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Texto 01

CHAUI, Marilena. A concepção marxista de ideologia. In: O que é Ideologia? São


Paulo: Editora Brasiliense, 1980, pp. 60-82.

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Os homens, escrevem Engels e Marx, se distinguem dos animais não porque


tenham consciência (como dizem os ideólogos burgueses), mas porque produzem as
condições de sua própria existência material e espiritual. São o que produzem e são
como produzem.
Essa produção das condições de existência depende de condições naturais (as do
meio ambiente e as biofisiológicas do organismo humano) e do aumento da população
pela procriação. Esta, além de ser natural, já é também social, pois determina a forma de
intercâmbio e de cooperação entre os homens, forma esta que, por sua vez, determina a
forma da produção na divisão do trabalho.
A produção e reprodução das condições de existência através do trabalho
(relação com a natureza), da divisão do trabalho (relação de intercâmbio e, de
cooperação entre os homens), da procriação (sexualidade e família), constituem em cada
época o conjunto das forças produtivas que determinam e são determinadas pela divisão
social do trabalho. Essa divisão, que já se inicia na própria família, conduz à separação
entre pastoreio e agricultura, entre ambos e a indústria e entre os três e o comércio.
Estas separações conduzem à separação entre cidade e campo, ao mesmo tempo em que,
no interior de cada esfera de atividade, novas formas de divisão do trabalho se
desenvolvem.
A divisão social do trabalho não é uma simples divisão de tarefas, mas a
manifestação de algo fundamental na existência histórica: a existência de diferentes
formas da propriedade, isto é, a divisão entre as condições e instrumentos ou meios do
trabalho e o próprio trabalho, incidindo, por sua vez, na desigual distribuição do produto
do trabalho. Numa palavra: a divisão social do trabalho engendra e é engendrada pela
desigualdade social ou pela forma da propriedade.
A propriedade começa como propriedade tribal e a estrutura social é a de uma
família ampliada e hierarquizada por tarefas, funções, poderes e consumo. A segunda
forma da propriedade é a comunal ou estatal, isto é, propriedade privada coletiva dos
cidadãos ativos do Estado (Grécia, Roma, por exemplo), e a estrutura da sociedade é
constituída pela divisão entre senhores (cidadãos) e escravos. Esta separação permite
aos senhores se distanciarem da terra e dos ofícios, que ficam a cargo dos escravos –
esta separação leva os senhores a viverem nas cidades e a partir daí se estabelece a
separação entre a cidade e o campo, de onde resultarão lutas sociais e políticas. A
terceira forma da propriedade é a feudal ou estamental e que se apresenta como
propriedade privada territorial trabalhada por servos da gleba, e como propriedade dos
instrumentos de trabalho pelos artesãos livres ou oficiais das corporações que vivem nos
burgos (cidades medievais). A estrutura da sociedade cria os proprietários como nobreza
feudal e como oficiais livres dos burgos, e os trabalhadores como servos da terra
enfeudada e como aprendizes nas corporações dos burgos. Junto a eles, há uma figura

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social intermediária: o comerciante. As transformações dessa estrutura social, ou seja,
da forma da propriedade e da divisão do trabalho, dá origem à forma da propriedade 25
que conhecemos: a propriedade privada capitalista. Aqui a divisão social do trabalho
alcança seu ápice: de um lado, os proprietários privados do capital (portanto dos meios,
condições e instrumentos da produção e da distribuição), que são também os
proprietários do produto do trabalho, e, de outro lado, a massa dos assalariados ou dos
trabalhadores despossuídos, que dispõem exclusivamente de sua força de trabalho, que
vende.m como mercadoria ao proprietário do capital.
Na Ideologia Alemã, Marx expõe de modo muito breve a passagem dessas
formas da propriedade ou da divisão social do trabalho, cujas transformações
constituem o solo real da história real. Nos Fundamentos para a Contribuição à Crítica
da Economia Política, Marx retoma a exposição de maneira extremamente minuciosa,
corrige várias das afirmações feitas na Ideologia Alemã, introduz novas determinações
na forma da propriedade e, sobretudo, define a relação de produção a partir do processo
de constituição das forças produtivas na divisão social do trabalho, introduzindo o
conceito, inexistente no texto da Ideologia Alemã, de modo de produção. Este não é um
dado, mas uma forma social criada pelas ações econômicas e políticas dos agentes
sociais (independentemente de sua vontade e de sua consciência). E o sistema das
relações de produção e de suas representações por meio de categorias jurídicas,
políticas, culturais, etc.
A consciência prossegue o texto de A Ideologia Alemã, estará indissoluvelmente
ligada às condições materiais de produção da existência, das formas de intercâmbio e de
cooperação, e as idéias nascem da atividade material. Isto não significa, porém, que os
homens representem nessas idéias a realidade de suas condições materiais, mas, ao
contrário, representam o modo como essa realidade lhes aparece na experiência
imediata. Por esse motivo, as idéias tendem a ser uma representação invertida do
processo real, colocando como origem ou como causa aquilo que é efeito ou
conseqüência, e vice-versa. Assim, por exemplo, a Natureza, tal como se exprime nas
idéias da religião natural, não surge como relação dos homens com um meio trabalhado
por eles, mas é representada como um poder separado, estranho, insondável e que
comanda de fora as ações humanas.
Também as relações sociais são representadas imediatamente pelas idéias de
maneira invertida. Com efeito, à medida que uma forma determinada da divisão social
do trabalho se estabiliza, se fixa e se repete, cada indivíduo passa a ter uma atividade
determinada e exclusiva que lhe é atribuída pelo conjunto das relações sociais, pelo
estágio das forças produtivas e, evidentemente, pela forma da propriedade. Cada um não
pode escapar da atividade que lhe é socialmente imposta. A partir desse momento, todo
o conjunto das relações sociais aparece nas idéias como se fossem coisas em si,
existentes por si mesmas e não como conseqüência das ações humanas. Pelo contrário,
as ações humanas são representadas como decorrentes da sociedade, que é vista como
existindo por si mesma e dominando os homens. Se a Natureza, pelas idéias religiosas,
se “humaniza” ao ser divinizada, em contrapartida a Sociedade se “naturaliza”, isto é,
aparece como um dado natural, necessário e eterno, e não como resultado da praxis
humana. “Esta fixação da atividade social – esta consolidação de nosso próprio produto

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num poder objetivo superior a nós, que escapa de nosso controle, que contraria nossas
expectativas e reduz a nada nossos cálculos – é um dos momentos fundamentais do
desenvolvimento histórico que até aqui tivemos”.
A forma inicial da consciência é, portanto, a alienação. E porque a alienação é a
manifestação inicial da consciência, a ideologia será possível: as idéias serão tomadas
como anteriores a praxis, como superiores e exteriores a ela, como um poder espiritual
autônomo que comanda a ação 26 material dos homens.
A divisão social do trabalho torna-se completa quando o trabalho material e o
espiritual se separam. Somente com essa divisão “a consciência pode realmente
imaginar ser diferente da consciência da praxis existente, representar realmente algo,
sem representar algo real. Desde esse instante, a consciência está em condições de
emancipar-se do mundo e entregar-se à construção da teoria, da teologia, da filosofia, da
moral, etc., ‘puras'“.
Nasce agora a ideologia propriamente dita, isto é, o sistema ordenado de idéias
ou representações e das normas e regras como algo separado e independente das
condições materiais, visto que seus produtores – os teóricos, os ideólogos, os
intelectuais – não estão diretamente vinculados à produção material das condições de
existência. E, sem perceber, exprimem essa desvinculação ou separação através de suas
idéias. Ou seja: as idéias aparecem como produzidas somente pelo pensamento, porque
os seus pensadores estão distanciados da produção material. Assim, em lugar de
aparecer que os pensadores estão distanciados do mundo material e por isso suas idéias
revelam tal separação, o que aparece é que as idéias é que estilo separado do mundo e o
explicam. As idéias não aparecem como produtos do pensamento de homens
determinados – aqueles que estão fora da produção material direta – mas como
entidades autônomas descobertas por tais homens.
As idéias podem parecer estar em contradição com as relações sociais existentes,
com o mundo material dado, porém essa contradição não se estabelece realmente entre
as idéias e o mundo, mas é uma conseqüência do fato de que o mundo social é
contraditório. Porém, como as contradições reais permanecem ocultas (são as
contradições entre as relações de produção ou as forças produtivas e as relações sociais),
parece que a contradição real é aquela entre as idéias e o mundo. Assim, por exemplo,
faz parte da ideologia burguesa afirmar que a educação é um direito de todos os
homens. Ora, na realidade sabemos que isto não ocorre. Nossa tendência, então, será a
de dizer que há uma contradição entre a idéia de educação e a realidade. Na verdade,
porém, essa contradição existe porque simplesmente exprime, sem saber, uma outra: a
contradição entre os que produzem a riqueza material e cultural com seu trabalho e
aqueles que usufruem dessas riquezas, excluindo delas os produtores. Porque estes se
encontram excluídos do direito de usufruir os bens que produzem, estão excluídos da
educação, que é um desses bens. Em geral, o pedreiro que faz a escola; o marceneiro
que faz as carteiras, mesas e lousas, são analfabetos e não têm condições de enviar seus
filhos para a escola que foi por eles produzida. Essa é a contradição real, da qual a
contradição entre a idéia de “direito de todos â educação” e uma sociedade de maioria
analfabeta é apenas o efeito ou a conseqüência.

