Você está na página 1de 436

FR4^CISC0 PYR4BD

m u n i.

CONTENDO A NOTICTA DE SÜA NAVEGAÇÃO ÁS INDIAS ORIENTAES, ILHAS


DE MALDIVA, MALUCO, E AO BRAZIL, E OS DIFFERENTES
GASOS, QUE LUE AGONTEGERAM NA MESMA VIAGEM NOS
DEZ ANNOS QUE ANDOU NESTES PAIZES I

( 1601 a 1 6 1 1 J
&OUÈ a dc««cripçâo exacta «lo» cosCames , leisi,
polícia, c g^overuo; do trato e eommereio»
n e iie s lia; do» auim ac», arvore»* frocta»* e
oatra» « iiigu larid ad e» , q u e a ll i »e encontram :

VERTIDA DO FRANGEZ EM PORTUGÜEZ


SOBRE A EDIÇÂO DE 1670,
CnO'V'f^tVa, ç, atcxesctuladia coto, o,V^ù,TO.aç. woUs,

POR

HELIODORO DA CUNHA RIVARA ■

TOMO IL
AO LEiTOU PORTüGüEZ

iais lardc ([uizeraaios u w* 1UlliU Uct


Vtageni de fiandóco eni parte as diffictiIdades typo-
praphicas de uma oflicina acanhada, e em parte o traha'iio da“tra-
ducção, e sobretudo o das Notns, que pareceo opportiiiio accrescen-
tar,° foram as causas involuntárias oesie retardamento.
Cremos porem í|ue os leitores a lodo tempo receberão com satis­
fação a pintura da sociedade portugneza na índia naíiuella epoclia,
em que os ecchos da conquista nos laziam ainda capacitar de que ca­
bia em nossas forças vedar as portas dos mares orienlaes ás na­
ções da Europa; folgarão de conhecer os usos e costumes da v i­
da soldadesca dos Portugiiczes ; o regimento e policia de sua na­
vegação, as carreiras do seu commercio, e outras muitas noticias,
que lira homem apparenieraente m Je soube colligir e relatar com
admiravel per.spicacia e tino , e que debalde se procurarão em
historiadores de mais alta nomeada.
Até os nossos consanguineos Brazileiros depararão aqui com um
retalho de apreciáveis memórias do que era a Terra de Santa Cruz
naquellas eras primitivas da sua colonisação.
Basta pois que alguém descubra nas paginas destes dons Vi
mes, que assim damos renovados, e ataviados a portugueza, alguma
cousa que em outros livros não haja achado, para nós nos haver'
inos por bem pagos dos trabalhos e vigílias que nisso pozeuios.

Nova Goa, 10 de Julho de 1862.


T-^ •■■
.“ / ,'* > > V-'-X

?V>^v;rr -

' ;■
•- ■■'-■; '>■-■. -,.,^1 ;j:>
T'- • •■ V.-; .'
; -'■ . r. ■
.V; 'i^f ii ■>
;l0i' ri:;;
, :';ri^;. '■ ;) ;
-ÍÍ’ J ■-■'• /yb’b tife'?-,
' !'■ u- ry öiiH'äi/r^i:
■ 'ti''
:-.i '; T.^
. Í
Í.Í- ■■

'i't :; y

'• , *//'

'-■' - V ” ' '-•'

l3- - ,* * ••■^ ' ■•- '. •■ .-

r-
t " ' " ■'’ i ‘. ’ ) *

'is
/ fi ■fe ;' * , '■•'

r * ■
■ *■
V Í - . / ^ ‘-.
.V5-‘

■'''•'. '■t " y ■ •'

\ly-J
^D1

SEGUNDA PARTE.

P r c a m S n ilo .

.1 jn ten d o que não é fora de proposilo dividir a minha


Viagem em duas partes; por quanto c mui conforme á
razão que depois de largos annos de trabalho, perigos, e
misérias, haja algum logar aonde o leitor attento (q u e
por certo haverá recebido sua parte de fadiga, assim pela
longura, como pela diversidade ih s successos ) possa com-
modamente 'repousar, e tomar follego. E em nenhum ou­
tro ponto podia ser melhor dividido o discurso desta Via­
gem, do que neste. 'Porque com quanto reste ainda por
fazer a maior parte da viagem, que não somente com pre­
bende 0 regresso á patria com seus variados accidentes o
encontros, mas ainda a detença em Goa, e a viagem á
Sonda, e a Maluco; todavia o que resta he a bem dizer
um brinquedo e passa-tempo, comparado com as adversida­
des, e desaventuras passadas na primeira Parte. De sorte
que depois de haver perdido toda esperança de tornar a
ver a minha patria, a chegada a Goa me resuscitou de al­
gum modo aquella esperança, e foi o começo de uma
i
Diclhor Íoríuna. Além de que dalii por diante viví sempre
entre cdirislaos, e não estive, como de antes estava, na su­
jeição dos infleis sem o exercicio de nossa santa religião..

l!
CAPÍTU LO I

C'lftcgpada a CiOa> S>e3cri£>cito d c seai iío s p iá a i, e prisde^»

S e n d o pois chegado a Goa, cidade principal do Eslado


dos Porluguezes na India, onde reside o Vicc-Rei c o A r­
cebispo, siluada cm altnra do 16 gráos da banda do polo
arclico; o capilão-mór da armada, parente do Arcehis[)o
( que então era Vice-Rei, porque o oiitro liavia morrido
cm Malaca ( a ) ) mandoii ordem ao capitão da galé, cm
que eii estava, para me tirar os ferros dos pés, e me envir­
ar cá sua presença : míis aquellc capitão lher respondeo
que eu estava tão enfermo que mc não podia mecher, e
que 0 mais conveniente era levarem-me ao hospital real.
O meu companheiro também esteava enfermo por causa
de uma úlcera procedida de uma ferida, em que a geangre-
na havia entrado á falta de curativo; de sorte que esteve
em termos de morrer.
Fom os pois levados ambos áquellc hospital por cafres,
que sao lá como entre nós os mariolas, pon[ue não se
usam lá carreias. Pozeram-nos á porta do hospital cm uns
poicues, á sombra, e ahi estivemos bem uma hora, porque
os ofticiaesdo hospital estavam jantando. Ncão podíamos tá-
cilmonte crer que alli era um hospital, porque pela apparen-
cia mais inculcava um grande pahacio; c com tudo por ci­
ma da porta estava um letreiro, que dizica=Hospital r e a l=
( a ) 0 Vice-Rei Marlim Alfonso de Castro havia morrido na em-
preza de Malaca cm 3 de Junho de 1007. Durante a sua ausên­
cia ticára governando o Arcebispo 1). F r. Aieixo de Menezes com
0 titulo de Governador, e com o mesmo titulo, e não com o de
Vice-Rei, succedeo ao defuncío, abertas as chamadas vias de sue-
cessão.
E'ta disíinccão não era todavia desconhecida de Pyrard, como se
verá no capitulo XXí adiante.
4 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

com as armas de Gastella e Porliigal, e uma esphera. f a )


Finalm eiile íizcram-nos entrar em urna grande (3ortaria,
onde ha muitas cadeiras e assentos para os doentes que
chegam; e alli esperam que o medico, cirurgião, ou boti­
cário os visite, para se saber se verdadeiramente eslam eii-
íermos, e de que enfermidade, para os levarem aos loga-
res, que lhes são destinados. A lli pois fomos visitados
com outros que lá estavam, e depois nos levaram para ci­
ma por uma longa escadaria de pedra; porque todos os
doentes ficam em cima; e só os poem em baixo quando
são muitos, 0 que acontece quando chegam as nãos de
Portugal.
Assim que nos foi destinado logar, o Padre Jesuita, di­
rector da casa, mandou que nos agazalhassem promplamen-
le, 0 que foi feito, e nos trouxcrvim dous leitos; porque
]ogo que um doente sáe do hospital, levanla-se o seu leito,
a que lá chamam esqnife, com lodo o seu apparellio. De
sorte que não ha alli mais camas feilas do que doentes.
A s nossas foram promplamente apparelhadas.
Os leitos são torneados, lacreados de lacre ou verniz
vermelho, alguns pintados a cores, e outros dourados; o
assento he formado de liga de algodão; os travesseiros são
clieios de algodão, os colchões e cobertas de panno de se­
da, ou também de algodão, pintado de toda a sorte de fi­
guras e cores. Chamam aos colchões Guldrins. Os lencóes
são de panno de algodão mui fino e branco.
V eio depois um barbeiro que nos rapou todo o cabello;
e apüz elle um servidor com agoa quente nos lavou todo o
corpo, e nos deu calções, camisa lavada, barrete, e chinel-
( a ) Duvidamos de que as Armas, a que o auclor se refere,
tossem de Castella e Portugal , por(|iie nunca se conrundiram as
duas Coroas de Castella e Portugal, ainda quando recaiam na ca-
Dera do mesmo monarcha. E o proprio auctor nota esta circuns­
tancia em outros logares. Nem n©s monumentos, que nos restam
desse tempo em Goa, ou em Portugal, se adiaiu pronuscuamcnle
unidas as Armas dos dous Reinos.
-

SEGUNDA PAUTE. 5
k s . Junto de nos poz uma biiha de barro com agua para
beber, e urn vaso de cama, iima toalha, e urn lenço de as-
'soar, qiie se mudam de tres em Ires dias. Não nos deram
logo de comer, ,porque c mister esperar a bora ordinaria.
E ’de notar que os superiores deste hospital são Porlii-
guezes,-e os servidores Ganarins de Goa, on Bramanes
christãos,'que dão de comer, e servem os doentes com
grande esmero, estando sempre Junto delles, scm ousar
desobedecer-lhes no que he razão. Estes servidores rece­
bem seu salario, e os officiaes Portuguezes andam visitan­
do de vez em quando a todos os enfermos, a ver se lhes
falta alguma cousa, ou se se obra-contra a sua saude a
-qualquer respeito.
E ’ pois este.hospital o melhor que na minha opinião-lia
no mundo, ou seja pela belleza do edifício c^suas pertenças,
porque tudo está mui bem disposto e accommodado; ou seja
pela.boa ordem c,policia que nelle se guarda, limpeza que
ahi ha, grande cuidado que se tem dos doentes, assistência
c consolação de tudo quanto se pode desejar, assim no que
toca a medicos, drogas, c remedios para restaurar a saude,
e alimentos que se oíferecem, como no que diz respeito á
consolação espiritual, que a toda a hora se pode haver.
O edifício é mui amplo, jaz á bo rd ad o rio, c ó susten­
tado pelos Reis de Portugal com vinte e cinco mil pardáos
( que valem cada um vinte e cinco soidos da nossa moeda
[ franccza J , e lá trinta e dous e meio ?), não fallando nos
donativos e.presentes que lhe fazem as pessoas qualifica­
das; 0 que é segundo o estado da terra um grande rendi­
mento para este eífeilo, visto que os viveres alli são mui
baratos, e mui bom o tratamento que nelle se dá; por quan­
to os Jesuilas, que o administram, mandam buscar até Cam-
baya e outras partes o trigo e bastecimenlo que é necessário.
E ’ como digo governado e administrado pelos Jesuitas,
que ali tem um Padre para este governo; os outros officiaes
são Portuguezes, excepto os servidores e escravos, que são
& VJAGEM DE FRANCISCO PYRARD)

Ihdios clirislaos* Este Padre Jesuita é superior, a lodos os


oificiaeS) qne são de todas as sortes como n’um grande mos­
teiro, competindo a. cada umt seu cargo.especial;, e ale o
porteiro-enlra na;conta.de official., Estes, officiaes ralham.
inuilo. com* os doentes, e os-reprehendem? quando» vêm que
fazem o que não devem; mas-os servidoresnão ousariam di­
zer-lhes- cousa» alguma. Os-escravos fazem» todo. o serviço
baixo, e pesado; e cada. dia vão por todas as camaras dos-
doentes fazer o despejo, varrer, e limpar tudo. H a.casinhas
secretas com grandes-vasos de louça, para. as necessidades-
dos doentes; e os.escravos vasam tudo isso, limpam, lavam,
e enxugam a. roupa,, e fazem outros semelhantes serviços no
interior do hospital.
Ha.medicos, cirurgiões, e boticários,.barbeiros, san gra-
dores, que se occupam só no hospital, e são obrigados a.
m visitar duas vezes^ cada. dia os enfermos. 0 . boticário é um^
dos> officiaes, e móra. no hospital; não assim o medico, nem.
0, cirurgião. A ’s vezes-é tão grande o num ero.dos enferm os,
que, quando eu lá estive, chegou, a. haver, ate mil e qui­
nhentos, tudo soldados Portuguezes; porque allhnão se ac--
ceilam os indianos, que tem um hospital apartado^que só.
para. elles serve. Ha* ainda, outro hospital para m ulheres,,
onde só estas são. admittidas.
Toda a agua que se bebe alli vem. de Bangueninu Duas-
vezes no dia os servidores trazem grandes vasos delia, de
que enchem as bilhas dos doentes, e estes bebem quanta,
querem. Cada. doente tem junto de si a sua mesa, para pór.
as cousas do seu. uso*
Os medicos, boticários, e cirurgiões-visitam^ duas vezes
por dia, os doentes; ás oito horas da manhã, e ás quatro dai
tarde; e quando entram tange-se uma sincta para advertir
a lodos; o que igualm enle se faz ás horas da. refeição. Os
mestres cirurgiões, e sangradores são assistidos de muitos
ajudantes para, applicar os unguenlos e medicamentos. N a
hora da visita vêm serventes com grandes brazeiros, onde
SEGUNDA PA RTE. 7

lançam muita copia de incenso, e outros cheiros aromalicos.


Ha noviços Jesuitas que vão pela. cidade pedir e apanhar
roupa, velha, de linho pára provimento^ de fios dO) hospital,
porque a roupa nova. não é apta. para: isto.. E'. com os cirur­
giões na. visitai vão- servidores- com, grandes cestos cheios
de fios,. Q pannos apparelhados^ para. uso dos doentes. Os
Padres- Jesuitas- tem. tomado- este hospital, a seu. cargo, o
que elles desempenham, muii dignamenle;. e se estivera a
cargo de outros,, mal poderiam. imital-os, ainda? que tivesse
dobrado, rendimento, do que agora tem.. Neste hospital ha
camaras destinadas para. cada enfermidade; e toda: a gente
que alli, vai he infalli.velmente revistada para se saber se le­
va aos doentes algum a cousa, de beber ou, de comer, dam-
nosa á sua saude.. Também, se. não entra alli com. armas,,
mas é mister, deixal-as a porta..
Quem vai ao hospital a visitar seus amigos só lã entra
desde ás oito horas da manhã até ás onze; e de tarde desde
ás tres até ás seis. Pode comer, com, elles, e quando os ser­
vidores vêm. que um: amigo» vem: visitar algum doente;, tra­
zem mais alguma* cousa alem do que ordinariamente se dá
ao doente.. Dão tanto pão quanto se pede.. Os pães são pe­
quenos;. e ás^ vezes trazem ao doente tres, ou. quatro,, não-
podendo'elle de ordVnarib.comer m a isd é um;: o que _seria
desperdicio se os pães fossem, maiores,, porque unn paõ en­
cetados não volta, segundai vez.. O pão- é mui. delicado, e
fabricado pelos padeiros da cidade por arrematação. Vinho
he cousa, de que se não falia, no hospital. Nunca se apre­
senta menos^ de meia galinha, assada, ou cosida; ou- ain­
d a uma galinha inteira; e se o doente tem necessidade do
mais,, mais se lhe dá. Não- ha alli capões. Os doentes são
assistidos e tratados com. todo. o esmero e delicadeza que
dizer-se pode. Mudam-lhe toda a roupa branca de tres
em tres dias; e é ella de algodão mui fino.
Pela manhã ás 7 horas serve-se aos doentes passas com-
pão alvo de trigo, e arroz, qne vem de Gambaya e SurralC'
8 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

( a ) ; bebem agua, e não ousarião beber vinho. A ’s dez


lioraá vem o jantar, conforme ao que o medico tem ordena­
do, e ordinariamente he galinha cozida on assada, com
doce por sobremesa. As’ cinco horas trazem a ceia. Dão-se
aos doentes excellentes caldos feitos de diversas sortes de
carnes cozidas com Bendés, que é um fructo refrigerante,
do tamanho dos nossos pepinos. Estas carnes, ou sejam de
carneiro, galinha, ou frangão, são bem temperadas com
arroz. Gomem carne todos os dias, salvo os que desejam
comer ovos, e ,peixe nos dias de abstinência; porque dá-se-
lhes 0 que elles pedem, e que não seja prohibido pelo me­
dico. Quando este vai fazer a visita, he acompanhado de
grande numero de escreventes. Prim eiram ente o boticário
‘toma 0 nome daquelles a quem deve dar alguma cousa do
seu oíTicio, e depois o que a cada um hade dar. Outro
tanto fazem o cirurgião, barbeiro, e escrivão da cosinha,
o.qual vai todos os dias ver os doentes, escreve os seus
nomes, c o que elles desejam comer; e tudo fielmenle lhes
he trazido; e não ha um só que á hora costumada não
tenha a sua ração.
Toda a louça de mesa é de porcelana da China. Depois
de jantar os officiaes Portuguezes perguntam em voz al­
ta nas camaras se todos tiveram a sua ração, e o mes­
mo fazem depois de ceia. Todos os doentes são agasalha­
dos á parte, cada,um segundo o seu mal, e até os uten­
sílios são separados segundo a sua especie em quartos a-
•parlados; e desta maneira todas as camas dos doentes es-
lam em um deposito geral enroladas; iToutro logar todos
os travesseiros, n’outro todos os colchões, cobertas, lenções,
camizas, e outras roupas do uso do hospital. Ha grande
provim ento de calções, sem o que nunca se deitam a dor­
m ir os Portuguezes da índia; e esses calções descem até
aos pés, porque todas as suas camizas são mui curtas,
(a) Dc Cambava c Surrale vinha o trigo ; o arroz vinha do
Canara e Malabar. « uv
SEGUNDA PA R TE. ^

t não passam do meio da coxa. íla também logarcs apar­


tados para as cbinellas, vasos, c bacias de diversos usos.
As camisas, calções, chapeos, sapatos, ceroulas, capas, «
roupões, que dão aos que saem curados, tudo também es­
tá em separado. De cada uma deslas cousas ha tão gran­
de copia que seria impossivel tôl-as arrumadas, se não es­
tivessem assim apartadas. O mesmo é para os viveres o
provimentos; e cada deposito tem um guarda com sua cha­
ve, que tudo lança em escripto, e dá contas ao escrivão
principal, que faz assentos de tudo, incluindo mesmo os
doentes, seu nome, e o dia que entram c sáem. lía um
thesoureiro para o dinheiro; e de tudo se dá contas ao Pa­
dre Jesuita, que as não dá a ninguém.
O escrivão faz assento de todo o ouro e prata, roupa,
fato, e outras cousas dos doentes, e esse assento se faz em
presença do Padre e dos outros oííiciaes; e de tudo se faz
um fardo com seu bilhete, e se põe em quartos á parte.
Manda-sc lavar toda a roupa suja que trazem os doentes.
Os que tem posses dão alguma cousa aos servidores, se
he da sua vontade; e de tudo se lhes dá lembrança qiian-
do sáem. De nada do que pertence aos doentes se usa no
hospital; e se o doente morre, tudo elevado á M isericórdia.
Se fez testamento, são os oínciaes desta os seus executo­
res; e se não ha testamento, guardam o espolio até haver
novas dos herdeiros, dispondo a M isericórdia de uma par­
te da roupa e fato em esmollas a outros pobres. Duas ve­
zes por dia se faz a limpeza dos doentes, assim como de
todo 0 hospital. Ha dous lesuilas que não fazem mais do que
ir alliconfessar e consolar os enfermos, e adm inislrar-llies
os sacramentos; e dão-lhes contas de resa. io d o s os dias
se diz missa no hospital; cm somma nada falta alü do que
he necessário. Os doentes estam deitados cada um n’uma
grande cama á parle, separadas umas das outras o espaço
de dous pés. A cama compõe-se de vários colchões de al-
iO VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

godão e de tafetá, uns sobre os outros, em leitos baixos,


pintados de todas as cores.
As doenças da terra mais communs são febres ardentes,
c^dysenterias; alem das moléstias venereas, que também
sao mui ordinárias, mas somente onde ha Porlugiiezes, e
não em outra parle da índia. Se os doentes morrem, c
deixaram alguma cousa na mão do Padre Jesuita, isso, e
0 seu falo é entregue aos officiaes da M isericórdia, que
é obrigada a fazerdhes um enterro honesto, ainda que o
defunto não haja, ou não lenha deixado meios para o fazer.
Se 0 doente recobra saude, como a mim me aconleceo
( graças a Deos ) , o Padre Jesuita dá uma andaina com­
pleta de vestuário a cada um dos que sáem do hospital,
se disso tem necessidade, e um pardáo, que vale trinta e
dous soidos e meio. E ainda mesmo gente mui rica pre­
fere entrar no hospital, por ahi ser melhor tratada, que
cm sua casa, como de feito é.
Todos os annos sáem deste hospital mais de mil e
quinhentos corpos mortos, e entra infinito numero de
doentes. E quando vem as náos de Portugal chega a ha­
ver nelle mais de tres mil; e o menor numero que ha é
0 de trezentos ou quatrocentos. Só os Portuguezes e chris-
taõs velhos podem alli ser adm iltidos e tratados. Verdade
c que os Judeus passam por Portuguezes, posto que sejam
chrislaõs novos. Toda a gente que lá está com os Portu-
guezes, e que vai destas partes, e lá chamam Homem bran­
co, velhos chrislaõs, são acceitos no hospital. Não assim
as mulheres, que nenhuma lá entra, nem sã, nem doente.
Os domésticos, sejam homens, m ulheres, ou crianças, não
são acceitos; nem ainda os servidores Portuguezes. Pia
para ellcs outros asylos, se são pobres. No hospital real
só se admiltim os soldados, que quer dizer homem não
casado. Porém ainda que não sejam casados, se forem
pessoas de familia, ou servidores, não são acceitos. Entram
nelle muitas vezes pessoas nobres, porque isto não é havido
SEGUxNDA PA R TE. îi

por drshonra; c estes hospitaes só foram estabelecidos nas


cidades da índia para os soldados aventureiros. A ‘s vezes
são os doentes visitados pelo Arcebispo, Vice-Rei, e fidal­
gos, que dão grandes sommas de dinheiro. E ninguém ha
que não sinta grande contentamento cm ver um logar tão
bello, onde todas as camaras são limpas e brancas como
papel; e as galerias bem pintadas com passos da historia da
sagrada escriptura.
Ha alli duas Igrejas o mais bem paramentadas e enri­
quecidas que se pode ver. A maior festa, que ncllas se
faz, é a de S. Martinho, dia da dedicação da sua Igreja,
porque foi nesse mesmo dia que o baluarte onde fabricaram
esta Igreja foi tomado aos idolatras pelos Portuguezes.
Nesse dia faz-se em Goa uma Procissão geral. ( a )
( a ) O auctfôr não estava bem iaformado da origem desta Igreja
de S. Martinho.
Se abrirmos as Décadas de Diogo do Couto, leremos na Década
Y I, Livro IV , cap. V I, onde trata do grande triumpho, cora que
0 Governador 1). João de Castro foi recebido na cidade de Goa
depois da victoria de Dio, o seguinte.
No principio do capitulo:
« = E sle v e o Governador em Pangim tres dias, porque chegou aos
<( 11 de Abril ( 1547 ) uma quarta feira, e ao Domingo seguinte,
« que foram 15 do mez, fez sua entrada. Tinha a cidade mandado
« fazer no Bazar de Santa Catharina um formoso cães, pera iielle
« desembarcar o Governador, por querer entrar por aquella par-
« te; e porque a porta do muro ali era pequena, rasgou-se-llie
« toda de alto abaixo; e cobriram-se as paredes de uma parte, c
« de outra de peças de brocados, e de veJudos de cores e lc .=
E no íim do capitulo:
((=rNaquella parte do muro, que se rompeo pera o Governador
« entrar, mandou elle logo fazer um Altar ao Bemaventurado S.
« Martiniio, ern cujo dia houve aquella grande victoria ( de Dio ),
« com um formoso retabolo de oleo, e ordenou com a cidade »que
« todos os dias daqiielle Bemaventurado Santo se fizesse uma so-
« lemne Procissão, e se dissesse Missa, e houvesse prégação em
« memória da victoria que Deos Nosso Senhor lhe dco^naqueile
« dia; » 0 que se guardou até boje, e deve de guardar sempre.
* por ser cousa memorável, e de louvor de Nosso Senhor, de cu-
« ja nuão nos vera todos os bens=
Jacinto Freire de Andrade na Vida de D. João de Castro, para-
f

î2 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

Todos OS Porluguezes e Mesliços que lem alguma do­


ença, ainda que seja secrela, se desejam curar-se e Iratar-
sc no decurso do dia naquelle hospital, quando os cirur­
giões alli eslam, são livres de o fazer, sem paga ou despe­
sa alguma. Os doentes logo que eslam curados são des­
pedidos; com tudo se algam deseja estar por mais algum
tempo, basta que diga que ainda se não sente de lodo res­
tabelecido. As febres continuas são alli curadas prompla-
phraseando iio Livro 3.® §§ 39 a 41 afjuelle capitulo de Diogo do
Couto, nada diz neste particular, talvez julgaiido-o successo menos
digno de seu estilo grandiloquo.
O nicho mandado erigir por D. João de Castro foi depois con­
vertido em Capella, a (jual íicava tão contigua e mistica ao llos-
tal Ueal que o nosso auctor a toma por parte integrante delle; e sua
amplitude era suííicientc para lhe merecer o nome de Igreja.
O Padre Francisco de Sousa escrevendo o Oriente Conquistado
nos últimos annos do século 17.° na Parte 1.* Conquista 1, Divisão 1,
§. 37, refere as festas que em Goa se íizeram pelas novas victo­
rias de D. João de Castro nas terras de Salcete contra o Idalxá ;
e entre outras cousas diz: _ .
graliíicação de tantos heneíicios se ordenou uma solemnis-
« siraa P r o c is s ã o ...........................Saliio esta pompa da nossa Igreja
« de S. Paulo, e foi parar no lugar por onde se rompeo o muro,
« quando entrou o Governador triumphante, porque tornando-se a
« fechar esta rotura, íicou da parte de dentro na grossura do mes-
« mo muro uma Capellinha do Glorioso S. Marlinho junto do
« Hospital iteal etc. ==»
Esta passagem do Padre Sousa visivelmente se refere ao nicho
primitivo na muralha, e não á Capella mais ampla, ou Igreja, que
posteriormente se fabricou, e de que nos lalla Pyrard. E conu
(liianto esta ainda devesse existir no tempo do Padre Sousa, e, se­
gundo plausi^■e]mente se pode conjecturai', sò desapparecesse com
0 Hospital no século passado, não faça todavia duvida a pouca
atlenção, que o J’adre Sousa lhe presta, porque o fio da sua narra­
tiva 0 leva a outros pontos, e neste apenas loca levemenie e por
incidente.
Na actual Capella de Santa Catharinn, ediíicada junto daquehc
mesmo logar, se conserva uma lapida, que pertenceo sem duvida ao
primitivo nicho de S. Marlinho. le m a lapiua cm relevo a íigiir«^
do Santo a cavallo, dividindo a capa com um pobre, e por baixo
este letreiro: ^ i t j-
— « Por esta porta entrou D. João de Castro, defensor da India,
4í quando iriumfou de Camhaya, e lodo este muro lhe foi derru-
SEGUNDA PA RTE. i3

niciite por meio da sangria, de que fazem uso coiilinuado,


em quanto sentem uma ponta de febre. Os índios gentios
não usam da sangria. Quanto á siphilis não é havida por
nota de infamia, nem parece mal lôl-a muitas vezes, an­
tes fazem disso gala. Curam-na sem suores, com páo de
escliíne ( raiz da china ). Esta enfermidade só a ha entre
« bacio. Era de 1547. A. = »
A Procissão continuou até ao anno de 1830, saindo da Se a-
companhada do Senado, Ueligiosos, Paroclios, e Irmandades, mas
<‘essou por se haver notado nas contas do Senado que as despesas
delia não tinham a formalidade da Itegia approvacão, ( Veja-se no
Jonial da Santa Igreja Lusitana do Oriente, n.® 1.® de 1847, a no­
ticia da visitação de S. Ex.® o Senhor Arcebispo Primaz nas Igre­
jas das ilhas de Goa, escripta pelo Rd.® Caetano João Peres. )
A outra Igreja, de que falia Pyrard, devia ser a Capella propria
do hospital. • . 1
Em l)io houve o mesmo pensamento de celebrar a victoria de
Dom João de Castro com uma Igreja dedicada a S. Martinho, como
largamente refere Antonio G il, morador daquella fortaleza, escre­
vendo a D. Alvaro de Castro a carta seguinte:
==Senhor. E u , porque Iio senhor goiiernador, e vossa merce tem
feitas tamtas merces, como ao mundo he notorio, quis amostrar per
obras os desejos que tenho de seruir o senhor gouernador e vossa
merce. Eu tirey aqiiy liõa esmola, aquy nesta fortaleza, pera fazer
iiõa igreja de Sam Martinho; c postoque ha esmola nam bsse tam-
la que habomdase pera a casa, eu há minha custa ha acabey,
porque mc parece muita mais rezam, que pois os casados desta
terra (izeram Samtiago em memória da gerra, que haquy teue Am-
tonio da Silueira; de muito mayor calidade foy a que ho senhor go­
uernador fez, e vossa merce, e dina que nesta terra, honde o sen­
hor deos fez tamta merce, fique memória pera sempre:^ pola quoaí
rezam eu fiz esta ca.sa, que hora íiqua feita, e he luia das tres-
quas casas, que se fizeram nesta terra, e sobelaporta lhe mandey
pôr hõa campam, e no meyo dela posta as armas do senhor go­
uernador, cercado com hum letereyro que diz« Esta casa se fez em
lomtor de noso senhor e do bemavemturado Samartinho, porque
em seu dia desbaratou o gouernador dom. doam de Crastro todo o
poder dellrey de Cambaya, que tinha cercado esta fortaleza, e no
mesmo dia jer forca darnias lhe tomou a sua nobre cidade e
ilha de Dio. 1546 »* E sobre esta pedra mandey^ pôr hua cruz
muito fermosa de páo, com dous padrões, cada hu era sua bam-
da em riba de cada hu mandey pôr hum pelouro de hazalisquo dos
mouros o grande, que peza cemto e oito arraies cada hum. pera-
que saibam os que vierem a esta terra, que ha gente com que o
VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

