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Alvará de Funcionamento da CAIXA Cultural RJ: Este catálogo tem distribuição gratuita e não pode ser comercializado.

n° 041667, de 31/03/2009, sem vencimento.


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17 de Julho
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2016
A CAIXA é uma empresa pública brasileira que prima pelo
respeito à diversidade, e mantém comitês internos atuantes para
promover entre os seus empregados campanhas, programas e
ações voltados para disseminar ideias, conhecimentos e atitudes
de respeito e tolerância à diversidade de gênero, raça, orientação
sexual e todas as demais diferenças que caracterizam a sociedade.

A CAIXA também é uma das principais patrocinadoras da cultura


brasileira, e destina, anualmente, mais de R$ 80 milhões de seu
orçamento para patrocínio a projetos nas suas unidades da CAIXA
Cultural, além de outros espaços, com ênfase para exposições, peças
de teatro, espetáculos de dança, shows, festivais de teatro e dança e
artesanato brasileiro. Os projetos patrocinados são selecionados via
edital público, uma opção da CAIXA para tornar mais democrática
e acessível a participação de produtores e artistas de todo o país.

A mostra O FAROESTE VERMELHO pretende apresentar ao público


uma cinematografia rara, desconhecida, mas de imensa riqueza cultural.
São filmes produzidos em diferentes países dentro da Cortina de Ferro,
filmes populares que ousaram flertar com os códigos e estéticas de
gênero para transmitirem sua força. A mostra O FAROESTE VERMELHO
é uma iniciativa pioneira e dá oportunidade para que, pela primeira
vez, o público brasileiro tenha acesso a este conjunto de obras.

Ao patrocinar mais esta mostra para o público carioca, a CAIXA


reafirma sua política cultural de estimular a discussão e a disseminação
de ideias, promover a pluralidade de pensamento, mantendo viva sua
vocação de democratizar o acesso à produção artística contemporânea.

CAIXA ECONÔMICA FEDERAL


I N V E N TA N D O O aMANHÃ 0 9
por Pedro Henrique Ferreira e Thiago Brito

FA R O E S T E S VERMELHOS 1 3
por Sergey Lavrentiev

D U A S O U T R ÊS PA L A V R A S
2 5
SOBRE O W E S T ERN
por Hernani Heffner

E N T R E V I S T A 3 5
A li K hamraev

O Indianerfilm da DEFA comO


4 1
artefato de resistência
por Evan Torner

I ND I ANERF I LME :
E S P E T Á C U L O, 5 5
R E A L I S M O, A B S T R A Ç Ã O
por Luís Alberto Rocha Melo

CSIKÓS, PUSZTA, GOULASH: OS


IMAGINÁRIOS DA FRONTEIRA
6 3
HÚNGARA EM O VENTO ASSOBIA
SOB OS PÉS E A FUGA DE BRADY
por Sonja Simonyi

A C rian ç a 7 7
por Vsevolod Ivanov

F I L M O G R A F I A 8 7

C R É D I T O S 9 4
0 9

INVENTANDO O aMANHa
por Pedro Henrique Ferreira e Thiago Brito

Há uma memória universal do que é um western: cowboys vagando pelos


desertos do Velho Oeste, enfrentando um fora da lei ou tribos indígenas,
em batalhas entre o progresso e o passado num território anteriormente
hostil. Da névoa de nossas lembranças, surgem as diligências, os cavalos,
os fortes, as Winchesters, os canyons, o deserto e os rios; e também
ícones como Wyatt Earp, Doc Holliday e Jesse James. Um gênero que
nasce histórico, que faz remissão ao processo de constituição da nação
norte-americana. É a elaboração de um passado, o processo crepuscular
de um velho mundo em atrito com um novo mundo democrático.
Quando nos deparamos com este punhado de faroestes vermelhos,
percebemos que estamos diante de uma iconografia tão absolutamente
diferente que vemos esfacelar-se aquela antiga morada onde guardávamos
intactas as ideias que fazíamos do gênero. Resta-nos apenas a indagação:
são estes, afinal, westerns? Obras que tratam de soldados bolcheviques
enfrentando a restauração do exército branco, no delimitado período
da Guerra Civil Russa, entre os anos de 1917 e 1920, nas cordilheiras
da Ásia Central ou no interior desértico da Cortina de Ferro. Heróis
revolucionários com baionetas. Vilões imperialistas ou monarquistas.
Tiroteios em ambientes áridos, desérticos. Por que não se trataria de
filmes de guerra? Ou de aventura, como foram chamados por muito
tempo? De certo, o espectador mais desavisado irá encaixá-los em uma
dessas duas categorias. Western é que estes filmes não são!

AS NOVAS AVENTURAS DOS VINGADORES INVISÍVEIS (1968)


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Mas existem dados históricos incontornáveis, uma genealogia que derrota evidencia o fato: o bolchevique vocifera ordens a seu ex-batalhão, mas elas
o que a mera percepção da aparência das coisas intenciona rotular. O faroeste são ignoradas. No afã de seu próprio idealismo, ele não tem pudor em atirar
vermelho, assim como o faroeste clássico, é uma construção, um processo no soldado que, pouco tempo antes, o seguia. O que no faroeste vermelho
social. Como nos recorda o historiador Sergey Lavrentiev em seu seminal “O faz um mundo sobrepor-se ao outro é a ação, esse misto de força e tragédia
faroeste vermelho”, o gênero foi pensado como um projeto governamental, a que restabelece o homem como grande ator de seu destino.
partir da influência dos raros westerns norte-americanos cuja exibição pública Nesse sentido, o faroeste vermelho não é tão somente o gênero soviético
era permitida na União, nas projeções secretas mantidas pelo cinéfilo Stalin e por excelência, talvez seja também o último canto do cisne do stalinismo. Mas
por outros líderes. O faroeste fez parte de um empreendimento propagandís- há ainda mais do que isso. O herói do faroeste é o que é porque, de algum
tico para ressaltar certa ideologia e enfrentar outra.Tem um início, um meio modo, transborda paixão, porque, a partir dos escombros de seu velho mundo,
e um fim. Nessa desconhecida história, principalmente aqui no Ocidente, não reúne a força para um último ato heroico. O John Wayne de O homem que
há o que simples aparências – imagens, símbolos, cenários e temas – possam matou o facínora (John Ford, 1962) ia contra as regras da sua própria forma
negar sobre a fonte da qual esse singular gênero soviético bebeu. de viver.Atirava em Liberty Valance pelas costas simplesmente porque amava,
Outra pergunta se impõe: como os soviéticos entenderam o faroeste? porque era necessário. Para a maioria dos heróis do faroeste, não há compli-
Assistiram a Sete homens e um destino (John Sturges,1962), um dos maiores cações maiores, não há visões mais amplas do contexto e daquilo que está
sucessos cinematográficos nos territórios socialistas daquele momento, em jogo. Há uma paixão, uma pistola, um obstáculo e um enorme senso de
exibido em salas de cinema, mas também em estádios de futebol e casas urgência. São personalidades do Velho Oeste, intelectualmente rudimentares
de show. O que depreenderam e extraíram dele para ilustrar sua própria e sentimentalmente complexas.
história, já que eles não podiam mais usar os célebres mitos yankees, os Os bolcheviques desses filmes são muito convencidos da ideologia pela
cenários, as situações e os objetos, tampouco a forma estética tradicional qual batalham, são apaixonados por ela. Como afirma Khamraev na entrevista
da narrativa clássica hollywoodiana (essa já havia sido abolida havia décadas, publicada neste catálogo, o que está em jogo é uma paixão genuína, quase
desde o pensamento artístico construtivista)? Por exemplo, o que sobrou obcecada, e uma crença infindável na invenção desse mundo do amanhã.
a Ali Khamraev quando ele realizou o impressionante A sétima bala (1972), Não à toa, houve o retorno a 1917: esse era o momento no qual a paixão se
cujo próprio título faz menção ao legado do western? justificava plenamente, sem meias palavras, sem um desenrolar histórico que
Não há resposta pronta. Em última instância, o que há é a ação. Quando a pudesse contradizer. A História é para o protótipo do faroeste vermelho
o soldado vermelho do longa-metragem de Ali Khamraev retorna para o o que ela era para o Roberto Rossellini tardio. Um momento ideal, no qual
forte de seu batalhão e descobre que praticamente todos os seus soldados a utopia não é uma quimera, mas uma realidade possível, pela qual vale a
o traíram e juntaram-se ao regimento do exército branco, ele não questio- pena batalhar, matar e morrer (não à toa, estes filmes são, em sua maioria,
na a si mesmo, seus ideais, nem suas estratégias ou a lógica maior daquilo mais realistas do que românticos, mais trágicos, mesmo na vitória, do que
que punha sua própria revolução em movimento. Os homens à sua volta idealizados). Do mesmo modo que o faroeste norte-americano retornava no
o abandonam por não se sentirem parte daquilo. Mas ele persiste. Persiste tempo para encontrar o momento em que sua democracia era incipiente, os
não porque deseja seduzir o povo de forma cerebral, fazendo-o aderir às faroestes vermelhos vão ao encontro do momento inaugural da construção
suas crenças, mas porque está disposto a defendê-las até o final, ainda que de seu presente.
isso envolva matar ou morrer. É pura ação porque ele não se questiona: Homens e mulheres apaixonados por um novo mundo a surgir, enfrentando,
prepara a sua sétima bala para colocá-la na testa do adversário do exército com máxima urgência, o que precisa ser enfrentado. O faroeste vermelho
branco, que o enganou e se tornou mestre de todos os soldados. Uma cena é isso e nada mais.
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F A R O E S T E S
V E R M E L H O S
por Sergey Lavrentiev

I ntrodu ç ã o

Existe mesmo um western russo? Como não houve faroestes pro-


duzidos no país antes da revolução bolchevique, tampouco depois do
colapso da União Soviética, em 1991, não podemos, na realidade, falar
em um gênero de westerns russos. No entanto, um conjunto de filmes
produzidos na URSS no período entre a década de 1920 e a de 1980
pode ser considerado como pertencente ao gênero faroeste vermelho.
Na União Soviética, a palavra russo não era utilizada, embora não fosse
proibida. Referir-se à cultura russa era falar de uma cultura anterior à
revolução, enquanto falar em soviético era referir-se a estonianos, tadji-
ques, georgianos e moldavos – não somente a russos. Então, fazia sentido
reunir os westerns “russos” sob o rótulo de faroestes vermelhos.
Na União Soviética, o faroeste norte-americano era acusado de ser um
gênero reacionário, que elogiava os colonizadores brancos que haviam
invadido territórios e assassinado índios inocentes. Esses filmes foram
distribuídos por lá apenas durante os anos 1920, embora alguns ainda
tenham passado nas telas soviéticas após a Segunda Guerra Mundial,
quando parte do arquivo germânico foi conduzido de Berlim a Moscou,
em 1945. Entre a década de 1950 e a de 1980 – nos últimos 40 anos do
comunismo – somente cinco títulos foram distribuídos!
No entanto, a paixão que o gênero suscitava no público era enorme.
Por exemplo, o lançamento de Sete homens e um destino (John Sturges),
em 1962, foi uma febre nacional. O longa-metragem foi exibido não
somente em salas de cinema, mas também em estádios esportivos.

O GUARDA-COSTAS (1979)
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Os chefes de Estado decidiram, então, permitir que se produzissem faroestes Hollywood como realizar filmes. Nada de atores – apenas atletas. Nada de
vermelhos – westerns ideologicamente corretos, com o conteúdo mais adequado. drama – apenas ação. Nada de cenários montados – filmagens ao ar livre. O
Houve dezenas desses produzidos na União Soviética; mas, como a palavra que western é justamente um gênero de atletas, ação e cenas ao ar livre. Curiosa-
define o gênero carregava, por si só, conotações muito negativas, ninguém os mente, os episódios de Jeddie em As aventuras extraordinárias de Mr.West na
chamava de faroestes oficialmente. Eles eram chamados de “aventuras heroicas”. terra dos bolcheviques são os mais interessantes. O figurino do personagem
Alguns desses filmes fizeram enorme sucesso de público – como Os diabinhos está completamente deslocado enquanto ele flana pelas ruas da Moscou
vermelhos (Ivan Perestiani, 1923) e seus remakes e sequels; Os Vingadores Invisíveis bolchevique do princípio dos anos 1920. Sendo um pioneiro da teoria da
(Edmond Keosayan, 1967); e As novas aventuras dos Vingadores Invisíveis (Edmond montagem no cinema soviético, Kuleshov utilizou o uniforme clássico de
Keosayan, 1968). Às vezes, os filmes tinham ambições artísticas elevadas, como Os cowboy e o físico atlético de Boris Barnet como elementos de contraste em
treze (Mikhail Romm, 1936) e Ninguém queria morrer (Vitautas Zalakiavichus, 1966). relação à paisagem urbana. Esse era um exemplo perfeito do que o diretor
Os faroestes vermelhos soviéticos têm a sua própria história, com um soviético entendia que era a montagem – o ato de retirar alguém do Velho
começo brilhante, no início dos anos 20, e um final trágico, no fim dos anos Oeste e colocá-lo na cidade moderna.
80. Essa história pode ser lida como um espelho da história da URSS ao longo Em 1924, um diretor da Geórgia, Ivan Perestiani, realizou Os diabinhos ver-
do século XX. E de sua censura. melhos, uma adaptação da novela escrita por um ex-combatente da Guerra
Civil Russa (1917-1923), conflito entre o exército vermelho, aliado a outras
A nos vinte forças revolucionárias, e o exército branco, reunido contra o poderio bol-
A década de 1920 foi provavelmente a mais interessante da história do chevique. O livro e o filme narravam a história do ponto de vista do exército
cinema soviético, incluindo aí o brilhante início dos faroestes vermelhos. vermelho. Por isso, ambos se tornaram populares entre os jovens leitores e
Em 1924, o pioneiro Lev Kuleshov fez a primeira obra soviética conhecida cinéfilos. O longa-metragem era como que uma cópia direta dos faroestes
mundo afora, As aventuras extraordinárias de Mr.West na terra dos bolcheviques. norte-americanos que estavam sendo distribuídos naquele momento no
A trama de um empresário norte-americano pego e assaltado por um grupo bloco comunista. Esteticamente, não era um filme muito interessante, mas, do
de ladrões em Moscou é um clássico do cinema soviético. Todos os atores ponto de vista comercial, Os diabinhos vermelhos tornou-se um dos primeiros
eram alunos de Kuleshov, futuras lendas e cérebros da arte – entre eles, Bo- hits do cinema soviético. Perestiani dirigiu sequels, mas nenhuma delas foi tão
ris Barnet, que fez o papel do cowboy Jeddie, guarda-costas do Sr. West que bem quanto o primeiro filme, que inclusive chegou a ser relançado três vezes
vai a Moscou salvar o seu patrão. Os momentos em que Barnet participa até o final da década de 1950. Os diabinhos vermelhos é uma trama típica de
de jogos de cowboy marcaram o início dos faroestes vermelhos, embora As western sobre um irmão e uma irmã que veem seu pai sendo assassinado
aventuras extraordinárias de Mr. West... não chegue a ser um faroeste em si por bandidos e, logo, decidem vingá-lo. Eles encontram novos amigos, e suas
mesmo. Havia breves episódios que nos recordavam o gênero. Não obstante, aventuras têm início.
é fácil perceber como os faroestes norte-americanos serviram de inspiração Os diabinhos vermelhos tornou-se a pedra fundamental da história do fa-
a Kuleshov nesse primeiro clássico do cinema soviético. roeste vermelho. E não só por conta do sucesso de público. O filme demar-
Por que Mr. West? Em 1924, não existiam relações diplomáticas entre cou principalmente o tema, o objeto e o lugar da ação da maioria dos red
os EUA e a URSS. Havia relações diplomáticas entre a União Soviética e a westerns posteriores: a Guerra Civil entre 1918 e 1921. Enquanto nos filmes
Alemanha. Então por que não “Herr Schmidt”? A resposta é simples: porque norte-americanos pessoas migravam para lugares inexplorados, batalhando e
o companheiro Kuleshov adorava o cinema norte-americano. Ensinando no constituindo a nova nação, aqui as pessoas destroem a velha ordem, lutando
Instituto de Cinema, ele costumava dizer a seus alunos que aprendessem com e inventando a nova nação soviética.
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A nos trinta do exército vermelho, e os índios, outrora os vilões, quase não eram vistos
até o final. Stalin adorou o longa-metragem e ordenou que Romm fosse o
Nos anos 20, centenas de faroestes norte-americanos foram distribuídos por
diretor da versão oficial da revolução bolchevique, Lenin em outubro, que teve
empresas soviéticas.As pessoas tinham permissão para assistir a esses westerns.
estreia no Teatro Bolshoi, no vigésimo aniversário da revolução, no dia 8 de
Naquela época, Os diabinhos vermelhos era um caso único, mas, mesmo assim,
novembro de 1937. Os treze estreou no início de 1937 e teve distribuição
deu o pontapé inicial do gênero, apesar de não ter chegado a estabelecer as
soviética até a queda do sistema, em 1989.
suas características principais. À medida que Stalin se tornava o “grande líder”
da União Soviética, a abertura do sistema de distribuição chegava ao fim. A A nos quarenta
atividade foi estatizada e passou por medidas protecionistas, como tudo na
URSS, incluindo o próprio povo. Filmes estrangeiros sumiram de cena. Mas, O primeiro filme realizado durante a Segunda Guerra Mundial foi Secretário
para os realizadores, principalmente nos quartéis, havia projeções secretas dos do partido, de Ivan Pyriev. Não foi apenas o primeiro western em que um bravo
novos filmes realizados no Ocidente capitalista. soldado kolkhoz lutava contra os nazistas, foi também um filme quase antista-
linista. O partido e o próprio Stalin eram mencionados brevemente. Mas as
O único western do sangrento período de Stalin é Os treze, do jovem Mikhail
pessoas não lutavam por eles, lutavam por sua própria pátria. Era como um
Romm. O filme narra a história de treze soldados da guarda vermelha que
faroeste norte-americano, com pouquíssimas diferenças. É por isso que, após
lutam no deserto, durante a Guerra Civil Russa, contra o exército branco an-
uma estreia de sucesso em 1942, as autoridades queriam que a plateia esque-
tibolchevique, que pretende invadir a União Soviética pelas fronteiras do Sul.
cesse o filme. Ele foi criticado por seu roteiro, por suas atuações e por não
Esteticamente, é uma interessantíssima química entre o grande cinema silencioso
glorificar o partido e sua grande participação na Guerra. Em 1963, Pyriev fez
dos anos 20 e os primeiros experimentos sonoros. Ele exibe incríveis trabalhos
uma nova versão do filme, cortando os episódios curtos que retratavam Stalin.
de montagem, com uma mise-en-scène mais realista, cheia de truques acústicos.
O remake de Secretário do partido se tornou ainda mais americanizado – nada
Sabendo que o filme foi realizado em 1936, é possível perceber os ecos de A
soviético, muito distante das diretrizes do governo.
patrulha perdida (John Ford, 1934), e é praticamente certo que a ideia de fazer
uma versão soviética do longa-metragem de Ford tenha nascido após uma Secretário do partido também foi o primeiro filme em que a espiritualidade
exibição privada do filme norte-americano para os líderes do partido. Stalin russa e a igreja ortodoxa foram retratadas de forma positiva. Com esse western,
era um entusiasta do cinema. Ele organizava exibições quase diariamente no o cinema soviético dizia aos frequentadores de cinema que o comunismo
Kremlin. Assistia a todas as produções soviéticas realizadas na década e a muitos e a igreja poderiam estar conectados. O roteiro de Secretário do partido é
filmes estrangeiros também. Era um grande admirador dos westerns. Mais tarde, de Josef Prut, que também roteirizou Os treze, no qual o personagem do
nos anos 60, o diretor Mikhail Romm, tendo se tornado uma figura-chave do soldado russo era a figura mais contrarrevolucionária. Nesse filme, quando
establishment liberal soviético, explicou em seu livro de memórias que a ideia o coronel germânico captura o herói, ele promete matar seus amigos e cru-
de realizar Os treze lhe foi sugerida pelo Ministro da Guerra do governo de cificar o secretário do partido! Em síntese, Secretário do partido é um filme
Stalin, Clement Voroshilov, que havia assistido ao filme A patrulha perdida em sobre pessoas lutando por seu território com a ajuda de Deus. Se isso não
uma das projeções fechadas. é a definição de um western, o que é?

