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Labirinto

Literário
03| EDITORIAL

04 | VISITAÇÃO PÚBLICA

05 | ARTIGO
Achados Imperdíveis

06 | SAÍDA À FRANCESA

08 | ARTGO
Rodeios – Tortura contra
animais, truculência contra
humanos de bem

09 | ARTIGO
Pistas práticas para cuidar da terra (II)

10 | ANÁLISE CRÍTICA
O Mundo de Sofia

12 | ARTIGO
Mais sobre abismos

14 | ARTIGO
Livros e guarda-chuvas perdidos

15 | ARTIGO
Fundar um verso é palavrar

17 | ARTIGO
O bom povo da Armação do Sul

19 | A QUINTA JANELA

20 | CONTO
Café sem leite e sem nada

21 | PÁGINA DE VARIEDADES

34 | A IMAGEM DIZ TUDO

41 | UNIVERSO DA LEITURA

46| CONTO
Menina sem sorriso
3 | Labirinto Literário – nº 16 – Ano 4

EDITORIAL

Lendo
O Labirinto Literário
eu descubro novas palavras.

Sophia Bueno, 10 anos | Salvador – Bahia [BRA]


Sessão

Visitação Pública | Aline Range

A revisão do processo de pensamento, a mudança de atitude mental, o combate à


rotina, a aceitação de um universo em que se cruzam múltiplas correntes de cultura,
eis alguns pontos de um programa de recuperação crítica que deveria ser sempre
apresentado a todos aqueles que desejam aperfeiçoar seus conhecimentos de artes. É
preciso considerar a vastidão e a multiplicidade das formas, idéias, imagens e
sensações que se oferecem à nossa ruminação. A palavra divina que afirma: “Na casa
do Pai há muitas moradas”, aplica-se também, de variadas maneiras, ao universo da
arte. A cada um a sua morada, conforme o talento que recebeu, conforme sua
natureza original ou transfigurada, conforme seu amor, seus erros, suas paixões, seus
ímpetos, sua ideologia, suas inclinações, seu silêncio.
(Apud Laís C. de Araújo, Murilo Mendes, 2ª Ed., Petrópolis, Vozes, 1972, p. 163)

No sentido artístico, a Natureza é tudo o que se apresenta aos nossos sentidos como
exterior a nós. As artes plásticas são as que mais procuram reproduzir a Natureza. A
música é mais independente. Depois da grande vassalagem à Natureza, a arte
libertou-se a cria livre de toda a submissão. É a suprema vitória do espírito humano. A
imitação no princípio, a libertação no fim. Não há uma máquina, um aparelho, que não
seja no seu início uma cópia de um fato natural. O primeiro vapor idealizado tinha
patas de palmípede; o avião asas de pássaro. E, quando as máquinas sucediam a
outros aparelhos, guardavam a estrutura destes. O automóvel foi a princípio um coche
sem cavalos. Depois estas máquinas se emancipam da imitação e tomam formas
próprias, constituem organismos originais, distintos e característicos, fixando o tipo, a
espécie. Hoje, o vapor, o avião, o automóvel tem a sua forma própria e modelar. Assim
será a obra de arte, que a cultura liberta de imitação da natureza, para dar-lhe forma
artística, forma espiritual, peculiar, como um organismo novo, vindo da força criadora
do homem
(Extraído da conferência dada por Graça Aranha na Academia Brasileira em junho de 1924)

O dom criador é naturalmente concreto e não difuso. O homem nasce poeta, músico,
pintor. A cultura apenas desenvolve, aperfeiçoa, melhora ou mesmo deforma o dom.
Não consegue transferi-lo de tendência, senão por exceção.
A vocação literária é, pois, o dom da palavra, como a vocação musical é dom sonoro,
a vocação escultural é dom das formas plásticas etc. Não devemos confundir o dom
da palavra, no sentido de gênio literário, com o termo participar de tendência natural à
oratória. Isto já é um círculo a mais. Não nos antecipemos. O espírito criador em
literatura é o dom geral da expressão pela palavra. Devemos dar a esses termos o
sentido mais amplo possível, de modo a poder incluir os vários caminhos dessa
expressão – o lírico, o épico, o dramático, o crítico, o satírico etc.
(Alceu Amoroso Lima)
5 | Labirinto Literário – nº 16 – Ano 4

Artigo
Achados Imperdíveis | Emily Martin

Um dia, ao começar a escrever um livro didático sobre


literatura, tive que dar uma definição de poesia e embatuquei.
Eu, que desde os dez anos de idade faço verso; eu, que
tantas vezes sentira a poesia passar em mim como uma
corrente elétrica e afluir aos meus olhos sob a forma de
misteriosas lágrimas de alegria: não soube no momento forjar
já não digo uma definição racional, desses que, segundo a
regra da lógica devem convir a todo definido e só ao definido,
mas uma definição puramente empírica, artística, literária. No
aperto me socorri de Schiller, em quem o crítico era tão
quanto o poeta, e disse com ele: Poesia é a força que atua de
maneira diversa e inapreendida além e acima da consciência.

Manuel Bandeira
Sessão
Saída à Francesa | Luisa Beltoise
Jacques Roubaud | Tradução: Caio Meira

No espaço mínimo
Afasto-me muito pouco desse lugar como se a reclusão num espaço
mínimo fosse lhe restituir a realidade, porque era onde você vivia
comigo.

Tanto ao descer quanto ao subir, o sol penetra, quando há sol, e segue


seu caminho reconhecível, por paredes, pisos, cadeiras, curvando,
deitando as portas.

Fico muito ali, seguindo-o com os olhos, interpondo minha mão, não
fazendo nada, pensando, complemento de imobilidade.

Você não habita esses cômodos, eu quase não poderia dizer isso, quase
não sou assombrado por você, são raras, agora, as alucinações noturnas
de sua voz, não a surpreendo mais ao abrir a porta, ou os olhos.

O que me ocupa, inteiramente, e me demove do exterior, de me


distanciar, de deixar os quartos, os movimentos do sol, é o espaço,
apenas o espaço, tal como você o tinha preenchido com imagens, suas
imagens, seus tecidos, seu odor, seu calor escuro, com seu corpo.

Ao partir, você não foi colocada em outro lugar, você se diluiu nesse
espaço mínimo, evadindo-se nesse mínimo espaço, ele a absorveu.

À noite, sem dúvida, se me levanto à noite, com angústia no peito, a


janela enorme, esfregando os olhos, barulhenta, a noite, sem dúvida, eu
poderia dar forma a você, falar, refazer você, costas, ventre, uma nudez
úmida negra, não me deixo ir a esse ponto.

Abandono-me ao longo das janelas, da igreja, ao golfo de tetos à


esquerda da igreja, aonde se lançam as nuvens, noite após noite.