OS chrislaõs, e a receiam menos que a febre ou dyscn-


leria. Reina alli outra doença que vem subitamente, e lhe
chamam Mordechi] a qual vêm acompanhada de grande dor
de cabeça, e vomitos; os doentes gritam muito, e a maior
parte das vezes morrem. E ’ lambem aquella gente mui su-
geita aos envenenamentos e feitiços, de que vem a morrer
extenuados. A ’ chegada das náos de Portugal, o maior nu­
mero de enfermidades é de escorbuto, e úlceras nos pés
e nas pernas. Quando algum doente lem tomado laxante,
senlior gouernaclor pelejou, que herani omüs, que pelejauam com
esta arlelharia, e de hum dos pelouros do quoaitao mandey fazer
liua pia dagoa hemta, e ho mamdey pôr demlro na irmida eni hum
piar muito louçam, onde está; e jiorque nesta irmida eu cayo em
escumiinham, se aleuamtar altar, heijarei as mãos de uosa merce
mandar hum recado ao padre, que íicoii em lugar do hispo em Guoa,
pera que dô licença pera se ay dizer misa, porque doutra maneira
nara se fará senam cora se niso gastar dinheiro, que será mellior
pera algos hornamentos da casa, quoando ome puder aver. E pos-
toque vosa merce nesta terra tenha muitos seruidores, eu nam dei-
xarey nunqua de fazer lembrança a uosa merce de como sou seu,
peraque se desta terra mandar algo serviço, de me fazer Iara asy-
nalada merce de se querer pera yso alemhrar de mym. O senhor
deos acrecemte os dias de uyda ao senhor gouernador e a uosa
merce per longos annos. De Dio oje des dias do mez de Janeyro
de 1548 annos « Amtouio Gil »
( No sobrescrilo ) Ao senhor o senhor dom Aluaro de Crastro ca-
])iiam mor do mar da índia, meu senhor« damtouio gil » =
Esta carta forma o Documento n.® 41 dos que o Bispo Conde
D. F r. Francisco de S. Luiz additou á Vida de I). João de Cas­
tro na edição da Academia Real das sciencias, Lisboa, 1835. O
letreiro pozeino-lo aqui, não exaclamente como se acha no documen­
to referido, mas como ( salvas as abreviaturas ) o lemos no anno
de 1859 na propria lapida, que ainda agora se conserva sobre a
porta de outra capellinha niais moderna, e já profanada, que ser­
ve de corpo de guarda da porta da fortaleza de Dio. Os pelouros,
e a pia de agua benta, de que falia a carta, não existem na nova
Caoella.
Por ultimo observaremos, em quanto ao texto do auctor, que a
cidade de Goa não foi tomada pelos Portugnezes aos idolatras ,
mas aos mouros, ou musulmanos, que eram os senhores da terra.
0.< idolatras, ou gentios, parte ajudaram á empresa, e os outros
so mudaram de dominante. Provavelmente o auctor applicava o
nome de idolatras a todos os iníieis do oriente.
SEGUNDA PAUTE. Í5
ou eslá fraco, ha servidores que lhe assistem para o le­
vantar e mover. Estes servidores são indios christaõs mui
limpos e aceiados, mui compassivos e carinhosos; porque
se algum fosse áspero para com os doentes, seria logo ex­
pulso da casa. O systema de medicina que alli se usa é o
mesmo que em ílespanha. E ’ grande honra ser medico
deste hospital, e ordinariamente o ó o do Vice-Rei, que vem
de Portugal. O Padre Jesuila que tem a superintendência
da casa está nclla em quanto apraz á Companhia, e o ju l­
gam capaz; serve por dons ou très annos pouco mais ou
m enos. São os mesmos Jesuilas que enviam alii e mudam
íVequentemenle os Padres espiriluaes; mas o Padre Supe­
rior do Hospital tem ao mesmo tempo a administração
temporal c espiritual, c governa sobre todos.
Quanto ao edifício ó elle grande e amplo, com muitas
galerias, porticos, e jardins de boas ruas, onde os conva­
lescentes vão tomar ar; porque os mudam de logar logo
que entram em convalescença, e ficam todos em separado
dos doentes. Em todo o hospital ha de noute luzes de lan­
ternas e velas, mas usam mais de lanternas, porque as ve­
las são de cera. As lanternas são feitas de cascas de ostras
de que alli se servem em vez de vidraças nas igrejas e
casas de Goa. No meio deste hospital ha um bello e gran­
de pateo calçado, e nelle um grande poço onde ás vezes os
doentes vão tomar banho.
Os Portuguezes ou Mestiços de boas familias quando es-
tam doentes, e padecem necessidades, são tratados em suas
casas pela Misericórdia. Ha outros hospitnes para os po­
bres da cidade, onde só são recebidos os indios christaõs.
Na cidade ha mais dous hospitaes, um para mulheres, e
outro para homens; mas ambos fazem um só, sendo somen­
te separados em quanto aos sexos.
Os Portuguezes ou Mestiços pobres nunca vão mendi­
gar, mas enviam memoriaes ás pessoas ricas; e as mulheres
vão em palanquim ao palacio do Vice-Rei, do Arcebispo
i6 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

OU dos fidalgos principaes, e fazem apresentar os seus re­


querimentos e memoriaes.
Lm somrna, seria impossível dizer Iodas as outras par-
licularidades do interior, e a boa ordem e policia que se
guarda neste admiravel hospital. Até se alguém tem por
costume purgar-se ou sangrar-se todos os annos, ainda que
nao esteja doente, vai alli, e será recebido durante o tem­
po de sua purgação. Mas tornando ao meu companheiro
e a mim, depois que fomos levados e recolhidos no hospi­
tal, ao seguinte dia o capitão-mór da armada mandou tam­
bém para alli ao outro nosso companheiro, posto que to­
da a sua doença não passava de fadiga, não julgando con­
veniente metel-o na prisão só. Fomos entregues todos tres
tio Padre Jesuita, com prohibição de nos deixar sair sem
dar primeiramente conta ao capitão-mór. O Padre não ou­
sou declarar-nos que nós estavamos presos sob sua guar­
da, receioso de nos m ago ar, e nos consolava em tudo
quanto podia, dando-nos o mesmo tratamento que aos
mais principaes Portuguezes; se bem que não pareceria
bem tratar a uns melhor que a outros, porque a regra é
serem todos tratados por igual e sem preferencia, assim no
(|ue toca aos alimentos, como aos medicamentos, e outras
cousas, sendo alli cada um servido no logar que lhe cabe
sem diffeiença de grandes a pequenos. Como nos vimos
tão bem tratados, julgavamos estar já em liberdade; de sor­
te que passados vinte dias, começando eu a sentir-me me­
lhor, adverti ao Padre, dizendo que como eu, graças a Deos,
ia melhor, desejava sair com um dos meus companheiros!
Mas 0 Padre nos perguntou que pressa Unhamos, e disse
que esperássemos que o outro nosso companheiro fosse cu­ f
rado; 0 que na verdade botava lonje, porque esteve mais
de tres mezes antes que se restabelecesse. Nós porem não
entendiamos a causa porque o Padre nos fallava assim, e
eia que queiia dar antecipadamente conta a quem nos
havia posto em suas maõs; e ainda porque sabia bem que
SEGUNBA P A R T E. i7

Stiindo dulli nos niio SGriurnos tiio bem Iriitsdob, por isbo
ia sempre dilatando a nossa saida apesar de nossas ins­
tancias. filhas do desejo que tínhamos dc ver aquella hel-
la cidade, de que ouvíramos contar tantas grandesas. Ten­
do elle pois dado conta ao capitão-mór, no fim de^cinco
ou seis dias chegaram dous Meirinhos com seus Peões, e o
Padre Jesuíta veio a nós, e nos disse: Meus irmãos, levan-
lai-vos; e pois que tendes tão grande desejo de sair desta
casa, podeis fazel-o.; acompanhai-me. E nós mui alegres o
seguim os, e elle deu a cada um dos dous ( porque o outro
ficava ainda mui enfermo ) ceroulas, gibões, capas, sapa­
tos, chapéo, duas camisas, dous calções novos ( elles não
usam meias, porque as ceroulas chegam até aos pós ) coni
uma moeda de pcirdáo, que vale lá trinta soldos e meio,
que fazem vinte e cinco soldos de França. Deu-nos também
de almoçar, posto que o não queríamos pela pressa que
linham os de sair. Por fim tendo-nos lançado a sua benção,
despedimo-nos delle, agradecendo-lhe todo o bem que nos
havia feito. Parecia-me que o Padre tinha dó de nós, porque
nos consolava quanto podia.
Quando porém descemos a escada principal topámos com
03 dous Meirinhos que tinham o mandado na mão, arma­
dos de halabardas e partazanas, os quaes tomaram logo
posse de nós, e nos levaram comsigo tratando-nos mui as­
peramente. 0 modo de levar os presos é ir diante o M ei­
rinho com a sua vara, e detraz os Peoês, que seguram as
duas pontas da corda com que o preso vai amarrado. Pen­
sai at^ora o nosso espanto quamio apoz uma tão curta a-
legria'^ nos vimos entre as rnaõs dos diabos destes cafres
mais negros que carvão. Eis como sahi deste hospital, a-
onde ainda de outra vez estive doenle por espaço do quinze
dias, e aonde entrei outras muitas a visitar o meu com­
panheiro, e outros meus amigos, E por isso quiz referir
particularmente o que alli vi e conheci, sendo eu persua­
dido que não ha outro tal em todo o resto do mundo.
Em todas as mais cidades dos Poríuguezes ba semeüiaii-
a
ITU

18 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

tes hospitaes á proporção, e se isso não fora, padeceriam


infinito aquelles pobres Portuguezes, visto o grande num é­
ro déliés naquellas partes, seus poucos meios, e as grandes
doenças e enfermidades a que eslam su<^eitos.
I^omos pois assim levados á prisão, a que chamam Sala,
c não sem causa, porque é o Jogar o mais sujo e sordido
que ha no mundo, segundo o meu parecer ( a ). Ha qua­
tro prisões geraes em Goa afora outras particulares. A
1 . é a da Santa Inquisição; a 2 .* a do Arcebispo, próxi­
ma á sua residência; a 3 .^ o Tronquo, que é junto ao pa-
lacio do Vice-Rei, a maior e principal de todas; tem vasto
alojamento para toda a sorte de presos. Ha nella todos os
m ezes uma audiência geral, a que a maior parte das vezes
assiste 0 Vice-Rei. He como entre nós a Conciergerie. A 4.*
é aquella aonde fomos levados, e serve como de auxiliar
da antecedente ( b ). Estas prisões de Goa não são tão
cruéis como as de Cochim. A Inquisição e a justiça eccie*
siastica são cousas separadas. Esta pertence ao Arcebispo,
que tem poder sobre todo o Clero. Os Jesuitas andam coni
elle em letigio ha longo tempo na Corte de Roma, porque
não querem sobre si outro superior mais que o Papa e o
seu Gerai. Os juizes e ofíiciaes da Inquisição são juizes pri­
vativos. Todavia o Arcebispo não deixa de ter muito po-
( a ) Não foi possível traduzir este periodo de modo que con­
servasse a força do original. O auctor escreve=iVoKv fusmes donc
amst menez en la Prison, qu’ ils appellent la S A L L E , et non sans
cause, car c’ est le lieu le plus ord et salle qui soit ms monde
comme je croy^E’ sabido que a palavra franceza Sale, que significa
SUJO, tmmundo, tern o mesmo som que Sale, ou Salle, que s ig n if ic a
Saia.
( b ) Cada uma destas prisões tinha seu nome especial:
ks da Iriíjuisição chamavam-se Cárceres.
As do Bispo ou Arcebispo Aljuhe.
A prisão civil chamava-se autigamenle Tronco ou Tronqua.
A prisão da ribeira, onde o auctor foi levado, chamava-se vul­
garmente Sala dos bragas, isto lie, sala ou grande prisão dos cou-
dcíiinãdos ás galés, ou a trabalhos pubiicos, ouc trazoin no Dé a
argoila de ferro, cliamada braga ou caleeta. pe a

L
SEGUNDA PARTE. 19

der na Inf|uisição, mas não toma conhecimento dos nego-


e io q u e a ella tocam; porque os inquisidores tem o seu car­
go d’El-Rei; mas se íizerem o que não devem, é o Arce­
bispo que lhes toma conta do seu procedimento.
A prisão aonde nos levaram é na cidade, proximo do
rio, e chama-se a prisão do Vedor da Fazenda, o qual tem
a sua casa de morada fóra da cidade também junto ao rio.
O Meirinho da prisão, ou carcereiro nos assentou no seu
papel á ordem do Ouvidor do crime, O carcereiro e sua
mulher eram Mestiços. O carcereiro tendo-nos perguntado
quem nós éramos, e sahido que éramos Francezes e catho-
Heos, disse-nos que não estivessemos tristes, e que nos não
deixaria na Sala com os outros. Esta Sala é onde todos os
escravos das galés, e outra gente vil estam juntos, as ve­
zes duzentos e trezentos, com grande infecção. Não levam
para alli os crim inosos, salvo se é para depois os levar ao
Tronquo ( a ). Está no alvedrio do Meirinho da prisão, ou
carcereiro metter toda a gente indifferenteinente nesta Sa­
la; c as pessoas de qualidade dão dinheiro para ficarem em
outros logares apartados, que são dous, um para os gen­
tios e mouros, e outro para os christaõs. O carcereiro não
faz este favor senão por dinheiro, salvo aos estrangeiros
como nós, que fomos por elie tratados com muita cortezia
e liberdade, a não ser que tinhamos de dorm ir de envolta
com a chusma de escravos, e condem nados ás galés, que
Irasiam ferros aos pes. Havia na Sala lanternas accesas, e
(ic uma banda eslava o aposento do meirinho ou carcerei­
ro, e da outra banda junto da porta da saida eslava o filho
delle com seus servidores e escravos de vigia, poique a
prisão não é forte. Havia dous sinos nestes dous extiemoo
mra por elles se saber se algum dormia, porque quando
0 pai tangia o sino, o filho lhe respondia com outias tan-
( a ) Parece que o auctor quer dizer que não levam para alli
ôs criminosos em processo; porque os scnteuciados a galés ou tra­
balhos pertenciam a esta Sala.
20 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

las badaladas. De todos estes forçados se fazem duas es>


quadras para se revesarem na vigilância nocturna, e se
guardarem a si proprios; e toda a noute nâo fazem outra
cousa mais que bradar e responder a dous e dous. O pri-
m eiio biada o mais alio que pode, vigia, vigia, e os que
estam nessa hora de senlinella, que são até dez, lhe respon­
dem urn apoz outro; e se tardassem urn pouco, os escravos
da piisao yirião logo bater-lhe. De sorte que fazem Ioda a
noute a inaior algazarra do mundo, o que junto com o gran­
de calor impede tomar o minimo repouso. A ’ s nove horas
da noute cantam por espaço de uma hora em voz alta em
Portuguez toda a sua resa e orações. A mulher e as fiihas
do carcereiro nos tratavam com muitos mimos, e nos da­
vam de comer e de beber sem que ellc o soubesse.
Os presos são ajudados das esmolas de algumas pessoas
de qualidade; e o s oíBciaes ou Irmãos da M isericórdia vão
visitai uma vez cada mez a todos os presos.* e os pobres
que estam no seu rol, assim como as viuvas e orfaõs, são
sustentados á custa desta Confraria. Aos christaõs velhos
.dão esmola grossa, e aos novos christaõs, ou indios peque­
na. O Pai dos christaõs, que é um Padre Jesuita, também
vem a visitar os presos; e dar-lhe esmola, mas não é todos
os dias. O regimento d’El-Rei de Portugal é sustentar to­
dos os prisioneiros de guerra, e estrangeiros; mas os olii-
ciaes divertem o dinheiro destinado a isto. Dá-se seis par-
dáüs por mez a cada preso, como os soldados tem de sol­
do, 0 que monta a quasi nove libras e quinze soidos da
nossa moeda ( franceza ); e chega para mais do que aqur
dez escudos. Fizemos a nossa petição para nos darem o
que El-Rey mandava dar; e foi dirigida por mão do Mei-
rinlio da Sala, (jue a apresentou ao Vedor da Fazenda, e
este a despachou; mas tudo isto consom e excessivo tempo,
pelo grande numero de officiaes por cujas maõs deve pas­
sar; de sorte que não pudemos haver o nosso dinheiro se­
não seis dias antes de sairmos da prisão; e com medo
que nol-o furtassem démos-lo a guardar á m ulher do car-
SEGUNDA PA R TE.

■ ^p(*íro, fazendo com ella concerto de uma íanga por dia


para nos dar de comer a mim o a meu companheiro. Uma
txinga vale lá o.ilo soidos, e acjui cinco. Tratava-nos cila
muito !>em; mas rpiiz a nossa desgraça que .sendo postos
em lii>erdade passados cinco ou seis dias., como nós lhe
pedimos o resto de nosso dinheiro, rcspondco-nos qiic so
0 qiuuiâmos, o fossemos comer c beber Já dcníro; mas o
Vedor da--'Fazenda^ sobre uma simples queixa que Ibc íi-
zemos, n.Gs níandou restituir ludo, c sem embargo disso-
perdemos ,ainda uma boa parte que lá ficou.
Acertou porém de se achar alli iim capitão casteliiario,
único que lá vi, que leve dó de nos, e do mal que se nos
jfazia, de sorle que nos disse que nos compensaria da nos­
sa penda, e em sua casa nos daria o dinheiro, que falta-
\a na conta. Declarou que era Hespanbol. e não Porluguez,
e se chamava Don P^ãro Regressou a Portugal
um anno depois. Passado porem um mez depois do (pic- a-
ciina .digo, um cafre, escravo de um sugeilo com que a-
quejle capitão havia lido uma disputa, deu-lho por detrax.
uma grande pancada de bamhú na cabeça; mas ellc sem sc.
perturbar, nem perder tempo, puxou do seu punhal, matou
0 cafre, e logo se recolheo a uma igreja;- pelo que foi per­
doado no fim ,de duas horas. Mas por isto, e ainda mais
porque os lle.s pan hues não são alli mui bem acceitos, vio-
s,« obrigado a voltar para Ilespanha.'
O modo como salmos daqn-isão foi este. Depois do alli-
eslannos quasi urn mez, veio á prisão aqiielle Pai dos chris-
taõ s, J.e.suila, chamado Gaspar ( a \ A 'C o m p a ­
nhia de Jesus tem encarregado este Padre dc soüicitar o li­
vramento c lilierdade dos presos ciirislaõs; e para esse fiin
vem visitar muitas vezes os presos, para saber se ha aiii
alguns christaõs, ou que se queiram fazer christaos, e sol-
licitar logo do Vice-Rei, da justiça, ou das parles o quo
( a ) O au.ctor diz Gaspurd Alcuumd. Não sabemos se havciá c-
xactidão no nome.
6
T

ç>a
"?IAGEM DE FRANCISCO P1tT\AR1>

cunnpre a seu livramento. Tendo pois eslc Padre vindo i


prisão, e pelas perguntas qiie me fez reconhecido que eu
eia clirislao e francez, disse-ine que tivesse paciência, &
que iirevemente seria posto cm liberdade, e advertindo-me
que lja\iaalli um Padre Jesuila^ também francez, da cida-
<le de liouen, chamado Lstcvão dci Cvuz, que eslava no
(^qllegio -de São Paulo de Goa, ao quai Padre escrevi, e elle
^Gio procurar-rne no seguinte dia. Alegrou-se de me ver,
consoiou-mc, fâvopceo-me com algum dinheiro, e nie disse
que se empenharia com o seu Superior para que fallasse
ao \ ice-Rei a favor da minha lilicrdade, eomo se eu fosse
seu proprio irmão.
Kslc Padre apresentou a sua supplica ao Vice-Rei, qug
de nenhuma sorte queria vir cm dar um despacho favorá­
vel, o a principio roínpeo cm grandes ameaças dizendo
que eu incorrera em pena de morte por liaver ido áqucllas
pai Ics contia os decretos do seu Rei, e contra os capitu­
les da paz feita entre os Reis de França e ílcspanha; que
nao jíodia pdr-me cm liherdade, mas (juc me enviaria preso
.a lil-liei dc ílcspanha para mandar de mim o que fosse
SLivido^. i orem o boni la d re Jesnila usou de tanta impor-
lüiihiadi' por espaço de um mez, que a íinal fui posto em
li.jLiüâüc, c no ciilielanto uao cessava de vir a Nisi(ar-nic
lo lo.s os dias, c íuc assistia com tudo o que cu luivia mistíU'.
1)< j)üjs que saímos da prisao lamos comer c belier com
os Suidados, ora aqui ora alli, a caza dos fidalgos, de sorte
<|nc nos não custava nada o sustento, [lonjuc eslavamos
iio rol dos soldados. Estivo pois cm Goa com os Portimuc-
zes por espaço de dons aniios, recebendo paga de soldado,
e indo a varias partes ern suas expcdiç,o(>s, tanto ao lomm
<la costa do norte até Dio e (iarnhava, onde estiví' e me de-
niorei. como alé ao cabo Gumorim, e ainda até ã ilha de
Leilão.
]\ias aales do passar á dcscripoão de Goa. direi ainda
aigiiiiia coiisa de suas [irisõoá. ’Iodas olias são subailcriias
seg u xd a tarte.
23
lío Tf o/íco, que e a niaior. Por isso quando cslavannos ua
que disse, foram alli levados prisioneiros Árabes, todos bo-
iiiens bravos, liein dispostos, c de i.oa prescnfa, (pie liaviain
ficado escravos do El-Rei de PoMngal. E o caso foi assim.
> indo de Lisboa para Goa um galeão topou com o navio
em que cllcs iao a ÍMimalra com muilas riquezas cm ouro e
oulias mercadorias; o capilão do galeão inveslio o navio c
tomou-o; e passando estes Árabes ao galeão lançou no na­
vio alguns Portuguezes para em sua conserva o^ levarem a
ima. Mas os Árabes do navio Icvaniaram-se contra os Por-
tüguczes, e os levaram prisioneiros com o navio, dc <orlc
que escreveram a Goa para serem resgatados por troca com
os Árabes que lá estavam também captivos, como ‘ío fez Is­
to mostra (jue quando se faz uma preza ó mister entreeal-a
a homens de valor e discrição para a levarem a bom recado.

CAPÍTLLO lí.

Be«cripçrto dn m m d« e dc n< un lialnfanlc«. e


d oin i im d o 1 *o ,

r . - ■
1 loa^ c uma ilha que dependia anligamenlc do reino do
iJealcao ou Docan [ a ); tem do circuito (|uasi oito íciroas.
e tia irdla set (3 fortalezas que guardam os passos. V: cerra­
da de um no que vem do duo reino do Deaicão, c vai ca-
ir no mar a duas legoas da citlade, jiassaiulo pelo pc delia.
Aa emnocadiira deste rio ba duas fortalezas, uma de ca­
da banda, para impedir a entrada ao? navios inimi.m^
nia íegoa acima da entrada do rio ba a fortaleza e"" passo
oe J arif/ua, na mesma dha. e na fortaleza está um nipiíão
c governador posto pelo Vice-Rei, que manda alli ab.soíu-
bur^ íc;^ c e mister que Iodos os navios e embarcações
^ Lw a pai-occ-nos comipçuo tic Idnlcão, cüarun.liiido-^c
€ HO tia icrra com u mesimi tçrnu
24 TIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

quaesquerque scjam, venham alii á falla, e toraem passt,


assim na enlrada como na saida. 0 Capitão mauda visitar
a embarcação, e faz pagar urn .certo direito; .e é impossí­
vel passar, ou de dia ou de noute, sem seu conhecimento,
porque a passagem é mui estreita e próxima da fortaleza,
e ha nesla boa guarda.
Nesta ilha os"^ Porluguezes tem fabricado uma mui bella
cidade do mesmo nome da ilha, çhamad.a Goa ( a ), que
tem quasi Icgoa e meia de circuito, não contando os arra­
baldes, e encerra quaritidade de fortalezas, igrejas, e casas
fabricadas a modo de Europa, de mui boa pedra, e cober­
tas dc telhas. Ha quasi cento e dez annos que os Por.tu-
guezes se senhorearam desta ilha de Go.a; e mui ias vezes
me espantei de como em tão poucos annos os Porluguezes
lem podido levantar tantos e tão soberbos edcficios de i-
grejas, mosteiros, palacios, forlale.zas, e outros ao modo da
Europa; e outrosim da boa o rd e m , regimento, e policia
que tem estabelecido, e do poder que ahi íem adquirido,
pois tudo alli SC guarda e observa como se fora na própria
Lisboa. Esta cida^de é a Mclropole de ledo o Estado dos
Porínguezes nas índias, e a que lhe dá tanto poder, rique­
zas, c celebridade. Tem nella o Yice-Rei a sua residência,
e é tratado com uma corte como se fora o mesmo Rei. A-
poz elle vem o Arcebispo para o espiritual; segue-se o tri­
bunal da Relação, e Inquisição; e alem do Arcebispo ha a-
inda um Bispe particular ( b ), de sorte que desta cidade
releva toda a religião e justiça das índias, e todas as Ordens
religiosas tem aqui os seus superiores. Todos os embarques,
quer seja de coiisas de guerra, quer de trato e commercio
por conta do rei de Hespanha, é aqui que se fazem. O bis-

( a ) O nome da ilha é Tissuary; mas commumente (hama-se


fjoa, do nome da cidade; acontecendo o Inverso do (jue diz o auc-
toi ; poifiue e a illia (ju^ toma o nome da cidade, e nã o a cida^
dc (ia ilha.
[ \)) E r a 0 B i s p o titu lar , c o a d j u t o r d o A r e e b i s p o ,
SEGUNDA PA RTE. 2D

pado de Goa ( a ) chega ate Moçamhiqno; o de Cocliim para


0 norle vai até perto de Barcelor e Malaca ( h ); o de Ma-
laca, e o de Macáo na China, <|iie todos são suílraganeos do
Arcebispo de Goa.
Quanto á multidão de povo ó maravillia o grande nume­
ro f|ue ahi vai e vem todos os dias por mar e terra a tra­
tar. toda a casta dc ncgocios. Os reis da índia que tem pax
c amizade couros PòrluguezeS; quasi todos alü tem embai­
xadores ordinários, c muitas vezes ealraordinaiios, que vão
e vem para entreter a paz, e outro lauto fazem os Portu-
giiezes da sua parle. E no que loca aos mercadores (jue
conlinuadamenle vão- c vem das partes do oriente, parece
que e todos os dias uma feira de toda a soi'te dè fazendas
que são-objecto d c mercancia; porque mesmo daquelles
reinos e terras, que não estani de paz com. os- Pòrtuguezes,
não deixam de vir a Goa as mercadorias e fazendas por
rneio de outros mercadores amigos (jue as lá vão coniprar.
E ainda por mui inimiga que alguma gente da Índia seja
dos Pòrtuguezes, se delles (|uizcsse tomar passaporte e se­
guro, poderia vir livremente a suas lena\^; mas de ordiná­
rio não se (pierem abaixar, e prefereimir a outras parles.
Toda a ilha. de Goa é muito monlatihosa e arenosa; a
terra é vermelha como bolo armênio, e fabrica-se delia mui
bella louça, e vasos mui delicados e l)ouitos como de terra
üiylllada. Acha-se ainda outro barro muito mais fino e de­
licado, atirando, aminzeiUo. de que tarn!)eai se fazem vasos,
e são tão linos como vidro. A ilha não c mnilo fértil, não
porque 0 terreno seja mão, mas por respeito das monta-
nbas; por quanto nas terras baixas e valles mais húmidos se-
meam arroz c milho, que dá duas vezes uo anno. A terra
está aili sempre verdejanle, como em todas as outras ilhas