Podemos supor que Voroshilov era um mensageiro de Stalin, que queria


assistir a um western soviético. Mas como seria esse faroeste? Com Os treze,
Mikhail Romm fez as alterações mais básicas – serviu-se da estrutura clás-
sica do gênero e mudou sua roupagem. Cowboys agora vestiam o uniforme
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A nos cinquenta A nos sessenta


A década teve início com o faroeste Povo corajoso (1950), realizado por Depois do grande sucesso de Sete homens e um destino (1960, John Sturges)
Konstantin Yudin, ordenado pessoalmente por Stalin. O “grande líder” enve- na União Soviética, os líderes do governo decidiram dar “sua resposta aos
lheceu, e tornou-se mais difícil para ele assistir a todos os filmes soviéticos. imperialistas norte-americanos”. A vontade de Stalin se tornou lei para os
Ele ordenou que se produzissem menos filmes, mas que fossem obras que lhe realizadores soviéticos, mesmo depois de sua morte. Os filmes deveriam unir
interessassem mais pessoalmente. Depois da guerra, a NS Reichsfilmarchiv a forma do western com o conteúdo comunista. Nos anos 60 – a segunda
foi levada de Berlim a Moscou. Assim, Stalin teve a oportunidade de assistir a principal década da história do cinema soviético –, essas diretrizes governa-
alguns de seus faroestes prediletos, que eram parte da coleção alemã. Depois mentais não eram tão duras assim. Era um momento relativamente liberal
de uma projeção, é dito ter indagado: “Por que não fazemos filmes sobre as para a produção artística.
nossas guerras e vitórias?! Veja como os americanos conseguem mostrar a Três grandes faroestes vermelhos foram realizados naquele período. Vin-
sua própria história. Por que nós não fazemos isso?” Não era uma pergunta gadores Invisíveis (1966) e As novas aventuras dos Vingadores Invisíveis (1968),
exatamente. Era uma ordem. de Edmond Keosayan, eram remakes de Diabinhos vermelhos. O sucesso foi
O roteiro de Povo corajoso tinha de ser escrito pelos grandes dramatistas enorme, como o esperado, e todos ficaram satisfeitos. O governo, por ter
Mikhail Volpin e Nikolai Erdman – artistas judeu-alemães. Um deles foi preso recebido um filme que apagaria Sete homens e um destino da memória do
em um campo de concentração e o outro foi para o exílio no início dos anos público jovem; e o público – tanto os mais novos como os mais velhos –,
50. No entanto, eles conseguiram escrever um filme popular. Povo corajoso foi por ter recebido um western. Um western socialista, mas um western. Nos
o predileto de milhões de espectadores durante décadas, e provavelmente jornais e nas revistas, críticos e espectadores atacaram o diretor por ele ter
o único longa-metragem enérgico durante essa época negra da história so- sido um excelente pupilo dos americanos. Mas a crítica era suave. Mais de
viética, quando a realização cinematográfica era diretamente supervisionada cem milhões de pessoas assistiram a esses dois filmes naquele turbulento
pela censura de Stalin. período do regime. Depois da invasão na Tchecoslováquia, em 1968, havia a
Povo corajoso conta a história, passada em algum lugar do Sul, de um jovem necessidade de um filme como esse – um sucesso comercial e ideologica-
jóquei e seu amor, seus amigos e parentes. O filme trata da resistência durante mente de esquerda. No segundo longa-metragem, o diretor admitiu se es-
a ocupação e da ação de um espião germânico. Povo corajoso foi o primeiro quivar a certos preceitos ideológicos – ele evitou retratar o exército branco
western soviético a cores. O segundo foi feito em 1957, para as comemorações como um bando de idiotas. O protagonista negro era substituído por dois
da Revolução de Outubro. Stalin morreu e o congresso o acusou de crimes personagens – um jovem aristocrata inteligente e um cigano exótico. Mas o
hediondos. Não contra a humanidade, mas contra o verdadeiro comunismo. governo preferiu deixar passar esses aspectos. O importante, naquele mo-
O filme Milhas de fogo foi o primeiro western exibido na era pós-stalinista, uma mento, era o sucesso. E, no geral, os vermelhos eram do bem e os inimigos
fantasia romântica dos anos revolucionários. Para provar sua tese, o diretor ainda eram do exército branco. Depois desses sucessos, Edmond Keosayan
Samson Samsonov executou um ritmo dito “romântico e revolucionário” ainda realizou outra sequel: A coroa do império russo ou os Vingadores Invisíveis
– na realidade, era o ritmo de montagem do western clássico, graças a seu novamente (1971), que obteve um público ainda maior, embora não fosse um
andamento elegíaco, pontuado por explosões de violência. Com sua gama western, mas um thriller que se passava em Paris, onde os heróis roubavam
de cor dourado-bronze, o fotógrafo Feodor Dobronravov simbolizou o fim a coroa dos monarquistas. Ele estava inteiramente em conformidade com a
de um mundo e o nascimento de outro. É possível perceber traços de Nos ideologia soviética. Nenhum traço de revisionismo.
tempos da diligência (1939) nesse dinâmico trabalho de câmera que acompanha Ninguém queria morrer (1966), do diretor lituano Vitautas Zalakiavichus,
os guerreiros em numerosas batalhas. foi a primeira tentativa de lidar com o underground báltico antissoviético.
2 1

Naturalmente, era um filme da União e seguia seus preceitos, mas alguns dos A nos setenta
aspectos da atuação, da direção e do trabalho de câmera lembram o gênero
A década se centrou principalmente em faroestes na Ásia Central. Muitos
do western e invocam suavemente uma atitude antissoviética. É a história de
filmes foram realizados nas repúblicas soviéticas localizadas entre a Rússia e
quatro filhos que procuram vingança do assassinato do pai por operários
a Índia. Todos eles eram tramas sobre guerras civis, a começar por A sétima
antissoviéticos. Foi o primeiro faroeste soviético com uma tônica inteiramente
bala (1972), de Ali Khamraev. Ironia do destino: depois das violentas críticas
masculina. Depois da produção, os atores principais – da Lituânia, Letônia
a Sete homens e um destino (o longa-metragem foi retirado de circulação an-
e Estônia – se tornaram populares na União Soviética inteira. No final dos
tes mesmo de sua licença de exportação expirar) e da decisão de produzir
anos 60, dos 70 e no começo dos 80, atores como Donatas Banioni, Uozas
faroestes socialistas, o roteiro de praticamente todos os westerns da Ásia
Boudraitis, Regimantas Adomaitis, Bruno O’ya, Algimantas Masiulis e Via Art-
Central nos anos 70 tem início com uma situação retirada de Sete homens e um
mane incorporavam personagens do Oeste em filmes soviéticos – aristocratas
destino – o protagonista escolhendo um grupo para enfrentar os vilões.Tanto
amigáveis, inimigos da URSS, patifes elegantes ou aventureiros nobres.
os filmes bons quanto os ruins do Uzbequistão, Cazaquistão e Quirguistão
Ninguém queria morrer foi eleito o melhor filme de 1966 pelos leitores
começam com esse plot. Em A sétima bala, Ali Khamraev levou a brincadeira
da Soviet screen, a revista de cinema que mais circulava no mundo naquele
até as últimas consequências: imitou um dos planos mais criticados do filme
período, com uma impressão de dois milhões de exemplares. Assistindo ao
de John Sturges – a faca no pescoço do bandido. Por fim, ainda utilizou a
filme, os soviéticos entenderam que os atores e as atrizes do Báltico eram
palavra “sétima” no título.
diferentes das estrelas das outras partes da União Soviética. Não eram apenas
A sétima bala é a melhor produção dos anos 70 entre várias da Ásia Central.
personagens, pareciam ser pessoas de verdade, com traços muito singulares.
Não era apenas outro remake soviético do longa-metragem de Sturges. O
Oficialmente, o filme foi realizado para celebrar o vigésimo aniversário do
filme sofreu a influência dos westerns spaghetti, totalmente desconhecidos do
comunismo na Lituânia, mas suas conotações eram, no fundo, outras.Apenas
público do país naquele momento, mas não dos cineastas, que tiveram a chance
vinte anos haviam se passado desde os eventos históricos retratados no longa-
de assisti-los em exibições privadas. Foram eles que inspiraram Khamraev
metragem. Nos primeiros cinco anos, os comunistas tentaram assassinar os
a realizar filmes duros e violentos sobre homens brutos que conduziam a
operários. Quando Stalin morreu, não havia ainda tido tempo suficiente para
revolução no deserto. No entanto, apesar das estrelas vermelhas nas capas
inventar o tal “novo homem” nos países bálticos. O povo ainda não tinha sido
dos heróis, o filme segue exatamente a cartilha. Os heróis sequer falam no
convertido em cidadãos do Estado socialista. E foi justamente esse filme que
governo ou em comunismo.
contribuiu para que os soviéticos compreendessem esse fenômeno.
Andrei Konchalovsky foi um dos roteiristas. Dois anos depois, seu irmão
O sol branco do deserto, dirigido por Vladimir Motyl, foi outro brilhante
mais novo, Nikita Mikhalkov, realizou a sua estreia em longas-metragens com
sucesso na história do cinema soviético. A trama do soldado vermelho a
o assombroso Em casa com estranhos. Um estranho em casa. Nessa versão
salvar mulheres de um harém tornou-se popular. Realizado no ano em que a
dinâmica e bastante contemporânea da Guerra Civil, Nikita Mikhalkov faz
União Soviética foi invadida pela Tchecoslováquia, o filme trazia o sentimen-
menção a Sérgio Leone diversas vezes e atua como um bandido desvirtuado,
to de que a calmaria dos anos 60 havia terminado. Dadas as circunstâncias,
semelhante aos heróis de Leone, vestido com chapéu largo e sobretudo.
romantizações não eram mais possíveis. O sol branco do deserto foi um dos
mais tristes westerns da história do cinema soviético. Os demais faroestes vermelhos dessa década tornaram-se mais comer-
ciais e menos artísticos. Em geral, os realizadores não estavam tão satisfeitos
com o cânone. Nada de novo estava sendo desenvolvido – os soldados
vermelhos eram os mocinhos; os brancos, os inimigos. Diretores soviéticos
não procuravam mostrar outros aspectos da Guerra Civil. Provavelmente,
nem os conheciam. Eles focaram-se em dar continuidade ao gênero, criando
novos truques formais e viradas de narrativa, mas, mesmo nisso, obtiveram
pouco sucesso.

A nos oitenta
No início da década, saiu o célebre artigo “Cavalgada nas telas” no principal
jornal diário da União, o Pravda. O texto era contra os faroestes vermelhos e
acusava-os de ter um approach raso da grande Revolução Russa e da Guerra
Civil. O gênero não desapareceu nesse momento, mas a quantidade de pro-
duções diminuiu, e, logo antes da Perestroika, nenhum western foi feito sob a
bandeira vermelha da URSS.
Durante a Perestroika, apenas dois faroestes foram feitos na União Soviética.
O primeiro deles foi o único “autêntico”, que se passava mesmo no Velho
Oeste. Em O homem do Boulevard des Capucine (1987), Alla Surikova narrou
a trama sobre a chegada do cinema ao Velho Oeste. O público amou o filme,
mas os críticos, não. É repleto de músicas e estrelas, mas parece mais um
programa de televisão com piadas e elementos de pastelão.As muitas citações
a Lemonade Joe (1964), a grande paródia tcheca do faroeste, são esquisitas.
Quando a paródia é feita em cima da paródia, é porque o gênero se encontra
em uma crise severa.
O frio verão de 53 (1987), de Alexandr Proshkin, poderia dar início a uma
nova era do western soviético, revelando verdades históricas. É uma trama
sobre dois prisioneiros políticos que salvam uma pequena vila dos bandidos
libertos após a morte de Stalin. Outra homenagem a Sete homens e um destino,
o longa-metragem de Proshkin foi um dos últimos sucessos de público na
distribuição estatal soviética e demonstrou que o western podia ser a forma
ideal de representação dos “verdadeiros heróis”. Poderia ter sido, com efeito,
um faroeste russo, e não um faroeste vermelho. Infelizmente, foi o último.
Uma nova era surgiu. Um jovem público cinematográfico apareceu. Decidiu-se
por deixar de lado os faroestes e concentrar-se somente em filmes de autor.
Faroestes foram negligenciados. Filmes de autor, cultuados. Foi a morte do
célebre gênero soviético.

Tradução: Pedro Henrique Ferreira

OS TREZE (1937)
2 5

DUAS OU TReS PAlAVRAS


SObRE O WESTERN
por Hernani Heffner

O que é um western? Um gênero, uma narrativa fundacional, uma mi-


tologia, uma iconografia ou tudo isso junto? A resposta não é tão simples,
embora o conjunto de filmes que giram em torno da história dos Esta-
dos Unidos da América, partindo do Go West, young man até o advento
da Primeira Guerra Mundial, apresente uma incorporação crescente e
compreensiva da formação territorial, econômica e cultural do país. Grosso
modo, o western como um fenômeno cinematográfico (já que ele também
ocorreu na literatura, na música e nos quadrinhos) pode ser dividido em
uma fase mistificadora – que começaria mais clara e fortemente com o
Grande roubo do trem (The great train robbery, 1903), de Edwin S. Porter, e
alcançaria o ápice com clássicos como Onde começa o inferno (Rio Bravo,
1959), de Howard Hawks – e em uma fase crítica – preocupada justamen-
te em demonstrar a distância entre a história e o relato ficcional que a in-
corpora, expressa em obras que vão de O homem que matou o facínora (The
man who shot Liberty Valance, 1962), de John Ford, a Os imperdoáveis (Unfor-
given, 1992), de Clint Eastwood, com seus personagens metanarradores (o
jornalista e o escritor, respectivamente), que se veem confrontados com
uma realidade completamente distinta da fábula. Esse segundo momento
abarca a apropriação do gênero por outras cinematografias, principalmen-
te europeias, quase sempre com o olhar afiado para as contradições da
América e suas representações hollywoodianas. A denúncia contra o ca-
pitalismo e sua expansão violenta e imperialista torna-se o tema central
dos spaghetti westerns, nordesterns, easterns/osterns, Gibanica westerns, goulash
westerns, red westerns e de outras formulações que abarcam o Chile e a
Austrália, o Canadá e a Sibéria, passando pelos cinco continentes.

LEMONADE JOE (1964)


2 7

A formulação “mistificadora” não se atém a um confronto entre a histó- “Indian and western subjects” e “wild west dramas”, entre outras. O que se
ria e sua representação, incorrendo em pressupostos como fidelidade ou destaca nessa produção de feição europeizante é a caracterização da per-
aderência ao tecido dos acontecimentos. Trata-se de uma proposição cons- sonagem índia como “nobre”, “heroica” e disposta ao sacrifício em favor do
truída pelo próprio gênero em sua fase revisionista. Ela é, portanto, uma crí- “homem branco”, a ponto de constituir uma espécie de subgênero de gran-
tica ao discurso artístico inventado e solidificado no chamado período “clás- de popularidade na época. Surgem também relacionamentos inter-raciais e
sico”, quando se consolidou uma galeria de temas, personagens, situações, personagens femininas protagonistas e independentes, traços que indicam
locais e signos, como a pradaria, o cowboy, o rancho, a caravana, a cavalaria, o uma agenda progressista que não permaneceria com a transformação do
pistoleiro, o duelo, o saloon, a Winchester, os peles-vermelhas, a diligência, o segmento por volta da Primeira Guerra Mundial, mas que guardam pontos
Monument Valley, John Wayne e John Ford, entre muitos outros. Mesmo um de contato com a sua retomada europeia nos anos 1960, aspecto que talvez
western fortemente revisionista como Era uma vez no Oeste (C’era una volta il mereça um estudo mais aprofundado.
West, 1968), de Sergio Leone, não procura uma representação “correta” do A invenção do western como gênero que narra a formação da nação es-
período histórico enfocado, mas sim uma condensação de signos que são tadunidense parece atender não só a demandas de mercado – o que teria
deslocados de sua recepção característica e, a essa altura, “natural”. Tornar levado à necessidade de renovação de sua primeira configuração, com a
o “mexicano” no herói e o astro de Hollywood no vilão é uma operação famosa história da busca por novas locações e por “autenticidade”, e à des-
de ressignificação possível dentro de um sistema forjado entre artistas/in- coberta da localidade de Hollywood, em 1909, por Siegmund Lubin – como
dústria, público e crítica ao longo de meio século. É possível aproximar a também a uma demanda ideológica, no momento em que o Estado estimula
representação de sua fonte histórica, mas é muito mais produtivo ver a pro- a nacionalização da indústria cinematográfica e a coloca como ponta de
posição de uma narrativa sobre a “conquista do Oeste” como um discurso lança de uma política imperialista que levaria o país a consolidar sua posição
endereçado ao momento contemporâneo da produção com enfoque no como a sociedade mais rica do mundo. Os westerns franceses feitos nos
questionamento da ideia de democracia e do seu papel, isto é, como uma Estados Unidos tentam seguir essa nova orientação. Junto com os similares
intrincada teia de onde emanam contraditoriamente as forças ideológicas de David Wark Griffith, eles representam uma espécie de transição para o
constitutivas dos Estados Unidos da América como nação, mais presentes novo momento. Dos primeiros – produzidos, dirigidos ou supervisionados
no período clássico, e sua desconstrução frente à própria imagem de uma por Alice Guy-Blaché –, destaca-se a construção do “cidadão americano”
“terra de liberdade e justiça” propagada por esses filmes. em títulos reveladores, como A man’s a man (1912) e The making of an
A rigor, o western cinematográfico nasceu com uma feição muito diferen- American citizen (1913). Já em Algie the miner (1912), de Edward Warren, com
te da que assumiu ao se tornar um dos gêneros mais populares da indús- supervisão de Guy-Blaché, torna-se claro que essa formulação envolve a ida
tria hollywoodiana, com seus cowboys bem-vestidos, armas reluzentes e tiro do jovem rapaz para o Oeste, em seu rito de passagem para a idade adulta
preciso, particularmente endereçado ao segmento infantojuvenil, a partir e, mais do que isso, para uma nova identidade, forjada na adversidade, na de-
da década de 1920. Antes de ser a alegria das matinês mundo afora, ele era terminação e na conquista. Por outro lado, Griffith explora com pertinência
produzido em Nova Iorque e Nova Jersey – sem pradarias e assemelhados, e consciência os novos espaços e os novos símbolos dessa transformação,
com índios de nobres intenções –, principalmente por companhias france- fazendo do trem uma metáfora não só do progresso e da modernidade, mas,
sas sediadas nos Estados Unidos que dominavam o mercado local, o que sobretudo, da força da nação, desdobrada em imagens de eficiência, potência
explica o fato de 15% dos filmes produzidos no país em 1910 serem classi- falocêntrica e (por que não dizer?) masculinidade, uma masculinidade que
ficados retrospectiva e genericamente como westerns. Na época, eles eram tem como missão resguardar a mocinha (nação), como é visto em The girl
incluídos, nos catálogos das distribuidoras, em seções como “military films”, and her trust (1912). O western como território do homem que se impõe
2 9

