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Resumo
O presente toma a Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann para questionar pretensões
legislativas e, principalmente, judiciais de controle dos riscos inerentes à Modernidade através
do Direito. Por fim, ilustra tal tentativa na recente tendência de centralização do controle de
constitucionalidade no Brasil, questionando até que ponto se pode, juridicamente, querer
vincular o futuro.
Colocação do Problema
*
Publicado originalmente na Revista Eletrônica Metacritica, Lisboa, v.6, p. 1-16, 2005. http://metacritica.ulusofona.pt.
1
Mestre e Doutor em Direito Constitucional – UFMG. Professor de Direito Constitucional na Faculdade Batista de Minas
Gerais. E-mail: alexprocesso@gmail.com.
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A diferenciação funcional dos sistemas sociais ocorre no final da Idade Média, quando “en un cierto momento la
recursividad de la reproducción autopoiética comienza a comprenderse a sí misma y alcance una cerradura a partir de la cual
para la política sólo cuenta la política, para el arte sólo el arte, (...) mientras que los correspondientes entornos sociales
internos (...) se perciben sólo como ruido irritante o como molestias” (LUHMANN e DE GIORGI, 1993:326). É aí que
ganham autonomia sistêmica (frente à Religião), a Política, o Direito, a Arte, etc.
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A autopoiese, conceito-chave na Teoria dos Sistemas, vem da biologia, desenvolvida por Maturana. Segundo Luhmann e
De Giorgi (1993:39), dizer que um sistema é autopoiético significa que ele produz não só suas próprias estruturas, mas
também os seus elementos constitutivos, isto é, “[l]os elementos (...) de los cuales los sistemas autopoiéticos están
constituidos, no tienen una existencia independiente (...). Más bien son producidos por el sistema, y exactamente por el hecho
de que (...) son utilizados como distinciones (...) que producen la diferencia en el sistema”.
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Os postulados do racionalismo tiveram grandes méritos. A afirmação da racionalidade de “todos” levou à afirmação da
igualdade e da liberdade de cada um; a isso se somou a idéia de que todos eram proprietários, ao menos, do próprio corpo. De
Giorgi (1991) afirma que a distinção (igualdade—desigualdade) “inicia a sua história política e social na segunda metade do
século XVII e a conclui na segunda metade do século XIX”. Até então a desigualdade entre castas era natural, tida como
consoante a vontade divina. Afirmar a igualdade entre todos significaria colocar por terra toda a antiga estrutura social: talvez
aqui esteja o potencial mais “revolucionário” da época.
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não trabalha com um “sujeito”, mas com um “observador sociológico”, que não se coloca
frente a um “objeto”, mas a distinções5.
É sobre a sociedade formada por sistemas funcionalmente diferenciados, que os
operadores do Direito têm de operar. Uma sociedade que é complexa – pois formada por
subsistemas que, ao assimilarem cognitivamente irritações vindas do ambiente, diminuem a
complexidade deste, enquanto aumentam sua própria complexidade – e excludente – na
mesma medida em que procura se incluir.
Quais as perspectivas do Direito e da Democracia em tal situação? As perspectivas
iluministas, como dissemos, não nos fornecem uma resposta razoável, mas, ao mesmo tempo,
não há substitutos funcionais para estruturas ali construídas, como “separação da sociedade e
Estado” ou mesmo “liberalismo” e “socialismo” (DE GIORGI, 1998:37-38).
É lícito, pois, questionarmos sobre, afinal, o significado de “democracia” para a
sociedade hoje, ao mesmo tempo em que tantos já se preocupam com as possibilidades de seu
futuro.
Por paradoxal que possa parecer, talvez justamente quando todos os pressupostos
idealizantes do Iluminismo tenham se dissipado (ou ao menos foram relidos), é possível que a
estrutura da sociedade contemporânea faça surgir “os pressupostos para uma prática
democrática concreta” (DE GIORGI, 1998:42). Esses pressupostos consistiriam na completa
positivação do sistema jurídico e na universalização dos meios de comunicação de massa.
Onde, pois, o risco? Como não há um sistema que se sobreponha aos demais, que
possua internamente a função de promover a integração social (cf. INNERARITY, 2001:228),
como – desde a Teoria dos Sistemas de N. Luhmann – não podemos confiar na formação de
consensos a partir de “discursos racionais”. Conforme dissemos, dessa forma, não é plausível
apostar em qualquer teoria normativa que se funda na racionalidade; surge a questão: o que
mantém unida a sociedade e até que ponto ela pode assim permanecer?
