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DIREITOS REAIS DE GARANTIA *

EDUARDO ANDRADE FLOR DE AZEVEDO··

1. Parte geral; 2. Do penhor; 3. Da anticrese; 4. Da


hipoteca; 5. A alienação fiduciária e os direitos reais de
garantia; 6. Conclusões.

Apresentação
Ao elaborar este trabalho, nossa intenção maior não foi a de dirigi-lo aos
estudantes, menos ainda aos doutos. Se nele alguma valia acharem, sentir-nos-
emos gratificados.
Movidos pela vontade incansável de aprender, de pesquisar, procuramos ser
concisos tanto nos assuntos abordados quanto na linguagem. Quanto a esta,
esforços fizemos para que leve fosse.
Saídos do velho casarão da Praça XV, emigramos para os corredores do
Fórum. Ali, colocamos em prática o que nem sempre a teoria ensina. Daí, estu-
dar ser preciso sempre.
O advogado não é nem deverá ser um simples receptor mecânico, um classi-
ficador de dados. Por isso, procuramos abordar os temas sob a ótica do dia-a-dia
forense, sem perder de vista a grande importância que se atribui ao patrimônio,
aqui particularmente assegurado sob a égide da garantia real.
Das poucas vezes em que ousamos discordar dos mestres (e que eles nos
perdoem). divergimos fundados na convicção de quem vive o dia-a-dia do
Fórum, apanágio de todos os práticos postulantes.
Bastante ficou ainda por dizer, especialmente no que respeita à alienação
fiduciária em garantia.
Dos institutos abordados neste trabalho, achamos que o da anticrese deveria
ser extinto. Desde o início da vigência do Código (1927) até hoje, pouco se
usou. Não se ajusta à realidade econômica dos nossos dias.
No sentido de aprender, de corrigir erros que devem ser bastantes, estamos
abertos à crítica.

1. Parte geral

1.1 Informação histórica


A noção de garantia está ligada à idéia de patrimônio. A fase primitiva do
direito desconhecia qualquer espécie de garantia real. Em Roma, a pessoa do

• O presente trabalho, apresentado ao Curso de Direito Imobiliário promovido pelo Centro


de Atividades Didáticas do INDIPO, mereceu nota máxima e está sendo publicado por
decisão do Conselho Editorial da Revista de Ciência Política .
•• Advogado.

R. C. po1., Rio de Janeiro, 28(1):91-134, jan./abr. 1985·


devedor respondia pela sua dívida podendo o credor reduzi-la à condição de
escravo. No antigo Egito, o devedor inadimplente era simplesmente adjudicado
ao credor.
Com o decorrer do tempo, surgiram a garantia pessoal, terceira pessoa que
por meio de fiança se obrigava a resgatar o débito. Outra garantia, esta de
natureza real, o devedor (ou alguém em seu lugar) oferecia todo ou parte de
seu patrimônio em garantia da dívida. Outras modalidades surgiram em Roma
em termos de garantia real tal como a fidúcia, através da qual o devedor entre-
gava ao credor a coisa dada em garantia, coisa essa que lhe seria devolvida logo
que resgatado o débito. O pignus garantia ao credor a posse da coisa por meio
dos interditos. Deste, da hipoteca e da anticrese, falaremos mais para diante.

1.2 Teoria geral

.. Art. 674. São direitos reais além da propriedade:


( ... )
VII - o penhor (art. 768);
VIII - a anticrese (art. 805);
IX - A hipoteca (art. 809)."

Ensina Orlando Gomes que a expressão "direitos reais de garantia" compre-


ende, no ordenamento jurídico nacional, o penhor, a hipoteca e a anticrese.
Chamados também de direitos pignoratícios, expressão que o mestre condena
por entender que empresta "exagerada amplitude a um desses direitos, o penhor".
Todavia, outras teorias se conhecem. Assim é que, para a teoria realista, à
qual acreditamos o nosso Código se filiou, direito real é a relação entre o indi-
víduo e a coisa, relação essa que se exerce sem intermediação afirmando· se
erga omnes.
Há ainda quem entenda que direito real de garantia é a relação jurídica pro-
veniente do poder de seu titular sobre determinada coisa visando o uso, gozo ou
garantia, o qual deve ser acatado por uma regra de conduta coletiva.
Mas seja qual for a teoria a que nos filiemos, mister se faz que os princípios
comuns dos direitos reais de garantia sejam diferenciados de outros direitos
reais limitados, extremando-os de figuras mais ou menos afins e que se lhes
especifique a essência.

1.3 Conceito

"Art. 755. Nas dívidas garantidas por penhor, anticrese ou hipoteca, a coisa
dada em garantia fica sujeita por vínculo real, ao cumprimento da obrigação."
Refulge do texto legal que o direito do credor assenta-se sobre determinado
bem do devedor. Sabido também que se trata de princípio trivial agasalhado em
muitas legislações. Mas, para que se chegasse a tanto, foi preciso que se obtivesse
a verdade do direito, sem que a propriedade da coisa fosse alijada da posse do
seu dono, do devedor. A garantia pessoal passou a ter valor erga omnes ao
credor, foi assegurado o poder de dispor de coisa por si ou pelo poder de impe-
rium do Estado no caso de inadimplemento, ou a percepção dos frutos até ver

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seu crédito atendido. Em resumo, o direito real de garantia é todo aquele que dá
ao credor o direito de ressarcir o seu crédito, com o resultado da aplicação de
determinado bem a seu exclusivo subjetivismo.

1.4 Características

E fora de dúvida que as garantias reais colocam o credor fora do alcance da


insolvência do devedor. A coisa dada como garantia sujeita-se por vínculo real
ao cumprimento da obrigação. Desta sujeição resulta a prelação (do latim
praelatio: direito de preferência duma pessoa, colocando-a sempre em primeiro
lugar na satisfação de seus direitos, frente a outras que pretendam disputar-lhe
a primazia ou prioridade), uma das mais importantes características do direito
real de garantia. Daí dizer-se princípio basilar de direito, em muitas legislações
contemplado, que o patrimônio do devedor garante o credor. Sabido, também,
que aquele (o devedor) pode ser demandado a dois títulos: por ser pessoalmente
obrigado ou como o possuidor do bem dado em garantia real. Daqui resultam
as chamadas razões de preferência: de ordem pessoal ou de ordem real. Estas
são os direitos reais de garantia (art. 1.557); aquelas, os privilégios.
Carvalho Santos lembra que Clóvis Bevilacqua ensina que a característica
mais importante dos direitos reais de garantia é a conexão íntima que guardam
com as obrigações cujo cumprimento asseguram, das quais dependem e são
acessórios. Justamente porque vinculam a coisa diretamente à vontade do credor
é que se lhes atribui a denominação de direito real de garantia.
E continua o mestre: "Diferem, essencialmente, dos outros direitos reais de
uso e gozo: a) não destacam da coisa, sobre que recaem (salvo a anticrese),
quaisquer utilidades econômicas em benefício do titular; dão-Ihe somente o poder
de se pagar pelo valor ou pelos produtos dela; b) não existem por si, gravando
a coisa alheia; dependem do direito de crédito, cuja realização asseguram. Desta
dependência resulta que, se são insuficientes para cobrir os créditos, que garan-
tem, estes subsistem na parte restante; mas se o crédito, que é a coisa principal,
se extingue, desaparece o direito real de garantia" (cf. Carvalho Santos, 1975,
p. 6-7).
Outras características dos direitos reais de garantia são a adesão e a seqüela.
Também é verdadeira a afirmação de que 5ão acessórios da obrigação que
caucionam, a qual uma vez extinta faz com que pereça o direito real de garantia.
Os direitos reais de garantia extinguem-se com a prescrição da dívida à qual
aderem. Não se pense, todavia, que há reciprocidade. Não, não há, eis que
mesmo desaparecendo o direito real de garantia não implica a extinção da obri-
gação principal. Finalmente, convém lembrar que os direitos reais de garantia
são considerados imóveis, até mesmo o penhor agrícola mais as ações que lhes
correspondem (art. 44, I, do Código Civil).

1.5 Natureza jurídica

A idéia de que o penhor, a hipoteca e a anticrese são efetivf!mente direitos


reais encontra algumas objeções, isto por que há um equívoco entre direitos
reais e garantias reais. Em assim sendo, tem-se que a preferência cometida aos
titulares dos direitos reais de garantia não é, a rigor, sua realidade, não po-

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dendo por isso mesmo ser oponível a toda e qualquer pessoa. Diante desta
idéia, desta tese, a preferência esvaziou-se de seu valor intrínseco, em face do
que preceituam o Código Tributário Nacional, art. 186, e a Consolidação das
Leis do Trabalho, créditos tributários e créditos trabalhistas, respectivamente.
Observa-se que a preponderância do direito do credor sobre a coisa dada em
garantia é frágil, quase inexistente, posto que o direito de que dispõe cinge-se ao
valor da dita coisa e a preferência exerce-se sobre o preço da venda em juízo.
A esta tese, Orlando Gomes nega validade e aceitação, isto porque o credor
atua de modo direto, imediato, sobre a coisa que lhe garante seu crédito. l! isto,
precisamente, o que caracteriza o direito real. A realidade do penhor e da hipo-
teca tem como fim maior conferir ao credor um poder todo particular sobre a
coisa, podendo apreendê-la se em poder de terceiros estiver.
A divergência ganhou maior ressonância quando se pretendeu colocar a essên-
cia dos direitos reais sob a proteção jurídica, a partir da qual os direitos reais
passariam a ser tratados como direitos processuais. Debita-se a Camelutti seu
nascedouro. Os direitos reais de garantia não mais seriam institutos de direito
material. Não logrou o mestre italiano êxito maior em sua engenhosa cons-
trução. A relação pignoratícia, em seu mais alto sentido, é pertença do direito
substantivo, civil ou comercial. A venda da coisa não acontece fatalmente, a
menos que o devedor não cumpra o pactuado. A relação jurídica é básica
e essencialmente de direito material. Somos em acreditar que a esta linha de
pensamento fiHa-se Silvio Rodrigues, ao ensinar: "O direito prende-se à coisa,
persegue-a. Por essa razão, o credor, no caso de não deter a posse da coisa como
acontece na hipoteca, ou se ver dela privado, pode reclamá-la." E vai mais
além o precitado autor: "Pois o caráter real dos direitos de garantia me parece
irrevogável ante o fato de apresentarem todos os requisitos da realidade, ou seja,
de serem providos de seqüela, de independerem de colaboração do devedor para
se exercitarem, de recaírem diretamente sobre a coisa e só se aperfeiçoarem
após o registro ou tradição. Por outro lado, o penhor e a hipoteca existem antes
e independentemente de qualquer relação litigiosa surgindo, a meu ver, com o
direito subjetivo que se caracteriza a despeito de qualquer relação processual"
(Rodrigues, 1975, p. 318).

1.6 Distinção entre os direitos reais de garantia e direitos reais de gozo

Faz-se a distinção atentando-se para o conteúdo e para a função. O conteúdo


dos direitos reais de gozo (que são o uso, o usufruto, a habitação, a enfiteuse
e as servidões) assenta-se no poder que tem o titular de usar e fruir da coisa
de que guarda a posse direta. Já o conteúdo dos direitos reais de garantia con-
siste na faculdade que tem o respectivo titular de a seu talante obter o paga-
mento da dívida que a coisa garante. Ambos, como se vê, são direitos reais
sobre coisa alheia.
Há ainda uma outra distinção pela qual os direitos de gozo são autônomos,
e os de garantia direitos acessórios. No primeiro caso, existem por si mesmos,
tendo finalidade à qual corresponde uma função econômica, ao passo que os
direitos de garantia são, pela sua própria essência, direito acessório dum outro
direito a que dão garantia.

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1.7 Distinção entre os direitos reais de garantia e os privilégios

Na verdade, o privilégio não é um direito real, eis que não confere poderes
sobre a coisa tal como sucede com os direitos de garantia. O privilégio é uma
resultante de imposição legal e, por essa mesma razão, sobrepõe-se à garantia
real contratada. O exemplo melhor (já mencionado) é o que dispõe o art. 186
do Código Tributário Nacional e a Consolidação das Leis do Trabalho, cada
qual na sua esfera de atuação e competência.
Entendemos, pois, que se o privilégio alcança todo o patrimônio do devedor,
tal alcance importa, ou poderá eventualmente importar, uma diminuição do
crédito assegurado por garantia real livremente contratada. O legislador, ao criar
a preponderância do privilégio sobre a garantia real, deu atenção maior à causa
e à qualidade do crédito.
Em nossa opinião, melhor andaria o legislador se apenas desse tratamento
diferenciado aos créditos trabalhistas. O crédito do Estado deveria concorrer,
em igualdade de condições, como o crédito garantido por direito real, às sobras
do patrimônio do devedor. Doutro modo, queiramos ou não, a garantia esvazia-se.

1.8 Princípios gerais; capacidade para dar em garantia

"Art. 756. Só aquele que pode alienar poderá hipotecar, dar em anticrese ou
empenhar. Só as coisas que se podem alienar poderão ser dadas em penhor,
anticrese, ou hipoteca."
Somente aquele que dispõe de capacidade civil plena e é o titular da pro-
priedade (posse e domínio) pode gravar a coisa.
As pessoas de que tratam os arts. 5.° e 6.° do Código estão afastadas da
prática válida de poder dar em garantia. Entretanto, se lhes for suprida a inca-
pacidade pela forma prevista na lei substantiva e mediante fiscalização judicial,
nada impedirá de constituir direitos reais. Vale dizer, os tutores e curadores
podem gravar os bens dos tutelados ou curatelados desde que haja autorização
do juiz e vantagem para os incapazes. Hoje, a norma contida no art. 429 é
entendida com um certo abrandamento, especialmente no que respeita à troca,
dada a impraticabilidade de efetuá-la por hasta pública. A mulher casada, sem
a anuência marital ou suprimento judicial, não pode, claro está, dar em garan-
tia, não influindo nisto o regime do casamento. O inventariante não pode cons-
tituir direito real de garantia, salvo se a tanto estiver autorizado pelo juiz. Já ao
herdeiro, a lei permite que o faça (hipoteca) sobre o seu quinhão, uma vez
aberta a sucessão, o que será separado na partilha em favor do seu credor. Ao
falido, a partir do decreto falimentar, se privado da administração de seus bens,
a lei nega autorização para dar em garantia.
Daqui se conclui existir uma subordinação a princípios gerais, os quais Or-
lando Gomes nesta ordem resume:

a) quanto ao sujeito: quem pode alienar pode empenhar, hipotecar, ou dar em


anticrese;
b) quanto ao objeto: apenas as coisas que são alienáveis poderão ser empenha-
das, hipotecadas, ou dadas em anticrese;
c) quanto à função: a coisa dada em garantia fica por vínculo real ligada ao
implemento da obrigação;

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d) quanto à extensão da garantia: o pagamento de uma ou mais prestações não
implica a redução da garantia;
e) quanto ao valor do título constitutivo: para que os contratos de penhor, hi-
pOleca e anticrese tenham valia, é preciso que registrem: o total da dívida; o prazo
contratado para o pagamento; a taxa de juros; a individuação ou especificação
da coisa dada em garantia;
f) quanto à forma de exercitar o direito: os credores pignoratícios, hipotecários
ou anticréticos não podem ficar com a coisa dada como garantia. No caso do
não-pagamento da dívida, no seu termo, os primeiros poderão vender o bem
gravado judicialmente. O último pode reter a coisa até ser pago.

Diante deste elenco, por eliminação, temos que as coisas fora do comercIO
e as que por lei são inalienáveis (art. 69) não podem ser objeto de gravame, a
par dos bens dotais. Não se pode dar, em garantia real, coisa alheia. Se tal
cláusula existir, será tida como não-escrita.
Fácil é de ver que um dos efeitos decorrentes dos chamados princípios gerais
consiste na indivisibilidade.

