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PERSPECTIVAS PERSPECTIVES 7

Desafios e perspectivas para a promoção da


alimentação adequada e saudável no Brasil

Challenges and perspectives for the promotion of


adequate and healthy food in Brazil

Desafíos y perspectivas para la promoción de una


alimentación adecuada y saludable en Brasil

Inês Rugani Ribeiro de Castro 1

1 Instituto de Nutrição,
A alimentação saudável vem ganhando espa- ja: “a realização de um direito humano básico,
Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
ço na agenda das políticas públicas e, hoje, sua com a garantia ao acesso permanente e regular,
Brasil. promoção está prevista em diversas políticas e de forma socialmente justa, a uma prática ali-
programas nacionais. Por outro lado, as práticas mentar adequada aos aspectos biológicos e sociais
Correspondência
I. R. R. Castro
alimentares dos brasileiros estão longe das dese- dos indivíduos, de acordo com o ciclo de vida e
Instituto de Nutrição, jáveis nas diferentes fases do curso da vida e em as necessidades alimentares especiais, pautada
Universidade do Estado do todos os estratos socioeconômicos, e pioraram no referencial tradicional local. Deve atender aos
Rio de Janeiro.
Rua São Francisco Xavier nas últimas décadas. Além disso, são expressivos princípios da variedade, equilíbrio, moderação,
524, 12 o andar, bloco D, sala o aumento da obesidade e de doenças crônicas prazer (sabor), às dimensões de gênero e etnia, e
12.01, Rio de Janeiro, RJ
não transmissíveis ligadas a ela e à alimentação, às formas de produção ambientalmente susten-
20550-013, Brasil.
inesrrc@uol.com.br como o diabetes e a hipertensão. Nesse cená- táveis, livre de contaminantes físicos, químicos,
rio, cabe perguntar: como avançar no desen- biológicos e de organismos geneticamente modifi-
volvimento de políticas públicas efetivas para a cados” 2. Disso decorre que uma resposta efetiva
promoção da alimentação adequada e saudável à questão alimentar atual passa, portanto, por
no país? políticas públicas que integrem promoção da
A resposta a essa pergunta pressupõe a am- saúde, sustentabilidade ambiental, compromis-
pliação do escopo da análise sobre a alimentação so com a realização de direitos e justiça social.
no contexto contemporâneo. Para tal, considera- Nessa perspectiva, é fundamental o recon-
mos oportuna a concepção de que a alimentação hecimento das características e da dinâmica de
integra cinco dimensões: a do direito humano, a funcionamento dos sistemas agroalimentares,
biológica (aspectos nutricionais e sanitários), a incluindo o brasileiro 1. Destaco aqui algumas
sociocultural (sistema de valores, relação de indi- delas: (a) estão pautados em premissas que não
víduos e de coletivos com a comida), a econômi- são mais aplicáveis, a saber: clima estável, água
ca (relações de trabalho estabelecidas no âmbito abundante, energia barata; (b) têm como produ-
do sistema alimentar, preço dos alimentos) e a to alimentos com componentes não alimentares,
ambiental (formas de produção, comercializa- como agrotóxicos, antibióticos, conservantes e
ção e consumo de alimentos) 1. Essa concepção realçadores de sabor, que têm efeitos nefastos
se traduz na definição de alimentação adequada para a saúde; (c) geram a degradação de ecossis-
e saudável apresentada pelo Conselho Nacional temas sustentáveis em função de seus métodos
de Segurança Alimentar e Nutricional, qual se- de produção, armazenamento, transporte e co-

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311XPE010115 Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 31(1):7-9, jan, 2015


