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Constituição, Política e Judiciário em uma


Sociedade de Risco Permanente:
um ensaio a partir da Teoria dos Sistemas*
Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia1

Resumo
O presente toma a Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann para questionar pretensões
legislativas e, principalmente, judiciais de controle dos riscos inerentes à Modernidade através
do Direito. Por fim, ilustra tal tentativa na recente tendência de centralização do controle de
constitucionalidade no Brasil, questionando até que ponto se pode, juridicamente, querer
vincular o futuro.

Palavras-chave: Constituição; Teoria dos Sistemas; Tribunais; Risco.

Sumário: Colocação do Problema. 1. A Política e o Risco nas Sociedades Modernas. 2. Non


Liquet. Os Tribunais e as Decisões Judiciais. Referências Bibliográficas.

Colocação do Problema

Pretendemos discutir o papel do Direito e, mais especificamente, dos Tribunais, na


atualidade. Para isso, valer-nos-emos da Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann (e Rafaelle
De Giorgi). Com a Teoria Luhmanniana, queremos descrever a maneira como a sociedade
deste começo do novo século — uma sociedade complexa, diferenciada funcionalmente —
lida com os riscos (ambientais, econômicos, sociais, etc.) gerados por ela mesma.
Com o fim da Idade Média houve um processo de diferenciação funcional2 que gerou
sistemas sociais autônomos e autopoiéticos3. A diferenciação funcional, no entanto, não
impede que sistemas diferentes forneçam serviços uns para os outros. É o que acontece com
os sistemas do Direito e da Política que, com a aquisição evolutiva representada pela

*
Publicado originalmente na Revista Eletrônica Metacritica, Lisboa, v.6, p. 1-16, 2005. http://metacritica.ulusofona.pt.
1
Mestre e Doutor em Direito Constitucional – UFMG. Professor de Direito Constitucional na Faculdade Batista de Minas
Gerais. E-mail: alexprocesso@gmail.com.
2
A diferenciação funcional dos sistemas sociais ocorre no final da Idade Média, quando “en un cierto momento la
recursividad de la reproducción autopoiética comienza a comprenderse a sí misma y alcance una cerradura a partir de la cual
para la política sólo cuenta la política, para el arte sólo el arte, (...) mientras que los correspondientes entornos sociales
internos (...) se perciben sólo como ruido irritante o como molestias” (LUHMANN e DE GIORGI, 1993:326). É aí que
ganham autonomia sistêmica (frente à Religião), a Política, o Direito, a Arte, etc.
3
A autopoiese, conceito-chave na Teoria dos Sistemas, vem da biologia, desenvolvida por Maturana. Segundo Luhmann e
De Giorgi (1993:39), dizer que um sistema é autopoiético significa que ele produz não só suas próprias estruturas, mas
também os seus elementos constitutivos, isto é, “[l]os elementos (...) de los cuales los sistemas autopoiéticos están
constituidos, no tienen una existencia independiente (...). Más bien son producidos por el sistema, y exactamente por el hecho
de que (...) son utilizados como distinciones (...) que producen la diferencia en el sistema”.
2

Constituição, realizam um acoplamento estrutural (cf. infra, n. 2), o que permite o


fornecimento de serviços mútuos.
Os Tribunais, por seu turno, como subsistema do Direito, assumem uma posição
especial nessa estrutura, justamente pela referência à Constituição e, logo, à ligação entre
Direito e Política. Mais do que isso, os Tribunais possuem a singular característica de não
poderem se abster de decidir, o que proporcionará uma possibilidade única de interpretação
do passado e tentativa de vinculação do futuro. Isso nos remete novamente à questão do risco,
pois qualquer tentativa de vinculação do futuro corre o risco de se frustrar. Para exemplificar,
relembramos, por um lado, as tentativas da burocracia do Welfare State de vincular
prospectivamente o futuro e, por outro, o dado mais recente do Supremo Tribunal Federal na
Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 1 de vincular a atividade cognitiva dos demais
juízes.

1. O Risco nas Sociedades Modernas

Vivemos em comunidades altamente complexas, plurais e por que não dizer:


improváveis. Até a Idade Média, a referência a uma base legitimante transcendental manteve
unidos os homens em torno de um mesmo clã, de um mesmo império ou ainda sob o mesmo
feudo. O Iluminismo, contudo, procurou refutar todos esses fundamentos. Refuta-se tudo o
que não pode ser apreendido racionalmente. Crê-se que a razão humana, compartilhada por
todos, pode conhecer e dominar todas as coisas. A afirmação da igualdade e da liberdade
(bases do constitucionalismo) foi primeiramente defendida pelo Absolutismo: o soberano
acaba com os privilégios, colocando todos como igualmente inferiores e dependentes dele.
Paradoxalmente, como mostra Juliana N. Magalhães (2000:159), isso acaba por se
virar contra aquele, pois o potencial universalizante contido na idéia de primado da “razão”,
permitiu que os súditos (agora indivíduos) vissem que, “por ser universal, a razão pode ser
alcançada por todos, e que, finalmente, também eles podiam fazer ‘uso público da razão’”4.

