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A

 formação  do  conhecimento  na  Crítica  da  razão  pura,  de  


Immanuel  Kant  
Verlaine Freitas
Toda a teoria do conhecimento de Kant, tal como vemos em
sua obra Crítica da razão pura, está baseada na idéia de que a verdade do
conhecimento está fundamentada na ação cognitiva do sujeito. Até a
publicação dessa obra, em 1781, todos os filósofos e teóricos sempre
conceberam o conhecimento como se dirigindo a uma verdade objetiva que
deve ser alcançada pelo seres humanos. Seja através dos filósofos gregos,
medievais ou da idade moderna anteriores a Kant, o mundo era pensado
como possuidor de uma verdade objetiva independente da ação do sujeito,
cabendo a este apenas alcançá-la atravessa das teorias, conceitos etc. Por
mais que o sujeito sempre fosse falado como contribuindo de alguma
maneira para a construção da verdade, esta era pensada como residindo nas
próprias coisas ou em um âmbito separado delas, como as Ideias em Platão.
A partir da filosofia kantiana, temos uma mudança radical nessa
perspectiva, de modo que todo o conhecimento sempre será falado como
tendo seu fundamento no modo como o sujeito articula dados empíricos a
partir de suas faculdades, como sensibilidade, imaginação, entendimento
etc. Desse ponto de vista, toda e qualquer verdade somente terá sentido em
virtude do modo como o sujeito constituiu o conhecimento, e não apenas o
alcançou como algo externo a ele.
O objetivo desse texto é fazer uma apresentação geral do
processo de construção do conhecimento, tal como vemos na Crítica da
razão pura, particularmente na “Analítica transcendental”, que é a parte
dessa obra que se dedica precisamente a fazer uma análise das condições de
possibilidade de surgimento do saber, desde o mais trivial, como uma
percepção sensível imediata, até o conhecimento científico altamente
especializado como na ciência da física. Nossa preocupação se dirige
propriamente às etapas de formação do conhecimento, em que a matéria do
conhecimento interage com as faculdades subjetivas, mobilizando
mecanismos de unificação, síntese e elaboração cognitiva. Não é nosso
objetivo explicar cada um dos elementos teóricos utilizados por Kant, mas
sim a articulação entre os mais significativos para nossos propósitos,
excluindo . A exposição detalhada de conceitos específicos, como da forma
pura da intuição espacial ou do esquematismo deverá ser buscada em outras
apresentações da gnosiologia kantiana.
Na interação entre o sujeito e a realidade, Kant sempre pensará
partir da dualidade entre forma e matéria. Em cada uma das etapas de que
falaremos, está em jogo o processo de enformação de um dado material pelo
sujeito. Cada uma das etapas que estudaremos fará uso da articulação entre
um princípio formativo e algo caótico, múltiplo, amorfo, para o qual
somente se pode conceber algum grau de unidade em virtude do modo
como o sujeito é capaz de conferir síntese, forma e unificação para ele. Na
perspectiva kantiana, quanto menos unificação cognitiva existe, menos se
pode falar da existência de conhecimento propriamente dito. Os processos
de síntese, nessa medida, são sempre operados pelo sujeito, de forma que
nada na realidade possui qualquer unidade, exceto através daquela que o
sujeito é capaz de construir. Em virtude dessa colocação, a primeira
pergunta que vem à mente é: “Se toda a unidade cognitiva provém do
sujeito, sendo ele o único responsável por qualquer síntese, então porque
não temos uma disparidade, uma diferença infinita no modo como cada
pessoa percebe a realidade?”. A resposta a esta questão está na base de todo
o sentido filosófico que Kant quis emprestar ao seu empreendimento
filosófico. A concordância universal entre os sujeitos sobre o conhecimento
que se tem da realidade provém do fato de que não apenas as faculdades,
mas também determinada forma de usá-las, são tomadas como universais,
idênticas em todos os sujeitos. Naturalmente, infinitos são os usos
discrepantes, divergentes entre cada pessoa, mas também é verdade que as
formas de conhecimento mais significativas, como a matemática e a física,
colocam em movimento faculdades subjetivas que devem ser pensadas
como idênticas em todos os seres humanos, pois senão não construímos
conhecimentos tão seguros e universalmente aceitos como os da aritmética
e da física tal como Newton formulou. Tanto a geometria de Euclides
quanto a física newtoniana são, de fato, os exemplos mais eloquentes de que
Kant se serve para dizer que nem tudo no conhecimento é variável,
contingente, casual, mas sim exprime uma necessidade e uma universalidade
bastante significativas. Muitos comentadores de Kant dizem, em virtude
deste apoio em tais ciências, que a Crítica da razão pura pode ser concebida
como uma fundamentação filosófica da ciência moderna. Embora essa ideia
me pareça parcial, desconsiderando muito do que será falado na parte final
desta obra, ela toca, de fato, em uma dimensão significativa da teoria do
conhecimento de Kant.
Apesar desse vínculo significativo de Kant com as ciências, não
vamos aqui focar especificamente o conhecimento tal como produzido na

