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Organização:
Roberto Mibielli
Devair Antônio Fiorotti
Luciana Marino do Nascimento
ABRALIC
Associação Brasileira de Literatura Comparada
Rio de Janeiro
2018
ABRALIC
Associação Brasileira de Literatura Comparada
Coordenação editorial
Ana Maria Amorim
Frederico Cabala
Série E-books ABRALIC, 2018
ISBN: 978-85-86678-22-6
APRESENTAÇÃO – p. 6
Roberto Mibielli; Devair Antônio Fiorotti; Luciana Marino do Nascimento
APRESENTAÇÃO
Roberto Mibielli
Devair Antônio Fiorotti
Luciana Marino do Nascimento
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Willi Bolle *
serem realizados pelos leitores interessados. Para se entender a história da elaboração do roteiro e para situar cada
uma das quatro histórias que o compõem, acrescentamos as respectivas informações complementares, inclusive
fotografias
* Para uma apresentação do conjunto do ciclo romanesco de Dalcídio Jurandir, ver Bolle (2012).
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de frequentar uma boa escola. Mas há muitos obstáculos. Alfredo vive entre
brancos e caboclos. Seu pai, Major Alberto, é secretário da Intendência.
Depois de ficar viúvo, convidou para viver com ele uma jovem mulher do
povo, dona Amélia, que ficou encarregada das tarefas domésticas. Alfredo
sente-se incomodado pelos moleques dos barracos pobres da vizinhança,
que entram na sua casa e vêm pedir coisas.
Moleque 1: “ – Dona Amélia, acabou a comida lá em casa. A senhora
teria um pouco de leite e de farinha, e algum resto de comida?”
Moleque 2: “ – Dona Amélia, aquela minha irmã que estava com
vermes, está agora com muita febre. A senhora teria algum remédio?”
Moleque 3: “ – Dona Amélia, minha mãe mandou perguntar se a
senhora teria algum retalho de pano, alguma roupa usada?”
Alfredo: “ – Estou aborrecido. Todo dia é isso! E além disso, tenho que
buscar carne, comprar querosene, trazer pão e açúcar. Não aguento mais!”
(O menino olha para o seu brinquedo preferido, um caroço de tucumã, e o
implora:) “ – Carocinho de tucumã, me faça livre do querosene, da carne, do
açúcar e do pão.” “ – Mamãe, me mande para Belém. Eu morro aqui. Quero
sair daqui, quero estudar. Quando papai vai escrever a carta para o colégio?”
Dona Amélia: “ –Você não sabe que teu pai vive sonhando? Teu pai
vive mergulhado na leitura de seus catálogos e almanaques. – Meu filho, um
pobre como você tem de estudar. Tu vais, sim, pro colégio. Eu vou fazer de
tudo para que tu estudes, para que saias daqui. Tu não és da cozinha. Tu és
do salão. Mas teu pai não quer saber do teu colégio. Eu mesma vou te levar.”
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Dos dez romances do Ciclo do Extremo Norte, cinco têm como cenário
a periferia de Belém, a saber: Passagem dos Inocentes (1963), Primeira manhã
(1967), Ponte do Galo (1971), Os habitantes (1976) e Chão dos Lobos (1976). De
todos eles, fizemos adaptações cênicas e montagens teatrais no período de
2009 a 2014. Para a presente narrativa cênica escolhemos a obra Primeira
manhã, um título que se refere ao primeiro dia de aula de Alfredo no ginásio.
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*Da narrativa dramática, que foi registrada no filme documentário “Os Tucumãs: contadores de Dalcídio Jurandir”
(direção da Alan Kardek Guimarães, 2017), participaram seis professores e sete alunos. O grupo de professores foi
integrado por Regina Guimarães, ex-diretora da escola Dr. Celso Malcher (que assumiu o papel da Narradora);
Rosana Passos (interpretando dona Amélia, e a Professora de Português); Rosineide Brandão (dona Inácia
Alcântara); Marinilce Coelho (a Promotora); Waldinei do Carmo de Souza (seu Virgílio Alcântara, Professor
Moquém e o Intendente); e Willi Bolle (Coronel Cássio). Os alunos foram Wallace da Silva (interpretando o
protagonista Alfredo); Gabriela Gomes (Emília Alcântara); Nayra Campos (a criada Libânia e Bernarda Seruaia);
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Leandro Carlos (o porteiro seu Dó); Lucas Correa (Moleque 1); João Batista (Moleque 2); e GleidsonPimentina
(Moleque 3). Elaboração do roteiro do filme e apresentação do grupo: Willi Bolle.
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REFERÊNCIAS
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A título de introdução
* Professora do Curso de Letras da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e Doutoranda no Programa de Pós-
Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal Fluminense (UFF).
**Professor do Curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Roraima
(UFRR).
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“Eu tenho bastante saúde mental pra reconhecer que a vida é uma luta, e que nesse
jogo do Macunaíma eu perdi de um a zero: eu errei. Macunaíma é uma 'obra- prima'
que falhou.” (SABINO, 1981, p. 29)
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1Mário qualificou as cartas trocadas com Manuel Bandeira como missivas “pensamenteadas” (MORAES, 2001, p.
681) porpermitirem, entre os dois intelectuais, a ampliação e o enriquecimento cultural de cada um deles,
colaborando de forma contundente no fazer poético.
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hoje cercam as leituras provocadas pela obra. O que Mário tentará provar
com seu projeto é que existe um único Brasil ao tomar como ponto de
partida a existência também de uma só raça, uma só cultura e uma só
geografia brasileiras. É por isso que a fidelidade geográfica desaparece no
livro, o que daria visibilidade ao povo brasileiro síntese dessa
“desgeograficação”:
Agora: não quero que imaginem que pretendi fazer deste livro uma expressão de
cultura nacional brasileira. Deus me livre. É agora, depois dele feito, que me parece
descobrir nele um sintoma de cultura nossa. Lenda, história, tradição, psicologia,
ciência, objetividade nacional, cooperação acomodada de elementos estrangeiros
passam aí. Por isso que malicio nele o fenômeno complexo que o torna
sintomático.(ANDRADE, 1978)
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Foi lendo de fato o genial etnógrafo alemão que me veio a idéia de fazer do
Macunaíma um herói, não do “romance” no sentido literário da palavra, mas de
“romance” no sentido folclórico do termo. (...). Copiei, sim, meu querido defensor. O
que me espanta e acho sublime de bondade, é os maldizentes se esquecerem de tudo
quanto sabem, restringindo a minha cópia a Koch-Grunberg, quando copiei todos.
(ANDRADE, 1976, p. 433)
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231 episódios, contidos em 389 páginas, faz lembrar a forma folhetinesca, muito
embora sua obra tenha vindo à tona de modo integral, num único volume e o índice
receba o nome de “Roteiro”. Essa e outras questões formais como o método de
bricolage utilizado pela autora fazem lembrar as experiências de vanguarda
(MIBIELLI, 2016, p. 213)
Rio largo, entrando no Colosso Negro por três bocas distintas uma da outra, tinha o
Branco uma bacia de trinta e cinco mil metros cúbicos que se distribuíam em rios,
paranás, lagos, sangradouros e igarapés. Distava sua foz de Manaus, cento e setenta e
uma milhas e tinha seiscentos quilômetros de curso, recebendo pela margem direita
os rios: Cauamé, Mucajaí, Água Boa, Uinivi e Catrimâni; e pela margem esquerda o
Quitauaú, Cachorro, Anauá e Tapará.
Formava-se acima de Boa Vista, duas a três horas de motor de popa, da junção do
Itacutu com o Uraricoera, pouco abaixo da Fazenda Nacional São Marcos, sede do
SPI. (MACAGGI, 2012, p. 97, cap. 13, ep. I)
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O povoamento do Rio Branco muito deve aos cidadãos: Inácio Lopes de Magalhães,
que fundou a primeira escola em Boa Vista e da qual, foi depois, professor o tão
querido velho Mota, ou melhor, João Capistrano da Silva Mota, Sebastião Diniz, Fábio
Leite, Carlos Mardel de Magalhães e Diomédes Souto Maior. (MACAGGI, 2012, p.
110, cap. 14, ep. III)
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- Pois é, José, O Amazonas é o único rio no mundo que corre de oeste para leste, no
sentido dos paralelos. Sua bacia ocupa cinco sextos da América, sendo nossa quase a
metade. Tem mais de seis quilômetros de largura, seis mil ilhas e a fauna potâmica
mais rica do globo, segundo Agassiz. Sua vazão – lança no Atlântico cem mil metros
cúbicos de água por segundo! – é superior à vazão de todos os rios da Europa juntos.
Um verdadeiro monstro, hem? Teve ocasião de ver as belas vitórias-régias de seus
lagos? (MACAGGI, 2012, p. 58, cap. 6, ep. III)
Aliás, nem mesmo a ideia de “sertão” que participa do subtítulo do romance parece
descabida ou involuntária. Não se trata apenas de uma questão de justiça geográfica
descritiva da realidade do estado. A autora realmente se apropria da narrativa
sertaneja a partir de Euclides da Cunha e de Guimarães Rosa. Desta forma, ao menos
três são os grandes escritores e obras com as quais dialoga diretamente. Aluísio
Azevedo, n’OCortiço, Euclides de Os Sertões e João Guimarães Rosa de Grande Sertão,
Veredas. (MIBIELLI, 2017, p.36)
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A rua Seis de Abril era uma sórdida e comprida viela parcamente iluminada, sempre
fria e úmida, ladeada de grosso capinzal repleto de mucuinm e, onde galinhas
piolhentas e de cheiro acre esgaratavam.
Nascera do grito de dor de um morro dilacerado pela dinamite. Da enorme ferida
brotou beco estreito e humilde, que foi evoluindo, mansa, vagarosamente, ensaiando
seus primeiros passos de malandro leviano e alcoviteiro. E valente, revoltoso e
socialista, criou, dentro de sua individualidade, uma fisionomia própria, alma
boníssima que agasalhava todos os vícios e a todas as virtudes. Cresceu, esticou,
tornou-se fornalha humana, já transformado em ruela, pensando filosofando e
formando seus tipos clássicos e inconfundíveis. (MACAGGI, 2012, p. 22, cap. 2, ep. I)
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Sua personagem central, nascida Ádria, no cortiço do Rio de Janeiro, se vê órfã, ainda
menina e a conselho de seu pai adotivo, um mulato morador do cortiço, se
transforma, para sua segurança, em José Otávio, somente voltando a ser Ádria
quando se apaixona por um garimpeiro no Sertão da Amazônia. (MIBIELLI, 2016, p.
219)
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Mas o recorta e cola destes outros enredos e estilos não serve para estimular ou
fustigar o leitor ou mesmo apenas para ambientá-lo metapoeticamente, como o fazem
outros autores em nossos dias de modo a situar-se na tradição, indicando suas
leituras através da alusão intertextual. Funciona, principalmente, n’A mulher do
Garimpo como material descritivo da paisagem descolada da narrativa, como processo
em que, longe de tornar os cortes e recortes entre textos mais evidentes, a autora
busca disfarçar as arestas, tornando o texto enfadonho e cansativo para o leitor. É
claro que se trata de uma obra de alguém que conhece a fundo a literatura brasileira e
que conhece bem, em teoria, as técnicas modernas de composição de um romance no
melhor estilo marioandradino ou rosiano, mas não há ali nem a radicalidade da
beleza da linguagem do Grande Sertão, nem as peripécias e caráter imprevisíveis e
contrastes violentos da mudança de tom de um Macunaíma. (MIBIELLI, 2016, p. 220)
O que se vê é alguém que sabe como, que aparenta ter a consciência de um projeto de
romance inaugural para a literatura de um estado, mas que, talvez por excesso de
zelo em amenizar os discursos ou em explicar as distantes realidades amazônicas
para seus supostos leitores sulistas ideais, não conseguiu realizar uma obra que
efetivamente fizesse jus a sua inteligência, conhecimento literário e quiçá desejo
poético. (MIBIELLI, 2016, p. 220)
lançando as bases para um ufanismo local que poderá trazer bons frutos, ou
não.
A primeira estratégia permite que Macunaíma se movimente no tempo
e se atualize, tornando-se sempre contemporâneo, como a Ursa Maior que,
segundo ele, em explicação a Manuel Bandeira, “... se vê de todo o nosso
céu, não se vê? Eu a enxergo do Amazonas a São Paulo.”(MORAES, 2001),
colocando, assim, a possibilidade de retomada do projeto não concluído de
Macunaíma. Quanto àMulher do Garimpo, pelo que se propõe a fazer em
termos de desconstrução e reconstrução de imagens do local, cabe um lugar
específico no tempo, uma historicidade, o lugar de marco da literatura e da
cultura de um estado e, quiçá, de seu povo, enquanto for lida, com todos os
defeitos e acertos que tem e perpetua.
REFERÊNCIAS
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ABSTRACT: This text analyzes the verbal art of Caetano Raposo, Macuxi
from the Raposa community, in the Raposa Serra do Sol Indigenous Land,
Roraima-BR. Mainly, from a narrative on the Canaimé and another one on
the jabuti, it looks for to think the relation between myth and fable.
Reflecting on the power relations between hegemonic literature and
Amerindian verbal arts, also it try to think of the inter-place occupied by oral
narratives, as Raposo.
KEYWORDS: verbal art; between-place; Amerindians.
Eu quero aprender, eu sou gente, eu sou gente, eu quero aprender. Porque o branco
tem, eu quero ter, também. Eu não quero ficar o tempo todo ali como índio, no chão,
no pó, não. Então, eu penso diferente, eu quero que o meu povo aprenda que é índio,
mas ninguém não vai esquecer a nossa cultura nem tradições, ninguém esquece, não.
Nós somos índios, vamos tomar caxiri, vamos comer damorida, ninguém esquece,
não.
(Caetano Raposo)
Universidade Estadual de Roraima - UERR
Universidade Estadual de Roraima -UERR; PPGL- Universidade Federal de Roraima -UFRR; Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq .
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*Todos os dados relativos a seu Caetano Raposo pertencem ao projeto Panton Pia' (junto, perto, ao lado da história).
Projeto iniciado em 2007, primeiro registrou 29 narradores indígenas de 17 comunidades da TI São Marcos. Depois,
concluiu em 2014 as entrevistas de mais 10 narradores, de seis comunidades, na TI Raposa Serra do Sol. Os
narradores estão assim distribuídos: 27 homens e 12 mulheres, sendo por etnia: 24 macuxi; seis taurepang; seis
wapishana; uma indeterminada. Entre esses merece menção uma etnia cuja tribo enquanto tal não mais existe: uma
sapará; e outro que menciona wapixana e sua relação com o nome karapiwa, sinônimo de wapishana ou mesmo da
mistura de wapixana com macuxi. Na terceira fase, iniciada em 2015, o projeto está registrando e analisando
cantos, rezas e supertições de indígenas dessas duas terras. Desde 2007 o projeto é financiado pelo CNPq e
vinculado à Universidade Estadual de Roraima - UERR. A metodologia de coleta e trato com as narrativas
sustenta-se principalmente na História Oral (Alberti, 2004).
assimilação de uma pela outra, mas na troca em que nenhuma das duas
sairia imune, a transculturação:
Entendemos que el vocablo transculturación expresa mejor las fases del proceso
transitivo de una cultura a outra, porque éste no consiste solamente de adquirir una
distinta cultura, que es lo que en rigor indica la voz angloamericana acculturation, sino
que el proceso implica también la pérdida o desarraigo de una cultura precedente, lo
que pudiera decirse una parcial desculturación, y, además significa la conseguiente
creación de nuevos fenômenos culturales que pudieran denominarse neoculturación.