e impõe a lei (pela força das armas) começa a ganhar contornos definidos. junto tenha sido suficientemente forte para configurar os parâmetros do
A construção desse novo sujeito é, ao mesmo tempo, uma formulação western – a ponto de seus cultores mais ardentes defenderem, por exemplo,
histórica e uma formulação ideológica, ambas contestáveis, sobretudo por- a misoginia e o racismo do gênero –, os títulos mais exaltados e lembrados
que se erigem a partir do apagamento do Outro, considerado agora um retrospectivamente são justamente aqueles que se posicionaram de forma
“selvagem”, um “bárbaro”, um “espoliador” ou simplesmente um “estran- mais crítica com relação às contradições do conjunto e, sobretudo, aqueles
geiro”. Basta pensar na reordenação dramática do “índio”, tornado vilão e que adicionaram uma maior complexidade psicológica, filosófica e cultural
exterminado sem dó nem piedade em milhares de filmes, algo não muito aos heróis e à paisagem de fundo, chamados, em certa altura, de westerns
distante do genocídio real das nações e culturas indígenas locais. Nas entra- noir, metafísicos, mitológicos, entre outras formulações.
nhas do westerner ecoam os postulados da doutrina do Destino Manifesto, O ponto de inflexão para o auge da era clássica foi No tempo das diligências
consubstanciados na famosa frase atribuída a Horace Greeley, em que estão (Stagecoach, 1939), de John Ford, que desloca a atenção da ação, trabalhada
subentendidos movimentos que se traduzem como aventura, expansionis- aqui de forma suspensiva, mais como uma iminência do que como um des-
mo e conquista. Não por acaso a revivescência da Doutrina Monroe por fecho. Tanto que, nesse filme, não vemos o duelo final de Ringo, que levaria
Theodore Roosevelt e sua política do “Big Stick” coincide com a guinada ao estudo psicológico e ao comentário social. O Oeste é que funciona como
do gênero em sua busca por uma nova configuração. Moldado por Thomas ambiente revelador do verdadeiro caráter dos envolvidos e desmistificador
Ince, James Cruze e mesmo por John Ford, a partir de filmes como Sota, ca- das oposições típicas do gênero, particularmente a que opunha o Leste
valo e rei (Cameo Kirby, 1923) e O cavalo de ferro (The iron horse, 1924), o wes- civilizado ao Oeste selvagem, retrabalhado por Ford também em dimensão
tern, em seus primórdios clássicos, explora estruturas dramáticas, como a classista. Daí à admissão de personagens perturbados ou francamente au-
vingança, e temas como a superioridade racial, fazendo da aventura catártica toritários e fascistas – como os “heróis” da saga estadunidense em filmes
e da segregação racial as bases para um espetáculo de superioridade militar como Consciências mortas (Ox-bow incident, 1943), de William Wellman, Rio
e supostamente ética, sem menção às espoliações e aos crimes inerentes às Vermelho (Red river, 1948), de Howard Hawks, e Rastros de ódio (The searchers
investidas território adentro. 1956), também de Ford – foi um passo. Psicanálise, Guerra Fria, Existencia-
O gênero atinge o auge de sua popularidade nos anos 1930, com o cha- lismo, Macartismo, Estética Noir e um ainda não nomeado Multiculturalis-
mado B-western, universo que revelaria definitivamente a figura de John mo trazem o gênero para a atualidade, tornando-o oblíquo e alegórico em
Wayne, epítome acabada do homem do Oeste em suas várias encarnações títulos marcantes, como O retorno de Frank James (The return of Frank James,
cinematográficas. Amplificando a narrativa expansionista, com filmes como 1940), de Fritz Lang, Paixão dos fortes (My darling Clementine, 1946), de John
Aliança de aço (Union Pacific, 1939), de Cecil B. DeMille, e a construção do Ford, Sua única saída (Pursued, 1947), de Raoul Walsh, Flechas de fogo (Broken
cowboy de butique (limpo, bem-vestido, galante, polido, de armas brilhantes e arrow,  1950), de Delmer Daves, Matar ou morrer (High noon, 1952), de Fred
com destreza absoluta no cavalgar e atirar), com ícones como Tom Mix, Roy Zinnemann, Johnny Guitar (Johnny Guitar, 1954), de Nicholas Ray, Sete homens
Rogers, Gene Autry, Tex Ritter, Audie Murphy e muitos outros, a filmografia sem destino (Seven men from now, 1956), de Budd Boetticher, Reinado do
do western se consolida, chegando a ocupar 20% a 30% do mercado cinema- terror (Terror in a Texas town, 1958), de Joseph H. Lewis, e Sete homens e um
tográfico estadunidense, com significativo desdobramento junto à televisão destino (The magnificent seven, 1960), de John Sturges. Sempre comentando
a partir dos anos 1950, com séries como The lone ranger, Bat Masterson, a seara caseira, John Ford dá uma dimensão do alcance e da complexidade
Bonanza e Chaparral, entre centenas de outras.Também é consolidada a face do western ao transformar uma produção de rotina sobre cavalaria, como
conservadora inicial do gênero em termos políticos e estéticos, marcada era Sangue de heróis (1948), em um libelo antirracista e antibélico, chaman-
pela estereotipia das personagens, tramas e composições. Embora o con- do atenção para o fascismo e o esnobismo dos oficiais em contraposição
3 1

à mal-dissimulada presença e camaradagem irlandesa em meio ao exército ranger, 2013), de Gore Verbinski. A apropriação europeia dos faroestes, que
estadunidense. Ford teve que negociar diretamente com o chefe da censu- se afirma critica e desconstrutivamente com Por um punhado de dólares (Per
ra, ironicamente um descendente de irlandeses, a incorporação dos nomes un pugno di dollari, 1964), de Leone, adiciona uma dose cavalar de cinismo, vio-
característicos e dos costumes dos seus ancestrais. lência e “breguice” ao gênero, assim como várias outras operações estéticas
A depuração advinda de todas essas contribuições se transforma em uma que acabam por redefinir o eurowestern (ocidental) como um discurso muito
formulação arquetípica do gênero, sinal de sua maturidade absoluta e tam- mais ambíguo, estilizado e autorreferencial do que sua fonte hollywoodiana.
bém do seu esgotamento, com comentários e ressonâncias de ordem mais Ele acaba se espraiando para o mundo inteiro nos anos 1970. Basta indicar
metafísica do que histórica. Como síntese absoluta, etérea e simbólica do obras como o mexicano O Topo (El Topo, 1970), de Alejandro Jodorowsky, o
“far-west”, território além da civilização, surge, em 1953, Os brutos também francês Não toque na mulher branca (Touche pas à la femme blanche, 1974), de
amam (Shane), de George Stevens, no qual o pistoleiro solitário, desgarrado, Marco Ferreri, e, do outro lado do mundo, o indiano Cinzas (Sholay, 1975), de
desenraizado, que se sabe entre dois mundos e que escolhe lutar por aquele Ramesh Sippy, exemplo maior dos chamados curry westerns.
que não o absorverá e com o qual não se identifica, encarna os valores má- A grande exceção dessa tendência geral se dá ainda nos anos 1960, com
ximos do sagrado, do justo e do bom, de forma pura e angelical, aos olhos de os Indianerfilme, produzidos na Alemanha Oriental, e os Sauerkraut (chucrute)
uma criança que o idolatra. A batalha final está acima e muito além da luta westerns, produzidos na parte ocidental. Muitos desses filmes acabaram sen-
entre barões de gado violentos e pequenos agricultores pacíficos. Em sua do rodados nas planícies da antiga Iugoslávia (mais especificamente na atual
precisa geometria de montagem, Stevens e o montador William Hornbeck Croácia), o que gerou, inclusive, uma apropriação local, os Gibanica westerns,
fixam os signos-chaves e a matéria-prima icônica do gênero, isolando cada e toda a nova onda de red westerns ou westerns produzidos nos antigos paí-
elemento simbólico e sua ressonância cultural e artística. Da mesma forma, ses comunistas da Europa e da Ásia. Se, na antiga União Soviética, o líder
outras obras-primas da década de 1950 constituem de forma definitiva o Josef Stalin, um apaixonado pelos westerns hollywoodianos, tinha estimulado
cânon proteico da galeria de lugares, tipos, objetos e situações do gênero, a produção local de contrafações, ainda nos primórdios, destacando-se filmes
bastando lembrar alguns títulos a mais, como O matador (The gunfighter, como Os diabinhos vermelhos (Krasnye diavolyata, 1923), de Ivan Perestiani, Os
1950), de Henry King, Sem lei e sem alma (Gunfight at the O.K. Corral, 1957), treze (Trinadtsat, 1937), de Mikhail Romm, e Povo corajoso (Smelye lyudi, 1950),
de Sturges, e o já mencionado Onde começa o inferno. de Konstantin Yudin; com a chegada de outro apaixonado pelo cinema ao po-
A história do western cinematográfico tem muitos outros capítulos e não der, o novo líder Nikita Kruschev, que havia permitido a distribuição de Sete
se esgota nessa brevíssima enumeração, podendo incorporar os épicos con- homens e um destino na Rússia, onde teve imenso sucesso de público, busca-
servadores dos anos 60, como Álamo (The Alamo, 1960), de John Wayne, e A se novamente a criação de uma contrafação local e estimula-se a mesma
Conquista do Oeste (How the West was won, 1962), de Ford, Henry Hathaway e ação nos demais países socialistas. O modelo para a nova onda de westerns
George Marshall, e a consciência do fim da era clássica, com a obra de Sam comunistas foi justamente o ocidental O tesouro dos renegados (Der schatz
Peckinpah – violenta, crítica e, ao mesmo tempo, nostálgica de valores que a im Silbersee, 1962), de Harald Reinl, que trazia a dupla Winnetou e Old Shat-
contemporânea Guerra do Vietnã tornou anacrônicos. O imperialismo como terhand, criada pelo escritor alemão Karl May ainda no século XIX. O filme
doutrina tinha virado pilhagem como prática. Com a revisão da história con- acabou sendo distribuído com igual sucesso na União Soviética e convinha
tada pelo western, surgem as necessárias adequações e reposicionamentos, mais à inversão clássica requerida pelo contexto da Guerra Fria. Era muito
com, por exemplo, o índio recuperando progressivamente seu lugar de vítima mais adequado torcer pelo índio como herói do que pelo branco escraviza-
e afastando-se do de algoz, em títulos que vão de O pequeno grande homem dor e espoliador, o que acabou prevalecendo no lado da Alemanha Oriental.
(Little big man, 1970), de Arthur Penn, ao recente O cavaleiro solitário (The lone
De maneira geral, o red western ocorre entre 1964 e 1968 na União
Soviética, trocando-se o contexto estadunidense da conquista do Oeste e
da Guerra Civil pelo contexto da revolução bolchevique e da subsequente
Guerra Civil local. A partir de 1966, ele passa a ocorrer nos demais países
socialistas, com destaque para a Iugoslávia, a Romênia e a Alemanha Orien-
tal. Depois de uma primeira fase, com os índios e os soldados do exército
vermelho predominando como protagonistas em filmes de sucesso, como
Ninguém quer morrer (Niekas nenorejo mirti, 1966), de Vytautas Zalakevicius,
e Os Vingadores Invisíveis (Neulovimye mstiteli,1967), de Edmond Keosayan, o
gênero torna-se mais difuso, devido à repressão pós-Primavera de Praga e à
rejeição da cultura ocidental em geral. É nesse momento que certos temas
“genéricos” do western, como a fronteira, a cidade fantasma, o cavaleiro
solitário e a pradaria (neste caso, as estepes siberianas ou as planícies bal-
cânicas), retornam em chave alegórica, por vezes enigmática, para dar conta
das contradições do mundo socialista em dissolução ou do neocapitalismo
selvagem que toma conta desses países a partir de 1989-91. Relembre-se,
por exemplo, uma saga como Siberíada (Sibiriada, 1979), de Andrei Mikhalko-
v-Konchalovsky. A força do western como gênero – ou, mais especificamen-
te, como estrutura e moldura dramáticas que mobilizam o homem contra
obstáculos e conjunturas adversas – revela-se aqui em sua plena potência
e atualidade. Adentrar um território estranho é estar disponível para o
contato com o Outro tanto quanto para uma jornada existencial de reorga-
nização da identidade pessoal.Talvez por isso que um dos melhores westerns
dos últimos tempos tenha sido criado por um dinamarquês, filmado na Áfri-
ca do Sul e situado, como não poderia deixar de ser, no “Oeste selvagem”
estadunidense do século XIX. Trata-se de A salvação (The salvation, 2014),
de Kristian Levring, que, diferentemente de boas refilmagens como Os indo-
máveis (3:10 to Yuma, 2007), de James Mangold, insufla vida nova no sempre
claudicante neo-western das últimas décadas.

SIBERÍADA (1979)
3 5

entrevista
ALI KHAMRAEV1
O FAROESTE VERMELHO: uma grande ajuda para o orçamento
Em seu texto, Sergey Lavrentiev do país, juntamente com a venda de
menciona que, em A sétima bala, pão e vodca. Estudei o gênero do fa-
você presta homenagem a um plano roeste no instituto de cinema, onde
específico de Sete homens e um des- fugia de palestras marxista-leninistas
tino, de John Sturges, além de mos- para sessões do amado Nos tempos
trar que foi influenciado por Sérgio da diligência, de John Ford. Quando,
Leone e o western spaghetti. Com em 1972, consegui persuadir o che-
isso em mente, gostaríamos primei- fe do estúdio Uzbekfilm a me dei-
ramente de perguntar como é que xar filmar o histórico e revolucio-
você se envolveu no projeto de A nário roteiro de Basmachi (escrito
sétima bala e, ainda, qual era a sua por Friedrich Gorenstein e Andrei
relação com o gênero do faroeste. Mikhalkov-Konchalovsky), meu prin-
Como os faroestes americanos não cipal trunfo foi a proposta de mudan-
eram bem-vistos pela ideologia so- ça do nome para A sétima bala, em
consonância com o título do filme
viética, você se viu obrigado a mudar,
conter ou transformar a estética do Sete homens e um destino, que gozava
seu filme? de enorme popularidade na época.
As crianças da União Soviética brin-
ALI KHAMRAEV: O filme Sete ho- cavam de “cowboys e bandidos”, os
mens e um destino, de John Sturges, jovens copiavam a maneira de andar
foi visto por mais de 100 milhões de do herói Yul Brynner e a indústria
espectadores em um ano na URSS. não se cansava de imprimir milhares
A propaganda oficial omitia esse re- e milhares de novos exemplares do
corde, mas os milhões de rublos ad- filme. Friedrich Gorenstein me con-
vindos de westerns americanos eram tava que Andrei Konchalovsky havia

1 Entrevista realizada por e-mail. Perguntas de Thiago Brito e Pedro Henrique Ferreira.
Traduzido do russo por Thiago Brito.

A SÉTIMA BALA (1972)


3 7

lhe mostrado dezenas de faroestes ALI KHAMRAEV: No âmbito do não estou acostumado a ficar sem ALI KHAMRAEV: Quando eu era
americanos no arquivo de filmes. combate à ideologia do Ociden- trabalho. Remexi meus rascunhos jovem, precisei trabalhar com di-
Sendo um escritor e roteirista ta- te na União Soviética, os faroestes e anotações de direção, tive uma versos gêneros. Não me deixavam
lentoso, Friedrich me ajudou a en- eram classificados como “filmes de ideia de roteiro e decidi ir ao Tadji- filmar roteiros complexos, me ofe-
riquecer o projeto de A sétima bala aventura”. De qualquer forma, não quistão, onde, em 1961, iniciei minha reciam comédias, musicais, faroestes
com personagens fortes e diálogos importa a embalagem do chocolate, carreira. Ali, eles me tratavam bem, e documentários. Eu aceitava esses
brilhantes. Eu consegui convencer ele continua sempre sendo chocola- sabiam que meu pai, o grande ator e projetos de bom grado, sabendo
o grande ator Suymenkul Chok- te. Mesmo hoje o faroeste continua roteirista Ergash Khamraev, era um que eu seria bem pago e, ao mesmo
morov a atuar como o comandante sendo o gênero predileto da juven- genuíno tadjique. Na época, minha tempo, que eu teria uma experiên-
do exército do destacamento. Nós tude da Rússia e das ex-repúblicas esposa, que é atriz, estava filmando cia profissional necessária. Assim, fui
íamos do hotel ao set de filmagem soviéticas. Já o cinema do Uzbequis- em Sebastopol. Então, junto com as ganhando legitimidade para fazer o
a cavalo. Eu atirava para o alto com tão, hoje, não tem diretores traba- nossas duas crianças, nós nos insta- que eu realmente queria: o cinema
uma (pistola) Mauser, em vez de gri- lhando com o gênero. Eles estão lamos num hotel barato, em cima de autoral.
tar “Ação!”. Para economizar, os ini- ocupados desenvolvendo o enredo um banheiro público. Nesse hotel,
migos da revolução, em cenas mais do “homem de família pobre que se durante duas semanas, escrevi o ro- OFV: Os seus faroestes, em compa-
numerosas, eram interpretados por apaixona por uma mulher de famí- teiro de O guarda-costas. Não estava ração com os faroestes americanos,
motoristas de táxi de uma pequena lia rica”. As pessoas que gostam de conseguindo encontrar os atores ou mesmo italianos, têm um trata-
cidade. Uma hora depois, esses mes- assistir aos faroestes fazem isso por para os papéis principais, mas o meu mento mais “realista” das cenas de
mos motoristas trocavam de roupa meio de DVDs e da internet. amigo Andrei Tarkovsky, durante um tiroteio. O ritmo e a dramaturgia
para atuar como soldados do exér- encontro nosso na Mosfilm, acenou dessas cenas de ação são bastante
cito vermelho. Trabalhamos rápido e OFV: O guarda-costas (1979) é para os dois protagonistas de Stalker únicos. Você poderia comentar so-
de forma divertida; filmamos em seis também influenciado pelos faroestes – Anatoly Solonitsyn e Alexander bre isso?
semanas. Não prestamos atenção à americanos, especialmente os do Kaidanovsky – e disse-lhes: “Que-
ideologia comunista, nós queríamos estilo “caçador de recompensas”. rem ver o céu estrelado da Ásia e ALI KHAMRAEV: O faroeste
apenas contar uma história sobre a Como você é creditado como o visitar Samarkand? Querem um pa- americano é a espetacular batalha
batalha entre o bem e o mal. único roteirista do filme, nós gos- pel interessante e querem ganhar di- entre o bem e o mal – histórias
taríamos de saber como você teve nheiro? Então vão filmar com o Ali!”. inventadas e românticas. Os meus
OFV: Ao mesmo tempo, nós gosta- essa ideia. “easterns” são baseados em fatos
ríamos de entender o que o gênero OFV: Você já realizou filmes de qua- reais da Guerra Civil soviética. Eu
do faroeste significava para seu país na ALI KHAMRAEV: Em 1978, por se todos os gêneros e estilos. Existia tentei preencher o quadro com pai-
época2.A recepção do filme foi a mes- conta do filme Triptych, eu entrei em alguma diferença na realização de sagens reais, com pessoas simples
ma no Uzbequistão e na União Sovié- conflito com os ideólogos do gover- um faroeste? do povo em suas roupas cotidianas.
tica? O gênero ainda ressoa no cinema no do Uzbequistão. Eu precisava de Meus heróis atiravam e matavam
contemporâneo do Uzbequistão? dinheiro pra viver; além do mais, eu não com o objetivo de ganhar di-

2 Ali Khamraev nasceu no Uzbequistão.


3 9

nheiro. Meus heróis acreditavam em felicidade coletiva, em um mundo sem ri-


cos e pobres: eles lutavam e morriam por uma grande ideia, sabendo que seus
filhos viveriam felizes. Meus heróis acreditavam em um socialismo com um
rosto humano; de forma alguma eles pensavam ou acreditavam que os seus
netos e bisnetos veriam um capitalismo de rosto animal. Mas assim é a vida…

Ali Khamraev nasceu no dia 19 de maio de 1937, na família de Ergash


Khamraev, roteirista e ator, e de Anastasiya Tarasich, secretária da unidade
de direção de arte do Uzbekfilm Estúdio. Em 1956, após a conclusão
do ensino secundário, Ali Khamraev ingressou na faculdade do Instituto
Estadual All-União de Cinematografia (na oficina artística do professor
Grigoriy Roshal’ e do professor-assistente Yuriy Genika). Em 1961, recebeu
seu diploma, depois de ter exibido o longa-metragem Breves histórias sobre
as crianças, que... (dividido com M. Makhmudov). De 1962 a 2008, filmou,
como diretor e produtor, 20 longas-metragens de ficção e cerca de 40
documentários, na maioria dos quais atuou também como roteirista
principal ou colaborador. Entre seus filmes de maior popularidade e
retorno financeiro, estão os faroestes A sétima bala e O guarda-costas, os
filmes históricos The red sand (em colaboração com A. Akbakhodzhayev) e
Extraordinary comissar, além das comédias musicais A fiancée from Vuadile e
Where are you, my Zulfiya?. Ali Khamraev foi laureado com o “Trabalhador
das Artes”, prêmio estadual da República do Uzbequistão.