4
Os postulados do racionalismo tiveram grandes méritos. A afirmação da racionalidade de “todos” levou à afirmação da
igualdade e da liberdade de cada um; a isso se somou a idéia de que todos eram proprietários, ao menos, do próprio corpo. De
Giorgi (1991) afirma que a distinção (igualdade—desigualdade) “inicia a sua história política e social na segunda metade do
século XVII e a conclui na segunda metade do século XIX”. Até então a desigualdade entre castas era natural, tida como
consoante a vontade divina. Afirmar a igualdade entre todos significaria colocar por terra toda a antiga estrutura social: talvez
aqui esteja o potencial mais “revolucionário” da época.
3

Como pressuposto para a afirmação da igualdade está a formação da semântica em


torno de um novo termo: indivíduo – um conceito tipicamente moderno, fruto de um sem
número de estruturas novas ou remodeladas ao final da Idade Média, como resposta aos
problemas que não podiam mais ser resolvidos ali. Quando essa distinção se generaliza no
séc. XVIII, o paradoxo da existência da igualdade e da desigualdade é encoberto pelo Direito
pelo recurso à formula: “igualdade formal” e “desigualdade material” (DE GIORGI, 1991).
O Direito reconhece que existe uma desigualdade de fato entre os indivíduos, mas a
isso contrapõe um tratamento igual, pelo menos no que tange ao Direito Positivo estatal. Mas
porque a desigualdade é um fato e porque o tratamento igualitário muitas vezes parecia
contrário aos princípios do Direito, a desigualdade acaba sempre por reentrar no Sistema; a
diferença em relação às sociedades anteriores está em como se dá o reentrar, já que sempre
haverá desigualdade (toda tentativa de igualação gera desigualdade), ou, como conclui DE
GIORGI (1991), a “sociedade de iguais só se realizará depois do juízo final”.
Assim, assentada a nova estrutura e suas respectivas semânticas, percebe-se que o
recurso a uma racionalidade universal significou um ganho evolutivo num primeiro momento,
porém, aos poucos se tornou incompatível com a crescente complexidade da sociedade,
constituída de vários subsistemas sociais diferenciados (autonomizados). Num ambiente em
que os indivíduos não possuem mais referências comuns (nem transcendentais e nem
racionais), não demora muito para que os próprios postulados da racionalidade cartesiana
sejam postos em dúvida. Exemplo disso é a coexistência no mundo moderno de (pelo menos)
duas “físicas”, sem que qualquer uma delas possa cartesianamente eliminar a outra, por não
conseguir superá-la totalmente.
A racionalidade individualista é posta em cheque. A perspectiva “científica” que
separava “sujeito, objeto e método” deve ser repensada (cf. DE GIORGI, 1998:196). Mais
especialmente nas ciências “humanas”, quaisquer teorias que procurem postular uma
normatividade, apelando para argumentos “racionais”, correm o risco de serem postas à
refutação: “qual racionalidade?”.
Como mostram Luhmann e De Giorgi (1993:34), as teorias sociológicas de então não
haviam conseguido sair desse modelo sujeito-objeto. A Teoria dos Sistemas, ao invés disso,
4

não trabalha com um “sujeito”, mas com um “observador sociológico”, que não se coloca
frente a um “objeto”, mas a distinções5.
É sobre a sociedade formada por sistemas funcionalmente diferenciados, que os
operadores do Direito têm de operar. Uma sociedade que é complexa – pois formada por
subsistemas que, ao assimilarem cognitivamente irritações vindas do ambiente, diminuem a
complexidade deste, enquanto aumentam sua própria complexidade – e excludente – na
mesma medida em que procura se incluir.
Quais as perspectivas do Direito e da Democracia em tal situação? As perspectivas
iluministas, como dissemos, não nos fornecem uma resposta razoável, mas, ao mesmo tempo,
não há substitutos funcionais para estruturas ali construídas, como “separação da sociedade e
Estado” ou mesmo “liberalismo” e “socialismo” (DE GIORGI, 1998:37-38).
É lícito, pois, questionarmos sobre, afinal, o significado de “democracia” para a
sociedade hoje, ao mesmo tempo em que tantos já se preocupam com as possibilidades de seu
futuro.
Por paradoxal que possa parecer, talvez justamente quando todos os pressupostos
idealizantes do Iluminismo tenham se dissipado (ou ao menos foram relidos), é possível que a
estrutura da sociedade contemporânea faça surgir “os pressupostos para uma prática
democrática concreta” (DE GIORGI, 1998:42). Esses pressupostos consistiriam na completa
positivação do sistema jurídico e na universalização dos meios de comunicação de massa.
Onde, pois, o risco? Como não há um sistema que se sobreponha aos demais, que
possua internamente a função de promover a integração social (cf. INNERARITY, 2001:228),
como – desde a Teoria dos Sistemas de N. Luhmann – não podemos confiar na formação de
consensos a partir de “discursos racionais”. Conforme dissemos, dessa forma, não é plausível
apostar em qualquer teoria normativa que se funda na racionalidade; surge a questão: o que
mantém unida a sociedade e até que ponto ela pode assim permanecer?
Como preceitua Menelick C. Netto (2003:145):
Ora, a produção e a reprodução dessa sociedade altamente complexa tornou-se possível não
pela nossa efetiva e permanente participação nas decisões públicas, mas ao contrário, como
demonstra Niklas Luhmann, por um processo interno de diferenciação e especialização
funcionais da sociedade em diversos subsistemas sociais.