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mercialização dos alimentos; (d) reproduzem e portamento ou um procedimento de ingestão


aprofundam as desigualdades sociais no acesso de alimentos e outros produtos comestíveis que
a terra, água, energia e renda; (e) apesar de apre- contribuem para a prevenção ou ocorrência de
sentarem sucessivos recordes de safra, apresen- um conjunto de doenças. Esse eixo diz respeito
tam ineficiência na produção, transporte, arma- à ressignificação da comida, do cozinhar, do co-
zenamento, distribuição e manuseio doméstico, mer e da comensalidade (comer e beber juntos),
gerando desperdício e aumento do preço final resgatando seu sentido existencial profundo e am-
dos produtos; (f) são marcados pela concentra- pliando a consciência de sua dimensão política.
ção de etapas da cadeia alimentar em grandes Têm se ampliado e diversificado as iniciativas
corporações transnacionais, como as de insumos de resgate da alimentação como um dos eixos
e sementes, as indústrias de alimentos e as mega estruturantes da identidade coletiva (cultura) e
redes varejistas; (g) por meio de diversos meca- de valorização do consumo (incluindo o consu-
nismos (econômicos, tecnológicos e de propa- mo de alimentos) como ação política, aqui en-
ganda e marketing), promovem o deslocamento tendida como a percepção e o uso das práticas
do consumo de alimentos in natura e minima- e escolhas de consumo (individuais e coletivas)
mente processados para o de produtos prontos como uma forma de participação na esfera pú-
para consumo ultraprocessados (PPCUP) 3, cujos blica. São expressões dessa consciência da di-
atributos são, entre outros: composição nutricio- mensão política da alimentação, por exemplo,
nal desequilibrada (altos teores de gordura e/ou a escolha do que comer e do que não comer em
açúcar e/ou sal, baixo teor de fibras, alta densi- função não somente do gosto, da tradição ou do
dade energética), hiperpalatabilidade e grande cuidado com saúde individual, mas também em
durabilidade, levando à deterioração de culturas função de suas implicações ambientais, sociais e
alimentares tradicionais e à diminuição da diver- econômicas.
sidade alimentar. Movimentos contra-hegemô- Nessa perspectiva, um aspecto fundamental
nicos estão em curso no sentido de promover a é a tomada de consciência de que as práticas ali-
agroecologia e processos de produção e comer- mentares saudáveis (aqui incluídas as escolhas
cialização mais sustentáveis, mas ainda não ga- dos alimentos, as formas de preparo das refei-
nharam força suficiente para provocar uma mu- ções e o seu compartilhamento) são contra-he-
dança estrutural nos sistemas agroalimentares gemônicas em nossa sociedade e que, portanto,
hoje estabelecidos. demandam atenção e dedicação constantes para
A compreesão de que os sistemas alimenta- que sejam mantidas e cultivadas. Nesse contex-
res determinam nossas escolhas é fundamental to, a valorização da culinária no dia a dia vem
para entender que as decisões individuais, em- assumindo centralidade nas ações de educação
bora imprescindíveis, não são suficientes para a alimentar e nutricional como prática emanci-
garantia de práticas alimentares saudáveis e su- patória (porque promotora de autonomia) e de
stentáveis em âmbito coletivo. Só terão chance autocuidado.
de ser efetivas as ações que integrarem às medi- No âmbito das ações de educação alimen-
das dirigidas às pessoas (atividades educativas, tar e nutricional, uma inflexão fundamental é a
atividades de apoio) outras medidas dirigidas ao adoção da classificação de alimentos segundo
ambiente em que elas vivem. Aqui cabe ressal- seu grau de processamento 3 e não em função
tar que entendo ambiente em uma perspectiva dos nutrientes neles contidos, que é o referencial
mais ampla do que a de “ambiente construído”, que embasa a pirâmide alimentar, um ícone am-
alinhando-me ao modelo conceitual sobre am- plamente utilizado nos últimos anos em muitos
biente proposto por Swinburn et al. 4. Seu arca- países, incluindo o Brasil, em atividades educa-
bouço teórico propõe duas dimensões (micro e tivas voltadas para a promoção da alimentação
macro) e quatro tipos (físico, econômico, político saudável. O novo Guia Alimentar da População
e sociocultural) de ambiente. Com base nesse re- Brasileira, que esteve em consulta pública no iní-
ferencial, depreende-se que, para serem efetivas, cio deste ano e que foi publicado em novembro
as ações de promoção da alimentação saudável de 2014, adota essa nova abordagem. Sistemas
devem articular medidas que contemplem as di- de classificação que enfatizam o processamen-
ferentes dimensões e tipos de ambiente anterior- to industrial de alimentos fornecem elementos
mente apresentados. preciosos para práticas educativas confluentes
Isso posto, penso que os desafios e as pers- com o desafio da ressignificação da comida no
pectivas para a promoção da alimentação sau- contexto contemporâneo.
dável podem ser organizados em dois grandes O segundo eixo de desafios e perspectivas
eixos. O primeiro tem como ponto de partida parte do entendimento de que a necessária mu-
o entendimento de que a alimentação é uma dança estrutural no sistema agroalimentar brasi-
prática social, ou seja, é mais do que um com- leiro não acontecerá por meio de mudanças indi-

