos do Caipora, no
livro Macunaíma, o herói sem nenhum
A narrativa cosmogônica paresi conta caráter [ANDRADE, 1928]) e, a partir de
que a terra e o céu (onde vive Enore, o cada fatia, ele dá vida a um novo ser.
demiurgo celeste) foram criados por Nessa criação, Miore também cria o
Miore. A terra era só escuridão, por isso taquaruçu-do-seco (iyana) 11 e a
ele a chamou de Enotaykwaré (‘Céu jararaca (kamalokwalo) 12 . Estes são
Quebrado’). Então, ele encontra o céu, elementos particularmente importantes
que fica cheio de nuvens brancas. para o entendimento das Iyamaka, pois
Depois organiza as águas e seu o taquaruçu-do-seco é criado
encontro com a terra, firmando-a com justamente para que a gente da água
um fio preso a uma laje de pedra do possa fazer suas flautas secretas, que
mundo-de-cima. Quando os primeiros depois serão doadas ao ser humano
ventos começam a soprar e as árvores a terreno; e a jararaca será, em última
crescer, passa a chamar a terra de instância, um de seus espíritos
Sakore kasa weteko (‘Terreiro comprido protetores.
do pé de bocaiuva’) e, ao mundo de
Enore, chama de Kokoyniã weteko
(‘Terreiro do gavião’). Depois nomeia
cada uma das árvores e, dando forma
ao barro, faz um homem, que decide ir
morar no Terreiro do Gavião (noutras
versões do mesmo mito, o homem e a
mulher foram criados a partir de dois
tocos de madeira esculpidos com a
figura humana [ROQUETTE-PINTO,
1917:85]).
Quando precisa criar um lugar para a
gente da água, Miore lança, de cima,
um torrão de terra que se transforma
em um cardeal (Paroaria capitata), que
Figura 2. Criança Paresi Haliti saltando nas
começa a distribuir os lugares para a
águas do Rio Formoso.
gente-da-água, apontando locais
(Fonte: Foto do autor).
específicos nos rios, onde ficarão cada
homem-da-água (yuákane) e cada Quando a gente da água vê os
mulher-da-água (yuakaneneró). O taquaruçus-do-seco já crescidos, leva-
cardeal voa para o alto e se transforma os para o fundo da água e, com eles,
na grande árvore-de-cima (zokoy constrói flautas de diversos tipos e
witawná), cujas folhas caem nos rios e
se transformam em lambaris, piavas e
traíras. Então, Miore come estas folhas- 11
Merostachys sp.
peixe e vê que sua batata-da-perna 12
Bothrops atrox.
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tamanhos. Depois tocam e dançam, e o ou olhar por baixo da porta da


chefe da gente da água, Kalaytewe, pequena maloca. E este fato
canta assim: estaria, de acordo com as
informações dos índios
O terreiro de areia registradas por mim, na
Escorregadio primeira parte do motivo de
No fundo das águas um canto de Yararaka [de
É o meu terreiro13 flauta] [...]. Seu sentido deve
(PEREIRA, 1986:31). ser entendido como: “Fechem
as portas. Nenhuma mulher
Ao fim da narrativa, Miore diz: deve entrar, é sério, o
espírito-cobra e sua mulher
– Todos os animais venenosos estão lá” (1914:238-239,
que nasceram vão ser tradução nossa)15.
guardiões das flautas secretas.
Ao relatar um momento em que
De fato, há uma estreita relação gravou músicas ao fonógrafo, Roquette-
entre as Iyamaka e os animais Pinto revela que as mulheres tiveram
venenosos, como marimbondos, que sair do terreiro para que as flautas
escorpiões, jararacas e outras serpentes. pudessem ser tocadas ali. Ele também
Os Paresi Haliti entendem que estes são se refere a elas como “jararacas”:
criados pelas Iyamaka para serem seus
animais de guarda e protegê-las 14 . O A’ noite, recolheram as
etnólogo alemão Max Schmidt, que mulheres á choupana e
esteve nas áreas paresi em 1910, vieram, diante do nosso
comenta sobre as jararacas, a casa da rancho, armados de jararacas,
flauta e a proibição às mulheres: cantar e dançar festejando a
caçada, ao redor de uma
Sob pena de morte, é proibido grande cabaça onde jazia, em
às mulheres entrarem nesta postas, um cervo moqueado.
residência do espírito-cobra E, assim, consegui apanhar no
[referindo-se à casa da flauta] phonógrapho a musica das
principaes cantigas parecís:
Ualalocê, Teirú, Ce-iritá, etc.
13
“Terreiro” é como se denomina o pátio central (1917:83).
de uma aldeia. Em língua paresi, weteko. Desta
música, só temos a letra. Narro agora, de forma concisa, o
14
O termo “jararacas” (kamalokwalonae), mito de origem das Iyamaka aquáticas,
conforme entenderam Schmidt (1914) e
Roquette-Pinto (1917), designa as próprias
mesclando a versão dos informantes de
flautas, mas também alguns de seus guardas ou
espíritos protetores. Pereira (1992) e Schmidt
(1914) apontaram para a proximidade entre as
15
serpentes e as flautas. Schmidt oferece uma “Bei Warnung mit Todesstrafe ist es den
descrição detalhada desta relação, entendendo Frauen verboten, diesen Wohnsitz des
as jararacas-das-flautas como “demônios” (aqui, Schlangendämons zu betreten oder in die
não no sentido de espíritos do mal, mas no niedrige Tür der kleinen Hütte hineinzusehen.
original, grego, daimon, ‘espíritos protetores’), Und diese Tatsache soll nach den Angaben der
seguindo a prática de interpretar as divindades Indianer der von mir verzeichnete Yararaka-
indígenas a partir de uma cosmovisão europeia, Gesang in seinem ersten Teile zum Motiv haben
como fez o frade franciscano Bernardino de [...]. Dem Sínne nach sollte dieser Anfang des
Sahagún com as divindades astecas e como foi Liedes besagen: ‚Schliess die Türen. Es dürfen
feito com Yurupari, divindade amazônica também keine Frauen eintreten, wahrhaftig, der
relacionada aos instrumentos de sopro. Schlangendämon und seine Frau sind da’“.
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Pereira (1986:224-235) com aquelas as varas-guardas Yohoho – e


que coletei em campo com narradores saíram correndo.
paresi: A asa-branca de Kaimare
Conta-se que Kaimare (um trickster (Kaimare Watyahazae), que o
do tipo transgressor sexual e um tanto ajudava a cuidar das flautas,
azarado, agente do primeiro incesto e começou a bicá-lo nos olhos,
que se transformaria na Lua) ficou no nariz e até em seu pênis
desconfiado porque, todo dia, notava para acordá-lo:
um grupo de mulheres que voltavam do – Acorde aí, meu pai! A
rio demasiado alegres e sorridentes. No mulherada está fugindo com
dia seguinte resolveu segui-las e viu as flautas e com as varas!
que, ao chegarem ao rio, batiam com o
talo de buriti na água e, não demorava Quando Kaimare acordou, ainda um
muito, aparecia um tapir-homem-da- pouco zonzo, levantou-se apressado e
água, Yaunaloré (em outras versões, saiu correndo. Mas quando alcançou as
Kutihore), exibindo seu pênis mais velhas, viu que estavam
avantajado. As mulheres tiravam o protegidas por feitiço, e elas bateram
saiote de algodão tingido (imiti) e nele até sangrar. Elas disseram:
tinham relações sexuais com o tapir,
que depois mergulhava e ia embora rio – Volte para sua aldeia,
abaixo. Kaimare, senão a gente come
Kaimare, inconformado, voltou, você. Deixamos lá atrás
entrou na casa da flauta, pegou um algumas flautas Zerátyalo e
taquaruçu-do-brejo, fez uma flecha Kaxie. Conforme-se com elas.
jurupara, armou tocaia e matou o tapir-
homem-da-água. Quando Kaimare voltou e viu que
Ao se darem conta disso, as aquelas duas flautas já estavam
mulheres planejaram uma vingança: comidas por cupim, soltando pozinho
roubar as flautas secretas das quais (iyamakahene), foi tomado pela tristeza.
Kaimare era o dono. Para isso, fizeram Estava tão triste e envergonhado por ter
uma chicha bem forte 16 , de coco de perdido as flautas que disse para seu
açaizinho, de coco de palmeira-chonta, irmão Koema 17 que o pingo de chuva
de jatobá-do-mato e de terra vermelha que cai (Onetohiye) e as cabaças
de sauveiro, e foram oferecer a ele na sopradas pelo vento (Matokozalo) eram
casa da flauta. Ele bebeu, ficou tonto e suas novas flautas Iyamaka.
num instante caiu bêbado. As mulheres Koema ficou contente e, ao escutar o
tiraram o saiote, puseram na cabeça som das gotas e o som das cabaças
(talvez para simular um cocar cantando com o vento, decidiu ir pescar
masculino) e chamaram as flautas para para alimentar estas flautas. Chegando
fugir com elas: no rio, encontrou a seriema Kolatahikwa,
que lhe perguntou:
– Walalotse e Zeratyalo,
vocês que são flautas jovens – Para quem você pesca,
vão na frente, e as flautas sobrinho?
Teydjyo Haloti (‘Teirú – Para os espíritos das flautas
mulher’) vão atrás junto com secretas Matokozalo e