Deixo o sol se aproximar, me cobrir, deitar-se, deixando seu calor por


um momento, pensando, sem acreditar, em sua pele de volta ao mundo,
revivida.
7 | Labirinto Literário – nº 16 – Ano 4

Dans l’espace minime


Je m’éloigne peu souvent de cet endroit comme si l’enfermement dans un
espace minime te restituait de la réalité, puisque tu y vivais avec moi.

À sa descente, comme à sa montée, le soleil pénètre, s’il y a du soleil, et


suit son chemin reconnaissable, sur les murs, les planchers, les chaises,
courbant, couchant les portes.

Je suis là beaucoup, à le suivre des yeux, à interposer ma main, sans


rien faire, penser, complément d’immobilité.

Tu n’habites pas ces pièces, je ne pourrais dire cela, je ne suis pas hanté
de toi, je n’ai plus, maintenant, que rarement l’hallucination nocturne de
ta voix, je ne te surprend pas en ouvrant la porte, ni les yeux.

Cela qui m’occupe, entièrement, et me détourne du dehors, de


m’éloigner, de quitter les chambres, les mouvements du soleil, c’est
l’espace, l’espace seul, tel que tu l’avais empli d’images, de tes images,
de tes étoffes, de ton odeur, de ta sombre chaleur, de ton corps.

Disparaissant, tu n’a pas été mise ailleurs, tu t’es diluée dans ce minime
espace, tu t’es enfuie dans ce minime espace, il t’a absorbée.

La nuit sans doute, si je m’éveille dans la nuit, avec l’angoisse de


poitrine, la fenêtre énorme, à me toucher les yeux, bruyante, la nuit sans
doute, je pourrais te donner forme, parler, te refaire, un dos, un ventre,
une nudité humide noire, je ne m’y abandonne pas.

Je ne m’abandonne à l’allongement des fenêtres, de l’église, au golfe des


toits à gauche de l’église, où se lancent les nuages, soir après soir.

Je laisse le soleil s’approcher, me recouvrir, s’éteindre, laissant sa


chaleur un moment, pensant, sans croire, ta chair remise au monde,
ravivée.
Artigo

Rodeios: tortura contra animais, truculência


contra humanos de bem | Robson Fernando
Rodeios sempre são tortura contra os animais. Infelizmente esse
festival sádico de Barretos ainda vem aumentando de audiência,
porque as pessoas não estão conscientes da tortura infligida aos
bois e permanecem alienadas pelo pretexto da "cultura".

Pergunto uma coisa: é divertido ver um boi amarrado com sedéns no


testículo (ou no ventre, no caso das éguas), com cordas no peitoral
os asfixiando, recebendo choques elétricos para correr do brete,
sofrendo com a batida das esporas em suas costelas?

Tenho pena dos filhos dos peões, que assistem a esse show de
horrores pensando que seu pai é "um valente cowboy dominando a
arte de montar bois 'furiosos'", sem saber a verdade. Mais pena
ainda por ver alguns deles querendo ter a "profissão" do pai, que na
verdade não passa de cúmplice da tortura de bois e cavalos!

E mais: organizadores de rodeios e seguranças dos mesmos (ora


leões-de-chácara, ora policiais provavelmente pagos pra
acobertarem as humilhações contra os animais nos bastidores e na
arena) costumam agir com total truculência e até violência contra
quem protesta contra os maus tratos e as torturas que os animais de
rodeio sofrem! Muitos defensores dos animais já testemunharam ou
mesmo sofreram com tal truculência. Se organizadores de rodeio
não querem saber das maldades cometidas contra os animais, não é
de surpreender que agridam humanos sem nenhum escrúpulo
também.

Por agora é só o que eu tenho a dizer. Resumindo: rodeio é tortura e


maus tratos contra animais, e a truculência está a serviço dos seus
organizadores para impedirem que a verdade seja flagrada e
denunciada.
9 | Labirinto Literário – nº 16 – Ano 4

Artigo
Pistas práticas para cuidar da Terra (II) | Leonardo Boff
No artigo anterior referimos pistas práticas que tinham a ver com a mudança da mente ou do
olhar. Agora importa considerar as mudanças das práticas da vida cotidiana:
Procure em tudo o caminho do diálogo e da flexibilidade porque é ele que garante o ganha-
ganha e é uma forma de diminuir os conflitos e até poder resolvê-los.
Valorize tudo o que vem da experiência, dando especial atenção aos que não são ouvidos
pela sociedade.
Tenha sempre em mente que o ser humano é um ser contraditório, sapiente e ao mesmo
tempo demente; por isso seja critico e simultaneamente compreensivo.
Tome a sério o fato de que as virtualidades cerebrais e espirituais do ser humano
constituem um campo quase inexplorado. Por isso sempre esteja aberto à irrupção do
improvável, do inconcebível e do surgimento de emergências.
Por mais problemas que surjam, a democracia sem fim é sempre a melhor forma de
convivência e de superação de conflitos, democracia a ser vivida na família, a comunidade,
nas relações sociais e na organização do estado.
Não queime lixo e outros rejeitos, pois eles fazem aumentar o aquecimento global. Eles
podem ser reciclados.
Avise às pessoas adultas ou às autoridades quando souber de desmatamentos, incêndios
florestais, comércio de bromélias, plantas exóticas e de animais silvestres.
Ajude a manter um belo visual de sua casa, da escola ou do local de trabalho, pois a beleza
é parte da ecologia integral.
Anime a grupos para que no bairro se crie um veículo de comunicação, uma folha ou um
pequeno jornal, para debater questões ambientais e sociais e acolher sugestões criativas.
Fale com frequência em casa, com os amigos, com os moradores de seu prédio e na rua
sobre temas ambientais e de nossa responsabilidade pelo bem viver humano e terrestre.
Reduzir, reutilizar, reciclar, rearborizar, rejeitar (a propaganda espalhafatosa), respeitar e se
responsabilizar. Estes 7 erres (r) nos ajudam a sermos responsáveis face à escassez de
bens naturais e são formas de sequestar dióxido de carbono e outros gases poluentes da
atmosfera.
O Pe. Cícero Romão Batista, um dos ícones religiosos do povo do Nordeste do Brasil,
elaborou, no início do século XX, dez preceitos de conteúdo ecológico: “Não derrube o mato
nem mesmo um só pé de pau.
- Não toque fogo no roçado nem na caatinga.
- Não cace mais e deixe os bichos viverem.
- Não crie o boi nem o bode soltos: faça cercados e deixe o pasto descansar para que possa
se refazer.
- Não plante serra acima, nem faça roçado em ladeira muito em pé; deixe o mato
protegendo a terra para que a água não a arraste e para que não se perca a sua riqueza.
- Faça uma cisterna no canto de sua casa para guardar a água da chuva.
- Represe os riachos de cem em cem metros ainda que seja com pedra solta.
- Plante cada dia pelo menos pé de árvore até que o sertão seja uma mata só.
- Aprenda a tirar proveito das plantas da caatinga.
Se o sertanejo obedecer a estes preceitos, a seca vai se acabando, o gado melhorando e o
povo terá o que comer.
Mas, se não obedecer, dentro de pouco tempo, o sertão todo vai virar um deserto só”.
Estas práticas nos dão a esperança de que as atuais dores não são de morte mas de um
novo nascimento. A vida triunfará
Análise crítica
O Mundo de Sofia|
Sofia Gildo Leobino de Souza Júnior

Afinal, o que seria Filosofia? É uma pergunta interessante. Não observamos


quase ninguém perguntar, por exemplo, o que é matemática ou física? Mas
se acha natural perguntar: o que é Filosofia?

