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VOLUME XII
1º semestre de 2017
Editorial
Prof. Me. André Luiz ALSELMI (Centro Universitário Barão de Mauá / Centro Universitário
Estácio de Ribeirão Preto)
Profa. Ma. Elaine Christina Mota (Centro Universitário Barão de Mauá)
Prof. Dr. Paulo Eduardo de Barros Veiga (Centro Universitário Barão de Mauá / Centro Universitário
Moura Lacerda)
Profa. Ma. Renata Maria Cortez da Rocha Zaccaro (Centro Universitário Barão de Mauá)
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http://www.baraodemaua.br/comunicacao/publicacoes/vocabulo/volumeXII.html Página 1 de 1
Do pictórico ao verbal: entre a ilusão e a reestruturação do real
Resumo
O presente artigo tem como objetivo refletir sobre o conceito de realidade, quando
aplicado à esfera das artes, especificamente no que condiz à arte pictórica e à arte
verbal, demonstrando como cada uma delas trabalha, por meio de procedimentos
específicos, os efeitos de sentido que se aproximam ou se distanciam do “real”. Tanto
na literatura quanto na pintura, o real nada mais é do que um efeito de sentido que, por
meio de procedimentos miméticos, almeja provocar, no enunciatário, a ilusão de
realidade, qual seja, a ilusão referencial. Ocorre, porém, que a ilusão referencial não é a
única possível. Existem outras possibilidade de explorar as sutilezas da natureza
imitativa, e as obras de arte modernas são um exemplo da possibilidade de
reestruturação dos elementos do mundo natural sob perspectivas que buscam
desautomatizar o olhar acostumado à tradição e romper com a visão monocular
convencionada desde a Antiguidade Clássica. A fim de demonstrar o processo que vai
da ilusão à reestruturação do real, este artigo apresenta como córpus a tela “Vênus de
Urbino”, de Ticiano — de estética realista — e as obras “Mulher deitada e cachorro”, de
Di Cavalcanti, e “Vênus”, de Drummond, ambas de estética modernista.
Abstract
This article aims to reflect on the concept of reality, when applied to the sphere of the
arts, specifically in what respects pictorial art and verbal art, demonstrating how each
of them works, through specific procedures, the effects of meaning that approach or
distance themselves from the "real." In both literature and painting, reality is nothing
1
Doutoranda na UNESP, Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, com período sanduíche cursado
na Université Paris 8. Pesquisa financiada pela CAPES. Araraquara, 14801090, SP,
marcelacfj@hotmail.com.
more than an effect of meaning which, through mimetic procedures, seeks to provoke
the illusion of reality or, in other words, the referential illusion. However the referential
illusion is not the only one possible. There are other possibilities of exploring the
subtleties of imitative nature, and modern works of art are an example of the possibility
of restructuring the elements of the natural world under perspectives that seek to
changes the tradition and break with the monocular vision agreed upon since Classical
Antiquity. In order to demonstrate the process that goes from the illusion to the
restructuring of the real, this article presents as a corpus the painting "Venus of
Urbino", by Titian — from the realism — and the works “Mulher deitada e cachorro”
by Di Cavalcanti, and "Venus" by Drummond, both from modernism.
A discussão sobre o conceito de arte, seja ela pictórica, seja verbal, perpassa por
diversos momentos históricos desde a Antiguidade Clássica, bem como por variadas e
diferentes percepções teóricas, que procuram explicar e sistematizar, cada uma à sua
maneira, a natureza do fenômeno artístico. Destacam-se, nesse âmbito, as ideias de
Platão (2007) e Aristóteles (2008), que, ainda hoje, são tomadas como referência nos
estudos estéticos.
Platão (2007) concebia a arte como uma imitação imperfeita da realidade, uma
espécie de imitação em segundo grau, de modo que, na concepção do filósofo, os
poetas, assim como os demais artistas, deveriam ser expulsos da polis grega em
decorrência das ilusões distorcidas sobre os elementos do mundo natural que apareciam
nas obras de arte. É certo que, com os avanços teóricos no campo das Artes, as ideias de
Platão (2007) passaram a ser revistas e aprimoradas pelos estudiosos que lhe sucederam.
Entre seus sucessores, destaca-se, ainda na Antiguidade Clássica, Aristóteles (2008) e
sua teoria da arte como imitação, que, ainda hoje, se configura como a base de diversos
segmentos teóricos que visam a investigar os processos artísticos.