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Em suma, Engels e Marx consideram que os três aspectos que são condições
para que haja história força de produção, relações sociais e consciência podem entrar e
efetivamente entram em contradição como resultado da divisão social do trabalho
material e intelectual porque, agora, o trabalho e a fruição, a produção e o consumo
aparecem como realmente são, isto é, cabendo a indivíduos diferentes. Instalou-se para
a própria consciência imediata dos homens a percepção da desigualdade social: uns
pensam, outros trabalham; uns consomem, outros produzem e não podem consumir os
produtos de seu trabalho.
Outra contradição mais aguda surge ainda: a contradição entre os interesses de
um indivíduo ou de uma família particular e os interesses coletivos. No entanto,
diferentemente de Hegel, Marx e Engels demonstram que tais interesses não são
realmente coletivos ou comuns, mas apenas o sistema social de dependência recíproca
dos indivíduos entre os quais o trabalho, os meios e condições do trabalho e os produtos
do trabalho estão desigualmente distribuídos.
Existem conflitos entre os proprietários e existem contradições entre os
proprietários e os não proprietários. Há oposição entre os interesses dos proprietários e
há contradição entre os interesses de todos os proprietários e os de todos os não
proprietários. Os conflitos (entre proprietários) e a contradição (entre proprietários e não
proprietários) aparecem para a consciência dos sujeitos sociais como se fossem conflitos
entre o interesse particular e o interesse comum ou geral. Na realidade, porém, há
antagonismos entre classes sociais particulares, pois onde houver propriedade privada
não pode haver interesse social comum.
“E justamente desta contradição entre o interesse particular e o suposto interesse
coletivo que este último toma, na qualidade de Estado, uma forma autônoma, separada
dos reais interesses particulares e gerais e, ao mesmo tempo, na qualidade de
comunidade ilusória, mas sempre sobre a base real dos laços existente em cada
conglomerado familiar ou tribal – tais como laços de sangue, linguagem, divisão do
trabalho em maior escala e outros interesses – e, sobretudo, como desenvolveremos
adiante, baseada nas classes sociais já condicionadas pela divisão social do trabalho, que
se isolam em cada um desses conglomerados humanos e entre as quais há uma que
domina sobre as outras todas (...) O poder social, isto é, a força produtiva unificada
multiplicada, que nasce da cooperação de vários indivíduos exigida pela divisão do
trabalho, aparece para esses indivíduos não como seu próprio poder unificado, mas
como uma força estranha situada fora deles, cuja origem e cujo destino ignoram e que,
pelo contrário, percorre agora uma série particular de fases e de estágios de
desenvolvimento, independente do querer e do agir dos homens e que, na verdade,
dirige esse querer e esse agir”.
Assim como da divisão entre trabalho material e intelectual nasce a suposição de
uma autonomia das idéias, como se fossem ou como se tivessem uma realidade própria
independente dos homens, assim também, da separação entre os homens em classes
sociais particulares com interesses particulares contraditórios, nasce a idéia de um
interesse geral ou comum que se encama numa instituição determinada: o Estado.
O Estado aparece como a realização do interesse geral (por isso Hegel dizia que
o Estado era a universalidade da vida social), mas, na realidade, ele é a forma pela qual

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os interesses da parte mais forte e poderosa da sociedade (a classe dos proprietários)
ganham a aparência de interesses de toda a sociedade.
Estado não é um poder distinto da sociedade, que a ordena e regula para o
interesse geral definido por ele próprio enquanto poder separado e acima das
particularidades dos interesses de classe. Ele é a preservação dos interesses particulares
da classe que domina a sociedade. Ele exprime na esfera da política as relações de
exploração que existem na esfera econômica.
O Estado é uma comunidade ilusória. Isto não quer dizer que seja falso, mas sim
que ele aparece como comunidade porque é assim percebido pelos sujeitos sociais.
Estes precisam dessa figura uni ficada e unificadora para conseguirem tolerar a
existência das divisões sociais, escondendo que tais divisões permanecem através do
Estado. O Estado é a expressão política da sociedade civil enquanto dividida em classes.
Não é, como imaginava Hegel, a superação das contradições, mas a vitória de uma parte
da sociedade sobre as outras.
Como, porém, o Estado não poderia realizar sua função apaziguadora e
reguladora da sociedade (em benefício de uma classe) se aparecesse como realização de
interesses particulares, ele precisa aparecer como uma forma muito especial de
dominação: uma dominação impessoal e anônima, a dominação exercida através de um
mecanismo impessoal que são as leis ou o Direito 28 Civil. Graças às leis, o Estado
aparece como um poder que não pertence a ninguém. Por isso, diz Marx, em lugar do
Estado aparecer como poder social unificado aparece como um poder desligado dos
homens. Por isso também, em lugar de ser dirigido pelos homens, aparece como um
poder cuja origem e finalidade permanecem secretos e que dirigem os homens. Enfim,
como o Estado ganhou autonomia, ele parecer ter sua própria história, suas fases e
estágios próprios, sem nenhuma dependência da história social efetiva.
Está aberto o caminho para a ideologia política que explicará a sociedade através
das formas dos regimes políticos (aristocracia, monarquia, democracia, ditadura,
anarquia) e que explicará a história pelas transformações do Estado (passagem de um
regime político para outro).
A divisão social, que separa proprietários e destituídos, exploradores e
explorados, que separa intelectuais e trabalhadores, sociedade civil e Estado, interesse
privado e interesse geral, é uma situação que não será superada por meio de teorias, nem
por uma transformação da consciência, visto que tais separações não foram produzidas
pela teoria nem pela consciência, mas pelas relações sociais de produção e suas
representações pensadas.
Assim, a transformação histórica capaz de ultrapassar essas divisões e as
contradições que as sustentam depende de pressupostos (condições ou pré-condições)
práticos e não teóricos. Esses pressupostos, ou pré-condições, práticos são: 1)
surgimento da massa da humanidade como massa inteiramente destituída de
propriedade e em contradição com um mundo da cultura e da riqueza produzido por
essa massa que se encontra excluída da abundância por ela produzida; é fundamental,
diz Marx, que haja total desenvolvimento das forças produtivas (capitalistas), isto é, que
tenha sido produzido um mundo cultural e material abundante, pois, sem isto, a massa
revolucionária teria que recomeçar o processo histórico partindo da carência e da

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escassez, da luta pela sobrevivência material imediata, e seria obrigada a repor as
divisões e contradições que pretendia superar; 2) que a divisão entre os proprietários
privados das condições de produção e a massa destituída seja um fenômeno universal,
de modo que quando a massa destituída de um pa(s iniciar sua revolução seja
acompanhada pela revolução de todas as massas do planeta; em outras palavras, é
preciso que o modo de produção capitalista tenha se tornado um processo histórico
mundial ou universal para que uma revolução plena possa efetuar-se. O capitalismo
como mercado mundial é, portanto, o pressuposto prático do comunismo como
sociedade na qual os indivíduos exercerão o controle consciente dos poderes que
parecem dominá-los de fora (Natureza, Mercado, Estado).
A massa dos explorados enfim compreenderá que esses poderes foram
produzidos pela praxis social e que, por serem produtos da atividade histórica dos
homens em condições determinadas, também podem ser destruídos pela prática social
dos homens em condições determinadas. Até agora os homens fizeram a história, mas
sem saber que a faziam, pois, ao fazê-la em condições determinadas que não foram
escolhidas por eles, tomavam tais condições como poderes exteriores e dominadores
que os compeliam a agir. Com a revolução comunista, os homens saberão que fazem a
história, mesmo que não tenham escolhido as condições em que a fazem.
Sem as condições materiais da revolução, é inútil a idéia de revolução, “já
proclamada centenas de vezes”. Mas sem a compreensão intelectual dessas condições
materiais, a revolução permanece como um horizonte desejado, sem encontrar práticas
que a efetivem.
A história não é o desenvolvimento das idéias, mas o das forças produtivas. Não
é a ação dos Estados e dos governantes, mas a luta das classes. 29 Não é história das
mudanças de regimes políticos, mas a das relações de produção que determinam as
forças políticas da dominação. Assim sendo, qual é o palco onde se desenvolve a
história? A sociedade civil.
A sociedade civil não é o aglomerado conflitante de famílias e de corporações
(sindicatos, trustes, cartéis, holdings, oligopólios) que serão reconciliados graças à ação
reguladora e ordenadora do Estado enquanto expressão do interesse geral. A sociedade
civil é o sistema de relações sociais que se organizam na produção econômica, nas
instituições sociais e políticas e que são representadas ou interpretadas por um conjunto
sistemático de idéias jurídicas, religiosas, políticas, morais, pedagógicas, científicas,
artísticas, filosóficas.
A sociedade civil é o processo de constituição e de reposição das condições
materiais de existência, isto é, da produção (trabalho, divisão do trabalho, processo de
trabalho, forma de distribuição e de consumo, circulação, acumulação e concentração da
riqueza), por meio das quais são engendradas as classes sociais (exploradores e
explorados, isto é, a contradição entre proprietários e não proprietários). A relação entre
as classes assim produzidas é contraditória porque a condição necessária e suficiente
para que haja proprietários privados é a existência dos não proprietários. Ou seja, a
existência da classe dos proprietários depende inteiramente da existência da classe dos
não proprietários e esta última nasce do processo pelo qual alguns proprietários
conseguem expropriar todos os outros e conseguem reduzir todo o restante da sociedade