1.9 Indivisibilidade

"Art. 758. O pagamento de uma ou mais prestações da dívida não importa


exoneração correspondente da garantia, ainda que essa compreenda vários bens,
salvo disposição expressa no título, ou na quitação."
Apesar de a coisa objeto da garantia ser tida como indivisível, o legislador
acatou o princípio da liberdade subjetiva de contratar ao dizer "salvo disposi-
ção expressa no título". ~ um dos efeitos da garantia real, é uma ficção legal
que revert~ em favor do credor. A indivisibilidade pode ser vista sob dois aspec-
tos. O primeiro é o de aderir ao bem gravado por inteiro, pelo seu todo. O
segundo aspecto visa proteger a integralidade da garantia, mesmo que esta se
componha de vários bens, salvo se constar do título expressamente a liberação
dos bens, à medida que se for verificando o implemento das prestações. A
quitação parcial importa em mencionar quais os bens que exonera.

1.10 Coisas que podem ser dadas em garantia

"Art. 756. ( ... ) Só as coisas que se podem alienar poderão ser dadas em
penhor, anticrese ou hipoteca (arts. 69, 72, 235, 242, 1.386, 1.723)."
Observa-se ser nula de pleno direito a garantia real lastreada em coisa alheia.
As coisas alienáveis são todas aquelas que estão dentro do comércio.
Deste modo, só estas poderão ser objeto de garantia.
Questão ainda não de todo pacífica é a de saber-se se o condômino pode dar
em garantia a sua quota-parte na coisa comum.
O art. 757, segunda parte, permite claramente que o condômino grave o seu
quinhão. Impõe, todavia, uma condição: a de que a coisa seja divisível.
Duas espécies de indivisibilidade são conhecidas: a material ou física, que
decorre da própria natureza da coisa; e a jurídica, que decorre da lei - por
exemplo, o prédio enfitêutico.

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Perguntamo-nos a qual das indivisibilidades a lei se reporta. Acreditamos
que se refira à segunda espécie, à jurídica, porque o quinhão do condômino
está dentro do comércio.
Assim, dúvidas não deverá ter o oficial do registro de imóveis, uma vez que
a inscrição ou registro fará referência de que o bem dado em garantia acha-se
em condomínio, mencionando as confrontações atinentes ao todo.

1.11 Direito de excussão

"Art. 759. O credor hipotecário e o pignoratício têm o direito de excutir a


coisa hipotecada, ou empenhada, e preferir, no pagamento, a outros credores
observada, quanto à hipoteca, a prioridade na inscrição."
A excussão (do latim excussio) tem um significado mais estrito que a exe-
cução. Mal não andaremos se dissermos que nela se acha contida. Excutir é, pois,
provocar a venda judicial do bem gravado, para com o preço obtido pagar pre-
ferencialmente aos credores pignoratício e hipotecário, ressalvadas as exceções
legais já mencionadas. O seu requisito primeiro é o vencimento da obrigação.
No caso de dualidade, a preferência é determinada em função da inscrição.
A excussão proposta contra o falido importa a citação do síndico sob pena de
nulidade absoluta.
Convém notar, por ser importante, que se a coisa é dada em garantia real
a mais de um credor, a prioridade das hipotecas acontecerá em razão das
inscrições, isto porque a lei atende à ordem da inscrição e não à data do con-
trato. Em outras palavras: o credor da segunda hipoteca, apesar da garantia
que tem sobre a coisa hipotecada, goza do privilégio em segundo plano. Ainda
que privilegiado frente aos credores quirografários, o seu direito de preferência
fica condicionado à satisfação do direito do credor hipotecário cuja hipoteca
primeiro se inscreveu. f: de ver-se, pois, a prevalência da garantia que primeiro
se leva a registro e não a que se contrata em primeiro lugar.
A norma contida no parágrafo único do precitado artigo do Código Civil
protege os trabalhadores do campo no sentido de não serem privados do produto
do seu trabalho.
No dizer de Clóvis Bevilacqua, "justifica-se este privilégio, como uma prote-
ção especial do Estado aos trabalhadores agrícolas, para não se verem esbulha-
dos do produto do seu trabalho, pelos poderosos credores dos proprietários de
terra cujas riquezas são o produto de sua indefesa atividade".1
Não é demais frisar que a disposição legal contempla apenas o penhor e a
hipoteca. A anticrese tem tratamento diferenciado.

1.12 Pressupostos dos contratos de penhor, da anticrese e da hipoteca

Os pressupostos ou requisitos dos contratos nada mais são que uma especiali-
zação dos direitos reais de garantia. Para que haja eficácia erga omnes, devem
tais contratos conter de modo inequívoco: a dívida total ou estimada, prazo

I Bevilacqua, Clóvis. Comentários ao Código Civil. art. 759. Apud. Carvalho Santos
(1975) .

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de pagamento, juros se os houver e as especificações da coisa dada em garantia.
Bem de ver que os elementos apontados vêm somar-se aos exigidos pela lei
para todo e qualquer tipo de contrato (art. 82). Omitidos que sejam os pressu-
postos apontados, isso não traduz nulidade da relação jurídica, a qual, no entanto,
não será oponível a terceiros. Valerá apenas entre os contratantes. Sendo impos-
sível fixar quantias certas, basta que se consigne o capital máximo a garantir.

1.13 Vencimento antecipado da dívida assegurada por garantia real

"Art. 761. Os contratos de penhor, anticrese e hipoteca declararão, sob pena


de não valerem contra terceiros: ( ... )

11 - o prazo fixado para pagamento."

A garantia real é sempre acessória. Segue a sorte da obrigação principal por


adesão: accessorium seguitur principale.

Pelo dispositivo citado, cumpre sublinhar dois tipos de vencimento. O pri-


meiro acontece uma vez alcançado o termo da dívida garantida. E o vencimento
dito normal.
O outro, qual seja o não-cumprimento do termo, ocorre se se configurarem as
hipóteses previstas no art. 762:
"Art. 762. A dívida considera-se vencida:

I - se deteriorando-se, ou depreciando-se a coisa dada em segurança, des-


falcar a garantia, e o devedor, intimado, não a reforçar;
11 - se o devedor cair em insolvência ou falir;
111 - se as prestações não forem pontualmente pagas, toda vez que deste
modo se achar estipulado o pagamento. Neste caso, o recebimento posterior da
prestação atrasada importa renúncia do credor ao seu direito de execução ime-
diata;
IV - se perecer o objeto dado em garantia;
V - se se desapropiar a coisa dada em garantia, depositando-se a parte do
preço que for necessária para o pagamento integral do credor."

O segundo vencimento, ou melhor, o vencimento antecipado, em face das


hipóteses legais, ocorre mesmo que não haja sido convencionado, salvo no que
respeita aos juros, pela diferença que mediar entre a data do vencimento ante-
cipado e o termo contratado. Mas não basta apenas que aconteça o desfalque
da coisa oferecida em garantia. E preciso chamar o devedor a reforçá-la, a com-
pletá-la; havendo recusa, antecipa-se o vencimento da dívida. Se é verdade que,
neste caso, o devedor não pode alegar violência, não se pode negar a existência,
na doutrina, de vozes dissonantes quanto ao alcance do dispositivo legal sobre
os juros. Todavia, a jurisprudência vem aceitando, por maioria, a tese de que
também as opera o vencimento antecipado dos juros, exceto se houver disposição
contratual em contrário.
Em se tratando de vencimento antecipado por insolvência civil do devedor,
o crédito assegurado por garantia real tem um tratamento particular. Vendida

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a coisa, o credor terá imediatamente o seu crédito satisfeito, até o limite do
produto apurado na venda. Deduzem-se apenas as despesas ditas processuais
(custas, despesa de arrecadação etc.). Satisfeitos o crédito e as despesas, se
sobras houver, estas integrarão a massa. Entretanto, se o produto da venda não
cobrir o crédito caucionado por garantia real mais as despesas, o saldo restante
passará a ser crédito quirografário.
Tratando-se de falência, o credor terá seu crédito igualmente assegurado. Des-
necessário será dizer-se que terá que habilitá-lo no juízo universal da falência.
Prestações pagas com atraso podem acarretar a antecipação do vencimento
se tal estiver assim contratado. Daí, o recebimento a posteriori- de qualquer
prestação vencida implicar a renúncia do credor à execução imediata. Ensina
Lafayette não ser possível excutir a dívida quanto à parte não-paga.
No caso do perecimento do objeto constitutivo da garantia, isto é, no caso de
a coisa dada em garantia perder as qualidades essenciais, o credor sub-roga-se
na solvência da indenização se seguro houver. Entretanto, a lei faculta ao deve-
dor a opção: ou antecipa o vencimento da dívida, podendo desde logo ser exe-
cutado, ou oferece suplementação da garantia, o que impedirá o credor do exer-
cício do direito de excussão.
Por fim, havendo desapropriação (o que equivale ao fenecimento da coisa),
o desapropriante tem posição semelhante à do segurador ou daquele que for o
responsável pela indenização. Ora, se a desapropriação, como dissemos, se equi-
para ao fenecimento do objeto da garantia real pelo menos perante o credor,
desaparece justificadamente o benefício do termo. e de bom alvitre que o desa-
propriante atente para esta circunstância, sob pena de pagar duas vezes; ao de-
sapropriante, aplica-se-lhe o mesmo princípio contido no art. 677, qual seja o
de que os ônus reais aderem ao patrimônio do comprador ou sucessor, sem que
seja obrigatória qualquer interpelação. Bem andará o credor, a seu turno, se
prevenir erros, notificando o desapropriante de que devem a ele pagar, eis que
é credor hipotecário.
Allnhamo-nos com aqueles que defendem a idéia de que o procedimento cor-
reto será o desapropriante ou o responsável depositar não apenas o preço e sim
a quantia necessária à satisfação do direito do credor, em juízo. Mesmo porque
inválida será a estipulação que autorizar o credor a pagar-se com a coisa objeto
da garantia, especialmente se se tratar de hipoteca, caso em que a excussão não
pode ser desconsiderada.
Pela hipótese prevista no § 2.° do precitado artigo, tem-se que se a hipoteca
alcançar outros bens, sobreviverá quanto a estes. Reduzir-se-á a dívida, conse-
qüentemente a garantia, sobre os outros bens não atingidos a qualquer título.

1.14 Superveniência de domínio e a convalidação dos direitos reais de garantia

"Art. 756. ( ... )


Parágrafo único. O domínio superveniente revalida, desde a inscrição, as ga-
rantias reais estabelecidas por quem possuía a coisa a título de proprietário."
Que quer em princípio o Código dizer? Simplesmente, que quem oferecer em
garantia terá que ser o dono da coisa. Nesta hipótese (a do parágrafo único),
a lei admite uma exceção à regra de que os bens gravados devem ser de pro-
priedade do devedor.

Direitos reais de garantia


A convalidação em razão da superveniência pode ocorrer de duas maneiras:
a) a garantia é dada pelo devedor debaixo da condição de mais tarde vir a ter
o domínio;
b) quando o contrato não contiver condições, pouco importando se o credor tem
ou não conhecimento de que se trata de coisa alheia.

Questão importante é saber quando se opera a revalidação. Entendemos que


acontece no momento em que se consuma o ato de gravar. Assim sendo, a
"inscrição" de que fala a lei refere-se mais às hipotecas, uma vez não se ima-
ginar hipoteca de bem imóvel sem registro anterior. Quanto à segunda hipótese,
o contrato terá validade se, tão logo constituído, houver a ratificação do legíti-
mo dono, retroagindo seus efeitos à época da constituição da garantia real.
Manda a lei que só pode ver seu contato revalidado o dono da coisa, não
podendo acontecer renovação, ao nosso ver, por aqueles que não sejam titulares
de domínio.
Clóvis Bevilacqua ensina o porquê da restrição ao dizer:
"O ato, porém, não é nulo e o domínio superveniente revalidará, desde a
inscrição, ou transcrição, as garantias reais estabelecidas por quem possuía a
coisa a título de proprietário, prescreve o parágrafo único do artigo analisado.
Não é a garantia real de qualquer pessoa que pode ser revalidada pela aquisição
posterior do domínio; é somente a do possuidor a título de proprietário."2

1.15 Garantia real prestada por terceiros


"Art. 764. Salvo cláusula expressa, o terceiro, que presta garantia real por
dívida alheia, não fica obrigado a substituí-la ou reforçá-la, quando, sem culpa
sua, se perca, deteriore ou desvalie."
E de fácil conclusão que o terceiro prestador da garantia real não se torna
co-devedor, nem mesmo fiador. Não fica obrigado pessoalmente, salvo se o
contrário dispuser o contrato. Nunca é demais lembrar que, neste caso, não
poderia o terceiro tornar-se fiador, uma vez que fiador é, por imposição legal,
co-obrigado.
Mas, se não é difícil concluir que o terceiro que prestou garantia real con-
tinua alheio à obrigação, não é temerário afirmar que os bens oferecidos em
garantia por débitos de outros não gozarão jamais do benefício de ordem.
A coisa dada em garantia de dívida de outrem, o vínculo a ela e aos seus
acessórios se restringe, como se de obrigação profter rem se tratasse.
Como a responsabilidade do terceiro não ultrapassará o bem gravado, no caso
de se excutir a dívida se o produto da venda for inferior ao crédito garantido,
desonerado ficará o terceiro, o qual sequer responderá pelo saldo remanescente.

1.16 Pacto comissório


"Art. 765. E nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício, anticrético
ou hipotecário, a ficar com o objeto da garantia, se a dívida não for paga no
vencimento."

2 Bevilacqua, Clóvis. Comentários ao Código Civil. art. 756.

toO R.C.P. 1/85


Se tal cláusula houver, desnecessário será dizer-se que será tida como não-
escrita.
A lex commissoria do direito romano e do direito canônico foi banida do
direito moderno.
A rigor, o pacto comissório descaracteriza a garantia real, exatamente porque
pretende uma venda condicional. Repugnou ao legislador tal possibilidade. Vale
dizer: o pacto comissório é defeso em todas as garantias reais, até na alienação
fiduciária.
Se, por um lado, é absolutamente nula a cláusula que autoriza o credor a ficar
com a coisa, não é ilegal, por outro, a convenção que faz entrega, em pagamento,
da mesma coisa ao credor se este a aceitar, o que agora caracteriza uma dação
em pagamento (datio in solutum).
Neste sentido, acreditamos, orienta-se o entendimento dos nossos tribunais de
segunda instância. A exemplo, tem-se a decisão unânime da 4. a Câmara Cível
do Primeiro Tribunal de Alçada do estado do Rio de Janeiro, proferida na AC
n.O 50.430, relator o Juiz Renato Maneschy. O aresto restou assim ementado:
"Pacto comissório. Só é vedado antes do vencimento da hipoteca. Pode o de-
vedor, após o vencimento, fazer dação em pagamento." Data do julgamento:
30.3.76.

1.17 Débito remanescente

"Art. 767. Quando, excutido o penhor, ou executada a hipoteca, o produto


não bastar para pagamento da dívida e despesas judiciais, continuará o devedor
obrigado pessoalmente pelo restante."
Velho princípio de que as garantias reais e pessoais não se misturam. Uma
não exclui a outra, a garantia pessoal é subsidiária. Daí, o credor passar a ser
mero quirografário pelo saldo remanescente, podendo penhorar outros bens do
devedor intra-autos da excussão pignoratícia, ou na execução hipotecária. O de-
vedor deverá ser citado pessoalmente para adimplir o restante. Se tal citação
não for feita, o processo terá fatalmente decretada a nulidade, via embargos à
execução.