Al fin, como sostiene la escuela de Malinowski, en todo abrazo de culturas sucede lo
que en la cópula genética de los indivíduos: la criatura siempre tiene algo de ambos
progenitores, pero también siempre es distinta de cada uno de los dos. (Ortiz, 1983, p.
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Re-edenizações
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Essa “cultura” a que ele faz referência tem relações, no seu entendimento, com a vida
“civilizada” do homem branco urbano. Assim, o índio, visto por ele como um homem
natural, em contato com essa civilização e cultura sofre mudanças que não lhe
parecem positivas, pois já desfrutam de uma “cultura interior” muito melhor. (2012,
p. 28)
Não obstante, ainda são raros os críticos e historiadores literários que se detêm nesse
processo de apropriação cultural. As fontes indígenas têm sido basicamente
ignoradas, tanto como antecedentes indispensáveis para escritos posteriores quanto
por seu valor intrínseco como corpus literário. Não há sequer uma história da
literatura tupi ou caribe, pore xemplo, e nenhum estudo sistemático da influência
tupi-guarani ou caribe em obras brasileiras ou sul-americanas. Histórias literárias e
antologias nacionais do Brasil e de países vizinhos raramente incluem o precedente
indígena, mesmo quando se trata daquelas culturas consideradas mais avançadas,
como a inca. Nas pouquíssimas ocasiões em que os textos amazônicos ou das
planícies sul-americanas foram levados em conta, seu papel ficou restrito ao de mero
material etnográfico ou matéria-prima sem valor estético ou literário. Por esse motivo,
a própria noção de intertextualidade, fundamental para este estudo, nunca foi
levantada.
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A través del orden de los signos, cuya propiedad es organizarse estableciendo leyes,
clasificaciones, distribuciones jerárquicas, la ciudad letrada articuló su relación con el
Poder, al que sirvió mediante leyes, reglamentos, proclamas, cédulas, propaganda y
mediante la ideologización destinada a sustentarlo y justificarlo. Fue evidente que la
ciudad letrada remedó la majestad del Poder, aunque también puede decirse que éste
rigió las operaciones letradas, inspirando sus principios de concentración, elitismo,
jerarquización. Por encima de todo, inspiró la distancia respecto al común de la
sociedad. Fue la distancia entre la letra rígida y la fluida palabra hablada, que hizo de
la distancia entre la ciudad letrada una ciudad escrituraria, reservada a una estricta
minoria. (1972, p. 03)
aquellas formas que también han surgido del lenguaje, pero que parecen prescindir
de esta sólida base que, hablando gráficamente, con el tiempo se ubican en otro
estado de agregación: aquellas formas que no si encuentran incluidas ni en la
estilística, ni en la retórica, ni en la poética, tal vez en la “escritura”, las que, aunque
pertenecen al arte, no llegan a ser obras de arte, aunque poéticas no son poemas.
(1972, p. 16)
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O meu pai contava a história do Canaimé? Canaimé... Tem três, três... Dois tipos de
Canaimé. Tem Canaimé que mata a gente como é que eu posso dizer... Com aquelas
planta, né? De muran, puçanga, com isso daí que ele matava. Só mandava, chegava
pra ele: “Vocês vão matar aquela pessoa que tem ali, o filho daquelas pessoas e matar
ele pra morrer ligeiro ou pra morrer devagar”, dizia assim. Agora tem Canaimé que
não é puçanga, é ele mesmo. Ele é Canaimé, também. Então ele dizia: “Canaimé, a
pessoa, meu filho, não é quem vem de longe, somos nós mesmos. Nós mesmos somos
Canaimé.” Ele, Canaimé, anda em grupo. Eles vão lá pra Serra do Sol, lá pra Guiana.
Na ida eles matam, na vinda eles matam pessoas. Eles matam pessoas. Canaimé
também tem medo de a gente ver eles. Se a gente ver eles, eles ficam com febre. Tem
medo. Então um dia, os Canaimés foram pra matar parente que tava na roça. Foi pra
roça, trabalhava sozinho, parente, o vovô. Não é meu avô, mas eu chamo de vovô. Aí
encostaram nele bem ligeiro, trabalhando, trabalhando, trabalhando. Aí quando ele
percebeu tava rodeado pelos Canaimés. Rodeado. Aí mataram ele, já foi com febre,
saiu da roça com febre. Chegou na casa dele com febre e morreu. Depois disso, eles
mesmos, os Canaimés têm o costume de vir em cima do corpo quando tá enterrado e
eles cavam, tiram o corpo e parece que fica bebendo, como é que aquele sumo do
parente? Fica tomando. É muito. Vira como os animais, o guariba, macaco, tamanduá,
raposa. Eles se transformam. É. Quando eles bebem do parente. Então esse Canaimé
gosta de destruir a vida das pessoas, dizia meu pai. Esses Canaimés, até meu pai
brigou com eles, brigou e matou quatro. Na roça também. O que defendeu ele, Papai
do Céu e faca. Tava trabalhando, sozinho, mamãe não tinha ido com ele. Vinham
umas pessoas sem medo mesmo, chegou perto, perguntaram se tava trabalhando,
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“tô” falaram se sabia que ia morrer agora, disse que não eu não vim pra morrer, vim
trabalhar pra sustentar minha família. Mas você vai morrer. Tá nós vamos morrer.
Quando encostou um, a faca comeu. Veio outro e a faca comeu, veio outro e a faca
comeu. Aí eles ficaram com medo. Ele matou quatro. Ele correu atrás deles aí, foram
embora. Aí ficavam perseguindo ele, perseguindo, perseguindo, mas não pegaram,
não. Ele morreu de velhice, papai.
*Para um estudo aprofundado sobre o Canaimé, indo inclusive além do conceito de mito, ver WHITEHEAD, Neil.
L. Dark Shamans – Kanaimà and the poetics of violent death. Duke University Press - Durham & London. 2002.
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A linguagem tem pelo menos uma outra categoria de proposições que não se ajustam
a essa definição: são aquelas proposições que não se limitam a descrever um estado
de coisas, mas que fazem com alguma coisa aconteça. Ao serem pronunciadas, essas
proposições fazem com que algo se efetive, se realize. (2000, p. 96-97)
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Aí encontrou com veado. “Você é corredor?” “Sou corredor, eu sou corredor e você?”
“Eu também sou corredor” “Então vamos experimentar nossa carreira?” “Vamos.”
“Tá o dia.” “Tá bom.” “Nós vamos sair daqui. você fica do outro lado e eu fico do
outro.” “Tá”. Aí convidou outros carubés, companheiros dele. “Tu fica aqui, quando
veado perguntar de ti, diga que você tá na frente.” Colocou outro mais na frente. Uma
sequência de jabutis. Aí chegou o dia deles. Aí o veado perguntou “Já, compadre?”.
“Já, compadre, vamos embora!” Saíram. Veado saiu torto daí. Aí perguntou
“Compadre!”. “Ê!” Responderam lá na frente. Carreira do veado é de 80 quilômetros
por hora. “Compadre!” “Ê!” Lá na frente. Foi embora, foi embora. “Compadre!” “ê!”.
E ele cansou, diminuiu carreira. Chegou no ponto deles lá, lá ele estava. Lá no final,
estava lá. É, descansado. “Cheguei muito perto, compadre.” “Eu não falei que eu sou
corredor?” “Tá bom, compadre.” Vieram com um palmo de língua desse tamanho
assim. Cansado, cansado, cansado. Aí o carubé achou graça dele “Há'há'há'há'há'.”
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Benjamin já havia nos dito sobre outra forma narrativa aparentada do mito e
fábula:
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REFERÊNCIAS
ALBERTI, Verena. Manual de história oral. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2004.
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ABSTRACT: This article deals with the analysis and discussion of the
musical theater produced in the Belle Époque period, in the city of. And the
repercussions of the presentation of this type of theater in the city of
Manaus, recorded in periodicals of the time. We consider the movements
and visualities that mark the period of the so-called modernity, Baudelaire
(2010); Giddens (1991), as well as the process of European influence that are
part of the Theater of Magazine in Brazil from the mid-nineteenth century,
Venetian (2013); Ruiz (1988) and Almeida Prado (1993).
KEY WORDS: Musical theater; Amazon, Culture.
*ProfessoraAdjunta do Centro de Educação, Letras e Artes da Universidade Federal do Acre. Graduada em Artes
Cênicas (UNI-RIO), Doutora em Educação (UFMG), concluindo Estágio Pós-Doutoral em Linguística Aplicada
(UFRJ). Contato: lobo.andrea@gmail.com.
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euforia, o público ganha o espaço para assistir a mais uma função. Eis que a
música inunda o ambiente anunciando a entrada do compère, ou compadre
para os espíritos mais nacionalistas. Sim, o mestre de cerimônias que
comenta os fatos/boatos apresentados divertidamente no palco da noite.
Convida-se a plateia para um repasto familiar de acontecimentos
cotidianos, tudo ao gosto bem brasileiro. Personagens, inspirados no
ambiente político e social da novíssima República Velha, povoam o cenário do
espetáculo ali encenado, por meio de alegorias nem sempre discretas.
Eventos bizarros, consequência das condições urbanas de uma capital
federal que se considera franco-brasileira, são representados com pitadas de
paródia. Velocidades metropolitanas encontram-se orquestradas pelo
moderno transporte público: o bonde elétrico, revelando-se em meio às
rimas das canções nos entreatos. Em torno desse tumulto histriônico, regado
à música, à comédia, às danças e às críticas sobre o cotidiano nacional,
anuncia-se um novo século e despacha-se uma monarquia.
Mas o que é uma Revista? Dito de outra forma, trata-se de rever certos
acontecimentos políticos e sociais que acometeram a cidade no ano anterior à
encenação desse espetáculo musical. No palco, essas ocorrências são
apresentadas de maneira tão familiar aos espectadores, que prescindem
qualquer cerimônia. Entre um ato e outro, vedetes discretas prenunciam as
revistas do século XX. Pois é, ainda estamos no século XIX, portanto, seios e
coxas comportam-se com parcimônia. Tais moçoilas apresentam-se com
canções e desenvoltura, retirando do público masculino efusivos aplausos e
conservadores protestos machadianos. Esse evento teatral promove empatia
e distanciamento. O espectador identifica-se com a situação e distancia-se
dela em seguida, pois, essa é a potência do humor, do riso que acompanha a
crítica social. Os personagens do Teatro de Revista tangenciam os tipos que
se tornam nacionais, a saber: o malandro; a mulata; o caipira e o português. -
Mas como meu caro? E o politicamente correto? - Sinto informar: no cômico,
não há pudores! Mas muitos rancores. E nesse lugar, isto é, no espaço do
ressentimento, também ocupado por defensores de um teatro sério, dispares
e a crítica incompassiva na direção de um valoroso revisteiro maranhense de
nascimento e carioca de coração, um homem de teatro: Arthur Azevedo.
Azevedo é reconhecido por estudiosos do teatro brasileiro como um
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Iniciei minha pesquisa sobre o teatro de revista no Brasil durante os anos 1980. (...), na
época, os poucos artigos publicados sobre teatro de revista, insistiam na tecla do
“preconceito”. Gastavam-se páginas e páginas tentando provar que havia arte no
teatro de revista. O preconceito vinha de longe. Basta lembrarmos um verso de
Arthur Azevedo que, na revista A fantasia, afirmava: “Há muita arte na Revista
Brasileira”. O teatro brasileiro musical era, na época, chamado gênero alegre. (...)sim,
para aqueles artistas pioneiros do século XIX, o público era o juiz. Foi assim que se
firmou, entre nós, o “gênero alegre”: dedicado ao público, não aos deuses.
(VENEZIANO, 2012, p.37-38).
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Há no mundo, e até mesmo no mundo dos artistas, pessoas que vão ao Museu do
Louvre e que, sem lhes conceder um olhar, passam rapidamente pela frente de uma
quantidade de quadros muito interessantes, ainda que de segunda categoria, e se
plantam, sonhadoras, diante de um Ticiano ou de um Rafael, um desses que a
gravura mais popularizou; e depois saem satisfeitas, mais de uma dizendo para si
própria: “ Conheço o meu museu”. Há também pessoas que, por terem algum dia
lido Bossuet e Racine, pensam que dominam a história da literatura. (...) Por sorte,
surge de tempos em tempos quem coloque as coisas no devido lugar: críticos,
amantes da arte, espíritos inquisitivos, que afirmam que nem tudo está em Rafael,
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Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
que nem tudo está em Racine, que os poetae minores têm alguma coisa de bom, de
sólido e de agradável; e, enfim, que por mais que se ame a beleza geral, que se
exprime pelos poetas e artistas clássicos, não se está menos equivocado em se
negligenciar a beleza particular, a beleza de circunstância e os costumes de
época.(BAUDELAIRE, 2010, p.13).
O teatro popular ligeiro – a que se convencionou denominar “de Revista” -, ainda não
mereceu, na historiografia cênica nacional, o enfoque adequado à sua real
importância, dentro do capítulo reservado ao “teatro de costumes”. Só a perspectiva
do tempo virá contribuir, lentamente, para a melhor compreensão de seu significado
e valor, no contexto das manifestações artísticas ocorridas no País. Para melhor poder
situar a gênese dessa forma teatral no Brasil, parece-nos desde logo indispensável
estabelecer um paralelo com as realizações do gênero desenvolvidas em Portugal, já
que a “revista de ano” – como de resto praticamente todas as outras formas teatrais
aqui conhecidas até este século – nos veio via Lisboa, seguindo os mesmos rumos
anteriormente tomados pelos “milagres” e as ingênuas pecinhas de Anchieta. (RUIZ,
1988, p.15)
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Série E-book | ABRALIC
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Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
Capital Federal” era uma produção do Teatro Recreio Dramático, do Rio de Janeiro,
sob a direção de Silva Pinto. Ainda pelo Boato Teatral, ficamos sabendo que o autor
Virgílio de Sousa, português de nascimento, faleceu vítima de malária, da mesma
forma que a triz Medina de Sá. E havia os escândalos deliciosos, com a demissão a
pedido do diretor do Teatro Amazonas em 1907, um certo Dr, Raimundo de
Vasconcelos; por ter surpreendido e mandado expulsar do recinto do teatro. O jovem
Guido de Sousa, protegido do governador, que se encontrava praticando atos
considerados despudorados com uma corista espanhola da revista “mulheres em
penca”, da Companhia Carioca de Dias Braga. (SOUZA, 1993, p. 16.).
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Considerações finais
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REFERÊNCIAS
DAOU, Ana Maria. A belle époque amazônica. 3ed. Rio de Janeiro: Zahar,
2004.