Como preceitua Menelick C. Netto (2003:145):
Ora, a produção e a reprodução dessa sociedade altamente complexa tornou-se possível não
pela nossa efetiva e permanente participação nas decisões públicas, mas ao contrário, como
demonstra Niklas Luhmann, por um processo interno de diferenciação e especialização
funcionais da sociedade em diversos subsistemas sociais.
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Conexo a este termo está o conceito de forma, vindo de George S. Brown (cf. LUHMANN e DE GIORGI, 1993:34-35 e
DE GIORGI, 1991). Cada sistema social opera clausurado, ainda que, ao mesmo tempo, possa se abrir cognitivamente ao
ambiente. O recurso à forma e à distinção, permite-nos ver a relação que Luhmann estabelece entre o sistema e o ambiente:
estes são as duas partes de uma forma que não existem como tal sem a outra. Assim é que o sistema do Direito, e.g., é a
unidade da diferença entre Direito e ambiente (isto é, não-direito). As operações realizadas por cada sistema nada mais são do
que repetição recursiva de sua diferenciação frente ao ambiente.
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Como mostra o autor, as distinções dessa época (amigo/inimigo; igualdade/desigualdade) possuíam axiologicamente um
sinal positivo e outro negativo: mais riqueza de uma parte, menos de outra. Muito mais do que tentativas de denúncia, estas
descrições tinham a tendência perversa de manter — ao invés de superar — as próprias distinções (DE GIORGI, 1998:187).
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“La representación de ‘realidades’ es siempre una representación vinculada a un contexto (...). [C]uando se actúa así, la
contingencia se hace automáticamente visible (...). No hay posiciones de observación privilegiadas, puntos de vista exentos
desde los cuales pudieran ser formulados de manera ontológica los hechos sociales” (INNERARITY, 2001:226-227). Cf.
também Gilles Lipovetsky (2004:6).
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Segundo Luhmann e De Giorgi (1993:201), podemos dizer que “la teoría de la evolución se ocupa (...) de la cuestión de
cómo se puede explicar el hecho de que, en un mundo que ofrece y mantiene siempre también otras cosas, surjan sistemas
más complejos, y eventualmente se ocupa también de por qué la formación de estos sistemas no había sucedido”. Os
componentes dessa evolução são: variação (elementos inicialmente desviantes), seleção (das expectativas do sistema, a partir
do desvio) e por fim reestabilização (idem, p. 217).
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State. Como exemplo, podemos citar o profundo estudo que Luhmann fez a respeito do que
ele chamou de a “causalidade no sul” (LUHMANN e CORSI, 1998), em que analisa o Sul da
Itália, com base em toda sorte de engenharia social e burocrática, que apenas conseguiu
reforçar aquilo que pretendia eliminar (a máfia, a corrupção e a miséria).
Podemos falar, outrossim, do “fim” do modelo de Constituição Dirigente, tal qual
proposto por J. J. Canotilho, isto é, do fim de uma crença – muito presente durante a maior
parte do século passado – segundo a qual a Política, dando cumprimento aos ditames da
Constituição, colocar-se-ia na posição de realizar tecnocraticamente grandes projetos que se
pressupunham queridos por todos. Aliás, o próprio jurista português, ao publicar a 2ª edição
do seu “Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador”, revê seus postulados (cf.
CANOTILHO, 2001, Prefácio e COUTINHO, 2003).
Percebe-se que o risco da democracia consiste hoje nesta permanecer
permanentemente aberta à tematização pública, aos influxos comunicativos do ambiente,
sob pena de que um fechamento cognitivo, dadas as atuais circunstâncias de acelerada
evolução social, torne suas estruturas obsoletas e o próprio sistema seja incapaz de
promover suas operações, sua autopoiese. Ainda assim, “[n]a nossa sociedade, as
possibilidades são maiores do que em qualquer outra: democracia é a contínua multiplicação
de possibilidades decisórias, com base no pressuposto da diferenciação que caracteriza a
sociedade moderna” (DE GIORGI, 1998:42).
O risco da estabilização da democracia pode significar uma – danosa – indiferença
entre o sistema da Política e o sistema do Direito; é o se denomina corriqueiramente de
“politização do Direito” ou “substituição da Política pelo Direito” (cf. DE GIORGI, 1998:44-
45). Nesse sentido, a criação de Tribunais Constitucionais, no começo do século passado, a
partir das idéias de Hans Kelsen, causou fortes reações por parte de um bom número de
juristas, que viam naqueles justamente uma injustificável “politização do Direito”. Entre eles,
destacou-se Carl Schmitt9.