1.18 Prescrição dos direitos reais de garantia

"Art. 177. As ações pessoais prescrevem, ordinariamente, em 20 anos, as


reais em 10 entre presentes e, entre ausentes, em 15 contados da data em que
poderiam ter llido propostas."
A todo o direito corresponde uma ação que o assegura; a ação real é, assim.
uma actio in rem. Apesar da clareza do dispositivo legal reproduzido, a questão
da prescrição, instituto de direito material, ainda encontra certa resistência entre
os tratadistas. Ainda não é de todo pacífica.
A prescrição, por muito tempo, foi estranha ao direito romano, mas, ao surgir
o direito pretoriano, a duração ilimitada das ações passou a ser vista como uma
exceção à regra. Acentua Savigny que a exceção passou a ser a regra geral.
Ao dizer-se que o início do prazo prescricional é o surgimento da ação, usa-se
a palavra "ação" no lugar da palavra "pretensão", isto porque a prescrição não
começa com a ação e sim com a pretensão. De qualquer modo, somos em dizer

Direitos reais de garantia 101


que a ação resulta menos da violação do direito, e mais da recusa do devedor
em atender à pretensão.
Na doutrina pátria, parece prevalecer a opinião de Pontes de Miranda no sen-
tido de que o instituto da prescrição "serve à segurança e paz públicas", refor-
çando-se a velha máxima, "dormientibus non sucurrit ins".
Câmara Leal enumera quatro elementos essenciais à prescrição:

"1.0) existência de uma ação exercitável (actio nata); 2.°) inércia do titular
da ação pelo seu não-exercício; 3.0 ) continuidade dessa inércia durante um certo
lapso de tempo; 4.°) ausência de algum fato ou ato a que a lei atribua eficácia
impeditiva, suspensiva ou interruptiva do curso prescricional."
Admite este autor que a prescrição é um castigo à negligência do titular do
direito.
Carpenter entende que a prescrição das ações reais em 10 e 15 anos não é
uma prescrição verdadeira. Câmara Leal insurge-se contra este ponto de vista
ao dizer que "( ... ) para as ações reais, como regra, a prescrição quinzenal entre
ausentes e a decenal, entre presentes, o Código estatuiu um preceito, que deve
ser obedecido, muito embora, em virtude de algum preceito especial, essa regra
deva sofrer exceção, e a prescrição ordinária de algumas ações seja dilatada para
20 anos.
Não havendo, porém, preceito especial, aplicável à espécie, que determine
essa dilatação do prazo comum, a prescrição das ações reais será, não a trinte-
nal, mas a quinzenal ou decenal, nos termos do referido art. 177".
Acreditamo-nos no rumo certo, ao afirmar que o princípio consagrado na se-
gunda parte do art. 177 não é de todo verdadeiro. No Código Civil português,
art. 309, a prescrição ordinária não ocorre antes de 20 anos. Em nosso direito
a mesma regra está contida no art. 550. Fácil admitir, então, que a efetiva pre-
tensão da segunda parte do art. 177 é criar duas espécies de prescrição para
as ações reais: ordinárias e extraordinárias. Esta não aconteceria antes de consu-
mados 20 anos, conforme texto do art. 550; aquela, subdividida em 15 anos
entre ausentes e 10 entre presentes. Aldyr Dias Vianna, ao discordar de Câmara
Leal, endossando o ponto de vista de Carpenter, entende que a prescrição só
acontece após decorridos 20 anos quer entre presentes quanto entre ausentes,
sempre que se trate de coisas imóveis. Tratando-se de ações reais sobre coisas
móveis, o prazo será de cinco anos entre presentes e ausentes. Termina este
autor por dizer: "B o próprio Código que, em seus arts. 550 e 619, corrige o
erro do art. 177."
Concluímos ser mais aceitável a idéia-valor de que a prescrição tem por fim
extinguir o direito do exercício da ação pelo transcurso de certo lapso de tempo.

2. Do penhor

2.1 Noções gerais

"Art. 768. Constitui-se o penhor pela tradição efetiva, que, em garantia do


débito, ao credor, ou a quem o represente, faz o devedor ou alguém por ele
de um objeto móvel, suscetível de alienação."
Vistos que foram os direitos reais como gênero, fixar-nos-emos agora em suas
espécies. O penhor, do latim pignus, consiste básica e essencialmente na tradi-

102 R.C.P. 1/85


ção de coisas móveis, que estejam dentro do comércio, pelo devedor ao credor
em garantia de dívida ou débito. O Prof. Caio Mário ensina que "na origem
o penhor teve causa na penhora (pignoris capio) tanto extrajudicial quanto judi-
cial" (1974, p. 280). Trata-se, pois, de jus in re aliena, donde se conclui ser um
direito real que subordina coisa móvel ou mobilizável ao pagamento duma dívi-
da. Não se confunde com o direito de retenção. A garantia, geralmente ofere-
cida pelo devedor, também pode ser prestada por terceiro. O credor passa a
ser o depositário. O pignus pode resultar da lei ou de contrato. Neste último
caso, terá que haver a tradição.

2.2 Características

Reúne todas aquelas comuns aos direitos reais de garantia. O penhor é indivi-
sível, eis que surge para garantir um determinado débito. ~ acessório, em razão
da subordinação da relação real à pessoal. Extinta a obrigação, fenece o penhor.
Porque implica, como já se disse, que haja a tradição, isso faz com que se tome
um contrato sinalagmático. Por esta razão e também porque o penhor tem ca-
racterísticas do contrato, diverso da obrigação da qual é acessório, o credor não
poderá ficar com a coisa pertencente ao devedor. Logo, não há que se falar em
pacto comissório (art. 765).

2.3 Sujeitos e objeto

O credor da obrigação principal é o chamado credor pignoratício. O sujeito


passivo, ou terceiro que por ele ofereça garantia, ambos necessariamente donos
da coisa oferecida em penhor, são denominados devedor pignoratício. Terceiro,
que eventualmente venha a adquirir a coisa apenhada, não a exonera do grava-
me, justamente em razão do direito de seqüela. O direito do credor pignoratício
é, pois, erga omnes.
O penhor tem, geralmente, o seu campo de incidência sobre coisas móveis de
qualquer natureza, corpóreas ou incorpóreas e, uma vez que estão dentro do
comércio, que possam ser alienadas. Pode, em alguns casos, recair sobre coisa
imóvel; por acessão recai também sobre títulos de crédito, o que passa a cha-
mar-se de caução.
l! o seu objeto. Em resumo: para que haja penhor tem que haver dívida ou
obrigação e a entrega da coisa ao credor ou a quem o represente, além da capa-
cidade das partes. Quanto ao devedor, repita-se, é imprescindível a livre dispo-
sição de seus bens, além da propriedade.

2.4 Forma

Como qualquer contrato, sem relevância de valor, o penhor pode constituir-se


através de instrumento público ou particular. O que a lei exige é que sejam
observadas as disposições dos arts. 761, 770 e 771. Deve o contrato, seja qual
for, ser levado a registro. A forma do penhor varia em função da modalidade.

Direitos reais de garantia 103


2.5 Modos de constituição

o penhor pode resultar de contrato ou da lei.


O penhor resultante do contrato conhecido por "penhor convencional" é o
mais usual. As partes ajustam, pública ou particularmente, a garantia pigncra-
tícia. Este contrato é em regra acessório de outro, geralmente o de mútuo.
Repita-se - e repetir nunca é demais - que quem empenha tem que ser o
dono da coisa e ter a disponibilidade de bem suscetível de alienação.
O penhor legal ocorre independentemente da vontade das partes envolvidas.
Dele diremos mais adiante, bem como dos penhores especiais. Estes revestem
características próprias.

2.6 Efeitos do penhor

Resumem-se nas obrigações recíprocas do contrato. Investido na posse da


coisa, o credor não só tem seu direito garantido, como ainda pode exigir o re-
embolso de despesas feitas com a conservação. Pode lançar mão dos interditos
possessórios contra quaisquer atos de turbação ou esbulho, mesmo que tais atos
partam do dono da coisa.
A posse, poder de reter a coisa (e isto é da própria natureza do penhor),
torna o credor como que fiel depositário, obrigando-o a restituir a coisa empe-
nhada acrescida dos frutos naturais ou civis se frugífera for. Obrigado está o
credor a indenizar o devedor, em caso de pel'ecimento da coisa por sua culpa.
Extinta a obrigação principal, extingue-se o gravame.
O devedor tem também direitos e obrigações. Dentre os direitos que tem,
contam-se o de reaver a coisa uma vez solvida a dívida, com os frutos naturais
e civis conforme o caso. Pode impedir o uso da coisa pelo credor e acioná-lo
no caso de recusa de devolução ou por perda ou deterioração.
As obrigações do devedor compreendem o pagamento do débito, o reembolso
das despesas efetuadas com a conservação e guarda da coisa objeto do penhor.
É obrigado também a indenizar os prejuízos decorrentes de vícios ocultos na
coisa.

2.7 Prova da existência do contrato

A prova por excelência é a apresentação do instrumento, especialmente no


que respeita às partes contraentes.
Na salvaguarda do interesse de terceiras pessoas, mister se faz sejam atendidas
as recomendações dos arts. 761 e 171 do Código. Se por instrumento particular,
deve ser registrado no Registro de Títulos e Documentos. Todavia, quando o
penhor diz de perto cOIQ máquinas e equipamentos industriais e quando se tratar
de penhor rural, é de bom alvitre a inscrição ou registro no Registro de Imóveis.

2.8 Penhor convencional

"Art. 170. O instrumento do penhor convencional determinará precisamente


o valor do débito e o objeto empenhado, em termos que o discriminem dos seus

104 R.C.P. 1/85


congêneres. Quando o objeto do penhor for coisa fungível, bastará declarar-lhe
a qualidade e a quantidade."
Esta é a modalidade de penhor mais comum.
A inteligência do texto legal deixa concluir que o credor pode alienar a coisa
fungível empenhada, vez que apenas está obrigado a restituir coisa do mesmo
gênero e em quantidade igual. Vale dizer, no bojo da fungibilidade cabe a idéia
de que as coisas ditas fungíveis não têm existência própria, individual. Repre-
sentam o gênero a que pertencem, podendo, pois, serem substituídas.
O penhor convencional é, pois, a forma clássica de designar a garantia pela
efetiva tradição da coisa. Deslocando-se a posse, é o mesmo que se dizer que
esta modalidade de penhor incide somente sobre coisas móveis.
Não se devem perder de vista as disposições contidas no art. 761, em face
da expressão "congêneres", especialmente se se cuidar da dívida futura e incer-
ta, de que é exemplo a abertura de crédito.

2.9 Penhor legal

"Art. 776. São credores pignoratícios, independentemente de convenção:

I - os hospedeiros, estalajadeiros ou fornecedores de pousada ou alimento,


sobre as bagagens, móveis, jóias ou dinheiro que os seus consumidores ou fre-
gueses tiverem consigo nas respectivas casas ou estabelecimentos, pelas despesas
ou consumo que aí tiverem feito;
11 - o dono do prédio rústico ou urbano, sobre os bens móveis que o ren-
deiro ou inquilino tiver guarnecendo o mesmo prédio, pelos alugueres ou ren-
das."

A lei, ao proteger certos credores, permite que estes tomem como garantia
alguns bens pelo valor da dívida, retendo-os, até mesmo alienando-os, para a
satisfação do seu crédito. Claro que deve observar-se a regra contida no art.
756, ou seja, as coisas objeto do penhor terão que estar dentro do comércio,
serem de propriedade do devedor e não pesar sobre elas qualquer gravame legal.
O penhor legal, apesar de não ser mais que uma faculdade assegurada ao
credor, é bem mais abrangente que o direito de retenção e mais eficaz que o
privilégio pessoal.
Cuidado bastante se deve ter para não confundir o penhor legal com o direito
de retenção. Este pressupõe a posse; naquele, a posse é adquirida em razão do
surgimento do direito ao penhor legal.
O conceito do direito de retenção (que geralmente se alicerça no direito de
exigir indenização por despesas havidas em proveito da coisa, também está liga-
do à idéia do cumprimento de uma obrigação, devida pelo dono da coisa, que
se transformou em garantia, coisa esta já em poder do credor) impede a confu-
são. A coisa "não é devida a outrem, precisamente porque está garantindo o
pagamento da dívida em virtude de expressa disposição de lei, só passando a
ser devida, portanto, quando for satisfeito o pagamento" (Carvalho Santos,
1975, p. 142).
Cuidado especial é d~ se ter com o estatuído no art. 777 da nossa lei substan-
tiva. Na falta desse cuidado, ou na sua má observância, está fatalmente a de-
cretação da nulidade do penhor. Adiante, disto teremos outra certeza.

Direitos reais de garantia 105


Questão que ainda leva a confrontos é a de saber-se se, em caso de prédio
alugado, os móveis encontrados em poder do locatário, mas de propriedade de
terceiros, são ou não objeto de penhor para garantia do pagamento de alugue-
res. Há quem entenda que tais móveis estão sujeitos ao penhor, fundados na
velha máxima: "com relação aos móveis a posse vale título", o que importa
em dizer do predomínio da boa fé. Assim, ao dono dos móveis incumbe prova
contrária, qual seja, a má fé.
O nosso legislador houve por bem reprovar tal solução. Todavia, para que
os móveis não sejam alcançados pelo penhor, é necessário haver um contrato,
registrado, do qual conste serem propriedade de terceiro. Do contrário, serão
tidos como pertencentes ao inquilino.

2.10 Homologação do penhor legal

"Art. 780. Tomado o penhor, requererá o credor, ato contínuo, a homologa-


çãv, apresentando, a conta por menor das despesas do devedor, a tabela de pre-
ços, junta à relação dos objetos retidos, e pedindo a citação dele para, em 24
horas, pagar ou alegar defesa."
Deduz-se desde logo, que o credor usou da prerrogativa que lhe confere o
art. 778.
A exigência legal, "ato contínuo", deve ser entendida não em sua literalidade
plena, mas sob a ótica de que o credor disporá de algum prazo, ainda que curto.
Ao dizer "apresentando, com a conta por menor das despesas do devedor, a
tabela dos preços, junto à relação dos objetos retidos", o Código enumerou os
documentos que devem obrigatoriamente instruir a exordial. À vista dos do-
cumentos exigidos, o juiz homologa de plano o penhor. Outra não é a conclusão
a que se chega, em face das reiteradas decisões pretorianas como, por exemplo,
a proferida pela egrégia 3.a Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro, na AC n.O 8.589, relator oDes. Amílcar Laurindo.
O aresto teve a seguinte emenda:
"Penhor legal. Homologação de plano. Constituindo-se em mera garantia do
débito de hóspede, o penhor legal da sua bagagem pelo hospedeiro independe
de citação, podendo ser homologado de plano se oferecida toda a documentação
exigida por lei."
O acórdão, a nosso ver de boa construção pretoriana, em sua íntegra diz:
"Abandonado o hotel, sem o pagamento do débito, foi pedida a homologação
do penhor da bagagem relacionada de hóspedes estrangeiros, cuja citação por
rogatória foi ordenada.
Pedida a sua dispensa, com o conseqüente julgamento de plano, substituiu-se
a rogatória pela citação edital, afinal efetivada; e, sem embargo da impugnação
da Curadoria Especial, a homologação sobreveio à vista da complementação da
documentação, que foi tomada como justificativa para a ordenada citação.
Daí o recurso da douta Curadoria, pugnando pela nulidade, firmada na tese
de que o julgamento de plano dispensa a instrução, mas não a citação, sempre
obrigatória pela forma pessoal quando conhecido, como no caso, o paradeiro dos
hóspedes.
O brilho da argumentação não é bastante para esconder o desacerto das suas
premissas.

