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A Finalidade Do Fim Charles Marlon PDF
A Finalidade Do Fim Charles Marlon PDF
A finalidade do fim:
uma leitura crítica da arte e da crítica
O correlativo objectivo
gastou-se, como era de esperar,
e se a lírica sobrevive
não me perguntes de quê, de que restos.
Indícios de ausência como a própria vida,
tão impropriamente vivida. – Manuel de Freitas
“No political system can exist outside the context of moral justifications.
But a moral order, if it is to exist without coercion or deceit, has to transcend the
parochialisms of interests and tame the appetites of passions. And that is the
defeat of ideology (...) The historicity of the term has lost its context, and only
the pejorative and invidious penumbra, but no conceptual clarity, remains.
Ideology has become an irretrievably fallen word. And so is sin.” (BELL, p.447,
1988)
Não podemos esquecer do Brasil, pois não estamos tão fora da moda assim,
também criamos nossos fins por aqui. Nas Jornadas de Junho de 2013 uma
discussão ganhou força e visibilidade, primeiro através do descrédito dos partidos
políticos, principalmente por conta da recém descoberta da corrupção, o mal
supremo e único que nos assola e que, inclusive, é uma grande novidade, a saber,
a possibilidade do fim dos mesmos. Os gritos de sem partido entoados durante
várias das manifestações, não em uníssono, claro, ecoaram para além das
manifestações, criando ressonância não apenas na política propriamente dita,
mas também na educação, que tem impacto direto na formação dos cidadãos de
agora e do futuro, com a brilhante ideia de uma escola sem partido, obrigada a
oferecer uma formação “neutra”. Nós brasileiros não somos os únicos a debater e
vivenciar essa discussão, em 2013, coincidentemente(?), Daniel Cohn-Bendi,
deputado alemão, pelo partido ecologista Die Grünen, conhecido por sua
participação ativa nos movimentos do Maio de 68 em Paris, lançou Para
Suprimir os partidos políticos!? Reflexão de um apátrida sem partido.
No âmbito da cultura, ou antes, da produção artística, o fantasma do fim
também assombra. A literatura tem seu fim anunciado há pelo menos um século
e meio, conforme nos contam estudiosos, entre eles, Leyla Perrone-Moisés em
breve ensaio à Folha de São Paulo, em 2011, intitulado O longo adeus à literatura.
A professora cita vários exemplos ao longo da história da literatura em que seu
fim foi afirmado, segundo a mesma, Baudelaire anuncia a morte da poesia,
Valèry, do romance, Sartre, Blanchot, Barthes, Todorov, entre outros, teorizam
sobre o cadáver literário.
Na música também temos um debate semelhante, José Ramos Tinhorão,
crítico musical, levanta uma certa polêmica ao afirmar o fim da canção e em
entrevista um tanto mal interpretada, Chico Buarque, teoricamente, teria
também afirmado o dito fim. Um germe dessa discussão pode ser encontrado em
Adorno, abismado e horrorizado com a novidade de Indústria Cultural, ao pensar
a regressão da audição, dado o fetichismo da música.
Poderíamos elencar aqui mais outros tantos exemplos e fazer uma lista
quase infinita de outros fins, mas não é o caso, a pergunta, entre tantas possíveis,
a ser feita é: o que esses fins vários revelam, o que podemos aprender com eles, o
que podemos apreender deles? Para isso, precisamos fazer uma análise crítica
4
“Salvo engano meu, o nosso espírito crítico foi posto para dormir há mais ou menos 20
anos, no começo da década de 90, quando o Brasil entrou para a era da globalização e
tomou conhecimento da nova hegemonia do capital, muito mais completa do que tudo
que se havia visto anteriormente. Não que durante esse período não houvesse artistas ou
intelectuais inconformistas, tentando dar forma artística ou conceitual à sua insatisfação,
à sua percepção de que as coisas não são o que parecem. Mas a crítica não encontrava
ressonância e ficava parecendo como que ranhetice ou má-vontade isolada, pessoal, coisa
de gerações antigas.” (SCHWARZ, 2008)2.
