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de Práticas
Culturais e
Artísticas da
Favela da Maré
(RJ)
Introdução
Como sabemos, as experiências culturais nas favelas são conhecidas por varia-
dos agentes e instituições, porém, não necessariamente reconhecidas em seu
patrimônio social, em suas possibilidades econômicas e em seu valor estético.
Isso porque ainda prevalece em relação a esses territórios e a seus moradores
uma representação paradigmática dominada por pressupostos centrados em
hierarquias de classificações de conceitos estéticos, saberes culturais e práticas
artísticas; na percepção exclusiva das formas precárias na paisagem imediata
de suas residências e logradouros; em representações preconceituosas sobre a
capacidade cognitiva de criação de seus moradores; em uma lógica produtivista
de mercado que define as ações artísticas à imediata utilidade econômica; e,
no seu limite mais radical, na instrumentalização da cultura como prevenção ao
pressuposto potencial criminoso dos jovens das favelas.
06 Apesar dos estereótipos da pobreza e dos estigmas da violência que ainda marcam
as favelas, não se deve desconsiderar a riqueza de suas expressões estéticas e
de seus modos significativos de apresentar e afirmar a sua pluralidade cultural.
// Territorialidades de Práticas Culturais e Artísticas da Favela da Maré (RJ)
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3 Marcílio Dias, Praia de Ramos, Roquete Pinto, Parque União, Parque Rubens Vaz, Nova Holanda, Baixa do Sapa-
teiro, Nova Maré, Morro do Timbau, Vila do João, Conjunto Pinheiro, Vila do Pinheiro, Novo Pinheiro (conhecido como
Salsa e Merengue), Bento Ribeiro Dantas e Conjunto Esperança.
das construções vernaculares populares aos conjuntos habitacionais criados por
agências do Estado. Esse encontro de pessoas e territórios na Maré significou a
construção de abrigos para trabalhadores pobres da cidade e suas famílias; pes-
soas que jamais pouparam seus maiores esforços para garantir o seu legítimo
direito de habitar a cidade.A Favela da Maré é, assim, um território feito de encontros
entre pessoas e vidas socialmente construídas, e não um conjunto de casas ou ruas
apressadamente consideradas como precárias ou carentes. Enfrentar preconceitos
e estigmas sociais é um dos desafios comuns no cotidiano dos moradores da Maré.
E, como todas as demais favelas da cidade, a Maré é um território que é recorrente-
mente tratado como carente, sem ordem, sem lei e violento. Todavia, um olhar mais
atento (e generoso) encontrará formas de sociabilidade fundadas em valores para
convivências plurais, em códigos de usos de espaços comuns e em modos coleti-
vos de mobilizar serviços públicos. Esses empenhos para criar condições para viver
juntos são permanentes, apesar das condições de desigualdade profunda em que
vivem quando comparados aos demais bairros formais da cidade, incluindo nessas
condições a exposição a violência urbana, em razão da forte presença de grupos
criminosos (facções do narcotráfico e milícias) em disputa territorial e das incursões
militarizadas de forças de segurança do Estado.
1 – Praia de Ramos
2 – Roquete Pinto
3 – Parque União
4 – Parque Rubens Vaz
5 – Nova Holanda
12 13 6 – Parque Maré
15
7 – Baixa do Sapateiro
5 8
4 9 11 8 – Nova Maré
10 14
7
3 9 – Morro do Timbau
6
10 – Bento Ribeiro Dias
2
11 – Conjunto Pinheiros
1
12 – Vila do Pinheiros
13 – Salsa e Merengue
14 – Vila do João
15 – Conjunto Esperança
Linha Vermelha
Linha Amarela
Avenida Brasil
Mapa 1: A Maré no seu conjunto de 16 comunidades
O presente trabalho é uma continuidade expandida de estudos desenvolvidos
em 2016,com apoio do edital CNPq/MinC, dedicados à elaboração de um amplo
painel de atividades artísticas e culturais relacionadas aos espaços de formação,
produção e fruição cultural (associações de moradores, escolas, clubes, blocos
carnavalescos, organizações não governamentais, igrejas etc.) presentes no con-
junto de favelas da Maré. Naquela oportunidade, verificamos que havia uma distri-
buição geográfica diferenciada das atividades artísticas e culturais abrigadas em
instituições, com o predomínio dessas em algumas favelas, como Nova Holanda
(25,0%), Parque União (18,3%), Vila do João (11,7%) e Morro do Timbau (10,8%).