Investigando a própria possibilidade do conhecimento, digamos até que os


pressupostos e os limites do conhecimento, a Filosofia se faz necessária na
medida em que efetuamos a arguição do seu próprio conceito. Essa relação
entre o conceito e a sua utilidade é o âmago do seu estudo, possuindo
enorme relevância.

Propondo justamente uma análise minuciosa do saber, O Mundo de Sofia nos


atém à volúpia do conhecimento, passando desde Pitágoras, com a
denominação corrente (sophia ou sabedoria, philia ou afinidade), até Jean-
Paul Sartre e o Existencialismo do século XX.

Tendo como fundo um romance fictício, um curso filosófico é exposto


garbosamente, de forma prática e efetiva. Nota-se facilmente a habilidade do
autor em relacionar e descrever os vários pensamentos filosóficos em grade
evolutiva.

Temas diversos têm enfoque relevante no livro em epígrafe, sendo


apresentados e debatidos desde o início da obra, dos quais os mais
importantes são: razão, verdade, conhecimento e lógica. Sem dúvida, temas
constituintes do pensamento filosófico. A análise de Immanuel Kant ou
qualquer outra figura proeminente é dotada de conceitos e exemplos referidos
ao pensador, de modo que se pode captá-los sem a necessidade de um
conhecimento anterior à leitura.

Doravante, passa-se a efetuar uma análise crítica dos diversos temas


abordados pelas correntes de pensamento que ajudaram a definir os pilares
da Filosofia. Em amálgamas generalizadas, culminando uma síntese para
facilitar a compreensão.

Com base na razão, infere-se que ela opera seguindo certos princípios
estabelecidos, que estão em convergência com a própria realidade, mesmo
quando os empregamos sem conhecê-los explicitamente. Destarte, a
consciência humana não deixa de ser razão, porém a razão não é apenas
capacidade moral e intelectual dos seres humanos, mas também uma
propriedade ou qualidade precípua das próprias coisas, havendo na própria
realidade.

A lógica aparece bastante difundida na Filosofia, originando-se nos estudos


sobre o devir (fluxo dinâmico de todas as coisas, ou seja, origem,
transformação e desaparecimento dos elementos) de Heráclito e Parmênides,
atingindo o seu ápice nas célebres conclusões de Platão e Aristóteles.
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Comumente relacionada às ciências matemáticas, por possuir caráter exato


ou racional, cuja coerência seja a principal característica, a lógica possui no
silogismo um exemplo da sua atuação. Por definição ou conceito, o
silogismo nada mais é do que a conclusão por meio de duas premissas
anteriores.

Ainda seguindo esse campo de definições, aduzimos a dialética clássica,


sendo ela uma discussão entre opiniões divergentes que acarretará em uma
síntese a fim de formular os preceitos desse determinado enfoque de
discussão.

Contudo, superando as diferenças entre Platão e Aristóteles e negando a


afinidade da lógica com a matemática, Hegel relacionando lógica e dialética,
faz aduzir que a lógica não seria um instrumento formal e austero para o uso
efetivo do pensamento. Lógica seria ontologia, isto é, o estudo do ser em sua
essência.

Continuamos a análise crítica sem olvidar a concepção de verdade, um termo


de notória importância para o livro em questão.

O romance relaciona ainda, a verdade e a razão. O verdadeiro é


evidentemente (e aí temos uma referência à lógica) visível para a razão.

Há dissidências sobre a origem e o significado de verdade, mas o fato é que a


nítida possibilidade de situarmos o nosso conceito na tríade verdade, lógica e
razão esmaece as dúvidas quanto à utilização do termo. Ousamos dizer, e o
livro prova se o leitor atento for, que se houver o correto manuseio da referida
tríade, possibilitar-se-á ao sujeito, almejar o conhecimento pleno, blindado à
subjetividade.

Sem dúvida, algo que não é falaz, todavia se faz muito difícil se desvencilhar
das armadilhas sensoriais e morais, intrínsecos à sociedade, da qual todo
homem é refém.

Chegar à verdade universal ou ao conhecimento puro seria o maior degrau já


colimado pela humanidade, resta saber se podemos algum dia atingi-lo.

Conclui-se que Sofia Amundsen alargou o seu campo de percepção ao


lançar-se no estudo da Filosofia. De fato, o autor de forma perspicaz introduz
ao leitor um curso filosófico sem que este se torne monótono, haja visto o
belo romance, farto de histórias engenhosas presentes no seu bojo.

De fato, passamos pela história do pensamento filosófico com praticidade e


objetividade ao analisar a aludida obra literária.

Descobrir que ser um amante e não um possuidor do conhecimento é


enveredar-se na assertiva que prega o conhecimento ou saber como sendo
infinito. Convém salientar a relevância da busca pela essência da Verdade
universal, não há, entretanto, como afirmar quando atingiremos maturação
suficiente para lograr tal êxito. Uma excelente obra, um excelente curso.
Artigo
Mais sobre abismos | Mona Lisa Budel

O pesadelo mexe com o corpo dela, da mesma forma como a manteve


acordada e cansada durante os dias que passaram. Procura a segurança que não
tem em si, depois de tantos dias exaustos. Deita-se sobre o peito dele, os olhos
ainda ardidos pelo tempo que exigia além do corpo e por minuto não existe
mais o sonho ruim que a fez encolher e sentir o quanto doía o seu corpo. Ela
ensaia um acordar parece que ouve o sussurrar de um “bom dia”. O cheiro dele,
o peito dele, o jeito dele, por um minuto... dois ...

