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Poesia sonora

Há uma hegemonia da palavra frente o gênero poético, o que desencadeia uma


relação hierárquica, segundo Henri Chopin a poesia não pode ser restrita ao domínio da
escritura.

A desconstrução derridiana propõe o questionamento de qualquer verdade


única atribuída ao signo, discurso ou qualquer tentativa de estabilizar verdades no
âmbito da linguagem. A remolduração constante das culturas inviabiliza a cristalização
das convenções sociais. Por isso não pode haver verdades.

A linguagem é um elemento de enclausuramento ideológico, a linguagem


escrita (escritura) se transforma, nesse caso específico, em instrumento de dominação, já
que opera uma imposição conceitual. A poesia sonora democratiza o acesso da arte aos
não letrados. Os sons de significado aberto não podem te dizer em quem votar ou qual
religião seguir, por isso são puramente estéticos.

A Poesia Sonora é uma espécie de poesia oral, cuja característica


é o experimentalismo com a voz e o som, seja por meio da
fonética ou de efeitos sonoros produzidos por equipamento
eletroacústico. Na apresentação ao vivo, acrescentam‐se
elementos corporais, performáticos, videográficos, de luz e de
movimento.

Philadelpho Menezes, I Ciclo de Poesia Sonora

DIMENSÃO TEXTUAL

Léxico: constituído por sons, já que se trata de signos não-verbais. Partindo da


hipótese de que o signo verbal é arbitrário, sabemos que por ser arbitrário está mais para
o abstrato do que para o concreto. Os signos sonoros, ao contrário está mais para o
concreto do que para o abstrato, visto que se aproxima da significação pura, sem
interferências do pré-estabelecido, do contrato social em que a língua está sujeita.
Considerando que a poesia, com o seu caráter mítico funciona como um movimento de
concretização das ideias abstratas de um povo, de uma cultura, a poesia sonora é a
personificação dos sentimentos que atingem a coletividade.

Segundo Pietroforte (2014, p.4), o léxico de um poema sonoro funciona da


seguinte maneira: “A poesia sonora, portanto, não demole a linguagem verbal, mas investe
em suas potencialidades fonéticas ao explorar não mais as formas linguísticas, mas sua
substancia sonora, fazendo com que a fonologia perca sua função distintiva em nome do
equilíbrio das vogais “ponderado e distribuído apenas pelo critério da ordenação””.
O poema de Chopin, particularmente, simula sons do trato digestivo. A aliteração
nos sugere um efeito de algo que passa por um caminho tortuoso, baseada no tepe alveolar
vozeado /ɾ/. Esse tipo de recurso fonético é comum em textos que tratam do mesmo tema,
como podemos ver no verso de Gregório de Matos “pra tropa do trapo vazo a tripa”.

Gramática

Função ideacional: o sentido se constrói por meio de uma regularidade rítmica


e uma oscilação de tessitura. Começa com semínima, depois colcheia com alguns
intervalos não pontuados, quanto maior o intervalo, maior a tessitura, como que para
simular a uma passagem por um caminho irregular. Quanto maior a progressão rítmica
maior o fluxo, a velocidade.

Função interpessoal: ethos: por ser performático, não há barreiras entre o


locutor e o interlocutor, é cooperativo. Quando comparamos com o ethos de poetas que
usam a linguagem verbal, percebemos que esses contam com recursos como reflexões
metafisicas, colocações de pessoa, figuras de linguagem, enquanto que no caso de
Chopin, os sons mascaram a identidade do poeta, substituindo-o. O momento de
enunciação é anterior ao momento da ação, pois o som intestinal serve para enunciar
algo que ainda irá acontecer.

Cenografia: parece uma passagem de fluídos pelo canal intestinal, mas na


verdade são ruídos feitos com a boca.

Não existem cenas validadas por não ter estereótipo, o poeta tenta ser o mais
concreto possível.

Função textual: o encadeamento dos sons provoca uma imagem, funcionando


de maneira sinestésica. A ordem dos sons não é aleatória, já que toda escolha gera
significado, ela simula um percurso, o percurso do trato intestinal.