16
Bebida normalmente feita à base de polvilho 17
de mandioca brava que os Paresi-Haliti chamam Em outras versões, é chamado de Mahali
de oloniti. (SILVEIRA, 2011:50).

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Onetohiye – ele respondeu. A comem peixe, só carne de


seriema estranhou e disse: veado e de ema!
– Mas essas não são as E a seriema cantou para ele:
flautas secretas verdadeiras;
além disso, as Iyamaka não

Ha, ha... Ha, ha...


– Zoare hamaidyatita, – O que está pescando,
nozayani, nozay no Koema? meu sobrinho, meu sobrinho Koema?
– Kolomi zotyaihore – Lambari-do-rabo-vermelho
namaidyatyahahita o que estou pescando
Kaimare zeta nola para comida da flauta do Kaimare
Matokozalo enola comida do Matokozalo
Onetohiye eno-enola comida do Onetohiye
Aha[m]... ah... Aha(m)... ah...
Namaidyatyahahita, o que estou pescando,
kokozani Kolatahikwa, meu tio Seriema.
– Nomatse maninihareta – Nunca ouvi falar
Iyamaka, no-nozai (dessa) Iyamaka, meu sobrinho,
Matokozalo, nozai sobre Matokozalo, meu sobrinho,
Onetohiye heno, nozai sobre Onetohiye, meu sobrinho,
nozayani, nozai no Koema. meu sobrinho, meu sobrinho, meu Koema.
Kohatse norere kahani Realmente não é peixe
Iyamaka no haoka, que a Iyamaka deseja,
Tse[n]hene kohatse, nozai. peixe tem gosto ruim, meu sobrinho.
Matse widyamaniya No campo limpo
Olomare zamakoi veado-galheiro de Olomare
Alikyalo zamakoi. veado-galheiro de Alikyalo.
Iyamaka eno-enola Comida de Iyamaka
18
Zityare hozerore. é veado e porco queixada.

18
Transcrição e tradução nossa e de Geovani Kezokenaece (a. JM, 2015) a partir do canto de Anézio
Zozonezokemae (aldeia Kotítiko, 2014).
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Depois de cantar, a seriema Notem que, só depois de passar


Kolatahikwa revelou a Koema que por provações e reconstruções corporais,
Kalaytewe19, chefe dos homens-da-água Koema pôde escolher suas flautas. Ele
e dono das flautas secretas verdadeiras, escolheu Amore, Zeratyalo, Walalotse,
queria falar com ele, pois a irmã de Tyaidyo, Hwérare e a vara-guarda
Koema, Kuymatiholó, morta há anos Yohoho. Kalaytewe lhe disse então que,
pelas mãos da feiticeira Katyatyanero, primeiro, ele voltasse à aldeia no
havia sido ressuscitada por Kalaytewe e mundo-do-seco e fizesse uma nova casa
se casado com ele. Assim, Koema, para as flautas, e que depois se
desejando reencontrar sua irmã, encontrasse com ele no meio do
segurou no rabo da seriema e os dois caminho para receber as flautas
mergulharam sob a cachoeira para ir ao escolhidas. Koema voltou apressado
encontro de Kalaytewe no fundo do rio, para casa e contou tudo a seu irmão,
mas Koema perdeu o fôlego, e voltaram. Kaimare, e os dois construíram bem
Tentaram de novo e de novo, até que, depressa a nova Iyamaka hana e foram
numa das tentativas, quando Koema ao encontro dos homens-da-água.
quase não aguentava mais e o rabo da Quando a comitiva da água vinha vindo,
seriema já estava quase todo depenado, Kaimare disse para as mulheres da
finalmente chegaram a uma estrada aldeia:
bem limpa, que levava a um terreiro
seco no fundo do rio, onde ficava a bela – Os homens-da-água já vêm
aldeia Zahizizihete, a aldeia da gente da vindo com as flautas secretas!
água. Quando chegaram lá, ouviram o Podem ir ao encontro deles!
toque das flautas secretas dos homens- Mas quando Kalaytewe e os
da-água e os gritos contentes das outros homens-da-água viram
Yohoho, as varas que protegem as as mulheres Kamutyoló e
flautas secretas e abrem o caminho Kamaekyoló correndo ao
para suas cheganças. Depois, encontro deles, ameaçaram-
receberam a chicha oferecida por nas, dizendo furiosos:
Kalaytewe e beiju oferecido por sua – Mulher não pode ver flauta-
irmã. Mas quando Kalaytewe o convidou secreta, senão morre!
para conhecer as flautas secretas dentro
da casa delas, as varas Yohoho
desconfiaram dele e o mataram, Neste momento, os homens-da-água
espetando embaixo de seu braço. Então, que traziam as flautas maiores, entre
Kalaytewe apanhou pontas de ananás- outras, voltaram com elas para a água,
bravo, espremeu no nariz dele e no cantando assim:
corpo todo, e Koema reviveu. Ao vê-lo
acordando da morte, Kalaytewe lhe
disse:
– Agora você pode escolher as
flautas secretas que você quiser.

19
Kalaytewe, como chefe da gente da água, é
também um dos donos espirituais das flautas
secretas (Justino, a. Formoso, 2014). Ele tem “o
nariz vermelho e o corpo preto. Canta: swĩ...
swĩ... swĩ... tolololó... hwã... hwã... hwã...
tayro...” (PEREIRA, 1986:31).
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PEDRO PAULO SALLES
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Figura 3. Canto dos homens-da-água sobre as flautas Walalo que foram vistas pelas mulheres
de Kaimare, o Lua. (Fonte: Transcrição musical nossa, conforme cantou Juvenal Azomare, da
aldeia Kotítiko, durante uma festa de flauta em 2014).

Em outros cantos-de-flauta, (tratado de “meu neto”) explica que a


encontramos situações semelhantes a primeira retornou justamente por ter
essa, em que a flauta retorna a seu sido vista por uma mulher. Observe que
antigo território ou a seu dono espiritual. a flauta tem cocar (zaoloni), cestinho
O canto, em forma de diálogo entre a cargueiro (hoxini) e chocalho de guizos
flauta Walalo e seu mestre Kalaytewe de pequi de amarrar na canela (zozani):

Versão Rondon e Faria: Atualização ortográfica: Retradução:

Erahoeta nozauloni – Erahoheta nozaoloni, – Dependure meu cocar,


Noxi Calaitiuê notxi Kalaytewe meu neto Kalaytewe,
Erahoeta nohozini Erahokita nohoxini Dependure meu cestinho,
Erahoeta nozozani Erahokita nozozani, Dependure meu chocalho,
Noxi Calaitiuê notxi Kalaytewe, meu neto Kalaytewe,
Niticace ieta nitikatse hiyeta. no meu esteio de rede.