2
In: CEVASCO, Maria Elisa. A crítica cultural lê o Brasil. PDF.
5
Quanto ao fim dos partidos, não nos estenderemos muito, primeiro por
falta de capacidade em analisar o caso em sua complexidade, mas arriscamos
afirmar que existam aspectos superficiais que podemos pontuar. Caso os partidos
sejam, de fato, extintos, a forma de organização política de uma maneira mais
estruturada pode dar lugar a formas melhores e mais justas de organização
política, quem sabe, porém, a ideia da horizontalização do poder, das redes, da
pulverização do poder em micro células espalhadas e não comunicantes pode
abrir de vez o caminho para uma nova investida conservadora que pode ou não,
inclusive, dar em um regime totalitário, que encontrará desarmada qualquer
possibilidade real de defesa e resistência contra as barbáries. Neste fim específico,
podemos ver também que o próprio clamor por apartidarismo é uma posição
ideológica e política. Parece-nos, portanto, que a ideologia segue viva e atuante.
E que a história ainda respira sem a ajuda de aparelhos.
Quanto ao fim da música e da literatura há um aspecto importante, como
nos lembra Luiz Tatit, "não existe a menor possibilidade de a canção acabar, o
que modifica são os meios de divulgação, a maneira de compor, o jeito de lidar
com a canção. Mas, enquanto houver alguém falando, a canção sai. Não daria nem
para ninar uma criança se a canção acabasse." (TATIT, 2010)3. Sendo assim,
voltamos um pouco à discussão sobre a Industria Cultural que parece permear
esse temor que a arte, em geral, chegue ao fim. Adorno criticava duramente a arte
produzida sob as leis da Indústria Cultural, para o estudioso alemão:
“All mass culture under monopoly is identical, and the contours of its skeleton,
the conceptual armature fabricated by monopoly, are beginning to stand out.
Those in charge no longer take much trouble to conceal the structure, the power
of which increases the more bluntly its existence is admitted. Films and radio no
longer need to present themselves as art. The truth that they are nothing but
business is used as an ideology to legitimize the crash they intentionally produce.”
(ADORNO, 2002, p. 95)
3
In: PRETO, Marcus. Luiz Tatit refuta o "fim da canção" em novo álbum.
In: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0704201017.htm
7
morreu, não tem funcionalidade analítica, em outras palavras, que não é crítica.
O espanto de Adorno é historicamente situado, tem sua importância, mas não
podemos seguir espantados com o mesmo susto antigo, a Industria Cultural
existe, regula a produção das obras de arte, pode ser que influa na forma,
entretanto, não é o mesmo que afirmar a impossibilidade da arte ou da forma
estética como um todo. Por outro lado, podemos repensar um pouco o próprio
espanto em perceber a arte ligada ao sistema, capitalista ou qualquer outro que
regule a vida em determinada sociedade. Shakespeare, grande nome da literatura
inglesa até hoje, tinha uma companhia de teatro que se chamava nada menos que
All the King’s men, Camões, logo no início d’Os Lusíadas, dedica e oferece ao rei
de Portugal sua maior obra, em que, inclusive louvava os feitos “heroicos” do povo
português e de seus governantes, chegando a receber uma pensão da coroa em
seus últimos anos de vida (PEREIRA, 2015). Pegamos dois exemplos, há muitos
outros, mas já podemos nos perguntar duas coisas: até que ponto uma obra
produzida por um artista participante e que circule sua obra dentro do sistema
(seja ele qual for) perde automaticamente sua capacidade formal e artística? Ou,
uma obra engajada, ou panfletária, tem necessariamente força artística?
É dentro desse panorama em que nos encontramos hoje, que a crítica,
como propõe Roberto Schwarz na fala já citada anteriormente, precisa e pode
renascer neste momento de crise, figurado, não só, mas também, através da
proposição dos diversos fins que vimos.