106 R.C.P. 1/85


o penhor legal da bagagem do hóspede pelo seu hospedeiro, com efeito, cons-
titui mera garantia do débito, que pode e deve ser discutido em ação própria.
Aí só se admite defesa fundada em algum dos motivos do art. 875 do CPF,
ou sejam, os de nulidade do processo ou de extinção da obrigação.
Qualquer deles podendo ser invocado na cobrança, em nada prejudica a for-
malização do penhor ou a sua homologação de plano se oferecida incontinenti
toda a documentação por lei exigida, consistente da pormenorizada conta das
despesas, tabela de preços e relacionamento da bagagem retida.
Esses elementos aparelham a execução.
Podendo pedir o pagamento, o hospedeiro pode preferir a simples formação
de instrumento de garantia, que independe da vontade do hóspede.
Sobre ela prevalece a determinação da lei, que assegura a garantia e faz pres-
cindir a sua homologação de outros elementos além dos que formalmente espe-
cifica."
E de reparar-se que o apelante pretendeu alegar nulidade de citação, como
matéria de defesa. O que não prosperou e nem poderia, e~ que a lei não manda
que se faça especificamente a citação pessoal. Ordena apenas seja feita a citação.
O acórdão, ao admitir como matéria de defesa apenas aquela capitulada no
art. 875 do digesto processual vigente, reconheceu validade ao princípio inaudita
altera parte contemplado em nosso direito, desde o estatuto processual revogado.
Apesar de expressa, o juiz pode deixar de ordenar a citação, decidindo de pla-
no, o que importa em dizer que o devedor não terá 24 horas para defender-se,
ou efetuar o pagamento. Homologado o penhor, os autos serão entregues ao cre-
dor para futura execução.
Havendo citação, o devedor tem prazo bastante exíguo para a sua defesa. Se
provas não houverem de ser produzidas, o julgamento far-se-á consoante o dis-
posto no art. 330, inciso I, do Código de Processo Civil.
Voltando-se ao texto do decisum, podemos vislumbrar que, no juízo inferior,
a defesa foi ampla, isto é, ultrapassou os limites impostos pelo art. 875. Claro
que o juiz não poderia acolhê-la. Assim, a decisão do órgão ad quem outra não
poderia ser senão a de: "Acordam os juízes da 3.- Câmara Cível do Tribunal de
Justiça, por unanimidade de votos, em negar provimento à apelação para man-
ter, por seus fundamentos, a decisão recorrida. Custas ex-lege."
Não havendo homologação, resta ao credor o recurso às vias ordinárias, do
mesmo modo que ao devedor condenado no juízo monocrático foi assegurada a
via recursal.
Ao finalizar, que nos perdoe o mestre W. B. Monteiro. Da lição: "Saliente-
se, por fim, que cabe agravo de instrumento, e não apelação, do despacho homo-
logatório do penhor legal" (Monteiro, 1974, p. 345). Frontalmente discordamos.
A discordância ora manifestada apóia-se no fato de que título judicial hábil para
promover ação de execução não poderá jamais nascer de mero despacho. Nele,
não há cogência bastante. A considerar-se válida a afirmação do mestre, será
o mesmo que esvaziar um direito real de garantia, o penhor neste caso. Não, só
por sentença e apenas através dela, o penhor legal pode ser homologado. Daí
o recurso cabível ser o de apelação.
Sem sentença não há título judicial, conseqüentemente não há suporte legal
para a execução.
Direitos reais de garantia 107
2.11 Penhores especiais

A lei contempla ainda outras modalidades de penhor, ditos especiais: o pe-


nhor agrícola (art. 781), o pecuário (art. 784) e o industrial. Além destes, o
penhor mercantil, o qual mesmo não sendo de considerar-se dentro do direito
civil, a ele referência faremos mais adiante. Está mais ligado ao direito co-
mercial.
Os penhores especiais nasceram da necessidade de se imprimir aos negócios
maior dinamismo. Acreditamos que assim tenha sido, pois do contrário como
conceber o desenvolvimento agrícola se o agricultor fosse obrigado a entregar
ao credor os equipamentos atinentes ao amanho da terra? De igual modo, ao
industrial de que valeria tomar empréstimos, se tivesse que efetivar a tradição
das máquinas?
Não há dúvida de que nos defrontamos com uma exceção. O credor não tem
a posse da coisa dada em garantia.
Sem a preocupação de minúcias até porque "não há mais lugar na atualidade
de nosso direito para a questão em torno da existência mesma desses penhores
especiais, contra os quais levantam-se objeções com o fundamento de que des-
virtuavam a natureza essencial dessa garantia por abrangerem bens imóveis por
acessão, ou de transigirem com o conceito clássico da imissão do credor na
posse do objeto, ou ainda de que em muitos casos faltaria a individuação pre-
cisa da coisa empenhada.
Tudo isto foi superado, pois o que se pretende com os penhores especiais é
precisamente instituir garantia real que proporcione mobilidade ao crédito, onde
a aplicação das normas clássicas do penhor frustraria esse objetivo" (Pereira,
1974, p. 290).
Abordaremos cada modalidade de penhor especial sucintamente.

2.11.1 Penhor agrícola

Definido no art. 781 do Código Civil, incide sobre coisas imóveis por acessão.
Tem duração limitada (limitação que não é imposta ao penhor tradicional) a
dois anos, prorrogáveis por outro período igual. Pode ser constituído por escri-
tura pública ou particular, cujo registro é obrigatório (art. 796). No contrato,
é indispensável a consignação do montante da dívida, taxa de juros, prazo de
pagamento, além da individuação dos bens empenhados.
Diferencia-se da hipoteca, eis que nesta a detenção e a posse juridicamente
considerada do imóvel gravado ficam com o devedor, enquanto no penhor agrí-
cola a posse física fica com o devedor mas a posse jurídica transfere-se ao credor
por força da cláusula constituti.

2.11.2 Penhor pecuário

Pela literalidade do art. 784, somos levados a acreditar que esta modalidade
de penhor tem por objeto todo o gado que numa fazenda houver. Não admite
prazo superior a três anos prorrogável por mais três. E também obrigatório que
se registre o instrumento no Registro de Imóveis do lugar de situação, obede-
cidos os requisitos dos arts. 770 e 771.

108 R.C.P. 1/85


2.11.3 Penhor industrial

Dispensa a tradição dos bens oferecidos em garantia. Incide sobre máquinas


e matérias-primas. Interessante notar que se as máquinas objeto do penhor estio
verem instaladas em prédio alheio, o credor pignoratício prefere ao proprietário
com penhor legal, desde que haja o consentimento deste, expresso no contrato.
O devedor, ao permanecer na posse dos bens, deles entretanto não poderá
dispor, posto que se equipara ao depositário. Tal como os outros, está sujeito
a registro na comarca de situação. A lei, cremos, não diz do prazo de duração.
Não se deve esquecer a existência da cédula rural pignoratícia. Cuida-se de
título ligado a bens agrícolas e pecuários, o que lhe dá sustentação real. Consiste
num documento fornecido pelo oficial do registro de imóveis, comprovando o
registro do contrato. l! uma das modalidades de cédula de crédito rural e trans-
ferível por endosso.

2.12 Penhor mercantil

Como dissemos antes, cuida-se de instituto mais ligado ao direito comercial.


Efetivamente, assim sucede, capitulado que é nos arts. 271 a 279 do Código
Comercial. Pontes de Miranda (1983, p. 431) assim o define: "Penhor mercantil
é o penhor que o comerciante, ou não, devedor, ou terceiro, constitui a favor
de alguém, em garantia de dívida mercantil, e não o que alguém, devedor ou
terceiro, constitui a favor do comerciante, como figurante em negócio jurídico
habitual desse."
Por esta lição, tem-se que só comerciante, ou alguém por ele, pode constituir
penhor mercantil.
Todavia, se o penhor mercantil difere do penhor civil, apenas em razão da
natureza da obrigação garantida e incide sobre coisas móveis, alienáveis, nada
nos impede de afirmar que se trata de um contrato através do qual o devedor,
ou alguém por ele, condiciona coisa móvel ao pagamento i de certa dívida. Assim
sendo, é irrelevante a qualidade das partes que em tal contrato intervenham.
Basta que sejam capazes, é claro, e que a coisa a empenhar seja de propriedade
do devedor. O penhor mercantil, uma vez constituído, não está sujeito a regis-
tro. Dispensa forma especial, bastando apenas que seja reduzido a termo. O
escrito poderá ser público ou particular. Mas, qualquer que seja a forma do
contrato, terão que ser observadas as normas gerais do art. 761 do Código Civil,
bem como a contida no art. 771, caso se trate de instrumento particular.
Temos então que os requisitos mais importantes do penhor mercantil são a
existência de uma dívida, garantida por coisa móvel alienável, e a tradição da
coisa. Vê-se que se trata de contrato acessório, que segue sempre o destino do
contrato principal.
Salvo os casos de penhor de máquinas, de penhores agrícola e pecuário em
que a coisa permanece na posse do devedor, em face de sua própria natureza,
a tradição tem que acontecer. l! neste sentido que se orienta a jurisprudência
da nossa corte de justiça - por exemplo, a decisão proferida na AC n.O 29.001,
1." Câmara Cível, relator o Des. Pedro Américo.
O acórdão, datado de dezembro de 1983, restou ementado assim: "Para a
sua validade exige-se a tradição da coisa apenhada, ressalvadas as hipóteses do

Direitos reais de garantia 109


penhor agrícola e industrial. Não recebendo o credor a posse dos bens, não tem
valor o contrato de depósito."
Ainda que assim não fosse, o depósito seria irregular e regido pelas regras
do mútuo, a teor do art. 1.280 do Código Civil.
No depósito de coisas perecíveis, não se pode exigir do depositário uma atitu-
de passiva na guarda da coisa; o seu desempenho é de autêntico mandatário,
pois está obrigado a dar à coisa determinada aplicação, pondo-a no próprio
comércio. Fica, assim, descaracterizado o depósito para se exigir do devedor a
entrega da coisa ou seu equivalente em dinheiro, sob pena de prisão.
Desnecessárias ilações maiores, para concluir que em primeiro grau cuidou-se
de depósito mercantil, arts. 280 a 286 do Código Comercial:
"Ação de depósito julgada procedente pela respeitável sentença de fls. 42-3,
após rejeitar as preliminares, para que o réu entregue ao autor, no prazo de 24
horas, as mercadorias indicadas ou coisas do mesmo gênero, qualidade e quan-
tidade, ou o equivalente em dinheiro pelo valor ali consignado, sob pena de
prisão. Condenou, ainda, o réu a pagar as custas do processo e honorários de
10% sobre o valor dos bens depositados. Apelou o réu insistindo não ser parte
legítima, porque firmou o contrato com o autor na condição de representante
da pessoa jurídica. Ainda, a ação de depósito é inadequada para cobrança de
repasse de recursos externos, traduzindo empréstimo em dinheiro, garantido por
avalistas. Não há nenhum contrato de compra e venda de mercadorias, depó-
sito de mercadorias ou armazenagem. Como pode um comerciante contrair um
empréstimo para comprar óleo de soja e arroz e dar este mesmo óleo de soja
e arroz para garantir a dívida? Devedor de tudo é o Supermercado Leve Logo
Ltda."
Resulta claro que o contrato principal era de empréstimo - mútuo - posto
que "a firma ofereceu penhor mercantil garantido por óleo de soja e arroz, nas
quantidades especificadas no contrato e discriminadas na inicial".
Certamente, por se tratar de coisas perecíveis, deu-se apenas a tradição sim-
bólica do objeto da garantia pignoratícia (arroz e óleo de soja) e surgiu a figura
do depositário, apelante na ação que ora nos serve a comentários. Saliente-se
ainda que o apelante é, no caso, sócio cotista e representante legal do devedor,
Supermercado Leve Logo Ltda.
A ação, julgada improcedente por unanimidade em segundo grau, destacou a
importância da tradição efetiva, ao dizer taxativamente que "entretanto, não há
penhor sem a entrega da coisa, vinculada por direito real à garantia da obriga-
ção mercantil."
Ainda dentro do conteúdo do aresto ora em questão, vale reproduzir, eis que
de boa lição se trata, o pronunciamento do Des. Renato Manescky, em junho
de 1976, quando integrava a 4.- Câmara Civel do Tribunal de Alçada do nosso
estado;
"Com efeito, consoante lição de Waldemar Ferreira (Tratado de direito co-
mercial v. 2, p. 448), assaz se debateu, diante da diversidade dos dispositivos
do Código Civil e do Código Comercial, acerca da legitimidade do penhor mer-
cantil com a cláusula constituti, estabelecida no texto comercial a entrega por
via real ou simbólica. Mostrou-se-lhe hostil a jurisprudência, diz o mestre, até
que a lei falimentar de 1929 reconheceu privilégio especial aos credores pigno-
ratícios, 'sobre as coisas entregues em penhor', salvo no caso de penhor agrícola
ou pecuário, em que os objetos continuam em poder do devedor, por efeito da
cláusula constituti.

110 R.C.P. 1/85


Desde então se tomou pacífica a tese da inadmissibilidade do penhor mer-
cantil com o constituto possessório, do mesmo modo que no penhor civil, salvo
em virtude de expressa disposição.
J. X. Carvalho de Mendonça, mestre do direito comercial pátrio, a propósito
do tema, escreve em seu Tratado de direito comercial brasileiro que a posse ou
o poder jurídico do credor sobre a coisa oferecida é requisito essencial para a
existência do direito real do penhor, não só relativamente a terceiros, como entre
os contratantes, acrescentando que a posse de credor pignoratício vale o mesmo
que a inscrição dos ônus reais sobre imóveis ou a transferência de garantia dos
títulos nominativos, operada nos registros do instituto emissor.
Por maioria de votos, em acórdão de 19 de outubro de 1943, o Supremo Tri-
bunal Federal não considerou revogado o art. 274 do Código Comercial pelo
art. 92, I, da lei de falências de 1929, admitindo o penhor mercantil com a
cláusula constituti (Rev. dos Tribunais, 152:777, 1944).
Esse acórdão foi reformado em embargos, pelo de 16 de agosto de 1944, de-
cidindo pela nulidade do penhor mercantil, feito com a cláusula constituti, sem
a entrega assim real e efetiva da coisa móvel dada em garantia.
Prevaleceu a conclusão do Ministro Orozimbo Nonato, vencido no acórdão,
que então se reformou, em que assentou, 'em suma: a) a tradição efetiva é
obrigatória para a validade do penhor civil, princípio que se amplia ao penhor
mercantil, do que é índice expressivo o disposto no art. 92 da lei falencial; b)
a tradição simbólica é admitida no direito comercial, mas com essa reminis-
cência do direito romano não se confunde o constituto possessório; c) a pró-
pria tradição simbólica - própria aos casos de alienação da coisa - é, em geral,
inajustável à índole do penhor (Rev. dos Tribunais, 160:834, 1946).
Vale ainda reportar passagem de Waldemar Ferreira, no Tratado, onde ele,
referindo-se aos registros públicos, menciona que a legislação pertinente manda
transcrever no Registro de Títulos e Documentos 'o penhor comum sobre coisas
móveis, feito por instrumento particular', dizendo que o penhor comum, aludido
no texto legal, é o penhor civil, não somente por se tratar dos registros públicos
estabelecidos no Código Civil, como porque o adjetivo comum se destinou a dis-
tinguir o penhor, a que se agregou, do penhor mercantil.
A transcrição do penhor civil, quando o contrato se realiza mediante instru-
mento particular, é expressamente determinada pelo art. 771 do Código Civil.
Inexiste no Código Comercial dispositivo que assim disponha quanto ao es-
crito comprobatório do penhor mercantil.
E se não há registro, a tese da tradição real e efetiva da coisa empenhada
mais se reforça, pois só ela tem por efeito externar a terceiro, de molde a valer
contra estes, o contrato constitutivo do penhor.
A permanência da coisa em poder do devedor, que é característica do consti·
tuto possessório, desconvence da existência do penhor.
Mas ainda que se pudesse admitir que a posse da coisa empenhada pudesse
ser transferida ao credor pelo constituto possessório, tal não se teria verificado
no caso dos autos.
Com efeito, para que se tenha por estabelecido o constituto possessório, é
necessário que o devedor passe a possuir a coisa em nome do credor, e a esti-
pulação a respeito deve ser expressa, ou resultar inequivocamente de outras
cláusulas do contrato."