( a ) Aliás arcebispado. Ye-se que o auctor usou da palavra


bispado por diocesp.
( b ) A q u i íallaiii i i i f a lli v e ln j c n le p a la v r a s no o r i g i n a l . O auc-t
to r d e v i a e s c r e v e r = e p a ra o sul a l c M a l u c a * =

i
VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

O paizes (pic jazcm entre (5s dons tropicos, .onde as .arvores


e ervas esiam sein'prc vii^osus.
lia g.rnnde lumiero de palnuires. o>u horias, d e 'Coquei­
ros pianladcs mui iiaslos, mas s 6 sc dâo nos lo.gares Im-
inidos e kiixos. i')a(|ui vem o maior l'endimcnlo dos Por-
ingiiczes de Goa. Cercam-nos de miiros, XaLricam alli al-
giiMia caza. e Lumi jardim, para Nies servir de reGre-io c a
sua familia. <!Mcanam a agua por enlr-e as arvores, e onde
islo nâ ) podi'-ser, l(i)mam o grande Irahallio de os fazer ro­
gar a l)ra(‘0-. Arrendam estas dorlas aos -rjanaidns de-Goa
que as cnHivam. e tii'am délias o seu sustento, sen-do o
SCI! maior ’incro & vinho que fazem das palmeiras, que tem
grande consumo. Os Porlügnezes só conservam por sua
coula algumas deslas hoi tas -pai*a son diveii;imeulo, e i’a zem
iiclias iuui (mas ruas, o caraimvcdiôes, C(mu fontes e grutas.
.\ ilha seria cm si m.uito boa. mas seu do nmi cheia de
allas monlanlias, diï gniude numero de f)Ovo, c imii pe(p4.e-
na, acham-na esleril. Os hahitaulKîs mais querem tralmfhar
c tratar nor mar e tfri'a, do (piîc ocGMpai’-se na ciia(;ào de
anima(‘s, mesmo 'porque a dha é mui ciieia de cazas e ha-
])ila(;ôes. De sorte ip-ie a iiha de Goa produz mui {muco
de si propria, c todavia tudo alli ò barato,
Gsla li lia é formada por um bello <e largo rio que a ro­
deia, c ainda vai formar outras ilhas povoadas ile gente
Tuatural e de Portugnezes. E ’ este rir> assaz profundo, nras
os grandes navios, náos, c galeões d(í Portugal (jiiando cho-
gam, ficam na endKicadura, a f{ue clitunam /zarm, o <aili são
íor(;ados a deier-sc, ainda quando ella não está fechada, c
depois de descarregaiios são levados até defronte da cidade,
<|uo (ils-ta mais dc duas legoos.
A ’ entrada desía barra (mide os navios estam surtos, ou
para sair, on para entrar, ha, como já disse, duas fortalezas,
que foram feitas covilra os llollandezes e outros estrangei­
ros. para os impedir de entrar e surgir neste rio, como os
líolíaiidczcs por vezes tem feito cairaado, quciinaado, q
SEG'üNBA PAUTE. 27
lançanílo a pique grande copia de navios ((ne alii estavam;
e alé liverain a ImiTa cerrada por doz oi; do/.e dias, de sor­
te ([ne nâo podia entrar um só balei ^cm Goa, e elles toma­
vam cm iterra agua e redrescos.
Vj grande infelicidade para os navcganlos cbegaiaMn um
pouco larde aos portos formados destes rios e barras,
porque as acham fechadas, como esta de Cna, a de Coclmu,
e a imvior parle das outras ebi imlia. durante o invenio; de
sorte ({uc ('* m-isler íica!’ cnlão á imu’cf) de todas as inju-
lias do tempo, c dos inimigos, ([ue onlinariamenle alii vem
tomar os navios; por({ue depois que a l»ai ra he -assim fe­
chada C'Cntupida de areia, não pode nella entrar nem sa­
ir um s<j batei, -e é pi’cciso esperar. Donde antes de sairem
de {juahjncr porto é mister 'delerminar-se no (jue liao do
fazer,'C e melhor é invernar nesse mesmo porto. Assim os
Portuguezes tem fabricado estas duas fortalezas ['ara guar­
dar a sua l)arra, dar segurança a seus navios, c ininodir
que os inimigos se aproximem, e venham lazer aguada.
Ivntrando pois neste no a mão es-iiucrda íica a ti'i ia de
Bardez, que pertence aos Pe.rlngne7.es. e ba alii uma mui
boa fonte dc que os navios se provêm de agua: e e (’Sle si­
tio assaz baixo, c parece de longe como aieia branca. vOs
Portuguezes ihc chamam Ayuada. c Iciu alii uma das (iitas
íortalezas, mui boa, c bem guarnecida de ai lei l iana. A ter­
ra (Ic Bardez é alta e montanhosa, tVonleiia a cidade dc
Goa. corre pela banda do norte, e dessa mesma banda está
a fortaleza. A outia fortaleza liea. n um alio lormado por
um cabo da dita ilha, c id uma ponta de rocha muito al­
ta; ó fronteira á piimeira. Neste alto ha um hom (‘onvenio
dc Cajuichos, chamado de ISussa Seithora do (.obo. liem la-
bricado; c a elle vai 0 Arcebispo passar.as V('.zes einco e
seis dias para recreio, festas lortah'zas nio mui iieci'ssaiias
para guardar a entrada do rio, e ivquclla fonte da Aguada,
mas todavia não podem lotalrnentc impedir (iu.e 0 immigo
surja na barra; 0 que se acoiilccer, embargaja a cnliada
1/

28 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

aos navios portiiguezes, e os incommodará muito, mas naO


laiilo como antes dc as ditas fortalezas serem fabricadas.
lia neste rio grande copia de estacadas que deixam so­
mente certas entradas aos navios nos logares onde é mais
liindo; porque em todo elíe ha quantidade de baixos desde
a barra, alé á cidade, de sorte que com, estas estacas é diííi-
ciai entrar c sair, salvo passando^encostado á fortaleza de
Panrjim, onde a agua é mais funda. Está esta, fortaleza
quasi a meio caminho, da barra á cidade, de sorte que é
mui importante, e o capitão que alli está manda, logo visi-
lar os. navios para ver os despachos, e saber que mercado­
rias trazem; e aqui tem os navios de receber novo despa­
cho, pagando certo direito. Todos os outros despachos de
Goa nada valem sem este,, o que rende muito ao capitão e
ao escrivão. Ha. nesta fortaleza bons aposentos (|ue formam
nm palacio hello e commodo, onde os Vice-Reis quando
ch('gam de Portugal vão sempre desemíiarcar, e esperar
alé fa>:erem a sua entrada solemne, e tomar posse, e o V i­
ce-Rei que sáe vai alli morar até partir ( a.); porípie nunca
dons Vice-Reis residem juntarnenlc na cidade; e logo que
0 antigo teui feito entregado Estado ao novo, saé da cida­
de, e não torna a apparecer cm as-to publico,, nem se visitam
salvo por fortuito encontro,.ainda quC' sejam bons amigos:
lauta é a sua ambição! Este sitio de Paimim.é nm dos mais
'* C

hellos e agiadaveis de toda. a. ilha. Quanto ao rio é mui


hom, c vem, como disse, de mui longe das terras do Deal-
cão ou Decan, c abunda muito em peixe. Navega-se por
elle em batius por mais de trinta legoas pelo sertão, e for­
ma quantidade de boas ilhas povoadas de gente natural, as­
sim chrislaõs como gentios.
Goa é defendida ao redor da ilha por sele fortalezas me-
( a ) Passou esta fortaleza ou palacio a ser a residência cffectiva
do.s Vice-Reise Governadores lia um século; mas apezar de estarem
os aposentos muilo melhorado.'«, e accia'scentados, não nos parece
que mereçam a i n d a h oje o i io m c d e p a la c io bello c c o m m o d o , q i u i
0 a u c t o r ll i c dd.
SEGUNDA PA R TE.

dianamente boas, e verdadeiramente não é mister que se­


jam mui fortes por razão do rio que as guarda. Entre es­
tas sele fortalezas são comprehendidas aquellas duas pri­
meiras, e não se inclue a da cidade, onde está o Vice-Rei,
que é á borda do rio, porque, contando esta, são oito for­
talezas ao todo, sem a de Bardez que defende a fonte ( a ) .
■ Estas fortalezas cercam a illia, e ha nellas parochias e i-
grejas. Apoz da do Vice-Rei segue-se a da Madre de Deos
ou de Daagim, onde está a parochia de S. Joseph, e um
convento de Gapuchos do mesmo nome do forte, com mui
bello jardim, onde os Vice-Reis vão muitas vezes folgar. A s
outras são; S, Braz\ Santiago, que está a mais de legoa
•e meia da Madre de Deos, e entre uma e outra corre
um muro, porque no verão é alli o rio muito baixo, e com
0 muro se impede a passagem da terra firme. Adiante des­
ta está a fortaleza de São João Baptkta, e depois a de A"os-
■ sa Senhora de Guadalupe. Em todas se guarda a mesma re­
gra e policia, e ha prisões para metter os suspeitos, dan­
do-se todavia aviso ao capitão da cidade. Se algum escravo
'que‘intenta fugir é apanhado, mettem-no-n’iima destas pri­
sões, e ahi fica até ser procurado por seu senhor, que é o-
brigado a pagar a guarda e despezas. Este estilo é usado
em todas as outras terras de Portuguezes; e ha sempre em
cada fortaleza um capitão, um escrivão, e soldados de
guarda, com ura sino para signaes.
Todos ns que saem da ilha para a terra firme a tratar
os seus négocies, ou para provimento de viveres, e outras
cousas necessárias, se são índios e Canarins de Goa, quer
sejam homens, mulheres, ou crianças, é mister que vão a
caza
______do Capitão
' da Cidade para receber o seu sclio ou si^-
o
( a ) Esta exclusão da fortaleza da Aguada do numero total das
oito está ein manifesta contradição com a inclusão da mesma for­
taleza nesse numero, que o auctoracaha de fazer; e também em con-
Iradicção com os factos, segundo se vai ver pela propria narrativa
do auctor. lia pois aqui lapso, ou seja da cscripla original ou «e-
‘ ja da imprensa. ’
8
3G VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

lia i, que se faz impriminclo-se-lhe na parle superior dos


O
braços, que liazem mis, o sinete molhado em tinta, e na
passagem os que estam á porta, depois de verem o signai,
apagam-no, e deixam-nos passar; e em cada um destes
dons logares se paga um hazaruco. Quando recolhem to­
mam 0 mesmo signal do capitão da fortaleza; e por este
meio sabem o numero de pessoas que entram e saem,
porque em todas as passagens ha escrivães que fazem disso
assento. E deste meio se servem também para descobrir
SC os que saem são accusados de roubos ou mortes, ou
são fugidos das prisões, ou tem commettido algum outro
crime. A entrada a ninguém é vedada, isto é, sendo pessoa
natural da terra firme; mas se for estrangeiro, será prezo.
Aos Portuguezes não é de forma alguma permittido pas­
sar á terra firme, salvo tendo sua familia em Goa, de
medo que não vão servir os Reis da índia.
E ’ cousa admiravel ver a grande multidão que pelos ca­
minhos vai e vem como em procissão. Só os christaõs po­
dem trazer armas. Todas as fortalezas são bem guarneci­
das de artelharia. De noute não se deixam ficar baleis da
outra banda do rio, mas são todos trazidos para junto das
fortalezas. Nenhum infiel, ou seja habitante da terra por-
tugueza ou outro, traz armas, salvo os que pertencem á
comitiva dos embaixadores. Todas estas passagens são de
grande rendimento, assim pelas mercadorias, como pela
quantidade de gente que por ellas passa. Os baleis das pas­
sagens pagam tributo aos Portuguezes. lía ainda outras
passagens em outras ilhas habitadas de christaõs e iníieis;
e por todas as ditas fortalezas e passagens ha grande quan­
tidade de habitações, conventos, ermidas, e capellas.
Em toda esta ilha de Goa, como nas terras circumvi-
sinhas, e mesmo por toda a índia chove continuamente
durante seis mezes, que ó o inverno; mas mais abundan
temente cm Goa que em outras parles; e por isso lodo es”
te tempo está a cidade enlameada e immiinda, e os vesti”

c
SEGUNDA PA RTE. 31

(los se sujam muito, mórmente os dos mouros e gentios,


(jue são de algodão branco, e lhes descem até aos artelhos.
Éstam postos na necessidade de fazer alii a festa do Cor­
po de Deos em fevereiro ou março, porque na estação em
que nós a celebramos chove muito. Dentro da ilha mui
proximo da cidade ha um mui bello deposito de aguas, a
que chamam Lagoa^ e tem mais de uma legoa de circuito,
e é natural; e nas margens desta lagoa ha mui bellas ca-
zas dos fidalgos principaes, que as fabricaram para seu re­
creio com muitos jardins, arvores fruetiferas, e coqueiros.
A terra é boa para os fruetos, mas nos logares húmidos
somente.
No que respeita aos povos que habitam esta ilha de Goa,
süo (dles de duas sortes; ou naturaes ou estrangeiros. Os
naturaes são Brarnatm, Canarim, e Calumbins, lodos gen­
tios ( a ). Os Bramanes por toda a parte são sempre os
mestres e superiores entre os idolatras. Os Ganarins são
de duas sortes, os que se applicam ao commercio e a mes­
teres honrados, são tidos em maior estimação que os ou­
tros que se dão á pesca, ou a serviços mecânicos, como
os que remam, os que tiram o sueco das palmeiras, a que
chamam sura, ou se oceupam em outras cousas baixas. Ha
ainda outros mais inferiores a todos estes, oceupando-se
nos trabalhos mais vís, os quaes vivem mui pobremente,
sem aceio, e como selvagens. Quanto aos estrangeiros ha
os acluaes senhores da ilha, que são os Porliiguezes, os
quaes deixam morar nella aos antigos habitantes em toda
segurança e franqueza, e segundo a lei não os podem fa­
zer escravos como aos outros povos, porque alcançaram este
( a ) A. palavra Canarim está tomada hoje como termo oííenrivo,
mas sem razão, porque nada mais signiíica do <iiic natural do Ca~
nará\ e o território de Goa era antes da conquista portugueza in-
cluido no (lanará. Donde vem que nos primeiros temi)OS chamáva­
mos Canarins indistinctamente a gentios e a christaõs, como ain­
da faz 0 auclor; posto que agora ([uasi cxclusivamciUe se applica
esse nome aos christaõs naturaes.
32 VUGEM DE FRANCISCO PYRARD

privilegio d'El-Rei. Os outros estrangeiros são índios que


alli moram com permissão dos Portuguezes, e aquellcs que
não são christaõs pagam tributo por suas pessoas. Ghris-
m laos velbos alem dos Portuguezes ha mui poucos Castelha­
nos, mas muitos Venesianos, e outros Italianos, que ahi
são mui bem acceilos; ha também Allemães e Flamengos,
grande numero de Armênios, e alguns Inglezes, ;mas nada
de Francezes, salvo aquelle Padre Jesuila, de que já fallei;
e um Loreno, e outro Vallon, que ahi vi. Dos povos da
índia não christaõs, que são ahi em grande numero, ha Ba-
nianes de Gambaya e Surrale, e Bramanes. Ouvi muitas
vezes dizer aos Bramanes de Galecut que a ilha de Goa era
delles, de sorte que por isso são grandes inimigos dos Por-
tuguezes; e assim os que d’entre elles tem honra e brio
não querem estar onde governam os Portuguezes, que os
maltratam e desprezam muito; e por esta razão ,a maior
parte foram morar em Galecut, onde estam em maior segu­
rança e liberdade. Mouros ou Mahometanos ha-os alli de
todos os logares da índia, c até da Persia. Ha também mui­
tos Gliinezes e Japões.
Mas no que toca aos Portuguezes ha entre elles grande
diíferença de honra; porque os mais estimados são os que
vieram de Portugal, e lhes chamam Portuguezes de Portu­
g a l a ); depois vem os que nasceram na índia de pai e
mai portuguezes, e lhes chamam Castiços; os inferiores são
os que procedem de pai Porluguez e mai índia, ou pelo con­
trario, e lhes chamam Mestiços. Mas os que descendem de
Porluguez e Gafre ou Negro de Africa, chamam-lbes Mu­
latos, e são havidos por iguaes aos mestiços. Estes mes­
tiços tem maior estimação quando o pai ou mai é da cas­
ta dos Bramanes. No Brazil os que procedem de duas ra­
ças ditTerenles são chamados Mamelucos.
De escravos ba em Goa um numero infinito, e de todas
as nações da índia, e fazem delles grande trafico. Mau-
Portuguezes Reinóes é a plirase adoptada.
SEGUNDA PARTE. 33

dam-nos a Portneal, e a todas as partes onde dominam.


Roubam as creanças e escondem-nas, assim grandes como
pequenas, cada vez que podem, ainda que sejam de nações
amigas e com que estejam de paz, sem embarco de ser de-
fenso fazer laes escravos; mas não deixam por isso de os
apanuar ás escondidas e vendei-os.

CAPÍTU LO l í L

D a C id a ilc d e Goa, » n a s p r a e a » . ig r e ja » , p a la e io » . e
ontro» c€Siíicio».

endo fallado da iiha de Goa passemos agora á cidade,


da qual primeiramente direi qne não é rniii fortificada, e
quem fosse senhor da ilha o seria também da cidade, que
não tem fortaleza de substancia, mas sò é forte pelo nume­
ro de homens. Porque com quanto seja cercada de muros,
todos são fracos, e á semelhança dos que cá usamos para
tapar os jardins. Só é forte da banda do rio. Os antigos
muros da cidade eram mais altos e fortes, e tinham boas
portas, que já não existem, porque a cidade tendo cres­
cido mais de duas terças partes, lodo o antigo recinto é
agora inútil. Os Porluguezes não se empenham em a guar­
dar da banda da terra que diz para o interior da ilha,
por razão das passagens bem guaidadas ein que elles se
fiam.
A cidade é pois edificada á borda do rio que lhe demora
ao norte; tem de extensão meia iegoa, com muitas portas,
cada uma guardada por um porteiro, que são homens can-
çados, a quem se dá este cargo em recompensa durante
a sua vida. Entre a cidade e a borda do rio ha 1res gran­
des praças ao longo d’ agua, separadas entre si, e fecha­
das com bons muros, que se continuam com os da cidade,
e entram muito pelo rio dentro, de sorte que se não pode
34 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

entrar neilas ncni sair senão pelas porias { onde os por­


teiros apalpam Ioda a gente ) ou por agua em bateis. A
primeira destas praças, que se encontra quando se chega
á cidade vindo do mar da banda do occidenle, é a maior
e mais rica, e lhe chamam a Ribeira ffrande ( porque el­
les chamam a estas praças Ribeiras ( a ) ), e delia se entra
na cidade por duas portas. E ’ mui bem ordenada, e tem
alguns terraplenos, e tranqueiras com arlelharia para defen­
der 0 rio. Quem alli governa é o Veador, ou Vedor da Fa­
zenda, que tem nella belles e fortes aposentos, nos quaes
ha urna porta do lado da cidade, c outra do lado do rio;
c só elle tem este privilegio; e todas estas portas íicam
fechadas de noule, não por temor do inimigo, mas dos
ladrões da cidade.
Este Yeador é o intendente dc todos os negocios da fa­
zenda, c de tudo quanto em Goa se faz assim no que to­
ca á guerra e armadas, como a todos os outros negocios,
ponjueé elle a segunda pessoa abaixo do Vice-Rei. Defronte
dos aposentos do Veador na mesma praça ha uma bella igre­
ja da invocação das Cinco Chagas, bem e ricamente ornada,
( a ) /07>í>irrt signitica proj)riamenle a margem ou borda dos rios, e
ás vezes a do mar. E como nesles silios se deixam por commo-
didade geral certos largos e praças para mercados, por abrevia­
tura se chama a essas praças e aos mercados que neilas ba, sim­
plesmente liibeiras, como por exemplo em Lisboa a Ribeira velha,
a Ribeira nova. etc. Por semelhante moiivo se applica ainda o
í nome de Ribeira a estabelecimentos e officinas, que por sua na­
tureza devem estar á bordados rios ou do mar; assim se diz v. R i­
beira da? náos, o cáes da Ribeira etc. etc. Em Goa havia, como
mui bem notou o andor, a Ribeira grande, ou das nãos, e a
Ribeira dns galles. Quando porem se nomeava simplesmente a Ri­
beira, enti.mdia sc a grande ou das náos, a (jiial atem de conter
0 arsenal da marinha, comprehendia outras oiïicinas do Estado ;
e neste sentido dizem os documentos (jiie em taes c tacs casos se
perdcrião os navios para a Ribeira de Sua .MagestaJe; que se va-
garia tal multa ou pena de dinheiro para as (le.spezas da Ribeira;
que a moeda se lavrava na Ribeira; que na Ribeira se fundia a.
arlelharia etc. estilo com que o auctor estava perfeilamente fa-
iniliarisado.
SEGUNDA FA U TE. 35

fe nclla ha dons Padres somente. No adro (los(a igreja ha


nni espaço bem fechado com grades, onde todos os dias
0 dito Veador e mais oíTiciaes d’ El-Rei esíam sentados ao
redor de uma mesa para despacho de todos os negocios
que occorrem. Porque Iodos esses oííiciaes, e principal-
iiienle os que tem a cargo os negocios do apercebiinenlo das
armadas, moram alli; e todos os aposentos c editlcios per­
tencem ao Rei, e os oííiciaes moram alli em quanto servcíu
seus cargos.
E ’ nesta ribeira ou praça que se bate a moeda, que se
funde a arlelliaria, e outras ferragens próprias para os na­
vios das armadas, e dos mercadores. E ’ maravilhoso o nu­
mero de aiiifices que alli trabalham,em Ioda a sorte de o-
bras, sem guardar festas nem domingos, dizendo que é
para serviço d’ El-Rei, e' cada uma destas oííicinas tem um
mestre principal a que sobre o nome do oííicio accrescen-
lam a designação de mó?*, o qual é Porlugiiez, c tem só por
obrigação mandar aos oííiciaes da sua arte, como carpintei­
ros, ferreiros, patrões, calafales, bombardeiros, fundidores,
e outros, que são índios pela maior parte. Recebem paga­
mento aos domingos pela manhã, e nesse dia trabalham
sü de tarde. E ’ a mais bella cousa do mundo ver o grande
numero de navios que ahi ha, assim no porto, como vara­
dos em terra. E ’ também alli que se agasalham os ele-
phantes, quando os ha em Gca, mas quando um alli esti­
ve não os havia. E ó de notar que todos os officiaes mó-
m tem seus logares deputados para recolher e arrecadar
as obras e utensilios proprios de seu officio; e ha outros
logares para os artifices e trabalhadores. Todos estes apo-
zentos são de abóbada de pedra, e bem fabricados por cau­
sa dos fogos.
O Voador da sua varanda vô de um cabo ao outro tu­
do 0 que se faz, assim nesta praça, como no lio, e cada
noute ha pés de caslello que fazem guarda, e as sentinellas
bradam, e respondem umas ás outras, tudo isto pelo receio
36 VIAOEM DE FRANCISCO FYRARR

que tem de que se lance fogo aos navios, que são muitos,
assim de Portugal como da índia. Estes homens que fazem
guarda são indios ou christaõs, e são chamados Naiques.
São numerosos, c revezam-se todos os dias; e servem para
cumprir os mandados do Veador, levar os seus recados, e
outros serviços, como entre nós os sergens ou hedeaux,
Todos os artifices são contados duas vezes ao dia, e ha um
contador que lhes faz pagamento, e um apontador que os
TÍgia e aponta, de maneira que se lhes desconta todo o
tempo que não trabalham. Mas ha nisto muitos abusos,
pois se 0 contador e o apontador querem, dão na conta
quantos lhes apraz. O pagamento faz^se-lhes ein publico,
salvo sendo somma grossa, que se paga á parte.
He neste mesmo logar que está a prisão denominada
a Sala, onde eu estive, e a ella envia o Veador toda a qua­
lidade de pessoas que são da sua obediência. Este Veador
tem dous Meirinhos c um Escrivão. Todos estes oííiciaes
se concertam mui bem para roubar a gente. Tem o Veador
uma pequena galeota, das a que chamam manchuas, mui
bem coberta, e que El-Rei lhe paga para ir e vir aos na­
vios, ou a outra qualquer parte por mar, e ha nella somen­
te oito ou nove homens para a navegar. O Vice-Rei tem
lambem uma, e todos os otíiciaes; o Arcebispo mesmo , e
muitos outros particulares as tem. São mui commodas, cm
forma de carroça, só com a differença de não serem tapa­
das dos lados.
Mas tornando ao Veador, não ha em Goa ninguém, a-
baixo do Vice-Rei, que possa fazer maior bolça c roubar
tanto como clle. Porque tudo quanto sobeja nos navios que
vem de Portugal, e de todas as demais partes, assim em
mantimentos, como utensílios, e outras cousas, tudo isto
lhe fica na mão, e usa delle como muito bem lhe apraz, porque
quando novamente se hão de prover as armadas, é mister
dar-lhes novos mantimentos, munições, e utensílios, no que
ellc pode roubar ainda mais, pois por um soldo de despe*
SEGUNDA PARTE. 37
sa se poem dous. E o Vice-Rei e elle se concertam muito
bem, porque pouco importa que o Vice-Rei ordene paga­
mentos ou merces por escriplo; o Veador nada paga senTio
vè um certo signal na assignatura, ou sem que o Vice-Rei
llio mande dizer de bocea; e o mesmo faz o Tliesoureiro.
li note-se que para os pagamentos é mister que muitos
intervenham, mas para as despesas e supprimentos das
armadas, e para tomar conta do que délias sobeja, só toca
ao Vedor da Fazenda.
A ’s duas portas desta praça ou ribeira os porteiros e
guardas sempre vigilantes não deixam sair ou entrar pes­
soa alguma sem a apalparem para ver se leva alguma
cousa roubada; e não se fazem alii embarques de cousa-al-
guma, salvo se pertence a El-Rei ou aos ditos oíliciaes.
E ’ esta praça muito comprida e larga, mas quatro vezes
mais comprida que larga, e a largura é de perto de duzen­
tos passos. Toda ella está recheada de grandes riquezas
pertencentes a El-Rei.
Dalli caminhando para oriente vai sair-se perto do Hos­
pital Real da cidade, e entra-se em outra grande praca
também fechada, que esta entre o dito hospital e a ribeira,
c serve somente para desembarcação dos pescadores, e para
embarcação e desembarcação de toda a mais qualidade de
gente. Chama-se este sitio o Cae^ de Santa Catharina, o
também Bazar do peixe, porque alli se desembarca e ven­
de. Este caes é mui commodo quando chega a armada de
Portugal, porque logo que os doentes tem saido em terra,
acharn-se junto da portado hospital, cujas paredes fecham
a cidade desta banda. Todas e quaesquer mercadorias se
podem também alli desembarcar, querendo-se, porípie as
da dita armada não pagam direito algum em Goa. E’ esto
largo como o meio de toda a cidade; e ha também nelbi
tranqueiras, e portas, que se fecham quando se quer. Toda
a borda do rio ao longo da cidade é cheia de lodo, e vasa.
Mas quando chegam os navios de Portugal é maravilha
10
38 VIAGEM DE FRANCISCO PTRARD

i ver 0 concurso de gente de toda a sorte, que se apinha


neste caes, assim escravos, com o outros, christaõs, can arin s,
cafres, e outros gentios, carregadores, e m ariolas, que lá
chamam Boye (a), e servem para levar qualquer fardo pesa­
do que é mister; porque não usam de carretas, mas carre­
gam tudo ás costas com bam bús, que são cannas da grossura
de um a perna; e é a m adeira m ais rija e custosa de partir
que nunca jam ais vi. Para conduzir um barril de vinho d e
Portugal são quatro destes hom ens com dous bam bús, e
cada um carrega ao hom bro um a ponta do bam bu, e a s­
sim fazem para outra qualquer cousa. Mas para levar p e­
dra, madeira, ou outros m ateriaes para edifícios servem -se
de búfalos e bois. E stes Boyes quando vão carregados, vão
sem pre cantando certas canções por perguntas e respostas,
e cam inham sem pre a correr. Todas as ruas estam cheias
destes hom ens, prom ptos para todo o serviço, ou seja para
levar som breiros e palanquins, ou outra qüalquer cousa
que se queira, e acham -se em certas encrusilhadas. E sta
praça é pois para toda a gente sem differença.

