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Doi: http://dx.doi.org/10.

1590/1413-73725000503

ENTRE A CRIAÇÃO E A OBEDIÊNCIA: A JUDICIALIZAÇÃO INVADE A ESCOLA

Luiz Antonio Saléh Amado1


Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro-RJ, Brasil

RESUMO. O artigo pretende problematizar as relações e as práticas vinculadas à escola, as quais têm sido
marcadas por uma lógica judicializante. Para isso traz exemplos de casos recentes, em que nos deparamos com
discursos que demandam mais controle, mais vigilância e, nesta lógica, mais punição. Sob o pretexto de defender
a educação de qualidade, os códigos de conduta e o respeito ao professor, as situações descritas exemplificam
muitas práticas, na sociedade e nas escolas, que contribuem para alimentar a racionalidade que considera o
poder judiciário a instância por excelência onde as dificuldades e os conflitos escolares devem ser resolvidos. O
texto alerta para a necessidade de não encararmos os problemas escolares como ameaça à existência da própria
escola, mas analisarmos os processos instituídos e problematizarmos as práticas que buscam prevenir condutas
desviantes através de discursos moralizantes e de métodos punitivos. Neste sentido, defende a construção de
alternativas para estes problemas através da participação dos sujeitos que habitam a escola, pois a
potencialização de professores, alunos e demais agentes institucionais possibilitará que as escolas se
transformem em espaços para a ampliação dos modos de existência.
Palavras-chave: Educação; justiça; controle social.

BETWEEN THE CREATIVITY AND THE OBEDIENCE: THE JUDICIALIZATION


INVADES THE SCHOOL

ABSTRACT. This article intends to discuss the school relationships and practices that have been marked by a
judicial logic. Getting examples of recent cases, it shows discourses that require more control, more vigilance and
sometimes more punishment. Under the pretext of defending the quality education, the codes of conduct and the
respect for the teacher, the situations described exemplify practices that multiply in the society and in the schools,
which contribute to feed the rationality that considers the judiciary instance par excellence where difficulties and
school conflicts must be solved. The text indicates the necessity of facing the school problems not as a threat to
the existence of the school itself, but as analyzers of the instituted processes and also problematizing the
practices that seek to prevent deviant behavior by moralizing discourses and punitive methods. In this sense, it
defends the construction of alternatives to these problems through the participation of the subjects that inhabit the
school, because the potentiation of teachers, students and other institutional agents will allow the modes of
existence expansion inside the school.
Keywords: Education; justice; social control.

ENTRE LA CREATIVIDAD Y LA OBEDIENCIA: LA JUDICIALIZACIÓN


INVADE LA ESCUELA

RESUMEN. El artículo se propone discutir las relaciones y prácticas relacionadas con la escuela que han sido
marcadas por una lógica judicializante. Para ello, trae ejemplos de casos recientes, a partir de los cuales
encontramos discursos que requieren más control, más vigilancia, siendo así, más castigo. Bajo el pretexto de
defender la educación de calidad, los códigos de conducta y el respeto al maestro, las situaciones descriptas
ejemplifican las prácticas que se multiplican en la sociedad y en las escuelas, que contribuyen para alimentar la
racionalidad que considera el poder judiciario la instancia por excelencia donde las dificultades y los conflictos
escolares deben ser resueltos. El texto llama la atención para la necesidad de afrontar los problemas escolares
no como una amenaza para la existencia de la propia escuela, sino como analizadores de los procedimientos
instituidos y también de problematizar las prácticas que buscan prevenir conductas desviantes a través de
discursos moralizantes y de métodos punitivos. En este sentido, defiende la construcción de alternativas a estos

1
Endereço para correspondências: Rua Alice, 194/803, Laranjeiras, CEP 22.241-020 - Rio de Janeiro-RJ, Brasil. E-
mail: saleh.amado@gmail.com.

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problemas a través de la participación de los sujetos que habitan la escuela, pues la potenciación de profesores,
estudiantes y demás actores institucionales permitirá que la escuela pueda transformarse en espacios para la
expansión de los modos de existencia.
Palabras-clave: Educación; justicia; control social.