Em sua Poética (2008), Aristóteles afirma ser, a arte, imitação pela palavra.
Desse acerto, provém o tratado teórico que, até recentemente (mais especificamente até
o início dos movimentos de vanguarda instaurados no século XIX) influenciou de modo
soberano o desenvolvimento dos diversos movimentos artísticos e de seus
desdobramentos teóricos. Houve um avanço notável em relação às ideias platônicas,
afinal Aristóteles (2008) não concebe a arte como uma imitação imperfeita, porém ele
continua a crer que ela se define apenas por reproduzir os elementos da realidade, e,
quanto mais similares ao mundo natural forem os objetos artísticos, maior o valor a ser
atribuído à obra de arte em questão, motivo pelo qual a arte realista atinge primazia
quando concebida segundo os princípios da arte como imitação.
O episteme aristotélico da mimese regeu de forma contínua o modo de conceber
as artes desde a Antiguidade até o início do século XIX. A dificuldade no que concerne
à teoria em questão é que ela se atém, sobretudo, ao parecer. Seria possível, no entanto,
afirmar que, de fato, o artista retrata os elementos da realidade propriamente dita?
Acredita-se que não. O que é retratado, por exemplo, em uma tela realista, é apenas um
elemento convencionado como real pela sociedade. Não se trata do real em si:
A partir do século XIX, contudo, essa abordagem teórica que concebe a arte
como imitação passou a perder sua força de convencimento, pois surgiram outras
formas de expressão em todos os campos artísticos (movimentos estéticos de
vanguarda) que exigiam uma perspectiva teórica aquém daquela que estava tão bem
assentada na História da Arte. Houve então uma descontinuidade epistemológica na
forma de pensar as artes e, nesse contexto, surge a teoria semiótica francesa, que se
ocupa de estudar as mais diversas manifestações discursivas, dentre elas, a linguagem
visual e a linguagem verbal:
A arte, embora apresente grande vocação à realidade, pelo fato de ter como base
o referente, não é uma mera imitação do real, já que, a partir de diversos mecanismos —
diferentes no texto verbal e visual, como será especificado adiante — ela busca criar a
ilusão de realidade (ou ilusão referencial) no enunciatário, levando-o a crer, por
exemplo, que aquilo que está pintado na tela é uma reprodução de determinado
elemento da realidade:
Além do efeito de sentido de realidade, uma obra pode apresentar muitos outros
efeitos, como por exemplo: irrealidade, surrealidade, abstração, dentre muitos outros. É
fundamental, contudo, observar que não é possível dizer que uma obra de arte clássica
realista seja mais “real” do que uma obra surrealista, cubista, impressionista ou
expressionista, por exemplo. Essa será a questão motriz que orientará os
desdobramentos do presente artigo.
O conceito de figuratividade desenvolvido pela teoria semiótica pode auxiliar a
compreender esse fenômeno tanto nas artes pictóricas como nas artes verbais. A
figurativização é o procedimento que reveste plasticamente o discurso a fim de que ele
se aproxime o máximo possível do referente (mundo natural). Supõe-se o seguinte
programa narrativo: um sujeito disjunto de um objeto investido de um valor como, por
exemplo, o poder (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 211). Até então, há uma estrutura
absolutamente genérica, que poderá ser figurativizada de diversas maneiras e
manifestada por meio de diversos textos, como o literário, o pictórico, o
cinematográfico etc. Há também muitas maneiras de contar a mesma história. O objeto-
valor pode ser um automóvel, uma mulher, um cargo na empresa etc. Conforme a
coerência interna do texto, as escolhas do sujeito da enunciação revestirão as estruturas
narrativas com figuras do mundo natural, instalando isotopias no discurso. O processo
de figurativização contempla, porém, dois níveis diversos: a figuração, momento em
que os temas são convertidos em figuras, e, quando logra chegar a tanto, também o da
iconização, que toma as figuras já constituídas e as dota de um revestimento
particularizante, de modo a produzir uma ilusão referencial (GREIMAS; COURTÉS,
2008, p. 251).
