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Revista Vocábulo 07/08/17 15(26

VOLUME XII
1º semestre de 2017

Editorial

Prof. Me. André Luiz ALSELMI (Centro Universitário Barão de Mauá / Centro Universitário
Estácio de Ribeirão Preto)
Profa. Ma. Elaine Christina Mota (Centro Universitário Barão de Mauá)
Prof. Dr. Paulo Eduardo de Barros Veiga (Centro Universitário Barão de Mauá / Centro Universitário
Moura Lacerda)
Profa. Ma. Renata Maria Cortez da Rocha Zaccaro (Centro Universitário Barão de Mauá)

Artigos

Selfies de um dizer: a poética de Zack Magiezi no Instagram


Jacob dos Santos BIZIAK (IFPR / USP)

História, cultura e identidade nas águas literárias de Mia Couto


Carlos Henrique FONSECA (UNESP)

As várias faces de Baudelaire


Margarete HÜLSENDEGER (PUC)

Mito e História em Persas de Ésquilo


Marco Aurélio RODRIGUES (UNESP)

Do pictórico ao verbal: entre a ilusão e a reestruturação do real


Marcela Ulhôa Borges MAGALHÃES (UNESP)

Leitura de dois gêneros textuais em formato digital na aula de inglês da EAJA


Ana Agda de Oliveira Santos (UFG)
Sinval Martins de Sousa Filho (UFG)

As características sócio-discursivas e linguísticas do gênero discursivo/textual carta do leitor


Amanda de Carvalho (UENP)
Gabriela Pilegi Teixeira (UENP)
Mariana Costantino Nardine (UENP)
Marilúcia dos Santos Domingos Striquer (UENP)

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Do pictórico ao verbal: entre a ilusão e a reestruturação do real

Marcela Ulhôa Borges MAGALHÃES1

Resumo
O presente artigo tem como objetivo refletir sobre o conceito de realidade, quando
aplicado à esfera das artes, especificamente no que condiz à arte pictórica e à arte
verbal, demonstrando como cada uma delas trabalha, por meio de procedimentos
específicos, os efeitos de sentido que se aproximam ou se distanciam do “real”. Tanto
na literatura quanto na pintura, o real nada mais é do que um efeito de sentido que, por
meio de procedimentos miméticos, almeja provocar, no enunciatário, a ilusão de
realidade, qual seja, a ilusão referencial. Ocorre, porém, que a ilusão referencial não é a
única possível. Existem outras possibilidade de explorar as sutilezas da natureza
imitativa, e as obras de arte modernas são um exemplo da possibilidade de
reestruturação dos elementos do mundo natural sob perspectivas que buscam
desautomatizar o olhar acostumado à tradição e romper com a visão monocular
convencionada desde a Antiguidade Clássica. A fim de demonstrar o processo que vai
da ilusão à reestruturação do real, este artigo apresenta como córpus a tela “Vênus de
Urbino”, de Ticiano — de estética realista — e as obras “Mulher deitada e cachorro”, de
Di Cavalcanti, e “Vênus”, de Drummond, ambas de estética modernista.

Palavras-chave: Ilusão referencial. Pintura. Poesia.

Abstract
This article aims to reflect on the concept of reality, when applied to the sphere of the
arts, specifically in what respects pictorial art and verbal art, demonstrating how each
of them works, through specific procedures, the effects of meaning that approach or
distance themselves from the "real." In both literature and painting, reality is nothing

1
Doutoranda na UNESP, Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, com período sanduíche cursado
na Université Paris 8. Pesquisa financiada pela CAPES. Araraquara, 14801090, SP,
marcelacfj@hotmail.com.
more than an effect of meaning which, through mimetic procedures, seeks to provoke
the illusion of reality or, in other words, the referential illusion. However the referential
illusion is not the only one possible. There are other possibilities of exploring the
subtleties of imitative nature, and modern works of art are an example of the possibility
of restructuring the elements of the natural world under perspectives that seek to
changes the tradition and break with the monocular vision agreed upon since Classical
Antiquity. In order to demonstrate the process that goes from the illusion to the
restructuring of the real, this article presents as a corpus the painting "Venus of
Urbino", by Titian — from the realism — and the works “Mulher deitada e cachorro”
by Di Cavalcanti, and "Venus" by Drummond, both from modernism.

Keywords: Illusion of reality. Painting. Poetry. Semiotics.