Por que, para ensinar alguma coisa a encontros casuais nas salas de professores das
alguém, se deve punir e recompensar? escolas, seja em encontros formais (seminários,
Foucault (2003, p. 121) congressos, etc.) dedicados aos temas deste
campo de estudo e de trabalho. As tensões
Uma imagem já bastante conhecida dos vividas na relação entre docentes e discentes,
professores, e mesmo dos usuários das redes geralmente interpretadas como falta de respeito,
sociais, é aquela que compara duas salas de indisciplina ou rebeldia, já não são resolvidas
aula, uma do início do século XX e uma do início mediante o apelo aos instrumentos simples,
do século XXI. Ao se destacar a evidente descritos por Foucault (1989), outrora
semelhança entre as duas, objetiva-se criticar a responsáveis pelo sucesso do poder disciplinar:
lentidão da educação em acompanhar os “o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e
avanços tecnológicos, sobretudo os ocorridos sua combinação num procedimento que lhe é
nos últimos trinta anos. No bojo destas críticas específico, o exame” (p. 153).
identificam-se também outras, direcionadas ao Conforme já alertara Deleuze (1992) no final
modo como o professor lida com as questões do século XX, ao apontar as forças que
escolares atuais, em função de suas próprias lentamente vão se instaurando e deslocando a
dificuldades em acompanhar as transformações disciplina do centro da cena, vivemos uma crise
sociais contemporâneas, além da rigidez generalizada dos meios de confinamento – como
disciplinar que parece acompanhá-lo ainda hoje. a prisão, o hospital, a fábrica, a família e a
Além dos desdobramentos que essa imagem escola – os quais as tentativas de reforma não
pode provocar, percebemos que os estudantes serão capazes de evitar. Ainda segundo
vão desenvolvendo outras formas de relação, Deleuze, as disciplinas que funcionavam nos
outros modos de frequentar a escola; mas a espaços de confinamento, na duração de um
presença das tecnologias eletrônicas nos sistema fechado, são acopladas às formas
espaços escolares reforça a preocupação dos ultrarrápidas de controle ao ar livre ou até
professores, pesquisadores e educadores de substituídas por elas.
forma geral com o comportamento dos Alguns estudos (Heckert & Rocha 2012,
estudantes, que consideram inadequado. A Sibilia, 2012) têm chamado a atenção para as
queixa mais comum se refere à perda da dificuldades que a escola vem enfrentando
autoridade dos professores. Atualmente, diante das transformações sociais
sobretudo nos meios urbanos, a multiplicação de contemporâneas. Neste processo observa-se
exemplos nesse sentido vão desde a que a escola já não consegue cumprir suas
desatenção provocada pelo uso de dispositivos funções disciplinares como em outros
eletrônicos de comunicação em sala de aula – momentos, o que resulta na descontinuidade
principalmente os aparelhos de telefone celular – entre família, escola, fábrica, por exemplo,
até as situações de violência protagonizadas contrariando uma das características mais
pelos alunos contra os professores. Nesse marcantes da sociedade disciplinar. As
conjunto de queixas também se destacam subjetividades que eram produzidas no âmbito
aquelas sobre o suposto descaso de alguns pais destes dispositivos disciplinares - cujo
que não frequentam as reuniões convocadas funcionamento devia se dar articuladamente,
pela escola, o que se sugere estar contribuindo alimentando e reforçando os modos de ser e
para o comportamento descompromissado e estar ali construídos - passam a sofrer influência
desrespeitoso dos alunos. cada vez maior de outros meios, mais
Nos últimos anos os professores têm especificamente das novas tecnologias
demonstrado dificuldade em lidar com as eletrônicas de comunicação. Essa configuração
transformações das subjetividades dos jovens social contemporânea tem colocado desafios
contemporâneos, como se pode constatar pelas importantes para a escola, mas infelizmente as
conversas entre esses profissionais, seja em respostas têm sido pouco eficientes.

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A proposta deste artigo é problematizar as regulamentadores que incidem sobre a população


relações e as práticas vinculadas à escola que enquanto tal e a induzem a determinados
têm sido marcadas pela lógica judicializante e, comportamentos. Estes comportamentos, que se
neste sentido, traz exemplos de casos recentes, deseja serem frequentes na população, estão
em que nos deparamos com discursos que ligados à segurança, à saúde, enfim, aos cuidados.
demandam mais controle, mais vigilância e, São, segundo Foucault, formas de pressão “... que
nessa lógica, mais punição. Sob o pretexto de a própria organização da cidade exerce sobre a
defender a educação de qualidade, os códigos sexualidade, portanto sobre a procriação; as
de conduta e o respeito ao professor, as pressões que se exercem sobre a higiene das
situações analisadoras que serão apresentadas famílias; os cuidados dispensados às crianças; a
neste texto contribuem para alimentar a escolaridade, etc.” (1999, p. 300).
racionalidade que considera o poder judiciário a Assim, a escola funciona não apenas como
instância por excelência de resolução das espaço de disciplinamento dos corpos, mas
dificuldades e conflitos surgidos na escola. Em também como regulamentação e como espaço de
se tratando de situações analisadoras, é preciso uma biopolítica que pretende gerenciar a vida.
considerar que, de acordo com a Análise Essa articulação entre mecanismos de poder
Institucional, analisadores são os dispositivos ou diferentes, com suportes e objetivos distintos,
acontecimentos que favorecem o aparecimento também é destacada por autores que têm se
de movimentos diferentes dos que funcionam dedicado à análise das transformações sociais
habitualmente, permitindo colocar em discussão contemporâneas e seus efeitos sobre a produção
a maneira como as relações e as práticas das subjetividades dos que transitam pela escola.
institucionais se organizam numa dada situação. Segundo Machado (1999), no Brasil também
vivemos as crises dos espaços fechados (escola,
prisão, etc.), mas temos uma forma peculiar de
CONFINADOS E DESCONECTADOS lidar com as tecnologias de poder, pois “...
misturamos de uma forma específica exercícios
Se a escola, pelas técnicas de poder de poder que evidenciam soberania, disciplina e
centradas no corpo individual, constituiu-se gerência da vida” (p. 217). Na visão de Heckert e
como um dos espaços responsáveis pelo Rocha (2012), “... a gestão dos riscos e dos
disciplinamento dos corpos, não podemos perigos parece funcionar pela conexão de
ignorar que outros mecanismos de poder dispositivos mistos – disciplinar e de controle – de
também atuavam no âmbito escolar. Segundo modo a efetuar de forma generalizada e
Foucault (1999), desde o final do século XVIII totalizante a inclusão diferencial de todos” (p. 88),
uma nova tecnologia de poder, a tecnologia o que pode indicar certa utilização estratégica da
regulamentadora da vida, junta-se à tecnologia escola como espaço de controle e de governo da
disciplinar do corpo ou a ela se sobrepõe. vida. As autoras destacam alguns exemplos de
processos que atravessam a escola atualmente,
Enquanto esta última produz a individualização,
demarcam campos problemáticos, definem
está centrada no corpo e o manipula com vistas
comportamentos patologizados e, em outros
a torná-lo útil e dócil, aquela se volta para a
casos, promovem a criminalização de condutas.
população, com o objetivo de controlar a série de Nesse sentido, afirmam:
eventos casuais que “podem ocorrer numa
massa viva; uma tecnologia que procura A regulamentação da vida se efetua
controlar (eventualmente modificar) a amparada em discursos cientificistas, e
probabilidade desses eventos, em todo caso em nesse percurso a medicalização se
compensar seus efeitos” (p. 297). insinua como um dispositivo biopolítico
Por outro lado, Foucault (1999) afirma que os de governo da vida, de controle dos
modos de existência. Ao processo de
mecanismos disciplinares e os regulamentadores medicalização da vida escolar vemos
não estão no mesmo nível e por isso são capazes acoplar-se um outro dispositivo que tem
de se articular. Citando como exemplo a cidade se espraiado no Brasil, a judicialização
operária do século XIX, o autor exemplifica esta de questões escolares (Heckert &
articulação mostrando que a própria disposição Rocha, 2012, p. 90).
espacial da cidade torna os indivíduos visíveis e
normaliza suas condutas. Prosseguindo, o autor Mais à frente, quando discutir alguns casos que
afirma que há uma série de mecanismos concernem às tensões recentemente surgidas nas