( a ) E s c r e v e acjui P y r a r d urna o b s e r v a ç ã o q u a s i i m p o s s í v e l d e
v e r t e r i n t e l l e g i v e l m e n t e e m p o r l u g u e z , e f u n d a d a n ’u m a e q u i v o c a -

* D i z e\h: ....c a fr e s et autres genttls, qm sont comme crocheteurs


et portefaix, qu ils appellent B Ô YE , c est á dire B O E U F , powr
porter quelque pesant faix que ce soit: c o n f a n d i n d o a s s im a p a l a v r a
Boy, c o n c a n i , c o m a p a la v r a Boi q u Boy, p o r t u g u e z a . E s t a s i g -
n i i ic a , c o m o e l l e b e m d iz , n a s u a l i n g u a f r a n c e z a , Bcsuf, m a s a -
q u e lla d e o r i g e m v e r n a c u l a da I n d i a , s i g n i f i c a s i m p l e s m e n t e p o r t a ­
dor e carregador de p alan q u im , m axilla, som breiro, e cousas se­
m elhantes, e não tem an alogia, nem relação algu m a de d e n v a ç a o
c o m a p a l a v r a Boy p o r t u g u e z a .
A p a l a v r a c o n c a n i d e c l i n a - s e assim*
S in g u la r Plural
N om inativo Boy N om inativo Boy
Caso obliquo Boyá Caso obliquo Boyd
e c o m o s n a t u
O s P o r t u g u e z e s d i z i a m a n l i g a m e n ------ - -- - - - - - - - - - r a c s Boy,
.. t o m an-
d o 0 n o m i n a t i v o ; m a s b o je t e m p r e v a l e c i d o e n t r e e lle s o ca s o o b l i -
ntio, e d e c l i n a n d o - o a s e u m o d o d i z e m e m to d o s os c a s o s d a
S i n g u l a r , Boyá, e e m to d o s os ca so s d o P l u r a l , Boyas.
SEGUNDA PA RTE. 39

Mas a outra ribeira ou praça, que se lhe segue, é mui


bem fechada toda ao redor até m uito avante pela agua
dentro, e se cham a a Ribeira das galés, porque é o logar
onde eslam as galés de Goa, que são do feitio das de Hes-
panha e Italia, mas não ha alli mais de très ou quatro.
E sta praça é bem construida, e provida de tudo quan­
to é necessário assim para os mestres, officiaes, e arm a­
m ento das ditas galés, com o para os forçados, que todos
alli estam, excepto alguns que ha na prisão da Sala para
serviço delia, os quaes não saem ao mar senão em caso de
grande necessidade. A s portas são guardadas por porteiros,
e ninguém alli entra sem ter lá negocio. O logar é mui
hello e espaçoso, e o V ice-R ei desce para ella por uma
pequena porta do seu palacio, para dalli em barcar sem
ninguém o ver. A porta desta ribeira é próxim a da grande
porta da cidade, a qual está logo abaixo do palacio do V i­
ce-R ei. Todas as m ercadorias que se em barcam nas náos
e navios que vão para Portugal, alli se hão de em barcar,
e 0 V edor da fazenda tem alli um a pequena caza á borda
d’ agua, e vai e vem aos ditos navios para ver, tomar con­
ta, e registar tudo quanto se em barca. Pagam -se très por
cento pelas fazendas que saem de Goa, mas concertando-
se com elle, dá-se uma ninharia. Todos os cáes são bem
construidos, e a maior parte tem degráos de pedra.
Dalli entrando na cidade á mão esquerda, estam os ar­
m azéns de guerra e bocca, em grandes alojam entos bem
edificados e fechados. A porta da cidade deste lado é a
m ais bella e m agnifica, contigua ao palacio do V ice-R ei,
e na fachada tem pintadas todas as guerras dos Portugue-
zes na ín d ia, e no alto da banda de fora ha uma bella i-
m agem em vulto de Santa Gatharina, toda dourada ( a ),
ipois esta Santa é a padroeira de Goa, porque no dia da
( a ) A. p o rta e ra n e sse te m p o d e r e c e n t e c o n s t r u c ç ã o , e a i n d a
h o je d u r a , s e n d o v u l g a r r a e n l e c o n h e c i d a p e lo n o m e d e Arco dos
Vke-Reis. k i m a g e m d a S a n t a é d e b r o n z e .
40 VUOEM DE FRANCISCO PYRARD

fcua íesta e que os Portuguezes ficaram senhores desta ilha.


Mo^ra estas praças ha outras sobre o rio, que não são
tecliadas nem guardadas como as precedentes. A primei­
ra que se segue entre o rio e o palacio do Vice-Rei cha­
ma-se Cã6 s dtt fortãlezã do Vtce-Roi, Tem pouco mais ou
menos setecentos passos de comprido, e duzentos de lar­
go, mui direita, plana, e revestida do lado do rio de um
bom muro com degráos de pedra. E ’ limitada de um lado
pelas paredes do palacio do Vice-Rei e muros da cidade,
c dos outros pelos das outras praças. Esta praça ou caes',
a que chamam Terreiro, serve geralmcnte para o accesso
de todos os navios de mercadores indianos, os quaes vem
aportar alli, assim por causa da fortaleza do Vice-Rei, que
está logo de fionte, como porque o Vice-Rei pode ver da
sua janella óu varanda tudo o que alli chega, e se faz) e
está sempre cheia de embarcações, e de povo infinito
Ha alli um mui hello edifício, do feitio da Praça Real de
Paris, posto que em mais nada se parece com ella, e lhe
chamam a Alfandega, onde se depositam e vendem toda a
sorte de grãos por grosso; e não se podem vender nem
levar a outra parte, e alli se pagam os direitos. Ha também
ahi outro grande edifício, a que chamam Bangaçãl, para
onde se descarregam as mercadorias que não são cousas
^■ 'r\ de comer. Pagam alli os direitos, e depois podem ser le­
vadas para casa de cada um. Ha ainda outra casa, a que
chamam o Peso, porque nella estam os pesos. E adiante
desta ha aposentos para os officiaes e rendeiros. Locro que
os navios descarregam, passam mais ao largo, e saem de
diante da fortaleza do Vice-Rei para dar lo^ar a aue os
outros cheguem. ^
No fim deste caes ha uma praça mui grande arredonda­
da, onde se faz o maior de todos os mercados de Goa no
que toca a comestiveis; e lhe chamam o Bazar grande.
Iodos os dias alli ha mercado, porque nunca fazem pro­
vimento de um dia para o outro, e mesmo se vão aviar
SEGUNDA^PARTE. 41

duas vezes por dia, parado janíar e ceia, sem excepcão


dos domingos e feslas, em que não deixa de haver venda
de comestiveis- 11a muitas. outras praças e mercados,- ou
bazares,, mas não como este, ao pó do qual esta um bello
arrabalde, e.nelle a igrejaalos Dominicos, mui, bem cons­
truída, e ornada,- e há lambem na cidade muitas outras
igrejas e parochias , pela.,maior, parle dedicadas ã.N os sa .
Scnhora.r,
Quanto, á fortaleza ou palácio dó Vice-Réi. é mui sunip-^
tuosamente fahricadoy e defronte dellc ha uma grande pra­
ça do lado dá cidade, a =que chamam Terreiro do juiço, no
qual os fidalgos e -os cortezões se jii.ntam,i uns a pé, e ou­
tros em palanquimj“ -^porque o . Vice-Rei nunca sáe sem
que no. dia antecedente mande tocar os tambores pela .cida­
de, e-com isso avisar toda a ! nobreza para ,vir no ^outro
dia pela manhã xedo áqueile logar a . cavallo, e a l l i . espc- -
ram até que o Vice-Rei sáia,.todos o melhor paramenta-,
dos e ordenados. quo podem. De fronte da poria d o pala-
cio do Yice-Rci ha um grande ediíicio onde se congrega o >
Parlamento, que elles chamam Camæ-n Presidiai^,{ e ao. pri-
meiio Presidente Desembarcado?* Maÿan (a), ,p rincipal í
justiça das índias para os Porluguezes,- e a s x u ir a s feti-;-
ças sãú-Ihe sugeitas. Este palacio do Viee-Rci não é essaz
forte para auguciitar artiiheria da handa da cidade, mas
tem bons c commodos aposentos, c á entrada á mão direi­
ta acha-sc a prisão que chamam Tronco, que faz corpo com
0 dito palacio, e á esqiioixia. estam os armazéns reacs. Es­
te palacio está. provido de tudo (fuanlo é necessário, igre­
jas, relogios, agua, c até o thesouro d’ K!-Rei ahi está
em parte, porque a,outra parle esta no convento dos Fran­
ciscan os.
( a ^ Fiia nnibo.=; nomes se offiiivoeon Pyraril. O Parlamen­
to e mI{claçã<,, e não Canuna Pre-stdiül, iiumc <|uu nau sabemo- onde
oaiiclor 0 íui buscar; e o Prcsidenlc iiimca se chamou Desembar-
gado7' Mavor, mas Cluinceller.
n
í !'

U VIAGEM DE FRAXCISCO PYRARD

Tem tlons grandes paleos mni beííos. e de um se passa


no oulro. No primeiro paleo á mão esípicrda lia uma gi’aii-
de escadaria de pedra, mui larga, e í í u c conduz a uma sa­
la mui espaçosa, na (|ual es!am pintadas todas as armadas
c navios que tem passado á índia, com seu numero, data,
nome do capitão, c até os navios ([ue tem padecido nau­
frágio alli estam retratados. E ’ cousa espantosa ver tantos
navios perdidos. Em somma não lia navio vindo do Por­
tugal, por mais pequeno (lue seja, que alli não esteja re-
/ralado, e não tenha seu nome escripto. Mais dentro lia
outra sala maior, que c a verdadeira sala do Vice-Rei c do
Ioda a nobreza, e onde.-se congrega o conselho. Alli estam
pintados ao natural todos os Vice-Reis que tem vindo á
Índia, e não entra nella toda a gente, porque tem guardas.
Este palacio está n’ um alto, e é mui forte da banda
do rio, com paredes mui altas, e ó a cousa mais vistosa do
ioda a cidade. As estrebarias não são no recinto do palacio,
r^' ínas inisticas com elle á mão direita de quem entra, l e m
o dito palacio uma saida da parle do rio, mas esta porta
não se abre senão quando o Vice-Rei quer embarcar. A
puarda do dito Vice-Rci é uma coinpauhia de cem homens,
u■ iodos vestidos de azul, que é a sua libre ordinaria, e es-
iam sempre junto de sua pessoa, isto lie, á porta do pa-
lacio, ou apozenío onde elle está, e quando caminha os
tambores e pifanos tocam. Estes arebeiros trazem alabar-
das, e são Iodos Portuguezes, mas não são em tanta re­
putação de honra como os que andam nas armadas, c que
são voluntários. Alein destes ha porteiros ás portas da for-

Saindo deste palacio para o interior da cidade enira-se


n a mais formosa rua de Goa, a que chamam Rua direiía,
que tem mais de mil e quinhentos passos de comprido, e
de cada lado 6 povoada de graude numero de ricos la[ii-
darios, ourives, lianqueiros, e dos mais ricos e melhores
tncrcadores c arliíices de Goa, todos Portuguezes, italianos,
SEGUNDA PARTE*

on Alemães, c outros occidcntacs. Esta rna acal)a n’ uma


iprè-ja das mais ludlas e ricas, c bem ornadas da cidade, a
<juaí é Ioda dourada por dentro. E ’ a igreja da Sanla Mi-
>^encorilia, dedicada a Nossa Senhora da Serra. Sobre o
portal desta igreja no logar mais eminente está a figura
cm vulto de pedi-a dourada de Atíouso de Albuquerque,
<]ue tomou a ilha de (îoa(a). Junto desta igreja lia um íle-
colhimenlo para donzellas orlas nobres, as quaes ficam
alli até cazarem. Os Porluguezes cazados quando vão a
viagens também álli deixam as niulheies até voltarem.
Também alli ba mulheres viuvas, que se querem retirar
do mundo; e até alli podem entrar as mulheres arrependi­
das (b); e guarda-se alii clausura. Esta grande Rua direita
c também chamada dos leiloes, porque se fazem alli, do
sorte que todos os dias, excepto nos domingos e festas,
desde as seis horas da manhã até meio dia, está tão cheia
de gente (jue mais não pode ser. A meio caminho do com­
primento desta rua está um dos maiores c mais antigos

( a ) No tempo de 1’ yrard a Igreja da Serra servia promiscua-


meiile de capella a Misericórdia; mas depois esta caza íabricoii
outra Igreja para seu uso particular, mais sumptuosa, c conligua
a da Serra. Da Igreja da Misericórdia existem ainda liojc magui-
licas ruinas. A. da Serra está em j)é, e serve de cemiteiio á (jua-
si deserta íreguezia da Sé. O estilo de architectura desta Igreja
da Serra indica <iue elia tora reformada em epocha [)osterior á
visita de Pyrard. Conservou porem sobre o Ireiiii.-picio a esiatua
de Afioiiso de .\lbuqueiajue ate aos nossos dias, em (|ue loi trans­
ferida para i’angim, e está ii’ nm pavilhão, na praça eoniigna
ao íjiiartel da A rtilheria. Começou-se este monumento no tempo
do Governador Conde das Aulas, e conclnío-sc no do Governa­
dor Jozé Ferreira Pestana.
Do Uecollnmenlo da Serra existem ruinas.
( b ) As muüieres arrependidas entravam no necolhimcnlo de San­
ta Maria Ãtagdalena. .Mas como este Piecoltiimenio era contigno ao
da Serra, das Donzellas, e igualmeivt-c administrado j)cla Misericór­
dia. foi facil ao auclor eonínmiir ambos os llecolbimentos.
O da Magdalena tinha também sua Igreja separada; mas talvez
íi iião tivesse ainda no tempo do anctor. Assim do Ilcco liiiuiaH
como tU Igreja, existom boje niuuiSt
t í VIAOEM DE rnANCISCO PYRARD.

edifícios da cidade, a que chamam Casa da Santa Inquisí-^


ção, na qual residem Iodos os- officiaes da> dila ínquisiçãOj
e se guarda., a mesma ordem que na de Portugal, com a.
diíTerença que aqui a justiça c ajuda mais severa para com
os ricos. Na frente desta caza ha uma grande praça ou
mercado, e da outra banda está a caza da "overnanca da
cidade, mui bem, conslruida. a que chamam ^ Gamara da
Cidade. O paiacio da inquisição é um edificio mui amplo,
com uma. sala. mui bella e grande, com grandes, escadarias,
mui compridas, e fabricadas de mui boa pedra; e não ha
caza, de liei que tenha uma sala tão bella.
Alli perto, está a igreja., grande chamada a Sé, com seu
cemiterio, E ’ formada por uma grande e soberba traça,, e
que mui dLOúciImente se levará ao cabo, pois ha cincoen-
1a annos que foi. começada. C o n ligua a esta está a Casa do
/ircebíspo. A. do.,Bispo, é também alli perto, onde ha a pri­
são ecclesiasüca.. Ba outrad>anda do cemiterio da igreja
grande está 0 convento, dps EAu/icfscaims, o mais bellq, e
mais rico do mundp,.em cuj.p claustro está pintada toda a
vida de S. Francisco, eni, ouro, azul, e outras cores, A i-
greja deste convento, é'iqpi, frequentada,, e está em sitia
muito elevado, e o grande Iprga.qup lhe é adjacente ó lo­
do calçado de pedras largas, e sobe-se a, elle- por grandes
Ir ■

degráos. No fim do mesmo íargodia unia, grande cruz de
pedra, mui alta e bem obrada; e dalll se desce a. uma rua
que vai desembocar no Hospital Real, encontraudo-se no
caminho a capella de Santa Catharina^ no logar por onde
foi entrada a cidade, porque ahi havia uma porta e um
l)a!uarte. Esta capella de Santa Galkarina nunca se abre
senão no dia da sua fesla, e sobre a porta está gravado
em letras de ouro o dia e anuo em (fuc a cidade fui to­
mada, e uma das bellas cerimônias e solemnidades de Goa
e a procissão geral que no.ssc dia se faz. iia qual vai todo
0 clero e outra gente da cidade em mui boa ordem e ma-
gniíiccücia, e levara grande copia de figuras c myslerios,
ÇEGCKDA PA^TR. 45
entrem eiados de m usicas, folias, e outras cousas ridiculas,
como entre nós se faria em cavalhadas e danças publicas;
mas alli é uso em todas as suas procissões geraes. (a)
Subindo dalli vai-se direito a uma praça cham ada Bazar
pequeno, no meio da qual ha um logar elevada da altura
de seis pés pouco mais ou m enos, todo revestido de mu­
ro, e cham am aqui o Terreiro dos gallos, por respeito das
aves e outros com estíveis que ahi se vendem (b). Dallí
cam inhando-se para o m eio da cidade topa-se com a igre­
ja do Bom Jesus, dos Jesuítas. L ogo depois entra-se na
rua dos chapelleiros, mui linda, grande, e com prida, que
vai dar a uma praça cham ada do Pelourinho velho, onde
também ha m ercado, e outro sitio elevado e revestido de
pedra; e alli proxim o está a ju stiça ordinaria de Goa n’
um grande edifício, e n’ outro a policia, com um bello a-
çougue. A esta praça vão dar seis ou sete ruas.
Ha também a igreja de S. Thomé, grande parochia, e
( a ) A C a p e l l a d e S a n t a C a l h a r i n a foi f u n d a d a pelo G o v e r n a ­
d or J o r g e C a b r a l em 1550, e e r a sem d u v i d a a m e s m a q u e e x i s ­
tia n o te m p o d e P y r a r d . A cjue h oje e x is te no m e s m o sitio é d e
c o n s t r u c ç ã o m a is m o d e r n a . L á está p o r é m a i n d a a L i p i d a , a q u e
P y r a r d a l l u d e , a q u a l n a p r i m i t i v a c a p e lla e s ta v a s o b re a p orta ,
e na a c t u a l está p osta ao lado d a p orta late ral, e diz assim :
Aqui neste lugar estava a porta por que entrou o Governador Affon-
so d’ Alboquerque e tomou esta cidade aos Mouros em dia de San­
ta Catirina anno de 1510 em cujo louvor e memória o Governa­
dor Jorge Cabral mandou fazer esta casa anno de 15;>0 á custa de S. A.
A festa a i n d a h oje se s o lem n isa, não na forma q u e se fazia no
te m p o d e P y r a r d , m as m o d iíica d a s e g u n d o o estilo m o d e r n o . A p r o ­
cissão a g o r a sáe d a S é , e a ella r e c o lh e , e na S e se c e l e b r a a
festa c o m a ssistên cia d o G o v e r n a d o r , n o b r e z a , c le r o , co r p o r a ç õ e s ,
e e m p r e g a d o s do E s t a d o . — V e j a - s e a Nota d e p a g . 11 d e ste tom o!
( b ) N ã o n o s p a r e c e q u e o n o m e d e Terreiro dos gallos v e n h a
d a o r i g e m , q u e o a u c t o r i n d i c a ; m as sim d e s e r a q u e lle sitio o
era q u e m a is o r d i n a r ia m e n t e se jogavam os gallos, d i v e r t i m e n t o
p u b l i c o m u ito em v o g a n a q u e lle s tem p o s. Foi p r o h ib id o por A l ­
v a r á dp V i c e - R e i M a i h i a s d e A l b u q u e r q u e d e 18 de 1594
de M aio
( Archtvo Portuguez-Oriental, F a s c í c u l o 3.* 157 ),
D o c u m e n t o n.®
m a s é d e cr e r q u e s e m e m b a r g o d a p r o h ib i ç à o prevalecesse o ii; •»
a i n d a por lar go tem p o .
12
46 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

partindo dalli e saindo da cidade chega-se a nm grande


iargo chamado Campo de S. Lazaro ou de Santiago, porque
faz caminho para a aldôa c forte de Saníiago, e neste mes­
mo campo está o Hospital de S. Lazaro, onde se recolhem
os !('prosos, e é edilicio bello e bem ordenado. Na igreja
deste hospital ha uma capeila mui linda dedicada a S.
Luiz Rei de França. ííavia alli alguns doentes, e a cidade
0 fundou, e o sustenta. Do outro lado e defronte delle ha
uma lagoa mui bella, onde ha muitas aves aquaticas. Nes­
te campo todos os cavalleiros c fidalgos fazem suas cava­
lhadas com canna^ e laranjas, nos dias de S. Joâo e S.
Thiago, padroeiros dos Porluguezes e líespanhoes; e alli
tamhefu os moradores fazem seus alardos.
Lm outro logar fora da cidade ha uma praça cercada
de muros, chamado o Matadouro, onde se matam as re­
zes; c dessa mesma banda está o logar das execuções da
justiça, onde ha uma força de quatro pilares, e c na dis­
tancia de um quarto de legoa da cidade, onde se vão fa­
zer as execuções. Por razão dos calores são constrangidos
a matar as rezes fora da cidade, e a enterrar alii a sugi-
dade •e o sangue
^ destes animaes. Perto do Convento de S.
Domingos ha um grande iargo ou campo, que só serve
para picaria de cavallos.
Mas seria coiisa infinita dizer por meudo todos os no­
mes das ruas, praças, igrejas, conventos, palacios, e outras
singularidades de Goa, e em geral se pode dizer que tu­
do alli está bem ordenado. Os Banianes e Ganarins lern
suas ruas apartaiias, e semelhantemente toda a sorte de
mercadores e misteres; como os ourives que tem a sua
5ua, os lapidarios a sua, e assim os outros, de maneira
que é grande commodidade, quando se ha mister de qual­
quer cousa, saber-se logo a rua onde se encontra. E o quo
me faz dilatar tanto nas particularidades desta cidade, é
que quem a vô bem, fica sabendo todo o estado dos Por-
tüguezes nas índias Orienlaes.
S'
SEGUNDA PARTE.

0 numero das igrejas que nella Iia é maravilhoso, e


não ha praça, rtta, ou beco, onde não haja alguma; c en-
írc ouïras apontarei; a de Santo Agostinho, obra con­
tinua todos os dias, porque o Arcebispo é desía Ordem.
Esta siluada no mais alio logar de Ioda a cidade sobre um
monlc, e na sua visinbanca eslam as igrejas de Santo An­
tonio, e S. Roque dos Jesuilas, e em oulro logar o Mostei­
ro das Religiosas de Santa Monica, a igreja de iVossa Se­
nhora do Rozario, o convento de S. Thomas, e ouïras, do
sorte que na cidade, arrabaldes, e por ioda a ilha aíidam
proximamenlc por cincocíila entre igrejas e convenJos.
Entre estas igrejas ba qualro dos Jesuilas. A primeira e
principal é da invocação da Conversão de S. Paulo, e esto
collegio é 0 principal de ioda a índia Orienta!, o nelie vi
até ao numero de dous mil meninos estudantes, e mais,
assim Porluguezes como índios. Os Jesuilas na ia levam
aos estudantes pelo ensino. Conligua a este Collegio ha a-
inda uma mui bella casa desies mesmos Padres, chama­
da 0 Seminário, e tem estudantes peusioruslas.
A segunda igreja ou collegio que tem os Jesuítas está
no meio da cidade, e é tão hello ou uuiis que o proceden­
te, cuja igreja tem a invoenção do S. Nome de Jesus, é
custosamenle fabricada, toda dourada por dentro, e aiuda
não está perfeiia, mas traha!ha*sc em a acabar todos os
dias. Vi alli uma cruz toda de ouro massiço, que os Padres
da Companhia de Jesus haviam mandaíJo fazer para dar
dc presente ao Pa[>a, a qual linlia dc cumprimento 1res pés,
,de largo quatro dedos, e de grosso dous dedos, enrique­
cida com toda a qualidade de pedras piedosas, hem la­
vrada, e pesava cem mil csciuh.s ou mais, e foi enviada a
Sua Santidade no navio em que eu vim embarcado na
torna viagem. Esta segunda caza é somente di'pulada ao
serviço do puí)lico, a saber, confessar e administrar os sa­
cramentos, e para receber no grêmio da igreja os infiéis,
e baptizal-os. E ’ nella que reside o Pai dos Cliristaõs, que
^
10

48 VIAGEM DE FRAKCISCO PYRARD

é obrigado ã ir todos os dias ás prisões a visitar os chris-


taòs, e outros que quizerem converter-se á fé catholica,
sollicilar seu livram ento, e assistir-lhes com esm olas, como
para com igo fez muitas vezes. Ha outra caza dos m esm os
Padres junto desta segunda igreja, que se cham a dos Ca-
theciimenos, para cathequizar e ensinar os novos chrislaõs,
e nella são sustentados e vestidos até serem instruidos e
baptisados; dos quaes e de toda a caza tem cargo o Pai dos
christaõs.
N ’ um dia da festa da Conversão de S. Paulo, vi sair des­
te logar quasi mil e quinhentas pessoas natur?es da terra,
assim hom ens, como m ulheres e crianças, vestidos ao m o­
do dos christaõs, em procissão pelas ruas da cidade, em
duas alas, levando cada um seu ramo na mão para se
differençarem dos outros, e em signal de não serem ainda
bapiizados; e dalli foram á precedente igreja, e collegio
de S. Paulo, onde todos foram baptizados. A n tes do bap­
tism o vi um Padre Jesuila fazer-lhes uin bom serm ão so­
bre a excellencia da religião chrislã, e lhes disse que a não
deviam abraçar por força, e que se algum delles ahi ha­
via que viesse contra sua vontade, se poderia ir em bora,
e sair logo da igreja; ao que todos responderam a um a
voz que eram mui contentes, e querião m orrer na fé ca-
thol ica. D epois de baplisados cada um se recolheo a sua
caza, e aos que eram pobres aquelle Padre Jesuita deu es­
mola de dinheiro e vestido; o que se repete todos os an-
nos com sem elhante pom pa e solernnidade, afora os que
se baplisam diariam ente em particular. V i também muitas
vezes baptizar grande num ero de pessoas na igreja dos
Pranciscanos, no dia seguinte ao da festa de N atal, e che­
gar 0 numero a oitocentas pessoas.
N o dia da Conversão de S. Paulo faz-se grande festa e
solernnidade. O V ice-R ei acom panhado de toda a nobreza,
chegando ao num ero de duzentos a trezentos fidalgos a
çavallo, bem m ontados, e param entados, vai á dita igreja, e

I
1

SEGUNDA PARTE. 49

depois da fosla janta com os Padres Jesnilas; o que nunca


mais faz, tirando neste dia. Todos os estudantes dos Jesuí­
tas i icamente adornados de toda a soi to de \Cï;tidos de i?e-
da, vcni eS'pei'al-o forinados em ordem de Itaiallia. uns a
cavalb, outros a pc, c todos armados, c assim marciiam na
dianteira do Vice-Uei, faz^endo todo o resto do dia aili
muitos jo,eos e folgiiedo^s.
A terceira caza e igreja tom a invocarao de b. Roque, c
se chama 0 Noviciado, poiapit* neila estam os noviços Por-
tiiguez.es que aspiram a ser Jesuilas, para se exp eiimen.lai
se poderão permanecer nesta resolução, e gnanJar a^ le-
gra. Os natnraes da terra nunca são admittidos á Com­
panhia, satvo se procedem de. Porliiguezes por paí e mai;
mas podem ordenar-se sacerdotes. As outras Religiões ac-
ceitam ^ícstiços, mas não índios pnros.
A quarta caza dos Jesuítas é sita a meia legoa fora da
cidade; é luna bella caza de recreio,, onde ha mui lindas
fontes, e serve para recrear, e restahefecer a saude dòs
que estiveram enfermos, mas só sendo da sua Ordem ía).
Estes Padres Jesuilas são alli miii numerosos, e em toda a
pai-te da Índia onde os Porlaguczes tem entra»,ía. c ha-os
junto de alguns- reis inltets,, onde fazem grande íruclo na
conversão dos índios á religião christã, e scmclhanlcmeu-
le os Kidigiosos Dominicos e Fianciscanos,.
Os ediíictos destas igrejas e palacios', assirn públicos
como pariicularcs. são rmii sumptui^sos c magniíicos, c fei­
tos por eanarins, tanto gentios, como principalrncnle chris-
taõs. As casas são fabricadas com cal e areia, X cal faz-se
de conchas do ostras, e outros mariscos; a areia é de terra,
c nãO' do rio. Cobrem as casas ele telhas; não usam de
vidraças, mas em vez délias scrvoin-se de cascas de ostras
mui delgadas e lisas, que encaixilham em guides de madei­
ra; c deixam passar a luz como sc tosse papel ou chavelho,-

( a } Deve ser a quiulá de Siiaiu Uosalia, eai Müuiú.