5
Conexo a este termo está o conceito de forma, vindo de George S. Brown (cf. LUHMANN e DE GIORGI, 1993:34-35 e
DE GIORGI, 1991). Cada sistema social opera clausurado, ainda que, ao mesmo tempo, possa se abrir cognitivamente ao
ambiente. O recurso à forma e à distinção, permite-nos ver a relação que Luhmann estabelece entre o sistema e o ambiente:
estes são as duas partes de uma forma que não existem como tal sem a outra. Assim é que o sistema do Direito, e.g., é a
unidade da diferença entre Direito e ambiente (isto é, não-direito). As operações realizadas por cada sistema nada mais são do
que repetição recursiva de sua diferenciação frente ao ambiente.
5

A Política exerceu, durante algum tempo, essa função integradora, ao se posicionar


contra a ordem estratificada de privilégios e afirmar a autonomia pública dos cidadãos. Mas,
ao cumprir essa missão, formaram-se as condições para que ela se diferenciasse como um
sistema autônomo (DE GIORGI, 1998:41).
O sistema da Política, que trabalha com o código binário poder/não-poder, opera de
modo a produzir consenso. No entanto, cada decisão do sistema sobre informações vindas do
ambiente reduz a complexidade deste e aumenta a daquele. Aí está o primeiro risco de
dissenso, pois toda decisão política leva ao questionamento sobre as possíveis conseqüências
que outras decisões teriam produzido. O “permanecer aberto” significa predisposição ao risco
de dissenso, já que só se produz consenso a partir do dissenso, ao mesmo tempo em que
todo consenso é apenas o primeiro passo para um dissenso futuro (cf. FARIA, 1978:32).
A crescente impossibilidade de consenso é potencializada por uma sociedade de consumo que
cobra contínua especialização de interesses e necessidades (gerando complexidade) e, ao
mesmo tempo, impõe padrões médios às pessoas (aqueles, por sua vez, redutores de
complexidade).
Desde a T. dos Sistemas, pode-se dizer que o sistema da Política, para ser
democrático, tem de lidar com o risco de manter alta a complexidade do ambiente, para que a
representação parlamentar possa continuar exprimindo os temas públicos (isto é, manter alta a
complexidade social, deixar os horizontes de escolha abertos). É importante salientar que a
função que ela exerce possui o fator do risco não como anomalia, mas como algo inerente.
Numa época de “grandes construções” da sociedade através da Política e do Direito
(que poderíamos chamar de “primeira modernidade”), prevaleciam as soluções burocráticas
que, ofuscando as distinções (como a citada distinção igualdade/desigualdade), privilegiavam
apenas um lado, como, e.g., a produção de igualdade material, buscada pelo Estado de Bem-
Estar. Nas burocracias do Welfare State, o futuro prospectivamente delimitado, gerava certeza
no presente, o que produzia estabilidade para que fossem postos em prática os programas.
A representação do futuro, então, fornecia orientações úteis às ações: na grande
complexidade da sociedade contemporânea as formas das suas auto-descrições — que
constituíram somente esquemas de simplificação da sociedade possível — davam
plausibilidade às decisões, porque permitiam tratar como previsíveis ou até como objeto de
expectativas partilhadas, o dano que eventualmente derivasse daquelas decisões (DE
GIORGI, 1998:186)6.

6
Como mostra o autor, as distinções dessa época (amigo/inimigo; igualdade/desigualdade) possuíam axiologicamente um
sinal positivo e outro negativo: mais riqueza de uma parte, menos de outra. Muito mais do que tentativas de denúncia, estas
descrições tinham a tendência perversa de manter — ao invés de superar — as próprias distinções (DE GIORGI, 1998:187).
6

A tentativa de eliminação do risco levava justamente à manutenção da situação que se


questionava, que se tentava superar, ao se estabelecer condições de normalidade
(regularidade, razoabilidade), às quais se contrapunham outras classificadas como desviantes.
Contudo, os acontecimentos dos últimos anos do século passado – podemos aqui citar,
e.g., a queda do comunismo; ascensão de neo-totalitarismos fundamentalistas,
paradoxalmente na mesma proporção em que se decantava a globalização; neoliberalismo;
terrorismo em escala global; a questão da soberania dos Estados europeus face à União
Européia, etc. – colocaram por terra as “certezas” (DE GIORGI, 1998:189) até então
intocadas.
Percebeu-se que a regularidade feita com base em distinções que se apresentavam
como sólidas e definitivas, na verdade, era contingencial. A “normalidade” é basicamente
feita de decisões (que poderiam ter sido outras), tomadas a partir de eventos (contingentes)
ocorridos em certos momentos (igualmente contingentes) (cf. DE GIORGI, 1998:190)7.
Dessa forma, desde a T. dos Sistemas, percebe-se um claro processo de evolução
social8, justamente a partir do que, a princípio, aparecia como desvio (e que recursivamente
acaba por se impor).
Assim, o próprio risco é uma aquisição evolutiva de tratamento das improbabilidades.
As sociedades, no entanto, sempre tentaram controlá-lo. De Giorgi (1998:190) mostra como
historicamente foram usados vários artifícios (adivinhação, tabu, pecado, e, hodiernamente, o
acaso e o incidente). Contudo, prever estatisticamente que um evento danoso possa ocorrer,
não impede que ele ocorra (e.g., prever que, algum dia, Los Angeles vai ser destruída por um
terremoto causado pela Falha de San Andreas); isso é ainda pior quando dito evento
estatisticamente, pois pode ocorrer basicamente em função de ter sido posto em atividade –
e.g., “o fato de se saber que um reator nuclear pode explodir a cada milhão de anos, não
exclui que isso possa acontecer amanhã” (DE GIORGI, 1998:191).
No campo das ciências humanas, também podemos dizer, e.g., que à Política não
parecem mais caber os “grandes projetos ou ideais”, próprios do Iluminismo ou do Welfare