DIMENSÃO DISCURSIVA

O discurso é um modo de agir sobre o outro: o texto é modelado pela situação


social, altera o mundo e é alterado por ele: em uma época em que EU é suprimido,
como declarado por Foucault em As palavras e as coisas, nada mais adequado que a
supressão do enunciador na poesia.

A distribuição voltada para o consumo de nichos tão específicos e tão pouco


volumosos nos aponta para uma restrição desse tipo de discurso, limitando
consideravelmente os afetos da obra sobre o contexto social em que se insere, evitando
a fixação de novas práticas, assim como, sua contribuição na constituição de identidades
sociais heterogêneas.

Na tese de mestrado que utilizamos a autora relata uma ocasião em que o poeta
Lúcio Agra teve sua participação impedida no Festival Motomusic realizado em 2006
em decorrência da sua apresentação com uma banda de músicos seria ilegal, pois o
fiscal da prefeitura de São Paulo classificou a sua apresentação como um show, e não
uma apresentação performática. Ou seja, o performer da Poesia sonora sofre restrições
em seu próprio campo de atuação.

A estrutura social que o texto implica as práticas sociais de uma França pós
Maio de 1968, quando houve uma forte reação contra as hierarquias, guerras, censura,
os padrões morais; à favor da liberdade e da instauração de uma nova ordem política em
resposta ao governo conservador do presidente Charles de Gaulle.

A poesia sonora sempre teve uma natureza que questiona as práticas sociais
vigentes, Antonin Artaud, um de seus precursores chocou a Europa da primeira metade
do século XX, a ponto de terminar sua vida em um sanatório.

A obra é criada para o público geral, já que não há nenhuma restrição para o
seu consumo, não exige que o ouvinte tenha qualquer conhecimento prévio.

Há uma forte tendência da vanguarda francesa em subverter os clássicos


fazendo uma leitura paradoxal que compreende o caráter imutável e repetitivo do
comportamento humano através da historia, por isso é fácil reconhecermos ligações
intertextuais nas obras:

Existe uma intertextualidade constitutiva: alusões na Divina Comédia de Dante


Alighieri, uma das punições no inferno para os corruptos (que traem a confiança da
sociedade), é a submersão em fezes, durante a eternidade. O poema reestrutura dizeres
prévios a respeito desse tema, surtindo efeitos de sentido tais como: 1. As fezes podem
representar o pedantismo intelectual do ser humano, que tem fezes por dentro; 2. A
sujeira que a humanidade produz com seus atos não-fisiológicos (corrupção, violência
gratuita, desprezo pela alteridade).

Outros exemplos de intertextualidade na poesia sonora podem ser vistos em


obras como a famosa leitura de Artaud do texto Para acabar com o julgamento de
Deus, que a partir do questionamento da moral judaico-cristã estabelece uma conexão
com a história do Império Romano; ou a obra O cachorro de Stravinsky, em que o autor
Amirkhanian zomba do já vanguardista Igor Stravinsky, tal como do psicologismo
behaviorista fazendo uma versão de um clássico da musica do século XX, todo
interpretado pelo latido de um cachorro.

No século XXI, a poesia sonora rompe com as estruturas artísticas vigentes


utilizando as novas tecnologias, segundo Dolabela:

O projeto da Poesia Sonora rompe com as limitações do livro e do


corpo. Eu posso participar de um espetáculo via Internet, por
exemplo, sem estar de corpo presente em qualquer parte do mundo.
Não faria sentido hoje criar um disco que se chamasse Poesia Sonora
Mineira Hoje. O poeta sonoro é aquele que fornece os elementos para
que o ouvinte junte e crie uma sonoridade (...) A sociedade de hoje é
muito estetizada para o artista querer ser estetizado. Antes das
vanguardas, a sociedade era extremamente careta e o poeta/artista
tinha que ser aquele que se diferenciava também pelo visual.
Maiakovski era excêntrico no seu visual. Já para a Poesia Sonora não
importa quem é o poeta. (DOLABELA, 2007, p. 104-105)