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Introdução
*Mestreem Letras: Linguagem e Identidade pela Universidade Federal do Acre. Secretaria de Estado de Educação
do Acre - SEE/Acre.
*Docente da Faculdade de Letras da UFRJ. Docente permanente do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação
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Uma confissão abre La Voragine: ―Antes que me apaixonasse por qualquer mulher,
joguei o meu coração ao acaso e ganhou-o a violência‖. Ante o desafio do destino, o
autor oferece ao protagonista, nel mezzo Del cammim, a evasiva da violência da selva.
Sob o signo do jogo - azar, sina - cumpre-se o trânsito de Arturo Cova e Alicia, a sua
amante. A trama obedece como nos livros de viagens, às solicitações da emergência.
À travessia, cada passo supõe perda de direitos, submissão, alienação a floresta e aos
seus demiurgos. O - racional - título que se confere ao branco civilizado - despojado
da condição humana, ferido e diminuído, recupera, sem quase dar por isso, modos,
necessidades e carências animais. Cova, como as demais personagens, desvincula-se
das virtudes urbanas e adota o comportamento selvático. (QUEIROZ, 1981, p. 46)
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Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
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Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
Até tive desejos de confinar-me para sempre nessas planícies fascinantes, vivendo
com Alícia numa casa risonha, que levantaria com minhas próprias mãos às margens
de um riacho de águas opacas, ou em qualquer daquelas colinas minúsculas e verdes,
onde haja um poço glauco ao lado de uma palmeira. Ali, pela tarde o gado seria
reunido e eu, fumando no umbral, como um patriarca primitivo de peito suavizado
pela melancolia das paisagens, veria os pores-do-sol no horizonte longínquo onde a
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Série E-book | ABRALIC
noite nasce; e já liberto das aspirações vãs, do engano dos triunfos efêmeros, limitaria
meus desejos a cuidar da zona que meus olhos abarcassem, gozando as labutas
camponesas, em consonância com minha solidão. [...] Para que as cidades? Talvez
minha fonte de poesia estivesse no segredo dos bosques intactos, na carícia das
aragens, no idioma desconhecido das coisas; em cantar o que diz o penhasco à onda
que se despede, o arrebol ao pantanal, as estrelas às imensidões que ocultam o
silêncio de Deus. Ali, nesses campos, sonhei que ficava com Alícia, que envelhecia
entre a juventude de nossos filhos, e declinava ante os sóis nascentes, que sentia
nossos corações fatigados em meio à selva vigorosa dos vegetais centenários.
(RIVERA, 1982, p. 67-68)
minha ilusão, por este oceano purpúreo que me arrojava contra a selva, isolando-me
do mundo que conheci, pelo incêndio que estendia sua cinza sobre meus passos. Que
restava dos meus esforços, do meu ideal e de minha ambição? Que havia conseguido
minha perseverança contra o destino? Deus me desamparava e o amor fugia!... No
meio das chamas comecei a rir como Satanás! (RIVERA, 1982, p. 83-84)
[...] um puro objeto em face do qual o sujeito poderá se situar numa relação de
exterioridade, ela se revela numa experiência em que sujeito e objeto são inseparáveis,
não somente porque o objeto espacial é constituído pelo sujeito, mas também porque
o sujeito, por sua vez, encontra-se englobado pelo espaço. (COLLOT, 2012, p. 13)
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Série E-book | ABRALIC
Considerações Finais
[...] não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto
é precioso. Por um lado, ele permite designar saberes possíveis — insuspeitos,
irrealizados: a literatura trabalha nos interstícios da ciência: está sempre atrasada ou
adiantada com relação a esta, semelhante à pedra de Bolonha, que irradia de noite o
que aprovisionou durante o dia, e, por esse fulgor indireto, ilumina o novo dia que
chega. (BARTHES, 2015, p. 17)
REFERÊNCIAS
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Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. 17. Reimp. São Paulo:
Cultrix, 2015.
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Romance histórico
Universidade Estadual Paulista - UNESP/Assis/SP. Agência de fomento: CAPES.
Universidade Estadual Paulista - UNESP/Assis/SP. Agência de fomento: CAPES.
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Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
do São José do Rio Negro) continuou sem governo próprio, sendo submetido
ao comando do Pará. Em 1823, O Estado do Grão-Pará adere ao Estado
Nacional Brasileiro e desvincula-se de Portugal. Diante desta situação
política e das adversidades sociais e econômicas enfrentadas pela população,
culmina em 1835 com a Revolta dos Cabanos ou Cabanagem, que foi a maior
e mais popular rebelião ocorrida na história da Amazônia, reunindo uma
massa de negros, índios, tapuios e caboclos descontentes (Pontes Filho, 2000,
p. 98).
A Guerra dos Cabanos ou Cabanagem ocorreu na província do Grão-
Pará entre os anos de 1835 e 1840, conseguindo unir amplos setores sociais,
como escravos foragidos, camponeses, índios, mestiços, trabalhadores
independentes e até parcelas da elite local. Os mais pobres eram maioria e os
mais dedicados à rebelião por serem violentamente explorados pelas
autoridades governamentais, além de viverem em estado de quase absoluta
miséria. Eles eram chamados de cabanos por morarem em cabanas simples
cobertas por palha à beira dos rios. O termo cabano também é utilizado para
designar o chapéu de palha utilizado pela população mais humilde na
Amazônia, segundo a historiadora Magda Ricci. (Ricci, 2007, p. 6).
A província do Grão-Pará, na época da Cabanagem, compreendia o
atual Pará e a comarca do Rio Negro, hoje Estado do Amazonas. Até 1772,
quando esta região se tornou independente do Maranhão, ocorreram poucos
contatos com o Rio de Janeiro, já que seu governo era nomeado diretamente
pela metrópole portuguesa. As atividades econômicas baseavam-se no
extrativismo dos produtos da floresta amazônica e em uma pequena
produção de tabaco, cacau, algodão e arroz. O comércio, feito basicamente
através do porto de Belém, estava sob o virtual monopólio dos portugueses e
de alguns negociantes ingleses (Mota, 1997, p. 393).
Grande parte da população da província desejava a volta de D. Pedro
e não reconhecia o governo regencial, o que acabou gerando, após a
abdicação do imperador, manifestações contrárias às interferências do Rio de
Janeiro na administração local. Muitos lutavam contra o mercantilismo
secular, eram anticolonialistas e buscavam um patriotismo, uma identidade
própria. Em 1832, um levante armado impediu a posse de um governador
nomeado pela regência e reivindicou a expulsão dos portugueses,
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Saibam, pois, o governo geral e o Brasil inteiro que os paraenses não são rebeldes; os
paraenses querem ser súditos, mas não querem ser escravos, principalmente dos
portugueses; os paraenses querem ser governados por um patrício paraense que olhe
com amor para as suas calamidades e não por um português aventureiro como
Marechal Manoel Jorge; os paraenses querem ser governados com a lei e não com a
arbitrariedade, estão todos com os braços abertos para receber o governador
nomeado pela regência, mas que seja de sua confiança (apud Mota, 1997, p. 392).
Para pagar aos soldados que estavam há meses sem salário, Malcher
pegou as moedas chamadas Cuiabá, que estavam em desuso em todo o
território e reduziu seu valor a um quarto, utilizando-as para pagar os
militares. Mesmo com uma administração confusa e contraditória, Malcher
acreditava que a luta dos cabanos havia chegado ao fim após sua posse, mas
isto, evidentemente, não era consenso entre a população.
O almirante inglês Taylor foi enviado com novas tropas para a cidade
de Belém, a serviço do governo central, onde venceu os cabanos devido ao
enfraquecimento momentâneo do movimento. No entanto, Eduardo
Angelim comandou um exército de rebeldes composto de três mil homens
que retomou a capital, proclamou a República e separou a Província do Pará
do Império.
O governo de Angelim era popular e revolucionário, o que trouxe
grande esperança à população mais pobre. Angelim tomou medidas
drásticas, como a decretação de morte à surra e fuzilamentos para punir
escravos, homens livres, negros e índios que eram acusados de ter “lavado
mãos em sangue inocente” (Ricci, 2007, p. 21). Com o apoio da igreja
católica, ele ajudou muitos comerciantes e moradores legalistas a fugir de
Belém.
Em 1836, Angelim também foge de Belém pela baía de Guajará, na foz
do Amazonas, passando pelas embarcações imperiais sem ser percebido,
durante uma torrencial tempestade. Devido ao isolamento da província, foi
difícil resistir aos sucessivos ataques das tropas do governo central,
chefiadas pelo General Soares de Andréa: em 1840 chegou ao fim a Guerra
dos Cabanos, fazendo desaparecer os sonhos do povo de ver concretizado
um programa democrático e radical.
Esta fase de lutas e conflitos desencadeiam os maiores conflitos
identitários no protagonista do romance. Neste período, os revoltosos
espalharam-se por todo o interior do Grão-Pará e Rio Negro. Cada povoado
tinha seus líderes e a natureza como sua aliada, porque a conheciam bem e
souberam usar isto a seu favor, tanto para a defesa quanto para o ataque.
Estima-se que nesta época a população provincial era de cem mil habitantes
e que durante a Cabanagem o número de mortos foi superior a trinta mil
(Mota, 1997, p. 394). A Guerra dos Cabanos foi motivada pelo desejo
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Nos cinco anos em que vivi em Lisboa, não fiz nenhum amigo na escola. Embora filho
e neto de gente do Ribatejo, eu era natural de Belém do Pará, onde meus pais tinham
decidido morar. Por isso, e porque sou naturalmente muito fechado, ou porque falava
com a suavidade do falar paraense, meus colegas de escola e de caserna me tratavam
com certa desconfiança, como se eu fosse um estrangeiro. (Souza, 1997, p. 40-41).
Deixaram-me ao relento, demonstrando mais uma vez sua total indiferença pelo meu
destino. Mas eles não me perturbavam, estava acostumado às esquisitices dos
tapuias, aos seus costumes enigmáticos, aos seus arroubos de infantilidade. O fato de
deixarem-me a dormir sobre a relva não era grave, nada poderia me acontecer, ali não
havia nenhum perigo, a não ser o desconforto de acordar gelado, porque a variação
de temperatura na selva é como no deserto, indo aos trinta e cinco graus ao meio-dia
e descendo aos sete graus pela madrugada. (Souza, 1997, p. 49)
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Considerações finais
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Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
Algumas vezes o calor torna-se intolerável aqui nesta região, porque o verão arrasta-
se indolente e soberano. Leio estas linhas mais uma vez, página a página, e sei que
nenhuma gota amarga será capaz de substituir o que realmente aconteceu. Mas o que
fazer? Minhas idéias, eu o sei, jamais foram claras o suficiente para registrar algo
sensato, algo que seja capaz de enfrentar a teimosia do esquecimento. E no entanto,
nada mais oco que a sensatez quando sofremos frontalmente o golpe da contingência.
Porque nada resta, nem mesmo chorar de raiva significa um gesto heroico. (Souza,
1997, p. 189)
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E olhei com novos olhos os dois jovens índios, meus companheiros. Sim, meus
companheiros. Porque eles também logo serão exilados e estrangeiros nesta terra que
já foi o reino de sua raça. Os índios em breve estarão aqui tão deslocados quanto
todos nós e já não haverá mais do que a beleza do desespero. (Souza, 1997, p. 190).
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Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
REFERÊNCIAS
SAID, E. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Tradução: Pedro Maia Soares.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
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Série E-book | ABRALIC
RESUMO: O presente artigo tem por objeto o estudo das representações das
categorias de povo e poder nos romances Candunga (1954) de Bruno de
Menezes, Chibé (1964) de Raimundo Holanda Guimarães e Verde
Vagomundo (1972), de Benedicto Monteiro. Em um dos extremos dessas
categorias estão caboclos e nordestinos, e no outro o Interventor da
Revolução de 1930 no Pará, Magalhães Barata (em Candunga e Chibé) e os
militares do Golpe de 1964 (em Verde Vagomundo). Este estudo busca
perceber como cada autor se move entre as categorias de povo e poder,
observando aspectos de empatia e aversão, identidade e diferença,
considerando o local de anunciação assumido por cada um, bem como o
atrelamento ou ruptura com os discursos hegemônicos em circulação no
campo social.
PALAVRAS-CHAVE: povo, Poder, Candunga,Chibé, Verde Vagomundo.
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará – IFPA / Universidade do Estado do Rio de Janeiro –
UERJ.
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Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
Mas essas oposições não podem ser construídas de forma puramente descritiva, pois,
de tempos em tempos, os conteúdos de cada categoria mudam. O valor cultural das
formas populares é promovido, sobe na escala cultural – e elas passam para o lado
oposto. Outras coisas deixam de ter um alto valor cultural e são apropriadas pelo
popular, sendo transformadas nesse processo. O princípio estruturador não consiste
dos conteúdos de cada categoria – os quais, insisto, se alterarão de uma época a outra.
Mas consiste das forças e relações que sustentam a distinção e a diferença; em linhas
gerais, entre aquilo que, em qualquer época, conta como uma atividade ou forma
cultural da elite e o que não conta. Essas categorias permanecem, embora os
inventários variem (Hall, 2003, p.256/257).
No percurso teórico empreendido por Hall, para além do foco por ele
proposto na problematização do conceito de “cultura popular”, interessam-
nos mais diretamente as categorias sobre as quais se estrutura a luta cultural
em seu campo de batalha: o “povo” e o “poder”. É importante destacar que
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Série E-book | ABRALIC
O povo versus o bloco do poder: isto, em vez de "classe contra classe", é a linha
central da contradição que polariza o terreno da cultura. A cultura popular,
especialmente, é organizada em torno da contradição: as forças populares versus o
bloco do poder. Isto confere ao terreno da luta cultural sua própria especificidade.
Mas o termo "popular"– e até mesmo o sujeito coletivo ao qual ele deve se referir – "o
povo" – e altamente problemático. (...). Isso me sugere que, assim como não há um
conteúdo fixo para a categoria da "cultura popular", não há um sujeito determinado
ao qual se pode atrelá-la – "o povo"(Hall, 2003, p.262).
(...) foi escrito em 1939, mas sua primeira publicação editada foi em 1954. A obra é
fruto das observações de Bruno de Menezes quando este fora funcionário da
Secretaria de Agricultura do estado do Pará. A ida de Bruno a diversas localidades
com o intuito de monitorar o seu povoamento o fez entrar em contato com pessoas
diversas, de culturas variadas e de diferentes classes sociais. O referido romance faz
referência à migração nordestina para a zona bragantina, localizada no nordeste
paraense, durante o povoamento ao longo da Estrada de Ferro de Bragança, que unia
os municípios de Belém e Bragança (2010, p.2).
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Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
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Série E-book | ABRALIC
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Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
- É, ele é um caboclo forte. E me pareceu logo à primeira vista, uma pessoa em quem
se pode depositar inteira confiança. (...)
- É, o Miguel é o tipo perfeito do nosso caboclo. (...)
- É, ele tem no físico, todas as características do nosso caboclo típico. A começar pela
cor morena que é meia (sic) indefinida. Não é moreno amarelo como muitos: é
moreno-cor-de-cobre-quase-roxo. (...). Mas é nas feições que as três raças mais se
misturam: os olhos, o nariz, e a boca conservam todas elas um pouco. Creio até que
tenha algumas gotinhas de sangue branco. Ele é um protótipo, ou como diz o povo:
ele é um tipo por demais caviloso (Monteiro, 1972, p. 48-49).