7
“La representación de ‘realidades’ es siempre una representación vinculada a un contexto (...). [C]uando se actúa así, la
contingencia se hace automáticamente visible (...). No hay posiciones de observación privilegiadas, puntos de vista exentos
desde los cuales pudieran ser formulados de manera ontológica los hechos sociales” (INNERARITY, 2001:226-227). Cf.
também Gilles Lipovetsky (2004:6).
8
Segundo Luhmann e De Giorgi (1993:201), podemos dizer que “la teoría de la evolución se ocupa (...) de la cuestión de
cómo se puede explicar el hecho de que, en un mundo que ofrece y mantiene siempre también otras cosas, surjan sistemas
más complejos, y eventualmente se ocupa también de por qué la formación de estos sistemas no había sucedido”. Os
componentes dessa evolução são: variação (elementos inicialmente desviantes), seleção (das expectativas do sistema, a partir
do desvio) e por fim reestabilização (idem, p. 217).
7

State. Como exemplo, podemos citar o profundo estudo que Luhmann fez a respeito do que
ele chamou de a “causalidade no sul” (LUHMANN e CORSI, 1998), em que analisa o Sul da
Itália, com base em toda sorte de engenharia social e burocrática, que apenas conseguiu
reforçar aquilo que pretendia eliminar (a máfia, a corrupção e a miséria).
Podemos falar, outrossim, do “fim” do modelo de Constituição Dirigente, tal qual
proposto por J. J. Canotilho, isto é, do fim de uma crença – muito presente durante a maior
parte do século passado – segundo a qual a Política, dando cumprimento aos ditames da
Constituição, colocar-se-ia na posição de realizar tecnocraticamente grandes projetos que se
pressupunham queridos por todos. Aliás, o próprio jurista português, ao publicar a 2ª edição
do seu “Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador”, revê seus postulados (cf.
CANOTILHO, 2001, Prefácio e COUTINHO, 2003).
Percebe-se que o risco da democracia consiste hoje nesta permanecer
permanentemente aberta à tematização pública, aos influxos comunicativos do ambiente,
sob pena de que um fechamento cognitivo, dadas as atuais circunstâncias de acelerada
evolução social, torne suas estruturas obsoletas e o próprio sistema seja incapaz de
promover suas operações, sua autopoiese. Ainda assim, “[n]a nossa sociedade, as
possibilidades são maiores do que em qualquer outra: democracia é a contínua multiplicação
de possibilidades decisórias, com base no pressuposto da diferenciação que caracteriza a
sociedade moderna” (DE GIORGI, 1998:42).
O risco da estabilização da democracia pode significar uma – danosa – indiferença
entre o sistema da Política e o sistema do Direito; é o se denomina corriqueiramente de
“politização do Direito” ou “substituição da Política pelo Direito” (cf. DE GIORGI, 1998:44-
45). Nesse sentido, a criação de Tribunais Constitucionais, no começo do século passado, a
partir das idéias de Hans Kelsen, causou fortes reações por parte de um bom número de
juristas, que viam naqueles justamente uma injustificável “politização do Direito”. Entre eles,
destacou-se Carl Schmitt9.
O que se pode afirmar, no que toca ao tempo da Política, é a certeza da mudança em
sua relação com o Direito e com os demais sistemas. E, na verdade, como temos dito, esses

9
Schmitt (1983:93) defendia que a atribuição de soluções judiciais a problemas políticos apenas traz prejuízos para o Poder
Judiciário, pois representaria mais uma politização da justiça, do que uma judicialização da política. Sua alternativa para o
“Guardião da Constituição” era de que o único que ainda manteria a característica de representar plebiscitariamente o povo
em sua unidade, seria o Presidente do Reich, porque seria o único a se manter acima de todos os interesses parciais (idem, p.
30 e 222). O Reichspräsident se constituiria em uma instância neutra e superior, capaz de unificar a vontade estatal, diante da
“impureza” pluralista. Veja-se a resposta de Kelsen (1991).
8

fatores são absolutamente necessários ao desenvolvimento da democracia. Uma sociedade que