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(escravos, servos, artesãos) à condição de assalariados. Em uma palavra, no caso da
sociedade civil capitalista, afirmar que a existência dos proprietários (da classe
capitalista) depende da exploração dos não proprietários (trabalhadores assalariados)
significa simplesmente o seguinte: o capital é o trabalho não pago (a mais-valia). Temos
uma contradição na medida em que a realidade do capital é a negação do trabalho.
A sociedade civil se realiza através de um conjunto de instituições sociais
encarregadas de permitir a reprodução ou a reposição das relações sociais – família,
escola, igrejas, polícia, partidos políticos, imprensa, meios de informação,
magistraturas, Estado, etc. Ela é também o lugar onde essas instituições e o conjunto das
relações sociais são pensados ou interpretados por meio das idéias – jurídicas,
pedagógicas, morais, religiosas, científicas, filosóficas, artísticas, políticas, etc.
Produzida pela divisão social do trabalho que a cinde em classes contraditórias, a
sociedade civil se realiza como luta de classes. A luta de classes não é apenas o
confronto armado das classes, mas está presente em todos os procedimentos
institucionais, político, policiais, legais, ilegais de que a classe dominante lança mão
para manter sua dominação, indo desde o modo de organizar o processo de trabalho
(separando os trabalhadores uns dos outros e separando a esfera de decisão e de controle
do trabalho da esfera de execução, deixando esta última para os trabalhadores) e o modo
de se apropriar dos produtos (pela exploração da mais-valia e pela exclusão dos
trabalhadores do usufruto dos bens que produziram), até as normas do Direito e o
funcionamento do Estado. Ela está presente também em todas as ações dos
trabalhadores da cidade e do campo para diminuir a dominação e a exploração, indo
desde a luta pela diminuição da jornada de trabalho, o aumento de salários, as greves, a
criação de sindicatos livres até a formação de movimentos políticos para derrubar a
classe dominante. A luta de classes é o quotidiano da sociedade civil. Está na política
salarial, sanitária e educacional, está na propaganda e no consumo, está nas greves e nas
eleições, está nas relações entre pais e filhos, professores e estudantes, policiais e povo,
juízes e réus, patrões e empregados.
Se a história é história da luta de classes, então a sociedade civil não é A
Sociedade, isto é, uma espécie de grande indivíduo coletivo, um organismo feito de
partes ou de órgãos funcionais que 30 ora estão em harmonia e ora estão em conflito,
ora estão bem regulados, ora estilo em crise. A sociedade civil concebida como um
indivíduo coletivo é uma das grandes idéias da ideologia burguesa para ocultar que a
sociedade civil é a produção e reprodução da divisão em classes e é luta das classes. Isto
significa que a sociedade não pode ser o sujeito da história, criando-se e recriando-se a
si mesma por passes de mágica. A história é “os indivíduos fazendo-se uns aos outros,
tanto física quanto espiritualmente”. Este “fazer-se-uns-aos-outros” é a praxis social e
significa: 1) que as classes sociais não estilo feitas e acabadas pela sociedade, mas que
estão se fazendo umas às outras por sua ação e que esta ação produz o movimento da
sociedade civil; 2) que o conjunto das práticas sociais, tanto materiais quanto espirituais,
fazendo os indivíduos existirem como seres contraditórios, os faz membros de uma
classe social, isto é, participantes de formas diferenciadas de existência social,
determinada pelas relações econômicas de produção, pelas instituições sócio-políticas e
pelas idéias ou representações. O sujeito da história, portanto, são as classes sociais.

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Ora, Marx e Engels mostram que as relações dos indivíduos com sua classe é
uma relação alienada. Ou seja, assim como a Natureza, a Sociedade e o Estado
aparecem para a consciência imediata dos indivíduos com os poderes separados e
estranhos que os dominam e governam, assim também a relação dos indivíduos com a
classe lhes aparece imediatamente como uma relação com algo já dado e que os
determina a ser, agir e pensar de uma forma fixa e determinada. A classe ganha
autonomia com relação aos indivíduos, de modo que, em lugar de aparecer como
resultante da ação deles, aparece de maneira invertida, isto é, como causando as ações
deles.
“A classe se autonomiza em face dos indivíduos, de sorte que estes últimos
encontram suas condições de vida preestabelecidas e têm, assim, sua posição na vida e o
seu desenvolvimento pessoal determinado pela classe. Tornam-se subsumidos a ela.
Trata-se do mesmo fenômeno que o da subsunção dos indivíduos isolados à divisão do
trabalho e tal fenômeno não pode ser suprimido se não se supera a propriedade privada
e o próprio trabalho. Indicamos várias vezes que essa subsunção dos indivíduos à classe
determina e se transforma, ao mesmo tempo, em sua subsunção a todo tipo de
representações”.
Esta última frase de Marx e de Engels é fundamental para compreendermos a
relação entre alienação e ideologia.
A ideologia não é um processo subjetivo consciente, mas um fenômeno objetivo
e subjetivo involuntário produzido pelas condições objetivas da existência social dos
indivíduos. Ora, a partir do momento em que a relação do indivíduo com a sua classe é
a da submissão a condições de vida e de trabalho pré-fixadas, essa submissão faz com
que cada indivíduo não possa reconhecer-se como fazedor de sua própria classe. Ou
seja, os indivíduos não podem perceber que a realidade da classe decorre da atividade
de seus membros. Pelo contrário, a classe aparece como uma coisa em si e por si e da
qual o indivíduo se converte numa parte, quer queira, quer não. E uma fatalidade do
destino. A classe começa, então, a ser representada pelos indivíduos como algo natural
(e não histórico), como um fato bruto que os domina, como uma “coisa” onde vivem. A
ideologia burguesa, através de uma ciência chamada Sociologia, transforma em idéia
científica ou em objeto científico essa “coisa” denominada “classe social”, estudando-a
como um fato e não como resultado da ação dos homens. A ideologia burguesa, através
de seus intelectuais, irá produzir idéias que confirmem essa alienação, fazendo, por
exemplo, com que os homens creiam que são desiguais por natureza e por 31 talentos,
ou que são desiguais por desejo próprio, isto é, os que honestamente trabalham
enriquecem e os preguiçosos, empobrecem. Ou, então, faz com que creiam que são
desiguais por natureza, mas que a vida social, permitindo a todos o direito de trabalhar,
lhes dá iguais chances de melhorar – ocultando, assim, que os que trabalham não são
senhores de seu trabalho e que, portanto, suas “chances de melhorar” não dependem
deles, mas de quem possui os meios e condições do trabalho. Ou, ainda, faz com que os
homens creiam que são desiguais por natureza e pelas condições sociais, mas que são
iguais perante a lei e perante o Estado, escondendo que a lei foi feita pelos dominantes e
que o Estado é instrumento dos dominantes.

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Marx e Engels insistem em que não devemos tomar o problema da alienação
como ponto de partida necessário para a transformação histórica. Ou seja, não devemos
esperar que através da simples crítica da alienação haja uma modificação na consciência
dos homens e que, graças a essa modificação, que é uma mudança subjetiva, haverá
uma mudança objetiva. Insistem em que a alienação é um fenômeno objetivo (algo
produzido pelas condições reais de existência dos homens) e não um simples fenômeno
subjetivo, isto é, um engano de nossa consciência.
A alienação é um processo ou o processo social como um todo. Não é produzida
por um erro da consciência que se desvia da verdade, mas é resultado da própria ação
social dos homens, da própria atividade material quando esta se separa deles, quando
não podem controlá-la e são ameaçados e governados por ela. A transformação deve ser
simultaneamente subjetiva e objetiva: a prática dos homens precisa ser diferente para
que suas idéias sejam diferentes.
“Todas as formas e todos os produtos da consciência não podem ser dissolvidos
por força da crítica espiritual (como pretendiam os ideólogos alemães), pela dissolução
dos fantasmas por ação da ‘autoconsciência’ ou pela transformação dos ‘fantasmas’, dos
‘espectros’, das ‘visões’ (maneira pela qual os ideólogos alemães descreviam a
alienação). Só podem ser dissolvidos pela derrocada prática das relações reais de onde
emanam essas tapeações idealistas. Não é a crítica, mas a revolução, a força motriz da
história”.
Com isto, Marx e Engels dão à teoria um sentido inteiramente novo enquanto
crítica revolucionária: a teoria não está encarregada de “conscientizar” os indivíduos,
não está encarregada de criar a consciência verdadeira para opô-la a consciência falsa, e
com isto mudar o mundo. A teoria está encarregada de desvendar os processos reais e
históricos enquanto resultados e enquanto condições da prática humana em situações
determinadas, prática que dá origem ã existência e à conservação da dominação de uns
poucos sobre todos os outros. A teoria está encarregada de apontar os processos
objetivos que conduzem à exploração e à dominação e aqueles que podem conduzir à
liberdade. Percebemos, então, que a teoria – ao contrário da ideologia – não está
encarregada de tomar o lugar da prática, fazendo a realidade depender das idéias.
Também não está encarregada de guiar a prática, fazendo com que a atividade histórica
dependa da consciência “verdadeira”, E também não está encarregada de se inutilizar
enquanto teoria para valorizar apenas a prática, visto que a alienação prática reproduz a
prática alienada.
A relação entre teoria e prática é revolucionária porque é dialética. Vimos que
dialética é o movimento das contradições e que a contradição é a existência de uma
relação de negação interna entre termos que só existem graças a essa negação. Que
significa dizer que a relação entre teoria e prática é dialética e não ideológica (como
aquela relação que mostramos ser feita pelos positivistas)? A relação entre teoria e
prática é uma relação simultânea e recíproca por meio da qual a teoria nega a prática
enquanto prática imediata, isto é, nega a prática como um fato dado para revelá-la em
suas mediações e como praxis social, ou seja, como atividade socialmente produzida e
produtora da existência social. A teoria nega a prática como comportamento e ação
dados, mostrando que se trata de processos históricos determinados pela ação dos