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Série E-book | ABRALIC
Dizem que esse cearense, era terrível e célebre cangaceiro remanescente de bandos de
jagunços. Falam que esse arigó misterioso, era caçado em todo nordeste. (...)
Quando estive fazendo lançamento de impostos por essas bandas, tive oportunidade
de encontrar com esse ceariba, casualmente, ele já estava aleijado de uma perna
(Monteiro, 1972, p. 50).
Olha, rapaz, não te aconselho não, mas no Nordeste, um servicinho deste tinha logo
pagamento imediato. (...). Garanto que causo deste não acontece no Nordeste. Pode
até acontecer, que tem mulher safada em todos os quadrantes e homem besta em
todas as latitudes. Mas sem briga, sem ajuste, sem sangue e sem maior desgosto, um
causo deste não ocorre no Nordeste. (...). Se tu fosse meu filho Miguel, hoje é que eu
ia mesmo saber se és um homem inteirado, um homem in-tei-ra-do! (Monteiro, 1972,
p. 101).
Como já era maduro e era também corno recém traído, podia formar definitiva vida
de jagunço. Me chamou de parte e disse: que des (sic)do primeiro dia que me viu,
tinha sido esse o seu único pensamento: de me educar e me instruir para cumprir
uma grande sina. E deixar na História um nome como o maior bandido, o maior
bandido da Amazônia. (...). O maior bandido da Amazônia, Discípulo do Diabo, o
Cabra da Peste, o Cabra, Afilhado do Jagunço. Filho adotivo de Joaquim da Silva
Possidônio (Monteiro, 1972, p. 119).
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interventoria pelos aliados civis e militares em 1930, que junto com ele
planejaram o Movimento de 1930 no Pará” (Fontes, 2013, p.132).
Magalhães Barata foi governador do Pará por três vezes, duas das
quais como interventor (1930-1935 e 1943-1945) e uma como candidato eleito
(1956-1959), entrando assim para a história como o maior líder político do
estado do Pará. Entretanto, nos interessa principalmente período de sua
primeira interventoria (1930 a 1935), por ser o que corresponde ao recorte
histórico retratado nos aludidos romances. Durante esse período Barata
instaurou um governo “revolucionário” com clara promoção de sua imagem
pessoal, através de diversas viagens pelo estado, travando contato direto
com o povo do interior e das periferias, além de se tornar famoso por adotar
medidas como “concessão de audiência pública para o povo de Belém, por
estabelecer o rebaixamento dos aluguéis, por expropriar os terrenos dos
Lobos e dos Guimarães, e pela criação dos clubes de resistência e das
concentrações populares” (Fontes, 2013, p.145). O fenômeno surgido a partir
das táticas nitidamente populistas adotadas por Barata ficou conhecido
como “baratismo”, acerca do qual nos fala Érito Oliveira:
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Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
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Com a vitória da revolução, seu Zé Nascimento não ficou mal com os colonos: cada
vez mais o prestígio cresce. O Interventor, com aquela energia, protegendo a pobreza,
prendendo galegos na capital, a torto e a direito, adquire fama por todos os lados.
Quando êle fêz sua primeira viagem pela Estrada, seu Zé Nascimento foi escolhido
maquinista do expresso. Sabendo da escala, tratou de juntar os caboclos, na recepção,
encomendou discurso ao tabelião com versos molhados nas águas do seu "glorioso
Apeú” (Guimarães, 1964, p. 63-64).
aviamento. Tais assertivas podem ser aferidas nos trechos já citados: “Ah,
esses galegos, esses ‘coronéis’ da roça, só mesmo todos na cadeia! Pensam
que a revolução foi feita para isso, mas se enganam!” (Menezes, 1954, p.79); e
também: “O Interventor, com aquela energia, protegendo a pobreza,
prendendo galegos na capital, a torto e a direito, adquire fama por todos os
lados” (Guimarães, 1964, p. 64). Há ainda uma passagem no romance Chibé
em que a portuguesa Belmira, matriarca da família Fonseca, entra em
desavença com o tabelião, que se nega a assentar o casamento de sua filha
Diva em seu cartório por conta do comportamento promíscuo desta última.
Diante da negativa do tabelião, a galega recorre à autoridade do Interventor,
o qual se nega a ajudá-la por simpatia ao notário, bem como devido à origem
portuguesa de Belmira: “A portuguesa correu até para o Interventor. Este
não deu resultado: tem galegos em má conta e não vai intimar quem tantos
elogios lhe faz quando discursa na vila, à sua passagem” (Guimarães, 1964,
p. 72).
Um aspecto interessante que parece permear as representações do
Interventor nas obras aludidas diz respeito ao “baratismo” enquanto
fenômeno decorrente da política empreendida pelo Major Barata. O
Interventor criou os famosos “clubes de resistência” ou mesmo
“concentrações populares Magalhães Barata”, que segundo Fontes, “eram
forças auxiliares do interventor. Ele abriu filiais em toda Belém e em março
de 35 tinha uma guarda de 300 jovens para defesa pessoal do interventor”
(2013, p.147). No romance Chibé há uma possível alusão às concentrações
populares, quando Zé Nascimento promove uma campanha de apoio a
Barata junto aos caboclos: “Seu Zé Nascimento fez abaixo-assinado ao
Interventor. Todo mundo virou baratista; desde que se acabou a ditadura, o
major Barata nunca perdeu pleito por causa de apeuense” (Guimarães, 1964,
p. 22).
É possível perceber em alguns trechos do romance Candunga, de Bruno
de Menezes, certa simpatia, embora sutil, à figura de Magalhães Barata. É
importante frisar queo mesmo foi escrito em 1939, ou seja, quatro anos
depois do fim da primeira interventoria, e que mesmo no ano de publicação
do romance, 1954, Magalhães Barata ainda estava vivo e politicamente ativo,
sendo o candidato a governador eleito no pleito de 1956. É provável que a
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Série E-book | ABRALIC
Sabido que todo homem tem seu ponto moral vulnerável, seja êle o de opiniões mais
sisudas, no círculo de partidários do interventor contava-se elementos com a lenta
infiltração da gota d’água...
Eram os comensais, os amigos do peito, os bajuladores, os “revolucionários” de
última hora, os que com habilidade controlavam os atos do governante. Os que
faziam e desfaziam o ambiente das amizades palacianas. Os que aviltravam se havia
interesse político, ou não, nos favores que a interventoria poderia conceder. Daí o
dinheiro de João Portuga fazer o milagre de ser conseguida a sua liberdade, a de
Minervino Piauí e a de mais alguns “coronéis”, que poderiam dispor de mais alguns
eleitores, na ocasião precisa e fazer boas contribuições para o Partido, no futuro.
Ao se oferecer ocasião propícia, um dos íntimos do interventor, pessôa de destaque,
de sua integral confiança, encaminha a conversa para o caso dos detentos que
estavam em São José, vindos da Estrada de Ferro.
O astucioso político manobra habilmente o assunto, contando com a inexperiência e a
boa fé latentes no revolucionário (Menezes, 1954, p.99/100).
pretensão: fazer além do que o Interventor faz, já é querer muito; quando Deus
quiser, melhora... basta a atenção que o govêrno dá a qualquer reclamação, o
Interventor distribui bombons às crianças, às vêzes, até dinheiro ... quando passa na
Estrada – fazer mais é impossível: forçar a natureza, contra a vontade de Deus, dá
castigo na certa... (Guimarães, 1964, p. 84-85).
Brevemente vai descansar de tanto vaivém. Nunca pensou no enfado do corpo, a riba
e abaixo, pensando besteiras, revolução que sonhou para melhora do povo – a
aposentadoria não tarda a chegar. Vai baixar o sendeiro num canto do mundo,
esperar a velhice, logo a morte, talvez. A vida êle a estragou, metido em emboanças
dos grandes, pegando cadeia, de que valeu, afinal? servindo de bêsta, grande pateta!
Tudo demais aborrece; itinerário chateia, antigamente não: a coisa que mais lhe
agradava, aquelas viagens. Se ao menos os rins não doessem, de tanto sentar,
oprimidos na cadeira de ferro...
Mão grossa de tisna na alavanca da máquina – parafusa o juízo; o trem escorrega nas
descidas da estrada: seu passado de revolucionário, e o que faria do corpo mulambo,
na lida, quando se aposentasse (Guimarães, 1964, p.18).
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Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
Agora, o jeito é misturar a festa com a política. Não esqueça: quem estiver embaixo,
quer subir; e quem estiver em cima, vai queimar o último cartucho para não descer.
Essa é a lei da guerra da política. Não esqueça também as maranhas dos políticos. Até
num fim de mundo como este, todo o cuidado é pouco, com as maranhas dos
políticos (Monteiro, 1972, p.209).
125
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
A assertiva de Pepe Rico parece agora soar como uma profecia, visto
que a classe política do município passa a ver no I.P.M. uma oportunidade
para tirar proveito pessoal, reforçando o caráter denunciador do romance ao
retratar a forma como as elites oportunistas souberam obter vantagens
políticas e econômicas com o Golpe Militar: “não lhe disse Major que era
preciso agir com urgência. A política já entrou no tal I.P.M. Pelo que eu vejo,
esse tal de I.P.M. vai ser um angú de caroço” (Monteiro, 1972,p.214). No
contexto local, o Major Antônio havia sido escolhido pelo frade missionário
para presidente da festa de Santo Antônio como uma estratégia para evitar o
uso político da mesma pelos grupos de poder locais, que cobiçavam o cargo
visando as próximas eleições municipais. Aos ambiciosos e corruptos
comerciantes Jorge Abdala e Salim Nagib, foram dadas, respectivamente, as
funções de Tesoureiro e Diretor do Arraial, cargos esses de menor expressão
do que o de presidente da festa. Instaurado o I.P.M., Abdala e Nagib, assim
como o Delegado, o Prefeito e seu Secretário, utilizam de seus depoimentos
para prejudicar seus desafetos: o Delegado, o Prefeito e seu Secretário
insinuam o evidente assassinato de Gersonita pelo Juiz de Direito, seu
amante, visando incriminá-lo, devido aos processos que correm contra o
Prefeito naquela comarca.
Já Jorge Abdala e Salim Nagib tem outros alvos em seus depoimentos:
o Major Antônio, por ser o presidente da festa de Santo Antônio; o Gerente
do Banco, por ter negado operações de crédito a Abdala e Nagib; o
Engenheiro Agrônomo, por estimular o cooperativismo, abrindo créditos e
financiando pequenos trabalhadores rurais e não “apenas os comerciantes,
como era feito anteriormente” (Monteiro, 1972,p.224); Pepe Rico, devido a
seus planos de desenvolvimento da região, o que ameaçaria o monopólio do
controle dos trabalhadores rurais sobre o qual se sustentavam as elites locais;
e Miguel dos Santos Prazeres, o Cabra da Peste, por ter se negado, como
pirotécnico oficial da festa de Santo Antônio, a adquirir as pistolas vendidas
no comércio de Nagib, fornecedor exclusivo dos barraqueiros da festividade,
optando por comprar pólvora e produzir pessoalmente os foguetes que
animariam o evento. Todos estes personagens foram acusados injustamente
de subversão, como sendo os mentores e financiadores de uma suposta
guerrilha no meio da floresta, num “plano subversivo com ramificação em
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Série E-book | ABRALIC
Considerações finais
REFERÊNCIAS
D’ARAUJO, Antonio Luiz. 1937: o golpe que mudou o Brasil: o Estado novo. Rio
de Janeiro: Quartet, 2016.
FERNANDES, José Guilherme dos Santos. Pés que andam, Pés que dançam:
memória, identidade e região cultural na esmolação e marujada de São
Benedito em Bragança (PA). Belém: EDUEPA, 2011
MAUÉS, Paulo. Sete ensaios sobre literatura: palavras de água, fogo, sangue,
dor.... Belém: Editora Pacatatu, 2014.
130
Série E-book | ABRALIC
131
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
ABSTRACT: The aim of this work is to analyze the way the anthropologist
Darcy Ribeiro questions issues related to the indigenous identity and its
historic representation in Brazil, considering the conception of a divergent
and pluridiscursive narrative.
KEYWORDS: Literature; History; Identity.
[...] é evidente que não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim
o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança ou a necessidade.
2. O historiador e o poeta não se distinguem um do outro, pelo fato de o primeiro
escrever em prosa e o segundo em verso (pois, se a obra de Heródoto (30) fora
composta em verso, nem por isso deixaria de ser obra de história, figurando ou não o
metro nela). Diferem entre si, porque um escreveu o que aconteceu e o outro o que
poderia ter acontecido. 3. Por tal motivo a poesia é mais filosófica e de caráter mais
elevado que a história, porque a poesia permanece no universal e a história estuda
apenas o particular. 4. O universal é o que tal categoria de homens diz ou faz em
determinadas circunstâncias, segundo o verossímil ou o necessário. (Aristóteles, 2001,
p. 14)
*Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF)
132
Série E-book | ABRALIC
*“o mito conta graças aos feitos dos seres sobrenaturais, uma realidade que passou a existir, quer seja uma
realidade tetal, o Cosmos, quer apenas um fragmento, uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano,
é sempre portanto uma narração de uma criação, descreve-se como uma coisa foi produzida, como começou a
existir...” (Eliade, Aspectos do Mito, p. 12/13)
†“(...) gênero que se filiam as narrativas em verso que têm por assunto fatos heróicos, vividos por personagens
humanas excepcionais, manipuladas, de certa maneira, pelo poder dos deuses. A tradição grega é responsável por
essa conceituação. A épica, entretanto, está presente em quase todas as culturas. Raros são os povos que não têm
suas histórias, que não cultuam seus heróis e não procuram preservar a lembrança dos fatos que viveram”
(Cardoso, 2003, p.6)
‡ “Platão é o primeiro pensador que desenvolveu toda temática filosófica. A filosofia pré-socrática era fragmentaria
e se reduzia quase exclusivamente ao problema cosmológico. Sócrates mudou de direção e orientou sua
investigação para o problema ético e psicológico. Com Platão a filosofia penetra em ambos domínio e entra a
ciência do objeto e do sujeito. Além disso, com Platão convergem todas as correntes anteriores. O ser de
133
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
uma vez que este parece não dispor do elemento racional. De acordo com
Mircea Eliade:
Todos sabem que, desde os tempos de Xenófanes (cerca de 565-470 a.C) – que foi o
primeiro a criticar e rejeitar as expressões “mitológicas” da divindade utilizadas por
Homero e Hesíodo – os gregos foram despojando progressivamente o mythos de todo
valor religioso e metafísico. Em contraposição ao logos; assim como posteriormente à
história, o mythos acabou por denotar tudo “o que não pode existir realmente”. O
judeu-cristianismo, por sua vez, relegou para o campo da “falsidade” ou “ilusão” tudo
o que não fosse justificado ou validado por um dos dois Testamentos. (Eliade, 1994 p.