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escolas, retornarei à ideia de judicialização. Por em análise as relações que estão sendo
ora, basta afirmar, junto com Heckert e Rocha construídas dentro e fora dela. O primeiro deles
(2012), que certos comportamentos que se - pautar as manifestações e enquadrar a escola
apresentam como enfrentamentos à ordem – refere-se à intenção dos meios de
instituída, em vez de serem encarados como comunicação de regular as palavras de ordem e
analisadores dos modos de construir as relações os cartazes reivindicativos que surgiram nas
na escola, costumam ser interpretados como manifestações iniciadas no mês de junho de
problemas médicos, jurídicos ou, simplesmente, 2013, em mais uma tentativa de regulação da
como casos de polícia. vida. Aqui cabe a observação de que a partir de
Voltando a atenção especificamente para a junho desse ano inúmeras manifestações
explosão da tecnologia eletrônica de comunicação ocorreram em várias capitais do país. Estas
nos últimos anos, Sibilia (2012) destaca as manifestações tinham como reivindicação
características atuais das relações construídas principal a redução do valor das passagens de
entre os jovens, entre eles e o conhecimento, ou ônibus, mas rapidamente extrapolaram este
melhor, a informação, e entre esses mesmos tema e, variando os motivos e os participantes
jovens e as estruturas disciplinares tradicionais, envolvidos, continuaram acontecendo por alguns
cuja materialização mais fiel é a escola. Com o meses. Retomando o assunto, apesar de o caso
olhar aguçado para os efeitos das novas em questão se dirigir às manifestações -
tecnologias sobre a escola, a autora afirma que as portanto, a espaços fora da escola -, visa
instituições disciplinares típicas dos séculos XIX e interferir diretamente no que acontece dentro
XX talvez hoje prescindam da vigilância dela. O segundo caso - os celulares vão à escola
hierárquica, do confinamento com controle do -, diz respeito à Lei Estadual que proibiu o uso
tempo e das sanções normalizadoras como de celulares nas escolas do Estado do Rio de
técnicas para a docilização e a utilização dos Janeiro e pode exemplificar, juntamente com o
corpos. O controle parece ser mais eficiente se se caso seguinte, o processo de judicialização das
consegue unir os corpos aos circuitos integrados questões escolares atualmente em curso. Por
do universo atual, como diz a autora. Nesse ponto fim, o terceiro caso, a escola entre a criação e a
ela chama a atenção para as transformações obediência, trata do projeto de lei que propõe
ocorridas nas subjetividades dos alunos, acrescentar ao Estatuto da Criança e do
destacando o contraste entre as formas de Adolescente (ECA) um artigo que exija dos
comunicação dos jovens contemporâneos, os jovens o respeito à autoridade intelectual e moral
modos de organização de suas relações e o dos docentes. Além de configurar um exemplo a
instrumental antiquado utilizado pela escola. mais do tratamento judicial conferido a certas
Segundo Sibilia, estar conectado é algo a que os questões da escola, tal artigo permitiria
sujeitos se entregam; e particularmente no caso problematizar as condições que nos possibilitam
das crianças e dos jovens, afirma: lidar com determinados problemas escolares do
modo como o fazemos hoje e, ainda, colocar em
As crianças e os mais jovens parecem análise seus efeitos.
apreciá-lo especialmente, motivo pelo
qual se dedicam a tais atividades a todo Pautar as manifestações, enquadrar a escola
momento e em qualquer lugar. Muitas
vezes o fazem, inclusive, driblando as Antes de descrever este primeiro caso vale a
eventuais proibições das hierarquias pena situá-lo no conjunto de tentativas da mídia
escolares; aliás, costumam recorrer a de assumir o comando da formulação de
essas conexões para sobreviver à reivindicações durante as manifestações que
chatice que implica ter que passar boa
varreram as principais capitais do país em junho
parte de seus dias encerrados nas salas
de aula, mais desesperadamente de 2013. Nessa ocasião assistimos a inúmeros
desconectados que disciplinadamente exemplos de como a mídia é ávida por controlar
confinados (Sibilia, 2012, p. 177). corações e mentes. Felizmente as
manifestações também serviram para mostrar
quanto o sucesso destas investidas tem se
TRÊS CASOS ANALISADORES mostrado difícil de ser alcançado, pois hoje em
dia torna-se arriscado e quase impossível manter
A seguir apresentarei três casos recentes uma única versão para os fatos, quer pela ampla
envolvendo a escola, com o objetivo de colocar circulação de informações via redes sociais, em