Çuarezoca ahaicoaeta – Zoana hoka hahaikwaheta – Por que você voltou,


Ahezani Ualalô? ahezani Ualalo? vovó Walalo?
Mauticonearenica Caimaré – Maotikonenika Kaimare – Kaimare foi um tolo
Aohiroza agi cacore cacoa haohiroza agi kakore kakoa mandando a mulher dele
Uaia tihuta natio: waiya tihotya natyo. ao meu encontro.
Icazoca nahaicoaeta Ikazoka nahaikwaheta, Por isso voltei,
20
Noxiani Calaitiue notxiani Kalaytewe. meu neto Kalaytewe.

20
Correção ortográfica e tradução do autor e de Geovani Kezokemaece (a partir da transcrição e tradução
de Rondon e Faria, 1948:83-84).
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Os homens-da-água, que mulheres participam intensamente do


levavam as flautas menores, ritual como um todo, desde a
prosseguiram para a aldeia, mas preparação até os cantos e danças. O
quando foram entrar com as flautas na missionário salesiano Nicolao Badariotti
nova casa da flauta, viram que era (1898) acrescenta que, por honra a
pequena e que não caberiam todos lá Enore e observância da “lei natural”, a
dentro. Então, mais uma parcela de mulher não deve jamais ver as flautas,
flautas teve de voltar para a aldeia nem “os marraques [provavelmente as
submersa. É por isso que os homens- Yohoho, as ferozes varas emplumadas
da-água ainda têm flautas no fundo do que vigiam e protegem as Iyamaka], os
rio e que os Paresi Haliti só têm guizos [de pequi, Zozani], os clarins
algumas. Consideram também que é destinados às danças sagradas [Amore],
por isso que mulher não pode ver e conservados cuidadosamente em uma
muito menos tocar as flautas aquáticas espécie de Capella [referindo-se à casa
Iyamaka. da flauta] [...]”.
Segundo Pereira, caso as As meninas ainda não iniciadas e
mulheres vejam estas flautas, elas nominadas ficam isentas dessa
enlouquecem e são colocadas em proibição e podem entrar na casa da
quarentena na própria casa da flauta flauta ou brincar em sua cobertura de
até morrer (1986:30). Roquette-Pinto palha, usando-a de escorregador, como
observou o seguinte a esse respeito: testemunhei na aldeia do Formoso. Isso
“Segregam-nas das cerimonias do seu porque, na cosmovisão paresi, a
culto; escondem dos seus olhares os transformação corporal operada pela
instrumentos sagrados da tribu, menstruação e pelo consequente ritual
affirmando que morre a mulher que os de nominação torna a menina criança
vê; não lhes permittem dansar e cantar (zoimamokotse) em menina moça
em sua companhia” (1917:81). Embora (zoimaholoti), consideradas, estas duas,
não possam ver as flautas durante as como categorias distintas de seres,
cerimônias, observei que as mulheres regidas por leis cosmológicas distintas21.
escutam as flautas de uma distância Já as fautas Zero e Txíhali não ficam
muito pequena (mesmo sem vê-las), já reclusas na casa da flauta e podem ser
que, enquanto elas estão deitadas nas vistas pelas mulheres.
mais de 50 redes dependuradas rente
às paredes de palha da maloca do Txíhali, a flauta nasal vinda da mata
festeiro, as flautas estão sendo tocadas
também rentes às mesmas paredes, Seu nome se traduz como ‘besouro’.
mas do lado de fora. Os músicos tocam Trata-se de uma flauta nasal,
tão próximos das paredes externas que, confeccionada com duas pequenas
ao realizarem os passos da dança, calotas de cabaça unidas e coladas com
chegam a bater nas paredes com os pés breu mahanidi, tomando a forma
toda vez que a dança os conduz para discoide (como um disco-voador) e
frente. Calculo que as flautas ficavam a características de ocarina. Ela tem três
menos de um metro de distância de orifícios: um para se soprar com a
algumas destas mulheres, tendo apenas narina esquerda (usando-se a técnica
a separá-las a parede de palha de de sopro empregada na flauta
guariroba, através da qual o som das transversal, porém com o nariz) e os
flautas e dos cantos se infiltra e é outros dois para digitação musical. Com
filtrado. Frisemos também que, embora
não possam ver as Iyamaka, as
21
A mulher adulta é chamada de Ohidyo.
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isso, produz basicamente três notas, no sopro. Nos cantos de Txíhali, a tríade
conformando uma “tríade maior em se confirma, mas se configura na
segunda inversão” (chamemos assim), posição fundamental, conforme escutei
próxima de Dó-Fá-Lá, que pode variar na voz do amure (‘chefe’) Justino, cuja
de tonalidade de acordo com o tamanho versão transcrevo abaixo:
de seu corpo ou da pressão empregada

Figura 4. Canto de Txíhali. (Fonte: Transcrição musical nossa, conforme cantou o amure Justino
Zomoizokae, da aldeia Rio Formoso em 2014).

Apesar disso, Roquette-Pinto, branca’, que protege a casa e seus


baseando-se nas análises de Astolpho moradores. A respeito destas colunas de
Tavares, declara que é um instrumento madeira, Schmidt (1943:17) disse que
“pouco exacto”, deixando-a de fora da “estão possuídas, de algum modo, por
análise tonal das flautas (1917:88). Ela espíritos protetores da família que
é considerada companheira de todas as amarra neles suas redes e outros
outras flautas e qualquer dono de flauta bens”22. O fato de viver na casa de seu
pode tê-la. dono significa que ela pode ser vista
Na mitologia paresi, a Txíhali é pelas mulheres, embora não possa ser
descrita como um ser perverso e tocada musicalmente por elas. Ela é a
ardiloso, um trickster com penúltima flauta a ser tocada nas
características de feiticeiro e de besouro, cerimônias (vem logo antes da Zero),
que prepara armadilhas para pegar e sempre depois do alvorecer, pois tocá-la
devorar as gentes-pássaro enquanto à noite pode atrair sérios malefícios 23.
assobia (cf. PEREIRA, 1986:131;
SALLES, 2017b). A Txíhali não reside na
casa da flauta como as outras Iyamaka,
mas cuidadosamente guardada na hati 22
“Están tenidos en certo modo por genios
de seu dono (ou anfitrião), dependurada tutelares de la família que amarra a ellos sus
hamacas y otros bienes”. (Tradução nossa.)
no esteio central (‘esteio-chefe’), 23
A Txíhali está associada a um regime de
chamado kotaza, onde habita assobios noturnos, atributo de feiticeiro (SALLES,
Wakalamenare, o espírito da ‘garça 2017b).
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de seus regimes ontológicos. Há, na