A discussão sobre o conceito de arte, seja ela pictórica, seja verbal, perpassa por
diversos momentos históricos desde a Antiguidade Clássica, bem como por variadas e
diferentes percepções teóricas, que procuram explicar e sistematizar, cada uma à sua
maneira, a natureza do fenômeno artístico. Destacam-se, nesse âmbito, as ideias de
Platão (2007) e Aristóteles (2008), que, ainda hoje, são tomadas como referência nos
estudos estéticos.
Platão (2007) concebia a arte como uma imitação imperfeita da realidade, uma
espécie de imitação em segundo grau, de modo que, na concepção do filósofo, os
poetas, assim como os demais artistas, deveriam ser expulsos da polis grega em
decorrência das ilusões distorcidas sobre os elementos do mundo natural que apareciam
nas obras de arte. É certo que, com os avanços teóricos no campo das Artes, as ideias de
Platão (2007) passaram a ser revistas e aprimoradas pelos estudiosos que lhe sucederam.
Entre seus sucessores, destaca-se, ainda na Antiguidade Clássica, Aristóteles (2008) e
sua teoria da arte como imitação, que, ainda hoje, se configura como a base de diversos
segmentos teóricos que visam a investigar os processos artísticos.
Em sua Poética (2008), Aristóteles afirma ser, a arte, imitação pela palavra.
Desse acerto, provém o tratado teórico que, até recentemente (mais especificamente até
o início dos movimentos de vanguarda instaurados no século XIX) influenciou de modo
soberano o desenvolvimento dos diversos movimentos artísticos e de seus
desdobramentos teóricos. Houve um avanço notável em relação às ideias platônicas,
afinal Aristóteles (2008) não concebe a arte como uma imitação imperfeita, porém ele
continua a crer que ela se define apenas por reproduzir os elementos da realidade, e,
quanto mais similares ao mundo natural forem os objetos artísticos, maior o valor a ser
atribuído à obra de arte em questão, motivo pelo qual a arte realista atinge primazia
quando concebida segundo os princípios da arte como imitação.
O episteme aristotélico da mimese regeu de forma contínua o modo de conceber
as artes desde a Antiguidade até o início do século XIX. A dificuldade no que concerne
à teoria em questão é que ela se atém, sobretudo, ao parecer. Seria possível, no entanto,
afirmar que, de fato, o artista retrata os elementos da realidade propriamente dita?
Acredita-se que não. O que é retratado, por exemplo, em uma tela realista, é apenas um
elemento convencionado como real pela sociedade. Não se trata do real em si:

De fato, a pintura realista se atém só ao parecer das coisas que ela


pinta. Pintando “o que todo o mundo vê”, o que o pintor fixa na tela
não é uma “coisa da realidade”, é uma convenção social – o
designatum pictórico de infinitas ocorrências de dado evento, dado
objeto, resultado de um sem-número de manipulações a que o grupo
submete todos e cada um de seus membros para neles interiorizar a
mesma visão de mundo, sua ideologia e seus esquemas de
entendimento, o repertório todo dos elementos cuja interiorização na
mente do leitor virá a compor sua particular competência para ver e
para entender o mundo e os textos produzidos por sua comunidade
(LOPES, 1997, p. 22).

O cânone realista, dessa maneira, quer-fazer seu enunciatário crer que o


elemento em tela seja real, porém, ele apenas parece real à percepção do sujeito. Não se
pode negar, entretanto, que o real é convencionado. Ainda segundo Edward Lopes:

[…]ver, de acordo com os cânones do realismo, implica a tautologia


ofuscante de ver o já-visto, de ver “o que todo mundo vê” – paranoia
do hábito, afirmada como bom senso pela ideologia burguesa montada
à base dos automatismos impostos por uma visão autoritária do real,
que força a exibição da aparência que nos faz ver o que já vimos […].
(LOPES, 1997, p. 22).

A partir do século XIX, contudo, essa abordagem teórica que concebe a arte
como imitação passou a perder sua força de convencimento, pois surgiram outras
formas de expressão em todos os campos artísticos (movimentos estéticos de
vanguarda) que exigiam uma perspectiva teórica aquém daquela que estava tão bem
assentada na História da Arte. Houve então uma descontinuidade epistemológica na
forma de pensar as artes e, nesse contexto, surge a teoria semiótica francesa, que se
ocupa de estudar as mais diversas manifestações discursivas, dentre elas, a linguagem
visual e a linguagem verbal:

On pense pouvoir en restreindre l’objet d’investigation en définissent


la sémiotique visuelle par son support planaire, en chargent ainsi la
surface de parler de l’espace tri-dimensionnel : les manifestation
picturale, graphique, photographique que se trouvent alors réunies au
nom d’un mode de « présence au monde » commun. Mais une telle
sémiotique planaire comprend, de plus, les différents types
d’écritures, les langages de représentation graphiques etc., laissant
s’évanouir, à peine entrevue la spécifié du visuel planaire
(GREIMAS, 1984, p. 5-6).

A semiótica reclassificou o conceito de imitação da realidade, pois ela


compreende esse mecanismo como o de elaboração de um efeito de sentido de realidade
por meio da instauração de homologias entre o mundo natural e o texto pictórico (ou de
outra espécie):

Estruturada num momento histórico que permite reconhecer com mais


clareza o relativismo cultural que, em grande parte, direciona a
formação de “visões de mundo”, a Semiótica procura acercar-se da
questão com mais cautela. Assim, não fala em imitação da realidade,
mas em construção de um efeito de sentido de “realidade”, a partir de
uma relação intertextual estabelecida entre o mundo natural e o
discurso literário, lembrando que essa relação se firma em bases
positivas previamente aceitas pelo produtor e pelo receptor desse
discurso. (THAMOS, 1998, p. 52).