Quando se trata do texto verbal, uma das maneiras possíveis de alcançar esse
último nível do discurso figurativo é homologar o plano de expressão ao plano de
conteúdo do texto de modo a provocar coincidências que conduzam à ilusão de
realidade: “essa iconicidade, portanto, nada mais é do que uma forma dentre outras
possíveis de explorar componentes figurativos da expressão linguística” (BERTRAND,
2003, p. 208). O que particulariza o texto poético, diferenciando-o de outros tantos
discursos que tratam de temas semelhantes, é o trabalho sobre a expressão. O conteúdo
de um poema poderia ser manifestado por meio da linguagem predominantemente
referencial, e, sem dúvida, seria muito mais facilmente compreendido, muito embora a
função poética, provavelmente, não fosse mais dominante. O poeta, no entanto, não
pretende transmitir informações, mas provocar um efeito estético a ser apreendido pelo
leitor. Nesse contexto, a figuratividade assume papel fundamental, uma vez que nos
coloca em contato com as superfícies do discurso, produzindo e restituindo
parcialmente significações análogas às de nossas experiências perceptivas mais
concretas (BERTRAND, 2003, p. 154).
2
Parte do acervo de Los Angeles County Museum of Art.
O cachimbo do quadro seria o correspondente do que a semiótica francesa denomina
designatum, ou seja, uma representação do cachimbo existente na realidade. Magritte
desmistifica, então, o senso comum que concebe os elementos presentes na arte como
correspondentes diretos dos elementos do mundo natural.
Os questionamentos e hipóteses que René Magritte explora em suas obras vai ao
encontro dos preceitos das teorias da figuratividade e da veridicção, desenvolvidos pela
semiótica francesa. Ambos concebem que a arte, em suas mais diversas acepções,
fabrica outra realidade, paralela àquela do mundo natural, que pode ser mais semelhante
a ele, tal qual ocorre na pintura renascentista, por exemplo, ou se afastar deveras do
mundo extra-texto, como se pode observar nas próprias telas de Magritte, que
subvertem a realidade, remodelando os elementos do mundo natural em uma ordem
completamente diferente da que o olhar acostumado e automatizado experimenta.
3
Que se encontra em exibição na renomada Galleria degli Uffizi, localizada na cidade de Florença, na
Itália. / Observar anexo A.
4
Deusa do amor, correspondente à Afrodite grega.
informações produzidas pelo enunciador, mas é um produtor do discurso, que constrói,
interpreta, avalia, compartilha ou rejeita significações”.
O primeiro elemento que se destaca na tela é a figura de Vênus, que, disposta
horizontalmente, ocupa todo o primeiro plano da pintura. Como é habitual, a julgar
pelas demais representações da deusa do amor nas artes plásticas, ela se encontra
completamente nua. Os padrões de beleza reproduzidos são aqueles tão exaltados
durante o período renascentista: pele alva, formas arredondas, traços faciais finos e
delicados, ou seja, trata-se da reprodução do modelo europeu, convencionado social e
culturalmente como o ideal de beleza.
Em busca de criar uma ilusão referencial no enunciatário, a deusa da beleza e do
amor não poderia ser pintada de outra forma que não aquela que corresponde à tradição
clássica. Há um reconhecimento imediato por parte do enunciatário que visualiza pela
primeira vez a Vênus de Ticiano. O efeito de sentido não seria o mesmo se o enunciador
tivesse optado por uma figura feminina que fugisse dos padrões estéticos da época,
difundidos pela tradição. A noção de proporcionalidade do corpo feminino também
obedece às formas da mulher presente no mundo natural, o que contribui de forma
efetiva para o reconhecimento do “já visto” e a consequente aceitação por parte do
enunciatário da ilusão referencial causada na pintura de Vênus.
Ainda sobre a figura feminina em relevo, é possível notar que ela se encontra
numa posição tal como se estivesse posando para alguém. O próprio olhar da Vênus está
direcionado para um sujeito que se encontra fora da tela. Não se tem acesso, porém, a
essa segunda figura, que fica apenas sugerida. É possível pensar em uma relação
metalinguística, na qual Vênus estava a observar aquele que a pintava, ou mesmo na
possibilidade de que esse alguém desconhecido para quem ela olha fixamente seja o
enunciatário do quadro.
A noção de perspectiva também em muito contribui para provocar a ilusão
referencial. O quadro é dividido em dois planos, o primeiro, em que se encontra Vênus
nua, e o segundo, localizado na metade superior à direita, em que se encontram duas
mulheres mexendo em um baú e, muito provavelmente, segurando as roupas de Vênus.
Há entre os dois planos uma grande noção de profundidade, que provoca, no
enunciatário, juntamente aos demais elementos do quadro, a impressão de realidade.