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matemática e na física, mas sim o conhecimento empírico em geral, que
também é extremamente significativo na primeira parte da Crítica da razão
pura. Falaremos de várias de suas etapas, de vários elementos dentro de um
processo de formação do conhecimento. Tais etapas, entretanto, não estão
separadas cronologicamente. Todas elas ocorrem instantaneamente, de
forma simultânea, sem diferença temporal nenhuma. Quando
simplesmente abrimos os olhos e captamos os objetos que nos rodeiam,
colocamos em jogo diversas faculdades em vários níveis de complexidade
cognitiva, sem que transcorra tempo algum entre elas. Quando falamos de
“primeira” e “segunda” síntese no processo conhecimento, por exemplo,
isso não significa de forma alguma que primeiro ocorra uma e depois a
outra, mas sim que, em termos lógicos, de concepção teórica, colocamos
uma “anterior” à outra em termos de grau de complexidade, de
determinada forma de organização do material cognitivo, de intervenção
das faculdades do sujeito etc.
I.  A  primeira  síntese:  a  apreensão  
O elemento mais rudimentar no processo cognitivo, por assim
dizer o grau zero de síntese, em que vigora, segundo Kant, algo caótico,
totalmente disperso e amorfo, é a sensação. Ela seria, em termos
contemporâneos, o resultado do processamento neurológico do fluxo
luminoso, sonoro, gustativo, olfativo e tátil. A pura sensação seria a matéria
desprovida de toda e qualquer forma, sem nenhum processo de
enformação. Exatamente por este aspecto radicalmente caótico, podemos
falar que nenhum ser humano consegue percebê-la assim. Nesse nível, ela
seria apenas algo pensado e concebido teoricamente. Para que a sensação
proveniente dos órgãos dos sentidos possa ser percebida de forma efetiva,
real, ela precisa passar por alguma enformação subjetiva, necessita ser
unificada de modo a que possamos ter consciência dela.
Apesar deste aspecto radicalmente múltiplo, disperso, a
sensação já é resultado do fato de que tivemos uma capacidade, uma
faculdade colocada em jogo, de tal forma que se percebemos algum sinal
luminoso, por exemplo, é sinal que nossa capacidade de visão foi
empregada, com todas as suas limitações, seja de acuidade e de possibilidade
de captação no espectro luminoso. Isso significa que mesmo a sensação
considerada em sua materialidade bruta é resultado de uma espécie de filtro
em relação à realidade externa a nós. Kant insiste com especial ênfase que
nós só podemos conhecer aquilo que aparece a nós através de nossa intuição