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homens que, depois, passam a determinar suas ações. Revela o modo pelo qual criam
suas condições de vida e são, depois, submetidos por essas próprias condições.
A prática, por sua vez nega a teoria como um saber separado e autônomo, como
puro movimento de idéias se produzindo umas às outras na cabeça dos teóricos. Nega a
teoria como um saber acabado que guiaria e comandaria de fora a ação dos homens. E
negando a teoria enquanto saber separado do real que pretende governar esse real, a
prática faz com que a teoria se descubra como conhecimento das condições reais da
prática existente, de sua alienação e de sua transformação. Por isso Marx e Engels
afirmam que conhecem um único tipo de saber: a ciência da história.
“Toda concepção histórica, até o momento, ou tem omitido completamente a
base real da história (forças de produção, capitais, divisão social do trabalho,
propriedade, formas sociais de intercâmbio que cada geração encontra como produto da
geração precedente e que a atual reproduz e transforma, alterando a forma da luta de
classes), ou a tem considerado como algo secundário, sem qualquer conexão com o
curso da história. Isto faz com que a história deva sempre ser escrita de acordo com um
critério situado fora dela. A produção da vida real aparece como algo separado da vida
comum, como algo extra e supraterrestre. Com isto, a relação dos homens com a
Natureza é excluída da História, o que engendra a oposição entre Natureza e História.
Conseqüentemente, tal concepção apenas vê na História as ações políticas dos Príncipes
e do Estado, as lutas religiosas e as lutas teóricas em geral, e vê-se obrigada a
compartilhar, em cada época, a ilusão dessa época. Por exemplo, se uma época imagina
ser determinada por motivos puramente ‘políticos’ ou ‘religiosos’, embora a ‘política’ e
a ‘religião’ sejam apenas formas aparentes de seus motivos reais, então o historiador
dessa época considerada aceita essa opinião. A ‘imaginação’, a ‘representação’ que
homens historicamente determinados fizeram de sua praxis real transforma-se, na
cabeça do historiador, na única força determinante e ativa que domina e determina a
praxis desses homens. Quando a forma sob a qual se apresenta a divisão do trabalho
entre os hindus e entre os egípcios suscita nesses povos um regime de castas próprio de
seu Estado e de sua religião, o historiador crê que o regime de castas é a força que
engendrou essa forma social. Enquanto os franceses e os ingleses se atêm à ilusão
política (isto é, tomam as formas e forças políticas como determinantes do processo
histórico), o que está certamente mais próximo da realidade, os alemães se movem na
esfera do “espírito puro” e faz da ilusão religiosa a força motriz da história”.
Uma vez postas como forças históricas motrizes àquelas forças (políticas,
religiosas, culturais, etc.) que, na verdade, são determinadas pelas forças reais; todo o
processo histórico fica invertido ou de ponta-cabeça. Assim, acontecimentos históricos
posteriores são convertidos na “finalidade” da história anterior. E o que ocorre quando
se explica a descoberta da América como um acontecimento que teve por finalidade
auxiliar o surgimento da Revolução Francesa. Ou quando se explica o episódio da
Inconfidência Mineira como tendo a finalidade de preparar o da Independência.
Na medida em que as forças reais, que explicam o processo de surgimento de um
acontecimento, permanecem ignoradas ou escondidas, o historiador-ideólogo inventa
causas e finalidades que acabam convertendo a história numa entidade autônoma que
possui seu próprio sentido e caminha por sua própria conta, usando os homens como

12
seus instrumentos ocasionais. Estamos, aqui, longe da realidade histórica e diante da
idéia da história.
É assim, por exemplo, que a ideologia burguesa tende a explicar a história
através da idéia de progresso. Como a burguesia se vê a si mesma como uma força
progressista, porque usa as técnicas e as ciências para um aumento total do controle
sobre a Natureza e a sociedade, considera que todo o real se explica em termos de
progresso. O historiador-ideólogo constrói a idéia de progresso histórico concebendo-o
como a realização, no tempo, de algo que já existia antes de forma embrionária e que se
desenvolve até alcançar seu ponto final necessário. Visto que a finalidade do processo já
está dada (isto é, já se sabe de antemão qual vai ser o futuro), e visto que o progresso é
uma “lei” da história, esta irá alcançar necessariamente o fim conhecido. Com isto, os
homens se tomam instrumentos ou meios para a “história” realizar seus fins próprios e
são justificadas todas as ações que se realizam “em nome do progresso”.
Dessa maneira, não só os acontecimentos históricos são explicados de modo
invertido (o fim explica o começo), mas tal “explicação” ainda permite que a classe
dominante justifique suas ações, fazendo-as aparecer como as “razões da história”.
Atribui-se à história uma racional idade que é apenas a legitimação dos dominantes.
Se a história é o processo prático pelo qual, homens determinados em condições
determinadas estabelecem relações sociais por meio das quais transformam a Natureza
(pelo trabalho) se dividem em classes (pela divisão social do trabalho que determina a
existência de proprietários e de não proprietários), organizam essas relações através das
instituições e representam suas vidas através das idéias, e se a história é da luta de
classes, luta que fica dissimulada pelas idéias que representam os interesses
contraditórios como se fossem interesses comuns de toda a sociedade (através da
ideologia e do Estado), então a história é também o processo de dominação de uma
parte da sociedade sobre todas as outras.
Isto significa que, em termos do materialismo histórico e dialético, é impossível
compreender a origem e a função da ideologia sem compreender a luta de classes, pois a
ideologia é um dos instrumentos da dominação de classe e uma das formas da luta de
classes. A ideologia é um dos meios usados pelos dominantes para exercer a dominação,
fazendo com que esta não seja percebida como tal pelos dominados.
A peculiaridade da ideologia e que a transforma numa força quase impossível de
remover decorre dos seguintes aspectos:
1) o que torna a ideologia possível, isto é, a suposição de que as idéias existem
em si e por si mesmas desde toda a eternidade, é a separação entre trabalho material e
trabalho intelectual, ou seja, a separação entre trabalhadores e pensadores. Portanto,
enquanto esses dois trabalhos estiverem separados, enquanto o trabalhador for aquele
que “não pensa” ou que “não sabe pensar”, e o pensador for aquele que não trabalha, a
ideologia não perderá sua existência nem sua função;
2) o que torna objetivamente possível a ideologia é o fenômeno da alienação,
isto é, o fato de que, no plano da experiência vivida e imediata, as condições reais de
existência social dos homens não lhes apareçam como produzidas por eles, mas, ao
contrário, eles se percebem produzidos por tais condições e atribuem a origem da vida
social a forças ignoradas, alheias às suas, superiores e independentes (deuses, Natureza,

13
Razão, Estado, destino, etc.), de sorte que as idéias quotidianas dos homens representam
a realidade de modo invertido e são conservadas nessa inversão, vindo a constituir os
pilares para a construção da ideologia. Portanto, enquanto não houver um 34
conhecimento da história real, enquanto a teoria não mostrar o significado da prática
imediata dos homens, enquanto a experiência comum de vida for mantida sem crítica e
sem pensamento, a ideologia se manterá;
3) o que torna possível a ideologia é a luta de classes, a dominação de uma
classe sobre as outras. Porém, o que faz da ideologia uma força quase impossível de ser
destruída é o fato de que a dominação real é justamente aquilo que a ideologia tem por
finalidade ocultar. Em outras palavras, a ideologia nasce para fazer com que os homens
creiam que suas vidas são o que são em decorrência da ação de certas entidades (a
Natureza, os deuses ou Deus, a Razão ou a Ciência, a Sociedade, o Estado) que existem
em si e por si e às quais é legítimo e legal que se submetam. Ora, como a experiência
vivida imediata e a alienação confirmam tais idéias, a ideologia simplesmente cristaliza
em “verdades” a visão invertida do real. Seu papel é fazer com que no lugar dos
dominantes apareçam idéias “verdadeiras”. Seu papel também é o de fazer com que os
homens creiam que tais idéias representam efetivamente a realidade. E, enfim, também
é seu papel fazer com que os homens creiam que essas idéias são autônomas (não
dependem de ninguém) e que representam realidades autônomas (não foram feitas por
ninguém).
Assim, por exemplo, na ideologia burguesa, a família não é entendida como uma
relação social que assume formas, funções ê sentidos diferentes tanto em decorrência
das condições históricas quanto em decorrência da situação de cada classe social na
sociedade. Pelo contrário, a família é representada como sendo sempre a mesma (no
tempo e para todas as classes) e, portanto, como uma realidade natural (biológica),
sagrada (desejada e abençoada por Deus), eterna (sempre existiu e sempre existirá),
moral (a vida boa, pura, normal, respeitada) e pedagógica (nela se aprendem as regras
da verdadeira convivência entre os homens, com o amor dos pais pelos filhos, com o
respeito e temor dos filhos pelos pais, com o amor fraterno). Estamos, pois, diante da
idéia da família e não diante da realidade histórico-social da família.
Ou, então, quando se diz que o trabalho dignifica o homem e não se analisam as
condições reais de trabalho, que brutalizam, entorpecem, exploram certos homens em
benefícios de uns poucos. Estamos diante da idéia de trabalho e não diante da realidade
histórico-social do trabalho.
Ou, então, quando se diz que os homens são livres por natureza e que exprimem
essa liberdade pela capacidade de escolher entre coisas ou entre situações dadas, sem
que se analise quais coisas e quais situações são dadas para que os homens escolham.
Quem dá as condições para a escolha? Todos podem realmente escolher o que
desejarem? O nordestino, vítima da seca e do proprietário das terras, realmente
“escolhe” vir para o sul do país? Escolhe viver na favela? O peão metalúrgico
“escolheu” livremente fazer horas-extras depois de 12 horas de trabalho? A menina
grávida que teme as sanções da família e da sociedade “escolhe” fazer um aborto? A
definição da liberdade como igual direito à escolha é a idéia burguesa da liberdade e não
a realidade histórico-social da liberdade.