Distribuição:

O poema é divulgado em 891 páginas na internet, para se ter uma ideia uma
canção francesa composta no mesmo ano chamada C'est ma prière aparece em 23.100
páginas na internet, uma canção norte-americana também lançada em 1972 de Roberta
Flack, aparece em 1.090.000 páginas. Para modo de comparação, o poeta chileno Pablo
Neruda ganhava o prêmio Nobel de Literatura e era uma das pessoas mais conhecidas
do mundo, ainda que latino-americano, comunista e em situação de exílio devido ao
golpe militar no Chile.

Atualmente, a poesia sonora conquistou alguns espaços para a sua distribuição


e circulação como o Festival Internacional de Poesia Sonora, que foi realizado em três
capitais brasileiras, no ano de 2000; o Oppenpport: Sound, Performace and Language,
realizado em Chicago, USA em fevereiro de 2007; e a edição do EPoetry de maio de
2007 realizado em Paris, França. Esses festivais afetam as condições de produção das
obras, considerando que se abre um espaço para sua exposição, o que significa um
incentivo para a criação de novos poemas.

Circulação:

A obra de Chopin não exige um esforço referencial e sim, inferencial já que se


trata de uma obra aberta, ou seja, a assimilação do conteúdo depende mais do conteúdo
vivencial do interlocutor do que da própria intenção do animador.

Em nossa busca de materiais para a nossa pesquisa, nos deparamos com a


dissertação de mestrado de Brenda Marques Pena (UFMG) de 2007, intitulada A poesia
sonora como expressão da oralidade. Ao traçar uma historia da poesia sonora no Brasil,
autora declara que não há espaço para essa manifestação artística. Ao relatar uma visita
ao Museu de Imagem e Som (MIS) questiona se existe Som no MIS:

Nesta hora a pergunta onde está o som do MIS incomodava ainda


mais, mas continuei a busca. Resolvi perguntar a um dos funcionários
que estavam de plantão naquele domingo sobre o som do Museu da
Imagem e do Som, e fui informada de que havia um acervo com
poemas sonoros de Philadelpho Menezes, mas era preciso marcar com
antecedência por telefone para escutar as obras poéticas. Que boa
idéia dos curadores do museu! Delimitar um horário para a audição,
que só pode ser realizada de terça a sexta, no horário limitador de
10h30 às 14h, sendo que a pesquisa tem que ser pré‐agendada É isso
que podemos chamar de museu como facilitador do acesso às obras e
espaço de preservação da memória? Decepcionada por não ouvir
nenhum som no MIS, além dos passos dos poucos visitantes, resolvi
lançar mão do meu último recurso: ir até a loja do museu e perguntar
se havia algum CD com poemas sonoros ou com poesias orais. E a
resposta, negativa, veio acompanhada de um olhar de espanto por
alguém fazer uma pergunta dessas...” (p.115-116)

Dimensão social

Ordens do discurso:

Nos procedimentos externos existe interdição no sentido em que ele rompe


com as três formas:
Tabu do objeto: o tema do trato digestivo é um tabu, a forma da poesia sonora
também é um tabu, chamado de barulhenta.
Ritual da circunstância: seu espaço é restrito, só é aceitável falar desse tema em
um contexto de consulta médica. A forma da poesia também, não é escutada por donas
de casa no rádio nem no programa do Faustão, por exemplo.
Direito privilegiado do sujeito que fala: só o médico está autorizado a falar do
tema e somente um acadêmico pode falar da poesia sonora.
Nos procedimentos internos: o discurso não está em um formato canônico por
isso sua audição causa estranhamento.

Efeitos ideológicos e políticos do discurso: rompe com todos os sistemas de


conhecimento e crenças do público, a poesia é aquilo que está impressa em um livro,
estruturada em versos e com o tema do amor, a música é aquilo que tem uma harmonia
baseada na escala diatônica, toca nas estações de rádio e aparece em revistas como a
Rolling Stone.

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