O dia já meio ido, talvez o mundo já esteja acontecendo, ela queria mais
força e ele abraçado nela até parece esquecer do tempo. Ela queria pedir pra ele
ficar, queria pedir para ficar, mas não pode abrir os olhos por inteiro, o corpo
dói demais, a garganta esta amarga, aranhada, o dia ainda não havia chegado
para ela, ensaia um pedido, mas antes, porque sabe que o mundo o espera e que
o mundo dele esta ainda por vir, pergunta, sabendo do atrasado e que não há
mais tempo para se esquecer “que horas são?”... quanto tempo eles durarão até
que o mundo o leve ou o devore ?

Era hora demais e tempo demais, acontecendo rápido demais para


acompanhar, o universo se partia em um terremoto sem explicação dentro dela,
não haveria como explicar a falta de corpo para viver tudo que ela sente... mas
ela poderia pedir para ficar, para ela ficar um pouco mais, para ele ficar uma
hora á mais, explicar que ela naquela manhã era corpo de menos para sentir
demais... ensaia alguma coisa ... mas só consegue pedir desculpas numa voz
rouca que não é sua, desculpas doloridas e graves por estar fraca demais, as
lágrimas lhe apertam forte as pálpebras e ela chora em seco, “ eu não queria
sentir tanto” e o bicho faminto e selvagem que há dentro dela come as paredes
de suas entranhas e dorme no seu peito, uma tosse lhe tira a respiração, lhe
torce as pernas e a joga mar á dentro e toda vez que ela vem á tona em pedido
de socorro, bebe água salgada.

Onde foi que encontrou um abismo tão grande dentro de si, por que há
tanto espaço e tanta falta de lugar, quem criou esse mar de sede que pede tanto
sal dentro da alma. Porque sente esse desejo de ser tanto além do corpo, de
sentir cada segundo, de aproveitar cada sensação, o que faz qualquer pequena
coisa tão intensa pra ela? Por que sentir tanto?

Ela poderia pedir, não pediu, queria dizer ...“não agüento sozinha”,
disse de outro jeito porque não poderia invadir um mundo já agendado e com
hora para acontecer, ela poderia ter escrito no bilhete que sempre deixa
escondido, “me ajuda, vem comigo”... mas ela só respirou fundo e pediu
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enquanto ele se levantava, “posso ficar enquanto você vai?” Ela ainda
precisava respirar um pouco mais, do ar rarefeito que existia dentro de si...

Ele consentiu, talvez sentindo que nem tudo estava certo, saiu sem
culpa, porque não tinha culpa nenhuma das imensidões que existiam dentro
dela. Quando se foi, ela fechou a porta e escondendo a cabeça no escuro dos
travesseiros, recusou a luz que entrava pela janela e que feria as sombras que
dormiam nos seus pesadelos, era preciso cultivar os pesadelos e as sombras,
mas quanto mais ela se escondia do mundo, mais o mar que havia dentro dela
fugia pelos olhos e a hora avançava lhe obrigando a sair de seu esconderijo.

Ela desiste de resistir e se enrola em panos e prantos, tentou inutilmente


secar as lágrimas na água doce do chuveiro, mas naquele dia nada adiantou ...
ela também se foi, sem sair de si e durante á tarde e durante á noite o bicho
faminto e selvagem que havia nela, continuou a devorar suas entranhas e
apertar o peito.
Artigo
Livros e guarda-
guarda-chuvas perdidos | Rubens da Cunha
Dizem que os guarda-chuvas, quando se perdem vão para uma terra só deles.
Acredito muito nisso, porque é só você pensar: quantas pessoas você conhece que
perderam guarda-chuvas ou sombrinhas? E quantas você conhece que acharam
esses objetos alguma vez na vida?

A desproporção entre quem perdeu e quem achou é muito grande, assim só pode
existir mesmo a terras dos guarda-chuvas perdidos, que deve ficar ao lado da terra
dos livros perdidos. Quem tem uma quantidade razoável de livros, e não prima pela
organização, sabe que eles também somem com facilidade.

Em relação aos livros, existem dois tipos de sumiço: o primeiro é aquele em que o livro
“desaparece” dentro da biblioteca mesmo. O segundo, é aquele em que o livro
desaparece para sempre, pois ou esquecemos para quem ele foi emprestado, o que
nos impede de pedi-lo de volta, ou o perdemos em algum lugar. Sou vítima constante
do primeiro tipo de sumiço: procuro e reprocuro, e se não acho, dou um passeio, deixo
passar uma noite e, quando volto o livro está lá, parece que também estava me
procurando, parece que tinha ido apenas dar uma volta para descansar e me
encontrar mais tarde e por causa disso nos desencontramos.

Quanto ao segundo tipo de sumiços, temos a figura do “emprestador”, alguém para


quem cedemos, além do livro, a confiança da devolução. Nem sempre o livro volta, o
que gera uma raiva por ter desafiado a verdade contida nesse quase ditado: “trouxa é
quem empresta um livro e mais trouxa ainda é quem devolve”.

Mas o meu problema não está só em emprestar o livro, mas em esquecer para quem
emprestei. Acontece comigo também, tal é o esquecimento que já cheguei ao ponto de
não saber se emprestei ou se perdi o livro, assim como os milhares de guarda-chuvas
que já “esqueci” por aí.

Há anos vivo com o incômodo de não saber o que aconteceu com um livro. Era
“Ascese – os Salvadores de Deus”, de Nikos Kazantzakis. Traduzido por José Paulo
Paes, o livro tinha passagens muito poéticas, falava sobre a elevação do homem até o
sagrado, e eu o emprestei não sei para quem, ou talvez tenha perdido não sei onde. É
algo estranho este não saber, este deletar completamente da memória um possível
destino do livro.

Quem é leitor sabe que damos muito valor a esses objetos, que não estamos tratando
de guarda-chuvas, por isso, esquecer de um livro, esquecer o que aconteceu com ele
é traí-lo. É isso, sinto-me um traidor do livro. Ele era meu, estava todo marcado com
meus sublinhados e rabiscos, e eu o abandonei em algum lugar.