14
Dissemos que a ideologia é resultado da luta de classes e que tem por função
esconder a existência dessa luta. Podemos acrescentar que o poder ou a eficácia da
ideologia aumenta quanto maior for sua capacidade para ocultar a origem da divisão
social em classes e a luta de classes.

TEXTO 02

MIRCEA, Eliade. Mito e Realidade. São Paulo: Editora Perspectiva S.A, 1972.

A Estrutura dos mitos

A importância do "mito vivo" Há mais de meio século, os eruditos ocidentais


passaram a estudar o mito por uma perspectiva que contrasta sensivelmente com a do
século XIX, por exemplo. Ao invés de tratar, como seus predecessores, o mito na
acepção usual do termo, i. e., como "fábula", "invenção", "ficção", eles o aceitaram tal
qual era compreendido pelas sociedades arcaicas, onde o mito designa, ao contrário,
uma "história verdadeira" e, ademais, extremamente preciosa por seu caráter sagrado,
exemplar e significativo. Mas esse novo valor semântico conferido ao vocábulo "mito"
torna o seu emprego na linguagem um tanto equívoco. De fato, a palavra é hoje
empregada tanto no sentido de "ficção" ou "ilusão", como no sentido — familiar
sobretudo aos etnólogos, sociólogos e historiadores de religiões — de "tradição sagrada,
revelação primordial, modelo exemplar".
Insistiremos mais adiante (cf. capítulos VIII e IX) na história dos diferentes
significados de que se revestiu o termo "mito" no mundo antigo e cristão. Todos sabem
que, desde os tempos de Xenófanes (cerca de 565-470) — que foi o primeiro a criticar e
rejeitar as expressões "mitológicas" da divindade utilizadas por Homero e Hesíodo —
os gregos foram despojando progressivamente o mythos de todo valor religioso e
metafísico. Em contraposição ao logos; assim como, posteriormente, a história, o
mythos acabou por denotar tudo "o que não pode existir realmente". O judeu-
cristianismo, por sua vez, relegou para o campo da "falsidade" ou "ilusão" tudo o que
não fosse justificado ou validado por um dos dois Testamentos.
Não é nesse sentido — o mais usual na linguagem contemporânea — que
entendemos o "mito". Mais precisamente, não é o estádio mental ou o momento
histórico em que o mito se tornou uma "ficção" que nos interessa. Nossa pesquisa terá
por objeto, em primeiro lugar, as sociedades onde o mito é — ou foi, até recentemente
— "vivo" no sentido de que fornece os modelos para a conduta humana, conferindo, por
isso mesmo, significação e valor à existência. Compreender a estrutura e a função dos
mitos nas sociedades tradicionais não significa apenas elucidar uma etapa na história do
pensamento humano, mas também compreender melhor uma categoria dos nossos
contemporâneos.
Para nos limitarmos a um exemplo, o dos cargo cults da Oceania, seria difícil
interpretar toda essa série de atividades insólitas sem nos referirmos à sua justificação
pelos mitos. Esses cultos proféticos e milenaristas proclamam a iminência de uma era

15
fabulosa de abundância e beatitude. Os indígenas voltarão a ser os senhores de suas
ilhas e não mais trabalharão, pois os mortos retornarão em magníficos navios
carregados de mercadorias, iguais às cargas prodigiosas que os Brancos recebem em
seus portos. Eis por que a maioria desses cargo cults exige, por um lado, a destruição
dos animais e utensílios domésticos e, por outro, a construção de amplos depósitos onde
serão armazenadas as provisões trazidas pelos mortos. Um dos movimentos profetiza a
chegada de Cristo a bordo de um navio cargueiro; outro aguarda a vinda da "América".
Uma nova era paradisíaca terá início e os membros do culto se tornarão imortais.
Alguns cultos implicam igualmente atos orgiásticos, pois as proibições e costumes
sancionados pela tradição perderão sua razão de ser, dando lugar à liberdade absoluta.
Ora, todos esses atos e crenças são explicados através do mito da destruição do Mundo,
seguido de uma nova Criação e da instauração da Idade de Ouro, mito ao qual
retornaremos mais tarde.
Fenômenos similares ocorreram no Congo, em 1960, por ocasião da
independência do país. Em algumas aldeias, os indígenas retiraram os tetos das casas a
fim de dar passagem às moedas de ouro que seus ancestrais fariam chover. Em outras
partes, em meio ao abandono geral, somente os caminhos que conduziam aos cemitérios
foram conservados, a fim de permitir que os ancestrais chegassem à aldeia. Os próprios
excessos orgiásticos tinham um significado, pois, segundo o mito, ao despontar da Nova
Era, todas as mulheres pertencerão a todos os homens.
Tudo indica que fenômenos desse gênero tendem a tornar-se cada vez mais
raros. Supõe-se que o "comportamento mítico" das antigas colônias desaparecerá depois
que adquirirem sua independência política. Mas, o que irá suceder num futuro mais ou
menos distante não nos ajudará a compreender o que se passou. O que antes de mais
nada nos interessa é captar o sentido dessas estranhas formas de conduta, compreender a
causa e a justificação desses excessos. Compreendê-las equivale a reconhecê-las como
fenômenos humanos, fenômenos de cultura, criação do espírito — e não como irrupção
patológica de instintos, bestialidade ou infantilidade. Não há outra alternativa: ou nos
esforçamos por negar, minimizar ou esquecer tais excessos, considerando-os casos
isolados de "selvageria" destinados ao total desaparecimento depois que as tribos se
tiverem "civilizado", ou fazemos o necessário esforço para compreender os
antecedentes míticos que explicam e justificam tais excessos, conferindo-lhes um valor
religioso. Esta última atitude é, a nosso ver, a única que merece consideração. Somente
quando encaradas por uma perspectiva histórico-religiosa é que formas similares de
conduta poderão revelar-se como fenômenos de cultura, perdendo seu caráter aberrante
ou monstruoso de jogo infantil ou de ato puramente instintivo.

O interesse das "mitologias primitivas"

Todas as grandes religiões mediterrâneas e asiáticas possuem mitologias.


Contudo, é preferível não iniciar o estudo do mito tomando como ponto de partida a
mitologia grega, egípcia ou indiana. A maioria dos mitos gregos foi recontada e,
conseqüentemente, modificada, articulada e sistematizada por Hesíodo e Homero, pelos
rapsodos e mitógrafos. As tradições mitológicas do Oriente Próximo e da Índia foram

16
persistentemente reinterpretadas e elaboradas por seus respectivos teólogos e ritualistas.
Isso não significa, evidentemente, que 1) essas Grandes Mitologias tenham perdido sua
"substância mítica" e que não passem de "literatura" ou que 2) as tradições mitológicas
das sociedades arcaicas não tenham sido remanipuladas por sacerdotes e bardos. Assim
como as Grandes Mitologias que foram finalmente transmitidas através de textos
escritos, também as mitologias "primitivas" que os primeiros viajantes, missionários e
etnógrafos conheceram na fase "oral", têm uma "história". Em outros termos, elas se
transformaram e enriqueceram no curso dos séculos, sob a influência de outras culturas
superiores ou graças ao gênio criador de alguns indivíduos excepcionalmente bem
dotados.
Não obstante, é preferível começar por estudar o mito nas sociedades arcaicas e
tradicionais, reservando para uma análise ulterior as mitologias dos povos que
desempenharam um papel importante na história. Isso porque, apesar das modificações
sofridas no decorrer dos tempos, os mitos dos "primitivos" ainda refletem um estado
primordial. Trata-se, ademais, de sociedades onde os mitos ainda estão vivos, onde
fundamentam e justificam todo o comportamento e Vida a atividade do homem. O papel
e a função dos mitos ainda podem (ou podiam, até recentemente) ser minuciosamente
observados e descritos pelos etnólogos. Interrogando os indígenas a respeito de cada
mito, bem como de cada ritual das sociedades arcaicas, foi possível apurar, ao menos
em parte, o significado que lhes atribuem. Evidentemente, esses "documentos vivos",
registrados no curso de investigações efetuadas in loco, de modo algum solucionarão
todas as nossas dificuldades. Mas eles têm a vantagem considerável de nos ajudar a
colocar corretamente o problema, ou seja, situar o mito em seu contexto sócio-religioso
original.