O GUARDA-COSTAS (1979)
4 1

O INDIaNERFILM DA DEFA COMO


ARTEFATO DE RESISTeNCIA 1
1

p o r E v a n To r n e r

Os acadêmicos geralmente relacionam-se com a história do cinema


como se estivessem diante de um Wunderkammer – uma câmara de
curiosidades que produz tanto fascínio quanto insight. Nela encon-
tramos, por exemplo, o longa-metragem conhecido como “Guerra das
estrelas turco”, as produções baratas de exploitation, o filme realizado
secretamente na Disney World, os filmes silenciosos russos de espio-
nagem/sci-fi/slapstick, etc. Como as prosaicas histórias infantis da Índia2,
os Indianerfilme da DEFA – populares faroestes, produzidos pela co-
munista Alemanha Oriental (RDA) entre meados da década de 60 e
meados da década de 80, que presumiam que havia uma natural aliança
entre a resistência aborígene americana contra os cowboys capitalistas
– maravilham historiadores de cinema por sua estranheza, a despeito
do potencial blockbuster que tinham nas bilheterias do Bloco Soviético
e da multidão de fãs, ou mesmo por conta disso.
Inúmeras publicações realizaram um resumo do fenômeno, adequan-
do-o à ótica de estudiosos da era pós-comunista. Concluiu-se que es-
ses lucrativos faroestes, protagonizados pelo ator sérvio Gojko Mitić,
certamente faziam parte da tradição revisionista dos westerns, mas que,
ao fim e ao cabo, eram mais indicativos da maneira fantasiosa como a
Alemanha Oriental se via nos personagens aborígenes do que neces-
sariamente sobre a experiência aborígene. Eles eram, em suma, filmes

1 “The DEFA Indianerfilme as artifact of resistance”. Publicado


originalmente em Frames Cinema Journal. Traduzido por Thiago Brito.
2 O autor refere-se aos livros de Lynne Reid Banks publicados a partir de
1980, como The Indian in the cupboard.

A TRILHA DO FALCÃO (1968)


4 3

mais preocupados com planos glamorosos e intricados stunts de muscu- mesmo os partidos comunistas dominantes possuíam. Mas a verdadeira força
losos corpos da Europa Oriental em ação do que com uma expressão de dos Indianerfilme não reside somente no estrelismo de Mitić, reside principal-
genuína solidariedade aos personagens em cena. Pelo menos isso as publi- mente na capacidade do gênero de criar, como Michael Saler um dia colocou,
cações deixam bem claro. um “secundário mundo imersivo”, repleto de aventuras aborígenes, dentro
Mas o que não deixam claro é o que de fato está em jogo quando escreve- de uma RDA socialista e pós-industrial. Tratava-se de um mundo fantasioso,
mos sobre essa produção de 14 filmes. Por exemplo, Fredric Jameson percebe capaz de cativar a atenção do público e de transpor barreiras nacionais ao se
os planos dos faroestes da Europa Oriental como uma “convulsiva tentativa pautar por valores universais dentro do Bloco soviético. A aparente autenti-
de derrubar estereótipos nacionais generalizantes, ambiguamente reinventan- cidade dos gestos transnacionais e trans-históricos desses filmes ocorre por
do-os no processo”. Por outro lado, Sebastian Heiduschke descreve como os eles serem: 1) abertamente superficiais (superando a falta de transparência
famosos faroestes têm sido empregados como iscas internáuticas por sites do socialismo do século XX); e 2) tanto da Alemanha quanto da Europa
de fãs da DEFA, que cruamente comparam os filmes a produções america- Oriental (superando as diferenças nacionais). Uma mudança dos estudos cul-
nas e italianas, ao mesmo tempo que reproduzem a teoria que diz que os turais germânicos – que prioriza o pop em detrimento da “alta cultura”, a
Indianerfilme eram “preocupados com a vida, a cultura e a história da América interseção em detrimento das análises ideológicas – permitiu que, dentro de
aborígene” (Heiduschke, 2006, p. 159). Estudamos os Indianerfilme da DEFA nossas salas de aula, metonimicamente, esses filmes fossem expostos como a
por conta de sua reinvenção do nacional a partir do discurso do gênero? Ou cultura visual da RDA, com consequências interessantes para os estudos da
os estudamos por conta da potência com que saltam aos olhos, graças à sua história do cinema alemão em geral.
combinação única de ação, kitsch, drag étnico e ideologia comunista ingênua? Por fim, em seu recente artigo “Have dialetic, will travel”, Dennis Broe ar-
Para cada razão que nos damos para estudar o fenômeno, parece que outra gumenta que esses filmes, assim como o Novo Cinema Alemão dos anos
razão perversa também se estabelece. 60 e 70, constituem elementos de resistência contra-hegemônica da classe
O presente artigo não pretende dissecar os Indianerfilme em seus mínimos trabalhadora, seja em oposição a um Estado opressivo, seja em oposição às
detalhes, mas encontrar o lugar dessa produção dentro do Cinema da RDA, forças de um mercado neoliberal. Esses filmes são, com certeza, artefatos
articulando isso com a maneira como esses filmes foram recebidos na esfera de resistência, no sentido de terem vidas e agendas ocultas, como uma nova
pública. Um resumo do gênero será apresentado, mas o objetivo central é ontologia baseada no objeto. Eles são fantasias em celuloide – ambíguas,
uma análise do discurso do produtor e do público que percebe os Indianerfil- mercantilizadas e comerciais –, projetadas tanto como ilustração da história
me como artefatos culturais que resistem aos clichês a eles fixados. Afirmo audiovisual de um país morto quanto como uma forma de rebelião contra
que os temas de discussão mais genéricos sobre esses filmes – por exemplo, uma ameaça perniciosa (seja ela o capitalismo ou a ocupação soviética),
sua posição como mero entretenimento dentro do Bloco Comunista; sua por meio de duradouros e ativos corpos e talentos de falsos aborígenes
subversão ideológica dos faroestes dos EUA e da Alemanha Ocidental; seu representados no telão. Deixe-me destacar que um sítio é um lugar onde
problemático discurso racial; seu gesto de solidariedade pós-colonialista – algo ocorre, enquanto que um artefato é algo que um dia foi produzido para
modificaram-se muito pouco desde sua concepção, ainda na década de 60. O atingir determinado objetivo, mas que, com o tempo, restou simplesmente
contínuo entusiasmo alemão pela cultura aborígene, denominado por Hart- como testemunho das condições de sua própria produção.
mut Lutz (2002) de “Indianthusiasm”, nos mostra a permanência do discurso.
A incrível e profícua popularidade da imagem do principal protagonista des- O I ndianerfilm como processo
ses filmes, Gojko Mitić, é outro indicativo. Como já escrevi anteriormente, a As instituições que produziram esses artefatos desejavam que eles atingis-
impecável imagem física e social de Mitić lhe dá uma credibilidade que nem sem objetivos e efeitos educacionais bastante determinados. Desde sua ori-
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gem, em uma Berlim ocupada pelos soviéticos, em 1946, até sua realocação sa produção ignora a maneira como os meios de comunicação impedem
para Potsdam-Babelsberg, no início de 1950, os estúdios da DEFA da Ale- que um controle substancialmente político ocorra. Trocando em miúdos:
manha Oriental tinham a missão de “re-educar os alemães – especialmente um filme da DEFA tinha que ser interessante ou divertido o suficiente para
os jovens –, para que eles compreendessem o que era uma democracia e atrair um público cativo, mas, se o filme atraísse atenção demais – como,
um humanismo genuínos, e, ao realizar isso, promover um sentimento de por exemplo, o filme de Heiner Carow, A lenda de Paul e Paula (Die Legende
respeitos por outros povos e outras nações”, como declarou o coronel so- Von Paul und Paula, 1973) –, qualquer conteúdo mais subversivo da narrativa
viético Tulpanov na cerimônia de inauguração. Nas primeiras duas décadas receberia desaprovação oficial. Os diretores e produtores que desejavam
de produção da DEFA, os aspectos morais e sociopolíticos foram genuina- manter suas posições sabiam como realizar filmes com o nível certo de
mente priorizados em detrimento da lógica do retorno financeiro a curto “interesse”, de modo a garantir a sua própria sobrevivência. Um filme pre-
prazo, uma inclinação institucional que ajudou a influenciar gerações de es- cisava ser inocuamente subsumido por trás de categorias de gênero claras
tudiosos a buscar mensagens de cunho moral, ideológico e/ou subversivo e bem-estabelecidas, de modo a sobreviver aos laboriosos processos de
nas narrativas e regimes de representação dos filmes da DEFA. No entanto, roteirização. Com isso, o argumento de Dennis Broe de que os Indianerfilme
a realidade é que a DEFA fazia parte da economia cinematográfica mundial, eram, em alguma medida, “subversivos” superestima a maneira como os di-
e a lógica do mercado não desaparece completamente, mesmo que se trate retores da DEFA concebiam esses filmes a partir do potencial “subversivo”
de uma rubrica estatal anticapitalista a serviço do socialismo. de seu material: os imaginários políticos alternativos ou as subjetividades
Que condições materiais influenciavam as produções de gênero da DEFA? indianistas. Os blockbusters cooptavam o popular em nome do potencial de
Cada longa-metragem dos estúdios custava um milhão de ostmarks e, de venda, mesmo quando eventualmente se dirigiam a movimentos de resis-
acordo com Ralf Schenk, tinha a obrigação de se apresentar de maneira “cla- tência. Os Indianerfilme eram certamente blockbusters socialistas com inten-
ra, sem ambiguidades e compreensível para todos”. Os Indianerfilme preen- ção de atingir um público para além da RDA e, ao mesmo tempo, manter
chiam muito bem essas categorias. Os salários da equipe cinematográfica o interesse doméstico em produções de incentivo governamental. Como
dependiam do sucesso dos resultados da bilheteria, embora em grau menor artefatos, esses filmes conseguiam relacionar o interesse do governo e de
do que nos regimes capitalistas. Com isso, produções ideologicamente mais sua plateia, estabelecendo um acordo geral de como opressão e resistência
seguras, que conseguiam atingir o Devisenrentabilität – a capacidade de an- deviam ser representadas, ao mesmo tempo que conseguiam aprovar um
gariar o mais que necessário dinheiro estrangeiro –, recebiam orçamentos playground socialista onde se poderia, com facilidade, mesclar narrativas his-
maiores e sofriam menos intervenções do estúdio. Esse tipo de produção tóricas marxista-leninistas com elementos de ação e fantasia guiados por
era restrito a alguns gêneros: os Marchenfilme (filmes de fantasia), os filmes um protagonista.
de aventura em 70mm e os Indianerfilme. O orçamento médio de um India- Por uma sorte do destino, da noite para o dia os Indianerfilme se trans-
nerfilm da DEFA, por exemplo, era de pouco menos do que 2.5 milhões de formaram no gênero de maior sucesso comercial disponível nos estúdios
ostmarks. A queda do poder de compra do ostmark na década de 80 resul- DEFA. De 1966 até 1985, a DEFA produziu 14 desses filmes na Europa
tou também na queda de produção do gênero. Como Stefan Zahlmann nos Oriental, a maioria tendo o ator sérvio Gojko Mitić como protagonista.
lembra, fatores estruturais – como a disponibilidade de materiais, o cachê Eles apresentam musculosos índios americanos sofrendo opressão e ativa-
dos artistas, novas tendências de produção a longo prazo e negociações mente resistindo ao expansionismo norte-americano. Os filmes tinham a
transnacionais – eram de absoluta importância no momento de dar o sinal intenção de projetar a solidariedade da Alemanha Oriental às lutas pós-co-
verde para uma produção da DEFA (Zahlmann, 2010, p. 14). Um ponto de lonialistas e ao (então) chamado Terceiro Mundo (especialmente o Vietnã), e
vista absoluto com relação aos aspectos políticos e/ou “subversivos” des- eram bem-recebidos em países orientais, como Polônia, Bulgária e Romênia.
4 7

Tim Bergfelder argumenta que, em vez de apresentar soluções fáceis e um que apresentavam truques indianistas: o veículo para o estrelato de Dean
mero espetáculo, os Indianerfilme se preocupavam mais com “autenticidade Reed, Irmãos de sangue (Blutsbrüder, 1975); o melodrama caça-níquel cultural
etnográfica e representação de realidades sociais”. Esse gênero de ficção Severino (1977); e o incompetente thriller O observador (Der scout, 1983), um
altamente convencional e controlado era aclamado por conceber histórias filme sobre um guia da Nez Perce que desmonta um grupo racista da União.
protéticas que, como Gerd Gemünden coloca, “revelavam bem mais acerca O sexto subciclo poderia ser reunido em torno de dois filmes que não fo-
das agendas políticas de seus criadores do que acerca dos objetos que pre- ram produzidos pelo grupo Roter Kreis – Blauvogel (1979), de Uli Weiss, e
tendiam representar”. Atkins (1985), de Helge Trimpert –, já que ambos lidam com algum aspecto
Os artefatos do gênero podem ser divididos em seis subciclos de material, secundário do universo indianista, mas sem a presença de Mitić.
dependendo da maneira como abordam história e ficção. O primeiro subci-
O I ndianerfilm como consumível
clo, o mais popular e lucrativo de todos, consistia em adaptações literárias:
Os filhos da Grande Ursa (Die Söhne der großen Bärin, 1966), baseada no livro A emergência dos Indianerfilme aparece como resultado do que Annette
homônimo de Liselotte Welskopf-Henrich, e Chingachgook, a grande serpente Deeken chamou de “o problema Karl May” – o simples fato de que o público
(Chingachgook, die große Schalnge, 1967), baseada no livro The Deerslayer, or alemão não cansa de consumir as populares histórias do bem contra o mal
the first warpath (1841), de James Fenimore Cooper. Após a adaptação desses da literatura indianista do autor Karl May, não importando as mudanças de
livros famosos, a DEFA começou a produzir suas próprias histórias indianis- tempo ou política. Nossos artefatos se assemelham mais aos conteúdos de
tas, o que desembocou em seu segundo ciclo, o dos chamados Entwicklungs- Karl May, a que se opunham, do que qualquer outro tipo de antiwestern. Os
trilogie (“A trilogia do desenvolvimento”). Esses filmes produzidos no fim da filmes da Alemanha Ocidental adaptados de Karl May, como O tesouro dos
década de 60 – A trilha do falcão (Spur des Falken, 1968), Lobos brancos (Weiße renegados (Der schatz im silbersee, 1962) e a trilogia Winnetou (1963-65), fil-
Wölfe, 1969) e Erro fatal (Tödlicher Irrtum, 1969/70) – eram construídos em mada na Iugoslávia e na Itália por Horst Wendlandt, foram imensos sucessos
torno de elementos cinemáticos, como perseguições em trens e lutas pelo de bilheteria em toda a Europa. Esses filmes tiveram ótimas carreiras, mesmo
petróleo. Esse subciclo estabeleceu o gênero regularmente nos Sommerfil- sendo vistos por críticos como meros pastiches dos “superiores” faroestes
mtage da Alemanha Oriental, cinemas a céu aberto com uma programação americanos de John Ford e Delmer Daves. O público da Alemanha Oriental,
de família. O terceiro subciclo consistia de adaptações das biografias reais que por anos vinha consumindo os livros de Karl May no mercado negro
de líderes aborígenes americanos, denotando um afastamento do gênero e assistindo aos faroestes da Alemanha Ocidental pela televisão, viajava até
kitsch em direção ao materialismo histórico. Osceola (1971) retrata o chefe Praga no início da década de 60, para assistir ao mais recente faroeste da
seminole que ajudou a libertar escravos na Flórida, enquanto que Tecumseh saga Winnetou, depois para assistir aos brutais westerns spaghetti e, por fim, ao
(1972) lança olhar sobre a traição do chefe shawnee na Guerra Francesa de escrachado faroeste tcheco Lemonade Joe (Limonádovy joe aneb konská opera,
1812. No fim desse subciclo, ficou claro para o grupo Roter Kreis, unidade 1964). O gênero interessava ao público do Bloco Oriental na medida em que
da DEFA responsável pelos Indianerfilme, que os pequenos prazeres repre- proporcionava um playground americano para explorar temas ligados às lutas
sentados pelas paisagens da Europa Oriental e pelas meticulosas sequências das minorias. E a palavra gênero, aqui, com certeza se coaduna com a definição
de ações dos filmes não ofereciam oportunidade para retratar seriamente não hierárquica estabelecida por Jörd Schweinitz: “um sistema intertextual,
as biografias dos líderes aborígenes. Portanto, vemos um retorno à estética estruturalmente aberto, de estereótipos”. A sensação que os habitantes da
spaghetti no quarto subciclo: Apaches (Apachen, 1973) e Ulzana (1974). O RDA tinham de que “eles viviam como que em uma reserva” delimitada pelo
quinto subciclo marca aquilo que gosto de chamar de período barroco do muro de Berlim, como bem colocou Holger Briel (2012), assim como os
gênero, quando, sem sucesso, o estúdio tentou renovar-se a partir de filmes famosos e tradicionais “clubes indianistas”, também ajudou a sedimentar o
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interesse na empreitada. Em suma, esses faroestes, em alguma medida, salva- mesma ideia, as qualidades da estrela dos Indianerfilme, Mitić, apontadas por
ram a indústria cinematográfica da Alemanha Ocidental. Em 1965, o embargo Gemüden – seu atletismo, sua beleza, sua sabedoria, sua afabilidade e seu
cultural do 11o Plenum da Alemanha Oriental resultou no confisco desses antialcoolismo – eram também computadas pela produção, embora esse
filmes e na demissão do criador da DEFA, Kurt Maetzig, de sua posição de bom comportamento nos bastidores (que ajudava na autenticidade e venda
chefe do Roter Kreis. Enquanto isso, Hans Mahlich e seu dramaturgo-chefe, dos filmes) tenha sido recompensado financeiramente apenas a partir do
Günter Karl, estavam trabalhando em uma adaptação alemã/tcheca/iugoslava terceiro filme que ele realizou com a DEFA. Outra crítica ao filme comum
da obra “anti-May” de Welskopf-Henrich – Os filhos da Grande Ursa – para a na época se referia à sua visão romântica do “bom selvagem”, uma críti-
televisão. Quando Maetzig foi substituído por Mahlich como chefe da Roter ca também feita posteriormente por estudiosos como Gemüden, Katrin
Kreis, a minissérie de televisão foi transformada em um longa-metragem de Sieg, Vera Dika, entre outros. Enquanto muitos de seus colegas destilavam
considerável orçamento, protagonizado por um estudante de Educação Física poesias para ressaltar a qualidade “realista” de Os filhos da Grande Ursa, o
relativamente desconhecido (Mitić) que se transformava em uma estrela. O crítico Manfred Haacke, da RDA, comenta que os “olhares penetrantes de
resto faz parte da História do Cinema. Mitić, assim como suas poses estoicas, não convenciam muito bem como
Os cineastas da Alemanha Oriental que criaram Os filhos da Grande Ursa forma de heroísmo real, muito menos como prerrogativa para determinar
e seu público pan-europeu viram-se preocupados com alguns grandes tópi- um trabalho artístico realista”. O dramaturgo Karl defendia publicamente
cos que, até hoje, a recepção acadêmica dos filmes só conseguiu reproduzir. seus filmes contra as críticas que os tachavam de racistas, argumentando
Um tópico foi a maneira como o gênero abraçou uma linguagem huma- que as narrativas Indianer não “sobreviveriam sem as qualidades românticas
nista de “entretenimento” (Unterhaltung), uma concessão para os veículos das paisagens e das vidas dos aborígenes americanos”.
culturais do Oeste, feita talvez em compensação simbólica pela seriedade Em outras palavras, a desconfortável posição desses filmes, que se situa-
dos assassinatos e da exploração dos aborígenes americanos. Isso permitiu vam entre a laudatória ambição de serem trabalhos solidários à resistência
que a Alemanha Oriental vendesse os filmes como shows de ação etnográ- aborígene contra o imperialismo e a não tão laudatória apropriação racial
ficos: um tipo de gênero ideologicamente aprovado pelo regime socialista, (por exemplo, europeus orientais vestidos de drag étnico), necessária para
quando outros – como o horror, a pornografia, o kung fu – eram proibidos. realizá-los, já havia sido resolvida internamente antes da exibição deles no
Por exemplo, o diretor Gottfried Kolditz envaidecia-se dos seus esforços cinema. Os alemães adoravam os pequenos exotismos, com um toque de
para aperfeiçoar as sequências de ação e de cavalgada em A trilha do falcão, realismo para embalar tudo. Além disso, as dimensões pós-colonialistas dos
acreditando que era uma forma de superar as dificuldades que futuras pro- filmes – como a figurativa luta de aborígenes americanos feitos de papel a
duções socialistas da mesma estirpe poderiam encontrar. favor dos diretos indígenas americanos, dos direitos civis norte-americanos
Outro tópico foi o afastamento ideológico dos filmes em relação aos ou da batalha contra o imperialismo dos EUA no Vietnã – eram armas para
faroestes racistas norte-americanos – com sua representação anônima e justificar a continuidade da produção governamental sob o escudo do dis-
vilanesca dos indígenas – e a preferência por índios representados como curso da solidariedade.
heróis e socialistas modelares. O pitch inicial de Mahlich e Karl para Os Citando Karl, a partir de um primeiro tratamento do roteiro de Osceola
filhos da Grande Ursa deixa isso bem claro: “nós vimos a oportunidade de (1971), ambientado em uma área próxima das plantations da Flórida, no ano
criar um Indianerfilm que se diferenciaria dos faroestes clássicos, que viam de 1830: “A discriminação sofrida por pessoas de cor não é um problema
os indígenas como uma massa anônima e hostil. Aqui, em vez dos brancos exclusivo do passado norte-americano, é também do seu presente... As ma-
opressores, os heróis para o público são os índios, que servem como mode- nifestações por direitos igualitários para pessoas de cor se fundem com
lo por sua coragem, sua luta e por seu amor pelas pessoas”. Partilhando da as manifestações contra a guerra suja travada no Vietnã”. Os diretores e
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o público da RDA tinham, portanto, três grandes formas de interpretar os Em um artigo de 2012 da New Yorker, “Socialist cowboys”3, Anna Altman en-
Indianerfilme: como uma amostra do cinema mundial violento, cinético, que fatiza as semelhanças entre os ideais do socialismo e a obsessão pelo India-
se popularizava no final da década de 60; como uma resposta socialista, de- ner, olhando-os como um processo amplo de compreensão do genocídio
safiante e virulenta, ao racismo e ao imperialismo do passado e do presente alemão e de construção de uma comunidade em torno de afiliações tribais.
americano, assim como às recentes atrocidades do Holocausto; e, por fim, Ela escreve: “aqui, vemos atores da Alemanha Oriental posando de cowboys,
como uma “paródia branca”, irônica, do faroeste, embora advinda de uma atuando em cenas de genocídio e arrebatamento étnico, expulsando co-
nostálgica alusão às fantasias proporcionadas pelo gênero. Com isso, os con- munidades indígenas aos gritos de ‘Nós iremos exterminá-los todos!’”. O
sumidores europeus conseguiam engajar-se em um diálogo popular acerca popular documentário DDR/DDR (2008), de Amie Siegel, insiste em utilizar
dos superpoderes da Guerra Fria, ao mesmo tempo que se afundavam em sequências dos Indianderfilme – em especial uma sequência de canoagem
fantasias pueris de conflitos maniqueístas, com direito a cavalos velozes e passada de trás para frente, extraída de Chingachgook – para ilustrar uma
explosões. metáfora socialista sobre rios que fluem em direção à nascente. Os movi-
mentos dinâmicos do corpo de Mitić, na apropriação de Siegel, exibe uma
O I ndianerfilm como resíduo de um processo
vitalidade dentro da fantasia socialista de uma temporalidade reversa: a bus-
Madeleine Casad argumentou recentemente que os Indianerfilme da ca por alternativas em relação à dominação da Alemanha Oriental pela Ale-
DEFA possuem valor enquanto objetos que resistem ao presente, tanto manha Ocidental, do cinismo do capitalismo por um socialismo reformulado
como “pós-Wende camp” quanto como importantes expoentes da identi- ou, na visão de Siegel, por um kitsch hipster. Enquanto isso, Alexander Osang
dade da Alemanha Oriental. Agora que os Indianerfilme provam ter sobrevi- escreve uma estranha pesquisa para encontrar Mitić e seu doppelgänger do
da com o VHS e o DVD – com vendas muito mais significativas que a maior Ocidente, Pierre Brice (que atuou como Winnetou na Alemanha Ocidental),
parte da coleção Icestorm –, muitas críticas da década passada não poupa- o que resultou na produção de um Indianerfilm em 2009: A última caminhada
ram esforços para tentar definir o legado dessa produção. Como era de se (Der letzte Ritt). Àquela altura, o Indianerfilm O sapato de Manitu (Der schuh
esperar dentro de uma economia global baseada no imperativo da moda, des Manitu, 2001) havia ultrapassado todos os recordes de bilheteria, poden-
isso resultou em um punhado de trabalhos deleitados com o frescor dos do financiar a aventura de Osang. No entanto, a reflexão de Osang sobre
filmes. Em “When westerns were un-American”3, J. Hoberman, ao fazer um um filme que não poderia ser produzido acaba caindo nas armadilhas do
resumo dos Indianerfilme, enfatiza as sugestões antifascistas, assim como o próprio gênero. Ele chama Mitić de “Chingachgook”, comentando – como
racismo não intencional das produções: fizera Reinhard Wengierek em 1982 – que o torso bem definido do ator era
Tribos indígenas, geralmente comandadas pelo musculoso Gojko
um meio de lutar contra os cowboys usurpadores.
Mitić, lutam contra variadas combinações de colonos avarentos, O télos dessas análises aparenta ser um desejo pós-Guerra Fria de deter-
oficiais militares maldosos, advogados corruptos e gananciosos minar os Indianerfilme. Algo elusivo sobre o socialismo parece estar incrus-
imperialistas. Povoados por avarentos caçadores de terra e pos- tado dentro do gênero, assim como algo racista e perverso (embora não
se, assim como por figuras de autoridade que estalam o chicote
mais do que em outras culturas cinematográficas). Embora os Indianerfilme
enquanto gritam em alemão para aqueles considerados racial-
mente inferiores (geralmente interpretados por eslavos), esses
nos convidem a uma leitura irônica, é quase impossível não cair no lugar co-
filmes possuem um subtexto não intencional. mum do que já foi dito sobre eles. Afinal, a maior parte das pessoas sabe tão
pouco sobre os Indianerfilme que pavonear sobre as inovações do gênero é
algo fácil, que rapidamente prende a atenção dos cinéfilos. Assim como Jim
3 “Cowboys socialistas”. Tradução livre.
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Collins descreve os filmes da década de 90 como constelações que rapida- discussões acerca do objeto, este artigo mantém a ideia de que os Indianer-
mente caem entre a categoria da “ironia eclética” e a da “nova sinceridade”, filme foram largamente subsidiados por um Estado que desejava utilizá-los
o coquetel de ironia e sinceridade elaborado pelos Indianerfilme dos anos para reconstruir sua plateia de cinema, assim como angariar capital estran-
60 e 70 obriga o crítico a tomar uma posição: ver Mitić como um indígena geiro. Mitić foi a verdadeira e única estrela da RDA – ele tinha um passaporte
abertamente fake, com o rosto pintado, enquanto realiza stunts autênticas, Iugoslavo, poderia ter ido embora, mas não foi –, o que forçou o Estado a
representando a luta de uma minoria contra um inimigo do século XIX que adotar um discurso irônico com relação a esses filmes.
aparenta estar igualmente presente nas décadas em que os filmes foram Os filmes eram intencionalmente produzidos como artefatos de resis-
criados. Por outro lado, enquanto essas décadas se afastam no tempo e na tência, como brinquedos que não apenas satisfaziam a população, mas que
história, involuntariamente nos aproximamos desses filmes como de um também operavam como um playground Indianer que acalentava a esperança
tipo de Guerra nas estrelas (1977) socialista: um universo tosco e desconexo de superar as dificuldades coletivas como uma “tribo” socialista.
que, no entanto, acertou todas as notas nostálgicas e emotivas do público
Ver esses filmes tanto como um mundo secundário imersivo – para
da Europa Central e Oriental, acostumado tanto à ironia (com relação à
“brincar de índio”, por assim dizer – quanto como uma confluência trans-
sua presente circunstância) quanto à sinceridade (com relação aos crimes
nacional de ideias e pessoas nos ajuda a começar a desvendar esse movi-
alemães e soviéticos do passado).
mento duplo de aulas objetivas de História e entretenimento de massa.
Mitić é autêntico, seus filmes dialogam com a verdadeira história aboríge- Eles representam o encontro de uma estética socialista com meditações
ne americana e incluem detalhes que se alimentam de arcos simplórios de sóbrias sobre a História e selvagens fantasias alemães nas paisagens de uma
vingança e narrativas reedificadas. Assim como Guerra nas estrelas, os India- Europa Oriental americanizada.
nerfilme forjam um universo secundário imersivo, no qual a admiração pode
ser, ao mesmo tempo, irônica e sincera. Todos podem acessar esse univer-
Tradução: Thiago Brito
so de maneiras distintas e ainda contribuir para o desenvolvimento de seu
conteúdo. Mahlich e Karl criaram um universo narrativo prático que podia
caminhar ao lado da “marca” socialista, sem romper com os universos narra-
tivos cuidadosamente orquestrados pelo partido da SED4. Um mundo onde
os alemães orientais podiam inventar seus próprios massacres de indígenas
norte-americanos (como em Irmãos de sangue), para construir um universo
alternativo de opressão e resistência, como artefatos que proclamam aulas
objetivas sobre a resistência indígena americana que uma criança de 6 anos
e um homem de 40 anos podem contemplar igualmente. Dika (2007) diz
que o Indianerfilm estava “utilizando a capa” de um gênero norte-americano
quando acabou, e tanto Broe (2012) quanto Dika afirmam que, debaixo da
capa desses filmes de gênero, encontra-se um perdido desejo por unificação
e por um socialismo alternativo. Esse “desejo” pode ainda estar vivo, mas não
sem a contrapresença de uma boa e velha hegemonia. Partindo-se de velhas