se queira democrática deve possuir uma Política capaz de estruturar a permanente mudança.
Mais uma vez coloca-se a questão: a substituição de uma decisão política (que causou
a insegurança) por outra, não resolve o problema – ou, se resolvesse um problema,
provavelmente criaria outro, movido por outras indeterminações de que não se poderia
cogitar. O paradoxo da sociedade moderna é que ela, ao mesmo tempo em que produz, e.g.,
igualdade, inclusão e segurança, cria ou reforça a desigualdade, exclusão e a insegurança
(p.ex., “na sociedade moderna há mais pobreza, exatamente porque há mais riqueza”, DE
GIORGI, 1998:193). As antigas distinções não podem dar conta dessas novas constatações.
O futuro significa agora apenas que é impossível haver um futuro linear. O futuro da
democracia é que há várias possibilidades. Por isso, temos usado com De Giorgi a forma do
risco (probabilidade/improbabilidade): ele é o único vínculo que se pode estabelecer com o
futuro, de determinar a indeterminação, numa sociedade sempre à beira de uma catástrofe10.
Essa condição de risco inerente – e, mais do que isso, do risco como algo que
dinamiza o sistema – muitas vezes não é bem vista. O que não se percebe é que ele é condição
estrutural da evolução dos sistemas. De fato, a todo tempo, a Política (geralmente através do
Direito) tenta criar mecanismos para barrá-lo. A estas estruturas seguem-se sempre
semânticas que envolvem, por exemplo, “segurança jurídica” ou “interesse social” (vide
infra). Sem embargo, tudo o que a sociedade pode fazer é tentar impedir que os desvios,
sendo recursivamente repetidos, consigam sublevar-se à condição de normalidade, destruindo
as estruturas de normalidade então existentes e que, por esse motivo, conferem segurança.
Lado a lado, frente aos desafios que o risco impõe à Política está o Direito e, no que
nos interessa aqui, os Tribunais. Face à crescente demanda de proteção dos Direitos
Fundamentais numa sociedade a tal ponto complexa, como os juízes têm se portado para
“controlar” o risco?
Vivemos um momento constitucional bem peculiar no Brasil. Desde a promulgação da
atual Constituição, tendências contrapostas têm lutado politicamente por se impor. Para
garantir a proteção e a efetividade dos direitos, a Constituição enumerou uma série de
garantias entre as quais o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos, que
manteve o sistema de controle difuso de constitucionalidade das leis, consagrado desde a
10
“Diante do risco da democracia, alguns países do leste europeu depositam novamente confiança aos velhos partidos
comunistas; diante do risco de uma economia de mercado russa, os nacional-patriótico-comunistas ocupam a Casa Branca de
Moscou; diante do risco da liberdade e da coexistência, os ex-iugoslavos massacram uns aos outros e praticam a purificação
étnica” (DE GIORGI, 1998:199).
9

primeira Constituição republicana (1891). No que toca ao sistema de controle concentrado,


manteve-se a Representação de Inconstitucionalidade (agora com o nome de Ação Direta de
Inconstitucionalidade) e novas ações foram criadas: Ação Direta de Inconstitucionalidade por
Omissão e Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (cf. infra).

2. Non Liquet. Os Tribunais e as Decisões Judiciais

Temos visto como o risco tem sido tratado nas sociedades modernas. Os sistemas se
protegem como podem, levantando barreiras contra influxos do ambiente que possam
perturbar seriamente seu funcionamento normal (um dos mecanismos usados nesse sentido é
a indiferença em face de outros sistemas).
No que tange aos sistemas do Direito e da Política, na Modernidade, eles se
diferenciam funcionalmente, funcionando com códigos próprios. Contudo, a
autoreferenciabilidade não é suficiente para os sistemas. Em razão disso, a necessidade, por
exemplo, de acoplamentos entre suas estruturas, o que lhes proporciona grande número de
vantagens11. Por outro lado, vimos que as decisões da Política, do Direito ou de qualquer outro
sistema são tão contingentes quanto os fenômenos que elas buscam responder.
Outro ponto importante a salientar é que, com o acoplamento, a Política se neutraliza
da necessidade de tomar decisões através do recurso à fórmula jurídica da “reforma”12 (tão em
voga em nossos dias). O Estado, sob o pretexto de “reforma”, exime-se de atuar, impedido
pelo esforço decorrente daquela e, aliás, impedido justamente pela falta daquela. A
Constituição coloca-se, assim, funcionalmente como mecanismo de acoplamento entre Direito
e Política, pelo qual ambos resolvem o paradoxo13 e a tautologia de seus fundamentos.
Como o sistema do Direito trata dos eventos que se lhe apresentam? Tendo em mira
que cada decisão é contingencial – outras poderiam, em tese, ser escolhidas – e provoca

11
Segundo Luhmann (s/d) a Constituição representa o acoplamento estrutural entre os sistemas da Política e do Direito, de
forma que, a partir da Constituição, estes podem se prestar serviços mútuos. Ver também J. N. Magalhães (2000:198) e
Luhmann e Corsi (1998). Através de Constituições escritas, Direito e Política não precisam mais se fundar no passado, mas
voltam-se prospectivamente para o futuro.
12
A “reforma” na Modernidade assume uma semântica bem diferente da que possuía antes. No século XVI a “Reforma”
Protestante possuía o sentido de fazer com que o Cristianismo “torna-se à sua forma” anterior (por isso “re-forma”); na
Modernidade, ao contrário, as novas estruturas do “progresso” e “evolução” mudam a semântica daquela palavra. Reforma
agora se dirige no sentido de mudar com vistas ao futuro, ou, ao menos, ao presente (i.é., “atualização”).
13
A solução do paradoxo do Direito (que produz a si mesmo e impõe sanções) é explicada por Habermas pela relação interna
entre aquele e a Política: o Direito se faz impor pela força do aparelho estatal (que atribui força coletivamente vinculante às
suas decisões). A Política, através do Direito, obtém forma jurídica. Isso explica a faticidade do Direito. Sua legitimidade,
contudo, surge doutra face daquela relação, isto é, o Direito cobra legitimidade a partir do processo de produção das normas
(HABERMAS, 1998, cap. III e IV e CATTONI DE OLIVEIRA, 2000). Ver também Juliana N. Magalhães (2000:198).
10