Talvez uma sessão de hipnose, um transe mediúnico me informe que o meu livro
perdido está bem, está na terra de todos os livros perdidos, que fica ali, vizinha à terra
dos guarda-chuvas perdidos e que, nos finais de semana, eles se encontram e
lamentam a ingratidão humana disfarçada de esquecimento.
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Artigo
Fundar um verso é palavrar | Fábio Pessanha

Como um pássaro que rasga o dia e se acolhe em seu aninhar-se, a


palavra desmembra a boca nas sílabas contra o vento. Sua envergadura é a
do verbo: deus que voa entre-homens de pulo em pulo e se diz na sua fala: o
silêncio.
A palavra é o balanço dos significados, o adentrar da lesma em seu
caracol semântico: nada de sólido no rastro luminoso de sua gosma verbal: o
caminho para o nada.
Ensaiamos sempre a possibilidade de se calar. Ouvimos a cada
momento a brisa de um recado que se foi no longe de nossos ouvidos: a
memória para além das reminiscências, no cume catabático da linguagem.
Antes de falar, cantamos a doce música da memória. Quando
embalados pelas musas, somos acarinhados de canto e silêncio, uma vez
que tais deusas habitam o lugar sagrado e secreto de onde os poetas saem e
para aonde vão quando tomados por seus versos. Isto mesmo! Os poetas são
tomados por este singularíssimo momento de exaltação e ruptura do racional.
É como os gregos diziam: thaumadzein! O espanto primordial que alargava a
visão e irrompia o gesto em horizontes.
As palavras são os instantes em que o susto infringe a plenitude da
não-fala. Porém, não nos enganemos. Doce é a ilusão da régua que afronta a
realidade na medida de sua contagem... A ruptura da voz se dá ao mesmo
tempo em que a palavra se recolhe no silêncio. Nem mais e nem menos: o
caminho retilíneo e a fila indiana foram inventados por quem era pobre de
poesia. Para justificar sua incompreensão, redimensionou-se toda
acontecência do real na farsa das duras realidades, assim mesmo: uma após
a outra. Na verdade, silêncio e fala ocorrem juntos no trânsito inesgotável de
antes-e-depois-ao-mesmo-tempo: permanência e mudança!
O movimento do poetar é o do palavrar. Sim, pois a palavra de ordem
é palavrar! O dizer do verbo não atende à gramática. Os dicionários não
entendem nada de palavra, só a poesia:

Usava um Dicionário do Ordinário


com 11 palavras de joelhos
inclusive bestego. Posava de esterco
para 13 adjetivos familiares
inclusive bêbado
Ia entre azul e sarjetas.
Tinha a voz de chão podre.
Tocava a fome a 12 bocas.
E achava mais importante fundar um verso
do que uma Usina atômica.
Era um sujeito ordinário.
(BARROS, Manoel de. “Arranjos para assobio”. In: Gramática expositiva do
chão (Poesia quase toda). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990, p.
223).
Ordinário: a palavra que abre e fecha o poema. Não como núcleo, mas
como o que se aconchega ao substantivo, à substância. Toda essa
ordinariedade é rompida no alargamento do viver. O pássaro que voa alonga
nossa visão ao seguirmos sua trajetória. Somos tanto fundados pela
inconstância da vida ao morrermos como vivemos no percurso de nossa
morte.
De sujeitos ordinários, as ruas estão cheias. Por eles somos
esbarrados numa esquina ou pôr-do-sol, por eles somos incinerados antes de
dar play no toca-vidas. Os poemas não têm função, do contrário, não seriam
poemas, mas armas de espanta-escuta.
Ao passarmos rapidamente o olho no trecho da obra acima,
observamos a quebra de qualquer racionalidade. Não como exemplo de estilo
ou movimento estético que aponta no extremo de uma produção industrial,
mas como apontamento de sentires, como intermitência de realidades, como
fundamento e aprofundamento de pensares. Ao nos disponibilizarmos à sua
escuta, somos atravessados pela tensão de mobilidade e pausa, de
avistamento ao horizonte do incomensurável. E mais, os números trazem a
razão e dela se desfazem ao deixar para trás a certeza da contagem: poesia.
A poesia é o criar originário: poíesis. O que não significa que os
gregos têm os direitos autorais sobre as palavras. Que nada... A palavra corre
e nos atravessa na velocidade do velamento. A palavra nos abre para o
mundo ao nos conformar no mundo, pois, caso não saibam, a palavra é o
próprio movimento: parabállein! Este termo significa o “jogar, lançar junto,
para além de”, ou seja, o movimento não é significado pela concepção de um
conceito, mas é a própria vigência da palavra. Por isso, lançamos para além
de nossa existência o vislumbre corpo-sonoro do que somos e não-somos.
Palavremos a inconstância dos ditos, desformemos a formalidade das
bocas engessadas de conceitos! Sejamos o poeta que somos e fomos
forçados a esquecer!
Palavremos, pois palavrar é dizer o silêncio no ato de seu velamento.
Palavrar é calar e é também dizer. A palavra foge de nosso âmbito de
utilidade e nos leva ao princípio de humanidade. Desta maneira, imergimos
no mistério de onde surgem o canto e a dança, obsurdamos a incidência do
surpreendimento da voz e do gesto: mundificamos.
Mundificamos, tornamos mundo o lapso entre vida e morte no instante
do agora. Então, vamos escutar o poema e seguir sua provocação: fundemos
versos na eloquência do silêncio! Palavremos!
17 | Labirinto Literário – nº 16 – Ano 4

Artigo
O bom povo
povo da Armação do Sul | Urda Alice
Klueger
Primeiro vamos entender o que significa a palavra “Armação”, já que o
litoral brasileiro está cheio de praias que se chamam “Armação”. Armação era
um empreendimento industrial português onde se caçava (ou pescava) baleia, lá
pelos séculos XVIII e XIX , e onde se aproveitava o óleo e outros sub-produtos
desses grandes mamíferos.
O tempo passou, e temos algumas Armações aqui no litoral de Santa
Catarina. Quis o destino que eu me aproximasse muito de uma delas, a Armação
do Sul, também conhecida como Armação do Pântano do Sul, no sul da Ilha de
Santa Catarina. Acabei batendo lá, quase por acaso, devido a pesquisas
arqueológicas lá acontecidas anteriormente, na década de 1970, e não larguei
mais pé de lá. E queria falar, hoje, justamente sobre a boa gente que habita
aquela Armação onde parece que vieram encalhar todos os bichos-grilos do sul
do continente americano, além dos eventuais visitantes de outras plagas, como
um suíço, um sueco e um casal de espanhóis que estão faz semanas, no camping
que freqüento por lá. Pois é, fazendo banana para o estresse, ando dormindo
todas as semanas uma noite num paradisíaco camping que tem lá. Durmo sob
árvores, a 5 cm da grama do chão, separada das ondas que quebram na praia
apenas por uma duna cheia de pés de pitanga, onde, preferencialmente, os
europeus montam suas barracas enfiadas sob as pitangueiras, coisa assim que
eles nem julgavam mais que existisse no mundo antes de atravessarem o oceano.
E, de uma forma geral, a língua que se fala lá naquela Armação encantada é um
portunhol que se mistura um pouco com francês e outras coisas, que levam a
gente até a conseguir entender algo quando um sueco fala.
Nesta semana, porém, encontrei uma turma que falava o mais legítimo
português. Já escurecera, e eu vinha andando descalça pela rua, depois de ter
andado dentro do mar para lavar o cansaço do dia, quando me deparo com a
turminha, todos de bicicleta: quatro de pé, observando, e dois no chão, quase se
matando. Mas era coisa feia mesmo, um dos meninos (teriam 8, 9 anos) estava
totalmente rendido, e o outro lhe enfiava pontapé na cabeça, pontapé na coluna,
coisa assim que podia acabar até em morte. No meu variado curriculum consta
até um breve período como professora, onde aprendi que meninos brigam
mesmo, e que nestas brigas costuma dar dente quebrado, etc. Interferi.
- Ei, separem eles, vão acabar se matando!
Os sádicos amigos que acompanhavam a briga na maior imobilidade
tiveram que reagir – separaram os dois, seguraram um para cada lado. Ficou
aquela conversa assim, totalmente brasileira:
- Tu só bates em quem é menor que tu!
- Quero ver quando meu irmão te pegar!
- Nunca mais que tu vais ver vídeo-game lá em casa!
- Frouxo! Frouxo! Nem pentelho tu tens ainda! – vocês conhecem como
meninos se xingam. Tentei chamá-los à razão:
- Aonde é que já se viu, meninos de família, como vocês, rapazes
estudiosos, brigando deste jeito! O que aconteceu?
- Estudioso, ele? Ah! Ah! Ah!
Acabei descobrindo, porém. Um dos meninos tinha uma caneta a laser,
dessas proibidas, e andara colocando o laser em algum cachorro por ali.
- Foi só na perna! Não tinha perigo de cegar!