Direitos reaiS" de garantia 111


Não recebida a posse dos bens pelo credor, nenhuma valia tem o contrato
de depósito. Ao depósito irregular, aplicando-se as regras do mútuo com muito
acerto, a nosso ver, termina o aresto por afirmar:
"No depósito irregular, em se tratando de dinheiro, pode-se afirmar com o
Dr. Cunha Gonçalves que 'o depósito não é de coisas, mas sim de valor' (Direito
civil português v. 8, p. 31, n.O 1.108), admitida, pois, a ação de depósito.
No depósito de coisas perecíveis, não se pode exigir do depositário uma atitu-
de passiva na guarda da coisa; o seu desempenho é de autêntico mandatário,
pois fica obrigado a dar à coisa uma determinada aplicação, isto é, pô-la no
próprio comércio, sob pena de tomar-se imprestável.
Fica, assim, descaracterizado o depósito para se exigir do devedor a entrega
da coisa ou o seu equivalente em dinheiro, sob pena de prisão.
Dá-se provimento à apelação para julgar improcedente a ação."
Finalmente, cumpre que se diga dos direitos e obrigações de ambas as
partes. Ao credor, cabe zelar pela coisa empenhada e restituí-la, uma vez paga
a dívida, com frutos, juros e acessões se for o caso. Se houver venda judicial
ou não, o saldo restante. Responde criminalmente o credor, se de algum modo
negociar ou alienar a coisa objeto da garantia pignoratícia, sem consentimento
expresso do devedor. Ao credor, é assegurado o direito de reter a coisa até que
lhe sejam pagas despesas que tenha realizado com a conservação do bem. Do
outro lado, o devedor está obrigado ao reembolso de despesas que o credor haja
feito, bem como a solver prejuízos por vícios e a respeitar a posse do credor.
Assiste-lhe, porém, o direito de reivindicar a devolução do bem empenhado uma
vez paga a dívida que o mesmo garanta.

2.13 Caução de títulos

"Art. 789. A caução de títulos nominativos de dívida da união, dos estados


ou dos municípios equipara-se ao penhor e vale contra terceiros, desde que for
transcrita, ainda que esses títulos não hajam sido entregues ao credor."
A lei denomina caução, como se vê, o penhor de títulos de crédito. E que,
nem por isso, deixa de tratar-se de penhor. A tradição, neste caso, é suprida
ou substituída pela averbação no Registro de Títulos e Documentos a par dos
títulos da dívida pública. Os títulos de crédito pessoal, seja qual for a sua natu-
reza, podem ser objeto de caução. ~ o que se infere do art. 790. Também se
equipara ao penhor, mas com as modificações dos artigos seguintes, a caução
de títulos de crédito pessoal.
O Código omitiu-se quanto ao penhor de crédito real.
A caução mediante contrato, ou o contrato de caução, como se queira, passou
a ser modalidade usual no meio bancário.
Da literalidade da lei, temos que a caução de títulos de crédito é uma varie-
dade do penhor à qual foram consagradas disposições especiais (arts. 789 a
795). Não foge, porém, a variedade às regras gerais do penhor, ou seja, é direito
real de garantia de forma escrita, que importa em tradição efetiva, de coisa
móvel alienável, asseguradora de pagamento de dívida.
Os títulos gravados com cláusula de inalienabilidade não podem ser objeto
de penhor.

112 R.C.P. 1/85


o credor caucionário fica obrigado, tal como no penhor comum, a prover a
guarda dos títulos e a conservar ou recuperar a posse, seja quem for o detentor,
usando das ações pertinentes.
Quanto à extinção, a caução de títulos segue as diretrizes de extinção do
penhor comum.

2.14 Excussão pignoratícia

Uma vez vencida a dívida e não paga, o credor pode requerer a venda judi-
cial, desde que o contrato não cogite de venda amigável. Nula, portanto, será
a cláusula que autorize o credor a apropriar-se do bem, salvo a hipótese de
dação em pagamento. Se o resultado da excussão não satisfizer o direito do
credor, este poderá prosseguir na ação, penhorando outros bens do devedor.

2.15 Extinção do penhor

"Art. 802. Resolve-se o penhor:

I - extinguindo-se a obrigação;
11 - perecendo a coisa;
111 - renunciando o credor;
IV - dando-se a adjudicação judicial, a remlssao, ou a venda amigável do
penhor, se a permitir expressamente o contrato ou for autorizada pelo devedor
(art. 774, n.O 111), ou pelo credor (art. 785);
V - confundindo-se, na mesma pessoa, as qualidades de credor e dono da
coisa;
VI - dando-se a adjudicação judicial, a remissão ou a venda do penhor,
autorizada pelo credor."

o pagamento integral da dívida extingue o penhor. O completo perecimento


da coisa também é causa extintiva.
Havendo seguro do bem, o credor sub-roga-se na indenização a ser paga pela
companhia seguradora. O perecimento do objeto do penhor não importa no
desaparecimento do direito.
A renúncia do credor faz com que feneça a garantia, mas não o direito. A
renúncia só será válida se praticada por quem tenha a livre disposição de seus
bens. Pode ser feita através de ato inter vivos ou mortis causa. Pode ocorrer
também a renúncia tácita (art. 803). Em se tratando de renúncia expressa, esta
terá que ser feita por escrito, ou perante o juiz, que mandará reduzi-la a termo.
De bom alvitre será dar-se atenção à norma contida no art. 1.054 do Código
Civil.
Finalmente, não havendo pagamento, o credor excute a dívida através da
ação competente, visando a venda judicial no que se extingue o penhor. Caso
não haja licitante na praça, a lei permite que o credor adjudique o bem. Mesmo
que licitante haja, se oferecer maior lance, o credor terá o bem incorporado ao
seu patrimônio.
A venda amigável extingue o penhor sem excussão.

Direitos reais de garantia 113


3. Da anticrese

3.1 Informação histórica

"Art. 805. Pode o devedor, ou outrem por ele, entregando ao credor um


imóvel, ceder-lhe o direito de perceber, em compensação da dívida, os frutos
e os rendimentos.
g 1.° É permitido estipular que os frutos e rendimentos do imóvel, na sua
totalidade, sejam percebidos pelo credor, somente à conta de juros.
§ 2.° O imóvel hipotecado pode ser dado em anticrese pelo devedor ou cre-
dor hipotecário, assim como o imóvel sujeito a anticrese pode ser hipotecado
pelo devedor ao credor anticrético."
Trata-se de instituto de grande vetustez. Há quem lhe afirme vestígios na
legislação egípcia mais antiga; quanto ao nome, este tem suas raízes na Grécia
- antichresis, uso mútuo. A palavra é formada de anti (contra) e chresis (uso),
o que etimologicamente significa USQ contrário.
Em que pese a origem do nome, no direito grego e no direito romano era
um instituto integrante do penhor ou da hipoteca. Era permitida ao credor a
percepção dos frutos da coisa, em lugar dos juros.
Em 1864, pela Lei n.O 1.237, de 24 de setembro, foi a anticrese introduzida
no direito nacional. Coelho Rodrigues em seu Projeto de Código Civil tinha a
anticrese como dependente da hipoteca com aparência de usufruto. O atual
Projeto (n.o 634-B, de 1975) mantém a anticrese em seus arts. 1.504 a 1.508,

3.2 Definição

Ensina Clóvis Bevilacqua que a '"anticrese é o direito real de garantia sobre


imóvel alheio, em virtude do qual o credor obtém a posse da coisa, a fim de
perceber-lhe os frutos e imputá-los no pagamento da dívida, juros e capital,
sendo, porém, permitido estipular que os frutos sejam, na sua totalidade, per-
cebidos à conta de juros".
Apesar da autoridade de Clóvis, preferimos, pela concisão, a lição de Lacerda
de Almeida, segundo a qual a anticrese "é o direito real de perceber os frutos
em desconto da dívida segundo as regras gerais da imputação em pagamento".3

3.3 Natureza jurídica

Perante o nosso Código, trata-se de direito real de garantia, embora ainda


hoje se discuta se é direito real ou pessoal. É um direito acessório, provido do
direito de seqüela, oponível a terceiros. O civilista' português Cunha Gonçalves
não entende a anticrese como um direito real.
É efetivamente um direito real, eis que além de oponível a terceiros, os frutos
da coisa não podem ser objeto de penhora por outros credores. O titular do
direito paga-se pelas próprias mãos. Da anticrese, refulge ação real imobiliária

3 Lacerda de Almeida. Direito das coisas. v. 3, § 117.

114 R.C.P. 1/8j


de foro rei sitae. O devedor, se casado, para constituir anticrese precisa da ou-
torga uxória, seja qual for o regime do casamento.

3.4 Espécies

A anticrese pode ser comum e a termo. Diz-se anticrese comum quando o


credor entra desde logo na posse do imóvel, passando a auferir-lhe os frutos.
A anticrese a termo é aquela em que o vínculo anticrético só terá lugar se
vencida a dívida e não paga. Vale dizer, a posse e a percepção dos frutos só
ocorrerão caso a dívida não seja solvida no dia do vencimento. Daí, alguns a
verem como anticrese condicional.
Convém frisar que, somente após verificada a tradição, a anticrese se afirma
como direito real, não esquecendo as condições de validade.

3.5 Sujeitos e objeto

A exemplo do que prescreve o Código no art. 756, somente aquele que


detém a propriedade plena (posse e domínio) pode constituir anticrese. À mesma
regra está sujeito o terceiro que se obrigue pelo devedor. Temos assim o credor
anticrético titular do direito, o devedor e o terceiro.
Bom será não esquecer que é preciso que o devedor tenha a capacidade de
dispor de seus bens. As pessoas a quem se referem os arts. 5.° e 6.° do Código
só podem constituir anticrese através de seus representantes legais, em alguns
casos, com autorização judicial. O marido precisa da outorga uxória, seja qual
for o regime do casamento. O enfiteuta pode constituir em anticrese o domínio
útil. O usufrutuário pode gravar os frutos mesmo não sendo dono. Lembremo-
nos sempre que o usufruto não passa da pessoa do usufrutuário. Assim vem
entendendo a jurisprudência. O possuidor com os requisitos para usucapir pode
dar em anticrese. Fica, todavia, obrigado a propor a ação de usucapião e esta
lhe seja favorável. Neste caso, a sentença operará ex-tunc (retroage à data do
contrato).
Quanto ao objeto, bem de ver que se se trata de direito real imobiliário, apenas
bens imóveis podem informar a anticrese. Importante é que o imóvel seja
frugífero.

3.6 Forma

Sempre que o direito real de garantia incida sobre imóvel cujo valor seja
superior àquele previsto no inciso 11 do art. 134 do Código, com a redação
dada pela Lei n.O 7.104/83, a forma será especial. Por instrumento público, sob
pena de nulidade, art. 145, inciso IH, do Código vigente.
A escritura, a teor do art. 167, inciso I, n.O 11, da Lei n.O 6.015/73 - Lei
dos Registros Públicos - terá que ser levada ao registro imobiliário.
O registro imobiliário deve ser feito na comarca da situação do imóvel. Se
localizado em comarcas limítrofes, o registro terá que ser feito em todas elas.

Direitos reais de garantia 115


3.7 Diferença para com o penhor e a hipoteca

Não se confunde a anticrese com o penhor, porque neste o objeto é coisa


móvel, ao passo que na anticrese a garantia real recai sobre imóvel e ocorre
a tradição. Distingue-se da hipoteca, principalmente porque o imóvel objeto da
hipoteca continua em poder do devedor hipotecário. Na hipoteca, o devedor
administra o imóvel percebendo-lhe os frutos. O contrário ocorre na anticrese.
Geralmente, o contrato de anticrese esgota a capacidade de nova garantia,
enquanto na hipoteca se permite uma segunda, uma terceira e assim por diante.
Daqui, podemos inferir como desvantagens da anticrese: a transferência da
posse para o credor com incidentes prejuízos (é o que se presume) para o deve-
dor proprietário quanto à produtividade, dificuldade de alienar e de constituir
nova anticrese. Finalmente, não confere ao credor o direito de preferência, ainda
que se cuide de destruição por incêndio, ou de desapropriação.

3.8 Cumulação de hipoteca e anticrese

O imóvel dado em anticrese pode ser oferecido· em hipoteca. A recíproca será


verdadeira, isto é, ao credor anticrético o mesmo imóvel pode ser dado em
hipoteca.
Nesta última hipótese, há vantagem para o credor que passará a ter prefe-
rência sobre o preço.
É ainda possível hipotecar a um terceiro o imóvel objeto da anticrese. Falan-
do-se de terceiro, cumpre-nos destacar um aspecto interessante: a garantia ofe-
recida por ele, terceiro, não estará sujeita a reforço ou substituição, em caso de
desfalque ou destruição, salvo a hipótese de culpa.

3.9 Direitos e obrigações das partes

A anticrese, porque provida de seqüela, faz com que o credor retenha o


imóvel para perceber-lhe os frutos. Não confundir com o direito de retenção.
Assim têm-se, como obrigações do credor, guardar e conservar a coisa, res-
pondendo pelos frutos que por sua culpa não forem colhidos (os frutos são per-
cebidos sem a perda da substância da coisa~ ao passo que os produtos são obtidos
com a perda da substância - por exemplo, pedras retiradas da pedreira) e pela
deterioração do imóvel se por culpa sua ocorrer. Está ainda obrigado a prestar
contas, sob forma mercantil. Finalmente, está obrigado a pedir autorização ao
devedor proprietário, caso pretenda fazer benfeitorias que não as necessárias.
São direitos de credor fruir do imóvel, podendo arrendá-lo (o que não signi-
fica locar) desde que o contrato de arrendamento não ultrapasse a duração da
anticrese. O arrendamento vinculará o devedor proprietário. Pode reter o imóvel
até ser completamente pago, percebendo-Ihe os frutos e vindicar seus direitos
contra eventuais adquirentes.
Ao devedor, são impostas as seguintes obrigações: entregar a coisa, transfe-
rindo a posse e não a embaraçando, pagar a dívida, com seus acessórios.
Mas, ao devedor, a lei confere o direito de permanecer como dono do imóvel
podendo aliená-lo ou gravá-lo. Pode reavê-lo uma vez para a dívida e ressarcir-se

116 R.C.P. 1/85


dos prejuízos ao imóvel causados por culpa do credor. Dos frutos não-colhidos
por negligência, pode pedir indenização. Finalmente, pode exigir que o credor
lhe preste contas.

3.10 Direito de retenção

Apesar de a lei não conferir ao credor anticrético o direito de preferência,


faculta-lhe o da retenção enquanto a dívida não seja paga ou não se tenha exau-
rido o prazo de 15 anos. Este prazo é de caducidade, de decadência.
Repita-se, o credor anticrético não se sub-roga na indenização de seguro nem
tem preferência sobre o preço de eventual desapropriação. Os juros serão impu-
tados ao débito porventura remanescente.

3.11 Excussão

Pelo art. 585, inciso IH, do Código de Processo Civil, o contrato de anticrese
é título executivo extrajudicial. Todavia, ao credor anticrético não é interes-
sante excutir a dívida posto que não goza de preferência. Se a excussão partir
de outro credor, contra este oporá o seu direito de retenção. Do contrário, tomar-
se-á mero credor quirografário.
Opondo seu direito (que é erga omnes), mantém o jus retentionis contra adqui-
rente, arrematante e adjudicatário. Este seu direito será oposto via embargos
de terceiro.

3.12 Modos de extinção

Extingue-se a anticrese pelo pagamento da dívida. Seja qual for a causa de


extinção da obrigação principal, reflete-se na anticrese (pagamento indireto, no-
vação, transação etc.). Resolve-se ainda a anticrese pelo perecimento do imóvel
(art. 77), pela desapropriação, pela caducidade ou decadência (prazo máximo
de 15 anos) e pela excussão por outro credor se o anticretista não fizer valer o
seu direito. Neste caso, a garantia real passará a ser crédito pessoal.
A morte do devedor anticrético não é fator de extinção da obrigação.

3.13 Inovações previstas no projeto do novo Código Civil

Ao que saibamos, são quatro:

a) o § 1.° do art. 1.504 dispõe que, se os frutos forem percebidos pelo credor
à conta de juros e se seu valor ultrapassar a taxa máxima, permitida em lei
para as operações financeiras, o remanescente será imputado ao capital;
b) deverá o credor apresentar anualmente balanço de sua administração. Se o
devedor discordar do que se contém no balanço ou entender ruinosa a adminis-
tração, poderá impugná-lo ou requerer a transformação em arrendamento, de-
vendo o juiz fixar o valor mensal do aluguel, facultado o reajustamento anual
(art. 1.505 e § 1.0);

Direitos reais de garantia 117


c) declara taxativamente que o arrendamento, feito pelo credor anticrético, não
vincula o devedor (§ 2.° do art. 1.505);
d) admite a remissão (= pagamento), pelo adquirente, dos bens dados em
anticrese (art. 1.508).