A arte, embora apresente grande vocação à realidade, pelo fato de ter como base
o referente, não é uma mera imitação do real, já que, a partir de diversos mecanismos —
diferentes no texto verbal e visual, como será especificado adiante — ela busca criar a
ilusão de realidade (ou ilusão referencial) no enunciatário, levando-o a crer, por
exemplo, que aquilo que está pintado na tela é uma reprodução de determinado
elemento da realidade:

O princípio essencial da pintura, como já disse, é constituído pela


subjetividade interna e vivente, como os seus sentimentos,
representações e ações, tendo por objetivos tudo o que existe e desde
do céu e da terra, com a multiplicidade suas situações e das suas
manifestações exteriores e corporais […]. (HEGEL, 2010, p. 197).

Além do efeito de sentido de realidade, uma obra pode apresentar muitos outros
efeitos, como por exemplo: irrealidade, surrealidade, abstração, dentre muitos outros. É
fundamental, contudo, observar que não é possível dizer que uma obra de arte clássica
realista seja mais “real” do que uma obra surrealista, cubista, impressionista ou
expressionista, por exemplo. Essa será a questão motriz que orientará os
desdobramentos do presente artigo.
O conceito de figuratividade desenvolvido pela teoria semiótica pode auxiliar a
compreender esse fenômeno tanto nas artes pictóricas como nas artes verbais. A
figurativização é o procedimento que reveste plasticamente o discurso a fim de que ele
se aproxime o máximo possível do referente (mundo natural). Supõe-se o seguinte
programa narrativo: um sujeito disjunto de um objeto investido de um valor como, por
exemplo, o poder (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 211). Até então, há uma estrutura
absolutamente genérica, que poderá ser figurativizada de diversas maneiras e
manifestada por meio de diversos textos, como o literário, o pictórico, o
cinematográfico etc. Há também muitas maneiras de contar a mesma história. O objeto-
valor pode ser um automóvel, uma mulher, um cargo na empresa etc. Conforme a
coerência interna do texto, as escolhas do sujeito da enunciação revestirão as estruturas
narrativas com figuras do mundo natural, instalando isotopias no discurso. O processo
de figurativização contempla, porém, dois níveis diversos: a figuração, momento em
que os temas são convertidos em figuras, e, quando logra chegar a tanto, também o da
iconização, que toma as figuras já constituídas e as dota de um revestimento
particularizante, de modo a produzir uma ilusão referencial (GREIMAS; COURTÉS,
2008, p. 251).
Quando se trata do texto verbal, uma das maneiras possíveis de alcançar esse
último nível do discurso figurativo é homologar o plano de expressão ao plano de
conteúdo do texto de modo a provocar coincidências que conduzam à ilusão de
realidade: “essa iconicidade, portanto, nada mais é do que uma forma dentre outras
possíveis de explorar componentes figurativos da expressão linguística” (BERTRAND,
2003, p. 208). O que particulariza o texto poético, diferenciando-o de outros tantos
discursos que tratam de temas semelhantes, é o trabalho sobre a expressão. O conteúdo
de um poema poderia ser manifestado por meio da linguagem predominantemente
referencial, e, sem dúvida, seria muito mais facilmente compreendido, muito embora a
função poética, provavelmente, não fosse mais dominante. O poeta, no entanto, não
pretende transmitir informações, mas provocar um efeito estético a ser apreendido pelo
leitor. Nesse contexto, a figuratividade assume papel fundamental, uma vez que nos
coloca em contato com as superfícies do discurso, produzindo e restituindo
parcialmente significações análogas às de nossas experiências perceptivas mais
concretas (BERTRAND, 2003, p. 154).

Ceci n’est pas une pipe: o processo de fabricação da realidade

(...) faire vrai consiste... à donner l’illusion complète du vrai.


(Maupassant, ¨Préface¨ de Pierre et Jean).

O pintor surrealista belga René Magritte buscou questionar em muitas de suas


obras a assertiva de que os elementos presentes na obra de arte correspondem
diretamente aos elementos da realidade. Em sua famosa tela “Ceci n’est pas une pipe”,
datada de 1928-19292, Magritte questiona de forma cabal essas questões (que no início
do século XX apresentavam maior credibilidade ainda do que hoje) e reforça o princípio
da representatividade, conceito fundamental também dentro dos estudos semióticos.
A tela do pintor belga utiliza-se da linguagem não-verbal (pintura de um
cachimbo) e linguagem verbal (a afirmação “ceci n’est pas une pipe”). De modo geral, a
primeira impressão provocada no enunciatário é a de que há uma contradição explícita
entre o signo não-verbal e o signo verbal: a imagem do cachimbo e os dizeres “isso não
é um cachimbo”. Apenas quando a reflexão sobre a tela de Magritte é iluminada pela
teoria da representatividade, passa a ser possível verificar que não se trata de estabelecer
uma contraposição, mas sim de desautomatizar, diante dos olhos do enunciatário, as
ideias que giram em torno de arte e realidade.
O pintor belga coloca diante do enunciatário a afirmação de que aquele
cachimbo pintado na tela não é, na verdade, o mesmo cachimbo presente na realidade.