E briga de cá e briga de lá, e lá pelas tantas apareceu um baita cachorrão


por ali. Cheirou e lambeu os meninos todos, todo o mundo fez carinho nele. Era
o tal cachorro que dera origem à briga. Perguntei:
- Ele é amigo de quem de vocês?
Era amigo de todos. Gostavam tanto dele que por causa do cachorro
corriam o risco de matarem-se, quando os encontrei. Meninos que gostam tanto
de cachorro só podem ser meninos de grande coração. É assim a boa gente da
Armação do Sul!
19 | Labirinto Literário – nº 16 – Ano 4

Sessão
A Quinta Janela | Carol de Oliveira

“Será que eu ainda tenho a alma limpa”

Eu era como aquela nuvem ali: branca,


inocente, livre. Era porque já sou do mundo,
sou da rua, do nada. Eu tenho vontade de
voltar no tempo e nunca ter saído de casa.
Nunca ter feito o que eu fiz. Mas isso é
besteira. Ainda sou criança sabe? Tenho de
vez em quando essas crises de tolices. Saí de
casa porque não dava mais pra aguentar as
cachaças da minha mãe, meu pai nem sei
quem é. Só tenho saudade mesmo dos meus
irmãos, nem sei como eles estão. Pulei a janela
e nem olhei pra trás. Chorei tanto naquela
noite, chorei porque sabia que nunca mais eu
iria vê-los novamente. É a vida moça. A vida é
pra quem tem coragem de viver, pra quem tem
medo, morre cedo. Olha a nuvem! Ela não é
linda? Eu gosto de nuvens não sei por quê.
Será que eu ainda tenho a alma limpa como
aquela nuvem, será? Vou te contar uma coisa,
eu queria ser feliz. Nunca mais cheirar cola de
sapateiro. Nunca mais esperar o carinha da
lanchonete me dá os restos de comida dos
outros. Nunca mais ter que dormir debaixo do
viaduto. Mas isso é besteira minha. Eu vou ficar
na rua pra sempre, até morrer. Mas não vou ter
relação com ninguém, não quero ter filho... Eu
sozinha já é um fardo. Quantos anos eu tenho?
Tenho doze anos, mas sei me cuidar. Sou
criança, mas sei me cuidar. Cuidar de mim é
tudo que eu mais faço nessa vida.
Conto
Café sem leite e sem nada | Vanessa Del Negri
Entrou com um sorriso desconfiado e tímido. Cara de quem não sabe o
que está fazendo com a maior segurança do mundo. Prendeu o cabelo
na nuca com um nó. Cabelo grande. Ela toda era grande, apesar de
pequena. Esgueirou-se pelas vigas de sustentação e apoiou-se no
balcão. Um café, Puro? Isso. Pegou um pacotinho de adoçante e ficou
passando pelos dedos. Unhas vermelhas gastas. Pequenas em uma
pequena mão branca. Era como se segurasse pequenos morangos nas
pontas dos dedos, e eles brincassem com um pacote de adoçante. Não
morava lá, certeza. Não. Aqui a gente conhece um por um. E ela não
era do tipo que parecia artista, prostituta, viúva, prima do interior,
travesti, ou qualquer um dos típicos moradores do centro de São Paulo.
Parecia um nada sem fim, um grande túnel sem a luz do final. Pegou o
café. Queimou a língua e se eu não visse suas sobrancelhas curvando-
se em direção aos olhos, não suspeitaria. "Ninguém poderia ver sua
dor", pensei. Mas eu via. Todos viam. Transbordava de sua serenidade
comedida, com a graça leve de um palhaço que borra a maquiagem e
não se abala.
Aproximou-se dela. Ele sempre se aproxima de alguém. Não é de falar
muito. Desde que mora aqui o ritual é sempre o mesmo. Chega, pede
um café, aproxima-se de alguém, troca quatro ou cinco frases,
despede-se. Esse café deixa acordado? Tomara, Não quer dormir?
Não quero sentir sono.
Ela não queria sentir sono.
Visivelmente não se interessava pela conversa furada, pela noite, pelos
astros, pela alquimia, pelo nome dele. Só o café que seguia passando
pela sua língua e despertando os sentidos que estavam começando a
sentir sono. Por que não quer sentir sono? Eu não consigo dormir,
então sofro muito quando sinto sono. Essa foi a melhor razão possível
que eu esperaria daquela pessoa. E com três minutos lá dentro, já me
sentia parte dela, como se meu mundo se fundisse em sua falta de
mundo. Despediu-se dela o rapaz, com um tchau sem graça. E se
tivesse, ela não a veria.
Engoliu o fundo da xícara e deixou-a lá. Vi-a vindo até mim, respirando
graciosamente um oxigênio que parecia não dar a vida a nenhuma de
suas células. Uma viva morta. Um café e, por favor, queria um desses
brancos. Peguei o chocolate e dei em sua mão. Três reais. Sorriu. Era
sincero, sinceramente triste. Obrigada, seu café é muito bom. Primeira
vez que eu tomo café aqui. Eu sorri. Era sincero, sinceramente feliz.
Mas eu sei que ela mentiu. Mentiu pra poder sorrir. Mentiu pra fingir ter
prestado atenção no gosto. Mentiu pra fingir que estava vivendo, mas
eu sabia que lá havia muito mais do que tristeza. E era aquele muito
mais indecifrável, aquela dor que ninguém pode sentir além dela.
Desejei em pensamento vê-la viva, só por um instante. Mas ela não vai
voltar. Nunca mais.
21 | Labirinto Literário – nº 16 – Ano 4