As informações colhidas revelaram a importância da presença das organizações
da sociedade civil para o processo de produção e fruição de arte e cultura, assim
como de sua distribuição territorial no conjunto de comunidades, configurando-se
como abrigos significativos para transformar as potências criativas em atos tan-
gíveis, tanto para os autores em suas diferentes linguagens como para o público
de sua fruição.
Para a elaboração desse recorte, além dos dados coletados previamente foram
realizados seminários e oficinas incluindo a equipe de pesquisa do Observatório de
Favelas, com a participação de pesquisadores de outras instituições e de artistas
locais especialmente convidados para conversações conceituais e metodológicas
sobre a construção do inventário de práticas artísticas e culturais da Maré. Esses
encontros de diferentes olhares e vivências contribuíram decisivamente para a
elaboração do recorte qualitativo dos entrevistados e para os indicativos de cenas
para mapeamento de territorialidades.
4 Jorge Luiz Barbosa, geógrafo (coordenador); Lino Teixeira,Arquiteto (coordenador executivo); Rute Duarte,
economista (consultora técnica); Gilberto Vieira, produtor cultural (consultor técnico); Henrique Gomes, músico
(pesquisador); Daniel Soares Martins, produtor cultural (pesquisador); Allan Jorge dos Santos Cunha, Brenda Vitória
Pacífico, Camila Lima da Silva Felippe e Diego dos Santos Reis Botelho (pesquisadores/entrevistadores). A equipe
da pesquisa vivenciou processos formativos de caráter teórico-conceitual (seminários) e no âmbito de metodo-
logias de investigação (oficinas de capacitação técnica) que contribuíram para elaboração dos instrumentos de
investigação, análise dos resultados obtidos, produção de cartografias sensíveis e avaliação das ações do projeto.
Concluído o momento de consolidação do recorte dos entrevistados, a equipe dedi-
Música – 20%
Fotografia – 10%
Dança – 9%
Audiovisual – 7%
Produção cultural – 7%
Teatro – 7%
Comunicação – 6%
Educação cultural – 6%
Artesanato – 5%
Bailes e festas – 5%
Literatura – 5%
Blocos e agremiações – 3%
Capoeira – 3%
Poesia declamada com rima – 3%
Artes plásticas – 2%
Skate – 2%
Gastronomia – 1%
Como podemos perceber de imediato, a música possui o maior destaque entre
5 Obra idealizada por Cacá Diegues que retoma a premissa original do filme Cinco Vezes Favela de 1962, desta feita
com roteiro e direção de jovens residentes em favelas. Um dos episódios do filme foi produzido e realizado na Maré.
Outra informação relevante é a indicação da produção cultural como atividade
principal assumida por parte dos entrevistados. A informação obtida revela que
cada vez mais as atividades consideradas como captação e gestão recursos, orga-
nização e execução da produção, difusão e comunicação das atividades ganham
importância no desenvolvimento das práticas culturais e artísticas, sendo elas
configuradas em ruas, praças, bares ou em equipamentos culturais. Há demandas
crescentes por essa dimensão de trabalho profissional mais afins aos processos
de gestão e execução do trabalho cultural, demonstrando uma busca de melhor
e maior organização das atividades em seus distintos momentos de produção.
Portanto, considerações apressadas de que nas favelas as práticas culturais são
improvisadas, amadoras e precárias precisam ser superadas, sobretudo com a
observação atenta aos modos de produção e aos meios de fruição de bens simbó-
licos cada vez mais qualificados do ponto de vista conceitual, técnico e expositivo.
O próximo item de análise diz respeito aos locais de atuação das atividades e
práticas culturais dentro do conjunto de favelas da Maré. É importante observar
a predominância de centros culturais, ruas/praças e escolas nas repostas dos
entrevistados, anunciando as suas territorialidades de realização.