8)
Permênides e o devir de Heráclito, os números de Pitágoras e os conceitos e definições universais de Sócrates, todo
esse acervo de doutrinas opostas se unificam em Platão mediante sua original teoria das ideias que constitui o eixo
do platonismo como no modelo divisório abaixo, comum na escola platônica: ciência das ideias em si: Dialética e a
ciência da participação das ideias:
no mundo sensível: Física; no mundo moral: Ética e no mundo artístico: Estética.” (Retirado de: História da
Filosofia Ocidental)
134
Série E-book | ABRALIC
Se acabam encontrando o seu lugar numa estória que é trágica, cômica, romântica ou
irônica – para fazer uso das categorias de Frye –, isso vai depender da decisão do
historiador em configurá-los de acordo com os imperativos de uma estrutura de
enredo ou mythos, em vez de outra. O mesmo conjunto de eventos pode servir como
componentes de uma estória que é trágica ou cômica, conforme o caso, dependendo
da escolha, por parte do historiador, da estrutura de enredo que lhe parece mais
135
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
[...] os historiadores da cultura realmente não têm de escolher (ou, na verdade, não
podem escolher) entre as duas – entre unidade e diferença, entre significado e
funcionamento, entre interpretação e diferença. Assim como os historiadores não
precisam escolher entre sociologia e antropologia, ou entre antropologia e teoria da
literatura para conduzirem suas pesquisas. (Hunt, 1992, p. 21)
nos ensinou é que a ficção e a história são discursos, que ambas constituem
sistemas de significação pelos quais damos sentido ao passado”. (1991,
p.122)
Darcy Ribeiro, ao inventar e reconstruir a trajetória do índio em Maíra
– um romance dos índios e da Amazônia* –, trabalha no seu discurso a
problematização acerca dos limites entre a História e a narrativa discutida
pelos estudiosos nestas últimas décadas, uma vez que será por meio dessa
junção que o autor poderá dar valor estético a algumas das concepções
centrais de sua perspectiva presente nos seus livros de antropologia.
Contudo, em Maíra, Darcy Ribeiro declara que seu texto não seria
completo se não tivesse a relação com a literatura, uma vez que a escrita
científica é fragmentada. Desta forma, o autor abre a possibilidade de
audibilidade a falas que não foram ouvidas, neste caso, a fala do indígena.
experiências memorialísticas de sujeitos que testemunharam, de alguma forma, um evento histórico. Narrativas
testemunhais são reconstruções de mundos implantados pelo autor. O testemunho é uma possibilidade de
apresentar relatos com um peso traumático e inarrável, levantando questões e dando voz às narrativas de minorias,
de sobreviventes de holocaustos e de outras formas de genocídio, repressão e violação dos direitos humanos.
Percebemos, também, que o testemunho salienta a relação entre discurso histórico e discurso ficcional.” (Maciel,
2016, p. 75)
137
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
Não tive nenhum escrúpulo em misturar mitos, lendas e contos de tantos povos,
mesmo porque conheço bem meus índios. Sei que eles não têm nenhum fanatismo da
verdade única. São perfeitamente capazes de aceitar múltiplas versões de um mesmo
evento, tomando todas como verdadeiras. Estou certo de que qualquer índio
brasileiro, lendo a mitologia inscrita em Maíra, a achará perfeitamente verossímil.
(Ribeiro, 2007, p. 22)
138
Série E-book | ABRALIC
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Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
principalmente estão com medo dessa onda migratória que está levando ao
fim suas fronteiras.*
Embora tenha servido para fragilizar certos pensamentos nacionalistas
radicais, a globalização, nos países emergentes, também é sinônimo de
ambiguidades. No caso do Brasil, que é um país de grande extensão, é
possível ver as diferentes realidades – políticas, sociais, econômicas,
artísticas – que não estão compatíveis com a realidade proposta e dita como
dominante†.
Darcy Ribeiro no seu livro O povo Brasileiro: a formação e o sentido
do Brasil propõe uma abordagem da formação do povo brasileiro a partir de
uma explicação histórico-antropológica, destacando a mestiçagem cultural,
considerando as classes sociais e como elas se apresentam no país, dando
origem a uma teoria cultural que buscou revelar a realidade do Brasil e dos
seus brasileiros. Para o autor, a formação do povo e do território brasileiro
foi feita através da “fusão de genes e de saberes índios e negros, com sua
pitada de brancura” (Ribeiro, 1997, p. 501/502).
No Brasil, muito se discute sobre a pluralidade étnica e o alastramento
das suas próprias características ou daquilo que pode ser
concebido/imaginado como característico de um grupo cultural. No entanto,
já atingimos o conhecimento – pelo menos no meio acadêmico – que a nossa
matriz colonizadora portuguesa interferiu brutalmente em todas e quaisquer
manifestações social, política e cultural que de certo maneira levaria à
fundação do tão sonhado Quinto império‡. Sobre isso, Darcy Ribeiro afirma
que apesar da nossa ancestralidade ter sido heterogênea nosso solo foi
edificado sobre a homogeneidade portuguesa.
* Medo ainda de dissipar sua concepção de união crivada na identidade única, a identidade europeia, aquela que
foi responsável pela criação de um vasto império. A concepção da identidade baseada no pensamento rizomático
ameaça o império europeu.
†Podemos considerar como a realidade da região sudeste porque esta é considerada a fábrica de cânones já que ela
140
Série E-book | ABRALIC
A aldeia dele é parte de uma nação, é vila ou bairro ou subúrbio, e como tal pode até
ser esquecida porque é parte de um todo. Conosco, os mairuns, é diferente. Minha
aldeia não é parte de coisa nenhuma. È um povo em si, quer dizer, uma tribo com sua
141
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
O Avá veio e não veio. Este que veio é e não é o verdadeiro Avá. O que eu esperava, e
que vi vindo dia-a-dia por terras e águas, não chegou. Aquele sim, era o Avá mesmo,
inteiro. Este é o que restou de meu filho Avá, depois que os pajés-sacacas mais
poderosos dos caraíbas roubaram sua alma. (Ribeiro, 2007, p. 270)
143
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
Descobrira que a estrutura de Maíra era da missa católica, e tudo reescrevi com essa
intencionalidade. Vira bem que o tema verdadeiro de Maíra era a morte de Deus, que
morria porque o mundo mairum estava condenado, não tinha salvação. Isso me
permitiu escrever um capítulo poético e que o próprio Deus, perplexo, se lamenta e se
pergunta que Deus é ele, e qual será seu destino, com o desaparecimento do seu
povo. Ele era já órfão de seus filhos. (Ribeiro, 2007, p. 22)
* Darcy Ribeiro dividiu o romance Maíra em quatro partes: Antífona, Homilia, Cânon e Corpus. Partiu do modelo
litúrgico da missa (e dos cultos evangélicos) e fez deslocamento e inversões do sentido original, exigindo nova
interpretação para o sacrifício. O autor subverteu textos bíblicos e latinos do ritual antigo, dessacralizou e
ridicularizou o “mistério” – para evidenciá-lo na pessoa do índio, eucaristiado pela catequese e pela ganância dos
poderosos. (Silva; Tesser, 2013, p. 45)
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Série E-book | ABRALIC
145
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
Logo mais o aroe nos dirá o que dançaremos hoje. Todos estamos aqui no pátio,
esperando a dança da tarde. Já se vê que será um ritual, porque Remui está sentado
no seu lugar, mas trouxe de dentro do baíto o seu banquinho de duas cabeças.
Encostado nas palhas do baíto, olhando de gente para o sol da tarde, o aroe dá o sinal.
Chama, com a flauta de canela de onça, um homem de cada casa. Eles saem
conversando e andando rapidamente, cada um para seu lado. A notícia corre de boca
em boca. É o Ñandeiara! É o Ñandeiara! Cada criança que fala vai saber, agora, o seu
nome e vai receber, agora, no rosto, a marca do olhar de Maíra-Coraci, o Sol: o coraci-
maã. (Ribeiro, 2007, p. 59)
146
Série E-book | ABRALIC
REFERÊNCIAS
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Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
RIBEIRO, Darcy. Maíra. Um romance dos índios e da Amazônia. 21. ed. Rio
de Janeiro: Record, 2007.
______. O povo brasileiro: a formação e o sentindo do Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.
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Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
Tudo o que é sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as
pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas
relações recíprocas.
Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade Federal de Roraima (UFRR).
Universidade Estadual de Roraima -UERR; PPGL- Universidade Federal de Roraima -UFRR; Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq .
150
Série E-book | ABRALIC
* Todos os dados relativos a seu Caetano Raposo pertencem ao projeto Panton Pia' (junto, perto, ao lado da
história). Projeto iniciado em 2007, primeiro registrou 29 narradores indígenas de 17 comunidades da TI São
Marcos. Depois, concluiu em 2014 as entrevistas de mais 10 narradores, de seis comunidades, na TI Raposa Serra
do Sol. Os narradores estão assim distribuídos: 27 homens e 12 mulheres, sendo por etnia: 24 macuxi; seis
taurepang; seis wapishana; uma indeterminada. Entre esses merece menção uma etnia cuja tribo enquanto tal não
mais existe: uma sapará; e outro que menciona wapixana e sua relação com o nome karapiwa, sinônimo de
wapishana ou mesmo da mistura de wapixana com macuxi. Na terceira fase, iniciada em 2015, o projeto está
registrando e analisando cantos, rezas e supertições de indígenas dessas duas terras. Desde 2007 o projeto é
financiado pelo CNPq e vinculado à Universidade Estadual de Roraima - UERR. A metodologia de coleta e trato
com as narrativas sustenta-se principalmente na História Oral (Alberti, 2004).
Dados da entrevista:Universidade Estadual de Roraima / CNPq / Projeto: Panton Pia': Narrativa Oral Indígena /
Entrevistado: Alcuíno de Lima (AL) / Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF) / Assistente de entrevista:
Rosicleide Guimarães (RG) / Local: Taxi, TI Raposa Serra do Sol, Pacaraima, RR / Data da Entrevista: 5/10/2011 /
Transcritor: Cleber André / Conferência de Fidelidade: Jociane Gomes de Oliveira / Copidesque: Devair Antônio
Fiorotti / Duração: 8:59:40 + 41’50,92
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Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
dum dia pra outro, né. Como vocês tão aqui, que nunca pesaram de vocês chegarem
aqui. Quem é que pensava? Nunca! Vem gente de Brasília, de Brasília, não sei de
onde, de São Paulo, e aí todo aqui, chega ônibus, chega dois ônibus aqui. Não param
por ali, só aponta pra cá. Mas por quê? Eles procuram de fazer alguma história
daquela, uma coisa assim, é interesse isso daí. Então essas, as meninas disseram: “Oh
Noé, meu senhor, o senhor é poderoso. Eu quero que o senhor abra um local que dê
de água num entrar.”Essas menina falaram pra ele né. “Eu quero que o senhor
organize um lugar aonde água não entra, pra nós ficar pra sempre.” E aí esse
Macunaima tá escutando, sempre Macunaima andava por ali e tá escutando ali.
RG: A história...
AL: Eh. Aí “Tá bom.” Quando chegou que o pessoal não quis obedecer, não quiseram
acompanhar, o que ele podia salvar ele salvou, no barco dele, né. Aí disse assim pras
meninas: “Gente, o que eu posso fazer pra vocês, o que vocês pediram, tá pedido e tá
guardado pra vocês. Pode chegar lá.” Quando chegaram lá, entraram, fechou. Ele
fechou. “E quando o rio baixar você vai ter só janela aberta pra vocês olhar. De baixo
não vai ter permiso não, só em cima”. É alto, a pedra é alta. Então alagou, acabou o
mundo aí. Quando baixou o rio, quando baixou o rio abriu só uma janela lá em cima.
Saiu pra fora pra ver, era uma janela, tavam numa janela. Uma mesa assim como esse
daqui, de pedra já. Então, aí eu conversando pra velha: “Tu quer acreditar que tem,
existe mulher, menina?” “Aonde?” “Ali têm minhas namoradas, umbora lá ver? Tu
quer ver? Pra tu contar, dizer que ‘Não, ele... tá mentindo’ né”. Eu gosto de dizer: “Tu
gosta de mentir né, umbora lá vê”. Nós entramos lá com ela, entramos procurando
onde é casa dele, não sei onde é a casa deles não. Aí eu fui chegando pra lá pra perto,
aí eu gritei: “Ei fulano abre a porta que eu tô chegando aqui!” Aí apareceu na porta.
“Eu tô chegando óh, tem essa daqui que eu trouxe pra vocês ver, conhecer ela, essa
aqui é minha esposa, esse daqui. Trouxe ela aqui então. Ela veio conhecer vocês.” Aí
ela saiu e ficou em cima da mesa, né.
RG: Na janela?
AL: Eh! Aí eu disse, “não, só dois.” Aí disse pra ela: “Olha aí as menina, pra tu nunca
dizer que é mentira.”
ESPOSA DO SEU ALCUÍNO: Eu vi, são bonitas e fiquei apaixonada de ir lá!
DF: Espera aí, que eu quero que a senhora diga isso. Diga pra gente aí: a senhora viu
é?
AL: Vem mais aqui! Ei, vem mais aqui. Vem aqui. Pois é né, pra não dizer que é
mentira.
ESPOSA DO SEU ALCUINO: Ela saiu, saiu na mesa dela, ela com a filha saiu.
AL: Eram duas meninas.
DF: E como é que era?
ESPOSA DO SEU ALCUINO: Aí elas vinham andando assim. Eram bonito, branco
mesmo, assim como minha irmã. Saíram, aí tava pensando e olhando. Aí ela entrou,
entrou aí saiu outra bem bonita. Entraram e pronto, não saiu mais.
AL: Mas ela ficou besta né, aí eu disse eu.
ESPOSA DO SEU ALCUINO: Aí nós fomos lá.
AL: Queria, parece que se endoidar, sei lá né.
ESPOSA DO SEU ALCUINO: Na frente e aí ela disse: “O que que tá fazendo por aí?
Cuidado!” “Não mana, eu vi! Não tá passando nada, elas são bonitas, são bonitas
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Série E-book | ABRALIC
mesmo, são daqui roupas parece branco assim, são branco mesmo como irmão, tavam
olhando e não saiu da minha vista não. Isso daí que eu vi.
Ao se lidar com uma narrativa oral, essa interação é aspecto a ser pensado: longe de
um texto pronto, como a literatura em livro, o texto é construído em ato. Se não
bastasse isso, é construído num processo de interação em que o entrevistador, nesse
caso, ou pessoas da comunidade interferem na construção do texto por meio de um
jogo de interferências dialógicas, próprias de uma situação de fala. Há nesse processo
uma alternância no papel dos falantes, estabelecendo turnos. No caso dessa narrativa,
essa relação seria assimétrica, já que o tema da lenda do Timbó está sendo proposto e
desenvolvido pelo entrevistado (2012, p. 241).
153
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
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Série E-book | ABRALIC
AL: Não! É ali do outro lado da ponte do Paracau. [...] Agora eu já levei essa velha aí,
já conheceu, mas não sabe contar a história dele, não. Essa aí já sabe já, sabe onde é
loca. E lá, e lá no Serra da Onça que chamam, têm duas meninas encantadas lá. Taí ela
aí, já levei ela pra ela ver também. No tempo da alagação, daquele tempo do Noé.