2
Parte do acervo de Los Angeles County Museum of Art.
O cachimbo do quadro seria o correspondente do que a semiótica francesa denomina
designatum, ou seja, uma representação do cachimbo existente na realidade. Magritte
desmistifica, então, o senso comum que concebe os elementos presentes na arte como
correspondentes diretos dos elementos do mundo natural.
Os questionamentos e hipóteses que René Magritte explora em suas obras vai ao
encontro dos preceitos das teorias da figuratividade e da veridicção, desenvolvidos pela
semiótica francesa. Ambos concebem que a arte, em suas mais diversas acepções,
fabrica outra realidade, paralela àquela do mundo natural, que pode ser mais semelhante
a ele, tal qual ocorre na pintura renascentista, por exemplo, ou se afastar deveras do
mundo extra-texto, como se pode observar nas próprias telas de Magritte, que
subvertem a realidade, remodelando os elementos do mundo natural em uma ordem
completamente diferente da que o olhar acostumado e automatizado experimenta.

A construção do efeito de sentido de realidade

A fim de demonstrar alguns dos procedimentos mobilizados para a construção


do efeito de sentido de realidade, optou-se por tecer alguns comentários a respeito da
tela “Vênus de Urbino”3, datada de 1538, da autoria de Ticiano. Trata-se de é um óleo
sobre tela que exibe no centro da pintura – como já indica o próprio título da obra – a
figura mítica de Vênus4. Trata-se de uma obra inquestionavelmente realista, que quer
parecer real ao enunciatário, e, para tanto, mobiliza uma série procedimentos que
buscam atingir o efeito de sentido de real ou, em outras palavras, a ilusão referencial.
O enunciatário sempre é invocado pelo enunciador no processo de significação.
Como já afirmava Jakobson, ao tratar dos problemas da estrutura verbal, não há ato de
linguagem sem a presença do destinatário (1973, p. 123). Há um contrato estabelecido
entre enunciador e enunciatário, no qual o enunciador espalha pelo discurso marcas que
devem ser encontradas e interpretadas pelo enunciatário, que o fará de acordo com seus
conhecimentos e suas convicções, afinal, como pontua Fiorin (2008, p. 154), “[…] é
preciso considerar que o enunciatário não é um ser passivo, que apenas recebe as

3
Que se encontra em exibição na renomada Galleria degli Uffizi, localizada na cidade de Florença, na
Itália. / Observar anexo A.
4
Deusa do amor, correspondente à Afrodite grega.
informações produzidas pelo enunciador, mas é um produtor do discurso, que constrói,
interpreta, avalia, compartilha ou rejeita significações”.
O primeiro elemento que se destaca na tela é a figura de Vênus, que, disposta
horizontalmente, ocupa todo o primeiro plano da pintura. Como é habitual, a julgar
pelas demais representações da deusa do amor nas artes plásticas, ela se encontra
completamente nua. Os padrões de beleza reproduzidos são aqueles tão exaltados
durante o período renascentista: pele alva, formas arredondas, traços faciais finos e
delicados, ou seja, trata-se da reprodução do modelo europeu, convencionado social e
culturalmente como o ideal de beleza.
Em busca de criar uma ilusão referencial no enunciatário, a deusa da beleza e do
amor não poderia ser pintada de outra forma que não aquela que corresponde à tradição
clássica. Há um reconhecimento imediato por parte do enunciatário que visualiza pela
primeira vez a Vênus de Ticiano. O efeito de sentido não seria o mesmo se o enunciador
tivesse optado por uma figura feminina que fugisse dos padrões estéticos da época,
difundidos pela tradição. A noção de proporcionalidade do corpo feminino também
obedece às formas da mulher presente no mundo natural, o que contribui de forma
efetiva para o reconhecimento do “já visto” e a consequente aceitação por parte do
enunciatário da ilusão referencial causada na pintura de Vênus.
Ainda sobre a figura feminina em relevo, é possível notar que ela se encontra
numa posição tal como se estivesse posando para alguém. O próprio olhar da Vênus está
direcionado para um sujeito que se encontra fora da tela. Não se tem acesso, porém, a
essa segunda figura, que fica apenas sugerida. É possível pensar em uma relação
metalinguística, na qual Vênus estava a observar aquele que a pintava, ou mesmo na
possibilidade de que esse alguém desconhecido para quem ela olha fixamente seja o
enunciatário do quadro.
A noção de perspectiva também em muito contribui para provocar a ilusão
referencial. O quadro é dividido em dois planos, o primeiro, em que se encontra Vênus
nua, e o segundo, localizado na metade superior à direita, em que se encontram duas
mulheres mexendo em um baú e, muito provavelmente, segurando as roupas de Vênus.
Há entre os dois planos uma grande noção de profundidade, que provoca, no
enunciatário, juntamente aos demais elementos do quadro, a impressão de realidade.
A seleção das cores no quadro também procura imitar da forma mais similar
possível as cores dos elementos do mundo natural. O céu é azul, a árvore verde, a pele
bege etc. Em um quadro modernista — como o de Di Cavalcanti, a ser comentado
posteriormente — que pretende romper com imitação fiel do real, o céu pode ser verde,
a árvore azul e a pele amarela, por exemplo.
A partir dessa análise dos elementos do conteúdo e da expressão da tela, é
possível constatar que a “Vênus de Urbino”, de Ticiano, foi construída para fabricar a
realidade aos olhos de seus espectadores, e ela o faz com muita competência, por meio
dos recursos explicitados acima.