Sessão
Página de Variedades | Sofia Lisboa
23 | Labirinto Literário – nº 16 – Ano 4

Carlos Duque
Caracas | Venezuela

SANTO OFICIO

Yo que me burlo de los templos


de los santuarios
con sus curas y monjas que huelen a polilla
yo que me persigno antes de entrar a los bordeles
y sólo ante las putas confieso mis crímenes
y convierto el vino en sangre
y leo el futuro en los muslos de aquellas dulces damas
que sueltan barbaridades de su boca
mordiendo las sábanas
escribo nuevos testamentos
reformulo los viejos
en canciones de misa
escribo mandamientos para las secretarias
que fornican en las oficinas
multiplico los pecados por todas las ciudades
y se vuelven capitales
abro círculos para que todos
quepan en este dulce infierno
si me sacrifican
no me pongan entre ladrones
porque de seguro no resucitaré
entre los muertos
me quedaré allá abajo sonâmbulo
y en éxtasis
oliendo el perfume del entresuelo.
Suelen Romancini
São Paulo | Brasil

A CAIXA

Mais um dia como todos outros se vai.


Eu tive um sonho bonito e estranho esta noite.
Como se já não bastasse juntei uns cacos do meu museu
particular, talvez porque precisasse.
Até senti vontade de voltar algumas músicas, mas desisti,
não é possível fazer muito.
Dias intermináveis me esperam ou daqueles que gosto,
perto de tudo que sinto apreço.
Pessoas circulando, tremendo.
Vamos nos apedrejar?
Vergonha de abrir a boca e se formar nela palavras
sem sentido.
Sempre falo o que não devo, mas olha que engraçado
não há arrependimento depois.
Será que ainda consigo gritar?
Eu quero correr, será que você consegue habilmente
segurar minha mão sem me assustar e ir junto comigo?
Existe uma caixa de madeira com acabamento em restos
de pano em minha mente, nela existem botões,
agulhas e alguns restos de cetim espalhados.
Ao menos posso me permitir amaldiçoar pandora.
Estou a um passo de deixar o meu Eu ridículo ao lado.
25 | Labirinto Literário – nº 16 – Ano 4

Pedro Du Bois
Rio Grande do Sul | Brasil

ESCREVER

Evito escrever verdades


veleidades
aleivosias

(abismado em águas descobertas


receio o eco inebriado: letra
estrangulada)

reviro mentiras
ao lado desproporcionado
em cantos: calo o verbo.

Levanto bandeiras
em punhais enviesados.

Verdades: a indiferença
anotada no canto da folha
jogada ao chão de outonos.
Elizabeth Bishop
Massachusetts | EUA
Tradução de Horácio Costa

UMA ARTE

A arte de perder não tarda aprender;


tantas coisas parecem feitas com o molde
da perda que o perdê-las não traz desastre.

Perca algo a cada dia. Aceita o susto


de perder chaves, e a hora passada embalde.
A arte de perder não tarda aprender.

Pratica perder mais rápido mil coisas mais:


lugares, nomes, onde pensaste de férias
ir. Nenhuma perda trará desastre.

Perdi o relógio de minha mãe. A última,


ou a penúltima, de minhas casas queridas
foi-se. Não tarda aprender, a arte de perder.

Perdi duas cidades, eram deliciosas. E,


pior, alguns reinos que tive, dois rios, um
continente. Sinto sua falta, nenhum desastre.

- Mesmo perder-te a ti (a voz que ria, um ente


amado), mentir não posso. É evidente:
a arte de perder muito não tarda aprender,
embora a perda - escreva tudo! - lembre desastre.
27 | Labirinto Literário – nº 16 – Ano 4

John Ashbery
Nova York | EUA
Tradução: João Barrento

ECO TARDIO

Sós com a nossa loucura e a flor preferida,


vemos que não há mais nada sobre que escrever.
ou antes, é preciso escrever sobre as mesmas coisas de sempre,
do mesmo modo, repetindo vezes sem conta as mesmas coisas,
para que o amor continue e a pouco e pouco vá mudando.

Colméias e formigas têm de ser eternamente reexaminadas


e a cor do dia aplicada
centenas de vezes e variada do verão para o inverno
para que o seu ritmo desça ao de uma autêntica
sarabanda e ela aí se feche sobre si mesma, viva e em paz.

Só nessa altura a crônica desatenção


das nossas vidas nos poderá envolver, conciliadora
e com um olho posto naquelas longas opulentas sombras amareladas
que falam tão fundo para o nosso mal preparado conhecimento
de nós próprios, máquinas falantes dos nossos dias.
Ana Júlia Monteiro Macedo Sança
Cabo-Verde | África

PARIS

Numa rua de Paris


alguém dizia baixinho:
"Lady Ana, chegou a sua vez"
e nas promenades da cidade
eu via passar o meu tempo
calmamente
enquanto seguia de mãos dadas
com o meu sonho
via Alexandre O'Neill
passeando uma baguette
debaixo do braço.

E Paris eufórica metida


nas suas montras de fantasias
atravessando os boulevards,
o Sena marulhando suas águas turvas
música e pintura nos parques
alguém lamenta o choro de Pierrot
exclamando:
"Bonjour tristesse Tu n'est pas seul
Je suis ta soeur.”

Caem gotas dos meus olhos


orvalhando a terra
lembranças virgens do passado
umedecendo meu passado
umedecendo meu semblante parisiense.
29 | Labirinto Literário – nº 16 – Ano 4

Mark Strand
Prince Edward Island | Canada
Tradução: Rodrigo Amaral

DA LONGA FESTA TRISTE

Alguém dizia
algo sobre sombras escondendo um campo, sobre
como tudo passa, como se dorme até de manhã
e a manhã segue.

Alguém dizia de como


o vento desmaia mas retrocede,
de como conchas
são os esquifes do vento
mas o tempo prossegue.

Era uma longa noite


e alguém disse algo sobre a lua vazando seu
claro
no campo frio, que não estava nada adiante
mas bem aqui.

Alguém mencionou
uma cidade em que esteve,
um quarto com duas
velas contra uma parede, alguém dançando, alguém reparando.
Começamos a crer

que noite não teria fim.