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(que agora estamos considerando em sua dimensão empírica, de experiência
concreta, corporal, com os objetos). Isso nos leva a uma pergunta que Kant
qualifica como especulativa: o que seria a realidade independente deste
filtro de nossas capacidades e faculdades receptivas? O que seria a realidade
em si mesma, tomada de forma absoluta, e não relativa ao que podemos
captar? A resposta de Kant é bastante clara: o que as coisas são em si
mesmas sempre permanecerá algo vedado, inacessível, a nós. Não podemos
conhecer o que a coisa é em si, mas tão-somente aquilo que aparece a nós,
ou seja, somente os fenômenos.
Se quisermos fazer uma leitura menos abstrata, fora deste
âmbito puramente teórico em que essa concepção é falada na Crítica da
razão pura, podemos situar a captação de dados sensíveis brutos no
desenvolvimento cognitivo das crianças, de tal forma de o recém-nascido
teria um contato com a realidade de forma próxima a este estado de
absorção de uma massa sensória totalmente dispersa, sem unificação
alguma. Esta aplicação, entretanto, não é feita pelo próprio Kant, sendo
apenas uma forma de dar algum conteúdo em termos de gênese da
capacidade cognitiva humana.
A primeira etapa de enformação, de unificação do material
sensível é feita através das relações espaço-temporais. O espaço e o tempo
são, para Kant, não uma propriedade objetiva das coisas, mas sim formas de
nossa intuição, de nossa capacidade de apreender os objetos de forma
imediata, direta. Eles são as formas como nós, seres humanos, somos
capazes de perceber as coisas fora de nossa consciência em termos
tridimensionais, como situadas neste espaço único e contínuo, bem como
na sucessão dos instantes e na simultaneidade com que as coisas ocorrem.
Para Kant, o espaço e o tempo, tal como nós os percebemos, não podem ser
ditos como iguais para todos os seres possíveis no universo. É perfeitamente
viável que outros seres captem relações espaciais entre as coisas de forma
diferente de nós, com mais de três dimensões, bem como percebam as
relações temporais de forma diferente da nossa. Apesar deste aparente
relativismo, pois espaço e tempo são algo propriamente humano, e não uma
propriedade objetiva, absoluta, das coisas, tais formas são ditas como
universais para a subjetividade humana, ou seja, todo ser humano sempre
percebe as mesmas relações tanto de espaço quanto de tempo de forma
homogênea (a não ser que haja algum distúrbio cognitivo, neurológico,
psíquico etc.). É essa universalidade que estaria na base dos conhecimentos
seguros que a geometria de Euclides nos oferece.

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Na medida em que os dados sensíveis são relacionados em
termos de sua localização espacial e temporal, temos aí uma primeira forma
de unificação cognitiva, uma primeira síntese, que Kant chamou de
apreensão. Temos aí a junção de uma matéria, que é a sensação, produzida
por nossa sensibilidade, no caso nossos cinco sentidos, e a intuição de
espaço e tempo.
Tanto a sensação quanto o espaço e o tempo e são ditos por
Kant como sendo intuições, sendo que a primeira é dita empírica, e os outros
dois são ditos como intuições puras. Tal como ocorre em toda essa teoria
kantiana, o termo “puro” sempre se refere a um poder universal subjetivo
de constituição do conhecimento através de determinadas formas que não
dependem da materialidade da sensação para ser aquilo que são. Em
contraste com o que é puro, nesse sentido, temos o empírico, que é sempre
mesclado aos elementos materiais provenientes dos órgãos dos sentidos.
Embora espaço e tempo sejam formas puras, e a sensação o elemento
empírico por excelência, todos são ditos como intuições, devido ao fato de
que são meios de acesso a um objeto de forma imediata, sem passar por um
mecanismo de reflexão, de raciocínio, deliberação etc. Ambas as intuições
são independentes de mediações específicas para elas serem alcançadas. No
caso da intuição visual, por exemplo, nosso contato com as coisas luminosas
é feito de forma direta, pela captação de dados luminosos por nossos olhos.
No caso da percepção das coisas no espaço, também temos uma relação
direta, sem necessidade de qualquer forma de raciocínio ou de mediação
que possibilite que nós tenhamos essa percepção das coisas em sua
tridimensionalidade.
Na medida em que uma síntese cognitiva é feita, temos não
apenas uma matéria que recebe uma forma, mas também o resultado deste
processo de unificação, que agora é o fenômeno. Deste modo, a síntese da
apreensão nos oferece fenômenos empíricos, ou seja, o modo como as coisas
sensíveis aparecem a nós em determinadas articulações espaço-temporais.
Apesar de receber essa primeira unificação, o âmbito do fenômeno
propriamente dito ainda não é passível de ser percebido como tal por
nenhum ser humano, pois ainda é por demais precário, rudimentar, sendo
apenas um construto hipotético, um conceito teórico. De forma análoga a
como situamos a sensação bruta na vivência inicial do recém-nascido,
podemos dizer que os fenômenos são percebidos por ele quando o material
sensível já é minimamente ordenado em termos de sua sucessão temporal e