4 Sigla do Partido Comunista Alemão.


5 5

I N D I A N E R F I L M E:
ESPETaCULO, REALISMO, AbSTRAcaO
por Luís Alberto Rocha Melo

O lugar que uma época ocupa no processo histórico pode ser determi-
nado de modo muito mais pertinente a partir da análise de suas discretas
manifestações de superfície do que dos juízos da época sobre si mesma.
(Siegfried Kracauer, “O ornamento da massa”, 1927)

Embora o western tenha entrado para a história como o “cinema


americano por excelência”, é inegável que se trata de um gênero trans-
nacional. Como exemplo mais evidente, basta citar os famosos spa-
guetti westerns, hoje tão cultuados quanto os clássicos hollywoodianos.
Mesmo aqui no Brasil tivemos uma considerável produção de bangue-
-bangues caboclos, desde o período silencioso (Sofrer para gozar, E. C.
Kerrigan, 1923), passando pelo ciclo de Santa Rita do Passa Quatro (Da
terra nasce o ódio, Antoninho Hossri, 1954), até o da Boca do Lixo (Rogo
a Deus e mando bala, Osvaldo de Oliveira, 1972), em uma tradição que
segue dando frutos, ainda que esparsos, no cinema independente atual
(Faroeste, Abelardo de Carvalho, 2014).

OS FILHOS DA GRANDE URSA (1966)


5 7

Apesar disso, é possível que para o espectador de hoje cause certa es- mais escapistas e ingênuos do que muitos filmes europeus, hollywoodianos,
tranheza associar faroeste a cinema alemão. O senso comum nos diz que japoneses ou brasileiros. Afinal, os Indianerfilme da DEFA, a exemplo dos
ambos seriam instâncias praticamente incompatíveis. Nem sempre foi assim. faroestes produzidos pela Alemanha Ocidental, também almejavam sucesso
Na década de 1960, os faroestes alemães frequentaram com regularidade popular e circulação fora dos limites internos – o que de fato aconteceu,
nossas salas de exibição. No Rio de Janeiro, por exemplo, os circuitos Bruni, sobretudo em países do Leste Europeu alinhados à União Soviética, como
Condor e Art-Palácio (que em suas programações mesclavam filmes euro- Polônia, Hungria, Iugoslávia e Tchecoslováquia.
peus “de arte” com produções de franco apelo popular) devem ter obtido Os faroestes do Gruppen Roter Kreis, quase todos estrelados pelo ator,
boas receitas com títulos como Tesouro dos renegados (Der schatz im Silber- roteirista e ex-dublê de origem sérvia Gojko Mitić, faziam uma espécie de
see, Harald Reinl, 1966), O mão de ferro (Old Surehand, Alfred Vohrer, 1967), síntese de espetáculo peplum com realismo socialista, de Chapaev com Tar-
Um homem chamado Gringo (Sie nannten ihn Gringo, Roy Rowland, 1968) e O zan, sem deixar de responder aos faroestes da Alemanha Ocidental nem
vingador de Arkansas (Die Goldsucher von Arkansas, Paul Martin, 1968). Sem fa- de dialogar com a tradição da literatura popular alemã e estadunidense,
lar da trilogia Winnetou, dirigida por Harald Reinl e baseada na obra de Karl incorporando, ainda, as renovações do gênero western verificadas a partir
May: A lei dos Apaches (1964), A saga continua (1965) e A trilha dos desalmados de 1950 – o metawestern, como prefere André Bazin – e as marcas do estilo
(1966), certamente as mais bem-sucedidas de todas essas produções. italiano. Os Indianerfilme carregam, assim, as contradições típicas de um pro-
Naquela época vivíamos sob a ditadura militar, em um regime de repressão jeto altamente controlado pelo Estado e ao mesmo tempo comprometido
e censura que se tornou ainda mais violento a partir de 1968. Os faroestes com o mercado: as fórmulas narrativas mais convencionais convivem indis-
germânicos que então assistíamos eram provenientes da Alemanha Ocidental. ciplinadamente com soluções e achados de surpreendente inventividade.
Talvez não imaginássemos que, do outro lado do muro de Berlim, na comunis- Verifica-se, assim, nos Indianerfilme, a permanência de um esquema geral
ta República Democrática Alemã, fossem produzidos faroestes vermelhos, nos que sustenta a trama épica: a ação perversa do capital, aliada à violência
quais o índio era o herói e os vilões eram os brancos colonizadores (euro- do invasor branco, desagrega as comunidades indígenas, que, no entanto,
peus e/ou norte-americanos). Os contextos históricos traçados na série de resistem como podem. No interior desse grande esquema, as variações es-
14 filmes realizados entre os anos 1960-80 pelo Gruppen Roter Kreis (Grupo tilísticas e combinações dramáticas mudam de título para título, bem como
Círculo Vermelho), uma das unidades de produção da estatal DEFA (Deutsche as referências temporais e geográficas e os embates entre grupos e etnias.
Film-Aktiengesellschaft), situavam a guerra entre brancos e índios em termos A opção ideológica pela causa indígena não era, em si, uma novidade. Ela
claramente anticapitalistas, apontando para a solidariedade entre os oprimi- já estava presente em filmes hollywoodianos, como Flechas de fogo (Broken
dos e a capacidade de resistência dos povos originários. Se mais acima suge- arrow, Delmer Daves, 1950), O caminho do diabo (Devil’s doorway, Anthony
rimos uma possível estranheza que o cinéfilo contemporâneo poderia sentir Mann, 1950) e Apache (Apache, Robert Aldrich, 1954), ou mesmo em um
diante da relação entre o gênero faroeste e o cinema alemão, agora tratamos clássico anterior, como Sangue de heróis (Fort Apache, John Ford, 1948). A
de uma ignorância comum a várias gerações: até o presente momento, os própria saga Winnetou, já mencionada, servia como bem-sucedido preceden-
faroestes comunistas da Alemanha Oriental (os Indianerfilme) permaneceram te para os filmes da DEFA. Mas o que torna os Indianerfilme particularmente
para nós como objetos praticamente desconhecidos. interessantes é a forma como, aliando a pretensão de uma verdade histórica
Isso não significa dizer que, se tivessem sido exibidos aqui nos anos 1960- a um altíssimo grau de artificialidade na encenação e no tratamento formal,
70, seriam classificados como filmes perigosos ou subversivos. Ao contrário, eles atingem a abstração necessária para viabilizar uma dupla leitura – tan-
provavelmente seriam consumidos como qualquer outro produto da indús- to como filmes de aventuras populares quanto como um discurso afinado
tria cultural capitalista, correndo mesmo o risco de serem considerados até com a agenda do Partido Socialista Unificado Alemão. De forma paradoxal,
5 9

conseguem renovar os limites de um ultrapassado e caquético realismo so- fantasiosa ou espetacular) e como fonte de reflexão sobre a história atual
cialista pela via da subversão kitsch e da metalinguagem inerente à paródia, – reflexão que, vale sublinhar, de forma alguma exclui o entretenimento, o
ao mesmo tempo que reforçam os parâmetros do western clássico trocando humor e a diversão.
os sinais de heroísmo e vilania. Assim, se em Apache (Apachen, Gottfried Kolditz, 1973) o Holocausto, a
A própria presença de um astro como Gojko Mitić, que nos filmes sempre guerrilha no Terceiro Mundo e o Vietnã indiretamente são abordados, em
interpreta o líder indígena, inscreve o espetáculo no terreno dos grandes Osceola o tema da escravidão no sul dos EUA aproxima as lutas de índios e
contrastes. Seu corpo atlético em relação aos demais índios que o cercam negros.Vale lembrar que esse último filme é uma coprodução entre a DEFA
(quase todos frágeis, demasiadamente humanos) realça o jogo de figura e fun- e o ICAIC (Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos), para o
do que interessa ao “herói positivo”, sob medida para o deleite das audiências qual a escravidão e a proximidade geográfica com a Flórida – região em que
e para a eficiência da propaganda ideológica. O que importa aqui certamente diegeticamente se passa a história de Osceola – eram assuntos de enorme
não é a verossimilhança, mas o jogo de exibição/submissão de corpos que interesse. O caráter possivelmente alegórico desses faroestes, porém, não
cumprem funções de representação histórica. Nesse jogo, apenas um herói se sobrepõe jamais à economia do espetáculo popular e às exigências mí-
se destaca: o chefe índio. Na pirâmide dramática, ele está sempre acima dos nimas de plausibilidade na reconstituição de época, provavelmente porque
demais, embora em filmes como A trilha do falcão (Spur des Falken, Gottfried um eventual afastamento da receita básica de um realismo domesticado
Kolditz, 1968) ou Osceola (Osceola, Konrad Petzold, 1971) apareça como um (verossímil, isto é, conveniente) também não interessaria à censura imposta às
entre vários outros personagens importantes, como a enfatizar a qualidade unidades de produção ligadas à DEFA.
máxima do verdadeiro líder, isto é, o sentimento de solidariedade. De resto, as próprias referências estilísticas apropriadas e retrabalhadas
Mantendo-se a um só tempo acima e ao lado dos demais, os protagonistas pelos Indianerfilme acabam servindo a propósitos não exatamente óbvios.
vividos por Mitić também não deixam de obedecer à fórmula do herói me- Por exemplo, apesar da exploração do físico de Gojko Mitić, responsável in-
diano preconizada pelo realismo crítico: chamado a desempenhar um papel clusive pelo sucesso desses filmes entre o público feminino, é de se notar a
decisivo em algum momento histórico específico, esse personagem que até quase total ausência do erotismo exacerbado associado à violência, um dos
então vivia como os demais as contradições fundamentais de seu tempo é traços típicos dos spaguetti westerns, mesmo em filmes como Apache (1973)
alçado à posição de tipo. Curiosamente, ao situar as histórias em um país e e Ulzana (Ulzana, Gottfried Kolditz, 1974), bastante influenciados pelo estilo
em um passado remotos (os Estados Unidos do século XIX), os Indianerfil- italiano. O pudor em apimentar as cenas entre homens e mulheres não
me esvaziam o caráter teleológico do esquema realista, ao mesmo tempo se deve apenas à intenção de abranger um público mais amplo (incluindo
que se engajam no presente. A opção pela história dos vencidos (os índios) crianças e adolescentes), mas também às premissas de um realismo “sadio”,
impede que o possível “final feliz” típico dos westerns se concretize. O clichê que associa erotismo a decadência moral. Esse é um dos aspectos que sem
do cowboy que se afasta rumo ao horizonte das pradarias banhado pelo pôr dúvida realçam o conservadorismo intrínseco aos Indianerfilme. Erotizar a
do sol, imagem típica do cinema clássico hollywoodiano, é aqui substituído história dos vencidos seria quebrar uma das principais regras da representa-
pela amarga incerteza do futuro. Afinal, embora na trama os índios vençam, ção maniqueísta sobre a qual está estruturado o código dramático dos fa-
trata-se de uma vitória circunstancial, que se dá no curso de uma história roestes vermelhos da DEFA, para os quais é a civilização que comporta o vício
da qual já sabemos de antemão o final: os índios foram – como continuam e a perversão, em contraposição ao mundo virtuoso e puro dos indígenas.
sendo – exterminados pelos brancos e pelo avanço do capitalismo. Daí a Isso explica também o fato de que, nesses filmes, à diferença do que ocorre
dupla conclusão a que se chega: a história dos vencidos deve ser relida e na maior parte dos faroestes hollywoodianos clássicos, é possível encontrar
atualizada, e nesse processo reafirmada como memória coletiva (ainda que personagens femininas más e cruéis – como a filha loura do fazendeiro es-
6 1