Alguém dizia que a música acabara, e ninguém
notou.
Então alguém disse algo sobre os planetas,
sobre as
estrelas, de como eram miúdos, de como distavam.
Michael Palmer
New York | EUA
Tradução: Rodrigo Amaral

Havia nove pianos de cauda na casa de meu pai


Um objeto de água em minha cabeça
e um navio de vidro

Um olho na ponta do galho


e um pote de tinta vertendo vermelho
Havia fandangos ao vivo na casa desse pai

Dormentes poderiam dormir dentro dança


e pôr suas imagens em repouso
Diga-me se você pode

Tivesse nevado pura neve na casa de algum pai


e crianças decantadas. Se eu isso
ou Se eu aquilo

Havia uma escada curva na casa desse pai


Subindo ou descendo ninguém saberia dizer
havia noite livros e livros de notas

E vozes inclusas por um anel de osso


Eles gritavam: Espere! Não Espere!
Havia viajantes em pé no portão.
31 | Labirinto Literário – nº 16 – Ano 4

Diego Petrarca
Rio Grande do Sul | Brasil

Não leio semáforos nem letreiros luminosos nem os


cartazes rasgados nos muros nem placas visuais de
trânsito nem letras grafitadas das paredes não leio
mentiras de outdoors tampouco me alfabetizo nas
pilhas de papéis coloridos das bancas de revista não
leio o protesto das bandeiras e faixas das passeatas
nem folders distribuídos goela a baixo em cada metro
de esquina nem os números pintados nos ônibus nem
prateleiras de livraria nem a tinta gasta dos jornais
velhos como cobertores debaixo das marquises nem a
falácia das camisetas exibidas na vitrine nem leio
vitrines não leio as letras que a cidade embaralha
varrendo toneladas de papéis para baixo do asfalto
Fátima Venutti
Blumenau | Brasil

LAMA SECA
Tomei um tempo em mim.
O vazio do olhar tombou-me nas águas.

No varal,
A toalha baila, solitária,
À procura da alvidez de outrora.
Espectro da carne crua,
Muda, esquálida de outras formas.

Há horas recolho suores.


Agora,
Pano de chão pra lama seca.
Amostra tardia,
Autorretrato de avalanches.

Relógio parado às 22;


Estado de Emergência às 14.
Sábado de novembro amargo.
Amarga lama seca
Rachando gritos, pedidos de socorro.
Calando fugas,
Vendando sonhos.

Madrugada de fugas:
Das moradas, ruas albergadas,
Dos sonhos das esperas infinitas,
Pelos helicópteros cansados
Em pousos incógnitas,
Trilhas enterradas.

Um único olhar
Busca o sacio do estômago vazio.
A fome deitou-se na lama seca
Dos quadrantes da calçada.
Vazios varais.

O bocejo do verbo
Abraça um novo amanhecer.

Perambulo nos passos perdidos


De um sábado qualquer.
Novembro em jornais mudos:
Corpos amontoados na caçamba pública.
Pedidos de perdão à natureza.
Aos pés,
Queimadas cinzas do crescimento urbano.

Varais vazios.
Toalhas no lixo do dia seguinte,
Seguinte, seguinte.

Meus pés inda comungam dores.


33 | Labirinto Literário – nº 16 – Ano 4

Fábio Pessanha
Rio de Janeiro | Brasil

ELOQUÊNCIA DO SILÊNCIO

Na grandeza da realidade
a pequeneza do homem
se enraiva.

Qual sujeito que não quer


a seu jeito
dizer a vida nas coisas de sua vontade?
Qual homem que não quer o pertencimento do tempo?

Na ilusão das falas


escorre a eloquência do silêncio.
Em se dizer no despercebido do verbo
as lacunas do fôlego transbordam matérias de verso.

As bocas caladas dizem no aprisionamento de seus lábios


o primordial de todo dito:
o velamento.
A Imagem Diz Tudo
Luana Colaneri & Joana Brito
35 | Labirinto Literário – nº 16 – Ano 4

Pedro Martins
Johan Lind
37 | Labirinto Literário – nº 16 – Ano 4

Paulo Penicheiro
Chagrin
39 | Labirinto Literário – nº 16 – Ano 4

Felipe Isidro
António Alfarroba
41 | Labirinto Literário – nº 16 – Ano 4
Little Girl Reads in Bookshop - 1949
43 | Labirinto Literário – nº 16 – Ano 4

Arab reading a book - 1956


Horace Bristol [Young Silk Worker Reading on a Break] - 1947
45 | Labirinto Literário – nº 16 – Ano 4

Dave Cicero [ Marilyn Monroe ] 1947


Conto
Conto
Menina sem sorriso | Mozileide Neri

Ela é silenciosa, tem medo de ser livre, ela é uma figura possível, notável, um
signo. Ela certamente existiria na memória falha de uma poesia parnasiana.
Ela falharia na descida do precipício, mergulharia no abismo dos seus dias
como quem procura o resto de si mesma. Ela. Ela. Eu. Eu. Cosemos versos
sobre a pele, usamos o sorriso dos outros, porque nunca havíamos percebido
como se sorria. Diz aí, como é que se dá o primeiro passo de um sorriso?
Movem-se os lábios lentamente: eis um sorriso pronto.
Nome? Pra existir tem que ter um nome. Darei um nome a ela: Menina Sem
Sorriso. Ela é do tamanho do Mundo, o cabelo é preso por rosas que ela
mesma colheu, suas roubas são delírios, esboços sem nome.
Ela tem sono, dorme e acorda sem se preocupar com o
tempo. Olha pra você e desvia o olhar. Ela é da cor do inesperado.
Do inoportuno. Do curioso.
Ela é sombra, barulho das ondas,
altura sem medida, alegria sem sorriso.
Ela sempre foi silenciosa.
Um ícone de si mesma. Ela é um
labirinto torto, sem lógica, sem fim.
Eu. Ela. Ela. Eu. Nossas existências
ainda estão em construção.
47 | Labirinto Literário – nº 16 – Ano 4

Editora/Diagramação
Mozileide Neri

Comissão Editorial
Joana Brito
Juliana Amaral
Luana Colaneri

Setor Internacional
Bárbara Shenader
Rodrigo Amaral

Capa
Tiago Morais Silva

Ilustração
Sandro Ramos

Revisão
Jocélio de Cabral Filho

Colaboraram nesta edição


Aline Rangel
Ana Júlia Monteiro Macedo Sança
António Alfarroba
Chagrin
Carlos Duque
Carol de Oliveira
Diego Petrarca
Elizabeth Bishop
Emily Martin
Fátima Venetti
Fábio Pessanha
Felipe Isidro
Gildo Leobino de Soua Júnior
Johan Lind
John Ashbery
Mona Lisa Budel
Leonardo Boff
Luisa Beltoise
Mark Strand
Michael Palmer
Paulo Penicheiro
Pedro Du Bois
Pedro Martins
Robson Fernando
Rubens da Cunha
Sofia Lisboa
Suelen Romancini
Urda Alice Klueger
Vanessa Del Negri

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