historiografia deste povo e em sua
memória, fundada nos relatos dos
antigos, ainda uma série de outras
flautas que, por uma razão ou por outra,
deixaram de ser usadas ou que
pertencem a mundos invisíveis. São elas
Alamã (Trigona hyalinata – abelha
silvestre conhecida como xupé ou pai-
do-mel), Wotekawalané, Wahazaré 24 ,
Ayririkwaré, Hiétã, Hwérare (‘bravo’),
Figura 5. Pedro Zunizakae, da aldeia
Kaxie (‘martim-pescador pequeno’),
Bakaval, tocando a Txíhali. Walatyare (ROWAN, 2001:74), Zoláhĩ,
(Fonte: Foto do autor - OBS: por sua visão Malyaotsé (BRANDÃO, 2014:440),
ser permitida às mulheres, pudemos Imokolo (PEREIRA, 1987:786), além de
reproduzí-la neste artigo). algumas flautas da coleção Roquette-
Pinto, cujos nomes não são
reconhecidos pelos Paresi Haliti atuais
Quando o flautista/cantor entra com da região do Formoso, como a Herá
ela na maloca, todos ficam ouriçados, hera-hũm e a Zaholocê, podendo, neste
pois ele (ela) pode destruir qualquer caso, ser apenas uma questão de
objeto que estiver à sua frente, com nomenclatura diferente para as mesmas
seus passos de dança, enquanto canta e flautas que seguem usando.
toca, inclusive pertences dos festeiros, Dito isto, vejamos as Iyamaka que
cabaças com chicha e o próprio jirau compõem o complexo de instrumentos
suspenso sobre a fogueira, que pode vir de sopro paresi hoje em dia:
abaixo por golpes propositais do ser Amore (ou Amure) – Como seu
Txíhali. Durante esta ação predadora, nome indica, Amore é a flauta-chefe das
destruidora e cercada de cuidados, outras Iyamaka. Percebendo que ‘chefe’
assume também um caráter cômico: os é traduzido como amure, na língua
ouvintes se esquivam dele, temendo-o e paresi, e que este aerófono aparecia na
protegendo seus pertences ao mesmo literatura como amore (RONDON e
tempo em que riem de suas ações FARIA, 1948), aventei a hipótese de que
desastrosas. Os Paresi Haliti costumam tanto amore quanto amure teriam este
se referir à Txíhali como sendo “safada mesmo significado de ‘chefe’,
mesmo!”. Sua terminação {hali} principalmente depois de ter constatado
designa o humano masculino (como no que muitas palavras encontradas em
etnônimo haliti), apontando para uma registros de campo publicados eram
desinência deste gênero. grafadas ora com {u}, ora com {o}.
São comuns estas “hesitações
A sociedade secreta das Iyamaka ortográficas” em casos como imoti/imuti
(‘homem branco’), natyu/natyo (‘eu’,
A seguir apresento uma breve ‘me’, ‘mim’), zulane/zolane (‘dança’),
descrição e classificação das Iyamaka, Walalo/Walalu (nome de uma das
tendo por base algumas categorias flautas), yohoho/iuhuhu (‘vara-guarda’),
cosmológicas definidas por papéis pela razão de que a vogal em questão
sociais, pelo gênero, por seu elemento soa entre [u] e [o]. Rowan afirma que,
de origem e por outras características,
das quais ainda não foi possível atingir a
totalidade, a fim de nos aproximarmos 24
ZOMOIZOKAE, Justino. Depoimento. Aldeia
Formoso, 2014.
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na fala paresi, [o] e [u] flutuam entre si produzida pelo ar que se divide quando
(2010:26). De fato, dos interlocutores encontra a aresta afiada que chamamos
nativos, tive a confirmação de que a de bisel (como na flauta doce), com a
Amore seria chefe das outras flautas, e, diferença de que, nestes casos, o bisel é
depois, em SILVEIRA (2011:50), que a plano e não em forma de cunha. Tem
qualifica como “líder das flautas”. tamanho médio e quatro orifícios para
Trata-se de um aerófono digitação. O duto que direciona o ar
(instrumento de sopro) com palheta para o bisel e proporciona o assobio,
interna (semelhante a uma gaita ou aos localizado no miolo do bocal deste tipo
assim chamados clarinetes do Xingu ou de flauta, é elaborado com breu
dos Wajãpi), confeccionado com um mahanidi da abelha-jataí. É uma das
bambu grosso que termina em um flautas principais do conjunto,
pavilhão de ressonância formado por personificando espíritos ferozes e
uma grande cabaça (matoko kaloreze), perigosos, sendo que a terminação
ao qual é afixado por meio de encaixe e {-dyo} em seu nome lhe dá a
de breu de abelha-jataí, chamado desinência feminina.
mahanidi. A terminação de seu nome Zeratyalo – É uma flauta de grande
em {-re} define a desinência masculina. poder, que personifica espíritos
É uma flauta-homem. guerreiros e, por essa razão, era usada
Initxidyali (ou Amoretse) – Esta nas guerras intertribais, sendo levada
flauta é a versão menor da Amore, o aos locais de conflito, onde era tocada
que se verifica pelo sufixo diminutivo {- para que a campanha tivesse êxito.
tse} em seu nome Amoretse. Apresenta Trata-se de uma flauta de bisel plano,
a mesma conformação organológica da de tamanho grande, espessura fina,
Amore, sendo sua parceira feminina (ao com quatro furos para digitação musical.
contrário do que definiu SILVEIRA, A terminação em {-lo} em seu nome
2011:50). A desinência feminina é lhe dá a desinência feminina, embora
marcada pelos afixos {dya} e {li} em alguns interlocutores nativos a
seu nome Initxidyali. O afixo {dya} é classifiquem como masculina, carecendo,
usado para nomes de mulher, enquanto pois, de verificação. Na etimologia deste
{li} ocorre geralmente em nomes de nome ainda há elementos importantes a
fêmeas de animais e também classifica serem considerados: zera significa
como ‘redondo’ (como a cabaça usada ‘cantar’ 25 e o afixo {tya} é causativo;
como caixa de ressonância). assim, seu nome poderia ser traduzido
Tyaidyo (ou Teirú, como ficou como ‘cantora’. Outros colaboradores
conhecida) – Orland Rowan a registrou paresi informaram que ela personifica o
como Tyairo (2010:71) e Pereira como espírito de uma velhinha conhecedora
Txéyryu (1987:809). É provável que, de cantos poderosos. O caráter
em razão de sua pronúncia guerreiro da flauta cantora Zeratyalo
(aproximadamente [Téiriu]), esta flauta me foi revelado pelo amure Justino e
tenha ficado conhecida como Teirú por figura nos relatos sobre os
meio de um de seus cantos, coletado enfrentamentos bélicos que tiveram
por Rondon (ca 1912) e Roquette-Pinto com os Nambikwara-Anunsu, seus
(1917), e retrabalhado por Villa-Lobos arqui-inimigos até o início do século XX
(1926). Portanto, vê-se que é esta a (ROQUETTE-PINTO, 1917; SCHMIDT,
flauta que “canta” a música homônima 1914), aos quais os Paresi Haliti
coletada por Roquette-Pinto e usada por chamam de Waykoakoré. Uma narrativa
Villa-Lobos. A exemplo da Walalo e de
outras flautas do conjunto, a Tyaidyo é
uma flauta em que a vibração é 25
Zerati é ‘canto’; zerane é ‘canto de’; zerita é
‘está cantando’.
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encontrada em Pereira (1987:768-769) Tidyama (ou Tiriaman [ROQUETTE-