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Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
AL: Eh! Aí eu disse, “não, só dois.” Aí disse pra ela: “Olha aí as menina, pra tu nunca
dizer que é mentira.”
ESPOSA DO SEU ALCUÍNO: Eu vi, são bonitas e fiquei apaixonada de ir lá!
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Série E-book | ABRALIC
13 Então disse Deus a Noé: Resolvi dar cabo de toda carne, porque a terra está cheia
de violência dos homens; eis que os farei perecer juntamente com a terra.
14 Faze uma arca de tábuas de cipreste; nela farás compartimentos e a calafetarás com
betume por dentro e por fora (Gênesis 6: 13-14, p. 09).
Disse o Senhor a Noé: Entra na arca, tu e toda a tua casa, porque reconheço que tens
sido justo diante de mim no meio desta geração.
2 De todo animal limpo levarás contigo sete pares: o macho e sua fêmea; mas dos
animais imundos, um par: o macho e sua fêmea.
3 Também das aves dos céus, sete pares: macho e fêmea; para se conservar a semente
sobre a face da terra.
4 Porque, daqui a sete dias, farei chover sobre a terra durante quarenta dias e
quarenta noites; e da superfície da terra exterminarei todos os seres que fiz.
5 E tudo fez Noé, segundo o Senhor lhe ordenara (GÊNESIS 7: 1-5, p. 10-11).
157
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
disso, Makunaima não é mencionado por acaso nessa narrativa, já que, após
falar acerca das garotas encantadas, Senhor Alcuíno inicia um relato sobre o
gaiato, em que Makunaima é um dos personagens centrais. Quando Senhor
Alcuíno finaliza seu relato sobre as encantadas, a esposa corrobora, afirma
dando caráter de veracidade à história, o que ele havia contado: "Eu vi, são
bonitas e fiquei apaixonada de ir lá!". Logo, por mais que pareça improvável,
ela e ele viram as encantadas.
O texto de Alcuíno localiza-se temporalmente “no tempo da alagação”,
que representa o dilúvio bíblico, “lá na pedra, Pedra da Onça, ali na
cabeceira do Tracajá, Igarapé do Tracajá, bem ali”.Paulo Santilli (2001), ao
falar sobre a relação entre os povos indígenas do circum-Roraima, apresenta
ainda outro fator que corrobora para a compreensão de Makunaima como
um personagem real, ou tão real quanto divindades cristãs, por exemplo. De
acordo com o autor, “os dois grupos [Pemon e Kapon] consideram-se
aparentados, descendentes comuns de heróis míticos, os irmãos Macunaima
e Enxikiráng” (2001, p.16). Essa herança é comum de ser percebida entre os
povos da região do circum-Roraima. Ali, eles se autodenominam filhos e
netos do herói mítico Makunaima.
Outro ponto que pode ser destacado em relação à narrativa de Senhor
Alcuíno é a maneira como as garotas encantadas participam do dilúvio.
Biblicamente, Noé, cumprindo com tudo o que ordenara Deus, entrou na
arca com alguns familiares. A arca, nesse caso, era a única possibilidade de
salvação, pois era o único local que não seria inundado. Já na narrativa
apresentada por Senhor Alcuíno, Noé até entra na arca, mas não é esta a
única possibilidade de salvação. Aliás, é justamente em busca dessa outra
possibilidade que as garotas interpelam Noé: “Oh Noé, meu senhor, o senhor
é poderoso. Eu quero que o senhor abra um local que dê de água num
entrar”. Em resposta, Noé as coloca numa loca, em que há um janela,
“E quando o rio baixar você vai ter só janela aberta pra vocês olhar. De baixo não vai
ter permiso não, só em cima”. É alto, a pedra é alta. Então alagou, acabou o mundo aí.
Quando baixou o rio, quando baixou o rio abriu só uma janela lá em cima. Saiu pra
fora pra ver, era uma janela, tavam numa janela.
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Conceitos como unidade e pureza não cabem para aquilo que somos:
não somente um povo miscigenado geneticamente. A misciginação está na
alma do que somos e isso, também, do ponto de vista cultural. O que somos
pode, nesse sentido, ser pesado a partir do conceito cunhado por Santiago.
Vivemos, se assim podemos chamar, num entre-lugar cultural, se pensarmos
nossas origens e o que nos tornamos com o passar do tempo. Somos um
novo que não se enquadra nos parâmetros europeus, nem africanos e nem
indígena strictusensu. A narrativa de Senhor Alcuíno surge engendrada
nesse entre-lugar.
Isso nos remete a uma afirmação de Zilá Bernd, que em um estudo
sobre o uso de conceitos como transnacionalidade e transculturalidade na
literatura comparada, afirma que diante do panorama atual dos estudos
culturais, e “face à rapidez vertiginosa com que ocorrem os deslocamentos
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Série E-book | ABRALIC
REFERÊNCIAS
ABREU, Stela Azevedo de. Aleluia: o banco da luz. São Paulo: IFCH-
UNICAMP, 1995 [Dissertação de mestrado].
ALBERTI, Verena. Manual de história oral. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2004.
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Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
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Série E-book | ABRALIC
Hatoum produz aquilo que ele mesmo chama de uma simetria rigorosa na narrativa:
na primeira parte os mitos são construídos e na segunda estes progressivamente se
esfacelam. Mas, marcando a passagem de uma metade à outra está o naufrágio do
Eldorado, que, conforme se viu anteriormente, possui significados superpostos:
remete também ao mito da Cidade Encantada. (Vasconcelos, 2010, p. 42).
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Série E-book | ABRALIC
Numa tarde de dezembro, cheguei mais cedo à praça, deitei no banco morno e dormi.
Quando as cinco badaladas me despertaram, o rosto de Dinaura surgiu contra o sol.
Não tive tempo de perguntar sobre a dança, nem para me erguer: vi os olhos pretos,
grandes e assustados. Podia ser um sonho? Mas eu não queria sonho, desejava a
mulher ali, sem ilusões. Então acariciei com os dedos a boca de Dinaura, senti a
respiração inquieta, o tremor e o suor nos lábios abertos que roçavam meu rosto. No
prazer do beijo, senti uma dentada feroz. Soltei um grito, mais de susto que de dor.
Tentei falar, minha língua sangrava. Na confusão, Dinaura escapou. (Hatoum, 2008,
p. 47).
Elas são seduzidas e levadas para o fundo do rio por seres das águas ou da floresta
(geralmente um boto ou cobra sucuri), e só voltam ao nosso mundo com a
intermediação de um pajé, cujo corpo ou espírito tem o poder de viajar para a Cidade
Encantada, conversar com seus moradores e, eventualmente, trazê-los de volta ao
nosso mundo. (Hatoum, 2008, p. 106).
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A paixão de Arminto por Dinaura, em seu próprio tempo, virou lenda. Mas que
paixão não é lenda, para quem vive uma história de amor? O amor de um homem por
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Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
uma sereia amazônica. A lendária procura do nosso eldorado mítico, nosso eldorado
íntimo, nosso eldorado único. (Celedón, 2012, p. 104).
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Série E-book | ABRALIC
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Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
Florita me disse que várias órfãs falavam a língua geral; estudavam o português e
eram proibidas de conversar em língua indígena. Vinham de aldeias e povoados dos
rios Andirá e Mamuru, do Paraná do Ramos, e de outros lugares do Médio
Amazonas. Só uma tinha vindo de muito longe, lá do Alto Rio Negro. Duas delas, de
Nhamundá, haviam sido raptadas por regatões e depois vendidas a comerciantes de
Manaus e gente graúda do governo. Foram conduzidas ao orfanato por ordem de um
juiz, amigo da diretora. [(...)] Na tarde de 16 de julho as órfãs e as internas entraram
na praça do Sagrado Coração de Jesus em fila indiana. Ninguém usava uniforme. Vi
as filhas das famílias ricas separadas das órfãs, e uma roda de meninas tapuias
encolhidas pela timidez e pobreza. (Hatoum, 2008, p. 41- 43).
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Série E-book | ABRALIC
No porto de Vila Bela, alguém espalhou que a órfã era uma cobra sucuri que ia me
devorar e depois me arrastar para uma cidade no fundo do rio. E que eu devia
quebrar o encanto antes de ser transformado numa criatura diabólica. Como Dinaura
não falava com ninguém, surgiam rumores de que as pessoas caladas eram
enfeitiçadas por Jurupari, deus do Mal.
[...] Ulisses Tupi queria que eu conversasse com um pajé: o espírito dele podia ir até o
fundo das águas para quebrar o encanto e trazer Dinaura para o nosso mundo.
Sugeriu que eu fosse atrás de dom Antelmo, o grande curandeiro xamã de Maués. Ele
conhecia os segredos do fundo do rio e podia conversar com Uiara, chefe de todos os
encantados que viviam na cidade submersa.
[...] Uns diziam que Dinaura havia me abandonado por um sapo, um peixe grande,
um boto ou uma cobra sucuri; outros sussurravam que ela aparecia à meia-noite num
barco iluminado e dizia aos pescadores que não suportava viver na solidão do fundo
do rio. (Hatoum, 2008, p. 34-35, p. 64 e p. 65, respectivamente).
175
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
A explicação dos eventos cotidianos, na Amazônia, se faz por meio de uma forma
poética de imensa riqueza, inserindo na relação do homem com a vida um elemento
de poesia. A lenda da Boiúna, como Cobra-Grande transformada em navio
iluminado, é a transmissão visível do esplendor invisível do rio. É um momento no
qual o ajustamento do visível e do invisível, à semelhança do processo de “ajuste de
foco” nas lentes da câmara fotográfica, superpõe a imagem do invisível à do visível,
revelando e iluminando o mistério então contemplado. (Loureiro, 2000, p. 214).
Uma grávida, com medo de dar à luz uma criança com cara de boto, escreveu que
dormia na beira do Amazonas e cantava para o rio quando o sol nascia. Um homem
que sonhava com uma inscrição milenar numa pedra no rio Nhamundá e se dizia
176
Série E-book | ABRALIC
Em noites de festa, reza a crença que o boto transforma-se em um belo rapaz, muito
charmoso e galante, que cativa as mulheres e as seduz com sua voz doce e
encantadora. O boto em forma de homem geralmente se veste de branco, em algumas
versões traz uma espada à cintura, e sempre usa chapéu para esconder o único traço
ainda visível de sua natureza aquática: as narinas que se encontram no topo de sua
cabeça. (Bahia, 2007, p. 58).
Antes de morar no orfanato de Vila Bela, não parava de sonhar com sangue. Meu
sangue era um pesadelo, disse a penitente. Tinha uns doze anos e já era órfã quando
viu sangue escorrer de sua vagina e tomou um susto. O primeiro sangue. Sentiu a
cabeça latejar, e gritou tanto de dor que seu tio levou a coitada para ser curada por
um pajé da aldeia. Maniva foi proibida de entrar na casa, porque o sangue da
menstruação era maléfico para os pajés. Sangue sagrado. Proibido. Era enviado pelos
espíritos da natureza: os trovões, as águas, os peixes e até o espírito dos mortos. Então
o pajé contou que o criador do mundo chupou o rapé-paricá da vagina de sua
sobrinha que estava menstruada, dormindo. Uma parte do pó caiu na terra dos povos
da Amazônia e se espalhou por toda a floresta, mas só os pajés podem cheirar o pó do
cipó e ver o mundo, só eles têm o poder de abrir a visão e depois transformar, criar e
curar os seres. A moça ouviu isso: quando o pajé chupa o sangue, o pó, ele morre;
quer dizer, a alma dele sai do corpo e viaja para outro mundo, mais antigo, o começo
de tudo. (Hatoum, 2008, p. 44-45).
178
Série E-book | ABRALIC
Pode ser o simples temor de uma adolescente ao ver o sangue menstrual, pode
representar o sangue de uma raça sendo dizimada, ou pode, ainda, representar o
sangue simbólico que ela terá que verter sempre para se adaptar à nova realidade
social em que se encontra, órfã em lugar onde o “sangue de Jesus” é a sublime
ferramenta de limpeza de todos os pecados. (Cavalcante, 2013, p. 18).
Após entrar no convento das carmelitas a índia parece rejeitar o que lhe
foi ensinado: “Não queria mais recordar as palavras do pajé. Fez o sinal da
cruz, se ajoelhou e chorou, sacudindo o corpo; depois estendeu os braços
para o céu e gritou o nome de Deus e da Virgem do Carmo” (Hatoum, 2008,
p.46). O mito aparece aí em oposição à religião católica, crítica clara a uma
religião que historicamente tenta manter-se como verdade única.
Em determinado momento da novela o protagonista fala que a Cidade
Encantada era uma lenda antiga e que “surgia na mente de quase todo
mundo, como se a felicidade e a justiça estivessem escondidas num lugar
encantado” (Hatoum, 2008, p. 64). Aqui se percebe uma crítica à
modernidade, é o momento em que Hatoum aproveita para colocar em
evidência temas como a exploração sexual de crianças, a miséria desmedida,
o poder concentrado na mão de poucos e a desfaçatez política. A abastada
família Cordovil, sob a orientação de Edílio, parece ter construído a sua
fortuna a ferro e fogo, causando o massacre de índios e caboclos e
explorando pessoas. O próprio sobrenome, Cordovil, significa muito em
nossa análise, pois, em entrevista, Hatoum esclarece:
Mas perceba como o sobrenome da família é revelador: Cordovil une tanto a vilania
como um lado cordato, o ‘coeur’, coração. Eu me inspirei em um militar de Parintins
que caçava índios, homem temível que provocou matanças. E a situação não mudou:
ainda hoje há grileiros que comandam latifúndios na Amazônia. (Hatoum, 2008).
179
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
REFERÊNCIAS
BAHIA, Márcio. Boto. In: BERND, Zilá (org.). Dicionário de Figuras e Mitos
Literários das Américas. Porto Alegre: Tomo Editorial/ Editora da
Universidade, 2007.
181
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
182
Série E-book | ABRALIC
*Mestre em Letras: Linguagem e Identidade pela UFAC. Docente de Língua e Literatura Espanhola da
Universidade Federal do Acre. Doutorando pelo Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística
Aplicada da UFRJ. Contato: lmsaraiva@uol.com.br
*Mestre em Letras: Linguagem e Identidade pela UFAC. Docente de Língua e Literatura Espanhola da
Universidade Federal do Acre. Doutorando pelo Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística
Aplicada da UFRJ. Contato: cabralufac@yahoo.com.br
183
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
culture silencing and also the presence of black people (the Negro), in the
historical formation of this region. Our analysis will be based on references
of HALL (2003), GILROY (2001), GLISSANT (2005) and PRATT (1999)
KEYWORDS: Displacement; Transculturation; Conflicts; Silencing; Culture.
Introdução
Antes de descrever sobre o artista, apresentaremos, a seguir, a imagem
do autor e faremos algumas considerações importantes sobre ele que nos
ajudará a compreender sua obra.
