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RESUMO
COZINHA.
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Podemos exemplificar a ideia de Lévi-Strauss pela transformação da
mandioca crua em farinha, sendo necessário que seja torrada através do fogo, passando
de crua para cozida, de natureza para cultura. Ou pelo garum, um molho a base de peixe
muito apreciado pelos gastrônomos da época romana em que o peixe é fermentado por
muito tempo, podendo ser considerado como podre, marcando a volta à natureza.
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Diante da importância cultural da preparação para a região litorânea e da
escassez de pesquisas científicas que se aprofundem no tema, pretendemos analisar a
preparação ginga com tapioca a partir de sua história, contada desde sua suposta
idealizadora, Dona Dalila, aos seus descendentes, Dona Ivanize, em um núcleo de
produção no Mercado Público da praia da Redinha em Natal-RN, identificando também
as matérias-primas da preparação, o modo de fazê-la em sua origem, e por fim,
conhecendo as motivações dos consumidores habituais da preparação na praia da
Redinha.
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GINGA COM TAPIOCA: COMPLEXIDADE DE SABORES E DE SABERES.
As gingas são pequenos peixes que podem ser servidos junto à tapioca
compondo a preparação, os mais comumente utilizados são as sardinhas, que podem ser
de inúmeras espécies e têm como família mais representativa a Clupeidae, segundo
Szpilman (2000). Menos comumente servido é o peixe de nome popular manjuba, da
família Engraulidae e espécie Anchoviella lepidentostole, de acordo com o mesmo
autor.
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dos rios ou quando juntavam alguma água no inverno e pouco depois com as
construções dos açudes. Os pescadores do Rio Grande do Norte eram o indígena e o
homem caboclo que habitavam no litoral, e o escravo, quando pescava, geralmente tinha
o peixe tomado pelo patrão.
Porém, de acordo com Atala e Dória (2008), seu cultivo é tão antigo com
intercâmbio de mudas e sementes tão intenso que é impossível dar-lhe uma classificação
botânica absolutamente precisa, sendo conhecidas 98 espécies do gênero Manihot e a
esculenta é a planta domesticada que inclui todas as variedades comestíveis, que por sua
vez é muito sensível às influências ambientais, podendo uma mesma variedade
modificar-se radicalmente, conforme o ambiente em que for plantada.
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Segundo Atala e Dória (2008), o componente mais importante da raiz da
mandioca é a fécula (amido), também chamada de polvilho doce ou goma, a partir da
qual podem ser fabricados diversos produtos como: tapioca, sagu (bolinhas de fécula) e
polvilho azedo. Porém, as farinhas são a principal utilização da mandioca, tanto torrada
quanto farinha de mesa e farinha d’água.
De acordo com ela, a história dessa preparação tem início entre os anos
de 1950 e 1960, quando o seu pai, Geraldo Januário, que era marchante de peixe -
comprava os peixes da praia da Redinha para vendê-los tratados - decidiu comprar as
gingas, os filhotes de peixe, que ficavam desperdiçados na praia.
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“E começou a enfiar, minha mãe fazendo a tapioca e fritando a ginga e
colocando. Aí ‘Que é isso, D. Dalila?’ ‘Aqui é o sanduíche da ginga
com tapioca.’” D.I
“[...] ninguém, fazia nada com essa ginga, a não ser as pessoas mais
pobres que tinham aqui, que vinha pegar algumas pra levar e as outras
ficavam, enterravam e não tinha extração pra elas” D.I.
“[...] e a gente vem criando os filhos tudo com isso, trabalhando com
ginga e tapioca, porque o outro peixe demora mais a sair e a ginga
não, é direto” D.I.
Portanto, assim como Claude Fischler, nos perguntamos “Por que não
consumimos tudo o que é biologicamente comestível?” (FISCHLER, 1995a, p. 29,
tradução nossa). Diversos outros exemplos embasam essa pergunta e são expostos por
Harris (1999), como pensar na proibição do sacrifício e consumo das vacas na Índia, na
religião judia que não permite o consumo de carne de porco, ou no hábito japonês de
comer insetos, repugnado pelos ocidentais.
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apenas biologicamente comestível poderia ser de grande contribuição para os
tratamentos dietoterápicos.
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preparada? D. Ivanize relata que muitos ficam em outro boxe, mas pedem a sua ginga,
por quê? Entre as respostas, encontramos a tradição, o prato regional, o sabor e a
higiene.