nos dá a dimensão do caráter belicoso PINTO, 1917:92], ou Tirama [ROWAN,
da agência da Zeratyalo. 2001:69]) – É considerada uma das
Walalo (ou Walalotse, forma Iyamaka mais ferozes, sendo a mais
diminutiva que lhe confere tratamento grossa em diâmetro. Trata-se de um
carinhoso e ao mesmo tempo instrumento membranofone vocal (do
reverencial). Ficou conhecida como tipo kazoo), ou seja, um engenhoso
Ualalo na escrita de Rondon [ca. 1912] “fone amplificador” de bambu, cuja
e Roquette-Pinto [1917]) – É a flauta do sonoridade é produzida pela vibração de
conhecido canto “Nozani-ná”26, a menor membranas (mirlitões) acionadas pelo
do conjunto aquático. Trata-se de uma som da voz. Estas membranas são
flauta de bisel plano, com quatro furos formadas pelo afinamento das paredes
para digitação musical. Ela é a primeira do bambu, intencionalmente rachadas
a tocar na festa-de-flauta e a primeira a em quatro pares de fendas longitudinais.
“pedir chicha” ao dono-da-festa. A Roquette-Pinto o chamou de
terminação em {-lo} lhe dá a desinência “instrumento jocoso [...], dentro do qual
feminina. Segundo Anézio os índios gargalham durante algumas
Zozonezokemae, a flautinha Walalo não dansas” (1917:92), enquanto Max
tem parceiro (masculino) e também Schmidt o chamou de Sprachrohr, ‘tubo
pode ser chamada por outro nome: de fala’ (1914:239, tradução nossa) 28 ,
Tahihidyo. O sufixo {-dyo} determina no qual “as vozes dos espíritos eram
nomes próprios femininos e {tahi} imitadas [...], fazendo com que sons
significa ‘história’, ‘narrativa’ (ROWAN, abafados e fantasmagóricos ecoassem
2010:20). Por ser a menor das flautas do instrumento”. Sobre este intrumento,
retas do conjunto de sopros, ela Fidêncio Zuyzomae declarou: “Ele é
também é chamada de Walalotse (ou complicado, ele pode travar a pessoa, é
Ualalocê, nas fontes mais antigas), ou perigoso. Antes de chegar onde tá a
seja, “Walalozinha” ou ‘flautinha Walalo’. chicha dele, ele vai parando e tocando,
Esse tratamento diminutivo é dado pelo parando e tocando... até chegar perto
sufixo {-tse} ou, conforme grafada por da hati, todo mundo lá dentro
Rondon e Roquette-Pinto, {-cê}. O [referindo-se às mulheres e crianças]”
significado literal deste diminutivo é (Informação verbal) 29 . O infixo {dya},
‘semente de’ (BRANDÃO, 2014: 184), usado para nomes femininos, sugere
origem metafórica de seu sentido de que ela seja uma flauta deste gênero.
pequenez. Aliás, há outra música paresi Há um instrumento semelhante, porém
que se tornou conhecida por este nome, feito de cabaça, entre os Enawene Nawe
Ualalocê, tendo sido igualmente (considerados como os parentes mais
coletada por Rondon ([ca 1912]:40), próximos dos Paresi Haliti) 30, chamado,
gravada por Roquette-Pinto27 (1917:80, em português, de ‘flauta rachada’
84) e retrabalhada por Villa-Lobos em (IPHAN, 2010:39), que acompanha os
dois arranjos, de 1930 e 1943.

28
“Mit dem die Stimmen der Dämonen
nachgeahmt werden [...], die dann in dumpfem,
26
Para mais informações sobre este canto usado geisterhaftem Klang aus dem Instrument
por Villa-Lobos e conhecer sua tradução, conferir herausschallten”.
29
o texto do autor (SALLES, 2017a). ZUYZOMAE, Fidêncio. Depoimento. Aldeia
27
Roquette-Pinto gravou Ualalocê na mesma Kotítiko.
30
expedição em que gravou Nozani-ná, ou seja, em Até mesmo certos entes celestes dos Paresi-
1912, e não em 1908, como consta no catálogo Haliti e dos Enauene Nawe têm o mesmo nome,
Villa-Lobos, sua obra (MUSEU VILLA-LOBOS, como Enore (Eno = ‘de cima’, ‘céu’; -re =
2009;227). marcador masculino; ‘homem de cima’).
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cantos Hekali. Também há ‘tubos de seu povo na épica saída pela fenda da
fala’ (speaking tubes) entre os Yagua pedra. Desperta interesse a simetria
(da fronteira amazônica entre Peru e que determina que, embora seja a
Colômbia), chamados Wirishó, embora a primeira flauta mencionada na
descrição oferecida por Hill & Chaumeil cronologia histórica presente nas
(2011:56) não detalhe seu princípio narrativas orais paresi, ela é a última
acústico. flauta a tocar e cantar na festa-de-
Hezo-hezoli – É um tipo de flauta, vindo logo depois da Txíhali, na
trompete longo e grosso. É considerado manhã do último dia de ritual.
como a companheira da Tidyama. Esta
Iyamaka está em desuso nas aldeias em
que estive; ao que parece, a linhagem
de seus últimos donos não teve
continuidade. A terminação {li} designa
a fêmea (gênero feminino não humano).
Deve-se lembrar que há uma flauta
paresi no Museu Nacional registrada
como Hezo-hezo, possivelmente a flauta
macho deste casal (ou simplesmente
um equívoco na transcrição).

Além destas, que são flautas


aquáticas, há duas outras de status
diferenciado, que, mesmo sendo
consideradas Iyamaka, podem ficar
guardadas fora da casa da flauta (na
maloca hati de seu dono) e expostas
aos olhares femininos. São a flauta de
pã, chamada Zero, e a flauta nasal de
cabaça, chamada Txíhali, já Figura 6. A flauta de pã Zero dependurada
mencionadas: no esteio-chefe, sua morada. (Fonte: Foto
Zero (pronuncia-se [zêro]) – É a do autor - OBS: por sua visão ser permitida
única flauta de pã do conjunto, formada às mulheres, pudemos reproduzí-la neste
artigo).
por cinco tubos paralelos de diferentes
tamanhos, unidos por uma amarração Txíhali (Roquette-Pinto a registrou
de fio de algodão tingido. Assim como a como Xin-harí [1912] e Tsin-hali
Txíhali, ela não fica guardada na casa [1917:91], Rondon e Faria a
da flauta, mas sim dependurada no registraram como Cialí e Xialê [1948], e
esteio-chefe da maloca de seu dono, e Max Schmidt, como Tšihǎli [1914:240])
pode ser vista pelas mulheres. Assim – Esta é a flauta nasal já descrita no
como a Zeratyalo, a flauta de pã Zero capítulo 3, que também fica
também tem como radical de seu nome dependurada no esteio-chefe da casa
o verbo ‘cantar’ (zera), que se aglutina comunal, podendo, portanto, ser vista
ao sufixo {-ro}, o qual, por sua vez, lhe pelas mulheres.
dá a desinência feminina. É possível Além destes instrumentos de sopro,
supor que sua visão pelas mulheres seja também há dois tipos de chocalho e as
permitida justamente porque, no mito varas-guardas:
de origem dos Paresi Haliti, ela tenha Zozani (ou Zoza, ou Kotxali) –
sido tocada por Nare diante de todos os chocalho a ser amarrado logo abaixo do
que ali estavam, enquanto ele liderava joelho, podendo ser feito de guizos de

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pequi, de unha de veado ou de unha de desmpenha um papel importante nesta