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de sua justaposição no espaço, sem que haja, ainda, uma percepção da
diferença entre as figuras, por exemplo.
Na medida em que todo processo cognitivo em Kant depende
das faculdades para ocorrer, é sempre importante apontar para o que está
em jogo em cada caso. Apesar da aparente diferença entre a intuição
empírica, fornecida pelos sentidos, e a pura, do espaço e do tempo, todas
são ditas pelo autor como provenientes da sensibilidade, de nossa faculdade
e capacidade de sermos tocados pelas coisas externas a nós, e de
apreendermos suas relações espaço-temporais. A sensibilidade teria, então,
uma face empírica e outra pura, sendo a primeira constituída pelos cinco
sentidos, e a segunda por nossa capacidade de localização espaço-temporal
dos dados sensíveis.
II.  A  segunda  síntese:  figurativa  
Se o fenômeno ainda é algo por demais precário em termos de
síntese, de unificação, então ele pode ser dito como matéria para uma
segunda etapa de enformação subjetiva. Por mais que a apreensão espaço-
temporal dos dados sensíveis estabeleça relações entre eles, Kant considera
ainda precária a articulação no sentido de uma unidade dos contornos,
limites e diferenciações na configuração imagética dos dados fenomênicos.
Seria necessário o emprego de uma faculdade capaz de fornecer uma
unidade para esses dados, produzindo uma segunda síntese. O nome dessa
faculdade em alemão é especialmente útil para entender o que está em jogo:
“Einbildungskraft”. Esta palavra é composta da justaposição de dois
radicais, sendo o primeiro deles o verbo bilden = formar, que, precedido
pelo prefixo ein, denota um movimento de interiorização. O verbo sich
einbilden significa, então, formar uma imagem internamente, sendo que o
substantivo Bild, isoladamente, significa “imagem”. O sufixo -ung indica a
substantivação do verbo, equivalente às partículas “ção” e “mento” em
português. A primeira parte da palavra, Einbildung, pode ser traduzida,
assim, como o produto de nossa capacidade interna de formar imagens, ou
seja, uma imaginação, tal como quando dizemos que mula-sem-cabeça é
uma imaginação popular. O segundo radical da palavra, -kraft, liga-se ao
primeiro através da letra “s”, e significa poder, capacidade, faculdade.
Assim, Einbildungskraft poderia ser traduzida como a faculdade interna de
produzir imagens, ou faculdade da imaginação, ou simplesmente
imaginação. Uma vez que esta última palavra é usada tanto para uma
determinada imagem construída mentalmente, como o exemplo da mula-

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sem-cabeça, quanto para a própria faculdade, a tradução mais próxima do
sentido original de Kant é faculdade da imaginação, mas em nosso texto
vamos usar a forma mais abreviada, simplesmente imaginação.
Embora na primeira síntese tenhamos uma forma (espaço e
tempo, que são as duas intuições puras), bem como a faculdade que a coloca
em funcionamento, a sensibilidade, nessa segunda síntese não há como
estabelecer com clareza uma forma a ser usada sobre o fenômeno, mas tão-
somente a faculdade, que é a imaginação. Esta realizaria a síntese que Kant
chama de figurativa, pois seu resultado é uma figura, uma imagem, que
demonstra uma unificação totalizante dos dados fenomênicos.
Nesse momento é importante salientar uma contribuição
muito importante da teoria do conhecimento de Kant, na medida em que a
imaginação é dita como não sendo exercida apenas na ausência do objeto,
como é o caso de imaginarmos coisas que foram vividas no passado, ou de
projetarmos imagens que ainda não vimos. Até então, dizia-se que ao
percebermos as coisas não fazemos uso da imaginação, e diversos autores
posteriormente ainda voltaram a dizer que a imaginação só ocorre na
medida em que projetamos mentalmente um objeto, dentre tais autores,
Sartre é uma figura de destaque. Para ele, a percepção atual das coisas é dita
como literal, de modo a não demandar o uso da imaginação. Para Kant, é
necessário o uso da imaginação em todo momento em que temos percepção
sensível das coisas, de modo que a unidade que percebemos nos objetos, no
âmbito de suas formas físicas, provém do poder de síntese da imaginação.
Tal como dissemos acima, toda e qualquer unidade sempre dependerá do
concurso de nossas faculdades, do uso de nossos poderes de conhecimento,
que devem ser usados para gerar qualquer tipo de organização cognitiva.
Tanto nos testes projetivos de Rorschach, bem como em todas as
experiências de percepção criativa, quando imaginamos determinadas
figuras nas nuvens ou na superfície de rochas, o complexo perceptivo geral
depende da atitude de aglutinar todos os dados sensíveis para constituir
uma figura, pois é inegável que faz muita diferença no resultado final o
modo como associamos internamente as linhas, luzes, cores e volumes à
figura de um ou outro animal, por exemplo — todos esses casos parecem
evidenciar o emprego da imaginação no próprio ato de perceber as coisas.
Esse papel da imaginação parece ainda mais evidenciado
através da idéia de que nenhum cego de nascença que recupere a visão em
idade avançada, por exemplo, poderia simplesmente caminhar pelas coisas