cravocrata, em Osceola –, para as quais não existe “salvação” possível, nem cinema abstrato, que remete à sua experiência como cinegrafista da cineasta
mesmo uma possível rendenção por meio do casamento ou do sacrifício. A Leni Riefenstahl em Olympia (Olympia, 1938).
luta de classes conforma os destinos. A ligação de Leni com o nazismo a separa da trajetória de Groschopp,
O compromisso com a eficiência nos efeitos de realismo deve ter garan- mas não deixa de ser irônico que em Chingachgook o atletismo dos corpos
tido aos Indianerfilme dos anos 1970 maior credibilidade junto ao público, em movimentos sincronizados e a predominância das linhas geométricas
apesar de acarretar também alguma perda na inventividade da narrativa. Tal- reapareçam como fundamento da encenação, embora dessa vez a serviço
vez por isso um filme como Chingachgook, a grande serpente (Chingachgook, de um mundo de forças naturais que busca o livre curso de suas energias
die große Schlange, Richard Groschopp, 1967) apareça no conjunto dessas incontidas. Essa ironia não deve ter passado despercebida pelo Gruppen Ro-
produções como um corpo estranho, ainda mais se comparado à encenação ter Kreis: em seu estilo deslavadamente autoparódico, Chingachgook restou
sóbria do filme anterior, que inaugura a série, Os filhos da Grande Ursa (Die como “ovelha negra”, apartada dos demais irmãos, filhos comportados da
Söhne der großen Bärin, Josef Mach, 1966) e dos títulos seguintes. O fato de “Grande Ursa”.
Os filhos da Grande Ursa ser baseado na novela de Liselotte Welskopf-Henri-
ch, uma das mais reconhecidas escritoras da República Democrática Alemã,
talvez justifique a reverência de seus adaptadores. Chingachgook, por outro
lado, é baseado na obra do autor norte-americano James Fenimore Cooper,
o que, a princípio, poderia nos fazer supor que o tom deliberadamente pa-
ródico e fantasioso do filme seria decorrência dessa escolha.
O fato é que Chingachgook é um dos filmes mais surpreendentes e am-
bíguos no conjunto da produção dos Indianerfilme. As cores vibrantes e a
encenação coreografada nos lembram bem mais um espetáculo musical do
que um faroeste. A rigorosa marcação dos atores às vezes cria relações
espaciais antonionescas, mas logo em seguida tudo se transforma em história
em quadrinhos. Aliás, é preciso ressaltar a excepcionalidade do trabalho
fotográfico de Otto Hanisch, que a Chingachgook imprime um estilo bem
diverso dos demais filmes da série. Além do uso constante de cores primá-
Luís Alberto Rocha Melo é realizador independente, pesquisador
rias – o vermelho e o azul, por exemplo –, que mimetizam e estilizam nos e professor do Curso de Cinema e Audiovisual e do Programa de
cenários interiores e nas locações externas os ambientes e adereços indí- Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens da UFJF. Dirigiu os
genas, há uma preocupação constante em trabalhar os contornos táteis das longas-metragens Um homem e seu pecado (ficção, HD, 2016), Nenhuma
figuras, em destacá-las do fundo sem fazer uso das teleobjetivas, em filmar a fórmula para a contemporânea visão do mundo (ficção, HD, 2012) e Legião
natureza de maneira a criar massas compactas de cores e linhas geométri- estrangeira (doc., HD, 2011); o curta-metragem em 35 mm Que cavação
cas que beiram o abstracionismo. é essa? (ficção, 2008) e o média-metragem O Galante Rei da Boca (doc.,
DV, 2004). Seu primeiro trabalho como diretor foi Alex Viany – Um
Talvez esse resultado se deva à própria formação de seu realizador. Em
documentário em vídeo (1990), seguido pelos experimentais O desejo de
Chingachgook, o velho Richard Groschopp (que iniciou sua carreira no cine- Deus (1992), A projeção no cinema (1993), Fernando Py (1994), Fragmentos
ma silencioso, como cineasta amador, e se dedicou durante anos ao cinejor- – Uma narrativa intranquila (1997) e O trapezista (1999). Foi redator das
nalismo) não deixa de retrabalhar em novas bases uma certa modalidade de revistas de cinema Contracampo e Filme Cultura.
6 3

CSIKOS, PUSZTA, GOULASH:


1

OS IMAGINaRIOS DA FRONTEIRA
HuNGARA EM O VENTO ASSObIa
SOb OS PeS E A FUGA DE bRADY 1
2

por Sonja Simonyi

Este artigo explora o conceito de fronteira, central no gênero do


faroeste, e sua função em dois filmes húngaros produzidos no período
socialista. Aderindo às convenções do western por meio da apropriação
de suas metáforas visuais e narrativas, essas produções exploram uma
realidade cultural e histórica diferente. Fundamental para as reflexões
sobre o contexto sociocultural específico da Hungria é a representa-
ção, em ambos os filmes, do Hortobágy, uma extensão de planícies no
nordeste do país. Codificado com complexidade tanto nacional como
transnacionalmente, esse território tem função-chave em ambos os lon-
gas-metragens, atuando tanto como redondezas que instantaneamente
evocam o Velho Oeste quanto como uma realidade cheia de significado
histórico e cultural que expressa a identidade nacional húngara.
Enquanto o filme de 1976, O vento assobia sob os pés (Talpuk alatt
fütyül a szél), dirigido por Gyorgy Szomjas, anunciava uma apropriação
explícita do gênero, revisitando a região rural de Habsburgo no início
do século XIX, a coprodução húngaro-americana A fuga de Brady, de

1 No original: Csikós, puszta, goulash: Hungarian frontier imaginaries in


“The wind blows under your feet” and “Brady’s escape”. Publicado na
edição 4, de dezembro de 2013, no Frames Cinema Journal. Tradução de
Pedro Henrique Ferreira e Thiago Brito. De modo a adequá-lo ao objetivo
central de nosso catálogo, os organizadores decidiram por traduzir e publicar
um excerto do trabalho total de Sonja Simonyi (N. do O.).

2 Planícies húngaras, caracterizadas como estepes (N.do T.).

O VENTO ASSObIa SOb OS PÉS (1976)


6 5

1984, focava em um momento histórico mais recente, colocando a aventu- Um sentimento de ambiguidade, de estar “entre lugares”, característica
ra dentro do contexto da Segunda Guerra Mundial. Apesar dos períodos que compartilha com a maioria dos países do Leste Europeu, é algo essen-
divergentes retratados em ambos os trabalhos, os dois fazem um uso cons- cial para a identidade cultural do país. Tais ideias estão enraizadas histori-
ciente da iconografia do faroeste e do seu imaginário, reposicionados em camente na posição da região, uma zona geográfica fluida entre a Europa
uma realidade cultural singular, e mostram uma ambiciosa dedicação ao re- e a Ásia. E sua atual condição de território com longos conflitos políticos,
constituir os ambientes húngaros como universos cinematográficos críveis. militares e étnicos, com uma identidade regional complexa e flutuante, evo-
A exploração de uma identidade por meio dos marcos visuais do país é ca a imagem de uma área fronteiriça. Essa noção tem sido central tanto
fundamental para esse processo em ambos os filmes. Porém, enquanto eles para as conceptualizações feitas no estrangeiro quanto para as identidades
empregam praticamente os mesmos símbolos associados à cultura nacional, nacionais que se formaram em certas nações do continente a partir do
esses motivos exercem funções diferentes em cada caso. Szomjas utiliza-os século XIX. Localizados entre o Leste e o Oeste, uma imagem reforçada
de forma autorreflexiva, irônica e crítica. Já em A fuga de Brady, esses ícones pela teoria, frequentemente contestada, de que as origens do povo húngaro
tornam-se parte de uma sanção passiva de formas visuais exóticas, que ga- são asiáticas, “os estereótipos do povo magiar e a imagem que ele faz de si
nham a dimensão de um background imagético para as aventuras dos solda- mesmo oscilam entre dois polos”. Essas visões construídas historicamente,
dos norte-americanos em um país estrangeiro. uma negativa e a outra idealizada, perpassam tanto a historiografia quanto
a literatura. Ainda, há contextos culturais mais amplos, que identificam os
Para entender a razão do simbolismo nesses filmes, especialmente das
húngaros, de um lado, como “bárbaros asiáticos, nômades, cavaleiros vora-
conotações dadas ao característico terreno húngaro em ambos, é funda-
zes e errantes, malcolocados na civilização europeia” e, do outro, especial-
mental estabelecer algumas referências históricas ⎼ das quais surgem a iden-
mente durante a era do romantismo, como “uma imagem exótica de uma
tidade da Hungria e principalmente a topografia da puszta ⎼ e os modos
Hungria amante da liberdade, o que envolve os ingredientes pitorescos dos
pelos quais essas questões se relacionam com um processo mais amplo de
huszárok (hussardos), cigányok (ciganos), puszta (estepes húngaras) e csárda
criação de mitos e de expressão da identidade nacional.
(casas na puszta)”, como László Marácz resume suscintamente.
A H ungria nas fronteiras europeias
As G randes P lanícies H ú ngaras:
A importância da fronteira como uma construção histórica e cultural o espa ç o da fronteira nacional
vem sendo irrevogavelmente associada a expressões da identidade nacional
As Grandes Planícies Húngaras foram mapeadas como uma realidade mí-
norte-americana, em particular por meio do trabalho do historiador Fre-
tica importante para essas ideias mencionadas anteriormente. Sendo uma
derick Jackson Turner. Em sua obra “Teses sobre a fronteira” (1893), Turner
vasta extensão de território que engloba planícies e pantanais, elas foram
estabeleceu uma conexão singular entre o Oeste americano, visto por ele
apontadas como o lugar onde os ancestrais nômades dos magiares se fi-
como uma região fronteiriça peculiar, e os valores políticos e culturais da
sociedade norte-americana. Esse conceito de fronteira, que Turner desen- xaram, por volta do século IX. Sítio de conflitos militares que duraram até
volveu a partir da cultura europeia, influenciou fortemente representações o fim do século XVII, principalmente entre a Monarquia de Habsburgo e
do Oeste em vários meios culturais populares, sobretudo no cinema. Mas, o exército turcomano, a área permaneceu como uma região de povoados
embora seja inegável a centralidade da experiência regional na expressão afastados entre si. Somente na segunda metade do século XIX é que se
da cultura norte-americana, a fronteira como uma construção histórica e desenvolveram, em meio a revoltas populares, atividades econômicas e agrí-
cultural também vem sendo central para vários frameworks geográficos dife- colas mais concretas.
rentes, dos quais a Hungria se mostra um notável exemplo.
6 7

A estrutura étnica, social e economicamente complexa da região, so- período no Leste Europeu estava ligado a descrições românticas dos terrenos
mada a um notável cenário de espaços abertos infinitos, foi um elemento e povoados. A puszta efetivamente evocava ideias de liberdade e amplitude
central na descrição de viajantes que passaram pela região. A possibilidade por conta de suas paisagens infinitas e cativantes. Desse modo, a região de
de elaboração do imaginário desse território húngaro é importante para a Alföld, o berço da nação húngara, teve papel central no desenvolvimento da
construção de mitos internos e externos. Na maioria das vezes, os internos consciência nacional ao longo do século XIX, como é expresso pela literatura,
são estabelecidos por meio de paralelos com as imagens icônicas do Velho pela poesia e pelas artes plásticas do período. Voltando-se para o complexo
Oeste norte-americano. O layout de modestas casas espaçadas entre si, que caráter da região, essas representações buscavam administrar a dupla identi-
pontuam um extenso território desértico, a economia baseada em ativida- dade da nação com aparência ocidental, enquanto exploravam e idealizavam a
des pastorais, como criações de gado e corridas de cavalo, e a frequente imagem distante, de raízes não europeias, do povo húngaro.
presença de pessoas fora da lei até o século XIX também contribuíram para Durante o século XX, as imagens da puszta circularam de forma ampla,
a identificação da área como uma região fronteiriça remota, solidificando tanto domesticamente quanto em contextos estrangeiros, por meio da ex-
sua imagem verossímil de um Velho Oeste oriental. pansão do campo visual da cultura de massa, incluindo revistas ilustradas,
A descrição da Hungria de 1869 feita pelo acadêmico britânico Arthur diários filmados e noticiários, que se ligaram fortemente ao desenvolvimen-
John Patterson nos fornece uma ilustração verídica dessas formulações so- to turístico. A região foi redescoberta por esses meios, bem como seus
bre a puszta. Em seu texto, ele dá ênfase tanto às oportunidades econô- peões e camponeses, celebrados por etnógrafos, fotógrafos e cineastas no
micas da nação e ao desaparecimento de seu “solo virgem” quanto aos período entreguerras. Hortobágy (1936) é um exemplo notável ⎼ um filme
ecos visuais que o lugar apresenta dos “recém-plantados assentamentos nas lírico, dirigido pelo austríaco Georg Hollering, que usou atores não pro-
bordas do oriente selvagem” da América. O ensaio em duas partes de A. N. fissionais (os peões, ou csikós da região, interpretavam a si mesmos) para
J. den Hollander, “A Grande Planície Húngara: a área fronteiriça da Europa”, contar a trama da expansão da agricultura ⎼ sua interferência nos modos
de 1960, nos apresenta um estudo mais recente e fundamental, que define de vida equestres daquela cultura e as tensões dela resultantes. A narrativa
as planícies como uma região fronteiriça, embutindo nela as representações fragmentária do filme, que revela temas também explorados nas histórias
icônicas da região a partir de uma pesquisa histórica e socioeconômica. Ele dos westerns, serve apenas como pano de fundo para as cenas visualmente
argumenta que o subdesenvolvimento e o afastamento da região continua- estonteantes dos nobres habitantes da puszta.
ram a ser suas principais características ao longo da era da modernização. O processo de coletivização soviética em grande escala, implementado
Que as metáforas comuns associadas à fronteira se mantiveram nas repre- em diversas áreas rurais de boa parte do Leste Europeu imediatamente
sentações da puszta, apesar das grandes transformações que a região sofreu, após a Segunda Guerra Mundial, trouxe grandes consequências para a es-
graças às numerosas mudanças socioculturais e políticas ocorridas durante trutura social e para o território da região. Boa parte das Grandes Planícies
o século XX, é algo que pode ser testemunhado pela circulação desse ima- Húngaras foi transformada, por meio da redistribuição do solo, para acomo-
ginário em publicações de caráter turístico, que ainda hoje perpetuam a dar uma indústria de agricultura de grande porte, o que resultou em reas-
identidade do “Velho Oeste” como a essência da cultura húngara. sentamentos obrigatórios da população local. Os anos 60 são normalmente
Em paralelo a esses desenvolvimentos, a puszta se tornou, do século XIX associados à abertura da maioria dos sistemas ditatoriais do Leste Europeu,
em diante, um forte símbolo de identidade nacional ⎼ uma representação processo que se refletiu no crescimento de sentimentos antissoviéticos de
que, durante o período socialista, continuou a afetar a autoimagem que o diversos níveis entre as elites políticas desses países. Genericamente falan-
povo húngaro fazia de si mesmo, como os filmes aqui discutidos ilustram.Vale do, a exaltação forçada do internacionalismo comunista do início do perío-
ressaltar que o processo de celebração da identidade nacional durante esse do do pós-guerra coexistia, àquela altura, com um interesse renovado pelos
6 9

inócuos símbolos da nação, bem como por seus motivos folclóricos popu- desse longa-metragem de maneira implícita, particularmente por meio do
lares, que serviam de base para formar a coerência nacional, utilizada como uso da região como ícone nacional ⎼ o Hortobágy substituindo as vistas do
ferramenta para legitimar a ideologia socialista dentro de um dado Estado. Monument Valley, tão poderosas nos principais filmes de Ford. É também
Como sugerido anteriormente, o desenvolvimento e a circulação do importante notar que a linguagem visual de Jancsó impactou profundamente
imaginário da puszta no século XX estão intimamente ligados ao campo a forma como o cenário da puszta foi retratado no cinema húngaro a partir
turístico. O turismo, sob o regime socialista, também servia para solidificar a da década de 1960.
coesão nacional por meio de marcos geográficos cultural e historicamente A análise a seguir refere-se às questões mencionadas anteriormente. Ela
significativos. Durante os anos 1970, o Hortobágy passou por transforma- relaciona as expressões visuais da identidade histórica da Hungria com al-
ções consideráveis, tornando-se um parque nacional em 1972, com o turis- gumas das ricas referências intertextuais que os filmes evocam na avaliação
mo já estabelecido como a principal indústria daquela área. A atividade dos divergente que fazem do simbolismo da região do Hortobágy. Dessa forma,
peões tornou-se sustentada por esse campo de expressão, à medida que as essas aventuras cinematográficas correspondem à cultura profundamente
habilidades dos csikós eram transformadas em performances para as lentes enraizada histórica e culturalmente da puszta e, por extensão, a toda a cultu-
locais e estrangeiras. Sua forte identidade de seres da planície era cada vez ra húngara, abordando de diversas formas as especificidades dessa imagem
mais reduzida a uma atração turística trivial. manufaturada.
A centralidade da puszta foi também sustentada pelo cinema e pela tele-
visão do período. Por exemplo, a cultura dos homens fora da lei, típica do
O vento assobia sob seus pés
século XIX, foi explorada na série de televisão de Miklós Szinetár, Rózsa O vento assobia sob seus pés, primeiro longa-metragem de Szomjas, é
Sándor (1971), que narrava as aventuras de um famoso bandido envolvido ambientado na década de 1930 e narra os esforços de camponeses para
com o levante de 1848 contra a Monarquia de Habsburgo. Filmado no Hor- implementar um sistema de drenagem dos pântanos da área do sudeste
tobágy, o programa utilizava-se de motivos folclóricos populistas: os campo- do Alföld, conhecida como Nagykunság. O plotline do filme descreve uma
neses representando a classe dos trabalhadores, sob uma visão idealizada reconhecida trupe de fronteira, representante de antigos e tradicionais cos-
da paisagem que desnudava uma Hungria romântica, idílica, na qual os feitos tumes, transposta para os platôs da puszta. O filme relaciona-se, portanto,
heroicos de Rózsa eram executados. Uma investigação anterior, rigorosa- com um período histórico crucial do desenvolvimento dessa área: entre o
mente formal, que desestabilizava esse imaginário da puszta no momento início e meados da década de 1800, antes de sua transformação em uma
histórico do século XIX, havia sido apresentada no seminal Os sem esperan- importante região agrícola, um tempo em que homens fora da lei ainda
ça (Szegénylegények, 1966), de Miklós Jancsó. Passando-se após a revolução perambulavam a cavalo pelas estepes. Embora alguns faroestes das décadas
de 1948, o longa-metragem é centrado em um grupo de camponeses que de 60 e 70 abordassem conflitos similares acerca da lenta industrialização
são presos e questionados pelas autoridades por terem ligação com a figu- da Hungria para retratar injustiças sociais, o que envolvia uma resistência
ra revolucionária de Rózsa. Filmada na puszta com um estilo rigoroso, que ativa por parte dos camponeses (com frequente auxílio de um fora da lei),
alterna planos distantes com close-ups e apresenta padrões de pessoas e Szomjas afastava-se de uma crítica tão aberta ao desenvolvimento social
cavalos filmados com uma precisão geométrica, a paisagem abstrata dessa capitalista. No contexto cultural da Hungria socialista, é exatamente a au-
produção subverte a mitologia iconográfica e investiga as complexas rela- sência da representação de um herói fora da lei com toques de Robin Hood
ções de poder no processo histórico da região. É importante notar que os ⎼ que Eric Hobsbawn chamou de “bandido social” ⎼ que pode ser vista
filmes de Jancsó ecoam os atributos formais do western de um modo geral, e como uma notável reformulação do ambiente de fronteira dentro do país.
os de John Ford em particular. Essa é uma influência que invade a linguagem Assim, a superficial fábula anticapitalista acerca da modernização agrícola é
7 1