*Entrevistamos
o autor Jorge Rivasplata de la Cruz, no 10 de junho de 2013, no seu atelier localizado no centro de
Rio Branco-Acre. Na entrevista, utilizamos gravador de voz, portátil, profissional, de marca Sony. Na
184
Série E-book | ABRALIC
(...) zona de contato, compreendido como “espaços de encontros coloniais, nos quais
as pessoas geograficamente e historicamente separadas entram em contato uma com
as outras e estabelecem relações contínuas, geralmente associadas a circunstancias de
coerção, desigualdade radical e obstinada (PRATT, 1999, p. 31).
oportunidade, após momentos de conversa com o artista, o nosso questionamento a ele foi sobre o conteúdo
principal da obra em questão, quando foi lhe dada livre voz para tecer seus comentários sobre a idealização e
produção da obra.
185
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
186
Série E-book | ABRALIC
*Simbiótica
– relativa à simbiose. Esta significa, ecologicamente, a interação entre duas espécies que vivem juntas.
(HOUAISS, 2004, p. 2572)
187
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
(2005) postula que uma raiz única é aquela que mata tudo o que está a sua
volta; e como somos frutos de culturas compósitas (heterogêneas), este autor
discute ainda, em seu trabalho, a ideia da não existência de uma só raiz
definidora de identidades, uma vez que esta vai ao encontro de outras raízes
gerando uma crioulização* e, consequentemente, uma imprevisibilidade nas
formações identitárias. Dessa forma, segundo o autor, uma cultura não pode
ser degradada nem diminuída em detrimento de outra.
Assim, o artista Rivasplata, no plano de fundo, em sua parte inferior,
utiliza cores quentes: a vermelha, a laranja e a amarela, na tentativa de
representar a tensão gerada pela luta da resistência negra no seu escopo de
manter vivas suas tradições. Já na parte superior, há uma mescla de cores
formando uma fumaça, o que representa a transculturação, ou seja, da
mesma forma como tudo o que se mistura no ar, também se dissipa e se
espalha. Assim, não temos como apalpar e muito menos como categorizar
uma cultura diante dos processos imprevisíveis da crioulização.
No primeiro plano, a figura do homem/árvore está representada por
duas cores dominantes, a preta e a branca, num corpo que revela uma
mistura e um entrelaçamento cultural, gerando nesteum conflito de dupla
consciência ocasionado por uma crise identitária. Tal crise foi gerada pelo
deslocamento e nesse contexto, especificamente, trata-se da questão da
particularidade racial e do sentimento de pertença, os quais são redefinidos
pela dispersão. Segundo Gilroy:
*A crioulização exige que os elementos heterogêneos colocados em relação “se intervalorizem”, ou seja, que não
haja degradação ou diminuição do ser nesse contato e nessa mistura seja internamente, isto é, de dentro para fora,
seja externamente, de fora para dentro. (...). É a mestiçagem acrescida de uma mais valia que é a imprevisibilidade.
190
Série E-book | ABRALIC
uma necessidade de entendimento entre uma raiz e outra para que haja uma
manifestação cultural plena. Sabe-se que o céu que cobre o negro, o índio, o
europeu, pode até ser o mesmo, porém, no contexto histórico e social esses
povos tiveram trajetórias distintas. A obra em tela nos aponta um processo
de antropomorfização da natureza através da linguagem pictórica, ao
encenar uma árvore que se funde e se transforma no próprio homem.
Embora a deterioração da terra e da natureza ainda continuem, há
também uma forte esperança de se voltar a uma raiz viva novamente, pois
mesmo tendo o negro se curvado, nunca demonstrou estar aniquilado de
vez. Tal fato, pode ser visto na imagem pintada por Rivasplata, onde é
possível identificar nos galhos secos a simbologia de uma ausência de
ausência de vida, mas, ao mesmo tempo, casulos que constituem elementos
criadores e transformadores de vida, de onde simbolicamente, vemos que a
luta dos povos da floresta, especificamente o negro, está em movimento,
prestes a irromper.
Considerações finais
*Rastro/resíduo– pensamento que, contra todos os pensamentos de sistema, nos ensina o incerto, o ameaçado, mas
também a intuição poética na qual avançamos, doravante. Glissant (2005, p.57)
191
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
REFERÊNCIAS
RANZI, Cleusa Maria Damo. Raízes do Acre. Rio Branco: EDUFAC, 2008.
192
Série E-book | ABRALIC
*Graduada em Letras/Literatura pela Universidade Federal de Roraima. Professora do ensino básico em instituição
privada. Mestranda em Literatura na Universidade Federal de Roraima. Bolsista PIBID/CAPES de 2010 a 2012.
Bolsista voluntária PIBIC/CNPq entre 2011 e 2012.
193
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
Críticos literários como Gaston Bachelard e Yi-Fu Tuan, que têm seus
trabalhos voltados para a análise espacial nas narrativas, criam, conforme
querem direcionar suas críticas, meios concernentes ao resgate de conceitos
da geografia, sociologia e filosofia.
Conforme essa acepção, para dar cabo à pesquisa, selecionaremos e
elencaremos algumas passagens referentes ao espaço em que se desenrola a
narrativa, para que possamos verificar as várias possibilidades de se
trabalhar com essa categoria nas narrativas por nós selecionadas. Para tanto,
a princípio, seguiremos as definições e categorias propostas por Yi-Fu Tuan:
Espaço e lugar são termos familiares que indicam experiências comuns. O lugar é
segurança e o espaço é liberdade: estamos ligados ao primeiro e desejamos o outro. O
lugar pode ser desde a velha casa, o velho bairro, a velha cidade ou a pátria. Animais
não humanos também tem um sentido de território e lugar. Os espaços são
demarcados e defendidos contra invasores. Os lugares são centros aos quais
atribuímos valor e onde são satisfeitas as necessidades biológicas de comida, água,
descanso e procriação. (TUAN,1980, p. 2)
A topoanálise seria então o estudo psicológico sistemático dos locais de nossa vida
íntima. Nesse teatro do passado que é a memória, o cenário mantém os personagens
em seu papel dominante. Por vezes acreditamos conhecer-nos no tempo , ao passo
que se conhece apenas uma série fixações nos espaços da estabilidade do ser, de um
ser que não quer passar no tempo; que no próprio passado, quando sai em busca de
um tempo perdido, quer suspender o voo do tempo. Em seus mil alvéolos, o espaço
retém o tempo comprido. Essa é a função do espaço. (BACHELARD, 1983, p. 28)
Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito,
levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há
bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na
antiga rua de Matacavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia da outra, que
desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem as indicações que lhes fiz: é o
mesmo prédio assobradado, três janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas
alcovas e salas. (ASSIS, 2008, p.7)
197
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
Hatoum coloca a casa em lugar de destaque. É por meio dela que inicia
a obra e, no decorrer da trama ela passa a acompanhar a derrocada da
família. Para Zana, a matriarca da família libanesa, o lugar em que herdou
do pai e passou a maior parte de sua vida era vital para sua sobrevivência:
Zana teve de deixar tudo: o bairro portuário de Manaus, a rua em declive sombreada
por mangueiras centenárias, o lugar em que para ela era tão vital quanto a Biblos de
sua infância: a pequena cidade do Líbano que ela recordava em voz alta, vagando
pelos aposentos empoeirados até se perder no quintal, onde a copa da velha
seringueira sombreava as palmeiras e o pomar cultivados por mis de meio século.(...)
antes de abandonar a casa, Zana via o vulto do pai e do esposo nos pesadelos da
última noite, depois sentia a presença de ambos no quarto em que haviam dormido.
Durante o dia eu a ouvia repetir as palavras do pesadelo, "Eles andam por aqui, meu
pai e Halim vieram me visitar... eles estão nesta casa".(HATOUM, 2000,p.11)
Zana não se desapegava dele e o outro ficava aos cuidados de Domingas, a cunhantã
mirrada, meio escrava, meio ama, "louca para ser livre", como ela me disse certa vez,
cansada, derrotada, entregue ao feitio da família, não muito diferente das outras
empregadas da vizinhança, alfabetizadas, educadas pelas religiosas das missões, mas
todas vivendo nos fundos da casa, muito perto da cerca do muro, onde dormiam com
seus sonhos de liberdade. (HATOUM, 2000, p.67)
198
Série E-book | ABRALIC
"Louca para ser livre", segundo Nael, são "Palavras mortas". O narrador
que foi fruto da violência contra sua mãe e por conseguinte contra ele
mesmo, permitiu que conheçamos uma Manaus desnudada dos valores
europeus. Talvez o "inferno verde" da parte oprimida.
Em princípio Nael dormia com Domingas, mas ao crescer, Halim o
patriarca da família, que era afeiçoado pelo cunhatã, sugeriu que ele tivesse
um quarto só para ele, afinal, apesar da enorme seringueira, no quintal havia
espaço para mais um quartinho:
Eu mesmo ajudei a limpar e a pintar o quartinho. Desde então foi o meu abrigo, o
lugar que me pertence neste quintal. Agora só escutava o eco da canção que minha
mãe cantava nas noites de insônia. Às vezes, quando eu estava estudando, via o rosto
de Domingas no vão da janela, cabelo liso, de cobre, sobre os ombros morenos, os
olhos dirigidos para mim, como se me pedisse para dormir com ela, na mesma rede,
nós dois abraçados. (HATOUM, 2000,p. 80)
Ele tinha um lugar para chamar de seu. Não uma casa. Um quartinho,
que está no entre lugar, ladeado pela cultura indígena e pela libanesa. Nael é
o resultado da entremistura. Ele teve a "oportunidade" que sua mãe não
teve, a de estudar. Por isso mesmo o enxergamos como portador de uma
visão mais crítica. Sua mãe não tinha voz. Ele, por ser fruto dessa mistura
tinha direito até de sentar à mesa da casa da família de Halim, na maioria
das vezes quando eles não estavam lá: "Podia frequentar o interior da casa,
sentar no sofá cinzento e nas cadeiras de palha da sala. Era raro eu sentar à
mesa com os donos da casa, mas podia comer a comida deles, beber tudo,
eles não se importavam." (HATOUM, 2000, p.82). Contudo, apesar das
regalias, ele ainda era o filho da caboca "adotada" pela família: "Quando não
estava na escola, trabalhava em casa, ajudava na faxina, limpava o quintal,
ensacava as folhas secas e concertava a cerca dos fundos." (HATOUM, 2000,
p.82).
Nael, em determinado ponto da obra denuncia o crescimento
desordenado de Manaus, os bairros que não são vistos de fora. O ambiente
esterno a casa, a Manaus segundo sua ótica era comtemplada aos domingos,
quando zana o incumbia algum afazer:
199
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
Aos domingos, quando zana me pedia para comprar miúdos no porto da Catraia, eu
folgava um pouco, passeava ao léu pela cidade, atravessava as pontes metálicas,
perambulava nas áreas margeadas por igarapés, os bairros que se expandiam àquela
época, cercando o centro de Manaus. Via um outro mundo naqueles recatos, a cidade
que não vemos, ou não queremos ver. Um mundo escondido, ocultado, cheios de
seres que improvisavam tudo para sobreviver, alguns vegetando, feito a cachorrada
esquálida que rondava os pilares das palafitas. (HATOUM ,2000, p. 80)
200
Série E-book | ABRALIC
Por fim, Nael ainda nos apresenta mais uma transformação no cenário
manauara. A chegada de produtos importados, os quais colaboraram para o
crescimento econômico de Manaus. A casa da família transformou-se n'A
Casa Rochiram: "Na noite da inauguração da Casa Rouchiram, um carnaval
de quinquilharias importadas de Miami e do Panamá encheu as vitrines. Foi
uma festa de estrondo, e na rua uma fila de carros pretos despejava políticos
e militares de alta patente." (Hatoum, 2000, p.257).
Assim, Nael nos guiou nessa breve análise. Terminou só (como Bento
Santiago), no quartinho dos fundos, não da casa, esta já não existia mais, mas
da Casa Rochiram: No projeto da reforma, o arquiteto deixou uma passagem
lateral, um corredorzinho que conduz aos fundos da casa. A área que me
coube, pequena, colada ao cortiço, é este quadrado no quintal." (HATOUM,
2000, p.256), provavelmente, Capitu, com seu olhar oblíquo e dissimulado,
adoraria ter visto e/ou participado da trama de Hatoum. Ela provavelmente
sorriria com os olhos. – Mas ela não estava lá?
REFERÊNCIAS
201
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
SUMMARY: The exploitation of the labor force has always been a theme in
the literature on the Amazon. Men and women constituted the strength of
the place and shaped an identity that still remains in the local imaginary.
Among these workers we highlight the seringueiros and the naval
carpenters who participated actively in the process of historical and social
construction of the region. Authors such as Brito (2016), Rocha Silva (2016),
Alves (2010) and others provided us with elements to reflect on the
subjection and at the same time permanence of the Amazonian man. The
objective of this article is to discuss the exploration of the rubber tappers in
some passages of Amazonian literature, in contrast to other workers, in this
case, the naval carpenters by the riverside of Manaus. Thinking about local
Universidade Federal do Amazonas-UFAM
**Universidade Federal do Amazonas-UFAM
202
Série E-book | ABRALIC
development is, above all, an effort to find mechanisms that minimize the
hard reality of Amazonian labor hidden by local and national elites.
KEY WORDS: Literature, Work in the Amazon; Tappers, Shipbuilding.
Introdução:
A exploração do trabalho na Amazônia sempre foi uma questão
recorrente na literatura local, principalmente pela constituição de sua
história e pelos desdobramentos sociais pelo qual o país atravessou. As
guerras mundiais impulsionaram um grande fluxo migratório de
trabalhadores nordestinos que foram tratados sem direito e como escravos
nos rincões amazônicos, no entanto, esse abuso não ficou restrito apenas na
literatura, mas se expandiu sobre outras categorias de trabalhadores
amazônicos, como os carpinteiros navais.
Partindo dessa afirmação, este artigo tem como objetivo discutir a
exploração da força de trabalho dos seringueiros na Amazônia por meio da
literatura, em contraste com outros trabalhadores, nesse caso, os carpinteiros
navais à beira-rio de Manaus. Apesar de pertencerem épocas diferentes -
seringueiros, a partir de 1827 até 1960, de acordo com Benchimol (2009) e
carpinteiros navais a partir do século XVII e XVIII, de acordo com Rocha
Silva (2016). A segunda categoria de trabalhadores atualmente ainda vive de
suas práticas de trabalho à beira-rio de Manaus, sendo explorado em vários
aspectos pelo dono dos estaleiros navais tradicionais.
Justifica-se a relevância do artigo por proporcionar uma reflexão atual
os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas de
escravo, muito usada pela elite brasileira e explorada na literatura
amazônica e que se constituiu numa forma de permanência benefícios das
elites locais.
A pesquisa será de cunho bibliográfico. Por esse caminho metodológico
busca-se discutir os trabalhos desenvolvidos não só pelos seringueiros no
interior da floresta numa época em que a lei era personificada pelo patrão,
mas também dos carpinteiros navais. São trabalhadores silenciados pela
história, permanecem invisíveis e sem voz. São duas faces de uma mesma
moeda que ainda fazem da Amazônia um lugar pouco visível pela lei e pelas
autoridades locais.