eventos e novas decisões – que, por sua vez, seriam absolutamente outros se outra tivesse sido
a decisão – podemos então nos perguntar: como é que os Tribunais decidem?
Cada sistema possui operações específicas através das quais se reproduz, além de
oferecer respostas aos estímulos do ambiente (inclusive ao permanecer inerte). Ocorre que, no
sistema do Direito, há um subsistema com uma função especial – formado a partir de
diferenciações internas14 daquele sistema total – que o coloca no centro de nossa atenção aqui.
São os Tribunais e isso, porque o fato de eles não poderem se abster de decidir, trouxe graves
conseqüências para o sistema do Direito: paradoxalmente, a obrigatoriedade de decidir deu
aos juízes a possibilidade de gozarem de maior liberdade de interpretação, não estando, por
exemplo, sob a interferência de qualquer reféré legislatif.
Ora, no século XVIII, os Tribunais ocupavam uma posição de “inferioridade” frente
ao legislador. Os Tribunais deveriam apenas aplicar as leis geradas por aquele. A lei era a
expressão da razão, logo, correta e justa, não cabendo ao juiz nada mais do que aplicá-la;
igualmente, pelas mesmas razões, não cabia ao juiz alegar “lacuna” ou “antinomia”,
recusando-se, assim, a julgar (era-lhe defeso alegar o non liquet). Essa “desconfiança” para
com os magistrados decorre de uma circunstância (contingencial): na Europa Continental, os
juízes representavam a longa manus de reis absolutistas, agindo muito mais no interesse
destes do que proporcionando “justiça”15.
Sob este primeiro paradigma constitucional [do Estado Liberal] (...), a questão da atividade
hermenêutica do juiz só poderia ser vista como uma atividade mecânica, resultado de uma
leitura direta dos textos que deveriam ser claros e distintos, e a interpretação algo a ser
evitado até mesmo pela consulta ao legislador na hipótese de dúvidas do juiz diante de
textos obscuros e intrincados. Ao juiz é reservado o papel de mera bouche de la loi
(CARVALHO NETTO, 2000:479).
Mas, já desde o século XIX, essa situação tem mudado. A teoria da completude do
ordenamento jurídico é posta em discussão; ao mesmo tempo, a atitude interpretativa do juiz é
rediscutida: além de ter de decidir todos os casos que lhe eram postos, ao mesmo tempo,
deveria fazê-lo de forma “justa” (LUHMANN, 2002).

14
Explicando a diferenciação interna do sistema do Direito, Luhmann (2002, todas as citações feitas aqui dessa obra se
referem ao capítulo 7: “El lugar de los tribunales en el sistema del derecho”) mostra que não está tratando das tradicionais
separações didáticas do Direito (público/privado; pessoas/coisas, etc.); nem ao menos se refere à diferença entre legislação e
jurisprudência, pois se trata de uma separação que ocorreu na Modernidade não por um processo de diferenciação interna do
sistema; mas tão só pela contingencial diferença de procedimentos.
15
Por isso, no que toca à interpretação, os liberais desenvolveram um método que, mais do que antes, mantinha o juiz
absolutamente preso à lei. A interpretação se restringia ao esclarecimento de algum ponto onde houvesse obscuridade (in
claris cessat interpretatio). Não por acaso surge logo após a edição do Código Civil francês a Escola Exegética, que se
propunha estudar o Código crendo que seus comentários poderiam fixar o sentido das regras ali constantes.
11