preterida, dando-se preferência a uma representação estilizada das planícies Um plano cuidadosamente encenado que, por meio de um intertexto, faz
fronteiriças húngaras e da potência simbólica imagética associada a ela. As alusão à icônica representação da puszta na pintura, na fotografia e no cine-
planícies funcionam perfeitamente bem dentro de um sistema representati- ma. Mas esse plano, aparentemente pitoresco, é subvertido no minuto em
vo de fronteira, de maneira que Szomjas pode cuidadosamente desconstruir que o close dos pés do homem revela que, descalço, ele está em cima de um
o universo puszta e seus habitantes, assim como a visão idílica húngara que amontoado fresco de esterco de vaca, de maneira que a imagem da terra
eles representam. Em uma entrevista, o diretor descreve o filme como uma húngara que tudo dá se apresenta como simples excremento.
tentativa de subverter a maneira como o imaginário népiesch ⎼ um termo Ao explorar a puszta, Szomjas criativamente atualiza uma série de sím-
que funde o adjetivo húngaro népies (povo) com o sintagma alemão völkisch bolos iconográficos, integrando-os aos padrões visuais e narrativos de um
⎼ representou esse cenário. O intuito era apontar criticamente a represen- faroeste. Para além das surpreendentes imagens das planícies, belamente
tação diluída e superficial de temas folclóricos, ou mesmo o embelezamento capturadas a partir de encenados planos em grande-angular e travellings que
e exagero de temas da cultura popular, e a maneira como essas imagens enfatizam a amplitude do espaço, a csárda transforma-se em um ambiente
passaram a representar falsa e superficialmente a essência da nação. importante dentro da narrativa. Esse espaço, uma espécie de estalagem há
Com essa finalidade, a puszta representa um protagonista do filme, e o muito associada à região puszta e ao seu imaginário popular, é uma das
conflito entre Gyurka Farkas Csapó, o envelhecido fora da lei que retorna à poucas estruturas sólidas com permanente presença humana na região. No
região depois de um período em que esteve preso, e seu adversário de lon- filme, ele representa os saloons das vilas fronteiriças americanas, com direito
ga data, o xerife que tem por missão prendê-lo, conecta-se profundamente a placa de “procura-se, vivo ou morto” – utilizada casualmente como uma
com o universo de fronteira das planícies. O forte laço que os dois possuem espécie de tiro ao alvo pelos fora da lei da região. Esse cenário transforma-
com a região marca uma ligação essencial entre eles, já que ambos se opõem se em um espaço para elementos genéricos importantes, como longas bri-
tenazmente ao inevitável desaparecimento da vida de fronteira decorrente gas de bares que imitam as extravagantes acrobacias cômicas dos westerns
da chegada da modernização. Ao indignar-se com um fora da lei jovem que italianos estrelados por Bud Spencer e Terence Hill ⎼ cujos filmes foram
zomba de sua idade avançada, o xerife diz: “nós dois estamos envelhecendo, imensamente populares por toda a Europa Oriental e, para muitos, subs-
e a puszta também”. Por meio do diálogo, ele reforça a conexão biológica tituíram o faroeste clássico como referência arquetípica da construção de
entre a terra e sua própria espécie, prenunciando o declínio do herói, que aventuras ficcionais de fronteira.
também será causado pela transformação da terra. A narrativa chega ao Assim como sugeriu Philip French em sua discussão sobre o faroeste, “a
fim quando o fora da lei é traído. Não pelo xerife e suas velhas tradições posição do forasteiro em relação ao espaço é de importância crucial, e são
da puszta, mas sim pelas mãos de seu próprio povo, de sua amante e do poucos os filmes que não começam com a imagem de um homem, ou um
jovem bandido amoral que ele havia apadrinhado. A queda do herói ladrão, grupo de homens, cavalgando pela paisagem”. O plano em que o fora da lei
que conclui a narrativa, traz novamente uma série de motivos distintos e aparece pela primeira vez mapeia essa imagem icônica do solitário cavalei-
genéricos, que vão de um duelo estilizado à morte do herói na forca, tendo ro na puszta. A figura aparece a distância, envelopada por uma paisagem
a planície invernal como pano de fundo. A mudança da paisagem de outono desolada, longínqua, enquanto, atrás, o sol sobe no horizonte. Essa imagem
para a de inverno representa, simbolicamente, a relação entre o espaço e mostra a brincadeira consciente que o diretor faz com o léxico visual do
nosso fora da lei – embora ela seja mostrada de maneira não romantizada. faroeste, o que é reafirmado por um plano subsequente em que o fora da lei
Por exemplo, uma cena de perseguição a cavalo entre o xerife e o fora da para próximo a uma forca na qual um corvo está pousado (aqui, o inofensivo
lei é entrecortada por imagens de uma manada de gado acinzentado ⎼ uma corvo, muito comum na zona rural da Hungria, substitui de forma criativa
espécie icônica da Hungria ⎼, com um boiadeiro estacado entre os animais. a imagem do abutre como representante da morte que espreita o deserto
7 3

fronteiriço da América). O longo plano do cavaleiro solitário, que dura um A cena em que o fora da lei encontra e depois mata um bandido que
bom tempo, transforma-se no pano de fundo onde o título e a sequência de o denunciou anos antes nos serve como um grande exemplo. O homem
créditos aparecem, enquanto uma música folclórica, embalada por violinos aparece sentado, sozinho, sobre uma terra lamacenta, com um fiapo de fogo
e uma cítara que acompanham uma voz masculina, explicitamente marca a tremeluzente em sua frente, sua cabeça destacada entre as roupas de lã que
característica estrangeira da imagem, distanciando-a do universo do faroes- cobrem seu corpo, os olhos ocultados por um chapéu surrado. Um close
te norte-americano. desse ser das planícies agachado, todo felpudo, revela não apenas a boca
Djoko Rosic, um ator iugoslavo que iniciou sua prolífica carreira no fa- de sua arma, ocultada sob a lã, mas também seus pés sujos, aparecendo
roeste Hajdúk (1975), interpreta o impassível fora da lei do filme. As notáveis de forma cômica. Szomjas desassocia o húngaro “nativo” da puszta de sua
características de Rosic, assim como suas habilidades com o cavalo, fizeram condição habitual ao descontruir a imagem icônica associada à paisagem e
dele um ator interessante para representar os nômades de fronteira em a seus habitantes. Essa emblemática ilustração visual funde-se, dentro dessa
todas as manifestações húngaras do faroeste, canalizando eficientemente o perspectiva, com a genérica invocação do Outro (indígena) dos faroestes,
status ambíguo desses personagens. Sua associação com o gênero permane- realocando ambas as imagens na esfera do estranho e do familiar.
ceu central para o estabelecimento de sua carreira no cinema da região. Isso Durante o filme, aparecem diversos animais característicos daquela re-
pode ser atestado por sua atuação em outras aventuras cinematográficas gião, como o porco Mangalitsa, o carneiro de pelos longos e os já citados
de fronteira, incluindo algumas produções da Alemanha Oriental e o filme bois acinzentados. A presença deles delimita a singularidade geográfica do
búlgaro Sadiyata (1986), dirigido por Plamen Maslarov. Sua curta, embora território e firma a narrativa como inegavelmente húngara. Mais à frente, o
memorável, presença no filme de Béla Tarr, As harmonias de Werckmeister filme apresenta o que poderia ser considerado o maior estereótipo da culi-
(Werckmeister harmóniák, 2000), no qual ele é creditado apenas como o “ho- nária húngara, o famoso prato de páprica com carne: goulash (gulyas). Nova-
mem com botas de faroeste”, confirma a continuidade de Rosic como um mente transpondo a recorrente trupe do faroeste, aquela que se alimenta
ícone cultural da produção de westerns húngaros. em torno de uma fogueira, para as Grandes Planícies Húngaras, em uma
As características roupas de lã dos campesinos e boiadeiros que ocuparam cena há um grupo de homens aquecendo um goulash em uma caldeira. Em
historicamente a Europa Oriental fornecem a referência visual para a constru- um plano estático, encenado como um tableau, enquanto homens são vistos
ção da “natureza faroeste” (bárbara). Simultaneamente, aos olhos dos estran- fazendo uma pausa para fumar um cachimbo, um kuvasz, espécie canina es-
geiros, esses tipos de vestimenta caracterizam esses nativos como pessoas pecífica da Hungria, calmamente aproxima-se deles, em um movimento es-
exóticas, seres inferiores, com um estilo de vida primitivo. Szomjas enfatiza a trutural que conota a natureza itinerante desses personagens. Reconhecido
imagem dessas figuras, assim como suas identidades selvagens e alienígenas, ao pela cultura popular como um tradicional e antigo artigo culinário húngaro
mesmo tempo que as insere de forma divertida em uma conhecida paisagem e, desde a década de 60, servido para os turistas da mesma maneira, ou seja,
cinematográfica de fronteira. Profundamente importante, a representação de sobre uma caldeira, como está na cena do filme, o goulash se transformou
um grupo de habitantes primitivos, provenientes de uma ancestral tradição em um item imprescindível da cultura local. No filme, a sua presença serve
pastoral, também suscita relação com os húngaros nômades, não europeus, para uma caracterização rápida do gosto húngaro, uma ornamentação gas-
não ocidentalizados. A apresentação do povo da puszta como duvidosamente tronômica da cultura folclórica de fronteira. Confirmando a importância
orientais representa de maneira criativa a diversidade mítica dos húngaros, do prato na essência da cultura húngara, um crítico comentou, enquanto
que poderiam ser enquadrados em um “faroeste” de fronteira. analisava o segundo faroeste de Szomjas, que seus colegas estrangeiros mais
ácidos certamente caracterizariam os novos faroestes húngaros como fa-
roestes “goulash” ou “páprica”. “Faroeste goulash” realmente se transformou
no chavão utilizado para determinar os dois filmes do gênero produzidos
por Szomjas na década de 70. O termo se alinha a outros estereótipos
culinários, como os utilizados para caracterizar o faroeste spaghetti e outras
explorações do gênero do resto da Europa.
Szomjas, ao se preparar para rodar seu faroeste húngaro, não pôde “des-
virginar” áreas da região Nagykunság para representar de forma convincen-
te as terras intocadas que seriam transformadas pelo progresso do século
XIX. Ele foi forçado a levar sua equipe de filmagem para a beira do Parque
Nacional Hortobágy, área que, curiosamente, até hoje representa a sensa-
ção de uma Hungria remota para seus visitantes, pelo menos no contexto
de um ambiente de fronteira artificialmente preservado. Em uma notável re-
petição do processo histórico, o diretor realmente encontrou um trabalho
de canalização fluvial sendo feito na área, algo que ele usou no filme.
O primeiro longa-metragem de Szomjas combate categorias genéricas e
noções simplificadas de nacionalidade, assim como explorações superficiais
da cultura e da história folclórica. Ao empregar ironia e excesso visual, ao
explorar icônicas imagens da paisagem da Hungria, ele funde os ícones do
faroeste e os simbolismos húngaros de maneira criativa. Como foi men-
cionado anteriormente, os conflitos ideológicos ocorridos nas fronteiras
servem, predominantemente, como recursos dramáticos que se desdobram
nas longínquas paisagens da puszta. Mas a narrativa aparenta afastar-se de
uma tomada política explícita. O real objetivo desse filme ainda é a recon-
sideração crítica e cômica dos diferentes mitos húngaros, tudo contido em
um universo ficcional de embates de um faroeste de fronteira.

Tradução: Pedro Henrique Ferreira e Thiago Brito

O VENTO ASSObIa SOb OS PÉS (1976)


7 7

A CRIANca
1

por Vsevolod Ivanov

Nota dos curadores: O escritor Vsevolod Ivanov foi reconhecidamen-


te uma das principais figuras do gênero literário do ostern, que, por sua
vez, exerceu alguma influência no gênero cinematográfico em questão.
A título de ilustração histórica, aqui deixamos trechos de um de seus
mais célebres contos publicados, pois acreditamos que, embora ele não
apresente a mesma intenção propagandística dos filmes e não possua
uma visão tão idealizada do processo da Guerra Civil, seus cenários da
Ásia Central, seu clima de confronto, exotismo e selvageria, seus perso-
nagens tão “broncos” quanto os cowboys e suas formas e construções
linguísticas remetem diretamente à encenação dos faroestes vermelhos.

I
Mongólia ⎼ um animal selvagem e sem alegria. Cada pedra: um animal.
Cada lago: um animal. Todas as borboletas estão à espreita com seus
ferrões. Os mongóis ⎼ seres inescrutáveis: vestem, dizem as más línguas,
carcaças de animais, parecem chineses e vivem longe dos russos, no
deserto de Nor-Koy. Os boatos dizem que seu retiro está ainda mais
afastado, para além da China e da Índia, em terras azuis desconhecidas.

1 Originalmente publicado em Broom: an international magazine of the arts,


v. 4, n. 3, Feb. 1923. Tradução de Thiago Brito.

EM CASA COM ESTRANHOS. UM ESTRANHO EM CASA (1974)


7 9

Uma pequena tribo kirghiz, que veio do rio Irtysh quando fugiu da frente sua cabeça grisalha, mal-humorado, terrível. No Whitsuntide2, três homens
de batalha russa, estava agora perambulando pela Mongólia, a certa distância ⎼ Selivanov, Afanasy Petrovich e Drevesinin ⎼ foram enviados à estepe para
de um grupo de russos, também foragidos. Personagens frágeis e sem valor, encontrar terras para servir de pasto. Um vento passava. Uma onda de calor
como se sabe, os kirghiz avançavam sem pressa. Eles traziam seu gado, suas saía da terra rumo ao céu vacilante. Os corpos dos homens e dos animais
crianças e até mesmo seus doentes. eram duros e pesados como uma pedra.
Os fugitivos russos, campesinos fortes e saudáveis, caminhavam sem pie- Selivanov disse roucamente: “Que tipo de pastagem podemos esperar dali?”
dade. Deixavam no chão os mais fracos e doentes. Alguns haviam morrido; Todos sabiam que ele se referia ao rio Irtysh. Suas esparsas faces barbu-
outros haviam sido mortos. Suas famílias, propriedades e rebanho haviam sido das eram silenciosas; seus cabelos pareciam grama queimada pelo sol; seus
capturados pelo exército branco. Os campesinos estavam tão loucos quan- olhos eram injetados de sangue, como feridos por ganchos.
to os lobos na primavera. Quedavam em suas barracas, morrendo de fome, Apenas Afanasy Petrovich disse, com pesar: “Será que também lá encon-
sonhando com suas estepes, pensando no rio Irtysh. Eram cinquenta, com traremos a seca?”
Sergey Selivanov como presidente. Eles se autodenominavam o Destacamen-
Ele disse isso com uma voz lacrimosa, mas sem lágrimas nos olhos. Uma
to Guerrilheiro do Exército Vermelho do Camarada Selivanov. Eles estavam
lágrima afligia os olhos secos de seu cavalo. E, então, um atrás do outro, os
isolados. Quando o exército branco afugentava-os para além da montanha,
guerrilheiros caminharam entre pastagens selvagens em direção à estepe. A
os enormes rochedos escuros os assustavam. Agora que tinham atingido as
areia brilhava de calor; o vento saturado de areia se agarrava aos ombros e
estepes, estavam entediados. Estas estepes eram parecidas com as estepes
faces; o suor queimava o corpo, mas não conseguia brotar na pele ressecada.
do rio Irtysh: areia, grama dura, um céu metálico duro. Tudo era estrangeiro,
À tarde, enquanto passavam por uma cavidade, Selivanov apontou para o
estranho, insultante e selvagem. O mais difícil era a ausência de mulheres. Du-
sul e disse:“Alguém está vindo.” Era verdade. No horizonte, uma poeira rosa
rante a noite, ele narravam contos obscenos, típicos de soldados, e, quando a
se elevava sobre a areia: “Deve ser um kirghiz.”
tortura era insuportável, selavam os cavalos e iam caçar as mulheres kirghiz.
As mulheres kirghiz, ao perceberem a presença dos russos, caíam no chão Eles começaram a deliberar. Drevesinin disse que os kirghiz sempre man-
de forma submissa. Era repugnante a forma como eles as levavam, deitadas, tinham certa distância e nunca se aproximavam da ravina de Selivanov. Afa-
imóveis, com os olhos semicerrados. Era como comungar com a besta. Os nasy insistia que só podia ser eles. Apenas os kirghiz levantavam uma poei-
homens tinham medo dos russos e corriam em direção às estepes. Sempre ra tão densa. E, quando a poeira se aproximou mais, eles concluíram: “São
desconhecidos.” Os cavalos deduziram pelas vozes de seus mestres que
que viam um russo, eles brandiam seus rifles e arcos de maneira ameaçadora,
estranhos se aproximavam. Eles abaixaram seus ouvidos e relincharam antes
gritavam, mas nunca atiravam. Talvez eles não soubessem atirar.
mesmo de qualquer ordem ser dada. Na ravina, os corpos cinza e amarelos
dos cavalos, com suas pernas de varetas, pareciam desamparados e ridículos.
II Eles fecharam seus grandes olhos, como se estivessem envergonhados, res-
pirando pesadamente. Selivanov e o tesoureiro, Afanasy Petrovich, estavam
O tesoureiro do destacamento, Afanasy Petrovich Trubatchov, era frágil agachados dentro da ravina. O tesoureiro estava choramingando, soluçando.
como uma criança e tinha um rosto infantil, pequeno, rosado, imberbe. Suas
pernas eram longas e duras, como as de um camelo. Quando cavalgava, ime-
diatamente se punha austero. Seu rosto se fechava e ele ficava sentado com
2 O Whitsuntide é a semana após o Whitsunday, o último domingo da festa
cristã de Pentecostes.
8 1

Para suavizar seu medo, Selivanov sempre o mantinha ao seu lado; ele pare- Os campesinos foram averiguar. Estavam mortos. Ombro com ombro, esta-
cia gostar disso e extrair uma satisfação maliciosa desse choramingo infantil. vam sentados com as cabeças reclinadas para trás, feito capuzes. Um deles era
A poeira caminhava em sua direção. Era possível ouvir as rodas tremendo uma mulher. Cabelos desgrenhados, metade recobertos de poeira amarela e
alternadamente; era possível ver as crinas longas e negras ondulando como negra; a roupa de soldado inchada com os seios de mulher.
uma nuvem de poeira entre os arreios dos cavalos. “Coisa estranha”, disse Drevesinin, “mas a culpa é dela. Não deveria ter
Selivanov, com firmeza, disse: “russos.” usado uma boina masculina. Quem quer matar uma mulher? Nós precisamos
Então, da ravina, ele chamou Drevesinin. Duas pessoas estavam sentadas delas.”
em um carro novo, feito de vime. Era possível perceber as faixas vermelhas Afanasy Petrovitch cuspiu. “Você fede, mongol…Você não…”
em suas boinas, mas seus rostos estavam cobertos pela poeira. O vermelho “Calma”, cortou Selivanov. “Não somos ladrões. Temos que realizar um
parecia nadar entre poeiras amarelas. A boca de uma arma emergiu da poei- inventário das propriedades do povo. Dê-me um pedaço de papel.”
ra, uma mão com chicote aparecia, ora sim, ora não.
Em uma cesta de vime, escondida embaixo de um assento, eles acha-
Drevesinin, pensativo, disse: “Oficiais… A negócio, provavelmente… Uma ram, entre as “propriedades do povo”, um bebê loiro, de olhos azuis. Suas
expedição…” Uma centelha maldosa em seus olhos. “Vamos mostrar a eles pequenas mãos estavam apertando uma colcha marrom. Pequeno, em fase
o que é uma expedição de verdade.” de amamentação, chiando. Afanasy Petrovitch disse, com emoção: “Olha só,
O carro aproximava-se célere, os cavalos vinham na frente. A poeira, tagarelando em seu próprio dialeto.” Novamente um sentimento geral de
como o rabo de uma raposa, varria seus rastros. tristeza pela mulher afetou os homens. Eles não retiraram as roupas dela. O
Afanasy Petrovitch pediu, com pena:“Não, camaradas, o melhor é levá-los homem foi enterrado pelado na areia.
como prisioneiros.”
“E você não tem pena do próprio pescoço?” III
Selivanov se irritou ⎼ engatilhou sua arma silenciosamente e se virou:
Afanasy Petrovitch voltou ao carro. Ninando o bebê no colo, cantou:
“Parem de reclamação.”
“Rouxinol, passarinho, canarinho ⎼ cantam tristemente…”
O que particularmente os irritava era que os oficiais vinham sem escolta,
Ele se lembrou de sua vila, Lebiajy, de sua terra, seu gado, sua família,
como se estivessem em grande número, trazendo ameaça aos campesinos.
seus filhos, e começou a chorar timidamente. O bebê chorou também. A
Um dos oficiais aprumou-se, contornou a estepe, mas não conseguiu enxer-
bela e reluzente areia se estendia no horizonte, e também chorava timida-
gar com a poeira, o vento, a tarde avermelhada que descia sobre a grama
mente. Os guerrilheiros, com os rostos e almas abatidos, cavalgavam com
queimada e sobre duas pedras que mais pareciam corpos de cavalos pró-
seus pequenos e fortes cavalos mongóis. Um caminho ressequido e amargo,
ximos à ravina. O carro e suas rodas, as pessoas e seus pensamentos esta-
pequeno e invisível, se estendia feito areia. Areia e ervas daninhas, pequenas
vam imersos na poeira vermelha. Um tiro ressoou. Em uníssono, as boinas,
e amargas. Caminhos de cabras. Areias amargas. Mongólia ⎼ um animal selva-
entrechocando-se, caíram dentro do carro. Os arroios soltaram como se
gem e sem alegria. Eles examinaram os bens do oficial. Livros, uma carteira
puxados por uma mão invisível. Os cavalos remexeram-se e tentaram fugir.
de tabaco, instrumentos de metal luminoso. Um desses instrumentos era
Repentinamente, suas crinas foram manchadas por uma espuma branca; seus
uma caixa de latão com divisões posicionada sobre um tripé. Os guerrilhei-
poderosos músculos tremeram; eles abaixaram a cabeça e pararam.
ros a examinaram e a pesaram em suas mãos. Eles cheiravam a gordura de
Afanasy Petrovitch disse: “Morreram.”
carneiro. Envoltos na solidão, eles comeram demais e sujaram suas roupas.
8 3