Tentativa de definição do mito

Seria difícil encontrar uma definição do mito que fosse aceita por todos os
eruditos e, ao mesmo tempo, acessível aos não-especialistas. Por outro lado, será
realmente possível encontrar uma única definição capaz de cobrir todos os tipos e todas
as funções dos mitos, em todas as sociedades arcaicas e tradicionais? O mito é uma
realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através
de perspectivas múltiplas e complementares.
A definição que a mim, pessoalmente, me parece a menos imperfeita, por ser a
mais ampla, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada; ele relata um
acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do "princípio". Em
outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma
realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento:
uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre,
portanto, a narrativa de uma "criação": ele relata de que modo algo foi produzido e
começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou
plenamente. Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos
sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos "primórdios". Os mitos revelam,
portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a

17
"sobrenaturalidade") de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e
algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do "sobrenatural") no Mundo. É
essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é
hoje. E mais: é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o que
é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural.
Teremos ocasião de ampliar e completar essas poucas indicações preliminares,
mas é importante frisar, desde já, um fato que nos parece essencial: o mito é
considerado uma história sagrada e, portanto, uma "história verdadeira", porque sempre
se refere a realidades. O mito cosmogonico é "verdadeiro" porque a existência do
Mundo aí está para prová-lo; o mito da origem da morte é igualmente "verdadeiro"
porque é provado pela mortalidade do homem, e assim por diante.
Pelo fato de relatar as gesta dos Entes Sobrenaturais e a manifestação de seus
poderes sagrados, o mito se torna o modelo exemplar de todas as atividades humanas
significativas. Quando o missionário e etnólogo C. Strehlow perguntava aos Arunta
australianos a razão por que celebravam determinadas cerimônias, obtinha
invariavelmente a mesma resposta: "Porque os ancestrais assim o prescreveram".1 Os
Kai da Nova Guiné recusaram-se a modificar o seu modo de vida e de trabalho,
explicando: "Foi assim que fizeram os Nemu (os Ancestrais míticos) e fazemos como
eles".2 Inquirido sobre a razão de determinado detalhe numa cerimônia, o cantor Navajo
respondeu: "Porque foi assim que fez o Povo Santo da primeira vez".3 Encontramos
exatamente a mesma explicação para a prece que acompanha um primitivo ritual
tibetano: "Como foi transmitido desde o início da criação da terra, assim devemos
sacrificar... Como fizeram os nossos ancestrais na antigüidade, assim fazemos hoje".4
Essa é também a justificação invocada pelos teólogos e ritualistas hindus. "Devemos
fazer o que os deuses fizeram no princípio" (Satapatha Brâhmana, VII, 2, 1, 4). "Assim
fizeram os deuses; assim fazem os homens" (Taittirya Brâhmana, 1, 5, 9, 4).
Como já demonstramos em outra parte, mesmo a conduta e as atividades
profanas do homem têm por modelo as façanhas dos Entes Sobrenaturais. Entre os
Navajos, "as mulheres devem sentar-se sobre as pernas, que estarão voltadas para um
lado, e os homens com as pernas cruzadas à sua frente, porque foi dito que, no princípio,
a Mulher Cambiante e o Matador de Monstros se sentaram nessas posições".7 Segundo
as tradições míticas de uma tribo australiana, os Karadjeri, todos os seus costumes e sua
conduta foram estabelecidos nos "Tempos do Sonho" por dois Entes Sobrenaturais, os
Bagadjimbiri (a maneira, por exemplo, de cozer um certo cereal ou caçar um animal
com o auxílio de um cajado, a posição especial a ser adotada ao urinar, etc.).8
É inútil multiplicar os exemplos. Como já demonstramos em Le Mythe de
l'Eternel Retour, e corno veremos a seguir com ainda maior clareza, a principal função
do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades
humanas significativas: tanto a alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a
educação, a arte ou a sabedoria. Essa concepção não é destituída importância para a
compreensão do homem das sociedades arcaicas e tradicionais, e a ela retornaremos
mais adiante.

"Histórias verdadeiras" e "histórias falsas"

18
Acrescentemos que, nas sociedades em que o mito ainda está vivo, os indígenas
distinguem cuidadosamente os mitos — "histórias verdadeiras" — das fábulas ou
contos, que chamam de "histórias falsas".
Os Pawnee "fazem uma distinção entre as "histórias verdadeiras" e as "histórias
falsas", e incluem entre as histórias "verdadeiras", em primeiro lugar, todas aquelas que
tratam das origens do mundo; seus protagonistas são entes divinos, sobrenaturais,
celestiais ou astrais. Seguem-se os contos que relatam as maravilhosas aventuras do
herói nacional, um jovem de origem humilde que se tornou o redentor de seu povo,
livrando-o de monstros, Salvando-o da fome e de outras calamidades e realizando outras
façanhas nobres e salutares. Por fim, vêm as histórias relacionadas com os medicine-
men, que explicam como tal ou tal feiticeiro adquiriu seus poderes pré-humanos, como
nasceu tal ou tal associação de xamãs. As histórias "falsas" são as que, contam as
aventuras e proezas nada edificantes do Coiote, o lobo das pradarias. Em suma, nas
histórias "verdadeiras", defrontamo-nos com o sagrado e o sobrenatural; as "falsas", ao
contrário, têm um conteúdo profano, pois o Coiote é extremamente popular nesta como
em outras mitologias norte-americanas, onde aparece como trapaceiro, velhaco,
embusteiro e tratante consumado".9
De modo análogo, os Cherokees distinguem entre os mitos sagrados
(cosmogonia, criação das estrelas, origem da morte) e as histórias profanas, que
explicam, por exemplo, certas peculiaridades anatômicas ou fisiológicas dos animais. A
mesma distinção é encontrada na África. Os Hererós consideram "verdadeiras" as
histórias que relatam a origem dos diferentes grupos da tribo, porque narram fatos que
realmente aconteceram, enquanto que os contos mais ou menos cômicos não têm
qualquer fundamento. E os indígenas de Togo consideram os seus mitos de origem
"absolutamente reais".10
É por isso que os mitos não podem ser indiferentemente narrados. Em muitas
tribos, eles não são recitados perante as mulheres e as crianças, isto é, perante os não-
iniciados. Geralmente, os velhos instrutores comunicam os mitos aos neófitos, durante
seu período de isolamento na mata, e isso faz parte de sua iniciação. R. Piddington
observa a propósito dos Karadjeri: "Os mitos sagrados que não podem ser conhecidos
pelas mulheres dizem respeito principalmente à cosmogonia e, sobretudo, à instituição
das cerimônias de iniciação".
Enquanto as "histórias falsas" podem ser contadas em qualquer parte e a
qualquer momento, os mitos não devem ser recitados senão durante um lapso de tempo
sagrado (geralmente durante o outono ou o inverno, e somente à noite).12 Esse costume
se conservou mesmo nos povos que ultrapassaram o estádio arcaico da cultura. Entre os
turco-mongóis e os tibetanos, as cantigas épicas do ciclo Gesar só podem ser recitadas à
noite e durante o inverno. "A recitação é comparada a um poderoso sortilégio. Ela ajuda
a obter vantagens de todo tipo, particularmente êxito na caça e na guerra (...). Antes de
iniciar a recitação, prepara-se uma área, que é pulverizada com farinha de cevada
torrada. A audiência senta-se ao redor. O bardo recita a epopéia durante diversos dias.
Dizem que, em outros tempos, viam-se nessa ocasião as pegadas dos cascos do cavalo

19
de Gesar sobre a área preparada. A recitação, portanto, provocava a presença real do
herói".

TEXTO 03

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. São Paulo: Graal,


2010, pp. 09-19.