13
50 VIAGKM nn FUANCISCO PYBABB

])orqnc não são lão Iransparonlos como o vidro. Tiram a


pedia de canlaria na iilia, mas a de (juc fazem colntnnas
c oulias olnas primorozas, mandarn-na vir de Baçaim, on­
de sac:n imii ciimpiidas e rijas; assemelha-se ao granito,
c c ainda melhor; e não vi neslas terras dc cá colurnnas
de peiiia de uma só peça lão grandes e compridiis como lá
vi. Os edilicios sao mui amplos, mas com poucos andares,
e pinlam-nos de encarnado e in-anco, assim por fora como
por denlro. As escadas são mui largas, feitas cm parte de
pedra, e em parte de terra vermelha como bolo armênio,
que lhe serve de cimento. Quasi todos tem jardins e (juin-
íacs. mas não grandes, com poços denlro.
Qii.iiilo aos arrabaldes da cidade, ha sete ou oito mui
grandes, c todos os seus edilicios, e de todo o resto da ilha,
são do mesmo hòbo (pie os da cidade. Todavia as casas
das boticas não são tão magnificas e soberbas como as ou­
tras. Usam carretas puxadas a búfalos ou bois para condu­
zir^ materiaes para edilicios, e estas carretas não são cal­
cadas de ferro. No ipie loca ás calçadas das ruas da cida­
de, sao leilas de beilas pedras lai-gas, e andam limpas, is­
to he, as ípie são em declive, [)or(juc as outras são mui
jamacentas. Quando chove vêm-se la^gneiros por toda a ci­
dade, e a agua corre por canaes grandes, profundos, côn­
cavos, e calçados, de sorte (pie m) inverno isto faz com
que a cidade ande mui lim[)a cm alguns sitios; mas os re-
gueiros das nias são lão grandes, (jiic algumas vezes c bem
trabalhoso passar de um lado da rua ao outro, donde vem
que em miiilos logares ha petpienas pontes e jnssadeiras^
porque alias seria impossível atravessai' a rua. lab
t-7 ( a ) l)(í tUílo <]uanlo tqvaard nos <jescrcve neste Capilulo resta:
1 h A iliiteira [;raiulc, uti Arsenal, poslo que mai mudado no^ edi-
íicios e olílcinas, e abarcando maior terreno que no temi)o de
í*yrard.
"a r>orta da cidade, vulgarmente conhecida pelo nome de Ârce
cios Viec-ileis.
Sé, e Pulucio Archiépiscopal, em hom estado.
SMUNDA PARTE.
51
C A P IT U L O IV .

»os mercadas, escravos, m ordas, ngiias, e outras eou.


mwê neiaveii» «ic Goa#

T
1 emlo faliaJo no capiliilo precedente das praças da ci­
dade; direi lambem alguma coiisa aqui dos seus mercados.
Lstes mercados, no que toca aos inaiitimeiilos, lia-os Io­
dos os dias de trabaJlio, desde a seis ou sete iioras da
Convento o Igreja do S. Francisco, tudo reformado no-lcrior.
nienu*, e hoje em inao estado. ‘
(líiiielia de Santa ('atharina, recoaslruida postenormcnlu
k'rejn dc Santo Antonm. >vtsituofiutna.
liíreja de N. S. dò Itosario..
Convento de ’Santa Moniea.
■<àa'za e Igreja do Bom Jesns.
dííreja de s. da Serra, reformada ( ao que parece 1 nosterí
onnente. A ostatu., dc Alfonso dc Allinnnerunc "
lionli-inno desta Igreja, foi em 18í 0 transferida’ a I'an-im ' on
de e.«;ta debaixo de um pavilhão na Praca cliamadi
janellas, adjacente ao t|uartel da arlilheria * ’ '
Ha minas de.stes ediíieiT.^í:
'Fortaleza ou Palacio dos Vice-Beis.
■Caza da Imjuisiçao ( vesitigios ),
Recüiliimenlo dá Serra.
Caza da Misericórdia, e sua igreja, ( apartada da da S e rn ) m,»
• i he de fimdaçao posterior á viagem de IS rard . ' « -
Ueeolhiinenlo c tgrcjii das Convertidas, on dc Santa Maria .Magda-
Convento e Igreja de S. Dominíros.
Convento e l-rreja de Santo .Viíoslínho
Coliegio de S. Paulo, o velho.
Igreja de Santo riioiné ( vesligios ).
Podem ainda assignalar-.se os logares .Io aiitiiio rne.s r Hizir .h»
líaneaçaei ele"'''’ Salles, Alfan.lega, Armazéns,
O caes chamado do Arcebispo, e que lira (>m sitio f»ro\imo »o
an igo caes de Santa ('atharina, e ohra moderna. *
\ mica, que ainda e.Mste no lerrciio adjacieite a S. Domiii-pos
parece-nos ser outra diversa da que nos discreve PvraN ' '
Hcliuiaiii SC aiüda a Rua Direita, a Praça do Pcloiiiiiiiio vdho,
VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD
52
manhã ale ao meio dia. O mercado principal 1'®
0 comprimento da grande rua direita, a qual por um .
tremo loca na Misericórdia, e pelo outio no- pvt acio c ■
ce-Rei. Esta rua he das mais bellas e grandes, cheia de
tendas de ioalhetros, ourives, lapidarios, lapeceiros, m®'® -,
dores de sedas, e outros artífices de cousas ricas. Lm
nuanlo dura este mercado ha tal concurso-, de gente na ,
que mal se pode passar. Não temeiu a chuva no ""■ «‘' f o ­
liem 0 calor no verão, por respeito daquelles giandes som-
hi ciros, ou chapeos, que cada uin traz, e que tem pelo me­
nos seis a sete pés de diâmetro;, de sorte que d ^ n d o a-
quella multidão está reunida, todos aquelles. somhieiros se
tocam, entre si, parecendo um só toldo inteiriço.
Uns très mez.es antes do eu partir de Goa foi oídenado
que o grande largo que está entre a Casa da Lainara e a
Inquisição servisse para se alargar este- mercado, por set
mui periueno o espaço da rua direita. Chamam, a este mer-
eado t ó l ã o , caoio- já disse, por se fazerem a a as anema-
tacões em liasta publica,. AHt se acham- inddterenlemente
toda a sorte de pessoas assim nobres camo. das outias clas­
ses. de todas as nacõesc religiões, para comprar e ^ende^
ou encoutrar-se com aquelles com quem. tem negocios a
tratar: porque este legar lhes serve de coramei-,
cie. Nrlo sáo os- oíllciacs d.e justiça, que alli fazem as ai-t
rematações, mas oiiU-as pessoas ijue parliculanueute tem
Il • este oílicio, de que pagaiu remia a El-iiei; pois nao liaoM-
cio, occupa^iãOv ou uiisIlm’, por inímio que
tenha seu rendeiro, ou coutraclador da parte d Et-nei, qu
'I c‘i7i (!o. acoM-^ue, a Rua do S-. Paulo que í^áe ao campo de S.
Laziuo, e outras' militas, onde ainda se conservam calçadas co
iVirmoc; rom a liescriDcao do auctor.
T,i,io 0 muis .ic « l U f i l e falia d.csa.iqiarecco, e esta u m e r m o
red 1L71(1cy. â ualmaiNfs-, oiv matto.. , .
Ndo meiUM o Convento de S. Caetanoq cm hora estado
e as minas dc oulros, por serem fiiudaçoes posteriores ao tempo
de Pyrard.
SEGUNDA PA RTE. 53
dabi tira sempre algum lucro. E ’ pois alli que se faz a
venda de Iodos os moveis, por juslica, ou amigavelmente, c
ha muita gente que vende por sua conta sem apregoai-,
nem aíTrontar. como se faz nas lojas, üs que tem cargo
de vender em hasla puldicaScão chamados prryoeiros, e lie
mister que dem hoas franeas, pois muitas vezes se lhes
deixam na mão grandes e ricas joias.
Nesta praça vè-se Ioda a sorte de mercadorias: e entre
outras quantidade de escravos, qm' são alli levados emno
aqui se iaz aos cavallos, EsU's V' nd(Mlor(‘s le\am apoz si
gramh's ranchos dellcs; e depois, para os vender, louvam-
nos e gaham-nos, repetindo todas as suas prendas, otlicios,
força, e saude; e os compradores de tudo isso S(* informam,
interrogain-nos, c examinam-nos da cahrça até aos pés cu­
riosamente, assim a machos como a femeas. E os mesmos
escravos, esperando melhor tratamento com a mudança de
senhor, mostram a sua hoa disposição, e se gaham a si
proprios, para mover a vontate dos compradores. Mas
quando os compram, assigna-se um certo dia lixo até ao
qual se pode retraclar o ajuste, aíim de que tenham tempo
de saber a verdade.
Entre os escravos enconlram-sc alli raparigas e mulheres
mui bellas e lindas de todos os paizes da índia, as quaes
pela maior parle sabem tanger instrumentos, bordar, co­
zer mui deticadamenic. e fazer Ioda a sorte de obras, do­
ces. coirservas, e outras cousas. Todos estes escravos são
a preço mui diminuto, e os mais caros não valem mais de
vinte ou frinta paníáos. moeda (|ue equivale a trinta e do-
us soidos 0 S3Ís dinheiros cada-uma. As moças donzcllas
são vendidas por laes, e fazem-nas observar por mulheres,
e neste ponto ninguém ousa commeller engano (a). Não
(u ) Vom aífiii a proposiio o seguinle dociimcnio, que adiámos
«a seu original « =l)iguo eu Berlollameu Pereira, casado, e nio-
« rador nesta cydade, qiie iic verdade qne eu veiidi liuma mos.sa
« minha por norne Uriatiz, da casta Coromhy, com todas hoas
«manhas, e sain, donzellu , e sabe taurar todo lauor dauihallas
14
:

VIAGEM ©E FRANCISCO PYRARD

tom nor neccado ter Irato com a escrava, que -compraram,


em caso que cila não seja cazada; mas quanuo o senhor
a caza, não pode mais ter aquellc Iralo desde que deu a
sua palavra para o cazamenlo. Entre estas raparigas na
algumas mui hellas, brancas, e gentis, outras trigueiras,
mbrenas, e de todas as cores. Mas as de que alli gostam
mais são as mocas Cafres de Moçambique, e d’ outras par­
les de Africa, que são de còr negra retinia, e tem o ca-
bello cres()o; e lhes chamam Negras de Ouine [‘à). uma
cous A notável observei entre todos os povos da Índia, e he
que. nem aos machos nem ás femeas fede o corpo ou o
suor; e pelo conlraião os Negros d’ Africa, tanto os da ca,
como os de lá do cabo de Iloa Esperança, cxhalam tão inao
cheiro, (juando tem o corpo quente, que lie impossível che­
gar-nos a elles, e o cheiro que lançam lie como o dc a-
Ihos verdes. ^
Se na Índia um homem tem um filho maciio dc sua es­
crava, 0 tilho é legilimaiio, e a escrava posta cm liberdade,
posto que não possa sair do serviço de seu amo sem o con-
senlimonto deste. O maior rendinmnto c riqueza da gen­
te de Goa c procedido do trabalho de seus escravos, os
e íi-dl, ba quail mosa ba noiii.ly por preso <ie srsei»ta ve-
« rali'G, hos qiiaos lo-o mo pagou lio diiibeiro, e eu sou satl^lu-
« lo, e liuí cmtreguci a dila esrraiia. e por -.xym pasar na 'crdo-
« (ie lhe (hd o<ie meu conh-‘CÍmesilo afinado por mym pera .> r
« «rarda- e eu Jorie Fernandes «lue este conhecimento tiz a rogo
« d-dles’ e nie asymiei civnio lesiemunha. Testemunhas n''l‘
« zenl-‘.s estauílo: Anloiiio Branqno. e l*ero da (.unjia. Oj<- - c
i. mez d(í .lulio de orge Fernandes--herlhohmf a
* reirúi.— Meslre Pedro. Do teslemunha Anlonio Brainquo ( uma
\ .^
Fsle documeiUo confirma cm parle a narrativa ‘1^ ^ ^
outra parte a corrige. A-sim vemos que o preço ^ ‘
ciie^ava a ser superior ao (jue o aiiclor aponta, e qut a r
terra lambem se lazia escrava. Veja-se a este respeito o que
tor disse a pag. 31 deste Tomo. , . , ■ a» M
( a ] ISegro ou negra de Guiné sao os da uandu ' -j
Africa; os da baiHa orieutul são na india gcralmeiUe conhe s
çelo noiue de Cafres,
SEGUNDA PARTE. 55

qtiaes entregam no fmi de cada dia, ou de cada semana a


conta a que são obrigados, e isto afora os mais escravos
que os senhores retem em casa para seu serviço.
No dito mercado ainda se vê grande numero de outros
escravos, que não estam á venda, mas (jue levam elles
mesmos obras de sua mão a vender iaes c»Hno conservas
de frnctas, e outras cousas; outros vão alli para gaidiar di­
nheiro a levar e carregar para onde se quer (|naes(juer oh-
jectos. As moças adornam-se muito para agradar mais. e
vender melhor a sua mercadoria; e ás vezes são chamadas
ás casas, e se alli se lhes fazem pro[»osições amorosas, de
nenhuma sorte se mostram esquivas, antes acceilam logo a
troco de alguma cousa que se lhes dê; e ainda muitas ve­
zes tratam ainoues para suas senhoras, a quem servem de
medianeiras, sem nunca lhes contradizer a vontade, on re­
velar 0 segredo, porque lhes são mui tieis. E todo o di­
nheiro (|ue ellas podem adquirir porquahpicrdestes mrios,
devem enlrogal-o a seu senhor e senhora, que a isso dao
seu Gonsenlimenla, e depois repartem cou) eilas segnmlo
bem lhes parece, mas as escravas não mostram stoupre tu­
do. Todas estas mulheres da Judia, assim chrlstãs. como
outras, on mestiças, desejam mais ter-tuato-com um homem
da Europa, ciirislão vclii-o. do que com os índit)s. c ainda
em cima lhe dariam dinheiro, havendo-se por mui honra­
das com isso; porque eilas amam muilo os homens i)ian-
cos de cá; e ainda ({ue haja índios mui brancos, não gos­
tam tanto d elles.
Vende-se lambem no mesmo mercado grande numero
de cavallos, hem aiTeados pela maior parte; e Svão da íVr-
sia e da Arabia, semelhantes aos cavallos de Herl)eini; e
valem quinhentos pacíirtos cm osso.
Em somma vèm-se alli todas as espccios dc riquezas
das índias, e as mais hellas jóias que ser pode. (Ia iam-
bem alüi cambistas, a que chamam Xarafos, que ÍLmaimen-
te estain eni outros muitos logares da cidade, e icm suas
56 VIAtiEM DE FRANCISCO PYRARD

bolicas nas esquinas das mas, e encruzilhadas, todas co-


bei’las de rnoeda; e pagam disto tributo a El-Rei. Tiram
grandes lucros, porque alli é necessário ter moeda miuda
para ir ao mercado, onde tudo he tanto em conta que ma­
is não pode ser, e nunca se compra senão o que é neces­
sário para aquclla hora, e não para todo o dia; de sorte
que se anda lá sempre carregado desta moeda, mui grossa
0 pesada, e de pouco valor, iia-a de muitas sortes. A pri-
ineiia chama-se/irtsarucos, dos quaes são necessários se­
tenta e cinco para fa/ier uma Tanga. íía outros Basanicos
velhos, de (jue são necessários cento e cinco {>ara a Tanga.
Abaixo desta moeda ha pequenos pedaços de cobre sem
cunho algum, a que chamam Arco (a), c são mister du­
zentos c quarenta para uma Tanga, (jue vale cinco soidos
dos nossos, e lá sete soidos e meio. Desta moeda uma ó de
t t.
ferro,, e outra de Calaim, metal da China. Quando estes
cambistas tem accumuladu muito dinhieiro de toda a sorte
de moeda, tornam a cambiar-a com os contractadores e ren­
deiros, a quem passam a moeda de prata e de ouro batida
em Goa, porque os recebedores do Estado não acceitam
outra em pagamento. Em quanto aos Larins, que é aquel-
la moeda de prata, de que já em outro logar fallei, vem da
.Persia e de Ormuz, e são procurados por toda a índia, por
seiem de mui boa prata, ulil, o propria para toda a sorte
de manufacturas. Estes catubislas devem achar-se em suas
boticas ainda nos domingos, e dias santos, e não ousariam
faltar a cambiar qualquer moeda pelo preço corrente. Pe­
sam 0 ouro e a praia. A moeda de prata de Goa é pois.
a de Pardáos, meios pardáos. Larins, e Tangas, as qua­
es valem sete soidos e seis dinlieiros cada uma. Alem
destas moedas ha a que vem de ílespanha, a qual tem ma­
ior valor epi Goa, porque a praia vale alli um terço mais
que em ílespanha. A moeda de cobre, e de ferro, a que
( a } Aiuda iioje existe, mas conhecida pelo norae de Jiode^.
'I
SKGUNDA PA RTE. 57
chamam Basarucos, é de pouco vaior, como os dinlieiros,
(3 ineallia. A s peças de ouro são Xerafins, que valem vin­
te e cinco soidos cada um; Venezeanos, e São Thomés, que
valem cincoenla soidos, e outras especies. Não se vô po­
rem alli moeda de ouro hespanhola, porque o ouro vale
alli muito menos que em Hespanha.
Perto da praça do Leilão, de que falíamos, ha outra, co­
mo lambem já disse, a que chamam do Pelourinho velho,
na qual ha de dia mercado de toda a sorte de fruetas, e co-
mesliveis. Mas depois de posto o sol, e chegada a noute,
e que os meirinhos e officiaes de justiça são recolhidos,
faz-se ahi outro mercado, a que chamam Baratilha, cm
que se vende a mui baixo preço, e como a medo, toda a
sorte de trastes roubados, como roupa, armas, e outras cou-
sâs, de que toda a praça fica cheia, sem embargo de scr
bem grande. E todavia, ainda que seja noute, os meirinhos
não deixam de passar por alli algumas vezes; e quando os
sentem, cada um se retira velozmente; e depois de ellcs
passarem, todos estes vendilhões voltam a vender as suas
mercadorias; e são ás vezes em numero de quatrocentos
ou quinhentos.
Nesta praça do Pelourinho velho se acham todos os San-
gradores, e quem carece de algum para sangrar os doentes,
alli 0 vai buscar. Todos estes sangradores são índios chris-
taõs, como igualmente o são todos os Cirurgiões, e Boticá­
rios. E m quanto aos Barbeiros, pela maior parte não são
christãos, e andam pelas ruas a barbear a todo o mundo,
porque a gente commum não põe difliculdade em se fazer
rapar no meio da rua; mas os homens de qualidade entram
para isso dentro de caza. Estes barbeiros são mui serviça-
es, e satisfazem-se com pouco. A maior parte dos Portu-
guezes fazem rapar a barba e o cabello.
No que toca ás aguas potáveis, de que se usa na Ilha
de Goa, é mister considerar que o rio cerca toda a Ilha, e
a maré chega, na enchente e na vasante, até á cidade^ Mas
58 VIAGEM DE FRANCISCO PYR/RH

ha em vários sitios muitas fontes de agua boa e excellente


para beber, que vem dos roebedos e montanhas, e se jim -
ta em regatos que regam a Ilha em muitos logares; o que
é causa de haver tanta copia de coqueiros, e outras arvo­
res fruetiferas. A lem disso ha poucas casas que não te­
nham poços, mas não para beber, porque a agua delles
não he boa, cxcepto a de alguns. Só servem as aguas
destes póços para banhar e lavar o corpo, fazer a cozinha,
barrelas, e outros usos; pois alli até os homens e mulheres
mestiças lavam as parles recônditas depois de fazerem as
suas necessidades, assim como fazem os índios. IJa tam ­
bém alguns tanques, e reservatórios mui bellos, e fabrica­
dos de pedra.
Mas em quanto á agua que ordinariamente se bebe, as­
sim na cidade como nos arrabaldes, a melhor e a mais sau­
dável e leve, segundo o meu parecer, é aquella que se vai
buscar a ura quarto de legoa da cidade, onde ha uma
grande fonte de agua bella e clara, chamada Banguenim
que vem dos rochedos. Os Porluguezes rodearam-na de m u­
ros, e a encanaram mui bem; e mais abaixo ha grandes
reservatórios, onde a maior parle dos hom ens e mulheres
vão lavar a roupa. Chamam a esta gente que lava a roupa
Mainatos. Ha ainda outros reservatórios para se banhar e
lavar o corpo. De sorte que o caminho é mui trilhado e
frequentado, apesar de ser penoso, por que é mister subir
c descer très ou quatro grandes montanhas. Não se vê
outra cousa senão gente que vai e vem a esta agua, e mes­
mo ás dez horas da noute vão em magotes com suas ar-
mas, e'm camiza e calções, a lavar-se alli.
Vende-se esta agua pela cidade; os escravos a levam a
toda a parte em grandes cantaros de barro, cada um dos
quaes contem dous potes (a), e vendem o cantaro a cinco
basarncos, qu e é quasi seis dinheiros. Poem-se com os seus
( a } Seaux ou Sceaux, medida franceza.
SEGÜNDA PA RTE. 59

cantaros em cerlas encrusilhadas, c não andam apregoan-


do pelas ruas. Fazem ajuste coin scus senhores sohre quan­
to lhes devera dar por dia, alem do sustento que tirara de
seu trabalho, salvo nos dias de festa’ e domingos que os
senhores lhes dão de comer, e quando estam doentes, lis­
te mesmo estilo guardam os escravos em todos os outros
mcsleres. Os Porluguezes teriam feilo nma boa obra, se ii-
'lessem vir as aguas desla fonte á cidade por aqueduclos e
canos, mas dizem que isto assim os enriquece, e occupa
os seus escravos; e que os estrangeiros se lograriam desta
lioa agua sem lhes custar cousa alguma; porque lia alli
mais estrangeiros que habitantes naluraes; e por estas ra­
zões não tem querido fazer conduzir aquella agua para a

Ha outra fonte junto a São Domingos, muito boa, e que


Tem de uma montanha, onde ha uma bella igreja chamada
de Nossa Senhora do Monte. He esta fonte mui comraoda,
e ha ahi reservatórios para lavagem de roupa; e também le­
vam a suá agua a vender á cidade, e por ser mais próxi­
ma vendem-na só por très basarucos] mas não e tao boa
como a de Banguenim. Alem desta ha outras aguas ao le-
dor da cidade, que muitas vezes fazem passar por agua de
Banquenim. Quanto álavagem da roupa, faz-se alli com ma­
ravilhosa perfeição, e mesmo assim custa mui pouco. I o ­
da a sua roupa é de algodão mui fino, c de longa duraçao;
e é lambem mui saudavel, corno eu proprio experimentei
durante dez annos que delia usei. Os Mafnaíos lavam mui
bem, e ensaboam uma camiza e um par de calções por do­
ns basarucos, e ainda trazem aquellas peças mui bem c
eagraçadamente dobradas, e pregadas, porque as dobram
e pref^am quando molhadas, e só depois as deixam enxu-
(rar- de sorte que estas dobras e prégas lhe duram longo
lemVo e fica parecendo a roupa adamas-’^ada, e fabricada
cora aquelles feitios. Usam desta roupa, assim para a me­
sa, comb para a cama, e para vestir, como, camizas, baca-
*
•«I ,

60 VIAGEM r s FRANCISCO PYRARD

Ibáos, lenços d’ assoar, e outras cousas. A maior parte da


gente muda de roupa todos os dias. Uma excellente ca-
miza nao costa mais que uma tanga, ou sete soidos e meio
rV vÍhosr""“* ® quantidade ma­
to m^*l “ ?uas; a de Banguenim é estimada pc-

Té p Mp ; n r ^ P®-®® cazas,
fp Jo u uao ''ao buscar a outra parte, porque
emem quo se lhes lance alguma cousa na agua que hão de
beber. Bebem por taças de cobre, feitas em forma de pe-

do bebem, como ja disse; o que os Portuguezes, e outros


thristaos da ín d ia observam também. Alli todos bebem só
agua, assim homens como mulheres, rapazes e raparigas-
e grande desboiira entre elles beber vinho; e se o fizessem
lhe seria lançado em rosto como grande injuria. A s mnlhe-

um ate dous copos ao jantar e ceia, mas sempre pouco e


sem agua. Este vinho vem de Portugal; mas os que não
tem meios bebem só vmAo de passa (a). O de Portugal va-

lí Mascate, feiia em* espir*ilo*d*e*^nil'm«-*'’ “’’‘•‘"■''riamente vem de


era espirito de (Slraefra a plroSo de raotira
so por® 3 a 4 di^, e dlpoii^ de hem l®*** 1®
punha cm mn barril proiudo de esniíiio^»®‘'*‘^i®*’ ®'"f“são, se
va depois de 6 a 8 Tezes P»''"«"-». « «ielle se usa-
outra feila de lamaras para^dar d T u ?a jf!"'!?''» « ,'"f''são referida
de pas.sas, mas faz-se outro chaT^lo T w * o
palmeira do preço de 3 a 3 t xeTafins em*Tm* K * d e
ler v i n h o d a E u r o p a , e c » n s e r v a - s e o é r T , s
horras de outros barris, e denTs de fi a s T . , * '‘J " '“ am-se lhe
do assucar queimado para d a r r iir pta elarihca se, ajiintan-
confunde-se com o branco- mas esfrê-Sín n "^‘’ i ” ’“ ‘ ® ‘ “ "P o
ser confeiçãf), e iiào a verJadeiro v íp Ra I ? da mâo conhece-se
nho de espirito fraco dc nalmeTA I vi-
íructas, tírando-se-lhe ^o máo ’ cheíro^nA^^^ caj« jamboíão, e outra.s
m a o c h e i r o p o r m e io d e c a r v ã o v e g e t a l .