4. Da hipoteca

4.1 Notícia histórica

"Art. 809. A lei da hipoteca é a civil, e civil a sua jurisdição, ainda que
a dívida seja comercial, e comerciantes as partes."
O direito romano não distinguia entre o pignus e a hypotheca, eis que ambos
incidiam tanto sobre coisas móveis quanto imóveis, a um só tempo. Os romanos
não conheciam outros direitos reais que não fossem a propriedade e a servidão.
Assim, a coisa era vendida através da mancipatio ou da in jure cessio, pelo valor
do empréstimo contraído.
Uma outra forma ou modalidade de garantia era o pignus, pelo qual a posse
da coisa passava às mãos do credor. Este tinha seu direito limitado, pois em
lugar de ação real, apenas lhe era reconhecido o direito aos interditos.
A hipoteca foi do conhecimento dos gregos e autores há que afirmam ter
sido a hipoteca conhecida nitidamente em Roma. Para sustentar tal afirmação,
lastreiam-se no depoimento de Ulpiano: "Proprie pignus dicinus quod od cre-
ditorem transit, hypothecam cum non transit nec possessio ad creditorem.'"
Coelho da Rocha 5 elucida-nos que, ao passar a integrar as Ordenações, a
hipoteca perdeu seu sentido de unidade, de sistema. O direito português adotou,
com pequenas mudanças, a hipoteca romana com todos os seus vícios ou
falhas.
No Brasil, substituindo as Ordenações, editou-se a primeira lei em 1843,
para cuidar da matéria. Deste modo, a Lei n.O 317, de 21 de outubro daquele
ano, criou as hipotecas gerais. Alguns anos mais tarde, precisamente em julho
de 1864, surgiu a Lei n.O 1.237, que não só instituiu o registro geral das hipo-
tecas, como disciplinou as inscrições hipotecárias e criou a especialização para
que houvesse a prevalência da hipoteca sobre outros privilégios, observada a
ordem das inscrições.

4.2 Conceito

Ao falarmos de coisas móveis, cuja posse é transferida para as mãos do credor


e se a este é conferido o direito à excussão, em caso de inadimplência do
devedor, temos diante de nós a figura do penhor.
Entretanto, se se tratar de imóvel, cuja posse se transmite ao credor para
que este o explore, no sentido de pagar-se com a renda obtida, deparamo-nos
com o instituto da anticrese.

, Digesto. livro 13. título VI I. fr. 9. § 2.°.


5 Inst. de direito civil português. v. 2. § 633 e seg.

118 R.C.P. 1/85


Todavia, se o gravame incidir sobre um imóvel, sobre um navio ou sobre
uma aeronave, visando garantir uma obrigação e conferindo ao credor um
duplo direito (o da preferência e o da seqüela), ainda que o bem gravado con-
tinue de posse do devedor, estamos sem dúvida diante da hipoteca.
Posto que não desapossa o devedor do bem oferecido em garantia, nem há
a obrigatoriedade de entregar os frutos, a hipoteca tem para o devedor vanta-
gens econômicas.

4.3 Princípios

Seja qual for a espécie, a hipoteca está sujeita aos princípios da especialização
e da publicidade.
O primeiro (exigível em todas as modalidades) consiste em informar qual o
imóvel gravado. Especifica a coisa e o total da dívida que garante. Daí, a não-
existência da hipoteca geral ou da hipoteca ilimitada. Não cabe, pois, cogitar-se
de hipoteca de bens futuros.
O segundo, isto é, a publicidade. é o ato que toma a hipoteca efetivamente
um direito real. A inscrição no Registro de Imóveis estabelece a preferência,
previne surpresas de terceiros, ao mesmo tempo que impede os demais credores
de promoverem a venda judicial do bem gravado antes de vencida a primeira
hipoteca, ressalvada a hipótese de insolvência civil. Resumindo, o princípio da
publicidade consiste essencialmente no registro da hipoteca no Registro de
Imóveis.

4.4 Indivisibilidade

A hipoteca é indivisível porque a lei assim o quer. Desde que não totalmente
liquidada, subsiste por inteiro, sobre o bem ou bens gravados, ainda que tenha
havido pagamento parcial.
A lei, ao dizer da indivisibilidade, visou assegurar mais o direito do credor.
Assim é que se o credor vier a falecer, seu crédito transmite-se aos herdeiros.
Carvalho Santos lembra que a indivisibilidade da hipoteca "acarreta como
conseqüência não poder ser ela nula em parte e noutra parte válida. A obriga-
ção garantida é que pode ser nula em parte e válida em parte, mas, se tal
acontecer, a hipoteca continua válida na sua totalidade, porque ela recai, dada
a sua indivisibilidade, sobre o todo e cada uma de suas partes, para garantir a
totalidade e cada fração do crédito.
Somente no caso de nulidade completa do crédito a hipoteca será extinta, mas
ainda assim, não por nulidade, mas por falta de objetivo, por ser um direito
acessório, uma vez que não se concebe uma garantia sem a obrigação a ser
garantida" (Carvalho Santos, 1975, p. 275).

4.5 Sujeitos e objeto

Dissemos que a hipoteca é um direito real provido de seqüela e surge me·


diante contrato. Daí, aplicarem-se ao devedor as condições do art. 756 do Có-
digo Civil. Bem de ver que, para hipotecar, é necessária a venia conjugal.

Direitos reais de garantia 119


Como em todo e qualquer contrato, duas são as partes envolvidas: o devedor
e o credor hipotecário.
Ainda que o direito de dar em hipoteca seja privativo de quem pode alienar,
a pessoa que detenha a posse da coisa como se sua fosse terá a hipoteca reva-
lidada, se posteriormente dela adquirir o domínio. Vale dizer, o domínio super-
veniente convalida a garantia real a partir do registro imobiliário.
As coisas objeto da hipoteca estão capituladas no art. 810 do Código; além
delas, também os aviões e vias férreas.
Em outras palavras, o objeto da hipoteca são os bens imóveis desde que
alienáveis. Acreditamos que o direito real de enfiteuse poderá ser objeto de
hipoteca. Sabemos que o senhorio direto é o dono da coisa, e o enfiteuta ou
foreiro tem um direito real sobre a coisa alheia, direito este quase equiparado
à propriedade. Resulta, pois, dizer-se, que o enfiteuta ou foreiro tem o domínio
útil do imóvel.

4.6 Natureza jurídica

Já foi dito que se trata de direito real e, como tal, vincula o bem gravado. t
um direito de garantia (provido de seqüela), acessório, que existe em função
do principal. Extinto este, desaparece aquele. Surge após o registro.
No dizer de Lafayette, é um direito real criado para assegurar eficácia a um
direito de ordem pessoal.

4.7 Forma e modos de constituição

Por se tratar de um direito real imobiliário, a hipoteca convencional se faz


através de escritura pública. t requisito essencial, do mesmo modo que é o
registro. Se os bens hipotecados estiverem em mais de uma comarca, em cada
uma delas se procederá ao registro imobiliário. Modo de aquisição do direito
real de garantia.
O contrato de hipoteca reveste-se de forma solene. Do contrato, resulta a
hipoteca convencional, o que não se confunde jamais com ato unilateral.
Caso a hipoteca provenha de uma sentença, esta é que lhe serve de título.
A hipoteca legal, art. 827, apesar de a lei não especificar o título constitutivo,
entendemos que o título deverá ser a sentença de especialização.

4.8 Hipoteca convencional

Já foi dito que o contrato de hipoteca está incluído na categoria dos contratos
solenes. Como tal, há de ser feito por escritura pública, escritura esta que
passa a ser o título constitutivo.
O título compreende a vontade do devedor (expressa a outorga uxória ou
marital), a aceitação do credor, a coisa dada em garantia perfeitamente indivi·
duada, valor da dívida, o prazo ajustado e a presença das testemunhas instru-
mentais.
Bem de ver que deverão estar preenchidos os requisitos atinentes - o intrín-
seco e o extrínseco. Este, formal, caracteriza-se pelo contrato em si, tornado do

120 R.C.P. 1/83


conhecimento público. Aquele diz com a qualidade do devedor, dono da coisa,
e de sua capacidade para alienar ou gravar.
Finalmente, levada a registro no Registro de Imóveis, a hipoteca convencional
não só passa a revestir garantia real, como a valer contra terceiros, observada
a ordem de registro ou inscrição.

4.9 Hipoteca legal

"Art. 827. A lei confere hipoteca (art. 473):

I - à mulher casada, sobre os imóveis do marido para garantia do dote e de


outros bens particulares dela, sujeitos à administração marital;
11 - aos descendentes, sobre os imóveis do ascendente, que lhes administra
os bens;
111 - aos filhos, sobre os imóveis do pai, ou da mãe, que passar a outras
núpcias, antes de fazer inventário do casal anterior (arts. 183, XIII, 840);
(. .. )
VIII - ao co-herdeiro para garantia do seu quinhão ou tomar da partilha,
sobre o imóvel adjudicado ao herdeiro reponente (art. 1.677)."

Trata-se, como se vê, de um favor legal sem depender de qualquer conceito


prévio.
Como se trata de favor legal, neste caso é a qualidade do credor e não os
bens ou o crédito propriamente ditos que a justificam. Assim é, que pelo art.
820 a hipoteca legal pode ser substituída" ( ... ) por caução de títulos da dívida
pública federal ou estadual ( ... )". Com esta medida, o legislador evitou que os
bens imóveis daquele que administra bens de outrem ficassem fora do comércio.
Mesmo que decorra da lei, está sujeita aos dois grandes princípios: o da espe-
cialização e o da inscrição. Observados estes, passará a hipoteca a valer erga omnes.
De contrário, não passará de mero crédito pessoal. Vale, a propósito, lembrar
a lição de Lacerda de Almeida: "Hipoteca não registrada é hipoteca não exis-
tente."
Concluímos então que a hipoteca legal tem por finalidade maior a garantia
de determinadas obrigações, em favor das pessoas a quem aproveita.
Finalmente, as pessoas obrigadas a proceder à especialização e inscrição das
hipotecas legais responderão pelas perdas e danos que da sua emissão resulta-
rem (art. 845).

4.10 Hipoteca judicial

"Art. 824. Compete ao exeqüente o direito de prosseguir na execução da


sentença contra os adquirentes dos bens do condenado; mas, para ser oposto a
terceiros, conforme valer, e sem importar preferência, depende de inscrição e
especialização. "
Observe-se, de início, que a lei subordina a hipoteca judicial aos dois grandes
princípios. O texto transcrito diz da força condenatória que a lei enfrenta à
sentença judicial. Dela refulge o direito do credor exeqüente, sobre os bens do
executado, em garantia de seu crédito.

Direitos reais de garantia 121


Este instituto tem em Carvalho Santos um defensor. Entende o mestre que:
"A hipoteca judicial, incontestavelmente, contém os elementos necessários para
atingir os resultados que visa, porque, por efeito da sentença, o credor adquire,
desde logo, o direito de segurar os bens do devedor e vendê-los para obter sobre
o preço o pagamento de seu crédito reconhecido judicialmente" (Carvalho
Santos, 1975, p. 387-8).
Em contrário, a voz de Orlando Gomes que brada: "transformar uma sen-
tença judicial em título constitutivo do direito real de hipoteca é, realmente,
aberrante" (Gomes, p. 381).
Perfilamo-nos ao lado daqueles que criticam o instituto, por duas razões
básicas: a primeira porque a finalidade específica da prestação jurisdicional é a
de declarar o direito que tanto pode decorrer da lei como da vontade do con-
trato. A segunda razão é a de que não conseguimos achar motivos que informem
a "preferência". O exeqüente, sem prejuízo da seqüela, obtém os mesmos resul-
tados pela simples penhora dos bens do devedor. Em outras palavras: nada
justifica a "preferência", eis que neste caso o credor está em pé de igualdade
com os demais credores. A hipoteca judicial fere a regra geral, ou seja, a idéia
de que o patrimônio do devedor é e deverá ser a garantia de todos os credores.
O registro far-se-á através de mandado, atendida a forma estabelecida para
os atos públicos.
Em se tratando de falência, a hipoteca judicial não se opera, quando registrada
no período legal da quebra.

4.11 Hipotecas especiais

A regime especial estão sujeitas as hipotecas de vias férreas, aérea e naval.


Esta última capitulada no art. 825: "São suscetíveis do contrato de hipoteca os
navios, posto que ainda em construção. As hipotecas de navios reger-se-ão pelo
disposto neste Código e nos regulamentos especiais, que sobre o assunto se
expedirem. "
Vejamos, em breve comentário, cada uma destas modalidades especiais de
hipoteca.

4.11.1 Hipoteca naval

O Código, ao dizer dos "regulamentos especiais, que sobre o assunto se ex-


pedirem", ateve-se, certamente, à idéia de legislação posterior.
A questão do navio, em nosso direito, é sem dúvida sui generis. Bem móvel
que, apesar disso, pode ser objeto de hipoteca. A explicação, que a nosso ver
não comporta outros atavios, vem de Clóvis. Ensina o mestre: "O navio é coisa
móvel, mas está ligado pelo registro a um porto determinado, tem nome, nacio-
nalidade; a sua construção e caracteres constam, oficialmente, do registro; a
sua alienação obedece a formalidades especiais. Oferece, portanto, as condições
necessárias para assegurar o pagamento de uma dívida pela seqüela e a prelação."
A prelação (praelatio: preferir, colocar em primeiro lugar) destaca o direito
de preferência no caso de eventual execução. Sem que se faça necessário ques-
tionar em tomo dos requisitos para que o navio se diga brasileiro (pelo menos,
quanto ao presente estudo), somos em dizer que a hipoteca naval confere ao
credor ação de execução onde quer que o navio se encontre, ou contra quem

122 R.C.P. 1/85


dele tenha a posse. A teor da lei, mesmo em construção, pode ser dado em ga-
rantia. Mas o que o nosso legislador não previu - e devia tê-lo feito - foi
o modo legal de substituir o objeto da garantia, isto é, o navio em construção,
no caso de quebra da empresa que mandou construí-lo, ou até mesmo do esta-
leiro construtor.
Ao nosso entender, deveria haver uma espécie de seguro-construção no qual
o credor se sub-rogaria. Isto porque a garantia hipotecária, neste caso, só toma
vulto à medida que a construção progrida. Não terminada a construção, a ga-
rantia não se consolida. Daí, o credor hipotecário vai engrossar a massa dos
quirografários. Não se pode reclamar coisa que a rigor não chegou a existir.
Além do registro na capitania do porto, a hipoteca deverá ser levada também
a registro no Tribunal Marítimo.

4.11.2 Hipoteca de aeronaves

Tal como os navios, os aviões são hipotecáveis. Estão sujeitos a individuali-


dade toda própria. O contrato faz-se por instrumento público e levado a registro,
no Registro Aeronáutico, que lhe é privativo e único no país.
A aeronave está sujeita a legislação especial e o direito pátrio não agasalha
outro tipo de garantia, a ser oferecida pela aeronave, que não a da hipoteca.

4.11.3 Hipoteca de vias férreas

Manda o Código: "Art. 852. As hipotecas sobre estradas de ferro serão


inscritas no município da estação inicial da respectiva linha."
Estamos mais uma vez diante de uma exceção. Desta feita, à regra do art.
831, sem prejuízo dos princípios da especialização e da publicidade.

Na verdade, ao constituir-se hipoteca sobre vias férreas, dita hipoteca recai


mesmo sobre uma universalidade de bens: solo, trilhos, terrenos marginais, pré-
dios que servem de estações, vagões e todo o material circulante, além de toda
a sorte de benfeitorias. Assim, o direito do credor abrange toda esta universitas
iuris.
A especialização encontra sua razão de ser na própria natureza dos bens e no
seu valor.
O domicílio da empresa ferroviária não determina a comarca do registro.
Como se vê, a lei, neste caso disse supérfluo mais de um registro.
Particularidade interessante é o direito outorgado à União e aos estados-mem-
bros de remir a hipoteca, antes que seja expedida a carta de arrematação ou
adjudicação. Em nome da causa pública, tem-se nula a adjudicação, sem notifi-
cação prévia destas duas pessoas jurídicas de direito público. O legislador visou,
com tal medida, assegurar ao Estado a exploração do transporte ferroviário.