A reestruturação da realidade

“Mulher deitada e cachorro” 5 , tela datada de 1954, é um dos importantes


quadros do pintor brasileiro Di Cavalcanti, grande expoente da pintura brasileira do
século XX. Seu estilo é marcado pela influência dos movimentos de vanguarda como o
Expressionismo e o cubismo, sendo que, na tela em apreço, as referências a esse último
movimento são muito evidentes. Os temas abordados em suas pinturas costumavam ser
tipicamente brasileiros, como a exaltação da sensualidade feminina e mesmo de
questões sociais, embora as referências clássicas continuassem a predominar em sua
obra, como bem demonstra a tela em apreço, que dialoga de forma bastante evidente
com a “Vênus de Urbino”, de Ticiano, tanto em relação aos temas quanto em relação às
construções figurativas. A tela clássica, porém, explora os revestimentos figurativos a
tal ponto que alcança o grau de figuratividade icônico e provoca uma ilusão referencial,
ao passo que a obra de Di Cavalcanti reveste os temas por figuras, sem particularizá-los
como em Ticiano e sem buscar o efeito final de realidade. A própria inspiração cubista
contribui para que a obra de Di Cavalcanti apresente um tratamento estético e figurativo
particular, já que pintura cubista abandona a perspectiva clássica – o que não significa
abandonar um referente, o que seria impossível em uma tela que não fosse

5
Que se encontra se encontra em exibição no Acervo Banco Itaú S.A. - São Paulo, SP. / Observar anexo
B.
completamente abstrata – e busca novas formas de expressão, sob diferentes
perspectivas:

(...) por corresponder à visão privilegiada desde um ponto de vista


único – ocupado pelo pintor –, não escolhido pelo leitor do quadro, a
perspectiva clássica, que foi também a realista, tinha se transformado
no meio hábil com que contava a ideologia conservadora para impor a
todos os leitores, indistintamente, uma mesma visão do mundo,
arbitrariamente selecionado pelo poder para funcionar como “o único
saber” convalidável pela comunidade. Reagindo contra isso, a
composição cubista conterá muitas e contrárias perspectivas,
derivadas de outros tantos pontos de vista, colocados tanto para
relativizar o conhecimento da cena quanto para incluir na obra o
caráter interpelativo e contraditório de uma mesma realidade, que,
sujeita, como tudo o mais, ao tempo, com a mudança dele muda sem
cessar. (LOPES, 1997, p. 24).

O princípio básico do cubismo é o de reestruturar os simulacros do mundo


natural sob a forma de figuras geométricas. Para o pintor francês também cubista Paul
Cézanne, todos os elementos da natureza poderiam ser reduzidos a três formas
geométricas básicas: as esferas, os cones e os cilindros. A escola cubista, dessa forma,
trabalhava com o princípio básico de remodelar, na tela, a realidade sob a perspectiva
dessas três configurações geométricas.
O efeito de sentido buscado pelos cubistas não será mais o referencial, de
similaridade extrema com o mundo natural. O cubismo, inicialmente, provocou grande
estranhamento justamente por afastar-se do modelo clássico de pintura, que reproduzia
as formas extra-textuais da maneira mais semelhante possível às que se apresentavam
no mundo natural. O cubismo mostrava outra perspectiva de enxergar a realidade. O
olhar viciado para o “já visto” foi substituído por uma perspectiva anti-realista de
enxergar os elementos tradicionalmente representados pela prática realista, que se fazia
por meio de uma desestruturação da forma realista, seguida por uma reestruturação em
termos cubistas.
Primeiramente, era instaurado o processo de desestruturação da forma velha: era
selecionada uma figura-tipo realista (uma arvora, uma mulher, uma criança, um vaso
etc.) e, a seguir, essa figura era analisada em suas unidades mínimas:

a) A figura-tipo era escolhida a partir de um código mimético, dentro


do qual, por convenção, ela funcionaria como o esquema copiativo do
objeto a pintar: uma moça nua, digamos.
b) Essa figura-tipo era submetida à análise – etimologicamente ao
recorte, que a segmentava em suas “partes constituintes” a partir do
código analógico (para a “mulher nua”, por exemplo, recortada em
cabeça, tronco, membros, nariz, braços, mãos, seios etc.); no caso,
como se tratava, até aqui, de um código realista, mimético e
analógico, os recortes seguiam as linhas de força da figura-tipo
anatômica. (LOPES, 1997, p. 23).