203
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
Autores como Brito (2016), Rocha Silva (2016), Alves (2010) e outros
nos forneceram elementos para refletir sobre a sujeição e ao mesmo tempo
permanência do homem amazônico.
O seringueiro, retirante nordestino que fugia da seca e da miséria, era uma espécie de
assalariado de um sistema absurdo. Era aparentemente livre, mas a estrutura
204
Série E-book | ABRALIC
Bastião: - Na hora de contratar ninguém me falou que era desse jeito, Seu Coronel.
Tá certo que eu não preguntei antes, mas isso é caso até de recorrer ao juiz.
- Coronel Firmino: - Juiz? Mas que juiz? Onde é que cê pensa que tá? Aqui no meu
seringal mando eu! Aqui eu sou o juiz. Juiz, delegado, imperador, papa, rei e
ninguém se mete a besta, não! E na lei daqui só tem um artigo: é o 44 (mostrando a
espingarda). É bala! (2006, DVD 1).
205
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
206
Série E-book | ABRALIC
Rio
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Mapa 1: Extensão da beira-rio da cidade de Manaus. Imagem cartográfica.
Fonte: Laboratório de Cartografia/Departamento de Geografia/UFAM/2014.
209
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
*Observando a legislação nacional, encontra-se a definição de conhecimento tradicional no Art. 3º do Decreto 118
de 2002, como sendo: [...] todos os elementos intangíveis associados à utilização comercial ou industrial das
variedades locais e restante material autóctone desenvolvido pelas populações locais, em coletividade ou
individualmente, de maneira não sistemática e que se insiram nas tradições culturais e espirituais dessas
populações, compreendendo, mas não se limitando a conhecimentos relativos a métodos, processos, produtos e
denominações com aplicação na agricultura, alimentação e atividades industriais em geral, incluindo o artesanato,
o comércio e os serviços, informalmente associados à utilização e preservação das variedades locais e restantes
materiais autóctones espontâneo abrangidos pelo disposto no presente diploma (BRASIL, 2011, p. 37).
210
Série E-book | ABRALIC
Considerações Finais
ações proporciona o retorno dos barcos às águas pelo seu conserto, este por
sua vez permite a manutenção e ligação entre comunidades ribeiras e as
cidades na Amazônia. Além de uma referência simbólica identitária, por
meio de sua arte e oficio, ousou na criatividade inovando e modificando
meios de se locomover e assim garantir seu sustento. Entretanto, notamos a
precarização das condições do trabalho desse segmento, com salários baixos,
contrato temporário mediante acordo verbal que acontece entre os donos
dos estaleiros tradicionais. A concentração desses trabalhadores se deu e
permaneceu na beira dos rios, fruto da historicidade da região, a ligação
entre o rio e a vida faz parte do cotidiano desse trabalhador amazônico,
consequentemente, sua permanência foi consolidando pelo trabalho
desenvolvido ao longo das margens.
Embora apresente diversas particularidades, como as que foram
descritas acima, o trabalho artesanal dos trabalhadores navais como
carpinteiro naval também está ligado a uma raiz comum, universal, que é a
grande categoria chamada trabalho. São submetidos às regras do mercado,
uma vez que esse trabalho também se decompõe em um produto, que se
transforma, inevitavelmente, em mercadoria, cumprindo sua finalidade de
sustentar o mercado e o próprio trabalhador.
No entanto, não devemos esquecer que os seringueiros e carpinteiros
navais são seres que foram esquecidos pela história e expõe uma situação
ideológica e manipulatória em que o sujeito é a parte mais frágil dessa
relação de trabalho no qual o capitalismo suplantou todas as outras formas
de organização social e que hoje busca-se compreender seu papel na história
da região.
As discussões sobre o trabalho na Amazônia é apenas uma ponta nesse
iceberg no qual se encontra não só essas categorias de trabalhadores, mas
muitos outros que de forma anônima constituíram e constituem a força de
um povo, que apesar das diversidades ainda permanecem como sinônimo
de resistência e resiliência.
É importante ressaltar que os seringueiros foram apagados dos relatos
históricos oficiais, daquela história que é retratada quando se fala na
primeira guerra mundial, pois como sabemos foram esses trabalhadores que
213
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
REFERÊNCIAS:
214
Série E-book | ABRALIC
216
Série E-book | ABRALIC
ABSTRACT: Between 1972 and 1985 were published the books that
compose the Amazonian Tetralogy, by Benedicto Monteiro, which includes -
besides the four novels - a book of short stories and a novel. This complex
structure, this game of assemble, however, was not conceived of this form
from the beginning by its author. In this text, we try to point out how this
project underwent some transformations in three different times and how
the books of the then Amazonian Trilogy are organized in their
counterpoints.
KEYWORDS: Amazonian literature, Benedicto Monteiro, literary creation.
Doutorando no programa de pós-graduação Departamento de História e Teoria Literária – IEL-UNICAMP.
Professor na UFPA no Campus Universitário de Bragança. Parte desta pesquisa foi desenvolvida na Universidade
Livre de Berlin nos semestres de verão de 2015 e inverno de 2015-6. Email para contato:
<professor@abiliopacheco.com.br>. Escreve também em: [www.abiliopacheco.com.br]. Em citações, favor usar:
Pacheco de Souza, Abilio.
217
Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
entrevistas dadas pelo autor é possível notar que, ao longo do tempo, seu
projeto estético passou por algumas mudanças.
A motivação literária principal de Benedicto Monteiro foi a partir da
leitura de Chove nos Campos de Cachoeira, de Dalcídio Jurandir. Em
Transtempo, autobiografia de Benedicto Monteiro, lemos o quanto essa obra
lhe causou impacto. Ele afirma ter lido e relido o romance “como se fosse
meu primeiro amor e o meu primeiro orgasmo” (1993, p. 16). Na época da
publicação, Bené (como era chamado carinhosamente) era aluno de um
internato e para ler o romance de Dalcício precisou de uma licença dos
padres.
Edilson Pantoja (2006), em sua dissertação de mestrado sobre a obra do
escritor marajoara, observa que Monteiro considera
Pantoja chama atenção para o fato dessa declaração ser feita por um
homem maduro, na casa dos 70, num texto em que se propõe reencontrar a
“própria trajetória”.
Monteiro, várias vezes, declarou enfaticamente que sua influência para
a ilusão de oralidade apontada na tese de Meyer-Koeren não seguia a
influência de Guimarães Rosa, mas sim a influência de Dalcídio, que já
“escrevia utilizando a oralidade em 1933, quando lançou o romance Chove
nos Campos de Cachoeira”, muito embora o fizesse escrevendo em terceira
pessoa, e não em primeira pessoa como no romance rosiano ou nos
romances de Benedicto Monteiro. Assim, como Achugar (1992) afirma sobre
a literatura latino-americana da década de 1970, os escritores latino-
americanos deixam de ter ou seguir uma referência de autores europeus e
passam a ter entre eles mesmos suas referências literárias. No caso da
Literatura Amazônica, é importante notar como os autores passam a ter na
própria Amazônia seus referenciais estéticos. Dalcídio exerce uma grande
influência na produção de Benedicto Monteiro. O escritor marajoara
escreveu um ciclo de romances – chamado pela crítica de Ciclo do Extremo
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minha idéia inicial era escrever um romance que, pela própria linguagem, formasse a
personagem e refletisse o contexto da realidade amazônica totalmente isolada do
contexto histórico, político e social do resto da humanidade.
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naquela época de censura, repressão e violência, podia representar uma fuga dos
problemas políticos e sociais que enfrentávamos e da violência particularmente
desfechada contra a cultura e a civilização fluvial do homem da Amazônia”.
(MONTEIRO, 1995, p. 222)
Contracanto é uma melodia que é construída para combinar com outra melodia que
normalmente é a principal. Pode ser com duas vozes, uma cantando a melodia e outra
fazendo os contracantos. Pode ser uma voz com instrumentos fazendo o contracanto.
Ou mesmo dois instrumentos um fazendo a melodia principal e outro fazendo o
contracanto. – O contracanto sempre vem para complementar o arranjo da música.
[https://www.youtube.com/watch?v=380EXEQ6G10] – Canal Cifraclub no youtube.
Contracanto é a conversa entre uma, duas ou mais vozes com a melodia principal.
São vozes que costuram ou enfeitam ou destacam ou enfatizam partes da melodia
principal. Dois contracantos muitos utilizados na MPB são o CC-passivo e o CC-
ativo.[https://www.youtube.com/watch?v=fNtradV-DW8]
*Conforme já apresentamos em outro trabalho em que apontamos esta característica no romance A terceira Margem.
Comunicação oral e depois texto publicado nos ANAIS da ABRALIC de 2014.
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*Imagem que fascinou Foucault e que ele cita em sua Microfísica do Poder - organização, introdução e revisão técnica
de Renato Machado. 26 ed. São Paulo: Graal, 2013, p. 263.
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REFERÊNCIAS
DEMAIS REFERÊNCIAS
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Introdução
Com pouco mais de sete anos, deram-na seus pais ao padrinho, que a pedira
prometendo seria tratada como filha. Não possuira nunca um desses brincos que
fazem a felicidade das crianças, nem correra jamais atrás das borboletas loucas com a
grande alegria da infância de fazer mal a um inseto. Era uma coisa, menos que uma
coisa daquela mulher má. (VERÍSSIMO, 2011, p. 87)
O único que consegue ter um olhar de afeição para com a menina é José
Tapuio, que nutria por ela afetos de pai e sempre lhe trazia frutas como
mimo, fazia-lhe os serviços domésticos e lhe consolava quando ela chorava.
Benedita, entretanto, por não estar acostumada com tal ternura, mantinha-se
desconfiada, mas finalmente acabou aceitando a amizade do indígena.
Dessa relação se desenvolve o conflito da trama: uma noite, Bertrana, que
acordou a menina aos gritos, exige que ela faça um chá. Benedita, por sua
vez, segue para o quintal aos prantos e lá é surpreendida por José Tapuio,
que a leva dali para não mais voltar. À essa altura, a narração sofre um corte
e é retomada a partir do julgamento do tapuio que responde à acusação de
que teria “violentado, deflorado e depois matado a pequena Benedita”
(VERÍSSIMO, p.112), fatos que não são desmentidos por ele. Sendo, por fim,
condenado e preso.
Todavia, numa espécie de apêndice dessa terceira parte do conto, o
narrador descreve que, dias depois do julgamento, a menina Benedita
chegava de Trombetas, acompanhada de seus pais que finalmente desvelam
a verdade dos fatos: depois da fuga, José Tapuio havia devolvido Benedita
para os pais e lhes revelou todo o sofrimento da menina.
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Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia
Desde os cinco anos começam a lutar pela vida, vão para os sacados pescar. Todos
nus, cheiram a peixe [...] carregam na cabeça os paneiros, com as tainhas e os pacus.
As perebas arrebentam nos braços; crescem; e os cascões, com o brilho da água,
parecem escamas. (Bastos, 1958, p.38-39).
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Eram muitas crianças que comiam terra. O Filho do Langonha comia terra branca, o
filho do Calisto comia terra preta, o filho do José Teresa comia tabatinga, o filho do
Lobinho do mercado comia terra vermelha, o filho da Maria Preta comia lama”
(Bastos, 1958, p.61)
O filho do lobinho se apaixonou, se abaixou, jogou a sua parte, porém reparou na cor
vermelha da terra. Pegou o segundo punhado, quis jogar, mas recolheu a mão.
Depois meteu a terra no bolso e saiu. Escondeu-se atrás da capelinha e comeu a terra
da sepultura do Sinfrônio.
Comeu e vomitou. [...]
O bando perdeu o Sinfrônio e o Marçal. (Bastos, 1958, p.66)
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amiga que deixou em Cachoeira do Arari, teria igual sorte, “Para Andreza a
cidade seria isso também?”( Jurandir, 2004, p.84), mas ao ver a menina-
encomenda humilhada e sendo arrastada pela mão do canoeiro, conclui que
a amiga teria uma atitude diferente “ — Fosse com Andreza?... Andreza lhe
arrancava o chapéu” (Jurandir, 2004, p.84).
Todavia, se o leitor não tem mais notícias da menina-encomenda e nem
mesmo Andreza virá para a cidade, a principal figura responsável por nos
dar ideia da sina de meninas interioranas no ambiente urbano de Belém é
Libânia. Sobre a afilhada de Emilinha, o narrador informa que foi “trazida
muito menina ainda, do sítio, pelo pai, para as mãos das Alcântaras. Entrava
da rua com os braços cruzados, carregando acha de lenhas e os embrulhos,
sobre os rasgões da blusa velha” (Jurandir, 2004, 51-52)
Assim, Libânia incorpora a menina que vira a serva da casa, lavando,
passando e cozendo as roupas, catando as madrinhas, preparando seus
banhos, carregando sacos de açaí, dentre outros afazeres, mas com uma
aparente alegria, afinal era afilhada dos Alcântara. Nesse ponto, notamos a
construção de relações pseudo familiares que ocultam, na realidade, uma
das formas de escravização presentes na história da sociedade brasileira,
como bem observou Pedro Nava:
o sujeito não podia mais ter escravo, mas, pra não pagar criado, tomava crias,
pretinhas órfãs, e ia enchendo a casa. Essas pretinhas dormiam pelos cantos, como
podiam, em esteiras, e trabalhavam num regime de escravidão, porque não
ganhavam um tostão. Ganhavam comida e roupa velha" (Nava apud Arêas, 1997,
p.130)
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E foi um espanto, como se nunca tivesse reparado: Mas, e o sapato? Libânia não tinha
nem um sapato?
Isso para Alfredo toldou um pouco o aniversário. E o mais triste era que Libânia
fingia não se dar conta, fingia resignar-se a andar descalça num degrau mais baixo
ainda que aquele em que se bebia, cantava e dançava no 72 ao som do violão e
cavaquinho (Jurandir,2004, p.226)
*Antonio Lemos foi uma figura importante na história da política paraense. Além de Coronel das Forças Armadas
Nacional, foi senador, presidente do Partido Republicano Paraense (PRP) e Intendente de Belém (1897-1911). É
considerado o principal responsável pelo desenvolvimento urbano da capital paraense
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Ah! Atravessaria o quarto, de meio a meio, com uma boa rede. Estava de costas muito
maltratadas de chão; também de Deus era filha, tinha nascido de uma mãe, tinha
ossos que doíam. Ah, ter, ter uma rede, e era o bastante.
Fazia de conta que se embalava na rede imaginária atravessada no quarto, se
embalava. (Jurandir: 2004: p. 315)
Mas fazia parte de sua educação carregar o saco de açaí, levar as pules no bicho,
apanhar as achas de lenha, ajudar Libânia trazer o saco de farinha, as rapaduras
lançadas pelo maquinista na passagem do trem, raptar um menino? Era a obrigação
de servir a casa alheia por não ter senão trinta mil réis de mesada? (Jurandir, 2004,
p.210)
Considerações
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REFERÊNCIAS
CORAZZA, S. M. Infância & educação: era uma vez... quer que conte outra
vez? Petrópolis: Vozes, 2002.
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VERÍSSIMO, José. Cenas da Vida Amazônica. São Paulo: Martins Fontes, 2011
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