11
SEGUNDA PA R TE. 61

le a quarenta soidos a canada, que é a nossa pinte (a). E


0 melhor vinho de passa não vale mais que vinte e cinco
basanicos, ou seis brancüs{b), e é bom, e forte. O do Por­
tugal é um pouco acido quando chega a Goa (c). O outro
vinho, que é branco, e a que chamam Orraca, não vale mais
de dez basarucos, e é ordinariamente usado pela gente de
baixa condição, e pelos escravos, que com elle se embria»
*/um frequentemente; e aproxima-se da agua-ardenie.
Bebem agua em vasos feitos do mais bello e fino barro
que ver-se pode, e nelles se faz a agua extremamente boa
e fresca. Estes vasos são esmaltados, e ornados com mil
sortes de figuras, animaes, c flores, de cor negra e vermelija;
c são tão li nos e delicados como vidro; e cada vaso tem a
sua tampa. Os de que ordinariamente se servem são em
forma de garrafas de vidro, á excepção de terem a bocea
mais larga, e o fundo do gargalo mais estreito. Ha uma
cspecie de vasos de barro mui delicados, todos furados de
pequenos buracos symelricos, c tendo dentro pedrinhas que
não podem sair, c servem para limpar o vaso. Chamam-lhe
Gargolela; e delia só sáe a agua a pouco e pouco, eainda
que a voltem de bocea para baixo, não cáe nem umagota.
Zombam dos que não sabem beber por estes vasos, como
lios acontecia a nós; mas não julgo muito bom este mo-
( a ) Segundo a raellior conla a pinte franceza equivale a meia ca­
nada porlugueza.
( 1) ) Não podemos bem saber que moeda seja esta, a que o auc-
tor chama brancos. Houve em Portugal no século X V , e ainda no
X V Í reaes brancos, que são os que ainda hoje formam a base da
nossa moeda porlugueza. Mas não nos parece que seja a estes re­
aes brancos que o auclor a(]ui allude: 1.® porque na cpocha ein
que elle escrevia estava já como obsoleta a denominação Ú6 brancos
nos reaes; 2 ° ponjue os vinte e cinco basarucos valem muito mais
que seis destes tacs reaes brancos, de que falíamos. Seriao os bran­
cos do auctor alguma moeda franceza, que elle íoi buscar para
termo de comparação, assim como ordinariamente faz com os soidos,
ílinbeiros etc. francezes?
í c ) .Seria assim o viulio ordinano; mas o bom vinho não toma
acidez.
VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD'

do dc beber, porque causa ventosidades, è por isso ba mui


tos Porlugaezes que o não usam (a). C op os de vidro só
lem os que ibe vão de cá ou da Pérsia, mas são muito ba­
ços; por isso não os lem em grande estimação, e ainda
porque tem porcellanas da China em muito boa conta.
Mas tornando á ilha e cidade de Goa, é ella como o em-
porio e desembarcadouro de toda a índia; e maravilhosa*
mente bem povoada; porque alem dos estrangeiros que a-
lii abundam conlinuadamenle, ha Portuguezes, que são os
senhores delia. Mestiços, índios christaõs, e grande nu­
mero de outros índios infiéis, mahometanos ou gentios,
Panianes de Cambaya, Canarins de Goa, Bramenes, e ou­
tros semelhantes, que ahi habitam, e fazem grande trafi­
co e mercancia; e destes ha muitos ricos com outenta e
cem mil escudos de seu; e são os que trazem as rendas
reaes de toda a sorte de mercadorias, e nada se pode ven­
der sem 0 consentimento destes rendeiros. Cada uma das
classes desta gente tem suas ruas apartadas, e nellas suas
^ n d a s ou bolicas para cada sorte de negocio; porque os
Portuguezes não exercem alguma arte mecanica, por maior
que seja a sua necessidade; mas se dizem fidalgos, e vi­
vem á lei da nobreza; e comtudo traficam no que bem
lhes parece, e só elles tem faculdade de menear e ter ar-
iTias, 0 que não é permittido aos índios, se não são chris-
'
/ ■ "
í !
í iaõs.
Os homens de qualidade Portuguezes não andam senão
n cayallo; e tem grande numero de cavallos, que vem da
Pérsia e da Arabia, os quaes são bonitos e bons, e se se-
nielham aos de Hespanha, salvo serem mais pequenos. E s ­
tes cavallos são amançados por picadores mui destros, que
vem das terras do Dealcão. Os^ arreios destes cavallos vem
de Bengala, da China, e da Pérsia, e todos são bordados
de seda, adornados de ouro e prata, e pérolas finas. Os es*
( a ) Este especie de Gargoletas é hoje pouco ou nada usada em
vmliaiü das terras do Sul-
SEGUNDA PA R TE. 63
tíibos são de praia dourada, as redeas cravejadas de pe­
dras preciosas, e ornadas de campainhas de praia. Quan­
do não andam a cavalío, são conduzidos em liteira, ou pa-
lanquim. Quando vão pelas ruas^ são acompanhados de pa-
gens a pé, lacaios, e moços em grande numero, os quaes
levam armas, e vestem a libré da caza. N u n ca saem estes
homens sem levarem um escravo com um grande guar­
da-sol, a que chamam sombreiro, que lhes tapa a cabeça;
e aquelles que não tem posses para ter escravos, levam el-
les mesmos o tal sombreiro.
As mulheres de qualidade também não saem senão sen­
tadas e conduzidas dentro de um palanquim, que é uma
especie de liteira, levada por quatro escravos, coberta de
pannos de seda, ou de couro (a); e são acompanhadas de
muitas escravas, todas mui bem vestidas de pannos de se­
da; porque a seda é alli tão commum, que todos os creados
se vestem delia; as damas e pessoas qualificadas mais que­
rem usar algum tecido destes paizes da Europa, do que
trajar sedas.
Só os Portuguezes podem ser providos em officios, e be­
nefícios. Os soldados da guarnição são Portuguezes. Os
mercadores e arlifices são todos índios, como já disse, c
tem as suas bolicas, pagando tributo a El-Rei, assim das
mercadorias como das boticas.

CAPITU LO V-

n o g o ve rn a de G o a , do V fic e -R e l» d e su a C o rte * c m a g .
nificencia»

cidade de Goa é governada pelo Vice-Rei, que tem po­


der sobre toda a índia. De tres em tres annos El-Rei en-

( a ) Os palanquins propriamente ditos nào são hoje usados em Goa


posto que ainda o sejam nas províncias do interior da índia, üsaml
64 VIAOKM DE FRANCISCO PTRARD

Tia urn, 0 qual nunca entra sera o seu predecessor ter saí­
do, e este se retira a uma caza destinada para esse eiiei-
to. Sendo retirado, entra o novo cora grande magnificên­
cia c tnum pho; levanlam-Ihc muitos arcos Iriumphaes des­
de 0 desembarcadouro a t é á Igreja Cathedral, e cada offi­
cio, e classe de mercadores fazem o seu em competência
nus com os outros. E ’ acompanhado de todo o clero, no-
b r c p , povo, mercadores, e artifices até ao seu palacio, com
muitas salvas de arlilheria, fogos de alegria, e outros ap-
paratos. Se acerta de morrer o Vice-Rei dentro do espaço
de tres annos, o Rei envia outro, e no entretanto a cida­
de nomea quem sirva (a). E m quanto eu estive em Goa
VI quatro providos uns apoz outros (b). A q u e lie q u e estava
q u a n d o salii de Goa chamava-se R uy Lourenço de Tavora.
se outros transportes da mesma especie, chamados Machilla: de va­
riados feitios, para uma e para duas pessoas. Em quanto á cober­
tura c a mesma que descreve o auctor; devendo advertir-se que a
WI*
cobertura de panno, ou seja de seda, ou de outra droga, é propria
para resguardar do sol no verão; e a cobertura de couro, ou paur
íio oleado, serve para resguardar da chuva no inverno.
( a ) Continuada com este periodo, e á margem segue-se no nosso
exemplar um»iVota manuscripia, em frnncez, e de letra lambem fran-
ceza, que parece ser do século X V II, que diz: -= k lo lie falso,
porque quando tal caso acontece, succede aquelle que de anic-
« mao ja esta nomeado por El-Rei em Provisões, que se conservam
cerradas, ciiamadas vias de successão; e se abrem quando aconte-
« ce morrer 0 \ ic e - R e i= x Observação exacta , e que não carece
de mais rectihcação, •
{ b ) O auctor ‘chegou a Goa em Junho de 1G08 quando governa­
va 0 E^ado por via de successão o Arcebispo D. F r. Atei xo de Me­
nezes. E tendo morrido na viagem o novo Vice-Rei D. Jocão Perei­
ra Forjaz, Conde da Feira, abertas as novas üí«.? de successão saio
nomeado nellas André Furtado de Mendonça, que tomou posse do go­
verno a 27 de Maio de 1601), e governou a*té 5 de Setembro do mes­
mo anuo, eni que entregou o governo ao outro novo Vice-Rsi Ruv
Eourenço de Tavora, que íicoii governando quando o auctor recressoíi
a Europa. Donde se vê que os quatro providos no governo que ellô
Ojionta no seu tempo são; o Arcebispo D. F r. Aleixo do Menezes; o
\ice-Hci Conde da Feira ( que tedavia não chegou a governar ) •
Mendonça; e o Vice-Rei Riiy Lourenço de Ta-
SEGUNDA PA R TE. 65

0 Vice-Rei é alli obedecido como o proprio Rei,, e Icm


a mesma aueloridadc, podendo concedor graças, on con-
dcinnar á morle, c\cej>io aos Bol>res, a qnem chamam Fi-
dalgm; poiapie estes, ap'peilando em causa crime ou eivei,
são mandados a Portugal presos com fen os aos ptés. \ i
em (xoa um soldado^ (jue tendo sido coíi dem nado á mor­
te por um homicidio,. ([uando era levado ao supplicio a
um quarto de legoa da cidade, acertou por sua boa fortu­
na de ser encontrado pido íilbo do Vice-Rei, qu;e j,a era
provido na capitania de Ormuz, posto que (uvtão ti-vesse-
de idade dez. ou doze annos,. o (},ual averiguando o caso, e-
lançando'Se-lh:e aos pés o pcofecenlc a pedir gi‘aça, per­
guntou ao seu aio se podia ir pedir isto a seu pai sem o
enfadar, e sendo-lbe respondido^ que sim, foi Logo sem de-
tenea ao palacio fazer humilde suppbca de graea a seu
pai, que lha outorgou,, com lan tO M p ie não f o s s o cousa que
tocasse ao Ksiado, e sennço d’ hd-Rei,* e leiulo o \ ice-Rei
sahido 0 ({.lie na verdade era, foi mui Ledk) d'e ver o boni
natural de seu íllho; e todos os que professavam armas Iho
deram muitos agradecimentos;, com o que Ikou livre O' po­
bre condeiunado’ i a).
(> Vice-Rei não se fam.iiiarisa com pessoa alguma, nem'
vai a festas ou l)aiuj.uetes; sáe rar.as- vezes, salvo nas piin-
cipa-es dias íestivos, ou em outros- (}:ue Ibe apraz. Na vés­
pera do dia em (jue- edie hade sair. anda-se toca>nao>lambor
e trombola pela chlade, pai'a advertir a íukdgiiia, como já
disse, que S(í j.unla vestida de gaia e a cava.!lo de Ironte clo
palacio; G' cbeguei a- ver alli aJgu.mas vezes liezenlas (■ (|.ua-
trocciílas pessoas.. Ksies (idalgos vao sotxuDameiile tiaja-
dos,. e seus cavallosaGoi/'ei'tad-os de oui'o,. prata, brocados,,
pérolas, e pedia.s preciosas, (juaiulo' cada. um dídíos- chega,,
apea-se, e entrega o eava-llo a seus moco^ de eslrihciia,.
que todos sTm Mouros, isto é,. Mahoinctanos- de i3a!agale-
( a ) Du mesma letra franecza tem á margem esta xSola~ ismiun-
c rip ta — « íilüo do Aíu‘e-ll.ci era Ctirislovao de la v o ia —
i- , r.-
^r/ \

66 TIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

ou Dccan, e são os que Iralam dos cavallos. Esles homens


adcslram mui hem um cavaüo, e n“m o temem por mais
Lravo e manhoso que seja, e assim o montam em osso, pi­
cam-no, c despcdcm-uo a ioda a bi ida sem nunca cairem.
Os seus cavallos são o mais gordos e luzidos que é possi-
vel; e para os domar, e pôr mais seguros, chegam-lhes tam­
bores cheios de mui Ias campainvas, á semelhança de nos­
sos tambores hiscainhos (a); e pai-a os fazer correr a ga­
lope, atam-lhe pequenos haloíes nas juntas das pernas.
Nunca vi cavallos tão velozes como aquollcs; vem pela ma­
ior parte da Pérsia, e também da Arabia, c estes são es­
timados por melhores. Comem pouco; e dão-lhe feno, mas
mais ordinariamente erva verde; e lambem lhe dão um
certo grão, que se assemelha a lentilhas. Tratam os ca­
vallos com tanto resguardo, que quando estam na estreba­
ria os cobrem intci iam ente, c ale lhes poem uma especie
de colchão para se deitarem; dão-ihe de beber á mange-
íl !.'* doura; e prendem-nos pelos pés posteriores, para se não
ferirem com couces.
Mas tornando aos senhores, e fidalgos Pcrtuguezes; quan­
do se apeião, aquelles moços da esliibeira recebem os ca­
vallos, dos (juacs tem grande cuidado, trazendo sempre ca­
da um dellcs o seu espanejador formado lambem de cauda
de cavallo com cabo de páo para enxotar as moscas, um
panno, uma esponja molhada, e um pente n’ um sacco,
para limpar a escuma esu o r do cavallo, burni-io, e dar-lbe
i lustro quando é preciso. Usam bellos telizes de veludo en­
carnado, a maior parle delles com franja, e bordaduias;
os mais ricos c estimados são de escarlata; c servem para
cobrir os cavallos (juando os senhores se apeiam, porque
í'íí estando montados não poern Iclizes; nem quando andam
pela cidade usam botas ou esporas. Os lóros são de seda,
e as fivelas, e outras guarnições, de pi‘ata. A cauda do ca-

{ a } Tabourins de Basque, diz o original.


SKfiUNDA PARTE.

vallo c atada, c cobcria de uin raldclio formado de anoeis


e ar<^mlas do ouro e prata adornados do pcrolas c pedias
preciosas. Alein destes cavallos niandani mui ordinaria­
mente ir comsigo iima liteii’a on paiaiupiim; c sempre, on
vão a \:é on a cavallo, o sen sombreiro on guarda-sol, as­
sim quando faz calor como quando chove. E mesmo quan­
do vão a pé fazem levar apoz si o seu cavallo e palanquim,
e pagens até o munero de dez ou doze,
Estes pagens não são nobres, mas moços vindos de Por­
tugal, que ainda não tem forças para {)egar em armas. A n ­
dam todos vestidos do seda, da libre i) cores de seus amos,
trazem capas, e sò servem paia os acouipanliar, e fazer os
seus recados; e não acoíii{)anliam com os outros servido­
res. Álem destes pagens tem seis ou sete grandes cafres
de Moçambique, que trazeui capa e esj^ada, e lhes serva m
de lacaios. Trajam de modo diverso dos pagens, mas to­
davia das cores da casa; e os trazem para siia segurança,
porque estes cafres mais depressa mori eião, do ({ue deixa­
rão fazer o menor mal a seu senhor; pois são mui animo-
sos; e de nonie trazeiu outras armaí^ como [tiques e bala-
bardas; cbamam-lbe Peões ou Cafres.’ 0> pagens Poiluguc-
zes nunca vão aíraz de seu amo, por maior senhor (jue se­
ja; c se vão. é a cavaiio. como entre nós fazem os gentis
bomens a[)oz os Príncipes e Senhores. O Vice-Rei, que no
ineu tempo havia em Goa. (piando sabia, seu íillio não liia
com elle, mas alraz uns duzentos ou trezentos passos, com
seus fidalgos e sei vidoi’es; e ordinaiiamente os de maior
qualidade,, que querem agradar ao \ ice-Uei, acompan: am-
Ibe os hlhos; e (Ts outros vão com elle.
Na igreja e nas procissões o Vice-Rei vai do lado direi­
to, e 0 Arcebispo do esquerdo. O filho do \ ice-Piei vai lo­
go atraz, por ter a capitania de Ormnz, e ser assim a. p^ri-
irieira pessoa abaixo do Vice-Rei; porque (juem íoi Ca­
pitão de Ormuz não pode ser ua índia oiilra consa senão
yice-Rei. Com tudo o Vice-Rei pcssoalmenle não é tão Ja-
C8 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

do á nfiagniíiccneia como os fulalgos. Todos os que tem Câ-


vallcs, ainda que não sejam nobres de linhagem, nao dei­
xam de acompanhar o Vice-Rei; porque alli todos se di­
zem nobres. Quando o \ ice-Rei ou os lidalgos se recol eiu
a Portugal, vend?m Iodos os seus cavallos aos outros que-
cliegam.
Quando um Vice-Rei chega á Índia desembarca em
Paugim, como já disse; de|>ois manda avisar da sua che­
gada com as provisões dos seus poderes, as quaes saq a-
Lertas nas casas da Camara cm presença do antigo Vice-
Rei, que se ap|>arelha a deixar o posto; e os olliciaes do
novo Vice-Rei fazem mobilar e arranjar o palaciq. Sele ou
oito dias depois distoé recebido como Rei, c se fazem para
este eííeilo grossas despezas. O antigo Vice-Rei vem ao
encontro do outro, c lhe faz uma falia, que diz, que liie
entregíi na sua mão todo o Estado; e de (|ue modo deva
proceder assim com os índios, como com os PorUiguezes,
aos quaes por sua arrogancia é mister ter a redea Icza..
Isto feito, retira-so, e depois visilam-se pouco, por gran­
deza. Desde então o \dce-Rei está fóra do cargo, e }a se
lhe não dá o tratamento de Senhona, porque na índia só
0 Vice-Rei e o Arcebispo tem este tratamento. Aos oulros^
dá-se Vossa Mercê, e aos occlesiaslicos Reverencia e Pater-
vidade. O novo Vice-Rei traz comsigo todos os oIFtciaes
/ V«'♦./
da sua caza, e não toma outros, salvo se alguns morreram
na viagem. O Rei paga salario a todos os servidores do
Vice-Rei.
Logo que um Vice-Rei chega, todos os embaixadores
dos Reis da índia o vão cumprimentar; e éllc despede cor­
reios a todos os Reis amigos para confirmar a allianca, os
quaes llie enviam embaixadores extraordinários com pre-
zentes, fazendo corn elle como uma nova alliança. No (iin
de Iodos, os cbristaõs da terra ( e não os Portuguezes, que
não querem que se saiba o seu numero ) fazem seu alardo;
e tem por capitão um Portuguez ou Mestiço, e são todos

; • -S
SEGÜXDA PA R TE, 60
obrigados a 1er armas. Não se jiinlara todos cm um só dia-
mas cada frcguezia em seu, e é sempre em dia saiiclilica-
do. Islo faz-so em presença do Vice-Ilei, iio campo de
• . Liumo, ou passam em formatura por diante do palacio
da fortaleza, estando o Vice-Rei na sua galeria, e o capi-
tao llie foz uma falia, e todos llio prestam juramento. O.s
mlieis nao fazem alardo, nem lires é perraittido ter armas
em suas cazas.
O Vice-R^ei não vai comer a parte alguma, salvo no dia
( a Uuvei-sao do S. Paulo ao Collegio dos Jesuilas, e no
dia da Gircumcisao a caza do Bom Jesus. E ’ servido com
apparato real e m ’sua comida, e come só; apenas o 4rce-
luspo rai algumas vezes comer com elle ao palacio Nos
(lias das festas sobreditas os maiores fidalgos comem com
elle a mesa, mas não em frente delle, nem do seu prato
.\s casas pnncipaes mandam ao Vice-Rei muitos maniares
delicados e e.vcelleute.s; mas elle nunca os prova, pÒ a ,m
eme muito ser envenenado. Só se fia dos Jesuilas, e ató
- Jesuilas joticanos, que ordinariameule lhe dão os re-
mcd.os; de sorte ,,ue estes Padres estam em grande c ó . l
ceilo e Cl edito para com elle.
Ern quanto aos ordenados e propinas do Vice-Rei são
dos grandes lucros que eile
pode tirar durante os très annos do soo cargo, que nion-
am as vezes a perto de um milhão de ouro (a), O^ordcnado
ic de tnnla mil cruzados, cada um dos quacs vale dous
pardaos pouco mais ou m en os, o que iião clicraria a
■ sua susteiitaçao, se não foram os presentes, e oal>-ys pro-
leilos, que estam em pratica, e moulam a nuiiio. que
governadores, o ofíiciaes^de
™ promplamcnte visitar para obi.er delle afoum
lavo, como por c.vemplo, uma capitania do viagem, dí«-
niJadc, ou outra coiisa semeliianle; e para osso li'm ifie fo-

18
70 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

zem grandes presentes; e mesmo sem esse intento Ihos fa­


zem segundo o valor e rendimento de suas fortalezas, a
menor dasquaes deixa doze e quinze mil cruzados; porque
elles não podem roubar, e fazer o seu negocio sem o fa­
vor do Vice-Rei. Todos servem os seus cargos só por 1res
annos, e durante esse tempo é mister que juntem para o
resto de sua vida.
O Vice-Rei faz grandes mercês e dá recompensas em
cargos, rendas, e dinheiro, aos que tem bem servido a L l-
Rei, e aos eslropeados, viuvas, e orfaõs; tudo á custa da
fazenda real; e dá de sua mão muitos cargos e officios.
Os que tem feito serviços a El-Rei precisam certidão del-
le para lhe serem levados em conta, e lam bem devem ter
a assignalura dos capitaes, com quem tem embarcado. M as
0 mal está em que o V ice-R ei tira dinheiro de todas es­
tas mercês e ofíicios, e faz persuadir ao Rei que os da, e
para isso despacha grande quantidade de petições de mer­
cês, e 0 V edor da Fazenda e os Thesoureiros se enten­
dem com elle, uegando-se a dar o dinheiro, e todavia dão
conta a El-Rei como se o tivessem pago/ e o mesmo fa­
zem quanto á paga dos soldados, officiaes, e marinheiros.
O Vice-Rei dá esmola ordinaria duas vezes por semana,
e nos dias de festa, e domingos em que sáe. Esta esmo­
la é só para os índios christaõs pobres, a quem o seu es-
inoler dá dinheiro no largo do palacio. Se ha algum a
mulher viuva de Portuguez, mandam-na pôr á parte, e dá-
se-lhe mais que aos outros índios. Quanto aos soldados,
marinheiros, e outros Portuguezes pobres, entram na gran­
de sala pintada, que já disse; as mulheres e crianças fi­
cam n' outra; e o V ice-R ei manda ao seu mordomo com
0 esmoler para lhes dar dinheiro. C hega a dar n’ um só
dia duzentos ou trezentos pardáos. Todas as m ulheres e
donzellas Porluguezas vêm em palanquins cobertos, e e n ­
tregam suas petições, nas quaes declaram a sua supplica,
e os fundamentos delia; e no seguinte dia vem ver se tem
SEGUNDA PA R T E, 7 i

tido despacho, ou não: as que estam doentes podem m an­


dar outra pessoa. Esta especie de esmolas dá-se segundo
a qualidade das pessoas. O Vice-Rei recebe todas estas pe­
tições, e as despacha em pessoa no dia seguinte; mas de
tudo isto tira bem a desforra em dobro (a). E nvia alem
disso frequentes vezes esmolas ás prisões, igrejas, pobres,
hospitaes, e outros logares pios; e caza muitas donzellas,
e mulheres viuvas.
Ora nos très annos que assim o Vice-Rei, como os ou­
tros capitaes estam na índia, tem mais cuidado de se en­
riquecer, do que de guardar e conservar o Estado; e em
tão pouco tempo não podem fazer grandes progressos na
guerra. Porque no primeiro anno o mais que podem fa­
zer é saber o estado e forma do governo, conhecer os po­
vos, e enviar armadas. N o segundo anno enchem as bolsas,
porque não dão nada do seu; e se é mister dar prezcntes
aos reis, senhores, embaixadores, e outras pessoas, isso
corre por conta da fazenda real (b). E m quanto aos ca­
pitaes e fidalgos Portuguezes, esses não recebem outros
presentes, senão capitanias de viagens, permissão de cer­
tos tráficos, ou privilégios e cargos. Aquelies que não en­
tram nos cargos esperam ser generaes, capitaes mores, ou
seus immediatos, e ter o mando das frotas e armadas de
guerra ou mercantes que El-Rei envia a differentes partes.
Chegado o terceiro anno o Vice-Rei vai ás vezes visitar
com uma grossa armada todas as fortalezas da costa da
índia, que se extende desde Goulão até Ormuz; mas elle
tira grandes lucros desta viagem, assim dos capitaes e go­
vernadores, como dos outros officiaes, e do proprio paiz;
( a ) Este excesso de malícia do auctor tem aqui pouca descul­
pa, e é tanto menos cabido, quanto em outros iulinitos logares el­
le trata com todo o rigor e severidade, que quer, aquelies actos,
que verdadeiramente o merecem.
( b ) Outra malicia do auctor, que bem sabia que em parte ne­
nhuma do mundo taes despezas se fazem nem devem fazer á cus­
ta particular dos Yice-Reis ou governadores das Provincias.
- ' »' • ’ S '

72 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

e ainda todas as despezas correm por conta da fazenda


real. De sorte que não é maravülia enriquecerem tanto
os Vice-Reis, alem de seus servidores e olílciaes em nu­
mero de cincoenla ou sessenta, que ficarn abastados para
toda a sua vida.
Se por ventura acontece alguma disgraça ao Vice-Rei,
que vem de Portugal, como muitas vezes acerta; o outro
não fica com isso pezaroso; como succedeo no anno an­
tes da minha partida, em que o Vice-Rei que vinha, e se
chamava o Conde da Feira, rnorreo na costa de Guiné, e
seu corpo foi levado a Portugal. Vinha com quatorze na­
vios, dos quaes só cinco chegaram a Goa, c o resto pcr-
deo-se, e foi tomado pelos líollandezes. E c para notar
que dos que morrem na índia só os corpos dos Vice-Reis
são levados a Portugal. Quando o Vice-Rei recolhe a Por-
tggal, escolhe os navios que quer, e os faz prover de man-
limcnlos a que chamam Matalotagem, para c-lle e sua co­
mitiva; e ha tempo para isso (a). E quando os Portu-
guezes sabem que algum Vice-Rei, Arcebispo, ou grande
senhor, c capitão se vai embora, cuidam em se meter no
seu rol, e obter licença para se irem com elle; porque nes­
te caso todos quantos vão no navio, tirada a gente do mar
0 oíliciaes do mesmo navio, que levam, e tem a sua ma-
lalotagem á parle, são sustentados de graça, ou sejam íi-
dalgos, ou soldados. Assim quando algum grande senhor
se apercebe para se embarcar para Portugal, faz meter
mantimento para toda aquella gente, alem do que para si
ha mister. E todavia é preciso grande favor para alguém
entrar no rol do Vice-Rei; porque para uma pessoa "se ;i-
viar bem de mantimento para a viagem não despende
menos de duzentos ou trezentos pardáos.
E porém grande infelicidade para os Portuguezes da
Índia haver algum Vice-Rei agastadiço, colérico, ou vicio-
( a ) Em regra as monções eram estas. Chegavam ás náos a ín­
dia em Setembro; e saiam para a Europa em Janeiro.
SE<îüNnA PARTE.