porco queixada, presos a uma faixa de cena ontológica, pois, como grande
tucum trançado. adivinho (utiahaliti) 32 , é ele quem olha
Walatse (Ualace ou Ualaçu) – pelas flautas, cuida e observa se a
literalmente ‘cabacinha’, o Walatse é um gente-do-seco está cuidando bem das
pequeno chocalho de cabaça. É Iyamaka (física e espiritualmente),
companheiro da flecha sagrada, provendo rezas e oferendas.
constituindo-se, como ela, um Por essa razão, as flautas, além de
instrumento para uso de pajés, seus donos espirituais, têm de ter donos
empregado em cantos de cura e em humanos. Estes donos de flauta (zetati
rezas para benzer e potencializar as waikyate) vêm de uma linhagem de
oferendas. donos de flauta. Se essa linhagem é
Yohoho – a varas-guardas feitas de interrompida – por exemplo, se um
negra-mina (Trigonia crotonoides) e dono de flauta morre e seus filhos,
enfeitadas com penas de ema e de esposa ou irmãos não assumem seu
arara, que protegem as flautas. papel – aquele grupo de flautas deixa
Assim se resume a alteridade das de existir e, por conseguinte, de ser
Iyamaka. tocado (costumam dizer que as flautas
adoecem e morrem). Há casos relatados
Zetati waikyate, zetati waikyatyo: por flautistas paresi em que uma
os donos e donas de flauta linhagem fora interrompida e as flautas
nunca mais foram tocadas ou refeitas;
Na cosmovisão paresi, todos os entes, outros casos envolvem incêndios na
inclusive objetos e elementos invisíveis, casa da flauta ou simplesmente
têm donos, chefes ou ainda parentes abandono.
espirituais. Assim, há o dono da Os donos de flauta devem zelar pelas
mandioca, dono da onça, dono da relações de aliança com Kamaehiye e se
friagem, pai do mato, a mãe d’água, comprometem, aos seus olhos vigilantes
mãe do sol, avó da aranha, avó da ema, de fazer com que as Iyamaka estejam
avô das abelhas e assim por diante, aos bem tratadas com rezas, alimentadas
quais são feitas oferendas e rezas nas com oferendas 33 , bem servidas de
ocasiões em que o contato entre os
humanos e estas entidades exige. Nesse
âmbito, também há os donos e chefes 32
Utiahaliti, nome que também designa certo
espirituais das flautas, dentre os quais a tipo de gavião-pajé. Daí vem o nome do território
entidade mais alta é Kalaytewe, o “Utiariti” (onde estive em 2014), um parônimo
grande senhor das flautas aquáticas e possivelmente criado pelo próprio Rondon (que
chefe dos homens-da-água. Outro ente chamou os Haliti de “Ariti”), com o qual batizou a
vila e estação telegráfica localizada à beira do Rio
“sobrenatural”31, o ancestral Kamaehiye, Papagaio, exatamente onde Roquette-Pinto
irmão mais novo de Wazare, também realizou diversas gravações em 1912. “Utiarití,
onde se ergue uma estação, será, em breve, um
povoado daquelle sertão bruto. Hoje é colonia de
Parecís do grupo Uaimaré, chefiada pelo major
31
Adoto o termo sobrenatural com a ressalva de Libânio Koluizôrôcê, meu antigo conhecido do
que não o entendo como não natural, ou seja, Museu, onde estivera em 1910. Vivem ali,
admitindo que a concepção de natureza aqui felizes, muitas famílias, trabalhando em roças
entendida é aquela em que seres de diversas bem mantidas tomadas pela mandioca e pelo
naturezas transitam, convivem e dialogam, milho” (ROQUETTE-PINTO, 1917:197).
33
constituindo um mesmo universo relacional ou A bem da verdade, os Paresi-Haliti distinguem
diferentes “humanidades”. Seres sobrenaturais a reza cantada em oferendas (chamando-as
também podem ser entendidos como seres simplesmente de “oferendas”) das rezas de cura
invisíveis (mawaiyakahare – masc. ou (chamadas simplesmente de “rezas”). Assim
mawaiyakahalo – fem.). sendo, as oferendas constituem um conjunto no
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chicha e bem cuidadas materialmente. que ainda reside na aldeia Minkere,


Caso isso não ocorra, são lançados teria enlouquecido depois do acidente. O
perigos na vida dos Paresi Haliti, como dono destas flautas, diante da notícia do
cobra no caminho (ou outro animal acidente e de que essas Iyamaka teriam
peçonhento, como aranhas, vespas e ido parar no Rio de Janeiro,
escorpiões), raio e doença, entre outras imediatamente confeccionou flautas
sanções reguladoras, como os estados novas com as taquaras iyana que tinha
catatônicos, a mudez ou o “travamento” de reserva na casa da flauta, para que
relatado por Justino (2014) e Jocélio ele e seus familiares não sofressem as
(2014) (Informação verbal). sanções a que também estariam
Acidentes de carro e de moto, sujeitos nesse caso.
desgraça típica do mundo Tais narrativas, por seu
contemporâneo das aldeias, atualmente detalhamento, seu tom grave de
são considerados como sanções divinas advertência e exortação, legitimam uma
às quais os entes humanos estão espécie de “ira divina” com função
sujeitos, conforme relatos que reguladora, reafirmando a eficácia das
compartilharam comigo. Contam, por leis que regem essa cosmovisão.
exemplo, que, na aldeia Seringal, uma
professora de Campo Novo teria visto as
Iyamaka e, poucos dias depois, teria
quebrado seu braço em um acidente.
Ouvi ainda, de Jocélio Onizokaece e do
amure Justino Zomoizokae (a. Formoso),
o relato de um roubo de um conjunto de
flautas Iyamaka, na aldeia do Rio Verde,
nos anos de 1960, por duas freiras e um
padre que logo depois teriam sofrido um
grave acidente de carro na BR-364 (no
percurso entre Diamantino e Utiariti),
quando fugiam com as flautas
escondidas na bagagem, em uma
caminhonete que transportava açúcar e
na qual viajavam de carona. A narrativa
tem desdobramentos sobrenaturais,
pois, segundo os narradores, o padre
Tomás, que sobrevivera ao acidente,
teria visto a cabeça de uma das vítimas,
decepada no acidente, falar na língua
Figura 7. Feixe de oferendas dispostas na
Paresi Haliti: “– Pois é, agora nós
forquilha cerimonial (ityoako): cigarros,
ficamos assim porque pegamos as beiju de mandioca, carne de caça e
flautas e não sabemos utilizá-las, nem cabacinhas com chicha de mandioca brava
cuidar delas, e eis o castigo que (oloniti). (Fonte: Foto do autor).
levamos. De hoje em diante, não
queremos mais mexer nas flautas As sanções a que estão sujeitos não
sagradas da aldeia”. Diz-se que o padre, se limitam aos donos de flauta, podendo
atingir também as famílias envolvidas
na preparação da festa-de-flauta (os
qual se incluem e se complementam os cantos- festeiros), a família dos nominados e o
rezados (chamemos assim), os alimentos e a anfitrião da festa (dono da festa). No
bebida oferecidos, por exemplo, às flautas e seus limite, quando os espíritos das Iyamaka
espíritos.
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não recebem os devidos cuidados e cumpridos os cerimoniais esperados.


orações, ou quando uma flauta é São constantemente mencionadas nas
totalmente largada ao abandono, ela conversas ao pé do fogo e gera
pode ir embora para seu lugar de preocupação seu estado de abandono,
origem, ou seja, sair do mundo terreno, se este for o caso. Alguns sonham com
perecer (SILVEIRA, 2011:48), viajando os espíritos ancestrais donos de flauta e
a uma das aldeias existentes no mundo intuem presságios, como testemunhei
de cima, as aldeias celestes, descritas entre as mulheres da aldeia do Formoso.
pelos informantes locais como “um tipo O dono de flauta não é
de paraíso”, sugerindo uma geografia necessariamente aquele que a toca. Por
cósmica estruturada. Protegidas por isso, a despeito de serem as flautas
divindades e seres “sobrenaturais”, exclusivas ao uso masculino, indivíduos
estas aldeias são o destino final dos do sexo feminino também podem ser
espíritos dos Paresi Haliti e de suas donos de flauta, sem, no entanto,
flautas depois que morrem, caso poderem vê-las ou tocá-las (com
consigam atravessar a pinguela de exceção da Txíhali e da Zero). São eles
sucuri (menese ihatya) conduzidos por que as alimentam com as oferendas
um zoetete, espírito curandeiro que rezadas e colocadas diante da casa da
toma a forma de determinados pássaros flauta. Já para fazer sua manutenção
(COSTA, 198: 404-405), aspecto que física, para provê-las de boa sonoridade
merece maior volume investigativo34. e cuidar de seu traje de amarrações de
Além da perda irrecuperável de linha de algodão tingido e enfeites, a
determinadas flautas, a quebra das dona de flauta (zetati waikyatyo)
linhagens de donos ou a morte das precisará do auxílio de um parente
flautas significa a perda de sua proteção homem. Também são eles – com ajuda
espiritual. Proteger as flautas e atender de outros que ele pode indicar – que
às suas demandas – nessa constroem e fazem reparos na casa da
cosmopolítica que envolve conciliação e flauta (Iyamaka hana) a fim de dar às
alianças com espíritos potencialmente Iyamaka boa morada, sem formigas,
perigosos – representa para os Paresi cupins e goteiras que provoquem mofo.
Haliti receber delas a proteção contra a Dessa cosmopolítica, os donos de
interferência de Tinahare, espírito que flauta são os oficiantes, que, por meio
desencadeia e potencializa o mal das oferendas, rezas e festas de flauta,
praticado por seres feiticeiros. Assim, apaziguam as forças que emanam das
dotadas de energia vital e de espíritos entidades sonoras e a elas pedem
protetores, as Iyamaka representam proteção. Esta economia de dons pode
perigo aos Paresi Haliti caso não sejam ser observada nesta reza feita às flautas,
tratadas com respeito e cuidadas pelos que me foi cantada por Anézio
donos de flauta e caso não sejam Zozonezokemae na aldeia Kotítiko
(Figura 8). A coda em harmônico (no
último compasso), meio tom abaixo da
34
nota mais aguda, é recorrente nos finais
João Titi informou, ainda, que costumam usar de subseções de rezas entoadas pelo
os radicais dos nomes destas aldeias celestes na
composição dos nomes das crianças recém- xamã Joãozinho Akonoizokae, da aldeia
nascidas a serem nominadas, a fim de lhes dar Cabeceira do Urubu. Tanto as rezas
sorte e proteção ao longo da vida. Prosseguiu cantadas por Anézio quanto aquelas
declamando uma lista de aldeias celestes que cantadas por Joãozinho na festa-de-
deve ser recitada/cantada durante as oferendas,
inclusive aquelas feitas aos espíritos das flautas:
flauta começavam invariavelmente em
Kazahete, Wasehete, Korehete, Zozoyhete, Ré.
Zoloyhete, Zumayhete, Makahete, Zumuyhete e
Tyokahete.
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Figura 8. Oferenda musical feita às flautas e seus espíritos.


