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O filme trata de resistência política e assujeitamento, temática ilustrada na cena

em que as personagens observam da janela do escritório em que estão uma inflamada


passeata. O detalhe da cena está em que as personagens apenas tentam, mas não
conseguem ver o que se passa fora, uma vez que isolados acusticamente e em andar tão
elevado que mal discernem as distantes figuras abaixo.
Resistência e assujeitamento, a quê? As pistas sonoras que nos são dadas,
indicam que um caos se passa abaixo do escritório. Presume-se assim que a passeata faz
frente à políticas extremamente aviltantes e poderosas. Seguindo a trama, no entanto,
podemos entender que a crítica se debruça sobre as técnicas organizacionais que,
através da criação de situações e intervenções pontuais, visam facilitar a expressão da
suposta natureza empreendedora e competitiva de seus objetos. Neste ambiente ótimo
cabe, então, apenas acompanhar o jogo “natural” em que concorrem livremente os
indivíduos.
O filme apresenta uma técnica radical, em que estes pressupostos são levados ao
extremo. Em geral, nos processos seletivos que utilizam de técnicas de dinâmica de
grupo, atenta-se menos ao resultado final de uma competitiva e mais às nuances de
caráter que se apresentam ao longo do jogo. Apesar dessa discrepância é importante
ressaltar que os formatos das técnicas do filme e da realidade são irmãos: unem saber
(da psicologia, sociologia) e poder (administrativo), buscando a máxima eficiência na
gestão.
Ainda acompanhando a relação que o filme apresenta acerca do isolado
escritório, onde se desenrola uma rede aparentemente restrita de acontecimentos, e a
rua, denota-se que o processo seletivo, de acordo com as novas teorias do campo do
trabalho, deve ser entendido como apenas o primeiro passo de uma política integrada de
gestão. A seleção deve se ligar às políticas de desenvolvimento e por fim, as de
desligamento. Isto é, o processo seletivo não termina de todo no momento da
contratação, incorporara sim novos formatos e objetivos: às demais políticas da empresa
devem se acoplar micro-processos seletivos, que as tornem mais eficazes,
potencializando-as. Da mesma forma, os processos seletivos serão entendidos como
oportunidades uma primeira estratégia de desenvolvimento, isto é, a empresa que
integrar seus processos otimizará sua gestão. Com isso inferimos que, se a personagem
ganhadora imagina que os momentos de tensão acabaram, a tendência é que não, que o
processo pelo qual passou se reproduza de forma generalizada ao longo de sua vida na
empresa.
Outro movimento empresarial, que é na verdade extensão desse anteriormente
apresentado, é a das políticas pós-desligamento, o que pressupõe políticas pré-seletivas,
ainda sob a lógica da integração dos processos. Isto é, os braços das empresas gora
devem alcançar territórios para além delas próprias enquanto estabelecimentos.
Apresento essas informações apenas para reforçar o vínculo trazido pelo filme
entre aquilo que se passa nos gabinetes de Recursos Humanos (Gestão de Pessoas,
Talentos) e o corpo social. Levantei movimentos no interior das empresas, de
potencialização da política de seleção, mas certamente poderíamos observar um
movimento que vem “de fora”, ainda que essas oposições fora-dentro seja apenas
artifício.
O empreendedorismo entrou explicitamente no vocabulário político no contexto
democrático-neoliberal inglês e norte-americano dos anos 1980 e desde então só vem a
se intensificar enquanto compreensão ao mesmo tempo do homem e da melhor forma de
geri-lo. No caso, tratamos do empreendedorismo enquanto o entendimento do homem
enquanto portador de uma subjetividade (um eu, self) aspirante à autonomia e liberdade,
que busca realização pessoal através de seus atos de escolha. Ao governo dos homens,
caberia, portanto, considerar eticamente estes aspectos da natureza humana. Fazendo
isso, mais do que um governo ético, teríamos um governo eficiente, pois que se fazendo
mediante os próprios movimentos dos governados. Sai a figura do governante, daquele
que conduz, e entra a figura do facilitador, aquele que investe na auto-condução dos
indivíduos, na expressão de sua natureza empreendedora.
A psicologia e suas técnicas são fundamentais para a formulação destes
enunciados e sua consolidação nos mais diversos campos sociais, inclusive nas
empresas. Como dois marcos desta relação entre saber psicológico e estratégias de
gestão podemos apontar a obra de Kurt Lewin e de Abrahaam Maslow, eminentes
psicólogos. O primeiro é o pai da abordagem dinâmica quanto a grupos, o qual enfatiza
a correlação entre democracia e saúde psicológica. O segundo elaborou um modelo
administrativo frontalmente oposto à Administração Científica de Taylor, qual seja a
Administração Eupsíquica, que visaria unir as aspirações individuais e empresariais,
potencializando-as. Para isso a organização deveria modelar-se em favor da
empreendedora natureza humana, formulada exatamente nos termos do parágrafo
anterior.
O que busquei levantar nessa explanação é que, de fato, as estratégias de
Recursos Humanos encontram consonância com o que se passa fora do escritório, em
estratégias mais globais de gestão. Também, que a psicologia é um saber fundamental
no estabelecimento desta ponte, entre os aspectos profissionais e pessoais, individuais e
sociais, sendo um saber característicos de formas de governo calcadas no auto-governo.
No bojo do empreendedorismo, vemos, portanto, como a psicologia se associa outros
saberes e técnicas (economia, administração) que instituem um modelo empreendedor e
competitivo de sociedade e de ser humano: o indivíduo passa a ser entendido pelo
próprio modelo da empresa, devendo se comportar como tal em um cenário de mercado.
É a este modo de subjetivação que entendo se dirigir a crítica do filme. Ao
assujeitamento que nos é proposto pelas novas tecnologias de seleção e gestão, as quais
jogam com nossos desejos, com nossa autonomia e liberdade, tomando por ideal uma
forma de existência altamente questionável. Talvez venha daí o péssimo gosto que as
personagens sentiram na refeição servida durante o processo de “auto-seleção”.

Dornelas, J. C. A. (2005). Empreendedorismo. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier.


Ferreira, M. J. L (1979). Grau de Aceitação dos Pressupostos da Administração
Eupsíquica por Parte de Diretores de Escolas Públicas de 1º Grau do Município do Rio
de Janeiro. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro.
Foucault, M (2008a). Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes (Trabalho
original publicado em 2004).
Maslow, A. H (1968). Is a Normative Social Psychology Possible? In: Toward a
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Sampaio, J. R. (2004). O Maslow Desconhecido: Uma Revisão de seus Principais
Trabalhos sobre Motivação. Em Encontro Nacional dos Programas de Pós Graduação
em Administração - ENANPAD. Rio de Janeiro: ANPAD.

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