Z0, como muitas vezes ha, ou seja por sua inconlinencia


com mulheres, ou por outros vicios; porque tem elles tal
privilegio, poucr, e auctoridade, que quando desejam uma
bella donzella ou mulher, é bem dirticil (jue por dinheiro,
amizade, ou por força não logrem o seu intento. Mas de
ordinário não carecem de violência; antes as mulhe:es ti-
cam com isso mui contentes, e se hão por mui honradas
e gloriosas; e se ellas tem marido, este he mandado pelo
Vice-Rei a alguma viagem distante (a). Mas muitas vezes
( a ) Não será sem curiosidade confrontar este paragraplio com
outro de Diogo do Couto no Soldado /Vaífco, Parte 1 , pag. 4 2 ,
onde diz=« que torpezas e fealdades se coinettem nas miseras ci-
« dades que eiles ( os Vice Iteis ou Governadores ) vão visitar? Em
.« se 0 Governador aposentando em (jualquer deltas, se não for mui-
<( to continente, não faltam curiosos que lhe dem para alvilre, que
« fuão tem huma lilha fermosa; e que fuã traz requerimentos com
« elle, que he cortezã, e hem disposta; que outra, (jue tem o seu
« marido prezo, que he muito hem parecida; e estes alvitres não
« os traz por ahi qualquer coitado; mas acontece algumas vezes ser
« pessoa tão grave, e de tal habito, e estado, que por temor de Deos
« me callo A mim me aílirmaram que houve Governador, ou Viso
« Hey , que pedio de rosto a hum homem pohre, (]ue lhe pedia hurn
« oflicio, huma íilha sua, que tinha, mui hem assombrada; a que
« lhe respondeu 0 pohre: « Que minha íilha não tem outra cousa de
^ seu mais que ser honrada; e nunca Deos tal (jueira que eu fa-
« ça. » Ora vede ([ue bofetada esta para hum Governador? e para
« se não metter logo Capucho, ou ao menos dar hum bom cazamen-
« to para tal íilha de tal pay ? Não me lembra o que nisso [lassou;
« que eu não me achei naquella cidade, e assim o ouvi contar a
« jiessoas graves: não quero íicar com restituição de nada. E se o
« Governador, ou Viso-lley da Índia não tiver tanto resguardo em
« si como Alexandre, que não quiz ver as lilhas de Dario, segun-
« do a maldade he grande, íicará rendido, e desbaratada a razão;
« e 0 entendimento íicará prostrado aos pés de seus a{)j)etiies, (|iie
« he 0 mais abatido estado ipio pode ser; porque mayor gloria he
« vencer hum homem a si proprio, que tomar grandes e poderosas
« cidades: e se os soldados virem que o seu capitão se deixa vencer
« da moça de Capua, como o seu {sic) Anibal, também se deixarão
« esquecer de sua obrigação^»
Estes dons testimunhos, ambos contemporâneos, e de tão diversa
origem, não deixam de ter grande valor liistorico ; devendo todavia
advertir se que nem um nem outro auctor era inteira mente isenta
de paixão: Pyrard pela rivalidade de estrangeiro, que elle não dis.
19
^^ VIAGEM DE FRANCISCO RTRARD

acontece que como todas estas riquezas dos Vice-Reis vem


da pilhagem e do roubo, porisso o mar fica sendo seu
herdeiro, e perecem miseravelmente (ah
Esta frequente mudança dos \ ice-Reis não agrada aos
Portuguezes e á outra gente da índia, nem tão pouco a
semelhante mudança que ha nos capitaês das fortalezas, o
outros ofíiciaes; e para significarem isto, contam que era
ue uma vez um pobre á porta de uma igreja, com as per­
nas todas cheias de chagas, nas quaes pousavam as mos­
cas em tal quantidade, que fazia grande compaixão; peio
(fue outro hornem^ se chegou a elle, e julgando que lhe da­
va muito gosto, lhe enxotou todas as moscas, com o que
0 pobie paciente se agastou muito, dizendo que as moscas
que elle enxotava já estavam fartas, e o não picavam; mas
as que viessem de novo famintas o picariam muito mais.
Assim ( dizem elles ) acontece com os Vice-Reis, porquê
os fartos se vão embora, e vem os famintos. Todavia o Rei
usa destas mudanças por duas razões; a primeira pelo me­
do de algum levantamento, porque os capitaês não entram
todos ao mesmo tempo, mas agora um, e logo outro* a se-
^ a ^ r a enriquecer e contentar a seus súbditos, porque
íarça, e pelo que padeceo era poder dos Portuguezes- Couto nei i
pouca acceitaçao e até perseguições que recebeo de alguns gover-
uantes, e outras pessas poderosas, que ou por inveja de seu talenU
! e applicaçoes litterarias, ou por teraor da veracidade da historia ao-
plicaram todas as diligencias para impedir a creacão da Torre do Tom­
bo da Índia, por ser idea delle, e a escritura *da historia aue to-
mara a cargo, bohre isto vejarn-se as obras do mesmo Dio^o do
Couto, e alem disso alguns Documentos, que agora pela primeira
a luz no Fasciculo 3.« do nosso\lrc/i1oo

1 1^ também disse no Soldado Pratico, Parte


I, pa^. por onde certo que cuido todo o dinheiro da índia
■c lie mal ganhado e que permitteDeos que o diabo o leve por e
'< tes canos ( prodigalidade e vicios ) e por outros=» E amii ^ ndl
os dous auctores sa'o levados da sua paixão; pois se fosse adei
T a a'l„dLP'‘m "T6"d? naulvasias-n^em m o n e s T r E ^ a
cuaTiuros haT'
pioiuibcudiiienic os navia n uma e n outra Yia<^era. provarq*l,o
JEGUNDA PARTE. 75

para elle não ha proveito algum. Estando pois os


Reis alli tão pouco tempo, não podem tomar resolução al­
guma para se rebellarem, porque, como disse, nem todos
os governadores e capitais das fortalezas entram ao mes­
mo tempo, mas em diversos, e tern quasi todas suas m u ­
lheres, filhos, e bens em Portugal. E quando tal cousa po-
dessem fazer, seria mister que fossem bafejados de algum
poderoso Rei da Europa, que fizesse o mesmo que fazem
os Reis de Hespanha em Portugal; porque se elles nao ex-
Irahirem as suas mercadorias e fazendas na Europa, toda
a sua índia não lhe Valeria nada. Seria lambem mister
que tivessem soccorros de homens, dinheiro, munições,
navios, e mercadorias da Europa; porquanto a sustenta­
ção deste Estado custa tanto, que sò pode caber a ura Rei
poderoso, e que conte despender nisso mais do que ha­
de sacar de proveito.
Mas ha outras cousas que recompensam e sta s; e são;
primeiramente o merecimento geral pela propagação da
fé christã; depois a alliança com todos os mais poderosos
Reis da índia; e finalmente o enriquecer todos os seus po­
vos e reinos, que levemente morreriam de fome sem a í n ­
dia; e igualmente seriam justiçados muito mais homens em
Portugal do que agora são, se não foram estes paizes re­
motos, onde os enviam degradados para ahi fazerem guerra
aos iníieis, c servirem ao seu Rei por todo o resto da vida.

CAPITULO VI.

D© A rce b isp o d e Cloa, lnqiiiís»içã»» n e c lc s ia s íic o s , c c e -


rim an ias» q u e a l l i se o b s e r v a m .

rw^ , .
J. endo fallado do Vice-Rei e de seu estado, não será to­
ra de proposito dizer alguma cousa do Arcebispo, primei­
ro Prelado das índias. Aquclle que o era quando eu esla-
7G
VlACiEM DE FRAiXCISCO PYRARD

i'(f Agostinho, cujo iiabi-


tiazia, oiÇd\a por cinooenla annos de idade e liavia
‘lumze ou dezaseis annos que occupavao cargo (á) Tinha
laina de ser niujto cariiativo e esmoler. Fez construir e
íundou grande numero de Conventos o Mosteiros- dá esmo

temenip ^ ' '‘^0-Rei, nias dá-as mais frequen-


do ^o mais vezes. A ’ mesa é servi-
uo do mesmo modo que o Vice-Rei. Elle mesmo s e r v i u
por mu , 10 tempo de \'ice-Rei e de Arcebispo j u n t l e n ê

V’ r Come eni publico, e é servido em pratos cobertos


J costume dos A,-cebispos fazerem c o n J à sua ntes «
ear assentados em jo­
gar mais baixo que elles; e todavia este, de oue failo L
faz comer n outra mesa perto da sua A o iantar e á rui
e servido em baixella d e W a , ou 1 praí ' t u a a
os pohiesem porcellana. Estes pobres não são índios ma
soldados e marinheiros Portuguezes caidos em necessMa'’
Í - ™ ??“ 7 “"'i'« «l« l»8 «“ •" P»r . 5 . s r l" “ “ t
P a sala do jantar, e os seus domésticos escolhem
divtT'lída*^v\'l™' pessoas que hem querem. E ’ cousá
II
ro Dorm,e*l'°* ‘^°'” P®^®ooia de quem se sentará primei-
, P ]ue 0 que uma vez se sentou não torna a levantar
ru,mndo“ ín n ' T T ‘ i’''*® dinheiro-’
I ' '® ' ® doze pessoas, as que excedem esnenm ’
< oiandc sala que o Arcebispo acabe de comer e enVio'se
'oanda a alguns do que sol ^ o J e ^ , a r da m’esa ( í ) ! .

iiriro\ie 1ti'i/*o'*'pona,uo *'*..'‘ "'^^^8 nasceo a 2 ;; j ç j


s = K A S ;
SEGUNDA PARTE. /7
0 rendimento deste Pr( lado é maravilliosaniente gran­
de; e esle do meu tempo tinha um mordomo que possuia
de seu sessenta mil cruzados, e todos os outros seus odi-
ciaes e servidores á proporção. Estes servidores são cha­
mados criados, e peia maior parle vem de Portugal; os ou­
tros são escravos, e chamam-lhes captivos. Quanto ás es­
molas, não são sempre do proprio bolsinho do Pielado,
mas todos os annos se lhe entregam grandes sommas de
dinheiro para esle eíTeito. Tira grandes presentes e pro­
veitos de todos os outros Prelados e ecciesiasticos da India.
Tem sua justiça e suas prisões em Goa; e tem direito de
inspecção sobre a Inquisição, e por esle respeito tem sua
parle na coníiscação dos bens dos que neste tribunal são
condemnados (a). Esle de que tenho fallado é mui curio­
so de fabricar igrejas e mosteiros, e principalmentc um
da sua propria Ordem, que elle augmenta e enriquece mui­
to, e tem ahi fedo aposentos separados para elle, onde se
recolhe ás vezes por dous ou tres dias (b). Vai também al­
gumas vezes passar oito dias a fio n’ outro convento, cha­
mado de Nossa Senhora do Cabo, que é de Capuchos ou
Recoletos á entrada da barra; e vai alli por agua na sua
Manchüa, ou pequena galeola coberta.
Quando o Vice-Rei ou o Arcebispo vão assim por mar,
são acompanhados do muitas outras Manchiias de fidalgos.
poz á frente do sen livro da Historia da fundação do Real Conven­
to de Santa Monica da Cidade de Goa, Lisboa, lb99, diz a pag. I i
~ (( Todos os dias sentava á sua mesa doze pobres, e Ibes iiiaii-
« dava dar do mesmo que elle comia, sem dislineção alguma; e
« quando por alguma causa faltava o jantar para elles, lhes man-
V dava dar o que se lhe havia preparado para elle, ficando sem co-
mer aqnelle dia, poriiue aos seus pobres lhes não faltasse o sus-
« tento = »
X singella narrativa de Pyrard, testemunha destas acções, cor-
l ige os enfeites panegyricos do Ueligioso, que escreveo um sccnlo
depois.
f a ) Não achámos alé agora documento, que prove esta circuns­
tancia.
( b ) Lra o Convento de Santo Agostinho.
20
Ir

78 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

Tem também uma musica excellente de trombetas, cha­


ramelas, e outros instrumentos; e por esta guisa todos os
fidalgos principaes. Quando o Arcebispo anda pela rua,
vai no seu palanquim, acompanhado de muilas pessoas no­
bres a cavallo, e de dignidades ecclesiasticas em palanquim,
cada um em seu; atraz vão muitos pagens e lacaios a pé;
os servidores portuguezes vão a cavallo. Nas grandes so­
lem nidades, e procissões geraes apparece com apparato
pontifical, e adiante delle vai um capellão com uma cruz
semclbante áqiiella que vi na Igreja dos Jesuitas, e de que
acima fallei. N o paleo de seus aposentos, e defronte dél­
iés ba sempre grande numero de cavallos e palanquins d e
fidalgos e outras pessoas, que alli vem ou a tratar négociés,
ou a fazer visita. N unca sáe fora de Goa (a), e não faz vi­
sitas; deixa isso ao seu Bispo de Goa (b).
O Arcebispo sobredito tinha grande desejo de regressar
Portugal, mas não ousava fazel-o, porque é mister que
El-Rei envie outro que lhe succéda. Gomtudo elle havia
obtido licença por se ir embora, e havia feito todos os
apercebimentos de mantimentos e matalotagem para mais
de cem pessoas, afora os seus domésticos, que montavam
bem a outro tanto numero; e são necessários ao menos
trezentos pardáos para mantença de um homem da índia
a Portugal. Eu e os meus dous companheiros lhe appre-
sentámos a nossa petição, para que fosse servido deixar-,
nos embarcar na sua náo, o que elle nos concedeo, assim
como a outra muita gente. Mas cousa de um mez antes
de as náos estarem prestes a partir, determinou ficar ain-
( a ) 0 auctor refere-se somente ao tempo que assistio nesta ci-
nade; mas é certo que este mesmo Arcebispo D. F r. Aleixo de
Menezes foi visitar as Igrejas do Norte, e depois ao Malabar, a-
onde celebrou o celebre Synodo de Diamper; e outros Arcebispos
lorara também em diversas occasiões visitar as Igrejas da sua Dio­
cese fora de Goa.
( b ) Seu Bispo coadjutor, titular in partihus infidelium. A este
tempo era o Bispo de Salé, D. F r. Domingos da Trindade.
SEGUNDA PA RTE. 79
da mais um anno, e de feito eu soube depois que no an­
no seguinte recolhera a Lisboa a salvamento (a). Quan­
do eu estava ainda na índia ouvi dizer que o Rei de Hes-
panha estava raivozo contra elle por causa da morte do Rei
de Ormuz, que elle mandou queimar em Goa, como adi­
ante direi (b); por quanto todos os Poriuguezes dizem que
só elle fora deste parecer; querendo o Vice-Rei, (c) toda a
nobreza, e até a Inquisição salvar o homem; mas o Arcebis­
po trouxe-os á sua opinião com boas pistolas, de que esla­
va munido (d). Pela minha parle eu sempre o achei ho­
mem muito de bem, e grande csmoler. Mandou-nos dar*
com que comprássemos camisas e mais vestuário quando
estavamos para embarcar. Fallava-nos muitas vezes, e fa­
zia-nos muito bem; e admirava-se principalmente como sen­
do nós Francezes pudêramos passar o Gabo da Roa Espe­
rança, visto que os Reis de França e de Hespanha eram
entre si amigos; e dahi tirava por conclusão que todos e-
ramos piratas e ladrões; opinião que alli era geral sobre
nós, não sendo segundo elles tanto de estranhar este pro­
cedimento nos Inglezes e Hollandezes por serem seus ini­
migos assim no que tocava ao Estado como na religião.
Mas não obstante isto este Arcebispo não dizia, como to­
da a outra gente, que deviamos ser enforcados com a li­
cença e passaporte do nosso Rei pendurado ao pescoço (e).
Ha longo tempo que os Jesuitas e elle andam em ieligio,
porque lhe não querem reconhecer superioridade, mas só
( a ) Deu á vela para Portugal no ultimo de Dezembro de 1610,
e chegou aos 22 de Junho de 1611.
( h ) No íim do Cap. X V III desta 2.^ Parte; onde diz que o ca­
so acontecera com um irmão do Rei de Ormuz.
( c ) Nao havia Vice-Rei nesta occasião; e era Governador o pro-
prio Arcebispo.
( d ) Trataremos ainda deste succcsso no sobredito Cap. X V IIl
desta 2.* Parte.
( e ) Note-se com tudo o que o auctor refere ( pag. 22 desta
2.® Parte ) ter acontecido sobre a sua liberdade com este Arcebispo
na qualidade de Vice-Rei, ( aliás Governador ) do Estado.
80 VIAGEM DE FRANCISCO PTRARO

MO Papa € ao seu Geral; eslo processo eslá pendente eni


Uorna. 0 Arcebispo quando sáe fora faz levar cornsicyo um
grande som/>mVo; e é para notar que assim o delle,^como
o do Vice-Rei, e dos outros grandes senhores, são mui
magnificos e cobertos de veliudo, ou outro panno de seda;
e no inverno de algum bom panno oleado; e o cabo des­
tes soinbreiros é de bonito feitio, pintado de azul, e dou­
rado
No (jue loca aos outros Prelados, governam-se cm seus
cargos do mesmo modo que em ílespanlia. Quanto á In­
quisição, c composta de dous Ecclesiasticos, que são tidos
em grande dignidade e respeito, mas um é superior ao
outro, e se c h a m a ( a ) . *A justiça deste Iri-
ijunal é alli muito mais severa que em Portugal, e quei­
mam mui frequentemente Judeos, a que os Porturruezes
chamam Chrístaõs novos. Quando estes são presos pela jus­
tiça do Santo Oílicio, todos os seus bens são também con-
tiscados; e nãp prendem senão os ricos. O Rei faz todas
as despezas desta justiça, se as partes não tem com que*
mas elles ordinariamente não as aceusam, senão quando
sabem que tem juntado grande cabedal. E ’ esta justiça a
mais cruel e impiedosa cousa do mundo; porque a menor
buspeita, a mais leve palavra, seja de uma criança, ou de
f um escravo que quer ser molesto a seu senhor, fazem looo
conoeuinar um homem á pena ultima; e dá-se alli credito^
qualquer criança por mui pequena que seja, com tanto que
saiba íaliar. Ora sao aceusados de pôr crucifixos nas alrno-
íadas sobre que se assentam ou ajoelham; ora que açoutani
imagens, e nao comem toucinho; cm (im que guardam a-
nida SGcretamente sua antiga lei, sem embargo de faze­
rem publicamenle obras de bons christãos; e ^Tnaiadeira-
mente creio que a maior parte das vezes provam contra el-
Cb 0 que querem, porque não condemnam á morte senão
os ncüs, e aos pobres dão somente alguma penitencia. E
( y ) Aliás Primeiro Inquisidor. ^
SEGUNDA PA R TE. Sl
õ qtie é ainda mais cruel e iniquo é que um homem que
quizer mal a outro, por se vingar o accusará desle crime;
_e sendo preso não ha amigo que ouse fallar por elle, nem
visital-o, ou procucar por suas cousas, como em semelhan­
te caso acontece aos criminosos de lesa mageslade. O po­
vo em geral não ousa fallar desta Inquisição, salvo com
grande acatamento e respeito, e se pela ventura escapasse
alguma palavra que de algum modo lhe tocasse, é mister
ir logo logo accusar-se e denunciar-se a si a própria pes­
soa, se desconfia que alguém a ouvio; porque aliás se ou­
trem a denunciasse, ficaria logo perdida, E ’ horrivel e es­
pantosa cousa ser alguma vez alli preso; porque não ha
nem procurador, nem advogado que falle pelo pobre en­
carcerado; mas os ministros daquelle tribunal são juizes e
partes a o mesmo tempo.
A forma de proceder na Inquisição de Goa é em tudo
semeilianle á de Hespanha, Ilalia, e Portugal. Ha pessoas
^ue ás vezes estam dous e Ires annos presas sem saber
porque, e não são visitadas senão pelos officiaes do tribu­
nal; e no logar em que estam nunca vem a mais ninguém;
e se não tem posses para viver, dá-lhes El-Rei o manli-
mento. Os gentios e mouros indianos, de qualquer religião
que sejam, não são sugeitos á Inquisição, salvo se se houve­
rem feito christaõs; mas assim mesmo não são castigados
lão rigorosamente como os Portiiguezes, ou Christaõs no­
vos vindos de Portugal, e os outros mais christaõs da Euro­
pa. Mas se pela ventura um índio, mouro ou gentio, tiver
divertido, ou impedido outro, que mostrasse vontade de se
fazer chrislão, e que isto se provasse contra elle, seria cas­
tigado pela Inquisição; como também aquelle que tivesse
feito a outro deixar o chrislianismo, como mui frequentes
vezes acontece. A causa porque não tratam estes Índios
tão rigorosamenle é porque entendem que elles não podem
ser tão firmes na fé como os christaõs velhos; e também
porque assim se impediria a conversão dos outros: de sor-
2i
8^ VIAGEM DE FRANCISCO PYRARO

te que se lhes deixam ainda algumas pequenas superstíçííes


gentias, como não comer carne de porco ou de vacca, ou
não beber vinho; e igualmente' o seu antigo modo de ves­
tir e adornos, assim aos liomens como ás mulheres ehris-
tãs.
Ser-me-bia impossível dizer quanto numero de pessoas
esta Inquisição faz morrer ordinariamente em Goa; e con»
tentar-me-bei só com o exemplo de um joalheiro ou lapi-
dario hollandez, que alli assistia ha mais de vinte e cinco
an nos, e era cazado com uma Portugueza mestiça, de quem
tinha uma filha mui linda prestes a cazar, e havia gran-
geado uns trinta a quarenta mil cruzados de fazenda. Ora
dando-se este homem mal com sua mulher, foi accusado de
ter livros da religião protestante^ e sendo por isso preso,
sua fazenda foi confiscada, e delia deixaram metade á m u­
lher, e a outra metade ficou á Inquisição. N ão sei que
mais aconteceo, porque nesse meio tempo me* vim embora;
mas bem creio que terá sido sentenciado á morte, ou ao
menos perdido toda a sua fazenda. E ra Hollandez de na­
ção. Não fizeram outro tanto a um soldado Portuguez, que
era cazado em Portugal e na índia; m as era pobre; e as­
sim só 0 mandaram na nossa náo preso para Lisboa; se
fosse rico, não teriam tomado o trabalho de o mandar.
"j Todas as outras Inquisições da índia são subordinadas á
de Goa (a). He nas festas principaes do anno que se fa­
zem as execuções, e nestes autos todos os pobres condem-
nados marcham juntos com camisas breadas, e pintadas de
chammas de fogo; e a differença que os que são con-
demnados a pena ultima tera dos outros, é que as cham ­
mas destes correm para cima, e as daquelles correm para
baixo. São levados á igreja principal, ou Sé, que é mui
perto tkv prisão, e alli assistem á missa e sermão, no qual
( a ) Não iiavia propriamonte outra Inquisição na Índia aleni da
de Goa; mas suu Commissurios desta em todas as fortalezas do#
bortiiguezes
SEGUNDA PA RTE. 83
se lhes fazem grandes admoestações; depois são levados ao
Campo de São Lazaro, e alli os queimam em presença dos
outros, que assistem ao auto.
Fallando agora dos ecclesiasticos da índia; ha ahi gran­
de numero de Ordens Religiosas, que todas recebem renda
d’ El-Rei de Hespanha, alem daquellas que são mendican­
tes, e que arranjam grossas esmollas, e a essas mesmas dã
El-Rei alguma pensão. Os Parochos também recebem to­
dos d’ El-Rei as suas ordinárias, e este cobra os dizimos,
que 0 Papa lhe concedeo: o pé d’ altar e mais benesses
pertencem aos Vigários e Curas. Todos os ecclesiasticos
andam vestidos de sarge d’ algodão, por quanto a lã alli 6
mui rara e cara, porque vem de Portugal; e o algodão é
mui eommodo por razão do calor. L á não é como cá en­
tre nós, porque toda a sorte de Religiosos alli baptisam,
confessam, são curas d’ almas, e administram todos os sa­
cramentos como os outros sacerdotes seculares, que elles
chamam Clérigos. Acceitam para padres aos indios natu-
raes, de qualquer religião que proced am , excepto os Je-
suitas, que não querem senão cbristaos nascidos de pai e
mai europeos. Todos os ecclesiasticos são mui ricos, e ca­
da um grangeia particularmente para si o que pode; os Je-
suitas porem tem tudo em commum; e quando andam de
viagem por onde quer que seja não levam mais que o seu
Breviário. Só elles também são os que ensinam a doutri­
na, e tem collegios naquella terra para toda a sorte de s-
ciencias, e instruem toda a sorte de crianças, assim ín d i­
os como Portuguezes.
O seu principal e primeiro Collegio de toda a índia é o
de S. Paulo de Goa, onde mandaram fabricar contíguos á
sua casa e igreja aposentos para isso, e ahi todas as clas­
ses são mui bem separadas e ordenadas. Os estudantes
não entram na casa dos Padres, e os Mestres não saem de
ca&a para hir áa suas classes, nem passam á rua para esse
tim. Fazem alli muitas vezes brincos, e representam come-
84 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

dias, com guerras e batalhas, lanto a pé como a cavallo, e


tudo em muito boa ordem, e com vestuário apropriado.
Penso que ha neste Goilegio mais de très mil estudantes.
Quando vão para o estudo, vão estes antes de entrar nas
aulas ouvir missa á igreja de S. Paulo; e quando saem das
aulas todos os de um mesmo bairro caminham juntos, e
vão cantando pela rua em alta voz resas e orações com seu
credo; mas só vão assim cantando os meninos menores de
quinze annos; porque os de quinze annos para cima não
seguem este estilo. O fim deste canto lie attrahir os infiéis,
á fé.
Todos os domingos e dias santos depois de meio dia os
Mestres e outros Padres Jesuitas para isso ordenados, vão
em forma de procissão pela cidade com cruzes e bandeiras,
cantando com todos os seus estudantes, que marcham for­
mados segundo as suas classes, e então cantam todos,
grandes e pequenos, e são seguidos de grande numero de
habitantes, e todos vão á igreja do Bom Jesus, Casa pro­
fessa da Companhia, onde um Padre Jesuita os cathechisa,
e toda a igreja está cheia de bancos para este effeito. i\s
mulheres também alli vão para ouvir o cathecismo, sem
faltarem um só domingo ou dia santo. Estes Padres iesui-
tas não recebem dinheiro dos estudantes.
^' "I Todos os que em Goa se vão eonfessar, tem ordem de
tomar um bilhete do Padre confessor para irem commun-
gar, 0 qual bilhete devem entregar antes de serem rece­
bidos a mesa da communhão. Este bilhete é marcado com
0 Nom e de Jesus. Ordenaram isto assim por causa dos
novos chrislaõs, que muitas vezes hiam á mesa da com ­
i mun hão sem se confessarem (a).
( a ) Assim pareceo ao aiictor; mas era estilo geraiménte usado
em Portugal, e que se perpetuou até aos nossos dias. Gomo na qua­
resma só se communga por desobriga nas igrejas parochiaes, e nas
grandes cidades a maior parte das confissões se faziam nos
ventüs, tomou-se esta precaução contra os pouco escrupulosos, posto
que cliristaõs velhos.
SEGUNDA PARTE. 85
Todos os Porliiguezes da índia tom também costume de
no dia de finados enviar, quanto cada um melhor pode,
pão, vinho, e outras iguarias sobre as sepulturas de seus
parentes e amigos deíunclos; e durante o officio Iodas as
sepulturas se vêm cobertas destas cousas; e depois de o
povo sair da igreja, os Padres ou Religiosos aproveitam
para si tudo isto, ficando em obrigação dc rogar a Deos
pelos finados.
Jejuam vespera de Natal, como ca entre nós, e jantam
ao meio dia; mas antes de irem á missa da meia noule,
pela volta das onze horas fazem uma mui boa collação,.
que C({uivale a uma ceia, salvo não comerem carne nem
peixe, mas de tudo o mais comem, e bebem a fartar. As
mulheres sobre tudo, assim senhoras como servas, desejam
muito esta noute, porque como vão todas á missa, servem*
se da devoção [)ara gozar de seus amores. Por todas as ru­
as ha nesta noute lanlenias. No dia de Natal em todas as.
igrejas se representam os mysteriös da Natividade, com
grande copia de personagens e animaes que faliam, como
cá os bonifrates; e ha grandes rochedos, e por baixo dél­
iés homens (jue fazem mecher e fallar estas figuras como
querem; e todos vão ver estes, brincos. Mesmo na maior
parle das casas, e encrusilhadas das ruas ha semelhantes
diverrmienios; e faz lá nesta estação melhor tempo, que
cá pelo Sãü João. Nas ruas, praças, e outros logares da
cidade ha mesas cobertas de bellas toalhas brancas e bem
obradas, e sobre ellas muitos confeitos, doces seceos, e bol-
Jos, a que chamam Rosqailhas, de mil feitios diversos, de
que toda a gente compra para dar mutuamente por con-
soada; e dura esta especie de feira até passado dia de
Reis. De noute vão pôr grandes letreiros com estas pa­
lavras Anno bom, acompanhados de musica e instrumentos.
Quando chega a festa da Paschoa, toda a quinta e sexta
feira santas fazem procissõ.es geraes, como é uso em todas
as terras d’ El-Rei de Hespanha, e nas taes procissões vão
86 VIAGKM DE FRANCISCO PYRARD

grande copia de penilenlcs de todas as (jiialidades,, f]iie


se disciplinam, e marcliam do joellios com os bracos cru­
zados. Seria impossível represeiilar todas as cei'imonias
e modos estranhos c supersliciosos qtie nestes actos obser­
vam. Para estes penitentes ba logares á maneiia de bospi-
íaes, piovidos de giande (juantidadc de vinagres, doces,
pão,' vinho, e onlras especies de refrescos. c muitos pan­
nes brancos. O vinagre serve para lhes lavar as fendas, e
0 mais para os reslani'ar comendo e bebendo; e ainda os
pan nos para os limpar, e curar.
Em todas as igrejas fazem mui formosos monumentos.
O interior délias ó ricamenle ornado e armado, e o pavi­
mento juncado de ervas e dores, com gramlcs ramos de
bellas e largas folhas af|ui e alli, pela maior parte de pal­
mas’ e 0 mesmo fazem na parte evlerna, pois nestas oc-
casiões ao redor das igrejas, e ainda nas ruas, que são mui
bem varridas, plantam muitas ervas, llores, e arbuslos. Nos
lo'nares visinlios ás dilas igrejas poem grandes larnedasde
palmeiras de uma e ou Ira banda; e tem também para uso
da igreja grande numero de charamellas, cornetas, tanibo-
res, rabecas, e outros instrumentos. A s ’ portas vende-se
Ioda a sorte de comestiveis, enfeites, c biáncos de crianças.
Todas as festas começam na véspera ao meio dia, e acabam
110 proprio dia ao meio dia, e passada es(a hora não ha
mais solemnidade. Aiinunciam com cartazes em todas as
ruas e logares costumados as festas, e as igrejas onde são,
com 03 seus perdões e indulgências.
Todos os novos chrislaõs assim homens como mulheres
trazem ordinariamente ao pescoço grandes contas de [)áo,
os Eorluguezes e Mestiços trazem-nas na mão, e nunca ces­
sam. em quanto faliam, tratam negocios, ou ex.ecutam ou­
tra qualquer acção, de deixar cair os padres nossos, e a-
ve marias; não sei o que elles dizem; mas vi muitas vezes
que ainda jogando aos dados faziam o mesmo. Tem um cos­
tume, que é, quando se eleva o S» Sacram ento á missa^