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tempo real, quer pela estrutura atual da própria Mas vamos ao caso em questão.
mídia televisiva, na qual as TVs a cabo oferecem Aproveitando o feriado de Sete de Setembro
vasto cardápio de programas jornalísticos, deste ano, vários grupos se pronunciaram
segmentados pelo perfil do público ao qual se previamente, convocando manifestações em
destinam e, consequentemente, com variadas diversas cidades do país. Prontamente, na
abordagens para um mesmo acontecimento. semana anterior ao feriado, uma rádio de
Nas primeiras manifestações de junho certos notícias de abrangência nacional (CBN, 2013)
programas do jornalismo televisivo repetiam sugeriu a confecção de cartazes que poderiam
compulsivamente estratégias buscando produzir ser utilizados nas manifestações previstas para o
a versão oficial para o que acontecia naquele dia da Independência. Estas sugestões foram
momento; mas com surpresa assistimos a feitas numa coluna semanal mantida pela rádio,
inúmeras imagens ao vivo por meio das quais a destinada a debater assuntos relacionados à
contradição se explicitou com o programa ainda educação.
no ar. Apesar disso, como afirmou Deleuze Demonstrando clara vinculação com
(1992) ao analisar a emergência das sociedades propostas conteudistas, os apresentadores
de controle ante as sociedades disciplinares, “os sugeriram, por exemplo, alguns cartazes
anéis de uma serpente são ainda mais alusivos à organização curricular, com base em
complicados que os buracos de uma toupeira” argumentos que destacavam as deficiências de
(p. 226). Assim, os meios de comunicação ágil e leitura e de matemática apontadas nas
rapidamente buscaram estratégias alternativas avaliações nacionais e internacionais,
largamente divulgadas. De acordo com a
com o objetivo de manter-se à frente das
proposta da rádio, estes cartazes defendiam
manifestações. Neste sentido, a todo custo
que, ao completar nove anos, os alunos
tentavam pautar as reivindicações dos
deveriam, pelo menos, ter lido um livro de 200
manifestantes, interpretando seus movimentos
páginas e ser capazes de realizar as quatro
de forma a adiantar-se a seus desejos.
operações com números de 6 algarismos.
Laurindo Filho (2013), apontando o vaivém Numa outra categoria de cartazes os
da mídia, destaca as mudanças na cobertura das apresentadores defendiam o “ensino integral já,
manifestações de rua que aconteceram pelo com sete horas diárias na educação básica”.
Brasil em junho de 2013. Citando Mais uma vez os argumentos são fundamentais
especificamente a Rede Globo, o autor afirma para entender a lógica que sustenta tal sugestão
que a cobertura inicial, francamente desfavorável de reivindicação. Segundo afirmaram, a
às manifestações, acabou sendo alterada em educação integral “já está começando no Brasil,
função da força que as manifestações mas com viés que não é legal”. O viés reprovado
adquiriram, juntando às reivindicações dos pelos apresentadores é descrito como certa
preços das passagens dos ônibus a indignação tendência em “colocar o aluno para pintar muro,
contra a violência policial. Essa estratégia não é bater tambor”; mas imediatamente se
nova, pois como ele lembra, em 1984 a emissora apressaram em ressaltar que ensinar artes e
adotara comportamento semelhante, quando esportes é ótimo, mas “é preciso ter foco nas
tentou esconder o máximo possível o movimento habilidades cognitivas; é preciso focar naquilo
pelas eleições diretas. que faz com que depois ele [o aluno] seja um
Como conter (prever) essas reações hoje em cidadão que não seja enganado facilmente”.
dia, diante das amplas e variadas facilidades de Havia também a preocupação de se mudar a
comunicação instantânea? cultura da escola, como ficou claro na
As tentativas de pautar as reivindicações e proposição dos cartazes alusivos ao controle de
de tomar as rédeas das manifestações ficavam frequência, pois, segundo os apresentadores do
claras quando mais uma vez, de acordo com programa da rádio, o Brasil começou muito tarde
Laurindo Filho (2013), as emissoras tentaram a matricular todos na escola, portanto, “não
instrumentalizar o movimento, colocando “suas temos uma cultura de frequentar a escola nem
bandeiras nas mãos dos participantes, de pontualidade; por isso, ainda é algo que não
estimulando, por exemplo, os gritos contra a é levado a sério nem pelos pais, nem pelos
aprovação da PEC-37 (um enigma para a alunos, nem pelos professores”. O controle
maioria da população) e um difuso combate à eletrônico de presença de alunos e professores
corrupção” (p. 7). foi, então, o cartaz proposto, com a ressalva de