O que se pode afirmar, no que toca ao tempo da Política, é a certeza da mudança em
sua relação com o Direito e com os demais sistemas. E, na verdade, como temos dito, esses
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Schmitt (1983:93) defendia que a atribuição de soluções judiciais a problemas políticos apenas traz prejuízos para o Poder
Judiciário, pois representaria mais uma politização da justiça, do que uma judicialização da política. Sua alternativa para o
“Guardião da Constituição” era de que o único que ainda manteria a característica de representar plebiscitariamente o povo
em sua unidade, seria o Presidente do Reich, porque seria o único a se manter acima de todos os interesses parciais (idem, p.
30 e 222). O Reichspräsident se constituiria em uma instância neutra e superior, capaz de unificar a vontade estatal, diante da
“impureza” pluralista. Veja-se a resposta de Kelsen (1991).
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Temos visto como o risco tem sido tratado nas sociedades modernas. Os sistemas se
protegem como podem, levantando barreiras contra influxos do ambiente que possam
perturbar seriamente seu funcionamento normal (um dos mecanismos usados nesse sentido é
a indiferença em face de outros sistemas).
No que tange aos sistemas do Direito e da Política, na Modernidade, eles se
diferenciam funcionalmente, funcionando com códigos próprios. Contudo, a
autoreferenciabilidade não é suficiente para os sistemas. Em razão disso, a necessidade, por
exemplo, de acoplamentos entre suas estruturas, o que lhes proporciona grande número de
vantagens11. Por outro lado, vimos que as decisões da Política, do Direito ou de qualquer outro
sistema são tão contingentes quanto os fenômenos que elas buscam responder.
Outro ponto importante a salientar é que, com o acoplamento, a Política se neutraliza
da necessidade de tomar decisões através do recurso à fórmula jurídica da “reforma”12 (tão em
voga em nossos dias). O Estado, sob o pretexto de “reforma”, exime-se de atuar, impedido
pelo esforço decorrente daquela e, aliás, impedido justamente pela falta daquela. A
Constituição coloca-se, assim, funcionalmente como mecanismo de acoplamento entre Direito
e Política, pelo qual ambos resolvem o paradoxo13 e a tautologia de seus fundamentos.
Como o sistema do Direito trata dos eventos que se lhe apresentam? Tendo em mira
que cada decisão é contingencial – outras poderiam, em tese, ser escolhidas – e provoca
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Segundo Luhmann (s/d) a Constituição representa o acoplamento estrutural entre os sistemas da Política e do Direito, de
forma que, a partir da Constituição, estes podem se prestar serviços mútuos. Ver também J. N. Magalhães (2000:198) e
Luhmann e Corsi (1998). Através de Constituições escritas, Direito e Política não precisam mais se fundar no passado, mas
voltam-se prospectivamente para o futuro.
12
A “reforma” na Modernidade assume uma semântica bem diferente da que possuía antes. No século XVI a “Reforma”
Protestante possuía o sentido de fazer com que o Cristianismo “torna-se à sua forma” anterior (por isso “re-forma”); na
Modernidade, ao contrário, as novas estruturas do “progresso” e “evolução” mudam a semântica daquela palavra. Reforma
agora se dirige no sentido de mudar com vistas ao futuro, ou, ao menos, ao presente (i.é., “atualização”).
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A solução do paradoxo do Direito (que produz a si mesmo e impõe sanções) é explicada por Habermas pela relação interna
entre aquele e a Política: o Direito se faz impor pela força do aparelho estatal (que atribui força coletivamente vinculante às
suas decisões). A Política, através do Direito, obtém forma jurídica. Isso explica a faticidade do Direito. Sua legitimidade,
contudo, surge doutra face daquela relação, isto é, o Direito cobra legitimidade a partir do processo de produção das normas
(HABERMAS, 1998, cap. III e IV e CATTONI DE OLIVEIRA, 2000). Ver também Juliana N. Magalhães (2000:198).
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eventos e novas decisões – que, por sua vez, seriam absolutamente outros se outra tivesse sido
a decisão – podemos então nos perguntar: como é que os Tribunais decidem?
Cada sistema possui operações específicas através das quais se reproduz, além de
oferecer respostas aos estímulos do ambiente (inclusive ao permanecer inerte). Ocorre que, no
sistema do Direito, há um subsistema com uma função especial – formado a partir de
diferenciações internas14 daquele sistema total – que o coloca no centro de nossa atenção aqui.
São os Tribunais e isso, porque o fato de eles não poderem se abster de decidir, trouxe graves
conseqüências para o sistema do Direito: paradoxalmente, a obrigatoriedade de decidir deu
aos juízes a possibilidade de gozarem de maior liberdade de interpretação, não estando, por
exemplo, sob a interferência de qualquer reféré legislatif.