Gráfico 2: Locais de atuação na Maré
Baile funk na favela de Nova Holanda, na Maré. Foto: Francisco Valdean (Imagens do Povo/Obser-
vatório de Favelas).
A indicação dos centros culturais como principal abrigo de atividades culturais
e artísticas se apresenta como reveladora das novas condições da produção e
fruição estética, inclusive por causa das exigências de meios e equipamentos
técnicos para sua realização. É preciso acrescentar que há, em algumas favelas
da Maré, organizações da sociedade civil com fortes vínculos com as inventi-
vidades culturais, traduzindo mobilizações de saberes e fazeres mediados por
uso de instalações e tecnologias na criação de produtos simbólicos tangíveis e
intangíveis. Esses produtos mediados pelo uso de tecnologias passam igualmen-
te a exigir espaços qualificados de exposição, com destaque para o audiovisual
e para a fotografia, mas também para as atividades de música, dança e teatro,
que são cada vez mais experimentadas por mediações de tecnologias. Trata-se,
portanto, de uma nova dinâmica da cultura urbana que alcança as favelas, porém,
dialogando com práticas e vivências da cultura popular do chão de pertenças dos
seus criadores.
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// Territorialidades de Práticas Culturais e Artísticas da Favela da Maré (RJ)
Centro de artes visuais Galpão Bela Maré (Observatório de Favelas). Favela da Maré. A criação de
centros culturais vem traduzindo novas experiências de produção e fruição artística e cultural em
favelas da Maré. O Centro de Artes da Maré (CAM) e a Lona Cultural Municipal Herbert Vianna são
outros equipamentos que merecem destaque por sua relevância na formação e na produção no campo
da arte e da cultura. Foto: Galpão Bela Maré.
Ao observarmos os locais de atuação de coletivos e indivíduos na escala da ci-
Própria – 58%
Governamental – 7%
22 Comércio local – 6%
Empresas – 6%
// Territorialidades de Práticas Culturais e Artísticas da Favela da Maré (RJ)
Pessoas físicas – 6%
É importante observar que, além das dificuldades estruturais que fazem parte da
realidade da cena estética da Maré, existem também situações próprias ao con-
texto atual, como a da redução de investimentos na área da cultura pelos governos
municipal e estadual, particularmente afetando a abertura e a própria execução 23
de editais, afetando diretamente projetos e instituições em territórios populares.
Por outro lado, contar apenas com seus próprios recursos é também revelador do dis-
tanciamento das instituições públicas e privadas das realizações culturais e artísticas
na Maré. Mesmo as modalidades de financiamento consideradas mais democráticas,
editais ou contratos de prestação de serviços vinculados a programas e projetos de-
senvolvidos pela iniciativa pública ou privada, ainda se fazem pouco representativos
no financiamento de atividades nos territórios populares e, para muitos realizadores,
um horizonte não alcançável por força da legislação vigente e de exigências adminis-
trativas das entidades de patrocínio e fomento, especialmente para artistas individuais
e coletivos não pertencentes às organizações não governamentais, associações de
moradores e outras entidades formais.
Mensal – 15%
Outra – 7%
24
// Territorialidades de Práticas Culturais e Artísticas da Favela da Maré (RJ)
62%
26
Nunca
// Territorialidades de Práticas Culturais e Artísticas da Favela da Maré (RJ)
15%
Sim, esporadicamente
Sim, frequentemente
23%
Equipamento – 45% 27
Profissionais artistas – 21%
Divulgação – 8%
Transporte – 3%
Material gráfico – 1%
Até 6 meses – 6%
28
Entre 6 meses e 1 ano – 6%
// Territorialidades de Práticas Culturais e Artísticas da Favela da Maré (RJ)
É igualmente interessante que 33,9% dos autores e autoras atuam todos os dias,
seja trabalhando em momentos de produção de bens simbólicos, seja na cena
estética de fruição. Podemos identificar que quase a mesma proporção (34,7%)
de indivíduos e coletivos funciona entre duas a cinco vezes por semana, embora
especialmente dedicados aos finais de semana para suas atividades mais públicas.