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que deveria ser assim pelo menos até que se do Estado. No ano seguinte esta lei foi
instituísse a cultura de frequentar a escola modificada por outra, a Lei nº 5453, de 26 de
diariamente. maio de 2009, que ampliava a proibição para
Os meios de comunicação têm se “telefones celulares, walkmans, diskmans, Ipods,
caracterizado pela pouca preocupação com a MP3, MP4, fones de ouvido e/ou bluetooth,
coerência. As manifestações de junho tiveram game boy, agendas eletrônicas e máquinas
como disparador os movimentos em torno do fotográficas.” O uso destes equipamentos ficava
passe livre ou, de acordo com um slogan que se proibido nas salas de aulas, nas bibliotecas e
popularizou rapidamente, “por uma vida sem outros espaços de estudo, tanto para alunos
catracas”; porém isso parece não ter sido quanto para professores da rede pública
considerado pela rádio, pois, em franca sintonia estadual de ensino. A única exceção era a
com os processos atuais de controle social utilização para fins pedagógicos, caso em que o
baseados na tecnologia eletrônica, um dos estabelecimento de ensino deveria expedir
cartazes propostos pela emissora solicitava nada prévia autorização.
mais nada menos do que catracas para as Não é difícil perceber que se trata de mais
escolas. Além da incoerência ativamente uma lei que não conseguiu produzir os efeitos
reproduzida nesses meios comunicacionais, desejados. Neste caso, as reações produzidas
para um programa destinado a debater assuntos variam de acordo com a situação (se nas aulas
de interesse da educação, pode-se dizer que o regulares ou se durante as avaliações) e com os
desconhecimento acerca das discussões e das professores (se mais ou menos rígidos).
iniciativas em torno do ensino integral e do Percebemos, ao final, o movimento de alguns
currículo integrado é alguma coisa, no mínimo, tentando encontrar outras formas de convivência
reprovável. Não obstante, percebe-se que as com estes aparelhos em sala de aula, porém,
tentativas de colocar nas bocas e mãos dos com maior frequência, deparamo-nos com a
manifestantes as palavras de ordem dificuldade de colocar em análise as relações
previamente definidas pela rádio seguiram a instituídas no âmbito escolar.
mesma linha dos meios de comunicação citados
acima, visando instrumentalizar as A escola entre a criação e a obediência
manifestações e domesticar um movimento de
O terceiro e último caso trata de um projeto
enfrentamento muito mais denso do que a
de lei curioso, pois visa garantir o respeito dos
versão proposta pela rádio. Por fim, é preciso
estudantes para com os professores. O projeto,
destacar a aproximação de propostas como a do
PL 267/11, da deputada Cida Borghetti, tramita
controle do ponto com mecanismos de
em caráter conclusivo, já tendo sido aprovado na
regulação, disciplinamento e punição, que nada
Comissão de Seguridade Social e Família. No
contribuem para colocarmos em análise a
momento em que este artigo estava sendo
educação instituída – suas práticas de
escrito – outubro de 2013 – o projeto era
reprodução do fracasso, do tédio, da falta de
analisado na Comissão de Educação da Câmara
sentido.
dos Deputados, de onde deveria seguir para a
Comissão de Constituição e Justiça e de
Os celulares vão à escola
Cidadania.
O aumento exponencial do uso de aparelhos A proposta contida no projeto prevê a
eletrônicos de comunicação afetou o alteração do Estatuto da Criança e do
comportamento de todos - adultos e crianças. Adolescente (ECA) com o acréscimo do seguinte
Hoje os telefones celulares são praticamente artigo: “Na condição de estudante, é dever da
extensões dos corpos dos sujeitos. Já não é criança e do adolescente observar os códigos de
mais novidade ouvirmos as pessoas, em ética e de conduta da instituição de ensino a que
especial os jovens, declararem não conseguir estiver vinculado, assim como respeitar a
viver sem seus aparelhos celulares. autoridade intelectual e moral de seus docentes”
No caso específico da invasão da escola (PL 267/11, 2011).
pelos telefones celulares, a preocupação com o Como se observa a partir da leitura do
desempenho (e o comportamento) dos alunos projeto de lei, bem como das justificativas que o
chegou a tal ponto, que em 11 de abril de 2008 acompanham, não há definição clara do que
foi sancionada no Rio de Janeiro a Lei nº 5222, será considerado descumprimento da referida
que proibia o uso destes aparelhos nas escolas lei, nem há caracterização mais precisa do que