(Fonte: Transcrição musical do autor, conforme rezou cantando Anézio Zozonezokemae, da
aldeia Kotítiko, 2014).

Para o cuidado físico das Iyamaka e já tá castigando o dono. Logo


os reparos necessários, tem de haver, que racha, já pode ir fazendo.
na casa da flauta, um estoque de iyana Não pode esperar. Então
(taquara), de mahanidi (o breu de [senão] acontece picada de
abelha-jataí, usado para o bocal e as cobra, você machuca.
emendas) e konohidi (linha de algodão). Primeiro avisa, né. Primeiro
Anézio Zozonezokemae, cantor da dá o sono, dá o sono na gente.
aldeia Kotítiko, é dono de flauta. Dentro Se você não vai ligar com ele
da casa da flauta, ele me dá [se não ligar pra isso], lá na
explicações: frente você vai machucar, vai
adoecer. Assim é que funciona
Aqui tem várias reserva dele (ZOZONEZOKEMAE, 2014,
[reservas das taquaras]. Se informação verbal).
quebrar, rachar, o dono pode
fazer na hora. Se demorou Chamam de taquaral sagrado
uma semana, duas semanas, (iyanakoakoare) o lugar de onde retiram

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iyana para refazer as flautas que Ele [as flautas] tem uma mata,
estiverem velhas, com rachaduras né, ele tem uma mata pra
(iyana ehekware), danificadas por eles, foi uma sagrado mata
pragas ou ainda desaparecidas (como as pra eles! Então (desenhando
que foram roubadas); por conseguinte, no chão, mapeia o taquaral
o que define o regime de produção das encantado), aqui, tá no Amore
Iyamaka não é a construção, mas (um tipo de flauta), aqui tá no
sempre a reconstrução. Zerátyalo (outro tipo de flauta,
Luciano Kayzokenazokai (2014), em indicando ao lado), aqui tá no
cuja hati eu fazia minhas refeições e Wálalotse, aqui tá no outro,
tinha boas conversas, contou-me que chama Teiryo (Teirú), eles são
esse taquaral é encantado, pois, cada assim. Chega lá no mato,
vez que os tratores o invadem e você vê Wálalotse, Amore, e
destroem as touceiras de taquara, elas tá lá! Esse daqui (apontando a
voltam a crescer na mesma hora e a flauta Walalo de “Nozani-ná”)
mata fecha novamente (Informação você encontra lá, você
verbal)35. Acrescentou ainda: encontra seis pé. Esse daqui
(outra flauta, Amore), você
Uma vez, o fazendeiro entrou encontra só dois pé. Zerátyalo,
pra desmatar aquilo lá – mesma coisa, só dois pé. E
aquele matinho-de-flauta – e um pra flauta e um pra esse
o matinho se defendeu: virou cabaça (da qual se faz a caixa
matão!, motor do trator de ressonância da Amore), e
queimou!, estragou peça!, um pra esse aí, só. Cê num vê
não conseguiu invadir. Tem lá esse monte, igual esse
um outro velho – que faz taquara que tá à toa aí no
flauta lá –, diz que quando mato, aí, cê num vê um
pega material pra fazer flauta monte aí ficado, não. Só
não pode conversar de mulher, contado, certinho. Se tirou
fazer besteira... Diz que é um aquele também [se tirou a
matinho simples, assim, mas mais], cê num volta mais
se você entra lá..., você naquele no mato [não
some! (KAYZOKENAZOKAI, consegue mais sair do mato].
2014, informação verbal). [Se] Tirou aquele todo
certinho... por isso você tem
Esse depoimento evidencia as que tirar na hora, todo
potências da matéria-prima das certinho na hora, pra você
Iyamaka. As taquaras, longe de serem sair do mato
uma matéria inerte, já estão carregadas (ZOZONEZOKEMAE, 2014,
de agência mesmo antes de colhidas. informação verbal).
Anézio, por sua vez, descreve assim o
taquaral, as touceiras de iyana A palavra “Iyamaka” vem justamente
destinadas a cada flauta e o de iyana 36 , que é a taquara-sagrada
comportamento que se deve ter lá com a qual fazem as flautas, sua
durante a coleta: matéria-prima, conhecida na região
como taquaruçu-do-seco (em oposição
ao taquaruçu-do-brejo). Enfatizo que,

35 36
KAYZOKENAZOKAI, Luciano. Depoimento. KEZOKEMAECE, Geovani. Depoimento. Aldeia
Aldeia Formoso, 2014. JM – Korehete, 2015.
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para formar Iyamaka, a palavra iyana se diferenciavam e o tempo em que se


