Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
DÍVIDA
Roberto Leher
UFRJ
Coordenador do GT Universidade e Sociedade do CLACSO
Texto apresentado originalmente no TERCER NUMERO del BOLETIN INFORMATIVO DEL
PROGRAMA DE GRUPOS DE TRABAJO - ENERO 2007 (CLACSO). Publicado em Universidade e
Sociedade, n. 39; ISSN:1517-1779, fevereiro 2007.
direitos trabalhistas, em suma, a agenda que, em 1989, passou a ser conhecida como o
Consenso de Washington. Essas medidas, em conjunto, repercutiram intensamente na
universidade pública, produzindo efeitos tectônicos nos espaços públicos de produção
de conhecimento e na definição mesma de problemática científica (Delgado, 2006).
Para se adequar ao macro-ajuste estrutural grande parte dos países da região fez
reformas constitucionais modificando o direito à educação, como a Argentina, o Brasil,
o Chile e o México, entre outros. No caso do México, a alteração do Artigo 3 o da
Constituição (1993) e a nova lei educativa (1994) redefiniram o direito à educação e o
dever do Estado em assegurá-la a todos em favor de uma nova conceituação que permite
que a educação seja concebida como um serviço a ser negociado no mercado. No Brasil,
a concepção de que a educação é um serviço está expressa no Plano Diretor da Reforma
do Estado, iniciado no governo Cardoso (1996) e aprofundado na lei de parcerias
público-privadas (governo de Lula da Silva), que preconiza a maior eficácia do setor
privado frente ao público no atendimento educacional dos segmentos populares. A
ausência de gratuidade na pós-graduação stricto sensu e a banalização dos docentes ad-
honorem (sem remuneração) das universidades públicas argentinas são expressões desse
movimento.
As universidades brasileiras e latino-americanas foram “alteradas” (Mollis,
2003) em todas as suas dimensões: da docência à pesquisa, do financiamento à
avaliação, dos currículos à carreira acadêmica, movendo as fronteiras entre o público e
o privado, tanto no que se refere à oferta da educação quanto ao cotidiano mesmo das
instituições: o espaço público em que os problemas nacionais podem ser discutidos foi
invadido pela esfera privada, restringindo o público a poucos nichos, muitos deles de
elevada qualidade acadêmica e articulados regionalmente por meio do CLACSO e
outras iniciativas afins.
Muitas dessas características privatizantes e mercantis já existiam in nuce antes
da Crise da Dívida, no período “desenvolvimentista”. Se, de um lado, a modernização
conservadora, contraditoriamente, impulsionou a pesquisa universitária e difundiu a
pós-graduação vinculada à pesquisa, de outro, por suas características, as ditaduras
empresarial-militares buscaram subordinar as universidades ao padrão de acumulação
vigente, suprimindo a autonomia e a liberdade de produção do conhecimento, por meio
da censura, das cassações e mesmo de assassinatos.
Em um contexto ainda pouco estudado, a pós-graduação brasileira (mas também
de outros países da região) foi instaurada. Certamente, o seu surgimento não teria sido
possível sem o aparato de fomento científico e tecnológico que estava inscrito no
projeto da ditadura empresarial-militar (e, portanto, a violência a ela associada): não
havia lugar para dúvidas de que o apoio governamental à C&T nada tinha de
emancipatório. Entretanto, examinando retrospectivamente o período, é possível
constatar que parte das verbas para a pesquisa básica não foi exclusivamente atrelada ao
mercado e que a preocupação tecnológica em áreas sensíveis como energia,
telecomunicações, engenharias, saúde, agricultura e pecuária fazia parte do esforço de
qualificação de empresas estatais, de centros de pesquisas públicos e de empresas que
desenvolviam etapas de cadeias produtivas com certo grau de complexidade. Foram
nesses interstícios que uma ciência e tecnologia de qualidade e não diretamente
operacional ao modelo em curso foram produzidas, impulsionando uma pós-graduação
que nasce tensionada por essas contradições.
A erosão da autonomia universitária foi acelerada por uma série de medidas, tais
como: a) o atrelamento das verbas de pesquisa às demandas do capital (mesmo que na
forma de empresas estatais que pouco tinham de públicas); b) a disponibilização dos
recursos para pesquisa por meio de órgãos de fomento constituídos, em parte, por
acadêmicos que viam na ação desses órgãos uma missão modernizadora frente ao
suposto arcaísmo das universidades públicas, c) a adoção crescente do modelo
estadunidense de educação superior e d) o estabelecimento de um modelo de trabalho
acadêmico e de um certo padrão de problemática científica em virtude do financiamento
da pesquisa por agências estrangeiras, como a Rockefeller. É possível concluir, por
conseguinte, que a mercantilização atual e o ethos do “capitalismo acadêmico
periférico” não são um raio em céu azul: suas raízes mais axiais se nutriram da
modernização conservadora.