Eles tinham bochechas proeminentes, finos lábios macios, cabelos escuros, abertas; seus pés estavam descalços e amarelados como a terra da Mongólia.
longos, e peles negras ⎼ verdadeiros Dons de aldeia. Todos tinham pernas Um deles disse: “Talvez ele coma um pouco de shtchee?” O shtchee tinha es-
arqueadas e a voz gutural das estepes. friado. Afanasy Petrovitch colocou o dedo na sopa e depois o aproximou da
Afanasy Petrovitch levantou o tripé da caixa de latão e disse: “Telescó- boca do bebê. A gordura do shtchee caiu dos lábios da criança na camiseta
pio.” Então, fechou seus olhos. “Bom telescópio. Custa muitos milhões. Eles rosa e na colcha marrom. O bebê se recusava a comer.
viram a lua com ele, camaradas, e lá acharam depósitos de ouro. Puro feito “Até um filhote seria mais inteligente, lamberia meus dedos.”
farinha. Não precisa nem lavar, é só colocar dentro de sacolas.” “Bem, um filhote é um bruto e isso é um ser humano.”
Um jovem, nascido na cidade, riu alto. “Que lorota é essa que ele está “É verdade.”
contando? Peçam que ele pare!”
Não havia leite de vaca no acampamento. Então, eles pensaram em dar
Afanasy Petrovitch se irritou. “Lorota, seu traste? Você me aguarde…” para a criança leite de égua ⎼ havia éguas no acampamento. Mas o kumiss5
Eles dividiram o tabaco e deram o instrumento luminoso para Afanasy Pe- era muito tóxico, a criança poderia adoecer. Eles se separaram em grupos
trovitch. Como tesoureiro, ele poderia trocá-lo por alguma coisa com os entre as carroças; eles estavam preocupados. Afanasy Petrovitch andava de
kirghiz. Ele colocou o instrumento diante do bebê e disse: “Divirta-se, peque- um lado para o outro com um casaco esfarrapado nas costas, com os seus
nino.” olhos esfarrapados. Ele lamentava com uma voz esguia, agitada, infantil, como
Mas a criança continuava chiando. Ele tentou uma coisa, depois outra. se a criança fosse ele mesmo. “Bem, o que vamos fazer? Nós devíamos…”
Ele começou a suar ⎼ nada fazia a criança parar de chorar. Os cozinheiros Com os ombros largos e poderosos, eles quedavam desamparados.
trouxeram o jantar. Havia um odor pesado de óleo, mingau, shtchee3. Eles pu- “Isto é negócio para as mulheres.”
xaram, de dentro de suas botas, longas colheres de madeira Semipalatinisk4.
“Sim, é claro.”
A grama sob seus pés era rala. A ravina, longa e escura.
“Talvez uma mulher fosse capaz de fazê-lo comer um carneiro inteiro?”
Um sentinela que estava de prontidão gritou do alto: “Ei, aqui, eu quero
“Talvez.”
parar… Eu estou com fome… Mandem alguém subir.”
Selivanov chamou uma assembleia e disse: “Não podemos deixar um
Eles acabaram de comer e se lembraram ⎼ a criança também precisava
bebê cristão morrer como um bárbaro. Imaginemos que seu pai fosse mon-
comer. Ela não parava de chorar. Afanasy Petrovitch mastigou um pouco
gol. Isso não seria culpa da criança.”
de pão, depositou o miolo úmido na boca da criança e estalou seus lábios:
“PP… Pp… Aqui, barbeirinho… Coma um pouco.” Mas a criança não co- Os campesinos concordaram. “A criança não tem nada a ver com isso.”
meu, fechou a boca e afastou a cabeça. Seu nariz estava escorrendo. Os Drevesinin explodiu, rindo. “A criança vai crescer muito bem… Viajar
campesinos se reuniram em volta dela. Eles olhavam para a criança, uns para a lua… Mina de ouro…”
sobre os ombros dos outros. Estavam calados. Estava quente. Os lábios e as Ninguém riu.
bochechas deles brilhavam de gordura de carneiro; suas camisetas estavam Afanasy Petrovitch levantou os punhos e gritou: “Você é um desgraçado.”
Ele bateu com os pés no chão, levantou as mãos e subitamente urrou: “Uma
vaca… Precisamos arranjar-lhe uma vaca agora.”
3 Um tipo de sopa aguada e barata. Alimentação comum de prisioneiros na Sibéria.
4 Região atualmente denominada Semei, localizada no nordeste do
Cazaquistão (N. do T.). 5 Leite de égua fermentado.
8 5

Todos responderam em coro: “Ele morrerá se não arranjarmos uma


vaca.” “Uma vaca é do que ele precisa.” “Ele vai morrer se não arranjar-
mos uma vaca.”
Afanasy Petrovitch disse, resoluto: “Eu vou atrás de uma vaca.”
Drevesinin interveio impertinentemente: “Vá para o Irtysh, para o Lebia-
jy…”
“Eu não preciso ir para o Irtysh, seu maluco. Eu vou para o Kirghiz.”
“Troque o telescópio.”
Afanasy Petrovitch atacou-o.
Ao vê-los se xingando, Selivanov, o presidente da assembleia, disse:
“Está bom.”
Então, decidiu-se, por meio do voto, que Drevesinin, Afanasy Petrovitch e
outros três iriam até o acampamento dos kirghiz para conseguir uma vaca.
Se possível, mais duas ou cinco ⎼ o abastecimento de carnes do cozinheiro
estava baixo. Acoplaram espingardas nas selas dos cavalos, botaram chapéus
kirghiz de pele de raposa, para parecerem kirghiz a distância, e saíram.
“Adeus.”
Eles amarraram o bebê na colcha e guardaram-no em uma carroça. Um
jovem rapaz ficou de guarda. Para se divertir e divertir o bebê, o rapaz dava
tiros com seu revólver Nogan na mata.

UM HOMEM DO BOULEVARD DES CAPUCINES (1987)


1 5
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filmografia
AS AVENTURAS OS TREZE
EXTRAORDINÁRIAS DE (TRINADTSAT)
MR. WEST NO PAÍS DOS
BOLCHEVIQUES Inspirado em A patrulha perdida, de
(neobychainye John Ford. Um grupo de soldados
priklyucheniya mistera vesta escoltando alguns civis pelo
v strane bolshevikov) deserto asiático é emboscado
e cercado por uma conhecida
O norte-americano Mr. West horda de bandidos. Os soldados
e seu fiel guarda-costas Jeddie decidem segurar os bandidos até
viajam para a terra dos horríveis e que cheguem os reforços.
cruéis bolcheviques. Passando por
1937 – 90 minutos – União Soviética
vários contratempos, Mr. West
Preto e branco / Mono / 1.37:1
descobre que os soviéticos são, na
realidade, muito admiráveis. Direção: Mikhail Romm
1924 – 94 minutos – União Soviética
Roteiro: Iosif Prut, Mikhail Romm
Preto e branco / Silencioso / 1.33:1 Elenco: Ivan Novoseltsev,Yelena
Kuzmina, Aleksandr Chistyakov,
Direção: Lev Kuleshov Andrey Fayt
Roteiro: Nikolai Aseyev,Vsevolod Produtora: Mosfilm
Pudovkin
Faixa etária: 14 anos
Elenco: Porfiri Podobed, Boris
Barnet, Aleksandra Khokhlova,
Vsevolod Pudovkin,Vera Lopatina
Produtora: Goskino
Faixa etária: 14 anos

O SOL BRANCO DO DESERTO (1969)


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CANÇÃO DA PRADARIA Direção: Samson Samsonov OS FILHOS DA GRANDE 1967 – 78 minutos – União Soviética
(ARIE PRERIE) Roteiro: Nikolai Figurovsky URSA Colorido / Mono / 2.35:1
Elenco: Igor Savkin, Margarita (DIE SÖHNE DER GROSSEN
Uma história cômica sobre uma Direção: Edmond Keosayan
Volodina,Vladimir Kenigson, BÄRIN)
señorita que viaja pelo Velho Oeste Roteiro: Pavel Blyakhin, Edmond
Mikhail Troyanovsky, Anthony
em uma diligência. Ela é salva das Embora os americanos nativos Keosayan, Sergei Yermolinsky
Khodursky
garras de um bandido por um tenham garantias contratuais Elenco: Viktor Kosykh, Mikhail
Produtora: Mosfilm
cowboy que entoa canções. para ocupar o território Metyolkin,Vasiliy Vasilev,Valentina
Faixa etária: 14 anos adjacente às Montanhas Kurdyukova
1949 – 19 minutos – Tchecoslováquia Negras, os brancos querem Produtora: Mosfilm
Animação / Colorido / Mono / 1.37:1 LEMONADE JOE expulsá-los de lá. Enquanto
Faixa etária: 14 anos
Direção: Jirí Trnka (LIMONÁDOVÝ JOE ANEB KONSKÁ isso, ouro foi descoberto na
Roteiro: Jirí Trnka OPERA) região. Raposa Vermelha, um
colono inescrupuloso, exige que AS NOVAS AVENTURAS
Produtora: Ceskoslovenský Nesta paródia musical dos DOS VINGADORES
Státní Film Mattotaupa, chefe do clã dos
westerns, o pistoleiro João Ursos Dakota, revele a localização INVISÍVEIS
Faixa etária: 14 anos Limonada limpa a cidade de das minas. (NOVYE PRIKLYUCHENIYA
Stetson City depois de derrotar NEULOVIMYKH)
CAMINHO DE FOGO o vilão Pistola Velha. A insistente 1966 – 92 minutos – Alemanha
defesa que o cowboy faz da bebida Colorido / Mono / 2.35:1 Continuação da saga dos
(OGNENNYE VYORSTY)
Kolaloka leva os habitantes “Vingadores Invisíveis”. Agora, os
Direção: Josef Mach
Influenciado pelo clássico No da cidade a abandonarem o jovens vão à cidade em busca de
Roteiro: Liselotte Welskopf-
tempo das diligências, de John Ford. alcoolismo. um mapa guardado no cofre da
Henrich
O agente Zavragin, da inteligência polícia.
1964 – 84 minutos – Tchecoslováquia Elenco: Gojko Mitić, Jirí Vrstála,
soviética, está apressado para 1968 – 82 minutos – União Soviética
Preto e branco / Mono / 2.35:1 Rolf Romer
chegar a uma cidade no sul da Colorido / Mono / 2.35:1
Produtora: DEFA
Rússia cercada por tropas de Direção: Oldrich Lipsky
Anton Denikin. Sem ter acesso Faixa etária: 14 anos Direção: Edmond Keosayan
Roteiro: Oldrich Lipsky, Jirí
pelos trilhos do trem, ele decide Roteiro: Edmond Donatas
Brdecka
usar um carro da artilharia e OS VINGADORES Banioni, Artur Makarov
Elenco: Karel Fiala, Rudolf Deyl,
reunir um grupo heterogêneo que INVISÍVEIS Elenco: Viktor Kosykh, Mikhail
Milos Kopecky, Kveta Fialová
também está a caminho da cidade. (NEULOVIMYE MSTITELI) Metyolkin,Vasiliy Vasilev,Valentina
Produtora: Filmové Studio
Kurdyukova
1958 – 85 minutos – União Soviética Barrandov Um grupo de adolescentes Produtora: Mosfilm
Colorido / Mono / 1.33:1 Faixa etária: 14 anos intitulado “Vingadores Invisíveis”
luta ao lado do exército vermelho Faixa etária: 14 anos
durante a Guerra Civil na Rússia.
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A TRILHA DO FALCÃO Spartak Mishulin, Kakhi Kavsadze A SÉTIMA BALA soviético que se propõe a ser um
(SPUR DES FALKEN) Produtora: Mosfilm (SEDMAYA PULYA) hino à amizade. Um soldado do
Faixa etária: 14 anos exército vermelho suspeito de ter
Na segunda metade do século Embora a força soviética tenha roubado ouro se vê obrigado a se
XIX, ouro é descoberto nas retomado o controle na Ásia infiltrar num bando de criminosos
Montanhas Negras, área reservada AS PAPOULAS VERMELHAS Central, os Basmachis continuam
DO ISSYK-KUL para provar sua inocência.
aos indígenas da tribo Dakota. Não a invadir o território. Neste
obstante, garimpeiros, empresários (ALYE MAKI ISSYK-KULYA) cenário, o general Maxumov deve 1974 – 97 minutos – União Soviética
e aventureiros migram para a encontrar os homens de sua Colorido / Mono / 1.37:1
Quirguistão, 1920. Um guarda
região, causando conflitos. pró-soviético encontra, nas tropa desertora e explicar por Direção: Nikita Mikhalkov
montanhas, uma trilha utilizada que o rebelde Khairulla, que agora Roteiro: Nikita Mikhalkov, Eduard
1968 – 121 minutos – Alemanha
por traficantes para transportar os comanda, está mentindo para Volodarskiy
Colorido / Mono / 2.35:1
ópio para além das fronteiras eles. Em sua jornada, Maxumov Elenco: Yuri Bogatyryov, Nikita
Direção: Gottfried Kolditz guarda em sua pistola uma última Mikhalkov, Sergey Shakurov
soviéticas. Enquanto isso, um
Roteiro: Karl Gunter bala, destinada a seu arquirrival. Produtora: Mosfilm
homem misterioso chamado
Elenco: Gojko Mitić, Hannjo
“Boca de Ouro” se oferece para 1972 – 84 minutos – Uzbequistão
Hasse, Barbara Brylska Faixa etária: 14 anos
acompanhar uma patrulha liderada Colorido / Mono / 2.35:1
Produtora: DEFA
pelo comandante russo Kondraty
Direção: Ali Khamraev O VENTO ASSOBIA SOB
Faixa etária: 14 anos para encontrar os traficantes e
Roteiro: Andrei Konchalovsky, OS PÉS
seu acampamento.
O SOL BRANCO DO Fridrikh Gorenshtein (TALPUK ALATT FÜTYÜL A SZÉL)
1971 – 93 minutos – Quirguistão Elenco: Suymenkul Chokmorov,
DESERTO Colorido / Mono / 1.85:1 Exemplar do western goulash,
Dilorom Kambarova, Bolot
(BELOYE SOLNTSE PUSTYNI) Bejshenaliyev encenado nas Grandes Planícies
Direção: Bolotbek Shamshiev da Hungria, o filme acompanha
No final da Guerra Civil Russa, Roteiro: Ashim Dzhakypbekov, Produtora: Uzbekfilm
o caminho de um fora da lei que
o soldado do exército vermelho Vasili Sokol,Yuri Sokol Faixa etária: 14 anos escapou recentemente da cadeia.
Fyodor Sukhov é incumbido de Elenco: Suymenkul Chokmorov, Sua busca por vingança conflui
tomar conta do harém de um líder Sovetbek Dzhumadylov, Boris EM CASA COM com o interesse de um grupo de
dos guerrilheiros do Mar Cáspio. Khimichev ESTRANHOS. UM camponeses sem-terra que se
1969 – 84 minutos – União Soviética Produtora: Gosfilmofond ESTRANHO EM CASA. opõe à construção de um canal
Colorido / Mono / 1.37:1 Faixa etária: 14 anos (SVOY SREDI CHUZHIKH, no território onde trabalha.
CHUZHOY SREDI SVOIKH) 1976 – 90 minutos – Hungria
Direção: Vladimir Motyl
Roteiro: Valentin Ezhov, Rustam Ambientado na guerra civil que Colorido / Mono / 1.37:1
Ibragimbekov, Mark Zakharov sucedeu à Revolução de Outubro Direção: György Szomjas
Elenco: Anatoliy Kuznetsov, de 1917, o filme é um western
Roteiro: György Szomjas, Péter século até os anos 80.Três gerações
Zimre tentam encontrar o paraíso
Elenco: Djoko Rosic, István terrestre e entregá-lo ao povo.
Bujtor,Vladan Holec 1979 – 275 minutos – União Soviética
Produtora: MAFILM Hunnia Colorido / Mono / 2.25:1
Stúdió
Direção: Andrey Konchalovskiy
Faixa etária: 16 anos
Roteiro: Andrey Konchalovskiy,
Valentin Ezhov
O GUARDA-COSTAS
Elenco: Nikita Mikhalkov,Vitali
(TELOKHRANITEL) Solomin, Sergey Shakurov
Quando um dos cérebros por Produtora: Mosfilm
trás dos rebeldes Basmachis é Faixa etária: 14 anos
capturado por um esquadrão
do exército vermelho, a missão UM HOMEM DO
de escoltá-lo pelas trilhas
BOULEVARD DES
montanhosas até a província de
CAPUCINES
Bucara é concedida a Mirzo e sua
trupe. (CHELOVEK S BULVARA
KAPUTSINOV)
1979 – 90 minutos – Uzbequistão
Colorido / Mono / 1.37:1 O Sr. Johnny First chega a uma
cidade do Velho Oeste e traz
Direção: Ali Khamraev para os habitantes uma novidade
Roteiro: Ali Khamraev que mudará suas vidas: o
Elenco: Aleksandr Kaydanovskiy, cinematógrafo.
Anatoliy Solonitsyn, Shavka
1987 – 98 minutos – União Soviética
Abdusalamov
Colorido / Mono / 1.66:1
Produtora: Tajikfilm
Direção: Alla Surikova
Faixa etária: 16 anos Roteiro: Eduard Akopov
Elenco: Andrey Mironov,
SIBERÍADA Aleksandra Yakovleva-Aasmyae,
(SIBIRIADA) Mikhail Boyarskiy
Neste épico soviético, uma pequena Produtora: Mosfilm
cidade na Sibéria é o espelho da Faixa etária: 14 anos
história da Rússia do começo do

CANÇÃO DA PRADARIA (1949)


Curadoria Registro fotográfico e videográfico
Pedro Henrique Ferreira Eduardo Cantarino
Thiago Brito
Tradução das legendas
Produção executiva Aline Baiana
Pedro Henrique Ferreira Graziela Schneider
Marília Muniz Leal
Produção Pedro Dannemann
Diogo Cavour Rodrigo Castelo Branco
Paula Goulart Thiago Bernardo Amaral
Ursula Dannemann
Assistente de produção
Gabriela Ciuffo Impressão do folder
Grafitto
Identidade visual
Danilo Amaral Impressão do catálogo
J. Sholna
Revisão das cópias
Caroline Nascimento Bureau
Studio Alfa
Revisão do catálogo
Feiga Fiszon Transporte das cópias
Linda e Adriano – WindLog
Assessoria de imprensa Airtime Serviços e Transportes
Alex Teixeira
Serviço de legendagem eletrônica
Larissa Amorim
4Estações
Textos
Clipping
Evan Torner Clipping Service
Hernani Heffner
Luís Alberto Rocha Melo Apoio:
Sergey Lavrentiev Três Corações
Sonja Simonyi
Vsevolod Ivanov

Agradecimentos
Serguey Lavrentiev, Ali Khamraev, Ludmilla Cvikova, Melissa van der Schoor,
Elena Orel (Mosfilm), Mirko Wiermann (Cinemateca Alemã), Dorka Szörényi
(MaNDA Archive), Nikola Krutilová (Cinemateca de Praga), Carmen Accaputo
(Cinemateca de Bolonha), Andrea Meneghelli (Cinemateca de Bolonha),
Gulbara Tolomushova (Kyrgyz Cinema), Hernani Heffner (Museu de Arte
Moderna), Alex Khamraev, Sonja Simonyi, Evan Torner, Marina Fonte Pessanha,
Eduardo Cantarino, Tiago Rios, Serguei Monin e Sasha Lazarev.

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