se aglutina com -maka (literalmente socializam em culturas distintas:
‘rede’, mas que designa ‘noite’ e
‘escuridão’), imprimindo às flautas seu Wazare mandou pegar folha
caráter secreto. Partindo desse de mandioquinha-do-campo e
raciocínio, podemos concluir que colocar na boca do veado e da
Iyamaka significa literalmente ‘taquara ema, para os dois esquecerem
da obscuridade’, entendendo-se de falar como gente. Wazare
obscuridade no sentido de ‘escondido’, mandou assar o veado e a
‘secreto’ e ‘perigoso’. Eis por que ema e oferecer à porta da
traduzem Iyamaka como ‘flauta secreta’. casa das flautas-secretas.
Em situações especiais, as flautas Depois comeram. Wazare
também são chamadas de Zetati ou, na mandou ainda Kamayhié
forma possuída, Zeta (‘flauta de’; ex: repartir a carne pelas outras
Waimarena zeta = ‘a flauta dos aldeias (PEREIRA, 1986:100).
Waimare’). Enquanto Iyamaka define a
flauta como sendo secreta e perigosa Na narrativa dos homens-da-água,
como uma serpente, Zetati a define tem-se uma ideia do quanto que a
como uma força que faz com que o sobrevivência das flautas depende dos
humano e o espiritual se aproximem. homens terrenos, quando o ancestral
Geovani Kezokemaece (2015) explica Kaimare dialoga com seu pai: “– Papai,
dessa forma: “Zetati – esta palavra é eu queria flautas-secretas para tocar e
mais profunda e afetiva. Ela é espiritual fazer festa. – Você não pode ter flautas-
e expressada com mais intensidade, de secretas! Elas são como as criancinhas,
forma integrada entre humano e que não comem sozinhas, e você
espírito” (Informação verbal). Eis precisa sempre tratar delas” (PEREIRA,
porque os Paresi Haliti traduzem Zetati 1986:224).
como ‘flauta sagrada’. Seguindo o A relação entre os Paresi Haliti e o
mesmo sentido e a fim de evitar complexo de flautas secretas opera por
implicações do termo “sagrado”, talvez reciprocidade, em que um alimenta o
pudéssemos traduzir Zetati como ‘flauta outro; no caso de um desequilíbrio, há
cerimonial’ ou ‘flauta-espírito’. primeiro avisos (por meio de sono e
Os alimentos e bebidas, dispostos na sonhos) e depois as sanções. As flautas
casa do anfitrião da festa de flauta, só e suas divindades protetoras, por sua
podem ser consumidos pelas gentes da imanência na vida dos Paresi Haliti,
aldeia e convidados depois que as constituem sua ontologia por meio da
flautas estiverem servidas e saciadas, e regulação de suas ações práticas e
os donos da festa servidos. Antigamente, simbólicas (a caça, o banho, o sexo, a
ao que parece, peixe não fazia parte do menstruação, o olhar, a fala, as
cardápio de oferendas para as flautas, oferendas e seu consumo, a dança, a
passando a integrá-lo de uns tempos música). Ao mesmo tempo em que, no
para cá. As oferendas que vi sendo plano da imanência, as flautas e seus
rezadas compreendiam tão somente entes protetores conduzem o ser paresi
carne de caça (ema, veado e queixada), por um caminho de retidão, também se
beiju, cigarros e oloniti, a chicha de deixam entrever fissuras causadas por
polvilho de mandioca-brava. No trecho acidentes (como as flautas esquecidas
do mito a seguir, vê-se essa questão em terreiros de aldeias) ou por eventos
colocada na fronteira entre o tempo em que fogem do controle (como os roubos
que humanos, animais e espíritos não de flauta relatados). Essas
desconstruções, entretanto, por meio do

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discurso exortativo, acabam por ficam escondidas todas as Iyamaka,


legitimar e reforçar as bases da antes do início das festas de flauta, caso
cosmopolítica paresi. as flautas tenham vindo de uma aldeia
convidada.
As Iyamaka nunca devem ser
comercializadas e nem afastadas de
seus donos, sob o risco de elas
deixarem de existir e de serem tocadas,
muitas vezes sem possibilidade de
substituição. Em vista disso, não se
sabe como, exatamente, a Comissão
Rondon conseguiu adquirir o conjunto
completo de flautas paresi, as mesmas
que ainda hoje estão expostas no Museu
Nacional do Rio de Janeiro.
Segundo depoimento de Anézio
Zozonezokemae (2014), estes
instrumentos foram cedidos em troca de
miçangas (informação verbal); nos
registros de Roquette-Pinto, consta que
foi graças ao prestígio de Rondon entre
os Paresi Haliti.
Ciente das restrições às mulheres,
Roquette-Pinto tomou precauções para
seu transporte, conforme se pode ver
nesta passagem do livro Rondonia37:

Minhas canastas [cestos]


Figura 9. A casa da flauta, na aldeia Rio onde, muito em segredo,
Formoso, logo após uma chuvarada. eram conduzidos os
(Fonte: foto do autor) instrumentos de música das
Percebe-se que a casa da flauta collecções, conseguidas mercê
também abriga outros elementos que do prestígio de Rondon, para
devem ser mantidos secretos – além o Museu Nacional, durante
das flautas –, ao menos até que possam todo o tempo em que
ou devam ser expostos. É o caso, por estiveram em território pareci
exemplo, de Kaimare, que, antes de se mereceram o mesmo respeito.
transformar na Lua, esconde-se na casa De Utiarití, onde eu as obtive,
da flauta por estar com vergonha de ter até Aldeia Queimada, último
sido flagrado numa relação incestuosa. ponto onde encontrei, na
Sendo assim, a casa da flauta é, volta, índios desta tribu,
podemos dizer, uma “casa dos soffreu minha bagagem
segredos”; segredos do mundo vigilância apurada, para
masculino, é verdade, mas que afetam impedir que alguma pobre
também o mundo feminino. Há mesmo
um paralelismo entre a casa da flauta e
outros refúgios secretos em que as 37
Durante a visita de uma comitiva paresi ao
Iyamaka se eclipsam: o fundo da pedra, Museu Nacional nos anos 1990, as mulheres
o fundo do rio e o fundo da mata, de tiveram de ser conduzidas por outras salas da
onde surgiu a flauta nasal Txíhali e onde exposição, evitando a vitrine em que estão
expostas as Iyamaka.
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mulher visse as santas avenas necessariamente associados a uma das


[antigas flautas pastorís]. flautas, quase sempre dando voz a ela
(1912:6). como narradora. Assim temos cantos de
quase todas as flautas do conjunto de
O consumo de oloniti e de fumo, a Iyamaka, por exemplo: Zerátyalo
música e a dança são ações que zerane (cantos da flauta Zerátyalo),
propiciam condições para atualizar Zero zerane (cantos da flauta de pã
outras esferas da existência, ativando e Zero) e assim por diante. Por isso, cada
conectando a pessoa paresi aos mundos canto se relaciona a uma flauta
em que habitam os espíritos das flautas específica. Boa parcela desses cantos é
– além de seus donos espirituais e antiquíssima, mas há também cantos
guardiões – com os quais se mantém novos que podem ser integrados ao
um delicado diálogo. Instrumentos repertório, muito embora ainda não
dessa cautelosa diplomacia entre tenhamos dados suficientes para
humanos e entes poderosos e determinar a sistemática envolvendo a
potencialmente perigosos, constituem o relação entre os cantos novos e as
conjunto de elementos ritualizados que suítes consolidadas.
têm poder votivo, apaziguador e Quando a música-de-flauta é tocada
encantatório, a fim de garantir aos no instrumento (e não cantada), deve
jovens iniciados proteção e boa fortuna. ser entendida como um canto com letra,
como se estivesse sendo cantada, de
Considerações finais maneira que cada aspecto da estrutura
melódica das flautas remete a um texto
A música e as Iyamaka inteligível. Desse ponto de vista,
desempenham um papel fundamental flautista e flauta, assim como canto e
na dinâmica social e cosmopolítica dos melodia de flauta, parecem ser
Paresi Haliti, atuando na pessoa paresi, indissociáveis, coexistindo por
nos grupos familiares, nas aldeias e sobreposição. Essa concepção abala as
mesmo no conjunto delas. Sua força é categorias trazidas pela música
sentida nas performances rituais, que ocidental europeia, ainda que usemos o
reativam os laços ontológicos e as cantabile como recurso expressivo em
imanências de planos cósmicos e suas obras instrumentais do Ocidente;
regulações. também nos leva a repensar a
Os cantos-de-flauta (Iyamaka universalidade desse fenômeno que
zerane), como alguns que foram chamamos de música, tal como
apresentados aqui, abrangem diferentes costumamos concebê-lo.
formas sonoras e estão

Figura 10. Panorâmica da aldeia Rio Formoso


(Fonte: foto do autor - na foto não aparecem o posto médico, a escola e algumas casas de
alvenaria e de madeira que há na aldeia. Vê-se a casa da flauta atrás da maloca da extrema
esquerda, sob frondosas mangueiras).
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Brésiliennes. Partitura. Para canto e Brésiliennes. Manuscrito. Para canto e
piano. Paris: Max Eschig, 1926. piano. Rio de Janeiro: MVL, 1930.

Agradecimentos
Geovani Kezokemaece, Luciano Kayzokenazokai, João Titi Akonoizokae, Angelina
Zezokemaero, Jocelio Onizokaece, Maciel Okenazokaece, Justino Zomoizokae, Anézio
Zozonezokemae, Juvenal Azomare, João Ahezomae, Nelsão Barowa, Magda Pucci,
Museu Nacional do Rio de Janeiro, Museu Villa-Lobos, Museu do Índio e Academia
Brasileira de Letras.

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