Observe-se, de toda sorte, que a decisão judicial, pela força do Direito, sempre fica
exonerada de um contínuo questionamento (em sentido semelhante, ainda que sob outra
perspectiva, HABERMAS, 1998:267).
Segundo Luhmann, o Direito funciona sob uma tríade: forçosidade, liberdade e
restrição. Por isso, pouco importa se os Tribunais, em seu afazer jurídico, estão se valendo
deste ou daquele axioma, desta ou daquela teoria, deste ou daquele método hermenêutico;
pois, ao fazê-lo, eles apenas cumprem o requisito constitucional da fundamentação jurídica
(na Constituição brasileira, esse requisito está expresso no art. 93, IX). Os Tribunais não
atuam para resolver problemas de calamidade pública ou urgências econômicas; há uma
separação entre os impulsos do ambiente e as operações do sistema.
Voltamos ao problema da “fundamentação” das decisões. Vê-se que dar qualquer
normatividade à fundamentação presente na sentença é algo, no mínimo, inofensivo (inútil,
dada a incerteza do futuro), mas pode até ser arriscado (justamente em função daquela
incerteza). Assim conclui Luhmann (2002): “Puede que ésta [decisão] posteriormente se
evidencie como especulación errónea, sin embargo, es válida y, distinto a lo que pasa con las
leyes, ya no puede cambiar en vistas a una nueva mezcla de consecuencias” (grifos
nossos).
Falamos que os Tribunais, ao decidir, teriam a possibilidade de fazê-lo doutra forma.
Mas, a partir da forçosidade de sua decisão, percebe-se que eles, a despeito de poderem
decidir de formas variadas, não possuem a alternativa sobre a própria decisão (LUHMANN,
2002). O paradoxo da proibição do non liquet está em que o Tribunal não desvela (des-cobre)
uma decisão que já existia a priori, mas que ele apenas decide, não só porque algo não está
ainda decidido, mas também porque é “indecidível” e, ainda assim, ele decide, justamente
porque a posição de terceiro excluído lhe abre essa alternativa.
A forçosidade coloca os tribunais numa posição central dentro do Sistema do Direito.
A periferia – o legislador, por exemplo – por não estar compelido a decidir, pode estar em
maior contato com o ambiente e, logo, receber mais facilmente impulsos de fora. Com isso, o
sistema garante sua autonomia, pois não coloca sua estrutura subserviente a imperativos
externos. Já o isolamento cognitivo dos Tribunais funciona como uma proteção necessária e
se mostra, por exemplo, na formalidade dos procedimentos judiciais e até na constatação de
que apenas uma pequena parte dos conflitos chegam a ser conhecidos por eles (LUHMANN,
2002).
12

Luhmann (2002) coloca aqui a importante questão do tempo da decisão. Tomando-se o


presente como a unidade da diferença entre o passado e o futuro, como pode a decisão
judicial ter efeito sobre o “já-não-cambiável” (o passado) e o “todavia-cambiável” (o
futuro), para que possa introduzir na simultaneidade do mundo a forma de uma
alternativa?
Sua resposta é:
En relación a los horizontes de tiempo (pasado / futuro) uno se puede comportar de manera
selectiva, ya que los horizontes no necesariamente son actuales. Con este comportamiento
selectivo se puede construir una alternativa que, por su parte, permite aprehender la
situación como situación de decisión (LUHMANN, 2002, grifo nosso).
Assim, torna-se possível uma decisão que não se deixa ficar presa pelo passado e tenta
determinar o futuro, ainda que, como já dissemos, isso implique assumir o risco da incerteza
desse futuro, sempre dependente de novas decisões e eventos. O risco está presente no
momento em que a decisão interrompe a ligação do passado com o futuro e passa a querer
interferir neste último.
Isso posto, podemos agora questionar: como pode o Supremo Tribunal Federal
querer, com fundamento em argumentos como “segurança jurídica” ou ”excepcional interesse
público” (lei 9.868/99, arts. 27 e 28, parágrafo único), acreditar que possui condições de
regular o passado e determinar, uma vez para sempre, o futuro? Qual o risco de um tal auto-
entendimento?
Vejamos a Ação Declaratória de Constitucionalidade, que nos servirá de mote para
concluir este trabalho. Após todas as conquistas democráticas representadas na Constituição
de 1988, vivemos no Brasil um momento muito peculiar no que toca ao controle de
constitucionalidade. Com a Emenda Constitucional n. 3, de 1993, cria-se – ao lado das ações
de controle já previstas no texto original – a Ação Declaratória de Constitucionalidade, objeto
de diversas críticas.
A introdução dessa nova ação causou grande comoção entre os juristas pátrios, que
viam nela desde uma contradição em termos (já que toda lei possuiria presunção de
constitucionalidade, princípio este decorrente dos princípios da legalidade e do Estado de
Direito), até questionamentos quanto ao caráter vinculante das decisões definitivas de mérito
sobre os órgãos do Executivo e os demais órgãos do Judiciário.
Com essa inovação, bem como com a promulgação das leis 9.868/99 e 9.882/99 (esta
última regulamentou a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental), percebe-se uma
indisfarçável limitação da possibilidade de questionamento da inconstitucionalidade de uma
13

lei ou ato normativo; limitação esta justificada muitas vezes sob o argumento de se evitar o
“risco” da multiplicação de ações individuais argüindo a inconstitucionalidade16, isto é, que
ocorra a recursividade de operações desviantes que as transformem em estruturas,
subjugando as velhas distinções. Senão vejamos:
O efeito vinculante que agora a decisão do Supremo Tribunal terá, significa, na
prática, colocar fim a quaisquer discussões que alguma lei federal esteja sofrendo quanto à sua
constitucionalidade pelo País. Dessa forma, o risco, que poderia significar a discussão em
massa de uma determinada lei que interesse diretamente à estrutura governamental do
momento, é barrado, desde cima e definitivamente, sob argumentos como “segurança
jurídica” e “interesse social”. Essa postura pode ser constatada em alguns votos de Ministros
do Supremo Tribunal ao julgarem a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) n. 1,
na qual a questão da própria constitucionalidade da existência da ação foi debatida
preliminarmente.
Assim, segundo o Relator da decisão, Min. Moreira Alves, a ADC seria cabível
quando houvesse uma disseminada insegurança jurídica – criada, diríamos, pelo fato de que
pessoas, face à lesão de seus direitos por uma lei inconstitucional, tumultuassem o Judiciário
com suas ações. No Brasil isso ainda seria “pior”, dada
[a] força outorgada aos juízes de 1ª instância (...) [que] subverte a hierarquia [?]
necessária17 — e mais do que isto — a tranqüilidade para a preservação da ordem jurídica,
pois qualquer questão constitucional da maior relevância pode ser decidida de forma
satisfativa, desde que o Tribunal imediatamente superior não suspenda a eficácia de
decisões que garantam benefícios ou direitos. Podendo um juiz de 1ª instância, na hipótese
aventada, ofertar satisfação definitiva do direito pleiteado e não podendo um Ministro de
Tribunal Superior agir senão quando, na tramitação procedimental, as questões forem-lhe
submetidas, não é desavisado dizer que hoje um juiz de 1ª instância (...), é mais forte
que um Ministro do STJ ou STF (MENDES, 1994:81-82, grifos nossos)18.
Desse modo, sob uma mesma Constituição, vemos a paradoxal atuação dos sistemas
do Direito e da Política excluindo e desigualando, justamente na medida em que pretendem