Ora, no século XVIII, os Tribunais ocupavam uma posição de “inferioridade” frente
ao legislador. Os Tribunais deveriam apenas aplicar as leis geradas por aquele. A lei era a
expressão da razão, logo, correta e justa, não cabendo ao juiz nada mais do que aplicá-la;
igualmente, pelas mesmas razões, não cabia ao juiz alegar “lacuna” ou “antinomia”,
recusando-se, assim, a julgar (era-lhe defeso alegar o non liquet). Essa “desconfiança” para
com os magistrados decorre de uma circunstância (contingencial): na Europa Continental, os
juízes representavam a longa manus de reis absolutistas, agindo muito mais no interesse
destes do que proporcionando “justiça”15.
Sob este primeiro paradigma constitucional [do Estado Liberal] (...), a questão da atividade
hermenêutica do juiz só poderia ser vista como uma atividade mecânica, resultado de uma
leitura direta dos textos que deveriam ser claros e distintos, e a interpretação algo a ser
evitado até mesmo pela consulta ao legislador na hipótese de dúvidas do juiz diante de
textos obscuros e intrincados. Ao juiz é reservado o papel de mera bouche de la loi
(CARVALHO NETTO, 2000:479).
Mas, já desde o século XIX, essa situação tem mudado. A teoria da completude do
ordenamento jurídico é posta em discussão; ao mesmo tempo, a atitude interpretativa do juiz é
rediscutida: além de ter de decidir todos os casos que lhe eram postos, ao mesmo tempo,
deveria fazê-lo de forma “justa” (LUHMANN, 2002).
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Explicando a diferenciação interna do sistema do Direito, Luhmann (2002, todas as citações feitas aqui dessa obra se
referem ao capítulo 7: “El lugar de los tribunales en el sistema del derecho”) mostra que não está tratando das tradicionais
separações didáticas do Direito (público/privado; pessoas/coisas, etc.); nem ao menos se refere à diferença entre legislação e
jurisprudência, pois se trata de uma separação que ocorreu na Modernidade não por um processo de diferenciação interna do
sistema; mas tão só pela contingencial diferença de procedimentos.
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Por isso, no que toca à interpretação, os liberais desenvolveram um método que, mais do que antes, mantinha o juiz
absolutamente preso à lei. A interpretação se restringia ao esclarecimento de algum ponto onde houvesse obscuridade (in
claris cessat interpretatio). Não por acaso surge logo após a edição do Código Civil francês a Escola Exegética, que se
propunha estudar o Código crendo que seus comentários poderiam fixar o sentido das regras ali constantes.
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Observe-se, de toda sorte, que a decisão judicial, pela força do Direito, sempre fica
exonerada de um contínuo questionamento (em sentido semelhante, ainda que sob outra
perspectiva, HABERMAS, 1998:267).
Segundo Luhmann, o Direito funciona sob uma tríade: forçosidade, liberdade e
restrição. Por isso, pouco importa se os Tribunais, em seu afazer jurídico, estão se valendo
deste ou daquele axioma, desta ou daquela teoria, deste ou daquele método hermenêutico;
pois, ao fazê-lo, eles apenas cumprem o requisito constitucional da fundamentação jurídica
(na Constituição brasileira, esse requisito está expresso no art. 93, IX). Os Tribunais não
atuam para resolver problemas de calamidade pública ou urgências econômicas; há uma
separação entre os impulsos do ambiente e as operações do sistema.
Voltamos ao problema da “fundamentação” das decisões. Vê-se que dar qualquer
normatividade à fundamentação presente na sentença é algo, no mínimo, inofensivo (inútil,
dada a incerteza do futuro), mas pode até ser arriscado (justamente em função daquela
incerteza). Assim conclui Luhmann (2002): “Puede que ésta [decisão] posteriormente se
evidencie como especulación errónea, sin embargo, es válida y, distinto a lo que pasa con las
leyes, ya no puede cambiar en vistas a una nueva mezcla de consecuencias” (grifos
nossos).
Falamos que os Tribunais, ao decidir, teriam a possibilidade de fazê-lo doutra forma.
Mas, a partir da forçosidade de sua decisão, percebe-se que eles, a despeito de poderem
decidir de formas variadas, não possuem a alternativa sobre a própria decisão (LUHMANN,
2002). O paradoxo da proibição do non liquet está em que o Tribunal não desvela (des-cobre)
uma decisão que já existia a priori, mas que ele apenas decide, não só porque algo não está
ainda decidido, mas também porque é “indecidível” e, ainda assim, ele decide, justamente
porque a posição de terceiro excluído lhe abre essa alternativa.