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“Porque é uma tradição, certo? Uma tradição já aqui da Redinha.”
J.C.N; sexo masculino; 67 anos; aposentado.
“Eu me sinto à vontade. À vontade que é muito bom comer uma ginga
com tapioca, principalmente aqui na beira de uma praia, não é?”
A.L.S.R; sexo masculino; 46 anos; militar.
“Aqui é diferente de você comer em casa. Não sei porque, deve ser o
gosto da praia” J.A.S Sexo feminino; 43 anos; comerciante.
Pedro Nava em sua obra Baú de Ossos ilustra a batida da sua avó como
um Comfort Food, ao mesmo tempo em que cita as madeleines de Marcel Proust, um
exemplo típico desse tipo de alimento.
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nova – todos têm a sua Madeleine. Só que ninguém tinha explicado
como Proust – desarmando implacavelmente, peça por peça, a
mecânica lancinante desse processo mental. Posso comer qualquer
doce, na simplicidade do ato e de espírito imóvel. A batida, não. A
batida é viagem no tempo. Libro-me na sua forma, no seu cheiro, no
seu sabor (NAVA, 2012, p. 48).
E o regional também foi uma das temáticas encontradas após análise das
entrevistas, sendo na cozinha regional onde “apoia-se muito da nossa memória gustativa
– que é o alicerce de nossos horizontes de sabores” (ATALA; DÓRIA, 2008, p. 110).
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Por fim, encontramos o higiênico como motivação dos consumidores, às
vezes associado ao frescor, ao discurso higiênico-sanitário, em comparação aos
ambulantes que também vendem a preparação na praia. Exemplos disso, vemos nos
fragmentos de entrevistas abaixo.
“A gente se sentiu atraída pela higiene, não foi mãe? A gente viu que
o peixe estava fresco, o atendimento é muito bom... Foi isso.”
M.N.S.S. Sexo feminino; 30 anos; assistente administrativa.
“Com certeza é melhor você comer porque você sabe que é novinha, é
feita na hora, do que você comprar nos ambulantes que você não sabe
a qualidade.” C.F.L. Sexo masculino; 40 anos; funcionário público.
[...] como a cor branca (pão branco, açúcar branco, vitela branca,
decoração branca das tendas de alimentação modernas, as cozinhas-
laboratório, blusas brancas do pessoal dos supermercados, etc.), o uso
extenso do celofane e do envasado em matéria plástica. A
generalização dos procedimentos de conservação e higiene e a
obsessão bacteriológica, ao esterilizar os alimentos, parece ter
esterilizado também seus sabores; as embalagens plásticas e o
celofane instalaram nos alimentos uma “no man’s land” asséptica, que
os separa ainda mais, tanto de suas origens, como de seu consumidor
(FISCHLER, 1995b, p. 370, tradução nossa).
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esforçamo-nos positivamente por organizar o nosso meio
(DOUGLAS, 1900, p. 6-7).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Enfatizamos que não sugerimos o enaltecimento de um conhecimento
sobre o outro, mas a transdisciplinaridade, a associação da natureza, do social e do
biológico, pois pelo caráter complexo da alimentação e por ela refletir uma determinada
cultura, outras disciplinas se fazem necessárias para o seu entendimento, como a
biologia, a sociologia e a antropologia, entre tantas outras, e por isso o conhecimento
cartesiano, geralmente utilizado nos cursos de formação em Nutrição, torna-se
insuficiente para a sua abordagem. A cozinha, pensada no seu sentido mais amplo, é um
instrumento de identidade cultural, revelando muito sobre uma sociedade e até mesmo
sobre um grupo inserido nela. É um espaço imaginário composto por alimentos,
ingredientes, modos de preparo, comportamentos.
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REFERÊNCIAS
ATALA, Alex; DÓRIA, Carlos Alberto. Com unhas, dentes e cuca: Prática culinária e
papo-cabeça ao alcance de todos. 2. ed. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008.
COCK, James H. Cassava: New potential for a neglected crop. Boulder, Colo., and
London: Westview Press, 1985.
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de abril de 2010, Coluna Cidades. Disponível em:
<http://www.diariodenatal.com.br/2010/04/04/cidades3_0.php>. Acesso em: 20 de
outubro de 2011.
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ZUIN, Poliana Bruno. A importância da tradição e dos rituais na alimentação. In:
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