Rosa Maria Martelo (2015), estudiosa portuguesa da poesia
contemporânea de seu país, afirma:
Pensando, dessa forma, no fim, não como ponto final, mas como ruptura,
ruptura essa que não sabemos figurar, como veremos mais adiante, como nos
ensina Fredric Jameson (2005), é preciso pensar na existência da obra de arte e
nas condições em que a crítica se coloca para analisar tais obras.
Lukàcs (2016), em Art as misunderstanding, faz um panorama de como
ao longo do tempo se pensou a análise crítica das obras de arte, apontando
algumas polarizações que, aos poucos, foram, ao que parece, minando o potencial
crítico e o próprio interesse da sociedade por ela. No panorama de Lukàcs, há os
que atribuam, na esteira de Schiller, à estética da obra um valor extremamente
poderoso através da qual inclusive os problemas políticos se resolveriam, sendo
que a arte gozaria uma posição alheia à sociedade. Há também os que prezam, na
linha de Kant, a essência da obra de arte, segundo os quais a obra teria seu sentido
imanente em si mesma. Existem variações desses dois polos principais, mas há
sempre ou uma espécie de “todo poder à obra” ou “todo poder ao artista” ou ainda
“todo poder ao leitor/espectador”. O que falta a todas essas formas de análise é,
em nosso ponto de vista, buscar captar a obra em sua complexidade, em suas
contradições, falta, em uma palavra, uma aproximação dialética.
Ainda no mesmo ensaio, Lukàcs propõe que
também trabalhada por Roberto Schwarz ao longo de sua obra, que aprendeu com
Antonio Candido, que por sua vez aprendeu com Adorno, (outra prova de que não
só o passado existe, como é importantíssimo aprendermos com ele, em outras
palavras, a História ainda está por aqui e importa.
Schwarz, ao responder entrevista sobre Antonio Candido, diz o seguinte:
postura não parece chegar aos pontos que de fato precisam ser aprendidos, um
mega show internacional nas modernas arenas de futebol reúne milhares de
pessoas que, não necessariamente, sairão do espetáculo mais afetuosos, unidos e
atentos, como afirma, novamente, Roberto Schwarz:
Dentro desse quadro, o traço que distingue a crítica dialética, e que a torna
especial, é que ela desbanaliza e tensiona essa inerência recíproca dos
pólos, sem suprimi-la. O que for óbvio, para ela não vale a pena. Se não
for preciso adivinhar, pesquisar, construir, recusar aparências,
consubstanciar intuições difíceis, a crítica não é crítica. Para a crítica
dialética o trabalho da figuração literária é um modo substantivo de
pensamento, uma via sui generis de pesquisa, que aspira à consistência e
tem exigência máxima. (SCHWARZ, 2012, p. 287)
Portanto, é através dessa visão dialética que proporemos uma leitura breve
de dois poemas de Manuel de Freitas, poeta português contemporâneo e do
romance de Juan Pablo Villalobos citado anteriormente.
Uma vez que ainda existe a arte, com todas as suas limitações e
contradições, a crítica, ainda que sonolenta, tem sua função e seus espaço, para
que, quem sabe, possamos, através dela, buscar meios para existir no mundo das
experiências, ou da perda delas, da maneira menos sofrida e mais significativa
possível. Tentando levar a cabo uma crítica e uma arte que fujam ao cansaço e ao
descrédito que Manuel de Freitas (2002) transcreve em versos no poema que se
segue:
ARTE POÉTICA I
Ao escrever ave
não estou a escrever
cigarro,
tinteiro,
vazio.
O real é contundente,
de acordo,
mas que dizer das palavras?
(De resto, será o “real”
assim tão real?)
Antes de mais nada, cabe-nos apontar que este poema é uma espécie de
resposta a outro de título semelhante, da poeta Fiama Hasse Pais Brandão,
também poeta portuguesa, que participou do “movimento” Poesia 61, que reuniu
autores que buscavam se debruçar sobre a textualidade do poema, o peso das
palavras no texto (SILVEIRA, 2016).