A forçosidade coloca os tribunais numa posição central dentro do Sistema do Direito.
A periferia – o legislador, por exemplo – por não estar compelido a decidir, pode estar em
maior contato com o ambiente e, logo, receber mais facilmente impulsos de fora. Com isso, o
sistema garante sua autonomia, pois não coloca sua estrutura subserviente a imperativos
externos. Já o isolamento cognitivo dos Tribunais funciona como uma proteção necessária e
se mostra, por exemplo, na formalidade dos procedimentos judiciais e até na constatação de
que apenas uma pequena parte dos conflitos chegam a ser conhecidos por eles (LUHMANN,
2002).
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lei ou ato normativo; limitação esta justificada muitas vezes sob o argumento de se evitar o
“risco” da multiplicação de ações individuais argüindo a inconstitucionalidade16, isto é, que
ocorra a recursividade de operações desviantes que as transformem em estruturas,
subjugando as velhas distinções. Senão vejamos:
O efeito vinculante que agora a decisão do Supremo Tribunal terá, significa, na
prática, colocar fim a quaisquer discussões que alguma lei federal esteja sofrendo quanto à sua
constitucionalidade pelo País. Dessa forma, o risco, que poderia significar a discussão em
massa de uma determinada lei que interesse diretamente à estrutura governamental do
momento, é barrado, desde cima e definitivamente, sob argumentos como “segurança
jurídica” e “interesse social”. Essa postura pode ser constatada em alguns votos de Ministros
do Supremo Tribunal ao julgarem a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) n. 1,
na qual a questão da própria constitucionalidade da existência da ação foi debatida
preliminarmente.
Assim, segundo o Relator da decisão, Min. Moreira Alves, a ADC seria cabível
quando houvesse uma disseminada insegurança jurídica – criada, diríamos, pelo fato de que
pessoas, face à lesão de seus direitos por uma lei inconstitucional, tumultuassem o Judiciário
com suas ações. No Brasil isso ainda seria “pior”, dada
[a] força outorgada aos juízes de 1ª instância (...) [que] subverte a hierarquia [?]
necessária17 — e mais do que isto — a tranqüilidade para a preservação da ordem jurídica,
pois qualquer questão constitucional da maior relevância pode ser decidida de forma
satisfativa, desde que o Tribunal imediatamente superior não suspenda a eficácia de
decisões que garantam benefícios ou direitos. Podendo um juiz de 1ª instância, na hipótese
aventada, ofertar satisfação definitiva do direito pleiteado e não podendo um Ministro de
Tribunal Superior agir senão quando, na tramitação procedimental, as questões forem-lhe
submetidas, não é desavisado dizer que hoje um juiz de 1ª instância (...), é mais forte
que um Ministro do STJ ou STF (MENDES, 1994:81-82, grifos nossos)18.
Desse modo, sob uma mesma Constituição, vemos a paradoxal atuação dos sistemas
do Direito e da Política excluindo e desigualando, justamente na medida em que pretendem
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A matriz dessas inovações encontra-se no sistema alemão, trazido até nós principalmente pelos trabalhos de Gilmar
Mendes. Aliás, não apenas nosso legislador tem abraçado institutos daquele sistema, como também já a jurisprudência e boa
parte da doutrina, cada vez mais, naturalizaram o recurso à fundamentação com base em juristas alemães e decisões do
Tribunal Constitucional daquele país. Veja-se, e.g., a alegada função “corretiva” do controle abstrato de constitucionalidade,
que permitiria superar a “insegurança jurídica” e “injustiças” provocadas pela multiplicação de ações (MENDES, 1998:77).
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Alerte-se que uma tal posição vai de encontro a princípio secular de Direito Processual segundo o qual o magistrado é livre
e independente no seu convencimento. Este é um princípio que se aplica não apenas frente aos demais poderes, mas também
em face de outros tribunais “superiores”, pois a “hierarquia dos graus de jurisdição nada mais traduz do que uma
competência de derrogação e nunca uma competência de mando da instância superior sobre a inferior” (CINTRA e outros,
1999:160).
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Trecho do voto do Min. Moreira Alves na ADC n. 1. O Ministro Francisco Rezek, por sua vez, também colocando a ADC
como meio para se evitar decisões contrárias pelo País argumenta: “Foi para evitar a reprodução de situações como aquelas
que em passado recente o país enfrentou, foi para simplificar o procedimento, foi para fazer com que quem tem qualidade
para isso, o mais cedo possível dissesse uma palavra final sobre a questão jurídica controvertida, que o legislador entendeu
de instituir a declaratória de constitucionalidade” (grifos nossos).
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