Após essa etapa de desestruturação das formas tradicionais, segue-se o processo


de reestruturação da figura-realista em figura-cubista, por meio da reinterpretação das
unidades mínimas analógicas em unidades mínimas cubistas e de sua reorganização
pelo princípio da harmonia entre os contrários de um mesmo eixo:

c) O momento em que cada unidade constituinte mínima do código


realista assim recortada era, a seguir, reescrita sob a forma
esquemática de um sólido ou de uma figura geométrica elementar. Na
consonância do que apregoava Cézanne, para quem “tudo, na
natureza, se modela segundo a esfera, o cone e o cilindro”, um nariz
se reescrevia como um triângulo (visto de frente), um seio se reduzia à
figura-tipo geométrica de um cone ou uma esfera, um pescoço se
condensava no esquema figurativo de um cilindro, e

d) O movimento da reconfiguração, quando as formas-tipo


geométricas eram remontadas por meio do procedimento da
composição sintética, cujo princípio coerentizador era dado pela
harmonia proporcionada pelo jogo travado entre propriedades
contrárias: uma composição era ordenada, agora, pela articulação
complementar, em diferentes planos, de gramas cromáticas contrárias,
ou de tonalidades opostas (tonalidade clara / tonalidade escura), ou da
sobreposição de perspectiva e contra-perrspectiva (focalização
ascendente / focalização descendente) etc. O resultado é que as
composições cubistas, mormente as de Picasso, ainda quando pareçam
estar desagregando-se por efeito de uma violenta implosão,
mostrando-se sempre admiravelmente equilibradas, dotadas de ritmo e
harmonia. (LOPES, 1997, p. 23-24).

A partir do conhecimento da concepção do modelo cubista, torna-se muito mais


palpável a análise da obra “Mulher deitada e cachorro”, de Di Cavalcanti. O tema que se
sobressalta na tela é bastante clássico: a nudez e a beleza feminina, que foi explorada
por diversas escolas de pintura desde a Antiguidade Clássica (a exemplo da própria
Vênus de Ticiano). Em sua obra, porém, Di Cavalcanti subverte a beleza feminina
clássica de modo a mostrá-la em outros ângulos, diferentes dos já explorados. Faz-se
necessário, a fim de compreender os efeitos de sentido provocados por “Mulher deitada
e cachorro”, verificar detalhadamente as técnicas mobilizadas pelo enunciador.
As figuras-tipo principais presentes no mundo natural selecionadas pelo
enunciador da obra foram: 1) a mulher que se encontra deitada numa espécie de divã e
aparece no plano principal da tela, 2) o cachorro que se encontra ao seu lado, 3) duas
mulheres localizadas no plano inferior da tela. É interessante observar que se trata das
mesmas figuras dispostas na “Vênus de Urbino de Ticiano”, no entanto, o tratamento
dado a essas figuras é menos particularizante, embora, como em qualquer obra
figurativa, apresenta o elemento da mimese, e é essa a figura que será mimetizada em
tela. O processo mimético, porém, não obedece ao modelo clássico tradicional. O
modelo de mulher retratado está longe de ser o europeu. O corpo curvilíneo e bem
delineado da mulher que se encontra no plano principal obedece ao estereótipo da
mulher brasileira, tão exaltada na obra de Di Cavalcanti, e, na figura da mulher em
segundo plano, do lado direito da tela, é possível verificar nítidos traços de origem
africana. Há também ausência de proporcionalidade no desenho dos corpos nus, bem
como uma variação de cores que jamais corresponderia à “realidade”.
O processo mimético, dessa forma, muito escapa ao modelo clássico.
Primeiramente as figuras-tipo foram desestruturadas a partir da segmentação de suas
partes constituintes: cabeça, tronco, membros, nariz, boca, braços, seios etc.
Posteriormente à etapa da desestruturação, segue a da reestruturação das figuras-tipo
(mulher e cachorro) nos moldes cubistas. As unidades constituintes da figura feminina
foram reelaboradas segundo uma unidade geométrica elementar: ombros, nariz e órgão
sexual foram reescritos em triângulos, braços, pernas e tronco em losango e assim por
diante. Em seguida, houve uma reorganização dessas formas-tipo, configuradas em
figuras geométricas, de acordo com a harmonia proporcionada pelos contrários, o que,
inicialmente, pode causar grande estranhamento, porém, quando observada
cuidadosamente, a tela mostra-se perfeitamente equilibrada, pois ela obedece a uma
estrutura interna, a que se mostra coerente.
O propósito do pintor, ao desautomatizar a representação clássica e tradicional,
principalmente da figura feminina — especialmente uma que dialoga com a vênus de
Ticiano — é certamente o de provocar estranhamento no enunciatário e fazê-lo exercitar
outras formas de olhar o mundo. O processo de desestruturação e reestruturação
processado na montagem da tela em questão cria o efeito de sentido de multiplicidade:
as três mulheres podem ser observadas de diversos ângulos, como se elas estivessem a
desfilar diante do enunciatário que as aprecia.
Essa simultaneidade de ângulos pode ser constatada com clareza quando
observamos a figura feminina em segundo plano à esquerda: ela pode ser vista de perfil
e de frente concomitantemente. Essa construção provoca o efeito de sentido de
pluralidade, que se destaca em toda a tela e estende-se à escola cubista de maneira geral,
que, por excelência, interrompe a visão fixa e monocular presente nas pinturas
renascentistas. Di Cavalcanti apropriou-se com bastante autenticidade da influência
cubista, mesclando-a com elementos da cultura brasileira, como a própria escolha de
cores, que prioriza o azul e o amarelo, chamando atenção para as cores da bandeira
brasileira.
O cubismo, como se pôde observar por meio da breve análise da tela de Picasso,
busca romper com a visão monocular convencionada desde a Antiguidade Clássica,
porém, sua arte não deixa de ser por excelência mimética e, portanto, figurativa, já que
não há um abandono do referente. A diferença entre a obra renascentista e cubista
encontra-se justamente nas sutilezas da natureza imitativa do objeto, sendo a primeira
icônica e a segunda figural.
A literatura brasileira moderna, como muito bem explicitou a Semana de 1922,
expoente do movimento modernista no Brasil, nasceu fortemente vinculada às artes
visuais, de modo que as características de vanguarda possíveis de se observar nas artes
plásticas transmutaram-se também para a poesia e para a prosa do século XX, como é
possível observar no poema “Vênus” (2008), de Carlos Drummond de Andrade:

Vênus

Vênus de calça comprida é


Vênus calcianadiomênica
Vênus calcispúmica
Vênus calcitrite

Vênus de calça comprida


é Vênus calcirizica
Vênus calcigênitrix
Vênus calcimílica

De calça comprida Vênus é Vênus


calcicranachiana
calciarlesiana
calcicapitulina

Calcibelvedérica
é Vênus de calça comprida
calcielusiana
calcitriptolêmica

Vênus calcipersefônica
Vênus calciproserpínica
de calça comprida
Vênus calcicarôntica

Calcifarnésica Vênus
Vênus calcilaomedôntica
Vênus calcionfálica
Vênus é de calça comprida

Calcimegárica
Vênus calciedípica
Vênus calciateneica
— de calça comprida — calcidedálica

Vênus calcimeleágrica
Vênus calciargonáutica
Vênus calcibelerofôntica
de calça comprida Vênus

Vênus calcidanáidica
Vênus calchemofroidítica
Vênus calciocomprida
e sempre, nua, Vênus.

(DRUMMOND, 2008, p. 200)

O sintagma “Vênus de calça comprida”, que aparece já no primeiro verso do


poema, é desdobrado e ressignificado no decorrer de todo o texto, em que se pode
verificar a formação de diversos neologismos a partir da união de novos vocábulos à
expressão “calça comprida”, provocando um deslizar dos significantes que,
consequente, traz novos significados ao poema de Drummond.
Embora Drummond não seja considerado um poeta concretista e sua obra tenha
se desenhado muito antes do concretismo surgir como movimento literário no Brasil, o
poema “Vênus”, especificamente, possui em sua essência muitos dos princípios básicos
da poesia concreta, e chama atenção, dentro da própria coerência da obra
drummondiana, por seus aspectos singulares, que antecederam aquilo que, mais tarde,
viria a se estabelecer com a poesia concreta de Haroldo e Augusto de Campos e Décio
Pignatari, seguidos por tantos outros. Ainda que “Vênus” (2008) não apresente sua
organização pautada em critérios gráficos, o poema é orientado pelos valores fônicos
das palavras, de modo que os laços da sintaxe lógico-discursiva do texto acabam
rarefeitos em prol de uma conexão direta entre a matéria sonora dos vocábulos,
orientada principalmente pela associação paronomástica.
O fio condutor da análise do poema “Vênus” (2008) é a correlação com a pintura
e com o movimento cubista, de modo que, estender a análise para além dessa proposta,
extrapolaria os propósitos do presente artigo. As reflexões, portanto, encontram-se
pautadas sobre as relações entre os procedimentos verbais e pictóricos, sempre tendo
como pressuposto que “a comparação e a elaboração de analogias não envolvem um
esforço em fazer uma arte legislar por outra ou obscurecer suas diferenças ou destruir
sua autonomia” (RICHARDS, 1971, p. 124), ao contrário, procuram buscar a identidade
a partir da diferença.
O poema provoca no leitor um estranhamento inicial, causado pela imagem nada
óbvia da figura mitológica de Vênus “de calça comprida”, tão incomum quanto a
estátua Vênus de Salvador Dali, releitura da Vênus de Milo, que, em lugar do abdome
delineado e das formas femininas, apresentava gavetas de armário. Em seguida, esse
estranhamento não diminui, pois, a partir, primeiramente, de uma organização sonora, o
sintagma “calça comprida” é fundido a outras expressões raras, em geral, de tradição
greco-romana, como nomes de personagens literários e mitológicos e regiões
longínquas, a exemplo de6: Triptólemo, Anadiomeno, Perséfone, Proserpina, Caronte,
Laumedonte, Édipo, Dédalo, Meleagro, Argonauta, Belerofonte, Mégara, Danardes,
Hermafrodita, Onfalo, Captulina, Lusiana, Arles, Belvedere, etc. Todos esses nomes,
concatenados por meio da relação sonora que se estabelece entre eles, mesclam-se às
expressão “de calça comprida”, compondo uma imagem de Vênus, que agrega uma
multiplicidade de referências clássicas, porém, vestidas sob uma roupagem moderna —
de calça comprida? — que desautomatiza completamente o olhar do leitor acostumado,