Parece que, por muito tempo, teríamos suportado um regime vitoriano e a ele
nos sujeitaríamos ainda hoje. A pudicícia imperial figuraria no brasão de nossa
sexualidade contida, muda, hipócrita.
Diz-se que no início do século XVII ainda vigorava uma certa franqueza. As
práticas não procuravam o segredo; as palavras eram ditas sem reticência excessiva e, as
coisas, sem demasiado disfarce; tinha-se com o ilícito uma tolerante familiaridade.
Eram frouxos os códigos da grosseria, da obscenidade, da decência, se comparados com
os do século XIX. Gestos diretos, discursos sem vergonha, transgressões visíveis,
anatomias mostradas e facilmente misturadas, crianças astutas vagando, sem incômodo
nem escândalo, entre os risos dos adultos: os corpos "pavoneavam".
Um rápido crepúsculo se teria seguido à luz meridiana, até as noites monótonas
da burguesia vitoriana. A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. Muda-se
para dentro de casa. A família conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na
seriedade da função de reproduzir. Em torno do sexo, se cala. O casal, legítimo e
procriador, dita a lei. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade,
guarda o direito de falar, reservando-se o princípio do segredo. No espaço social, como
no coração de cada moradia, um único lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário
e fecundo: o quarto dos pais. Ao que sobra só resta encobrir-se; o decoro das atitudes
esconde os corpos, a decência das palavras limpa os discursos. E se o estéril insiste, e se
mostra demasiadamente, vira anormal: receberá este status e deverá pagar as sanções.
O que não é regulado para a geração ou por ela transfigurado não possui eira,
nem beira, nem lei. Nem verbo também. É ao mesmo tempo expulso, negado e reduzido
ao silêncio. Não somente não existe, como não deve existir e à menor manifestação fá-
lo-ão desaparecer — sejam atos ou palavras. As crianças, por exemplo, sabe-se muito
bem que não têm sexo: boa razão para interditá-lo, razão para proibi-las de falarem dele,
razão para fechar os olhos e tapar os ouvidos onde quer que venham a manifestá-lo,

20
razão para impor um silêncio geral e aplicado. Isso seria próprio da repressão e é o que a
distingue das interdições mantidas pela simples lei penal: a repressão funciona, decerto,
como condenação ao desaparecimento, mas também como injunção ao silêncio,
afirmação de inexistência e, consequentemente, constatação de que, em tudo isso, não
há nada para dizer, nem para ver, nem para saber. Assim marcharia, com sua lógica
capenga, a hipocrisia de nossas sociedades burguesas. Porém, forçada a algumas
concessões. Se for mesmo preciso dar lugar às sexualidades ilegítimas, que vão
incomodar noutro lugar: que incomodem lá onde possam ser reinscritas, senão nos
circuitos da produção, pelo menos nos do lucro. O rendez-vous e a casa de saúde serão
tais lugares de tolerância: a prostituta, o cliente, o rufião, o psiquiatra e sua histérica —
estes "outros vitorianos", diria Stephen Marcus — parecem ter feito passar, de maneira
sub-reptícia, o prazer a que não se alude para a ordem das coisas que se contam; as
palavras, os gestos, então autorizados em surdina, trocam-se nesses lugares a preço alto.
Somente aí o sexo selvagem teria direito a algumas das formas do real, mas bem
insularizadas, e a tipos de discurso clandestinos, circunscritos, codificados. Fora desses
lugares, o puritanismo moderno teria imposto seu tríplice decreto de interdição,
inexistência e mutismo.
Estaríamos liberados desses dois longos séculos onde a história da sexualidade
devia ser lida, inicialmente, como a crônica de uma crescente repressão? Muito pouco,
dizem-nos ainda. Talvez por Freud. Porém com que circunspecção, com que prudência
médica, com que garantia científica de inocuidade, e com quanta precaução, para tudo
manter sem receio de "transbordamento", no mais seguro e mais discreto espaço entre
divã e discurso: ainda um murmúrio lucrativo em cima de um leito. E poderia ser de
outra forma? Explicam-nos que, se a repressão foi, desde a época clássica, o modo
fundamental de ligação entre poder, saber e sexualidade, só se pode liberar a um preço
considerável: seria necessário nada menos que uma transgressão das leis, uma
suspensão das interdições, uma irrupção da palavra, uma restituição do prazer ao real, e
toda uma nova economia dos mecanismos do poder; pois a menor eclosão de verdade é
condicionada politicamente. Portanto, não se pode esperar tais efeitos de uma simples
prática médica nem de um discurso teórico, por mais rigoroso que seja. Dessa forma,
denuncia-se o conformismo de Freud, as funções de normalização da psicanálise, tanta
timidez por trás dos arrebatamentos de Reich, e todos os efeitos de integração
assegurados pela "ciência" do sexo ou as práticas, pouco mais do que suspeitas, da
sexologia.
Esse discurso sobre a repressão moderna do sexo se sustenta. Sem dúvida porque
é fácil de ser dominado. Uma grave caução histórica e política o protege; pondo a
origem da Idade da Repressão no século XVII, após centenas de anos de arejamento e
de expressão livre, faz-se com que coincida com o desenvolvimento do capitalismo: ela
faria parte da ordem burguesa. A crônica menor do sexo e de suas vexações se transpõe,
imediatamente, na cerimoniosa história dos modos de produção: sua futilidade se
dissipa. Um princípio de explicação se esboça por isso mesmo: se o sexo é reprimido
com tanto rigor, é por ser incompatível com uma colocação no trabalho, geral e intensa;
na época em que se explora sistematicamente a força de trabalho, poder-se-ia tolerar que
ela fosse dissipar-se nos prazeres, salvo naqueles, reduzidos ao mínimo, que lhe

21
permitem reprodu-zir-se? O sexo e seus efeitos não são, talvez, fáceis de de- cifrar; em
compensação, assim recolocada, sua repressão é facilmente analisada. E a causa do sexo
— de sua liberdade, do seu conhecimento e do direito de falar dele — encontra-se, com
toda legitimidade, ligada às honras de uma causa política: também o sexo se inscreve no
futuro. Um espírito cuidadoso indagaria talvez se tantas precauções para atribuir à
história do sexo um patrocínio tão considerável não trazem consigo traços de antigos
pudores: como se fosse preciso nada menos do que essas correlações valorizantes para
que tal discurso pudesse ser proferido ou aceito.
Existe, talvez, uma outra razão que torna para nós tão gratificante formular em
termos de repressão as relações do sexo e do poder: é o que se poderia chamar o
benefício do locutor. Se o sexo é reprimido, isto é, fadado à proibição, à inexistência e
ao mutismo, o simples fato de falar dele e de sua repressão possui como que um ar de
transgressão deliberada. Quem emprega essa linguagem coloca-se, até certo ponto, fora
do alcance do poder; desordena a lei; antecipa, por menos que seja, a liberdade futura.
Daí essa solenidade com que se fala, hoje em dia, do sexo. Os primeiros demógrafos e
os psiquiatras do século XIX, quando tinham que evocá-lo, acreditavam que deviam
pedir desculpas por reter a atenção de seus leitores em assuntos tão baixos e tão fúteis.
Há dezenas de anos que nós só falamos de sexo fazendo pose: consciência de desafiar a
ordem estabelecida, tom de voz que demonstra saber que se é subversivo, ardor em
conjurar o presente e aclamar um futuro para cujo apressamento se pensa contribuir.
Alguma coisa da ordem da revolta, da liberdade prometida, da proximidade da época de
uma nova lei, passa facilmente nesse discurso sobre a opressão do sexo. Certas velhas
funções tradicionais da profecia nele se encontram reativadas. Para amanhã o bom sexo.
É porque se afirma essa repressão que se pode ainda fazer coexistir, discretamente, o
que o medo do ridículo ou o amargor da história impedem a maioria dentre nós de
vincular: revolução e felicidade; ou, então, revolução e um outro corpo, mais novo, mais
belo; ou, ainda, revolução e prazer. Falar contra os poderes, dizer a verdade e prometer
o gozo; vincular a iluminação, a liberação e a multiplicação de volúpias; empregar um
discurso onde confluem o ardor do saber, a vontade de mudar a lei e o esperado jardim
das delícias — eis o que, sem dúvida, sustenta em nós a obstinação em falar do sexo em
termos de repressão; eis, também, o que explica, talvez, o valor mercantil que se atribui
não somente a tudo o que dela se diz como, também, ao simples fato de dar atenção
àqueles que querem suprimir seus efeitos. Afinal de contas, somos a única civilização
em que certos prepostos recebem retribuição para escutar cada qual fazer confidência
sobre seu sexo:
como se o desejo de falar e o interesse que disso se espera tivessem ultrapassado
amplamente as possibilidades da escuta, alguns chegam até a colocar suas orelhas em
locação.
Mais do que essa incidência econômica, o que me parece essencial é a
existência, em nossa época, de um discurso onde o sexo, a revelação da verdade, a
inversão da lei do mundo, o anúncio de um novo dia e a promessa de uma certa
felicidade, estão ligados entre si. É o sexo, atualmente, que serve de suporte dessa velha
forma, tão familiar e importante no Ocidente, a forma da pregação. Uma grande prédica
sexual — que teve seus teólogos sutis e suas vozes populares — tem percorrido nossas

