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Após 'Lavoura Arcaica', Luiz Fernando Carvalho adapta

obra de Clarice Lispector


www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/11/apos-lavoura-arcaica-luiz-fernando-carvalho-adapta-obra-de-
clarice.shtml
28 de novembro de
2018

​Existe o “inseto monstruoso” legado ao cânone literário por Kafka. E existe a barata
existencialista, esmagada num quartinho de empregada carioca e que tem o recheio,
branco e pastoso, sorvido em “A Paixão Segundo G.H.”, de Clarice Lispector.

Mas quem tem nojo da viscosidade da barata “não está lendo direito”, diz o diretor Luiz
Fernando Carvalho. “Lendo Clarice com os olhos bem abertos, você vê que a barata
representa os excluídos —o feminino, a paixão, o sexo, tudo aquilo que é banido.”

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Luiz Fernando Carvalho nos bastidores do filme 'A Paixão Segundo GH', com Maria
Fernanda Cândido Antonio Garcia Couto

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Ele tem a tarefa de adaptar o romance para os cinemas. Ou “traduzi-
lo”, como prefere.

A dificuldade de levar aquelas páginas às telas vai além de se fazer


engolir a massa do inseto, claro. Passa por filmar uma obra ancorada
em fluxos de consciência e reflexões sociais, morais e estéticas.

Romance central na obra da escritora, “G.H.” acompanha as ruminações de uma mulher


da elite que, depois de demitir a empregada, passa por uma anulação do ego. O gatilho
é o encontro com a tal barata, experiência que a narradora mal consegue descrever.

“É um livro estranho e consequentemente será um filme estranho. A minha busca é


passar o quanto de sentimento há nessa estranheza”, diz o diretor. Ele não se deixa
intimidar quando alguém lhe diz que a obra é “inadaptável”.

“Só mostra o quanto a indústria cultural anda acanhada, contaminada por timidez.”

O cineasta ouviu as mesmas ressalvas ao levar aos cinemas a sua premiada versão de
“Lavoura Arcaica”, de Raduan Nassar, outra pérola selada da literatura brasileira. Foi na
ilha de edição do longa de 2001 que Carvalho adentrou as páginas do romance de
Clarice.

“Era o meu livro de cabeceira”, explica o diretor, que vê semelhanças entre G.H. e Ana, a
rebelde calada que Simone Spoladore interpreta em “Lavoura Arcaica”. “Eu traduzia o
silêncio de Ana com o fluxo de palavras de G.H., como se esta fosse aquela mais velha e
liberta das leis patriarcais.”

Para compor o novo filme, o cineasta se instalou num galpão na zona oeste de São
Paulo, entre máscaras, cocares e inscrições nas paredes. Convocou especialistas para
dar palestras, discutiu minúcias da direção de arte, da velocidade da câmera e ensaiou
com Maria Fernanda Cândido, que fará a protagonista.

“O trabalho dela não é de interpretação, é de revelação, já que lidamos com um


personagem que vai se desestruturar.”

A atriz terá de representar a libertação de sua “terceira perna”, o tripé que a aprisiona ao
solo. “E o que é a terceira perna se não a moral machista que elege como deve ser o
feminino?”,
indaga o carioca de 58 anos.

Para Janair, a empregada dispensada, Carvalho contou com uma moça que descobriu
nas páginas da Folha.

Vencedora do concurso Miss África Brasil, Samira Nancassa é imigrante de Guiné-Bissau


e estava desempregada. “Queria que Janair fosse elevada ao campo mítico, à origem dos
afrodescendentes.”

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O cineasta Luiz Fernando Carvalho posa para sessão de fotos em um galpão em São
Paulo Marcelo Justo/Folhapress

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O rigor estético faz parte do trabalho do diretor, desde que dirigiu seu
primeiro trabalho, em 1984, o curta “A Espera”, inspirado na obra de
Barthes.

Na Globo, onde trabalhou por mais de 30 anos, esteve por trás das
novelas com marca visual mais forte da emissora —“Renascer”, “O Rei
do Gado”, “Esperança” e a última, “Velho Chico”. Dirigiu minisséries
—“Os Maias”, “Hoje É Dia de Maria”, “Dois Irmãos”.

No ano passado, a Globo deixou de renovar o seu contrato. Na época, o diretor falou
que seu tempo de TV aberta “acabou.” “Jamais poderia fazer esses filmes na televisão.”