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poderá vir a ser julgado desrespeito à autoridade modo de funcionamento escolar, apoiado na
dos professores. Não obstante, na visão da racionalidade jurídica. Não custa lembrar a
autora da proposta, o poder judiciário parece ser afirmação de Foucault (2003) de que “o sistema
a instância mais adequada para a solução deste escolar é também inteiramente baseado em uma
tipo de situação, como se pode depreender da espécie de poder judiciário. A todo momento se
leitura do parágrafo único, que prevê sanções no pune e se recompensa, se avalia, se classifica,
caso de desobediência ao que está disposto na se diz quem é o melhor, quem é o pior” (p. 120).
lei: “O descumprimento do disposto no caput Logo no início da justificativa ao projeto de
sujeitará a criança ou adolescente à suspensão lei a autora promove a correspondência indevida
por prazo determinado pela instituição de ensino entre indisciplina e violência, ao lamentar que a
e, na hipótese de reincidência grave, ao seu “indisciplina em sala de aula tornou-se algo
encaminhamento à autoridade judiciária rotineiro” (PL 267/11, 2011), acrescentando que
competente” (PL 267/11, 2011). os casos de violência contra professores vêm
A preocupação com os comportamentos aumentando assustadoramente. Ora, se os
desviantes na escola não é algo novo. O que casos de violência contra professores (ou
surpreende é a articulação das estratégias qualquer outra pessoa) não podem ser
disciplinares de controle com as tentativas de negligenciados, especialmente quando atingem
regular a vida, resultando na produção de limites críticos, colocando em risco a vida, é de
práticas cujas expressões mais marcantes têm perguntar se uma lei que exige o respeito aos
sido a judicialização. De acordo novamente com mestres resolve o problema.
Heckert e Rocha (2012), é possível perceber Prosseguindo o arrazoado com o qual
como tem funcionado a utilização, pela escola, pretende justificar a alteração do Estatuto, a
de estratégias que criminalizam ou remetem ao deputada destaca que o ECA garante inúmeros
campo jurídico temas das mais variadas direitos aos jovens no que se refere à educação
naturezas: e estabelece as obrigações do Estado e da
sociedade, porém não prevê, segundo ela,
Esta judicialização tem se caracterizado dispositivos que disciplinem as obrigações que
pela expansão da ação da justiça no os estudantes devem ter para com seus mestres.
território da escola, com o aparato Com base nisso, conclui:
jurídico sendo acionado para intervir em
conflitos que emergem no chão da
Assim sendo, a proposição determina
escola e/ou para esclarecer dúvidas,
ser obrigação da criança e do
muito mais quanto aos deveres não
adolescente estudante a observância
cumpridos do que com relação aos
dos códigos de ética e de conduta da
direitos sociais não garantidos. A lógica
instituição de ensino a que estiver
judicial passa a permear o cotidiano
vinculado, bem como o respeito à
escolar, ofertada e requisitada,
autoridade intelectual e moral do
principalmente, para manter a ordem.
professor (PL 267/11, 2011, n. p.).
Utilizando-se de ameaças de punição,
intensifica-se a criminalização de ações
que interrogam as práticas instituídas, Felizmente, os discursos que pretendem
forjando-se políticas do medo e do reforçar a necessidade de mais leis, de mais
controle do suposto risco social (Heckert justiça e de mais regulações não são únicos.
& Rocha, p. 90). Outras vozes têm defendido práticas que tomem
os comportamentos considerados desviantes, os
As justificativas alegadas pela autora do casos de rebeldia ou de indisciplina, as formas
referido projeto de lei nos fornecem indícios de assumidas pelas relações forjadas na escola,
como as lógicas disciplinares e como analisadores dos processos instituídos
regulamentadoras podem se articular em ações nestes espaços. São práticas que não se
que remetem ao campo jurídico assuntos que restringem à busca das causas orgânicas,
poderiam ser tratados através de outras psíquicas ou sociais desses comportamentos,
abordagens, sobretudo comportamentos tampouco se perdem na elaboração infindável
alinhados ao conjunto de ações que questionam de regulamentos cada vez mais próximos da
as práticas instituídas. Embora a escola legislação penal; mas, assumindo uma posição
comporte movimentos instituintes, ações como ético-política francamente distinta, pretendem
estas legitimam e realimentam determinado indagar quais foram as condições que

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possibilitaram o estabelecimento de relações justiça na sociedade – característica da


entre a escola e os estudantes, destes entre si economia do poder na atualidade –, destacando
ou com o conhecimento, do modo como essas entre elas questões referentes à mídia, à família,
relações são observadas atualmente. Tais ao trabalho, às mulheres, às crianças, às
práticas não se eximem de enfrentar a situação discriminações de minorias e outras.
complexa com a qual a escola se depara na Essa espécie de regulamentação jurídica
atualidade, mas colocam em análise os dos comportamentos, entendida como
dispositivos que sustentam as propostas modalidade de governo, parece apontar para
judicializantes para a solução dos conflitos e das uma inversão do que acontecia no século XIX,
dificuldades envolvendo a escola. Ao encararem atribuindo-se, agora, à justiça, funções que eram
os acontecimentos como analisadores do desempenhadas anteriormente por uma rede
instituído na escola, essas práticas afirmam seu não judiciária. Este processo envolve
compromisso não com a obediência, mas com a principalmente a redefinição do que pode ou
criação de outros modos de ser e estar no deve ser levado à Justiça, possibilitando o
mundo. funcionamento dos mecanismos protetores
próprios das técnicas de gerenciamento das
populações.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em consonância com o que já foi dito
De fato, alguns exemplos encontrados nas anteriormente acerca da articulação entre os
situações descritas mostram a preocupação com mecanismos de poder disciplinar e os de
os resultados da educação, mas também com a regulamentação, a autora (Lobo, 2012) afirma a
integridade moral e física dos professores, além continuidade das técnicas de vigilância e de
de pretenderem evitar os comportamentos controle realizadas em espaços disciplinares;
desviantes, o que, certamente, não é porém, diante das ameaças de perda de controle
prerrogativa dos tempos atuais; mas mesmo sobre os corpos e as populações, não se hesita
diante de mecanismos de controle mais em recorrer às leis de modo a garantir a
sofisticados, como os descritos por Deleuze produção de subjetividades que não se desviem
(1992) ao se referir às sociedades de controle, do modelo permitido:
presenciamos um movimento muito claro de
delegar à justiça assuntos que costumavam ser O controle dos comportamentos e das
tratados em outras instâncias, sobretudo os populações continua funcionando nesta
processos cotidianos pertencentes às relações rede de vigilância e correção em
instituições como a escola, a polícia, a
estabelecidas no interior ou no entorno das
psiquiatria, mas certamente vem
escolas. transferindo seu poder decisório e seu
Seria o caso de nos perguntarmos, então, objetivo de prevenir e corrigir as
quais os caminhos que levam a sociedade a virtualidades da infração para o poder
recorrer às leis – proibição de celulares; respeito judiciário. Percebe-se hoje em dia um
ao professor –, quando se vê diante de clamor por leis mais duras e corretivas
determinados problemas contemporâneos. para evitar que mulheres sejam
Obviamente, não se trata aqui da preocupação espancadas, crianças levem palmadas,
minorias sejam desrespeitadas, para
com um possível esgarçamento das malhas
evitar acidentes de trânsito, e assim por
sociais que outrora garantiram relações diante, ou seja, a lei cumprindo função
hierárquicas e que eram fundadas num modelo pedagógica de mudanças de
funcionalista de sociedade. O que se pretende é comportamento (Lobo, 2012, p. 29).
colocar em questão quais efeitos produzirá
(aliás, já está produzindo) a disseminação da Isto é o que estamos vendo quando, diante
racionalidade que rege as soluções para os dos problemas que lhe são colocados no
problemas vivenciados nos espaços escolares, cotidiano, a escola recorre às soluções jurídicas
remetendo-os ao poder judiciário. e às punições. Chama a atenção a expectativa
Lobo (2012) chama a atenção para um fato de que através da definição clara de leis,
atual de grande importância: a judicialização do regulamentos, etc., os comportamentos ou
nosso cotidiano. A autora afirma que hoje atitudes reprováveis – ou seja, em
notamos a multiplicação das atribuições da desconformidade com as leis – possam ser