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imediatamente, como se captar a luz proveniente dos objetos já significasse
ser capaz de identificar o que eles são, por mais que essa pessoa estivesse
familiarizada com todo o ambiente ao seu redor. Esta pessoa deveria
conectar a visão aos dados provenientes do tato e de seu senso de
deslocamento espacial, de modo a exercitar este uso unificador da
imaginação sobre uma realidade perceptiva que até então não havia sido
exercida. Ela já teria usado a imaginação, sim, mas apenas em relação aos
dados auditivos, táteis, gustativos e olfativos, conferindo-lhes uma unidade.
Isso, por si só, entretanto, não faria com que os dados visuais alcançassem
uma unificação minimamente necessária. Isso significa que entre
simplesmente enxergar, ou seja, captar a luz e cores dos objetos, por um
lado, e discernir suas formas e delinear a diferença entre suas figuras,
tamanhos e localizações espaciais, por outro, existe uma enorme diferença,
um espaço a ser preenchido precisamente pela capacidade de síntese que
Kant chamou de figurativa.
Outro aspecto interessante é o fato de que Kant diz que a
imaginação não cria nada, mas tão-somente articula elementos que são
trazidos por outras faculdades. Ela não é capaz de criar uma realidade por
conta própria, e o exemplo mais claro disso é quando Kant, em outro texto
posterior, a Antropologia de um ponto de vista pragmático, diz que por mais
que tenhamos visto a cor amarela e azul, se nós nunca tivéssemos visto a cor
verde, nossa imaginação não seria capaz de produzir essa cor através da
mescla imaginária entre as duas primeiras. O verde, assim, seria uma
realidade material resultado da mescla de duas cores, que não poderia ser
antecipado pela imaginação. Outra conseqüência desse princípio é a de que
um cego de nascença não é capaz de ter sonhos em que ocorra qualquer
elemento de ordem visual. Na medida em que os sonhos são um produto
involuntário da imaginação durante o sono, esta faculdade não seria capaz
de produzir uma realidade imaginária que contenha elementos que ela não
recebe de outras fontes, que no caso seriam os olhos.
III.  A  terceira  síntese:  intelectual  
Por mais estranho que possa parecer, essa imagem, resultado da
síntese figurativa, ainda é algo por demais precário em termos de realidade
cognitiva para o sujeito. Localizada no desenvolvimento da capacidade
cognitiva, ela se situaria naquele momento em que a criança ainda não tem
um vocabulário, não é capaz de articular um conceito do idioma de seus
pais, mas já é capaz, por exemplo, de imitar alguns gestos, mostrando que já

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tem suficiente capacidade de discernir as imagens a ponto de poder repeti-
las.
Tal imagem ou figura deverá, então, sofrer uma nova síntese,
uma nova unificação, que a torne um objeto de conhecimento em sentido
pleno, do qual temos consciência, e que possui suficiente realidade. Isso
ocorre na medida em que vinculamos um conceito a essa imagem. Conceitos
são regras abstratas, gerais, universais, que usamos para ler, interpretar,
compreender, todos os elementos factuais. Todo conceito, como o de mesa,
estabelece um conjunto de diretrizes que fazem com que coisas na realidade
possam ser identificadas a partir deles. Para que algo seja uma mesa, é
necessário ter um suporte ou apoio para uma superfície distante do solo,
suficientemente estável para servir de base para outros objetos. De forma
análoga, todos os outros conceitos vão estabelecer uma ou mais regras para
que as coisas sejam passíveis de serem entendidas, assimiladas, em suma,
pensadas.
Kant dá o nome de entendimento para a nossa faculdade de
usar e produzir conceitos. Trata-se da nossa capacidade de pensar em
sentido amplo, a nossa capacidade intelectual, de articular e produzir tais
regras abstratas e com as quais nós faremos a nossa leitura dos objetos da
realidade. Todo conceito sempre possui um uso universal, genérico, sendo
aplicado em cada caso a partir dessa acoplagem entre essa regra abstrata e a
imagem concreta, particular, específica. Uma vez realizada essa enformação
conceitual de uma imagem, temos então um objeto, que é propriamente o
que existe como uma realidade atual de nosso aparelho perceptivo e
cognitivo em geral. Temos aí uma terceira síntese, chamada de intelectual
por Kant.
Essa síntese, entretanto, contém uma característica que a
diferencia substancialmente das outras duas, e que demanda a colocação em
jogo de diversos conceitos para ser suficientemente esclarecida. Tanto na
síntese da apreensão quanto na figurativa, matéria e forma possuíam certa
homogeneidade. No primeiro caso, tanto a sensação quanto espaço e tempo
fazem parte de nossa sensibilidade, são intuições, e por isso mesmo são
imediatas. No segundo caso, a imaginação opera diretamente sobre os
dados fenomênicos, aglutinando-os, sintetizando-os diretamente. Embora
o texto da Crítica da razão pura nos autorize pensar uma forma para os
dados do fenômeno, não há propriamente uma forma a ser usada pela
imaginação, mas tão-somente seu poder de unificar a matéria sensível. Em