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sociedades há algumas dezenas de anos; fustigando a antiga ordem, denunciando as
hipocrisias, enaltecendo o direito do imediato e do real; fazendo sonhar com uma outra
Cidade. Lembremo-nos dos Franciscanos. E perguntemo-nos como foi possível que o
lirismo, a religiosidade que acompanharam durante tanto tempo o projeto revolucionário
tenha sido, nas sociedades industriais e ocidentais, transferidas, pelo menos em boa
parte, para o sexo.
A ideia do sexo reprimido, portanto, não é somente objeto de teoria. A afirmação
de uma sexualidade que nunca fora dominada com tanto rigor como na época da
hipócrita burguesia negocista e contabilizadora é acompanhada pela ênfase de um
discurso destinado a dizer a verdade sobre o sexo, a modificar sua economia no real, a
subverter a lei que o rege, a mudar seu futuro. O enunciado da opressão e a forma da
pregação referem-se mutuamente; reforçam-se reciprocamente. Dizer que o sexo não é
reprimido, ou melhor, dizer que entre o sexo e o poder a relação não é de repressão,
corre o risco de ser apenas um paradoxo estéril. Não seria somente contrariar uma tese
bem aceita. Seria ir de encontro a toda a economia, a todos os "interesses" discursivos
que a sustentam.
É neste ponto que gostaria de situar a série de análises históricas de que este
livro é, ao mesmo tempo, introdução e como que uma primeira abordagem: indicação de
alguns pontos historicamente significativos e esboço de certos problemas teóricos.
Trata-se, em suma, de interrogar o caso de uma sociedade que desde há mais de um
século se fustiga ruidosamente por sua hipocrisia, fala prolixamente de seu próprio
silêncio, obstina-se em detalhar o que não diz, denuncia os poderes que exerce e
promete liberar-se das leis que a fazem funcionar. Gostaria de passar em revista não
somente esses discursos, mas ainda a vontade que os conduz e a intenção estratégica
que os sustenta. A questão que gostaria de colocar não é por que somos reprimidos mas,
por que dizemos, com tanta paixão, tanto rancor contra nosso passado mais próximo,
contra nosso presente e contra nós mesmos, que somos reprimidos? Através de que
hipérbole conseguimos chegar a afirmar que o sexo é negado, a mostrar ostensivamente
que o escondemos, a dizer que o calamos — e isso formulando-o através de palavras
explícitas, procurando mostrá-lo em sua realidade mais crua, afirmando-o na
positividade de seu poder e de seus efeitos? Seria legítimo, certamente, perguntar por
que, durante tanto tempo, associou-se o sexo ao pecado — e, ainda, seria preciso ver de
que maneira se fez essa associação e evitar dizer de forma global e precipitada que o
sexo era "condenado" — mas seria, também, preciso perguntar por que hoje em dia nos
culpamos tanto por ter outrora feito dele um pecado? Através de que caminhos
acabamos ficando "em falta", com respeito ao nosso sexo? E acabamos sendo uma
civilização suficientemente singular para dizer a si mesma que, durante muito tempo e
ainda atualmente tem "pecado" contra o sexo por abuso de poder? De que maneira
ocorre esse deslocamento que, mesmo pretendendo liberar-nos da natureza pecaminosa
do sexo, atormenta-nos com um grande pecado histórico que teria consistido,
justamente, em imaginar essa natureza falível e em tirar dessa crença efeitos
desastrosos?
Dir-me-ão que, se há tanta gente, atualmente, a afirmar essa repressão, é porque
ela é historicamente evidente. E que se falam com uma tal profusão e há tanto tempo, é

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porque essa repressão está profundamente firmada, possui raízes e razões sólidas, pesa
sobre o sexo de maneira tão rigorosa, que uma única denúncia não seria capaz de
liberar-nos; o trabalho só pode ser longo. E tanto mais longo, sem dúvida, quanto o que
é próprio do poder — e, ainda mais, de um poder como esse que funciona em nossa
sociedade — é ser repressivo e reprimir com particular atenção as energias inúteis, a
intensidade dos prazeres e as condutas irregulares. É de se esperar, portanto, que os
efeitos de liberação a respeito desse poder repressivo demorem a se manifestar; o fato
de falar-se do sexo livremente e aceitá-lo em sua realidade é tão estranho à linguagem
direta de toda uma história, hoje milenar e, além disso, é tão hostil aos mecanismos
intrínsecos do poder, que isto não pode senão marcar passo por muito tempo antes de
realizar a contento a sua tarefa.
Ora, em relação ao que chamaria "hipótese repressiva", podem ser levantadas
três dúvidas consideráveis. Primeira dúvida: a repressão do sexo seria, mesmo, uma
evidência histórica? O que se revela numa primeiríssima abordagem — e que autoriza,
por conseguinte, a colocar uma hipótese inicial — seria realmente a acentuação ou
talvez a instauração, desde o século XVII, de um regime de repressão ao sexo? Questão
que é propriamente histórica. Segunda dúvida: a mecânica do poder e, em particular, a
que é posta em jogo numa sociedade como a nossa, seria mesmo, essencialmente, de
ordem repressiva? Interdição, censura e negação são mesmo as formas pelas quais o
poder se exerce de maneira geral, talvez em qualquer sociedade e, infalivelmente, na
nossa? Questão histórico-teórica. Enfim, terceira dúvida: o discurso crítico que se dirige
à repressão viria cruzar com um mecanismo de poder, que funcionara até então sem
contestação, para barrar-lhe a via, ou faria parte da mesma rede histórica daquilo que
denuncia (e sem dúvida disfarça) chamando-o "repressão"? Existiria mesmo uma
ruptura histórica entre a Idade da repressão e a análise crítica da repressão? Questão
histórico-político. Introduzindo essas três dúvidas não se trata somente de estabelecer
contra-hipóteses, simétricas e inversas às primeiras; não se trata de dizer: a sexualidade,
longe de ter sido reprimida nas sociedades capitalistas e burguesas, se beneficiou, ao
contrário, de um regime de liberdade constante; não se trata de dizer: o poder, em
sociedades como as nossas, é mais tolerante do que repressivo e a crítica que se faz da
repressão pode, muito bem, assumir ares de ruptura, mas faz parte de um processo
muito mais antigo do que ela e, segundo o sentido em que se leia esse processo,
aparecerá como um novo episódio na atenuação das interdições ou como forma mais
ardilosa ou mais discreta de poder.
As dúvidas que gostaria de opor à hipótese repressiva têm por objetivo muito
menos mostrar que essa hipótese é falsa do que recolocá-la numa economia geral dos
discursos sobre o sexo no seio das sociedades modernas a partir do século XVII. Por
que se falou da sexualidade, e o que se disse? Quais os efeitos de poder induzidos pelo
que se dizia? Quais as relações entre esses discursos, esses efeitos de poder e os
prazeres nos quais se investiam? Que saber se formava a partir daí? Em suma, trata-se
de determinar, em seu funcionamento e em suas razões de ser, o regime de poder—
saber—prazer que sustenta, entre nós, o discurso sobre a sexualidade humana. Daí o
fato de que o ponto essencial (pelo menos, em primeira instância) não é tanto saber o
que dizer ao sexo, sim ou não, se formular-lhe interdições ou permissões, afirmar sua

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importância ou negar seus efeitos, se policiar ou não as palavras empregadas para
designá-lo; mas levar em consideração o fato de se falar de sexo, quem fala, os lugares e
os pontos de vista de que se fala, as instituições que incitam a fazê-lo, que armazenam e
difundem o que dele se diz, em suma, o "fato discursivo" global, a "colocação do sexo
em discurso". Daí decorre também o fato de que o ponto importante será saber sob que
formas, através de que canais, fluindo através de que discursos o poder consegue chegar
às mais tênues e mais individuais das condutas. Que caminhos lhe permitem atingir as
formas raras ou quase imperceptíveis do desejo, de que maneira o poder penetra e
controla o prazer cotidiano — tudo isso com efeitos que podem ser de recusa, bloqueio,
desqualificação mas, também, de
incitação, de intensificação, em suma, as "técnicas polimorfas do poder". Daí,
enfim, o fato de o ponto importante não ser determinar se essas produções discursivas e
esses efeitos de poder levam a formular a verdade do sexo ou, ao contrário, mentiras
destinadas a ocultá-lo, mas revelar a "vontade de saber" que lhe serve ao mesmo tempo
de suporte e instrumento.
É necessário deixar bem claro: não pretendo afirmar que o sexo não tenha sido
proibido, bloqueado, mascarado ou desconhecido desde a época clássica; nem mesmo
afirmo que a partir daí ele o tenha sido menos do que antes. Não digo que a interdição
do sexo é uma ilusão; e sim que a ilusão está em fazer dessa interdição o elemento
fundamental e constituinte a partir do qual se poderia escrever a história do que foi dito
do sexo a partir da Idade Moderna. Todos esses elementos negativos — proibições,
recusas, censuras, negações — que a hipótese repressiva agrupa num grande mecanismo
central destinado a dizer não, sem dúvida, são somente peças que têm uma função local
e tática numa colocação discursiva, numa técnica de poder, numa vontade de saber que
estão longe de se reduzirem a isso.
Em suma, gostaria de desvincular a análise dos privilégios que se atribuem
normalmente à economia de escassez e aos princípios de rarefação, para, ao contrário,
buscar as instâncias de produção discursiva (que, evidentemente, também organizam
silêncios), de produção de poder (que, algumas vezes têm a função de interditar), das
produções de saber (as quais, frequentemente, fazem circular erros ou
desconhecimentos sistemáticos); gostaria de fazer a história dessas instâncias e de suas
transformações. Ora, uma primeira abordagem feita deste ponto de vista parece indicar
que, a partir do fim do século XVI, a "colocação do sexo em discurso", em vez de sofrer
um processo de restrição, foi, ao contrário, submetida a um mecanismo de crescente
incitação; que as técnicas de poder exercidas sobre o sexo não obedeceram a um
princípio de seleção rigorosa mas, ao contrário, de disseminação e implantação das
sexualidades polimorfas e que a vontade de saber não se detém diante de um tabu
irrevogável, mas se obstinou — sem dúvida através de muitos erros — em constituir
uma ciência da sexualidade. São esses movimentos que gostaria de evidenciar, agora, de
maneira esquemática a partir de alguns fatos históricos que se afiguram marcantes, e
para isso, de certa forma, passarei por cima da hipótese repressiva e dos fatos de
interdição e de exclusão que ela evoca.

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