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Judicialização invade a escola 399

punidos e - mais importante ainda -, outros uma maneira de multiplicar as ocasiões de punir
desvios possam ser evitados. e de designar previamente possíveis
Foucault (2003) já nos havia mostrado que o delinquentes” (p. 191).
deslocamento sofrido pela criminologia e Em outro momento, desta vez não se
penalidade do século XIX levou ao controle “... referindo à periculosidade, mas aos perigos,
não tanto sobre se o que fizeram os indivíduos Foucault (2010) chama a atenção para o fato de
está em conformidade ou não com a lei, mas ao que nem todas as coisas são ruins, mas tudo é
nível do que podem fazer, do que são capazes perigoso - o que nos obriga a identificar quais os
de fazer, do que estão na iminência de fazer” (p. principais perigos a enfrentar. Isso coloca uma
85). É isso que vai caracterizar, segundo o tarefa fundamental para todos aqueles que lidam
filósofo, a noção de periculosidade, ou seja, a com os problemas da educação hoje:
noção de que o indivíduo deve ser considerado problematizar as práticas e as relações
não pelos seus atos, mas pelas suas instrumentalizadas na escola, cuja amplitude tem
se estendido do âmbito do ensino propriamente
virtualidades. Desse modo, pode-se supor por
dito ao das condutas do ponto de vista legal ou
que numa lei como a que pretende exigir dos
jurídico.
alunos o respeito ao professor a definição clara e
Não estaremos lidando de maneira
objetiva dos comportamentos ou suas desproporcional com um problema que poderia
transgressões tem pouca importância. Em rigor, perfeitamente permanecer circunscrito ao âmbito
do ponto de vista da noção de periculosidade, o escolar? Ou seja, a partir da interpretação de
indivíduo não é considerado com base na certos comportamentos considerados
transgressão propriamente a uma lei, mas em virtualmente delinquentes, desviantes ou, quem
relação às virtualidades de seu comportamento. sabe, desrespeitosos, não estaremos incorrendo
Conforme lembra Foucault (2012a) numa num risco maior?
das suas inúmeras discussões com os Talvez por isso, um dos grandes problemas
defensores do sistema penal, os problemas da enfrentados por quem tem uma relação mais
justiça e da punição precisam ser formulados e direta com a escola (alguns educadores, em
reformulados sempre, pois é preciso não se particular) na atualidade, é a dificuldade de
esquecer “... o quanto é difícil ser justo e fácil ser identificar, entre os inúmeros perigos presentes
injusto” (p. 277); e, chamando a atenção para a no cotidiano, quais os principais, ou melhor,
necessidade de a sociedade se interrogar sobre quais os que precisam ser enfrentados
a maneira como se deve praticar a justiça, alerta imediatamente. Por essa razão, quando
para importância de problematizarmos as constatamos que a preocupação de alguns em
relações e as práticas que nos constituem: “Pois preservar os códigos de conduta e garantir o
uma justiça deve questionar a si própria, assim respeito ao professor resulta na judicialização
como uma sociedade só pode viver do trabalho das questões da escola, inclusive com a
que exerce sobre si mesma e sobre suas definição de ações punitivas para tais atos,
instituições” (p. 278). precisamos colocar em análise exatamente
Os problemas atualmente enfrentados pela estes movimentos – sua racionalidade, suas
escola têm sido tratados como ameaças ao práticas –, porque, conforme observa Foucault
controle que esta pretende exercer sobre os (2012b),
corpos e as populações. Desse modo, as
propostas formuladas revelam a dificuldade da ... é preciso também interrogar-se sobre
escola de se pensar e se interrogar, a fim de o que merece efetivamente ser punido.
encontrar alternativas para lidar com os O que pensar das divisões hoje
problemas contemporâneos sem precisar admitidas entre o que é sancionável pela
recorrer aos mecanismos de controle lei e o que praticamente não o é? Tantas
preocupações para que os “costumes”
disciplinares - aliás, pouco eficientes nos dias de
não sejam “ultrajados” nem os “pudores”
hoje -, nem aos mecanismos legais, baseados pervertidos, e tão poucas para que o
na racionalidade jurídica. Estes últimos resultam, emprego, a saúde, o meio de existência,
muitas vezes, da conclusão equivocada e, a vida não sejam postos em perigo.... (p.
sobretudo, perigosa, de que precisamos prevenir 191).
certos atos através de medidas rígidas de
segurança, enquanto, como lembra Foucault As transformações necessárias para tornar
(2012b), soluções desse tipo representam “... possível a construção de alternativas aos