A seleção das cores no quadro também procura imitar da forma mais similar
possível as cores dos elementos do mundo natural. O céu é azul, a árvore verde, a pele
bege etc. Em um quadro modernista — como o de Di Cavalcanti, a ser comentado
posteriormente — que pretende romper com imitação fiel do real, o céu pode ser verde,
a árvore azul e a pele amarela, por exemplo.
A partir dessa análise dos elementos do conteúdo e da expressão da tela, é
possível constatar que a “Vênus de Urbino”, de Ticiano, foi construída para fabricar a
realidade aos olhos de seus espectadores, e ela o faz com muita competência, por meio
dos recursos explicitados acima.
A reestruturação da realidade
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Que se encontra se encontra em exibição no Acervo Banco Itaú S.A. - São Paulo, SP. / Observar anexo
B.
completamente abstrata – e busca novas formas de expressão, sob diferentes
perspectivas:
Vênus
Calcibelvedérica
é Vênus de calça comprida
calcielusiana
calcitriptolêmica
Vênus calcipersefônica
Vênus calciproserpínica
de calça comprida
Vênus calcicarôntica
Calcifarnésica Vênus
Vênus calcilaomedôntica
Vênus calcionfálica
Vênus é de calça comprida
Calcimegárica
Vênus calciedípica
Vênus calciateneica
— de calça comprida — calcidedálica
Vênus calcimeleágrica
Vênus calciargonáutica
Vênus calcibelerofôntica
de calça comprida Vênus
Vênus calcidanáidica
Vênus calchemofroidítica
Vênus calciocomprida
e sempre, nua, Vênus.
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Em virtude do espaço delimitado e dos objetivos deste artigo, optou-se por não trazer, uma a uma, as
definições de cada referências, mas em abordar o sentido geral que elas, juntas, trazem ao poema, já que o
objetivo é, justamente, verificar de que modo o processo de organização do texto verbal e do texto
pictórico se aproximam.
desconstruindo a imagem de Vênus consolidada pela tradição clássica. As referências
clássicas que aparecem no texto estão ali para retomar a tradição, porém, a imagem da
calça comprida subverte aquilo que é clássico, apresentando-o, literalmente, sob uma
nova roupagem.
O processo composicional adotado por Drummond, ainda que com as
especificações próprias do texto verbal, mobiliza uma organização muito semelhante
àquela utilizada por Di Cavalcanti em sua releitura da Vênus de Urbino, ou seja, o
poema em apreço faz com a linguagem verbal um movimento semelhante àquele que
pode ser visto em telas cubistas, apropriando-se do processo de montagem que vai da
desestruturação (seleção da figura-tipo realista; análise por segmentação das unidades
mínimas analógicas) à reestruturação (redução ou reinterpretação das unidades mínimas
realistas em unidades mínimas cubistas; reconfiguração da figura pelo princípio da
harmonia entre os contrários de um mesmo eixo). No caso, a figura-tipo selecionada é a
Vênus mitológica. A isotopia que define tal imagem é criada a partir dos diversos
vocábulos citados acima, utilizados para caracterizar essa Vênus contemporânea. Tais
expressões, no entanto, encontram-se segmentadas: O neologismo “calcicaptulinica”,
por exemplo, segmenta as unidades dos vocábulos calça e Capitulina. Esses vocábulos
são, no entanto, reestruturados sob uma nova forma e, juntos, desautomatizam a
percepção do leitor, configurando a imagem poética de uma “Vênus de calças”,
moderna, mas que dialoga com toda a tradição clássica e a ressignifica., vestindo-a de
uma nova roupagem, que, no poema, é configurado pela imagem da calça jeans. Essa
ruptura com a tradição e, consequentemente, com a “realidade-padrão” é realizada com
base nos mesmos termos que se pode também verificar na tela de Di Cavalcanti, de
modo que é interessante observar como os procedimentos de ruptura com a tradição se
constroem de forma coerente, pensando nos fenômenos artísticos brasileiros do século
XX.
Considerações finais
Referências bibliográficas
ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. Trad. de Jaime Bruna.
12. Ed. São Paulo: Cultrix, 2008.
FIORIN, José Luiz. Em busca do sentido: estudos discursivos. São Paulo: Editora
Contexto, 2008.
HEGEL, G. Curso de estética: o sistema das artes. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
ANEXO A:
ANEXO B