4.12 Pluralidade de hipotecas

"Art. 812. O dono do imóvel hipotecado pode constituir sobre ele, mediante
novo título, outra hipoteca, em favor do mesmo ou de outro credor."

Direitos reais de garantia 123


A lei, ao permitir uma segunda hipoteca sobre o mesmo imóvel, não diminuiu
a vantagem do primeiro credor hipotecário, eis que prefere aos demais em face
da ordem de inscrição ou registro.
Permite a lei nova hipoteca, se no título constitutivo da primeira não houver
cláusula impeditiva, mesmo que a segunda seja constituída em favor do pri-
meiro credor. Tratando-se de aumento da dívida, terá que ser feita uma outra
hipoteca. Em se tratando de segunda hipoteca, no bojo de seu título deverá
constar a existência de hipoteca anterior.
Sabemos que o primeiro credor hipotecário é aquele que primeiro fizer o
registro do título. Decorridos 30 dias, procede-se ao registro dos demais. Ve-
rificando-se a inércia do primeiro credor, o segundo credor pode reembolsá-lo
do seu crédito, ficando destarte com o direito às duas.
Posição assaz desvantajosa tem o segundo credor, pois não pode excutir o seu
cré:lito antes de vencida a primeira hipoteca. Em caso de venda judicial, se o
preço obtido bastar apenas para saldar a primeira hipoteca, o segundo credor
paEsará a ser mero quirografário. Entretanto, a recíproca não é verdadeira, uma
vez que não sendo paga a segunda hipoteca não induz em insolvência do deve-
dor. Deste modo, não há que se falar em vencimento antecipado.
A medida que a primeira e a segunda hipotecas vão sendo pagas, melhora
a posição dos demais credores subipotecários, observada, claro, a norma do
art. 833.
Todavia, as desvantagens a que está sujeito o segundo credor são atenuadas
pela faculdade que tem de remir a primeira hipoteca no vencimento. No que ilide
a excussão. Imediatamente fica sub-rogado nos direitos do primeiro credor.
M~s, para tanto impõe-se que o primeiro credor seja notificado, pois a este
assistem três razões para recusar a remissão: consignação de valor insuficiente,
inoportunidade e, finalmente, ausência da qualidade de credor subipotecário.
Pode ainda o primeiro credor prorrogar a hipoteca.
A segunda hipoteca, se constituída em favor do primeiro credor, implica a
feitura de um novo contrato. Não se permite averbação assim como se não a
permite em se tratando de aumento da dívida.

4.13 Efeitos da hipoteca

A contar do registro ou inscrtçao, a hipoteca produz efeitos com relação ao


devedor, ao credor e a terceiros. No que respeita ao devedor, embora este não
perca o direito de alienação, estreita-se o seu campo de ação sobre o bem gra-
vado. Está obrigado ao pagamento da obrigação principal, no prazo estipulado,
bem como a conservar o imóvel do qual não deixa de ser o depositário.
Cabe-lhe o direito de obrigar o credor a liberar o imóvel do ônus da hipoteca,
uma vez esta paga integralmente.
Com relação ao credor, a hipoteca assegura-lhe o interesse e conseqüente-
mente o crédito. Vencida a dívida e não paga, poderá promover-lhe a excussão.
Caso o imóvel objeto da garantia venha a ser penhorado por outro credor, a
dívida vence-se antecipadamente. A venda não pode ser feita sem que antes
seja o primeiro credor devidamente notificado (art. 826 do Código Civil).
Com relação a terceiros, é oponível erga omnes, isto é, haverá sempre a pre-
valência do interesse do primeiro credor.

124 R.C.P. 1/85


Ainda com relação a terceiros, deixou de ter interesse a discussão da legali-
dade ou não da alienação do imóvel gravado. Vimos que o devedor não perde
o ius disponendi.
Se a alienação for feita antes de inscrita a hipoteca, o alienante passa a reves-
tir a figura do estelionatário, se ocultar do adquirente a existência de contrato
anterior.

4.14 Perempção

Dentre os requisitos que dão validade a qualquer contrato, conta-se o prazo.


Geralmente, a lei deixa a sua fixação ao talante das partes, observado um limite.
Assim, todo contrato deve mencionar um prazo, prazo esse que pode ser pror-
rogado desde que não ultrapasse de 30 anos. A prorrogação, se a houver, implica
averbação no Registro de Imóveis.
Ultrapassando os 30 anos, a hipoteca perime a perempção (do latim peremp-
tio, de perimere), em seu sentido técnico traduz o perecimento do direito,
assemelhando-se à prescrição. Não impede que se constitua novo título.
Não é demais lembrar que a perempção só se aplica às hipotecas convencio-
nais. As legais perduram enquanto perdurar o negócio jurídico que acautelam.
Ter-se-á apenas que atender ao que preceitua o art. 830 com a nova redação
dada pela Lei n.O 5.652 de 11 de dezembro de 1970. A prorrogação, cremos,
não atingirá direito de terceiros.
Dissemos que a perempção assemelha-se à prescrição; acrescentamos agora
que com ela se confunde. A tanto nos inclinamos, em face da decisão unânime,
proferida pela 3.a Comarca Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, na
AC n.O 11.118, relator o Des. Amilcar Laurindo. O aresto teve a seguinte ementa:
"Hipoteca. Prazo prescricional. A prescrição da hipoteca é a trintenária, só
se operando a vintenária se consumada antes da vigência da Lei n.O 5.652/70,
que restabeleceu o prazo originário do Código Civil."
Verifica-se, pois, que o prazo já sofreu oscilações.
Invocando seu direito à prescrição vintenária da Lei n.O 2.437/55, vigente
ao tempo da inscrição e a incomportabilidade das despesas de consignação em
um débito íntimo de Cr$ 90,08, o devedor hipotecário recorreu da decisão de-
negatória do cancelamento da hipoteca fundado no restabelecimento do prazo
trintenário pela Lei n.O 5.652/70.
O prazo prescricional é imutável, não se alargando ou reduzindo por fatores
estranhos, como o montante do débito.
E, em tema de hipoteca, a prescrição é a trintenária.
Sendo regida pela lei do tempo da consumação, só opera a prescnçao vinte-
nária se consumada no curto período da vigência da Lei n.O 2.437i55, que re-
duziu o prazo originário do Código Civil, restabelecido pela Lei n.O 5.562/70.
E posto inscrita em 1957, a prescrição vintenária não chegou a consumar-se.
Hoje, não se têm dúvidas de que prevalece a prescrição trintenária.

4.15 Remição da hipoteca

"Art. 818. ( ... ) As remissões não serão permitidas antes de realizada a


primeira praça, nem depois da assinatura do auto de arrematação."

Direitos reais de garantia 125


Pela letra da lei, cabe perqumr: remição ou remissão?
Remir a hipoteca é antes de tudo um direito do devedor. A remição tem por
fim resgatar a dívida e, sendo assim, não entendemos acertado usar a palavra
remissão, que significa renúncia do credor, liberação graciosa. Não é disso que
se cuida aqui.
Além do devedor, a lei autoriza que o segundo credor hipotecário e o terceiro
adquirente possam remir a dívida. Esta faculdade só poderá ser exercitada entre
a primeira praça e a assinatura da arrematação.
Ao credor, contudo, foi conferido o direito de opor-se à remição. Poderá
requerer ao juiz a licitação, na qual apenas ele, os fiadores e o adquirente
poderão licitar. Claro que a adjudicação importa em plena quitação.
A norma do art. 822 dá ao credor hipotecário o direito à adjudicação, no
que afasta os demais credores.
Confere a lei ao cônjuge e aos herdeiros do devedor a faculdade de remir a
hipoteca, desde que ofereçam preço igualou superior à avaliação ou à arre-
matação. Quis o legislador facilitar a permanência do imóvel no patrimônio da
família do devedor.
Bem de ver que esta remição se fará em plena fase processual.

4.16 Extinção da hipoteca

"Art. 849. A hipoteca extingue-se:

I - pelo desaparecimento da obrigação principal;


11 - pela destruição da coisa ou resolução de domínio;
IH - pela renúncia do credor;
IV - pela remissão;
V - pela sentença passada em julgado;
VI - pela prescrição;
VII - pela arrematação ou adjudicação."

A obrigação principal desaparece por várias razões. A mais forte delas é, sem
dúvida, o pagamento integral em dinheiro. (A respeito de pagamento, ver o art.
930 e segs. do Código.)
Além das causas apontadas pela lei, extingue a hipoteca a dação em paga-
mento.
Apreciemos, agora, as causas de extinção enumeradas pelo Código.

4.16.1 Desaparecimento da obrigação principal

Paga a obrigação principal, extingue-se o direito real de garantia. Se o paga-


mento for declarado nulo, revive a hipoteca a partir da nova inscrição ou
registro.

126 R.C.P. 1/85


4.16.2 Destruição da coisa ou resolução de domínio

Destruída a coisa, perece a hipoteca. Tratando-se de resolução de domínio


pela verificação do termo ou pelo implemento da condição, opera-se a extinção
do ônus real. Entretanto, se a resolução do domínio for por causa superveniente,
subsistirá o vínculo hipotecário.

4.16.3 Renúncia do credor (remissão)

Desde que expressa, independe da anuência do devedor. Mas, repare-se, a


renúncia de que trata o art. 849 diz respeito apenas à hipoteca, não ao crédito
em si.

4.16.4 Remição

Aqui, ocorre o resgate da dívida, desonera-se o bem. O resgate pode ser


feito pelo devedor, pelo segundo credor ou pelo terceiro adquirente.

4.16.5 Pela sentença passada em julgado

A sentença a que se refere o texto legal é a que declara nula ou extingue a


hipoteca. A prestação jurisdicional é dada em função de ação proposta especi-
ficamente para este fim, ou em embargos à execução ou de terceiro, ou ainda
em concurso de credores.
Já que se falou em concurso de credores, por acharmos oportuno e elucida-
tivo, transcrevemos acórdão recente do Primeiro Tribunal de Alçada do Rio de
Janeiro, 8.a Câmara:
"AC n. O 96.174, Relator Juiz Mello Sena. Concurso de credores ou concurso
de preferências. Verificação das preferências fundadas em título legal e as resul-
tantes da penhora. Concurso particular de credores ou concurso de preferências.
Intervenção de credor hipotecário. Execução de imóvel dado em garantia. Inteli-
gência dos arts. 711 e 712, do CPC, e 954, 11, do CC. J! uma faculdade
do credor hipotecário a cobrança antecipada da dívida, quando o bem
hipotecado for penhorado por outro credor. A hipoteca é um direito real de
garantia e, uma vez inscrita no Registro de Imóveis, é oponível a todos. A arre-
matação extingue a hipoteca, mas não derrui o privilégio. A intimação do art.
698, do CPC, não é tão-somente para oferecer embargos de terceiro (art. 1.047,
11, CPC), mas também para licitar (art. 816, I, CC). A preferência adquirida
pelo credor sobre o bem por ele penhorado não extingue, não concorre, nem
se sobrepõe ao privilégio anterior do credor hipotecário. Provimento do recurso
do primeiro apelante para deferir o levantamento de seu crédito acrescido da
correção monetária. Desprovimento das segunda e terceira apelações ex vi do
art. 711, segunda parte, CPC. Acórdão unânime da 8.a Câmara, em 13.3.84,
Dl, de 30.10.84, p. 102."
Direitos reais de garantia 127
4.16.6 Pela prescrição

Prescrição da hipoteca propriamente dita, bem entendido. Não da dívida.


Pode acontecer a prescrição da· hipoteca, se o imóvel estiver na posse de ter-
ceiros, mas nem por isso o crédito é atingido. A lição de Carvalho Santos ensina
que "a prescrição direta da hipoteca, quanto às condições de existência, é aqui·
sitiva, mas quanto aos efeitos é extintiva" (Carvalho Santos, 1975, p. 518).

4.16.7 Pela arrematação ou adjudicação

A arrematação terá que ser feita, observada a notificação prevIa do credor


hipotecário. Discute-se ainda se, em se tratando de execução hipotecária, o pri-
meiro credor extinguir o crédito do segundo passará este à condição de mero
quirografário da perempção legal, já dissemos o que cabia dizer.

4.17 Execução da hipoteca

"Art. 826. A execução do imóvel hipotecado far-se-á por ação executiva.


Não será válida a venda judicial de imóveis gravados por hipotecas devida-
m~nte inscritas, sem que tenham sido notificados, judicialmente, os respectivos
credores hipotecários, que não forem, de qualquer modo, partes na execução."
O Código sujeita a execução aos cânones clássicos do processo civil. Não é
pois possível convencionar, menos ainda usar outro procedimento. Todavia,
parece-nos que hoje a imperatividade deste dispositivo está meio abrandada, em
face do Decreto-Iei n.o 70, de 21 de dezembro de 1966, e da Lei n.O 5.741 de
1.0 de dezembro de 1971.
Este abrandamento é resultante da intenção de imprimir maior celeridade às
cobranças das dívidas hipotecárias, ligadas ao Sistema Financeiro da Habitação.
No sentido do que ora afirmamos é a decisão proferida pela 5.a Câmara Cível
do Tribunal de Justiça ao decidir a AC n.O 5.846/78, relator o Des. Cláudio
Viana de Lima. O aresto restou assim ementado:
"Execução de hipoteca. Cobrança de crédito hipotecário vinculado ao Sistema
Financeiro da Habitação. Não se pode pretender a execução como conexa com
ação ordinária em que se postula, face a terceiro, redução do preç0. Aplicação
imediata da Lei n.O 5.741, de 1.0 de dezembro de 1971, a contratos anteriores, se
posterior a ela o inadimplemento. Petição inicial conformada ao art. 2.° da Lei
n.O 5.741. Impertinência de críticas ao sistema legal de correção monetária. Re-
jeição dos embargos pela decisão recorrida, ora confirmada."
Ao negar, unanimemente, provimento ao apelo, consagra o abrandamento da
rigidez do texto do art. 826.
Voltemos ao texto da lei substantiva. Por ele, impõe-se a notificação judicial
dos credores hipotecários para que venham a juízo defender seus interesses.
De contrário, induz em nulidade a venda efetuada.
Às discussões doutrinárias que havia em tomo da necessidade de serem lJoti-
ficados os demais credores, quando a venda judicial fosse promovida pelo pri-
meiro credor hipotecário, pôs fim o Supremo Tribunal Federal.
O Pretório Excelso, ao julgar o RE n.O 96.819, SP, Segunda turma, relator
o Sr. Min. Djaci Falcão, entendeu por unanimidade:

128 R.C.P. 1/85


"Hipoteca. Execução de imóvel hipotecado pelo primeiro credor. Necessidade
de notificação judicial dos demais credores hipotecários nos termos do art. 826
do Código Civil, que nenhuma distinção faz entre a primeira e as sucessivas
hipotecas. Nulidade da adjudicação que não atendeu ao preceito supramencio-
nado. Recurso extraordinário conhecido e provido.
O recurso extraordinário foi interposto sob a alegação de negativa de vigência
ao art. 826 do Código Civil, invocando o permissivo constitucional, alíneas a e
d, contra decisão proferida pela Quinta Câmara do Primeiro Tribunal de Alçada
Civil de São Paulo.
Houve por bem aquela corte de justiça confirmar, como sendo dispensável,
a notificação dos demais credores hipotecários, visto tratar-se de venda judicial
promovida pelo primeiro credor hipotecário, argumentando que:
A questão coloca-se por primeiro, pois, quanto a saber se a providência cau-
telar estatuída no citado art. 826 do Código Civil visa apenas a preservação dos
direitos dos credores hipotecários anteriores, ou se, promovida a ação por qual-
quer destes, também estariam abrangidos pela proteção legal os credores hipo-
tecários posteriores, chamados subipotecários.
E sob esse aspecto, sem embargo da opinião de Azevedo Marques, em sua
monografia A hypotheca, p. 173-6, e cujo texto se encontra reproduzido a fls.
134-7 e do entendimento esposado pelo V. acórdão reproduzido a fls. 138-40
(La Câmara do TJSP, 11 de setembro de 1961, RF, 204:180), acolhendo aquela
opinião, tem-se como interpretação mais conforme à natureza do instituto da
hipoteca e suas variações permissivas de constituição de novos vínculos reais
aquela perfilhada pelo digno juiz sentenciante, Dr. Fernando Spagnuolo.
Com efeito, e na lição de Clóvis, importaria na subversão da teoria do direito
real pretender-se a inclusão na citada regra e assim para sujeitar-se à obrigação
de notificar o próprio credor da primeira hipoteca (no caso sub iudice, o réu se
apresenta como titular da primeira hipoteca, por sub-rogação; e titular ordiná-
rio da segunda hipoteca).
Acrescenta o mestre: o credor por primeira hipoteca está provido do seu
direito real, que vincula, diretamente, o bem hipotecado à solução do seu crédito
e lhe dá preferência sobre quaisquer outros credores hipotecários, ou quiro-
grafários ( ___ ) Se o direito de preferência, inerente à hipoteca anteriormente
inscrita, exclui o direito da posterior, se o número de ordem na inscrição asse-
gura a graduação no pagamento, é claro que nada justifica a necessidade; imposta
ao credor hipotecário inscrito em primeiro lugar a notificar os posteriores de
Que vai exercer os seus direitos de preferência e prioridade, se estes últimos
nada lhe podem opor (Direito das coisas. Rio. v. 2. p. 604-5; edição histórica).
Também Washington de Barros Monteiro partilha desse entendimento, ao
observar que, se se tratar, todavia, de venda promovida pelo primeiro credor
hipotecário, dispensável se toma a notificação dos segundos credores com igual
garantia (Direito das coisas. 14. ed. Saraiva, 1975. p. 414); trazendo, em reforço,
ampla remissão jurisprudencial: RT, 76:344; 81:501; 85:344 93:92; 108:572;
103:337.
Não se pode negar o brilhantismo ao acórdão recorrido, pelos seus excelentes
fundamentos, os quais endossamos mesmo que aparentemente colidam com a lei.
Mas, se colidência há, ela insignificante se toma não só pelo lado prático do
problema, como especialmente por não causar prejuízos aos credores subipo-
tecários, eis que a inscrição dita as regras da preferência.

Direitos reais de garantia 129


Entretanto, de modo diverso decidiu a instância extraordinária, submetendo
a questão ao imperium da lei.
As instâncias ordinárias ao considerarem válida a adjudicação do imóvel
feita pelo primeiro credor hipotecário, sem a devida notificação dos demais
credores hipotecários que não participaram da execução, negaram vigência ao
disposto no art. 826 do Código Civil, que reza:
'Art. 826. A execução do imóvel hipotecado far-se-á por ação executiva. Não
será válida a venda judicial de imóveis gravados por hipotecas, devidamente
inscritas, sem que tenham sido notificados judicialmente os respectivos credore~
hipotecários que não forem de qualquer modo partes na execução.'
Conforme tive ensejo de afirmar, como relator do RE n.O 59.947:
'De modo peremptório, é negada validade à venda judicial de imóvel gravado
por hipoteca, regularmente inscrita, sem que tenha sido notificado judicial·
mente o credor hipotecário, que não for parte na execução' (RTf, 41:232).
Em data recente esta Turma decidiu na mesma diretriz, ao apreciar o RE
n.O 87.655, de que fui relator, ficando o acórdão com a seguinte ementa:
'Hipoteca. Execução de imóvel hipotecado pelo primeiro credor hipotecário.
Necessita de notificação judicial do segundo credor hipotecário, nos termos do
art. 826 do Código Civil, que nenhuma distinção faz entre primeira e segunda
hipoteca. Recurso extraordinário conhecido pelo dissídio jurisprudencial, mas a
que se nega provimento:
Diante do exposto, conheço do recurso por ambos os fundamentos e dou-lhe
provimento, para julgar procedente a ação em conformidade com a inicial, in·
vertendo o ônus da sucumbência" (RTf, 105:377).
Não se diga, entretanto, que o credor está isento de penalidade caso não
atenda à notificação. No sentido do velho brocardo "dormientibus non sucurrit
ins", decidiu por maioria a colenda Segunda Turma do STF, ao julgar o RE
n.o 92.110, RJ, relator o Sr. Min. Djaci Falcão, que teve a seguinte ementa:
"Hipoteca. Se o credor hipotecário foi notificado dos termos da execução e dei-
xou o processo correr, sem manifestar o seu interesse, opera-se a extinção da
hipoteca. Não é de se exigir que se trate de arrematação feita na execução do
credor hipotecário. Inteligência do art. 849, inc. VII, do Código Civil. Recurso
extraordinário conhecido por força do dissídio jurisprudencial e provido" (Df,
de 21.3.80, p. 1.555).
Não bastando a execução para satisfazer o crédito reclamado, poderá o credor
prosseguir nos mesmos autos, penhorando outros bens do devedor. Terá que
renovar a citação.
Embora se diga que a ação de execução hipotecária é de índole pessoal e por
conseguinte dispensa a venia conjugal, somos em aconselhar o contrário. Quei-
ramos ou não, fundo da lide será sempre de caráter patrimonial, sejam quais
forem os rótulos que se lhe aponham. E em se tratando de patrimônio, ambos
os cônjuges litigam juntos. Melhor será prevenir, para não remediar depois.

4.18 Cédula hipotecária

Criada para atender a certo tipo de hipoteca, hoje a cédula hipotecária só se


admite em operações atinentes ao Sistema Financeiro da Habitação.

130 R.C.P. 1/85


E título de crédito, com garantia real, porém nominativo e transferível via
endosso em preto.
Emitido pelo credor, o título deve conter os elementos previstos no Decreto-
lei n.O 167/67 (qualificação do credor e do devedor, valor do crédito que repre-
senta, vencimento, imóvel dado em garantia etc.) e a autenticação do oficial
do Registro de Imóveis.
Necessária a outorga uxória. Este título resgata-se com o pagamento, que pode
ser antecipado se houver recusa do credor em receber.

4.19 Cancelamento da hipoteca

A princípio, para que haja cancelamento da inscrição ou registro imobiliário,


é preciso a concorrência de uma das hipóteses previstas no art. 849 do Código
Civil.
Ao que saibamos, porém, nada há na lei que impeça se faça o cancelamento
mediante o pagamento, à vista de requerimento subscrito pelo devedor e pelo
credor, instruído com a prova da quitação. Dúvidas não terá o oficial público.
E claro que, havendo mais que um credor hipotecário, o pagamento ao pri-
meiro em princípio não ilidirá a inscrição das demais hipotecas.
Fixemo-nos agora na redação do art. 850. A extinção da hipoteca só começa
a ter efeito contra terceiros depois de averbada no respectivo registro.

5. A alienação fiduciária e os direitos reais de garantia

5.1 O que é a alienação fiduciária em garantia; origem

Em sentido amplo, é um negócio jurídico através do qual se adquire a pro-


priedade de um bem em confiança. A devolução da propriedade fiduciária ocorre
sempre que se verifique o evento a que se tenha submetido a obrigação ou
lhe seja pedida a restituição.
A sua característica maior é o fim judicial, isto é, dinamizar os negócios,
especialmente no campo do mercado de capitais.
Pela via fiducial, o devedor confere ao credor a propriedade dos bens, que
após o pagamento voltam à sua propriedade.
E, efetivameQte, negócio de garantia, que se assemelha ao penhor, sem
contudo com ele confundir-se.
Assemelha-se ao penhor, em razão da garantia e objeto. A diferença está no
fato de o fiduciante (credor) transferir a propriedade, ao passo que o devedor
pignoratício a conserva. No penhor, o direito real do credor reflete-se na coisa
alheia; na fidúcia, o direito real está na coisa própria.
Quanto à origem tem-se "a maior dificuldade em se determinar a época do
seu aparecimento e da sua primeira manifestação.
A fidúcia foi referida no assento da Tábua Sexta que tem por título De domí-
nio et possessione e estabelece que se alguém empenha a sua coisa ou vende em
presença de testemunhas, o que prometeu tem força de lei" (Restiffe Neto, 1975,
p. 1-2).

Direitos reais de garantia 131


5.2 Partes e objetos

São duas: o fiduciante, que é o credor, e o fiduciário, o devedor.


Aplicam-se as normas da propriedade resolúvel, como estatuído nos arts.
647 e 648 do Código Civil, ao direito do fiduciário acerca dos bens adquiridos.
Vale dizer: o fiduciário não é dono do bem, apenas é titular de um direito sob
condição resolutiva.
Quanto ao objeto, apenas direitos ou coisas móveis infungíveis, embora a lei
tal distinção não faça. Claro está que as coisas móveis de que trata a lei terão
que estar dentro do comércio.

5.3 Distinção entre alienação fiduciária em garantia e a propriedade fiduciária


Em primeiro lugar, atente-se para as normas de regência: Lei n.O 4.728/65
e Decreto-lei n.o 911, de 11 de outubro de 1969. Daqui, refulgem duas figuras
jurídicas distintas entre si: a alienação fiduciária em garantia e a propriedade
fiduciária, ou seja, aI garantia reaI'!constituída em favor do credor.
A alienação fiduciária é apenas o contrato que titula a constituição da pro-
priedade fiduciária. Esta, a rigor, é que reveste a garantia real.
Como se vê, trata-se de um direito acessório, onde a confiança é fator pre-
ponderante.
A alienação fiduciária em garantia não é, exatamente, uma nova forma de
garantia real.
No dizer de J. C. Moreira Alves:
"E daí nascem erros inadmissíveis, pois, em verdade, a alienação fiduciária
não é modalidade de garantia real, tal qual não o são, por exemplo, o contrato
de penhor e o contrato de hipotecai O penhor e a hipoteca é que são espécies da
garantia real" (Moreira Alves, 1973, p. 40).
Como já foi dito, é um negócio jurídico onde predomina a confiança sem
dispensa das cautelas legais, que tem por fim dinamizar as atividades do
comércio.

5.4 Natureza jurídica

f: um contrato bilateral e oneroso, que tem por fim transferir a propriedade


de coisa móvel infungível com fim de garantia.
Considerando-se que a alienação fiduciária em garantia visa transferir o' direito
de propriedade limitado pela finalidade de garantia, é que a alienação fiduciária
se insere em nosso ordenamento jurídico como contrato típico do direito das
coisas.

5.5 Forma e prova do contrato


A lei exige que o contrato seja escrito, eis que só assim operará eficácia
erga omnes.
No contrato far-se-á menção à coisa alienada, preço, juros, prazo, condições
de pagamento etc.
Sem que o registro se faça em Títulos e Documentos, a alienação fiduciária
em garantia é apenas título de constituição de propriedade.
A prova do contrato é, pois, o registro.

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5.6 Extinção da propriedade fiduciária e o cancelamento do registro

o gravame extingue-se pelo pagamento e demais hipóteses previstas no art.


802 do Código Civil.
E necessário o cancelamento do registro, para que o fiduciário possa dizer-se
desobrigado.
A figura da confusão de que trata o art. 802 deve entender-se por consolida-
ção. Esta extingue a garantia, não a dívida, pelo que se impõe a venda judicial
do bem. Caso o valor da venda não baste para solver o crédito, o devedor conti-
nuará pessoalmente obrigado pelo que restar.
"Efeitos contra terceiros"? Mas que efeitos poderão ser esses a que alude a
lei, se, ao contrário, a extinção é sempre benéfica aos terceiros?
Outro modo de cancelar a inscrição hipotecária é através de mandado judi-
cial, de carta de arrematação ou de carta de adjudicação expedidas pelo juízo
da execução. Para este ato de cancelamento, alerta a jurisprudência ser neces-
sário intimar (ou notificar) o credor (?) (!)
Em junho de 1982, a Quinta Câmara Cível da nossa Corte de Justiça, ao
julgar a AC n.O 21.007, relator o Des. Jorge Loretti, houve por bem decidir:
"Cancelamento de hipoteca. Necessidade de intimação do credor hipotecário
(. .. )
O cancelamento de hipoteca devidamente registrada no Registro de Imóvei-s
só se pode efetuar mediante intimação do credor hipotecário."
Perguntamo-nos por quê. Ora, se se tem mandado judicial, carta de arremata-
ção ou de adjudicação, é de pressupor-se que tal ordem judicial haja sido pre-
cedida do regular processo de execução. E ao dizermos regular, queremos dizer
observados os mandamentos do art. 826. Assim, se todos os credores titulados
participaram da execução, sabem do desfecho; logo, em que lhes pode inte-
ressar a intimação ou notificação do cancelamento da inscrição?
A esta altura, atendida que foi a ordem de preferência, os credores subipo-
tecários já não são mais que meros quirografários (no caso de o preço da venda
judicial não os ter alcançado). Logo, detentores de um direito pessoal.
Termina o venerando aresto por afirmar:
"Quanto à extinção, em face da arrematação à luz do art. 849, VII, do Cód.
Civil, lembrado pelo ilustrado julgador de primeira instância - fls. 57v - é
de dizer-se que a arrematação que extingue a hipoteca, segundo Clóvis Bevilac-
qua, só poderia ser oriunda de execução hipotecária regular. Só esta poderia
extinguir a hipoteca (C6d. Civil, v. 3. p. 478).
Todavia, atualmente é possível estender-se essa extinção a todas as alienações
judiciais, em face do art. 1.116, do CPC, imprescindível, todavia, a intimação
do credor hipotecário, na forma do art. 698, do Estatuto Processual, e em face
do disposto no art. 251, 11, da Lei dos Registros Públicos."
Repetimos, não vislumbramos necessidade prática para tal intimação.
O cancelamento da inscrição da hipoteca põe fim à garantia real. Vale dizer,
desonera o devedor e libera o bem dado em garantia.

6. Conclusões

Desde os primórdios da era do direito, o conceito de garantia tinha o sen-


tido de unidade. A par do pignus e da hypotheca, inseria-se a fidúcia, esta bem
mais antiga que aquelas, eis que se fundava na confiança.

Direitos reais de garantia 133


A idéia-valor dos direitos reais de garantia é mais simplificada que a dos de
fruição ou gozo.
Se o credor retém a coisa em seu poder e não lhe aufere a renda, tem-se o
penhor. Entretanto, se o rendimento da coisa é considerado no sentido de dimi-
nuir a dívida, estamos diante da anticrese. A obrigatoriedade da tradição é co-
mum a estes dois institutos.
O bem gravado sem sair da posse do devedor, excetuados os casos dos penho-
res especiais, conduz-nos à hipoteca, hoje largamente usada, em especial com o
advento do Sistema Financeiro da Habitação.
Quanto à alienação fiduciária em garantia, sua função maior é a de desenvol-
ver as operações creditícias. A garantia é a própria coisa, alienada com ou sem
fiança.
Não se confunde com a venda a crédito com reserva de domínio, embora não
se lhe neguem algumas semelhanças.
Na venda a crédito com reserva de domínio, ao vendedor é reservada a pro-
priedade da coisa, embora ocorra a tradição. A alienação fiduciária comete
ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta.
O fiduciante dispõe das seguintes ações:. busca e apreensão, ação de depósito e
ação de execução.
O projeto do novo Código contempla os três primeiros institutos, no título X,
arts. 1.417 a 1.508, sem aludir à rubrica "direitos reais de garantia".6
Voltamos a dizer da desnecessidade de figurar no novo Código () instituto da
anticrese. A celeridade da vida, dos negócios, enfim dos nossos dias, dela está
bastante divorciada.
Pelo que se verifica, os negócios hoje giram mais em torno da hipoteca e da
alienação fiduciária que dos demais direitos reais de garantia.

Referências bibliográficas
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1984. v. 1 e 2.
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Legislação
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Código Civil português.
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