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400 Amado

problemas da escola poderão acontecer com Laurindo Filho, L. (2013). As ruas e o vaivém da mídia. Le
muito mais chances de acerto se tiverem como Monde Diplomatique, 6 (72), 7.
protagonistas os próprios sujeitos que a habitam. Foucault, M. (1989) Vigiar e punir: história da violência nas
Através da potencialização de professores, prisões. Petrópolis, RJ: Vozes.
alunos e dos demais agentes institucionais, Foucault, M. (1999). Em defesa da sociedade. São Paulo:
como autores deste processo, é possível manter Martins Fontes.
a escola como lugar de encontros, de construção Foucault, M. (2003). A verdade e as formas jurídicas. Rio de
Janeiro: Nau / PUC-Rio.
de outras possibilidades de formação, enfim,
como espaço para a ampliação dos modos de Foucault, M. (2012a). O senhor é perigoso. In M. Barros de
Motta (Org.). Ditos e escritos VIII – Segurança, Penalidade
existência. Talvez a escola venha a ser uma e Prisão (pp. 276-278). Rio de Janeiro: Forense
nova escola, diferente da que estamos Universitária.
acostumados a ver. Certamente não estará Foucault, M. (2012b). Michel Foucault: é preciso repensar
isenta de mecanismos de poder, como, aliás, tudo, a lei e a prisão. In M. Barros de Motta (Org.). Ditos e
nenhuma esteve até hoje, mas tampouco escritos VIII – Segurança, Penalidade e Prisão (pp. 189-
precisaremos de mais vigilância, mais controle, 191). Rio de Janeiro: Forense Universitária.
mais leis para que funcione. Heckert, A. L. & Rocha, M. L. (2012). A maquinaria escolar e
Ao encerrar este artigo, chamo a atenção os processos de regulamentação da vida. Psicologia &
para dois aspectos fundamentais: a necessidade Sociedade; 24(n.spe.), 85-93.
de encararmos os problemas surgidos na escola Lobo, L. F. (2012). A expansão dos poderes judiciários.
não como ameaças a sua existência, mas como Psicologia & Sociedade; 24(n. spe.), 25-30.
analisadores dos processos instituídos, e de Lourau, R. (1993). Análise Institucional e Práticas de Pesquisa.
Rio de Janeiro: UERJ.
problematizarmos as práticas que pretendem
prevenir certas condutas desviantes através de Machado, L. D. (1999). Subjetividades contemporâneas. In
Barros, M. E. B. de. (Org.). Psicologia: questões
discursos moralizantes e de métodos punitivos. contemporâneas (pp. 211–229). Vitória: EDUFES.
Por fim, destaco um dos perigos que certamente
Projeto de lei 267/11 de 2011. (2011). Acrescenta o art. 53-A a
precisaremos enfrentar o quanto antes: a Lei n.° 8.069, de 13 de julho de 1990, que “dispõe sobre o
invasão da escola pelos processos que Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras
judicializam a vida. providências”, a fim de estabelecer deveres e
responsabilidades à criança e ao adolescente estudante.
Recuperado em 3 de novembro, 2013, de
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarin
REFERÊNCIAS
tegra;jsessionid=C1F22298DEE6138427A4A928F403599
0.node1?codteor=838075&filename=PL+267/2011.
CBN. (2013). Missão aluno. Recuperado em 10 de setembro
de 2013, de Sibilia, P. (2012). Redes ou paredes: a escola em tempos de
http://cbn.globoradio.globo.com/colunas/missao- dispersão. Rio de Janeiro: Contraponto.
aluno/2013/09/02/CARTAZES-PELA-EDUCACAO-NO-
SETE-DE-SETEMBRO.htm.
Deleuze, G. (1992). Post-scriptum sobre as sociedades de Recebido em 20/11/2013
controle. In G. Deleuze. Conversações (pp. 219-226). Rio Aceito em 26/09/2014
de Janeiro: 34.
Dreyfus, H. & Rabinow, P. (2010). Michel Foucault: uma
trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da
hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

Luiz Antonio Saléh Amado: mestre em Psicologia Social; doutor em Psicologia Social; professor adjunto da Faculdade
de Educação da Baixada Fluminense; professor permanente do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e
Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil.

Psicologia em Estudo, Maringá, v. 19, n. 3, p. 391-400, jul./set. 2014

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