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virtude da proximidade de matéria e forma em ambas as sínteses, não é
necessário conceber elementos que medeiem a relação entre elas. Outra é a
situação da terceira síntese, pois a imagem é algo único, concreto, particular,
específico. As imagens que formamos em nossa percepção precisam ser
atualizadas a cada instante, através dessas operações de síntese de nossas
faculdades. Que nós percebamos duas imagens absolutamente idênticas em
tempos diferentes significa que a cada instante fomos capazes de produzir
novas imagens, novas sínteses, e, além disso, fomos capazes de perceber que
ambas as imagens são idênticas. Se entre duas imagens absolutamente
idênticas algo se alterasse em nosso modo de percepção, já não teríamos
duas imagens idênticas, de modo que a identidade de duas percepções
depende de nossa capacidade cognitiva de estabelecer essa correlação entre
o que é percebido. Desse modo, independente da identidade das
percepções, da congruência absoluta de seus elementos, o fato é que a cada
instante temos uma imagem única, o resultado de uma operação específica
de nosso poder cognitivo naquele preciso instante.
Por outro lado, o conceito é algo radicalmente diferente, o
oposto disso, pois é uma regra genérica, abstrata, universal, passível de ser
aplicada infinitamente a quaisquer casos. Até mesmo os nomes próprios
admitem esta aplicação infinita, em virtude da extrema contingência com
que podemos aplicá-los a cada ser, pessoa, coisa, entidade etc. Não há nada
em uma regra universal que garanta sua aplicabilidade em nenhum caso
específico, precisamente pelo fato de que ela é algo apenas que se pode
pensar de forma indefinida, indeterminada, para todo e qualquer ser que
possa ser apreendido por esse regramento de nossa percepção. Além disso, a
aplicação de conceitos a casos específicos muitas vezes depende de outros
conceitos auxiliares, uma vez que diz respeito a realidades complexas. O
conceito de carro, por exemplo, para ser aplicado, depende de uma série de
outros auxiliares, de modo que para identificar o objeto em sua totalidade
aplicamos outros, como o de motor, volante, rodas, carroceria, faróis etc.
Alguns desses, por sua vez, também demandam outros, como é o caso do de
motor, que se forma pela conexão entre os de combustão, válvulas, exaustão
etc.
Desse modo, para fazer a síntese intelectual precisamos
conectar dois planos cognitivos radicalmente distintos: aquele ligado à
concretude específica e única de uma imagem a uma regra abstrata,
genérica, e que muitas vezes se apóia em noutras regras também complexas
e que são aplicáveis indefinidamente a um número infinito de casos