“Me incomodei com o mundo das aparências. Talvez todo o meu percurso tenha sido
uma reação a essas máscaras sociais e por isso meus parceiros sejam todos estranhos,
como Clarice e Raduan.”
As filmagens de “A Paixão Segundo G.H.” terminaram há duas semanas
num apartamento de Copacabana.

O cenário burguês é mote para que Carvalho trate do “embotamento estético das elites”
e uma autocrítica do mercado da arte (G.H. é artista plástica e, em seu surto, questiona o
seu trabalho).

O diretor dá pistas de como filmará ponderações existenciais da personagem. Fala em


criar um monólogo, mas se esquiva de mais detalhes. “Não separo as imagens das
palavras. Estou desarrumando, jogando um contra o outro para que desta faísca algo
surja.”

O filme ainda não tem data de lançamento, mas o cineasta já nutre um segundo longa
—“Objetos Perdidos” tem roteiro dele e do escritor João Paulo Cuenca. Ali, a personagem
se baterá com a mesma inquietação que ora assola Carvalho: adaptar Clarice.

A Paixão Segundo LFC


Diretor fala de aspectos do seu novo filme

Por que filmar GH?


"Talvez a maturidade esteja exigindo falar menos de mim e mais do outro. A igualdade
reivindica suas diferenças mais subjetivas. Só essa será uma entrega real ao outro,
avistando aquele que é diametralmente oposto a você, seja em gênero, classe social,
raça, religião e por aí vai . Para que eu filme uma mulher não é apenas preciso, como
dizem por aí, acessar meu lado feminino. É preciso muito mais. É preciso me oferendar
ao impossível de realizá-lo. A consciência da impossibilidade na mediação com o
feminino me arrasta até o centro de G.H., ou de Clarice – como preferirem. G.H. é o
feminino em sua potência máxima, libertadora. Diria mesmo revolucionária. Ela nos
ensina que há um limite, sim. Mas é necessário ir além do homem."

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Literatura versus cinema
"Os romances afetam minha imaginação. Não separo as imagens das palavras. Tanto
uma quanto outra me injetam coisas, mesmo sabendo que, de antemão, o cinema dito
oficial abomina todo aquele que é literário ou teatral. Bergman passou a vida sob a
alcunha de cineasta teatral, mesmo tendo realizado Persona. Fassbinder, Pasollini,
Visconti, Glauber, tantos outros. Com "G.H." estou reafirmando a problematização da
linguagem como gênero cinematográfico. Para isso, habito o silêncio do romance.
Quando me aventuro por esse trajeto híbrido não pretendo promover uma arrumação,
uma adaptação ou se quer uma adequação entre literatura e cinema. Estou
desarrumando, jogando um contra o outro para que desta faísca algo surja diante de
mim."

Desaparecimento
"O ser é um desaparecimento. G.H., ao decidir arrumar sua própria casa começando
pelo quarto da empregada, termina por desarrumar-se. Trata-se de uma personagem
que irá se desconstruir diante dela mesma e de todos nós. G.H. intui que há um espelho
diante do mundo que é de uma superfície refletora, que não absorve, que não se
organiza dentro da nossa subjetividade. É necessário que as coisas sejam lançadas à sua
origem obscura, lugar onde exterioridade e interioridade ainda não se distinguiram. Em
contraposição a Aristóteles, que diz que “tudo o que é tende a permanecer”, Clarice nos
sopra que "tudo o que é tende a desaparecer". A Narrativa de "G.H." nos conta a morte
da mediação com o mundo. Desse desaparecimento do narrador surge o ato
imediato. Ou seja, uma imanência tão radical como a paixão. Não há transcendência.
Transcendência e redenção são eliminadas para que se fique dentro daquilo que é,
dentro da paixão."

Maria Fernanda Cândido


"Maria já é uma outra atriz. É preciso muito mais do que coragem para se oferecer aos
mistérios desta outra. Não saberia dizer exatamente onde termina Maria Fernanda,
onde começa G.H. Há muita luz e muita escuridão nesse trajeto. Elas se misturavam,
vencidas por aquilo que nem uma nem outra podiam compreender. Na verdade, estive
diante de G.H. durante toda a filmagem. Não vi Maria Fernanda, não quis ver, falar. Eu a
arrastava radicalmente, dia a dia, para a liberdade, para a ultrapassagem dos limites,
onde G.H. é a ruptura em si mesma. Maria atravessou e lá ficou. E foi lá que pude sentir
e ver uma intérprete plena."

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