Grafia I
se
se
se
o tamanho deste vento é um triângulo na água
o tamanho da ave é um rio demorado
onde
as mãos derrubam arestas
a palavra principia.4
4
In: https://lusografias.wordpress.com/2008/05/23/grafia/
14
5As citações do autor, quando relacionada a parte teórica, foram anotadas em fala feita por ele no
Sesc Paulista em 28/06/2018. Pode ser assistida em: https://www.youtube.com/watch?v=42nV-
7Qzb2g.
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saben dónde queda eso. Explico que em Los Altos, a tres horas de coche.
Mi primo dice que de ahí es la familia de su papá y que su papá y el mío
son hermanos. Ah, dicen.” (2016, p.13)
intelectual subdesenvolvido, vive, segundo seu primo, em uma das cartas que lhe
foram endereçadas, “en el mundo de la fantasía y no sab[e] cómo están los
chingadazos acá afuera, (...) en la vida real” (2016, p.76) e agora vê a realidade
bater a porta sem lhe deixar escolha, Juan figura um sujeito que vive dia a dia sob
os mandos do capital, que é quem de fato decide o que, quando, como e se ele vai
fazer. Isso é bastante claro em vários momentos, um deles quando é obrigado a
troca de orientador e de objeto de estudo:
Se Juan não tem nenhuma autonomia, nem poder de decisão sobre sua
própria vida, Valentina, que não sofre ameaças diretas dos narcotraficantes, não
demonstrar maior liberdade, se vê sozinha e sem emprego, descobrindo a
Barcelona “real”, do trabalho, das relações dos Europeus com os imigrantes,
vemos, com ela, uma outra cidade, aquela que a propaganda não mostra, sob a
superfície que brilha, a cidade turística, descascando um pouco o verniz, há uma
realidade mais profunda e opaca. Em uma passagem de seu diário, Valentina
registra:
6
O caso foi tratado em várias notícias, essa é uma delas:
https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/the-new-york-
times/2016/04/26/estudantes-mexicanos-desaparecidos-tiveram-noite-de-terror-segundo-
investigadores.htm
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Feito esse longo percurso para entender se ainda há, e se há porque estudá-
los, a história, a arte e a crítica, podemos, ou antes queremos (?), crer que ainda
é possível a existência de uma arte que não seja só mercadoria e de uma crítica
que não seja só sonambula e saudosa de uma Golden Age qualquer. Ao perceber
que ainda temos produtos culturais que nos ensinam algo que, ou não sabíamos,
ou não nos demos conta ainda, se já não vivemos em um período da História no
qual podemos ter uma arte, se é que ela já existiu, “revolucionária” a ponto de
mudar o mundo e transformá-lo em um lugar mais sociável, para além das
aparências, ainda parece possível, uma arte que lide com os materiais disponíveis,
mesmo que insuficientes ou insatisfatórios, capaz de trabalhar as contradições de
seu tempo. Para concluir, Juan Pablo, respondeu, ao ser perguntado como ele se
via enquanto escritor crítico de seu tempo que “não pens[a] ser um escritor
comprometido, mas que pode participar da discussão” (VILLALOBOS, 2018),
parece ser um caminho.
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REFERÊNCIAS
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Fact to Matters of Concern. From Matters of Fact to Matters of Concern,"
Critical Inquiry 30, no. 2 (Winter 2004): 225-248.
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SILVEIRA, Jorge Fernandes da. Poesia 61 um acontecimento na história da
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24
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<http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/cltl/article/view/9967>.
Date accessed: 13 july 2018. doi:http://dx.doi.org/10.17851/0101-3548.6.12.121-
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TAMBELLI, Alexandre. Jornada de Junho de 2013 foi resultado de um
Processo Histórico e preparou as ruas para o Golpe. In:
https://jornalggn.com.br/blog/alexandre-tambelli/jornada-de-junho-de-
2013-foi-resultado-de-um-processo-historico-e-preparou-as-ruas-para-o-
golpe-por-alex
VILLALOBOS, Juan Pablo. No voy a pedirle a nadie que me crea.
Barcelona: Anagrama, 2016;