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possíveis. Essa discrepância faz com que seja necessário conceber modos de
mediação entre tais planos.
IV:  As  mediações  entre  imaginação  e  entendimento  
A imaginação nos fornece uma imagem particular em um
determinado instante, enquanto o entendimento produz e articula
conceitos. Este é responsável pelas conexões entre as regras e suas
derivações, de modo a podermos dizer que seria a faculdade, em sentido
mais estrito, do raciocínio, do pensamento abstrato, nossa capacidade de
pensar através de princípios gerais, não necessariamente conectados aos casos
particulares em que tais princípios são aplicáveis. Ora, diz Kant, são duas
habilidades distintas: a de poder raciocinar através de princípios gerais,
abstratos, e a de saber operar com eles na realidade, aplicá-los nos casos
específicos, fazendo uma leitura das circunstâncias particulares a partir
deles. Para ilustrar isto, dizemos que um médico, por exemplo, pode ser um
excelente teórico da ciência que estudou, sendo capaz de escrever livros de
fundamentação epistemológica, de explicar mecanismos gerais de
funcionamento do corpo humano etc., mas não ser suficientemente
habilidoso ao diagnosticar casos específicos que aparecem no cotidiano de
um consultório e muito menos de realizar intervenções cirúrgicas. E isso
poderia ser falado para todas as demais profissões, como direito, em que
vemos claramente teóricos altamente renomados e respeitados pela
comunidade jurídica, mas que possivelmente não se sairiam bem em um
tribunal do júri. Estes exemplos apontam para diferença entre a habilidade
do raciocínio abstrato e a capacidade de operar concretamente com os
conceitos. Pode-se ter uma ou outra habilidade, ou ambas, sem que uma
delas implique (nem prejudique) necessariamente a outra. Kant deu o
nome de faculdade do juízo a esta habilidade de conectar os conceitos aos
fatos particulares. Ela seria propriamente uma inteligência, no sentido
etimológico da palavra, cujos radicais intus (dentro) e legere (colher,
escolher, ler) denotam propriamente “ler nas coisas aquilo que elas
significam”, de forma análoga à palavra grega diagnose, que significa
também o conhecimento (gnose) que atravessa (dia-) as coisas. Assim, para
a síntese intelectual ocorrer, é necessário o concurso de uma terceira
faculdade, além da imaginação e do entendimento, e que exprime uma
habilidade própria do ser humano, que é a nossa capacidade de julgar os
fatos particulares a partir de conceitos universais, produzindo uma
interpretação de mundo.

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Apesar de a faculdade do juízo já estabelecer uma mediação
entre o plano abstrato do conceito e o concreto da imagem, isso, para Kant,
ainda é por demais insuficiente. Para ele, a faculdade do juízo somente é
capaz de operar se ela já conta com uma espécie de antecipação intelectual da
experiência através de um dispositivo, de uma ação, de nossa faculdade da
imaginação. O juízo somente teria eficácia, nessa perspectiva, se nossa
percepção imagética, de alguma forma, já projetasse, por assim dizer, algo da
dimensão intelectual do conceito nas imagens que percebemos. É necessário
que a imaginação produza aquilo que Kant chamou de um esquema para
todos os conceitos, de modo a fazer com que a imagem já tenha uma
conexão com os conceitos possíveis a serem aplicados nela. O conceito de
árvore, por exemplo, precisa receber uma esquematização por parte da
imaginação para que sejamos capazes de, ao percebermos a imagem de um
determinado objeto, aplicar de forma coerente este conceito. O
esquematismo da imaginação, assim, seria uma propriedade imaginativa do
ser humano que faz com que haja uma espécie de campo
imagético/imaginário que torne homogênea qualquer configuração
imagética específica ao âmbito abstrato dos conceitos. Este processo,
entretanto, é algo bastante ligado à própria ação cognitiva, depende da
espontaneidade do uso de nossas faculdades, não sendo algo explicável
através de conceitos teóricos. Kant diz que ele é um mecanismo que atua de
forma “misteriosa” em nossos poderes cognitivos, e que dificilmente algum
dia seremos capazes de ter uma visão teórica plena sobre ele.
Apesar de essas duas mediações entre o entendimento e a
imaginação parecerem suficientes para explicar a concatenação entre
conceito e imagem, para Kant ainda não é o caso. Segundo o filósofo, a
produção de conhecimento é algo que depende tão profundamente das
faculdades subjetivas, e a discrepância entre o âmbito material, empírico, e
o intelectual, abstrato, é tão grande, que ele diz que nada nos garante, em
princípio, que nossas faculdades estejam de acordo com aquilo que, na
complexidade de todo o fenômeno, corresponde a qual faculdade no
sujeito. A cada instante que percebemos as coisas, é necessário haver um
arranjo, uma orquestração, um jogo recíproco entre nossas faculdades, para
que elas se moldem aos objetos e sejam capazes de agir de forma harmônica
no processo cognitivo. O sujeito precisa se articular em termos de seus
poderes cognitivos para fazer com que cada uma de suas faculdades perceba
dimensões diferentes em todo o complexo dos fenômenos, e isso necessita
acontecer a cada novo instante em que vemos as coisas. Kant deu o nome de