16
A matriz dessas inovações encontra-se no sistema alemão, trazido até nós principalmente pelos trabalhos de Gilmar
Mendes. Aliás, não apenas nosso legislador tem abraçado institutos daquele sistema, como também já a jurisprudência e boa
parte da doutrina, cada vez mais, naturalizaram o recurso à fundamentação com base em juristas alemães e decisões do
Tribunal Constitucional daquele país. Veja-se, e.g., a alegada função “corretiva” do controle abstrato de constitucionalidade,
que permitiria superar a “insegurança jurídica” e “injustiças” provocadas pela multiplicação de ações (MENDES, 1998:77).
17
Alerte-se que uma tal posição vai de encontro a princípio secular de Direito Processual segundo o qual o magistrado é livre
e independente no seu convencimento. Este é um princípio que se aplica não apenas frente aos demais poderes, mas também
em face de outros tribunais “superiores”, pois a “hierarquia dos graus de jurisdição nada mais traduz do que uma
competência de derrogação e nunca uma competência de mando da instância superior sobre a inferior” (CINTRA e outros,
1999:160).
18
Trecho do voto do Min. Moreira Alves na ADC n. 1. O Ministro Francisco Rezek, por sua vez, também colocando a ADC
como meio para se evitar decisões contrárias pelo País argumenta: “Foi para evitar a reprodução de situações como aquelas
que em passado recente o país enfrentou, foi para simplificar o procedimento, foi para fazer com que quem tem qualidade
para isso, o mais cedo possível dissesse uma palavra final sobre a questão jurídica controvertida, que o legislador entendeu
de instituir a declaratória de constitucionalidade” (grifos nossos).
14

buscar a inclusão e a igualdade. Como tivemos a oportunidade de mostrar, isso é possível


apenas na Modernidade, quando a “democracia vai significar, sobretudo, então, que a inclusão
e a exclusão são controladas por cada um dos sistemas sociais. No caso da Política, esse
controle dá-se a partir de um acoplamento estrutural dessa com o direito” (MAGALHÃES,
2000:318).
Ora, tomando-se como exemplo a decisão na ADC n.1, percebe-se o quanto aquelas
influências se fazem presente não apenas nas razões de decidir, mas também na parte
dispositiva da decisão. O que a ADC faz é impedir que o sistema opere em sua plenitude,
porque barra (principalmente quando aqui é concedida cautelar) o normal funcionamento
dos demais tribunais, criando uma anormal seletividade interna, onde apenas um órgão
possui o conhecimento da matéria. Por outro lado, decidindo de forma abstrata, sem um
caso concreto subjacente, a decisão do Tribunal tende a se distanciar da realidade, ligando-se
tão só às “informações” recebidas pelo órgão que emitiu a norma ou, eventualmente, a juízo
do Ministro Relator, de informações/pareceres de outros órgãos (Lei 9.868/99).
E mais, opera o Supremo Tribunal como se pudesse, através de sua decisão, regular o
futuro e até mesmo o passado, quando, como vimos, isso é altamente improvável, por
desconhecer – por ser, aliás, impossível conhecer – entre outras coisas, que o futuro é incerto,
que sua decisão provoca um sem número de outras decisões e eventos, ao invés de deixar a
cada juiz a possibilidade de, aí sim, diante das conseqüências da decisão, poder operar para
solucionar os problemas dela decorrentes (lidando com o risco no nível particular do caso
concreto).
Nesse sentido, convém ainda nos valermos das observações que, a despeito de uma
perspectiva interna, não impediram a Barbosa Moreira (2004:32) perceber a questão que
vimos trabalhando:
[Ao] juiz, quando lhe cabe julgar uma causa, é impossível prever a extensão integral do
terreno que sua sentença direta ou indiretamente afetará, assim como o menino que atira
uma pedrinha no lado é incapaz de adivinhar até onde chegarão os círculos concêntricos
que seu gesto simples desenha na superfície da água.
Concluindo, pretensões como a da Ação Declaratória de Constitucionalidade,
principalmente quando se dão num Estado Democrático de Direito, vêm de encontro à
constatação luhmanniana – se os Tribunais estão forçosamente obrigados a decidir, por outro
lado, é justamente por isso que eles têm a possibilidade de transformar essa obrigação em
liberdade, no mesmo passo em que conscientes da contingência e limitações em que essas
decisões irão operar.
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