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PROMOÇÃO DA ALIMENTAÇÃO ADEQUADA E SAUDÁVEL 9

viduais ou iniciativas espontâneas do setor pro- são do código sanitário de forma a torná-lo mais
dutivo. Esse eixo diz respeito ao desenvolvimento includente aos pequenos produtores (exemplo
de políticas públicas que incentivem e facilitem disso é a RDC no 49/2013 da Agência Nacional de
as escolhas saudáveis e que protejam indivíduos e Vigilância Sanitária). Embora haja importantes
populações de fatores e situações que levem a esco- conquistas em relação a essa agenda em nosso
lhas não saudáveis. Diz respeito, também, à con- país, a atuação do setor público é ainda incipien-
solidação de políticas públicas que respondam te e enfrenta forte e sistemática resistência polí-
ao mesmo tempo a vários problemas da agenda tica por parte do setor privado às medidas regu-
de alimentação e nutrição. Um aspecto funda- latórias. Para que tenhamos avanços expressivos
mental para isso é avançar nas ações de caráter nessa agenda, é fundamental amadurecer e am-
regulatório referentes a diferentes elementos do pliar as iniciativas de advocacy já desenvolvidas
sistema alimentar, como, por exemplo, a regula- em nosso país, e criar e fortalecer mecanismos
ção da propaganda, da publicidade (na mídia, de regulação da relação público-privado em ali-
em ambientes específicos) e da rotulagem de ali- mentação e nutrição.
mentos; a regulamentação das cantinas escola- O avanço da promoção da alimentação sau-
res; a taxação ou o subsídio de determinados ali- dável no Brasil pressupõe, portanto, o engaja-
mentos; a regulação da composição de produtos mento e a articulação de setores e atores de di-
ultraprocessados; o direcionamento de progra- ferentes áreas, como saúde, segurança alimentar
mas sociais no sentido de ampliar a sua cober- e nutricional, movimentos ambientalistas, movi-
tura e de garantir mecanismos que promovam mentos sociais do campo, entre outros, que pro-
um círculo virtuoso no sistema alimentar (como tagonizem mudanças estruturais no padrão de
o Programa de Aquisição de Alimentos e o Pro- consumo e no modelo de desenvolvimento hoje
grama Nacional de Alimentação Escolar); a revi- vigentes em nosso país.

1. Castro IRR, Castro LMC, Gugelmim SA. Ações 3. Monteiro CA, Levy RB, Claro RM, Castro IRR, Can-
educativas, programas e políticas envolvidos nas non G. A new classification of foods based on the
mudanças alimentares. In: Diez-Garcia RW, Cer- extent and purpose of their processing. Cad Saúde
vato-Mancuso AM, organizadores. Mudanças ali- Pública 2010; 26:2039-49.
mentares e educação nutricional. Rio de Janeiro: 4. Swinburn B, Egger G, Raza F. Dissecting obesogen-
Editora Guanabara Koogan; 2011. p. 18-34. ic environments: the development and applica-
2. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nu- tion of a framework for identifying and prioritizing
tricional. III Conferência Nacional de Segurança environmental interventions for obesity. Prev Med
Alimentar e Nutricional – por um desenvolvimen- 1999; 29:563-70.
to sustentável com soberania e segurança alimen-
tar e nutricional. Relatório final. Fortaleza: Conse- Recebido em 15/Set/2014
lho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricio- Aprovado em 24/Set/2014
nal; 2007.

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 31(1):7-9, jan, 2015

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