É importante destacar a potência de viabilidade dessas práticas culturais em seus
vínculos com o território, guardando potências que poderão ganhar consolidação e
ampliar a capacidade de geração de trabalho e renda para seus autores e autoras.
1 componente – 36%
5 a 10 – 23%
10 a 20 – 13%
2 a 5 – 12%
20 a 50 – 10%
Mais de 100 – 4%
29
50 a 100 – 2%
Financiamento/patrocínio – 64%
Situação territorial – 7%
Material/equipamentos/uniformes – 6%
Infraestrutura – 5%
Valorização/conhecimento – 5%
Recursos humanos – 3%
Problemas de segurança – 3%
Público – 2%
Burocracia dos órgãos governamentais – 1%
Divulgação – 1%
Espaço de realização do evento – 1%
Evasão dos participantes – 1%
Tempo para organizar e criar – 1%
Transporte – 1%
Indivíduos
Artes
Artesanato
Audiovisual Indivíduos
Artesanato
Blocos e Agremiações
Audiovisual
Comunicação
Grupos
MARÉ Dança
Educação
Capoeira
Comunicação
32 Fotografia Dança
Educação
Graffiti
// Territorialidades de Práticas Culturais e Artísticas da Favela da Maré (RJ)
Fotografia
Literatura
Graffiti
Música
Literatura
Produção Cultural
Música
Rima declamada Produção Cultural
Teatro Skate
Teatro
Instituições
Instituições
Biblioteca
Biblioteca
Centro
Centro
Educação cultural
Educação cultural
Espaço de eventos
Espaço de eventos
Os diferentes repertórios se entrelaçam em territorialidades de fruição notada-
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Apresentação de grupo de rock no Espaço Pontilhão (espaço de cenas estéticas criado embaixo do
viaduto da Linha Amarela, via expressa que atravessa a Favela da Maré). Foto: Francisco Valdean
(Imagens do Povo/Observatório de Favelas).
MARÉ
55 12 28 96 22. Bloco benze que dá 89. Batalha do Pontilhão
16 23. Bloco do gargalho 90. Roda cultural do
114 24. Gato de Bonsucesso Parque União
91. Roda cultural do
94 Grupos 4 Centenário
113 Capoeira Produção cultural
25. Capoeira Angola 92. Begha
Ypiranga de Pastinha 93. Diego Reis
93 26. Maré de bambas 94. Geisa Lino
27. Mestre Iran 95. Jean Carlos
57 41 96. Leticia Souza
Comunicação 97. Maré de Rock
34 81
28. Amarévê
29. Data-labe Skate
82
30. Maré de informações 100. Bianca Barbosa da Silva
50 31. Maré de notícias 101. CIA Marginal
32. Nova Holanda e 102. Entre lugares Maré
91 2 Parque União 103. Grupo Atiro
// Territorialidades de Práticas Culturais e Artísticas da Favela da Maré (RJ)
58 Gastronomia
60 59. Maré de Sabores
66
Graffiti
18 60. Renato Cafuzo
61. Thiago Cícero
23
118
Considerações finais
Como vimos, a música (associada à dança) é a expressão mais comum das lin-
guagens artísticas nas favelas estudadas. É bem verdade que a música é diversa
e plural nesses territórios. O samba e o pagode, o forró e sertanejo, o hip-hop e
os múltiplos estilos funk são expressões da multiplicidade dos estilos musicais
das favelas.
cidade do Rio de Janeiro, tendo em sua centralidade o reconhecimento das culturas po-
pulares e seus territórios de acontecimento. Igualmente, acreditamos na possibilidade de
estimular novos conceitos para experiências concretas de economia criativa da cultura,
sobretudo ao considerar as territorialidades inventivas em favelas e periferias urbanas.
Referências bibliográficas
MOLOTCH, H. Growth machine links: up, down, and across. In: JONAS, A.; WIL-
SON, D. (Eds.). The urban growth machine: critical perspectives, two decades later.
Albany: State University of New York Press, 1999, p. 247-265.
SLATER, Don. Cultura do consumo & modernidade. São Paulo: Nobel, 2002.
RANCIÈRE. J. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2009.
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