Mas o maior contraste entre o desenvolvimentismo e o atual padrão de
acumulação por despossessão (Harvey, 2005) advém do lugar presumido pelo bloco de
poder dominante que a América Latina deve ocupar na economia-mundo. Outrora,
como sublinhado, o processo de industrialização e a constituição de empresas estatais
demandaram pessoal com elevada qualificação. A solução de determinados problemas
tecnológicos como, por exemplo, a prospecção de petróleo em águas profundas, a
agricultura de alimentos básicos em ambientes adversos e o lançamento de satélites,
conferia às universidades alguma relevância nos projetos então em curso. Nos dias de
hoje, a reprimarização (Arceo & Basualdo, 2006) e a difusão de indústrias
maquiladoras tornam, ao contrário do senso comum, até mesmo a tecnologia e a
inovação tecnológica pouco relevantes, confirmando o preciso diagnóstico de Florestan
Fernandes de que o agravamento da condição capitalista dependente aumentaria ainda
mais a heteronomia cultural.
Reconhecer a profundidade das transformações significa admitir que as
mudanças operadas nas universidades não somente abarcaram todos os domínios, como
foram ações com um determinado vetor: o abandono da preocupação com os problemas
nacionais, redefinindo a pesquisa, o ensino e as próprias formas de investigação por
meio da difusão do “mito do método” tão caro à tradição neopositivista.
Inevitavelmente, essa nova dinâmica imprimiu marcas nas relações de prestígio e de
poder e, por conseguinte, na relação de forças no interior das instituições. Essas
transformações expressam também novas formas de relação da universidade pública
com o Estado e com o mercado para as quais a avaliação “científica” desempenha um
papel decisivo (Aboites, 2003).
Sob a hegemonia neoliberal a questão do acesso à educação superior se tornou
ainda mais dramática do que a vivida em 1968, tendo em vista o aumento vertiginoso
das matrículas no ensino médio em diversos países da região e a estagnação da
expansão pública. Contudo, as atuais lutas da juventude não assumem contornos
políticos tão radicais como no final dos anos 60, a despeito da retomada da mobilização
da juventude em países como o Chile. A absorção de jovens das classes médias pelas
instituições privadas e os programas de bolsas (também nas privadas) para os segmentos
mais desfavorecidos explicam parcialmente essa desmobilização.
A (falsa) solução ao problema do acesso que vem sendo difundida, por meio de
um sutil jogo de palavras que esconde o apagamento da oposição moderna entre o
público e o privado, é a ampliação dos subsídios públicos para as instituições privadas.
Em síntese, a argumentação parte da premissa de que a educação é um bem público,
definido como tudo aquilo que atende ao interesse social, não importando a natureza
pública ou privada da instituição. E o interesse social é aferido por meio de dispositivos
científicos de avaliação padronizada. Nesse sentido, toda instituição que atende a um
certo padrão de avaliação atende ao interesse social e, portanto, presta um serviço
público e faz jus às verbas públicas. Com a difusão dessas parcerias público-privadas
novas concessões de recursos públicos – via-de-regra por isenções tributárias mesmo
para as empresas com fins lucrativos – ampliaram o suporte dos governos ao
empresariamento da educação superior, banalizando a idéia de que como não há como
expandir de modo significativo as universidades públicas a “democratização” deve se
dar pela aquisição de vagas nas instituições privadas, mesmo que estas sejam, em geral,
de qualidade muito inferior. Esses programas estão direcionados aos pobres que, na
ótica vigente, não necessitam de uma formação acadêmica, mas sim de um tipo de
formação centrada na prática. Com essas parcerias os empresários não necessitam mais
se camuflar na filantropia, podendo atuar diretamente como empresários de serviços
para uma florescente burguesia. Por isso, o segmento empresarial é o que mais cresce na
educação privada latino-americana.
A expansão do setor privado em toda a América Latina foi constante a partir da
Crise de 1982. Em 1985, 46% % das instituições eram privadas, em 1995 este
percentual alcançou 54% e, em 2002, atingiu 65%, equivalendo a cerca de metade das
matrículas. O caso brasileiro ainda é mais grave: em 2004, 88% das instituições e 75%
das matrículas eram privadas. É possível observar no gráfico, a seguir, o crescimento
das instituições empresariais (chamadas de particulares no Brasil), muito mais
acentuado do que as demais modalidades ditas sem fins lucrativos e denominadas
comunitárias, confessionais e filantrópicas. O conjunto de instituições lucrativas e não
lucrativas compõe o setor privado.
1800
1600
1400
1200
1000
Instituições Privadas
800
600 Partic
400 Com/Conf/Filant
200
0
1999 2000 2001 2002 2003 2004
Ano
Fonte: INEP/MEC
Bibliografia
Arceo, E. & Basualdo, E. 2006 Los cambios de los sectores dominantes en América
Latina bajo el neoliberalismo – la problemática propuesta. In: Arceo, E. & Basualdo, E.
2006 (Comp.) Neoliberalismo y sectores dominantes: tendencias globales y experiencias
nacionales. Bs.As. CLACSO.