6
Em virtude do espaço delimitado e dos objetivos deste artigo, optou-se por não trazer, uma a uma, as
definições de cada referências, mas em abordar o sentido geral que elas, juntas, trazem ao poema, já que o
objetivo é, justamente, verificar de que modo o processo de organização do texto verbal e do texto
pictórico se aproximam.
desconstruindo a imagem de Vênus consolidada pela tradição clássica. As referências
clássicas que aparecem no texto estão ali para retomar a tradição, porém, a imagem da
calça comprida subverte aquilo que é clássico, apresentando-o, literalmente, sob uma
nova roupagem.
O processo composicional adotado por Drummond, ainda que com as
especificações próprias do texto verbal, mobiliza uma organização muito semelhante
àquela utilizada por Di Cavalcanti em sua releitura da Vênus de Urbino, ou seja, o
poema em apreço faz com a linguagem verbal um movimento semelhante àquele que
pode ser visto em telas cubistas, apropriando-se do processo de montagem que vai da
desestruturação (seleção da figura-tipo realista; análise por segmentação das unidades
mínimas analógicas) à reestruturação (redução ou reinterpretação das unidades mínimas
realistas em unidades mínimas cubistas; reconfiguração da figura pelo princípio da
harmonia entre os contrários de um mesmo eixo). No caso, a figura-tipo selecionada é a
Vênus mitológica. A isotopia que define tal imagem é criada a partir dos diversos
vocábulos citados acima, utilizados para caracterizar essa Vênus contemporânea. Tais
expressões, no entanto, encontram-se segmentadas: O neologismo “calcicaptulinica”,
por exemplo, segmenta as unidades dos vocábulos calça e Capitulina. Esses vocábulos
são, no entanto, reestruturados sob uma nova forma e, juntos, desautomatizam a
percepção do leitor, configurando a imagem poética de uma “Vênus de calças”,
moderna, mas que dialoga com toda a tradição clássica e a ressignifica., vestindo-a de
uma nova roupagem, que, no poema, é configurado pela imagem da calça jeans. Essa
ruptura com a tradição e, consequentemente, com a “realidade-padrão” é realizada com
base nos mesmos termos que se pode também verificar na tela de Di Cavalcanti, de
modo que é interessante observar como os procedimentos de ruptura com a tradição se
constroem de forma coerente, pensando nos fenômenos artísticos brasileiros do século
XX.

Considerações finais

As reflexões que recaíram sobre as telas “Vênus de Urbino”, de Ticiano, e


“Mulher deitada e cachorro” (1954), de Di Cavalcanti, e sobre o poema Vênus”, de
Drummond, procurou explicitar os diferentes procedimentos mobilizados, tanto pelo
texto verbal, quanto pelo texto pictórico, para fabricar efeitos de sentido diferentes,
sejam eles de realidade ou não.
Ticiano, tal qual os demais pintores e poetas clássicos, configurou em sua tela o
efeito de sentido de realidade e verdade a partir de um trabalho mimetizante que
buscava a reprodução mais próxima possível do mundo natural. Di Cavalcanti e
Drummond, por sua vez, não abandonaram a realidade como referente, porém, o
trabalho de imitação não mais consistia em reproduzir a realidade e a tradição, mas em
recriá-las sob outros ângulos e perspectivas, produzindo um efeito de sentido de
multiplicidade.
É, no entanto, uma reflexão ingênua afirmar que a “Vênus de Urbino” de
Ticiano é mais real do que a “Mulher deitada e cachorro” , de Di Cavalcanti, e a
“Vênus”, de Drummond. Ocorre que as obras clássicas não são mais ou menos reais do
que as modernas, elas apenas apresentam um efeito de sentido de real, uma ilusão
referencial não almejada pelos modernistas.
Ticiano manipulou seus enunciatários da mesma forma que os Di Cavalcanti e
Drummond. Ele se vale de uma série de estratégias (na pintura: angulação, perspectiva,
jogo de cores etc. Na poesia: figuratividade, recursos sonoros, seleção vocabular etc.)
para provocar no enunciatário a ilusão de estar diante dos próprios elementos da
realidade, contudo, trata-se apenas de uma ilusão de realidade. Os modernistas, por sua
vez, também exercem a manipulação sobre o enunciatário, mas com o intuito de fazê-lo
perceber outras formas de conceber a realidade além daquela “já vista” e “confirmada”
pela tradição.
Seria uma inverdade, portanto, afirmar que uma obra é mais real que a outra, já
que ambas apoiam-se de igual maneira no discurso do mundo natural, reproduzindo-o
na arte, contudo, de formas diferentes. Ticiano buscou criar o efeito de realidade por
meio da ilusão referencial, enquanto Di Cavalcanti e Drummond pretendiam
desautomatizar o campo de visão do enunciatário por meio do estranhamento,
provocando um efeito de sentido de multiplicidade.

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THAMOS, Márcio. Poesia e imitação: a busca da expressão concreta. Dissertação


(Mestrado em Letras). Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista,
Araraquara, 1998.

ANEXO A:
ANEXO B

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