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“O GÊNESIS, A PSICOLOGIA DA CULPA E PREPARAÇÃO DO EVANGELHO DA PAZ”

Segundo Gênesis 3, após comerem o fruto da árvore que o Senhor havia ordenado não
comessem, o homem e a mulher perceberam-se nus e se cobriram com folhas de figueira. Ao
ouvirem a voz do Senhor Deus, que vinha ao seu encontro, esconderam-se, pois sentiram
medo.

Deus perguntou ao homem se ele havia comido da árvore proibida. Ele disse que recebeu o
fruto da mulher que Deus havia lhe dado e o comeu. Deus interpelou a mulher e esta, por sua
vez, disse ter sido enganada pela serpente.

O Senhor Deus, então, apresentou as consequências dos atos de cada um deles. Amaldiçoou a
serpente entre todos os animais e anunciou inimizade entre a descendência dela e o
descendente da mulher. À mulher, Deus multiplicou os sofrimento e dores na gravidez e no
parto, além de condicionar-lhe o desejo ao seu marido. Ao homem, Deus disse que toda a
terra estava amaldiçoada por causa da desobediência dele, produzindo cardos e abrolhos,
além de sustento dele deveria vir com esforço e suor. Além disso, anunciou que sua vida seria
limitada, voltando ao pó, de onde havia vindo.

Em seguida, Deus os vestiu com vestimentas de peles. Essa é a primeira narrativa em relação à
civilização humana e é a narrativa essencial do procedimento de culpa humana. Os aspectos
primais da culpa, da angústia e da necessidade de se esconder, de se vestir, de se ocultar, são
mostrados nesse texto. Daí nasce o sentido de privacidade, em razão da percepção de quem se
é e da própria nudez, especialmente não a nudez física, mas a nudez do ser.

Homem e mulher transgrediram juntos. Alguém começou primeiro, fez a proposta e o outro
acolheu. Não importa quem começou, cada um carregou a própria responsabilidade. Mas a
culpa, que vem da consciência da transgressão, não aguenta lidar consigo mesma em verdade
e a primeira atitude diante dela é cobrir-se, vestir-se, impedir ser visto por inteiro, mostrando
apenas aquilo que pareça admissível nas relações sociais. E com o passar de milênios, o se
esconder passou a ser chamado por outros nomes: “fetiche”, “idiossincrasia”, “privacidade”,
“direito à intimidade”, mas, de fato, o objetivo é esconder os que seria insuportável que outras
pessoas soubessem.

Em seguida, vem a constatação da própria nudez, o olhar para si e dizer: “não, eu é que quis,
desejei; o tesão por comer isso foi meu”. Adão se escondeu de Deus, pois teve medo. Medo do
juízo, medo das consequências. Deus pergunta a Adão quem o fez saber que estava nu e sua
resposta carrega o mecanismo mais primitivo produzido pela culpa: a transferência. Adão
transfere a responsabilidade para Eva e Eva transfere a responsabilidade para a serpente. Tem
que existir um diabo. Sem diabo, alguém para quem se transfere, alguém a quem se atribui o
mal, o ser humano e a humanidade não aguentam viver. Não há nada que leve mais à perda de
auto-percepção, auto-conhecimento e responsabilização existencial do que transferir ao outro
a responsabilidade por algo da própria competência. E aí a Escritura estabelece para cada um
desses personagens envolvidos um contorno da existência deles no curso da história da
civilização, o que caracterizaria a continuidade da vida do homem, da mulher e da serpente, a
arquetipia do mal.

Ela se alimenta da poeira dos humanos e devolve isso a eles, que comem a própria poeira
devolvida por ela. O prazer é transformado em dor, agonia, labor e parto de agonia. Existir,
viver, é uma atividade incessante de sobrevivência, de preocupação. E o que pode aplacar a
angústia dessa existência culpada, neurótica, em todas as suas ações?

A culpa está presente em tudo o que se faz: a mulher dá à luz em meio a dores, uma memória
latente de culpa; o homem trabalha com suores angustiosos; e a serpente ficou confinada ao
ciclo dos humanos. Tudo o mais gira em torno dessa história que definiu a arquitetura da nossa
angústia culposa. Mas também é desse episódio que vem o primeiro sinal de aprazamento da
culpa, quando se diz: “Fez o Senhor Deus vestimentas de peles para Adão e sua mulher, e os
vestiu”.

Os homens tentaram se vestir e se explicar em sua culpa, eles transferiram de si a culpa, mas é
o Senhor Deus quem pode vesti-los, quem pode perdoá-los. Vem de Deus a sua cura, a sua
remissão, a sua genuína cobertura. Toda tentativa humana de vestir, cobrir, explicar a culpa se
renovam nas nomenclaturas que ganham.

No episódio narrado, são descritas como folhas e figueira. Com o passar do tempo,
transformaram-se em sacrifícios religiosos, grandes filosofias de religião, grandes filosofias de
vida, grandes correntes psicológicas, ou então em todos os mecanismos de fuga e de evasão,
ou de anestesiamento da dor, da angústia de algo de que não se consegue fugir, ou seja, de si
mesmo, de conhecer-se a si mesmo. A culpa leva o indivíduo a a se desconhecer, pois é
insuportável se reconhecer. Por isso ele se veste, transfere, faz o que pode para escapar da
culpa. Mas só há um que pode perdoar, o mesmo que pode cobrir, vestir. E é essa consciência
que eu quero ativar em você.

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