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reflexão transcendental ao jogo das faculdades que precisa ocorrer para que o
conhecimento se efetue. Trata-se de uma reflexão não como ocorre em
termos lógicos ou imaginários, em que pensamos e conectamos conceitos e
imagens. Essa seria uma reflexão lógica. O adjetivo “transcendental”
significa, tal como na maioria das vezes em que é usado na crítica da razão
pura, algo que está aquém da experiência, é anterior a ela não no sentido de
diferença cronológica, mas sim lógica, como condição de possibilidade para
a realização do processo cognitivo. Assim, podemos dizer que o espaço e
tempo são elementos transcendentais, pois são condição de possibilidade
para toda e qualquer experiência externa ocorrer, embora o fluxo da
consciência, a sucessão de nossos pensamentos não ocorra no espaço, mas
tão-somente no tempo. Em contraste com transcendental, transcendente é
aquilo que está para além da experiência, como é o caso da idéia de Deus ou
de imortalidade da alma, que são coisas que não podemos conhecer, pois
ultrapassam nossa capacidade de perceber os fenômenos empíricos.
Em cada uma das três sínteses é necessário ocorrer um jogo
entre nossas faculdades, mas, tal como dissemos acima, nas duas primeiras
sínteses a homogeneidade entre os poderes cognitivos faz com que a
reflexão transcendental não seja especialmente necessária, não entre em
jogo como um momento significativo. Na terceira síntese, por outro lado,
essa heterogeneidade que explicamos longamente acima faz com que a
reflexão seja demandada de forma enfática. Em outras palavras, em cada
percepção é necessário que o sujeito perceba o que é da ordem imagético-
imaginária e o que é da ordem abstrata, universal. É preciso que a
imaginação e o entendimento “entrem em acordo” para que a imagem seja
conceituada propriamente. Na quase totalidade dos casos, é impossível
perceber empiricamente algo que nos mostre a pertinência deste conceito
de reflexão transcendental. Normalmente, a acoplagem entre a imagem
produzida pela imaginação e um ou mais conceitos do entendimento é por
assim dizer imediata, “satisfazendo” nossa exigência de apreensão da
realidade. Há momentos em que algo deste processo de reflexão
transcendental é percebido, quando, por exemplo, olhamos para um objeto
e não somos capazes imediatamente de identificar se ele é um animal, uma
planta ou uma pedra, de tal forma que sentimos uma espécie de
estranhamento, como se aquilo que sabemos da realidade não fosse
suficiente para entendermos este caso específico. Em algumas exposições de
design contemporâneo, muitas vezes somos surpreendidos por peças de
mobiliário que nos parecem uma cadeira, mas na verdade são suportes para

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lâmpadas, ou quando pensamos que se trata de uma mesa, mas na verdade é
uma estante para livros que se articula de forma bastante inusitada etc.
Nesses momentos, é como se a imagem produzida por nossa imaginação
ficasse por assim dizer “flutuando” em uma indefinição conceitual, e é essa
circunstância que faz com que percebamos empiricamente, de alguma
forma, o que Kant chamou de uma reflexão transcendental entre a
imaginação e o entendimento.1
Tal como dissemos, normalmente não vemos essa reflexão
deixar nenhum vestígio, devido ao fato de que a imaginação já se submete
imediatamente ao regramento perceptivo dado pelo entendimento. Nesse
caso, que ocorre na esmagadora maioria das vezes, temos uma especificação
daquilo que o conceito estabelece de forma universal. O conceito fica
determinado por uma aplicação específica em um exemplar. Em virtude
disso, Kant chama este juízo de determinante. Em sua Crítica da faculdade
do juízo, o filósofo falará de outra relação entre conceito e imagem, em que
ocorreria não apenas um estranhamento momentâneo e fraco entre
imaginação e entendimento, mas sim a manutenção duradoura deste estado
de reflexão, de jogo, entre essas duas faculdades. Suponhamos um caso em
que a imagem produzida pela imaginação não encontre nenhum conceito
que consiga explicar, aprender e englobar tudo o que há nela. Nesse caso, a
imaginação e entendimento estariam em um jogo tenso, em que a
imaginação não seria por assim dizer limitada pelas regras específicas dadas
pelo entendimento, de modo a se ver livre desta margem de operação dada
por nossa capacidade intelectual. Para o filósofo, este é o caso toda vez em
que nos defrontamos com um objeto belo. Para ele, a beleza seria
caracterizada por essa continuidade da tensão harmoniosa e livre entre
imaginação entendimento. Na medida em que esta é uma condição
cognitiva especificável como tal, ela pode ser falada como sendo um juízo,
mas não determinante, mas sim reflexionante. — Esta temática, entretanto,
ultrapassa em muito os objetivos desse texto, devendo ficar para outra
oportunidade.

1Esses casos que estamos tomando como manifestações da reflexão transcendental não são indicados como tal
por Kant.

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