LV- í
SEGUNDA PA RTE. 87
levantam Iodos a mão, como ([iiern a ponta para o Sacra­
mento, c bradam todos cm voz aba duas ou tres vezes, Mi-
senconha, batendo nos peitos. Não usam o pão bento co­
mo nós. Ouando seus escravos, de um c outro scko , vão
á missa, tevam íerros nos pés, ao menos a(|aclles de rpie
se desconfia que querem fugir.
Nü (jue loca a seus casamentos o homem nunca vè a noi­
va senão quando eiia vai á igreja, mas não lhe falia. \'ai
ella mui bem enfeitada á moda de Portugal, e coDerta do
pérolas e pedras pi’eciosas: e se lhe agrada, vai o [)reíeii-
denle ao outro dia com um padre a sua casa, e a pede em
casamento; de{K)is do (}ue pode continuar a ir vèl-a, mas
nunca os deixam sós. Casam-se ordinariamente de tarde,
e vao em grande solemnidade á igi'eja. A noiva é as vezes
acompanhada de oitenta ou cem cavalleiros hem ordena­
dos, poiT{iic todos os parentes e amigos de uma e outra
parte assistem ao aclo. fgualmente é acompanhada de ou­
tros lautos [»alanquins, em que vão todas as parenlas e a-
inigas. E conduzida por duas das suas mais próximas pa-
rentas, e semelhantemente o noivo [)or dons dos sons até
ao interior da igreja perante o padre. Estas quatro pessoas
são chamadas Compadres e Coriiadres (a).
Terminada a cerimônia da igreja voltam para casa pela
mesma ordem ao som de muitas liombetas, cornetas, e ou­
tros instrumentos, que tangem desde a igi-eja até a ca-a;
e por onde passam lhes vao lançando muitas llorcs, aguas
cheiimsas, confeitos, c doces sobre o acompanhamento, o
que apaniiam os servidores. Chegados a casa os noivos
com os homens e damas mais proximos parentes e de mais
idade entram, e os mancebos ficam na rua, onde recebem
os agradecimentos; c no entretanto se recreiam em fazer
menear, correr, e saltar seus cavados de fronte da casa, e
( a ) Â.0 leitor portngtiez é inútil advertir que estas (jiiatro pes­
soas eni relvarão aos noivos sao chamadas Padrinhos e 3Iadnnha9
S cm relaçcão aos pais Uos üoíyo s é que são Compadres c Comadreú
■»V
88 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

se batem com laranjadas, e jogam cannas uns corn outros;


eslando os noivos e toda a mais companhia ás janellas,
que são em forma de galeria, donde assistem a este pas­
satempo. Por fim apeam-se todos os cavalleiio^, e entiam
n ’ uma salia baixa, onde se lhes offerece Ioda a sorte de
fructas e doces com agua de Panguenim; e depois o noi­
vo lhes vem repelir os agi'adecimenlos com toda a coite-
zia. Segue-se um banquete a todos os parentes, que não
dura muito tempo, e concluido elle cada um se lecolhe a
suas casas.
Nos baplismòs usam das mesmas cerimonias e solem-
nidades que nos cazamentos. O padre mergulha très ve­
zes a criança na agua benta; e poem alli unia grande sal­
va de prata dourada cheia de rosijuilhas, biscoutos, mas­
sas, c outros doces, com um grande cirio plantado rio me­
io, e uma peça de ouro pegada nelle; e tudo isto é para
0 parodio, exceplo a salva.
No dia da festa do orago de um Mosteiro ou Convento,
dão alli grande banquete a muitas pessoas da sua amiza­
de; e 0 mesmo fazem os parochos e curas nas festas das
suas igrejas.
Todos os chrislaõs de Goa, assim Portuguezes como
Mestiços e índios, abastados e ricos, vão á igreja com
It " grande pompa e ostentação, acompanhados de seus familia­
res, pagens, e lacaios bem ordenados. São conduzidos
no seu palanquim, e todavia não deixam de fazer levar a-
])oz si seus cavallos e sombreiros; e os pagens levam ca­
deiras ou lamboreTès bordados, com duas almofadas de
velludo. Todos trazem espada á cinta, e atraz delles mar­
cham todos os seus servidores e escravos, de que os mais
ricos tem vinte ou vinte e cinco. Mas nunca vão sem as
suas grandes contas na mão, e fazem levar um coxim pa­
ra ajoelharem. Em fim marcham com a maior soberba do
mundo, e são tão faustosos que é mister que um dos ser-
|_idores tome agua benta para a dar a seu amo ou ama,

Kl
SEGUNDA PARTE.

islo sendo homens on rapazes, porqae as moças donzellas


e as mulheres nunca chegam nem tocam na pia da agua
henta.
As mulheres ricas e nobres vão pouco á igreja, a não
ser nos dias das festas principaes, e quando vão, appare-
cem soberhameníe vestidas ao modo de Portugal com ves­
tidos pela maior parte de brocado de ouro, de seda e pra­
ta^ ornadas de pérolas, pedras preciosas, e joias na cabe­
ça, braços, raaos, e cintura; e cobrem-se com um véo do
mais íino crepe do mundo, que lhe desce da cabeça até aos
pés. O véo das donzellas é de côr, e o das donas preto.
Nunca usam meias. Os seus vestidos e saias arrastam pe­
lo chão. As chinellas ou chapins são abertos pela parte su­
perior, e só cobrem a ponta do pé, mas são todos borda­
dos a ouro e prata em palheta até abaixo do chapim, e
por cima cobertos de pérolas e pedras preciosas; e tem u-
rna sola de cortiça de quasi meio pé de altura. Quando
vão á igreja são levadas era palanquim o mais ricamente
paramentado que é possivel; tem dentro um grande tape­
te da Persia, que elles chamara alcatifa, e ha destes alguns
que valeriam cá quinhentos escudos; e alem disso ha duas
ou tres grandes almofadas de velludo, ou brocado de ouro,
«t prata, e seda, uma para a ca(3eça, e outra para os pés; e
na igreja estas alfaias são levadas por suas aias ou crea-
das, que são portuguezas ou mestiças. Se estas damas tern
algum íilho ou filha pequena, metem-nos comsigo no seu
palan(|uim.
As servidoras ou escravas vão atraz a pé, e chegam ás
vezes a ser quinze ou vinte, ricamente vestidas de seda de
todas as cores, com um grande crepe fino por cima, a que
chamam mantos; mas não se vestem ao modo de Portugal,
e usam grandes peças de panno de seda que lhes serv^em
de saias; e tem lambem roupinhas de seda mui fina, a
que chamam bajüs. Entre estas escravas acham-se mui lin­
das moças de Iodas as nações da índia. E é para notar que
23
90 VUOF.SI DE FRANOIêCÛ PYIIARD

OS maridos mandam lambem acompanhar suas mullicros d e


seus pagens, com um homem ou dous de hoa condigãov
poriuguezes ou mestiços, para as levar e suster pela mao f 'h
depois de descerem de seu palanquim, e as mais das vezes
chegam a entrar dentro da igreja no palanquim, tanto lie
0 seu receio de ser vistas na rua. Não trazem mascara, mas
andam todas tão arrebicadas, que é uma vergonha. E to­
davia não são ellas que receiam de ser vistas, mas sim os
maridos, que são tão zelosos, que mais não pode ser. Uma
das servidoras ou escravas leva a rica alcatifa, outra as du­
as preciosas almofadas, outra uma cadeira da China hem
dourada, outra uma bolça de velludo onde esta o livro,
lenço, e outras cousas necessárias, outra uma bella esteira
mui fina para pôr por cima da alcatifa, outra íinalmenie
tr
0 leque, e mais cousas do uso da senhora.
Eslas damas, como está dito, quando entram na igreja
são levadas pela mão por um ou dous homens, porque
não podem andar sós por causa da altura de seus chapins,
que pela maior parle tem meio pé de altura, e sao abertos
por cima. Um destes homens dá agua benta na mão da
senhora, e esta vai depois tomar o seu logar a quarenta
ou cincoenta passos de distancia, gastando no caminho
^‘ "j pelo menos um bom quarto de hora; tão grave e pausada-
mente marcham! e levam na mão umas-contas de ouro,
pérolas, e pedras preciosas. Assim o fazem todas, segun­
do suas posses, e não segundo sua qualidade. Quando le­
vam cornsigo seus filhos, fazem-nos ir diante de si. Asi
servidoras e escravas folgam muito de que suas senhoras
não vão á missa, porque então vão ellas sós, c podem
visitar seus namorados, como ordinariamente fãzem; e nis­
to nunca se descobrem ou aceusam umas ás outras.
Eis ahi as cousas mais singulares e notáveis que eu vi
em Goa; e seria urn nunca acabar, se eu qnizesse -particu­
larisai’, e dizer pelo meudo tudo o que ahi observei em
d'QUS annos: que lá rac detive; contcnlo-mc só de haver to-
A V

SEGUNDA PAUTR. 91
cado geralmenle algumas cousas, deixando por cilas a jul­
gar do resto.
Em quanto ás diversas mercadorias, que aportam a Goa
de todas as parles da Índia, fallaremos em seu íogar, se­
gundo as regiões donde vem.
De maneira que quem houver estado cm Goa pode as­
severar ler visto as maiores singularidades da ínclia, pois
é ella a mais famosa e celebrada cidade pelo trafico de to­
das as nações indianas, que lhe levam tudo quanto as suas
terras podem produzir, assim em mercadorias, como em
mantimentos, e outras commodidades, que alli ha em mui
grande ahundancia; porque aportara alli cada anuo mais
de mii navios carregados de tudo; o que torna alli os man­
timentos mais baratos auc em outro algum logar do num-
do, porque o que cá custaria cincoenía soidos não vale
lá cinco. X maior parte dos viveres, fruetos, e outros re-
galüs e commodidades lhe vem do Dcalcão. O peixe de
mar é alli em tal abundancia, que ha mais do que é mis­
ter, com quanto se coma alli muito mais peixe que carne,
porque é aquelle o seu quasi unico alimento, e sem em­
bargo disso perde-se outro tanto como se come, poiapie
se não pode guardar por mais de vinte e (jiiatro horas,
por causa do calor do paiz, que corrotnpe logo todas as
viandas. Não se vò pelas ruas e esquinas outra cousa ma­
is que homens e mulheres que frigem e assam peixe para
vender, tudo temperado com os molhos e especiarias ne­
cessárias.
is annos em
Goa entre os Portuguezes, ó impossivel referir e exprimir
as affrontas, injurias, e opprobrios que padeci. E em ver­
dade posso dizer sem vaidade que sc durante o tempo de
dous annos que alli mo deli ve, eu tivesse o mouor vislum-
l)iG de esperança de regressar a Fiança, teria sido mais
curioso de conhecer e ohservar as cousas hellas c curio­
sas daquella terra. Mas desde o dia de nosso naufragio

í\
92 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

alé que sabi em terra na Rochella, nunca live um momen­


to do esperança de minha volta; o que lambem foi causa
de que eu me não applicasse a ajunlar riquezas, como po-
(léra fazer; porque lá mui pouca cousa basta para susten­
tação de um homem, pois tudo é a preço vil. iN’ão deivei
todavia de observar muitas singularidades no que loca ás
riijuezas e mercadorias daquellas partes, por haver fre-
rjuentado na maior parle da índia assim os índios natura-
es, como os Portuguezes, com os quaes andei para o nor­
te e para o sul, correndo, e defendendo as suas costas, e
dando guarda aos navios mercantes na ida e na volta.
Mas sempre direi que se os Portuguezes tivessem jul­
gado que rne passava só pelo pensamento observar alguma
cousa d’ entre elles, assim da navegação da índia, como
outras particularidades de seu Estado e commercio, não
ine teriam nunca permiltido o meu regresso, antes rae ha-
veriam dado a morte, ou desterrado como fazem a seus
malfeitores: mas eu tive sempre boa cautelía de lhes não
dar a menor suspeita neste particular; estando de sobre a-
vizo á vista d’ outros exemplos, como foi aquelle era que
lendo elles apanhado um batei de um navio inglez na cos­
ta de Melinde perto das ilhas de Nicobar (a), e tendo a-
chado dentro delle um homem de sonda na mão para son­
r dar e reconhecer a costa, o mataram cruelmenle; o que não
costumavam fazer aos outros estrangeiros. E posto que eu
confesso ser pouco experto, ainda lhe dava demonstração
iía 0 ser menos, por medo de lhe dar má opinião de mim.
E até lhes íiz crer que eu não sabia ler nem escrever, e
que não entendia sua linguagem; e para viver bem com
e.iles me era mister obedecer-lhes em tudo e por tudo, de
sorte que se algum delles me queria ou fazia mal, eu tra­
tava por todos os meios de fazer a paz com elle, e de os
( a ) lia engano no nome. destas ilhas, porque is de Nicohar
( N t c o b a r d , escreve o auclor ) são no golpho de Bengala, e não ua
cosia de Melinde.
SEGUNDA P A R T E . 93

ter todos por am igos. E is como eu passei quasi dous an-


nos e meio com elles, sem contar o tempo que levámos na
torna viagem desde Goa até Portugal.
Mas para acabar este capitulo direi ainda que os Ingle-
zes, que estavam em Goa, e foram apanhados no rio e bar­
ra de Surrate, nos disseram que o navio chamado Crescen­
te, nosso alm irante, havia na torna viagem surgido na ilha
(}e Santa Helena, e que chegando alli depois delle um na­
vio inglez, que ,v inha da ín d ia carregado de riquezas, mas
fraco ent hom ens; ,p Cresce^nte intentara surprehendel-o,
porque era melhpr navio, e nâo fazia tanta agua como el-
le que estava lodo abertp (a), tanto que não poude chegar
a França, como pu depois sopbe; mas que sendo aquelle
intento descobe.rtp por um rapaz bombardeiro do Crescente,
que era Inglez, aquelle navio de noute levou ancoras ap­
ressadam ente, e nelle fpi o bom bardeiro que os tinha ad-
-vertiçlo; p que fpi causa de que os Inglezes não ficaram
HQSSOS am igos, e despresavam a nossa nação, porque são
ipdos rpui soberbps, aó revez dos Hollandezes,
F u i também curioso de perguntar o que era feito do nos­
so Mestre, je dos pptros nossos onze com panheiros que se
haviam escapado das ilhas de M aldiva n’ um batei durante
0 tempo que alli estavamos naufragados, como atraz disse;
mas não pude saber outra cousa mais senão que elles ha­
viam chegado ,a Coulão, terra dos Portuguezes, e que o
M estre morrera no hospital do dito Coulão com alguns ou­
tros, e 0 resto foram levados presos a Goa, donde uns se
haviam embarcado para plissar a Portugal, e outros eram
idos a varias partes nas armadas dos Portuguezes, e não
se sabia o que era feito delies.

( a ) O auctor envergonhou-se de confessar que o que os seus


antigos camaradas queriam priiicipalmeute era roubar as riquezas,
.de que vinha recheado o navio inglez.
24
9^ VIAGEM DE FRANCISCO PYRA RD

CAPITULO VII.
K»o» exorctcios c Jog;oN dos portagrneKes, Blcstiços» c oa-
ti'os CbrisfAôs em Coa; c <le seo s usos c m odo de
vida« e d c suas m nllterefí.

*s exercícios, a qae se dão os Porluguezes lànlo em^


Goa como nos outros logares da índia, são prim eiram enle
rncnear as armas e m ontar a cavallo; e nos dias festivos e*
dom ingos se occupam em mil corridas a cavallo, lançando
laranjas e jogando cannas uns com os outros, estando ca­
da um 0 m elhor apercebido e ordenado que pode. N ã a
passa festividade algum a em que não façam algum b rin ca
a que assiste todo o povo, que alli acode aos ranchos, e a
0'- todas as cerim ônias e solem nidades da festa se accrescen-
tam feiras, banquetes, e m usicas com toda a sorte de ins­
trum entos, interm eiando assim os prazeres com as devo­
ções, Deleitam -se lam bem muito de ir a passeio pelo rio
rm suas manchuas, feitas em forma dè gaíeotas, onde vão
a coberto, com m usicas, e assim vão desem barcar a suas
fazendas, ou ás de seus am igos, onde ha casas apraziveis
com jardins c hortas, mui povoadas de palmeiras, e gran de
.abundancia de reservatórios e regatos de aguas claras e
|( frescas; e ahi se banham , m erendam , e tomam, outros re*
frescos á sombra.
N o que respeita a jogos de cartas e de dados, e outros
de azar, são perm ittidos, e ba casas deputadas para isso,
cujos donos pagam tributo a E l-R ei, e ninguém ousaria jo ­
gar em outra parte fora dalli sob pena de grossa m ulta. Os
que tem por sua conta estas casas e bancas de jogo tiram
grandes lucros, porque é cousa adm iravel o grande num e­
ro de jogadores que ordinariam ente ahi se juntam ,, de que
a maior parte até com em , bebern, e dormem alli por não
terem outra occupação fora esta; Tudo alli está m ui bem
SEGUNDA PARTE. 95
ordenado nas salas e camaras, que são bellas, claras, e bem
alcatifadas; e ha sem pre servidores prestes para servirem
os fregiiezes de tudo o que hão mister. N unca vi jogadores
m ais liberaes e bizarros do que aquelles, porque os que
ganham dão voluntariam ente dinheiro aos que eslam de
fora do jogo, isto é, áquelles que se enlretem a ver jogar,
e querem entrar no jogo. Chamam a esta bizarria Barato.
E não é vergonha acceitar esta dadiva, porque passa mais
por um honrado presente, que por esmolla. Dão algum as
vezes desta maneira boas peças de ouro; e bastantes vezes
quando eu não linha dinheiro, hia vel-os jogar, e mais
prom plam ente mo davam a mim do que aos outros Portu-
guezes e Mestiços. A maior parte dos soldados que não
lem dinheiro vão ordinariam ente a estas casas. Dão lam ­
bem muito aos servidores da casa, e os donos tiram dos jo ­
gadores um certo tributo (a).
Em quanto jogara ha raparigas, servas, e escravas do
dono ou dona da casa, que tangem inslrum eníos, e can­
tam arias para recrear os parceiros , e note-se que para
isto se buscam as mais bellas* raparigas que se podem en­
contrar. Os parceiros jogam jogo mui forte, e sem dispu­
ta, por causa da regra e policia que alli ha; e ainda que
seja 0 maior senhor do m undo, cum pre já vá jogar áqueí-
las casas publicas, mas ha nellas camaras particulares se­
gundo a qualidade das pessoas; e nestes jogos despendem -
se grandes cabedaes. Gostam muito do xadrez e da's damas,
c de todos os outros jogos de laboleiro. Não usam o jo"o
da pella, mas som ente jogam á balia com a mão (b); e tam ­
bém usam muito do jogo dos páos e da holla. Ha também
( a ) E 'a esfe tributo ou retribuição que se dá boje mais com-
mumente o nome de Barato.
( b ) O auctor escreve=//í ont point de ieu dc paulme, mais
semement iis ioiú-ut du ballon auec la main— o que só nos parece
que significa que os jogadores de Goa jogavam a pella ou baila
( pois que vem a ser a mesma cousa ) com a mão, e não com
palheta, como os Francezes.

^ %
%

96 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

alh muitos peloliqueiros, charlataês, e farcistas que, para


os recrear, lhes mostram serpentes, e outros anim aes raros.
L á assim os hom ens como as m ulheres, todos aprendem
a cantar e tocar instrum entos, mas não usam danças (a).
N o que pertence a seu modo de viver em casa, todos as­
sim hom ens como m ulheres, m oços e moças, quando che­
gam a casa tiram logo todo o vestuário que julgam sobejo.
Os hom ens ficam só com cam iza e calções, que ihe chegam
até aos artelhos, e são extrem am ente brancos e finos; tiram
também o chapeo,^ e poem um gorro ou carapuça, que é
de veludo ou tafetá, era forma de chapeo, e só tem borda
de uma banda. A s m ulheres ficam com as suas roupinhas
ou mais raras e finas que o mais delgado créfe de cá;
de sorte que as carnes apparecem por baixo tão bem com o
se ellas nada tivessem sobre si; e alem disso deixam ainda
0 seio mui descoberto, de sorte que se lhe vê tudo até a
pintura.
^ N a cabeça nada mais trazem que os cabellos atados e
torcidos. Da cintura para baixo poem um panno de alf^o-
dao ou de seda mui bello, mas não tão transparente e^fi-
no como o das roupinhas, porque nada se pode ver atra-
vez delle, e é como o nosso tafetá, A m aior parte dos ho­
m ens que se querem cazar não se contentam de ver as ra­
pai igas que pretendem em seus vestidos de festa e cerim ô­
nia, por haver nelles sobejo artificio; mas para con clu ir o
?ÍnhA e® casa nos hábitos cazeiros que
enho dito afirn de as contem plar em toda a sua natural
im plicidade, e ver se ellas são bem proporcionadas ou con-
tiateitas; e também não desejam que, ellas estejam então ar-
le b ic adas, como estam quando saem fora e se enfeitam (b)

cipaire"„[r’daT dai^ca^s P*'"'


SEGUNDA PARTE.

A occupação (Ias mullieres não c outra durante lodo o


dia mais que cantar, e tanger instrumentos; e algumas ve­
zes, mas raras, se visitam. Usam também dia e noite mas­
car Betei como fazem todos os índios (a). Seus maridos
são muito zelosos; mas ellas são tão♦ dadas ao amor, c aos
prazeres carnaes, que apenas acliam a menor oceasião, não
a deixam perder. E nunca lhes faltam oceasiões e aman­
tes, quando são bellas e ricas, e por conseguinte podem
ser amadas e da sua parte retribuir o amor; e as servas
c escravas estam mui prestes para servir nisso a suas se­
nhoras, e grangear-Ilie algum bom galan, como n’ outro !o-
gar já disse; mas os maridos as vigiam mui caulelosamen-
te; e quando saem a visitas enviam com ellas algum pa­
gem, ou outra pessoa de confiança para observar as suas
acções; mas ellas são tão astutas e artificiosas (|ue quasi
sempre chegam a lograr seus intentos.
Ora todas as mulheres da índia usam muito de um cer­
to frueto do tamanho de uma nespera grande, que se pro­
duz não em arvore, mas em uma erva, e c todo verde, re­
dondo, espinhoso por fora, e por dentro cheio de semen­
tes miúdas. Ila-p por quasi toda a índia, e cm muita abun-
ílancia nas ilhas de Maldiva, onde lhe chamam MoetoL is­
to lie, erva dos loucos; e em outros logares da índia é
chamado Dntró.
Quando as mulheres querem gosar de seus amores em
toda a segurança, dão a beber a seus maridos destes tVuc-
tos desfeitos em almima
G belida ou caldo, e uma boia
pois íicam atordoados, e como insensatos, cantando, rindo,
e fazendo mil momices, porque perdem então todo o co­
nhecimento e juizo, nem sabem o que fazem, nem o (juc
•se faz em sua presença. E as mulheres aproveitam então
iOiilrario. O que porem sem duvida acontecia era haver e\emplo-s
de uma 0 outra cousa, segundo as circunstancias e as pessoas.
( a ) Hoje está este uso subslituido nas senhoras dc Goa pelo do
taljuco dc liinio.
FRANCISCO PYRA RD î

a occasião de dar entrada a quem bem Ibes parece, e fazer


Uido quanto lhes apraz, mesmo em presença dos maridos,
que nada podem perceber. Este estado dura cinco ou seis
lioras, mais ou menos segundo a quantidade da dose. De­
pois dormem, e quandp despertam, persuadem-se que es­
tiveram sempre a dormir,, sem se lembrarem decousa algu­
ma do que fizeram, viram, ou ouviram..
Quando também os homens querem gozar de uma rapa­
riga ou mulher, e o não podem conseguir, fazem-lhe tomar
a mesma droga, e quando tem o entendimento toldado, ta-
zem délias o que querem, sem ellas darem por tal. Duran­
te 0 tempo que naquellas terras estive, aconlcceo acharem-
se gravidas muitas mulheres sem saberem donde aquillo
lhes vinha. Mas quem tomasse grande quantidade deste
0?' írueto, infailivelmente morrería. Quando os soldados e ou-
lios homens não podem possuir uma mulher, p n h a m as
suas escravas, que por dinheiro vendem e atraiçoam suas
senhoras desta sorte, fazendo-lhes beber desta erva (a).
( a ) A. planta, de que falia o auctor, é a bem conbecida D a t u ~
representada aqui pelos seus dons nomes indianos,
r a S tr a m o n iu m ,
M o e lo l e D u tró ,
dos quaes o segundo é vulgar ao norte, e o primei­
ro ao sul da índia, üeriva-se o segundo do sanscrito, onde a mes­
ma planta ó chamada K r i s h n a D h a t t u r a , e dahi. pa.«sou as outras

/>í<íorò
liliguas-de origem sanscrita, como. no Bengali K a l a D a t u r a , no
iiindustaiii e Guzerate D a t u r a , no Concani ( sing. ) e D a t o -
r c ( plur. ) Foi daqui que passou á lingua portiigueza, onde com-
niumente se escreve- D u t r ó , mas alguns com mais correcçao ethy-
mologica escrevem D u t o r ó . O outro nome, M o e t o l , ^ usado no sul, e o
auctor 0 achou nas ilhas de Maldiva. Deriva-se do TamuI U m a-
l a y , noTelegú U m a t í e , no Malaio I l a m i n a t u , proxmio do Malui'a Moe-
lol Da<|ui veio o Poitnguez N o z M e t e l l a , e o Erancez M e t e i , para
Mr.'llèxander Faulkner, intitulado- A D ,ç -
t i Z r Z l Commerçai Terms, Bombay, 1 8 5 B, que pnncpaliimnte
uoTsïrviode gnia na synonimia, que temos referido se le, no^ar-
ti"0 TItorn A p p l e { uomë vulgar iiiglez da Üadira ) depots da des-
crlpcào commercial da planta que=« para o l"” "iji'
« l)os,e outros.intentos criminosos, as sementes
ft queiilemeute dadas na India cm dooes, ineraniente pa t
SEGUNDA PARTE. 00
Verdade é qiie os escravos são tão maltratados de seus se­
nhores, e senhoras que cruelmente os tyrannisam, que não
ha muito que estranhar se elles se arriscam a tudo para se
vingarem. Vi um dia em Goa um escravo de dezoito ou de­
zanove an nos d.e idade precipitar-se n’ um poço. onde se
matou, para evitar a furia de seu senhor, que corria apoz
d ie para o castigar..
Mas ainda que em Goa as mulheres sejam muito impu­
dicas, e que o clima, e os alimentos da terra o favoreçam,
todavia nem lá, nem nas outras cidades dos Portuguezes
ha alcouce publico, nem é permettido^ liavel-o, como em í-
talia, e em Hespanha; mas encobre-se alli o peceado o me­
lhor que se pode; e todavia não se passam maiores priva­
ções do que em outros muitos logares.
As mulheres e filhas dos Portuguezes, Mestiças, e India­
nas, banham-se, e lavam todos os dias as partes vergonho­
sas, como fazem as outras mulheres indias, que não são
christãs.
Uma das recreações dos Portuguezes- em Goa é junla-
rem-se ás suas portas com cinco ou seis visinhos assenta­
dos á sombra em bellas cadeiras para praticarem; e estarn
« car, mas não cora/tesignio de matar; ain.da* que não ha- hi duvida
« que para este ultimo eíTeito também tem sido usadas=»
No território de Goa, e provincias adjacentes ha duas especies
de Datura ou L)utoró\ uma azul, que c rara; e outra branca, que
é abundante,, e brota espontaneamente nos paímares, e em terrenos
incultos.
Os medicos inglezes, que praticara: a clinica na índia,, recommen-
dam a raiz, folhas seceas, capsulas, e sementes da Daturw i ara se
fumareni nos casos de asthma espasmódica. O povo usa das folhas
recentes pisadas com sal para applicar externamente sobre qiiahiuer
parte dolorosa; e nas dores de-garganta usa da capsula pendurada
ao pescoço. Não nos consta de exemplo algum moderno de- se fazer
em Goa uso-desta planta para os ílns criminosos a que alludem Py-
rard e Faulkner.
Não se deve confundir a Datura on Modal com: o M'ai fol, que
assira se cliama na India a Noz de Galha, derivando" do sanscrite
Mavufhul, do Guzerate e Hindustani Majowphal. ( Faulkner, arti­
go )
100 TIAGEM de FRANCISCO PYRARD

todos em camiza e calcões, com muitos escravos ao redor


de si, dos quaes uns os abanam e lhe enxotam as moscas,
outros coçam os pés e mais logares do corpo, e catam os
l>iclios. Assim passam a maior parte do tempo, e saúdam
cortezrnente aos que passam, folgando muito que se deíe-
uham para conversar com elles. Quando comem, ou quando
se levantam e deitam, mandam vir toda a sua musica de
escravos, assim machos como femeas, para os recrear; e
em quanto comem tem escravos que os abanam, e enxo­
tam as moscas de cima dos manjares, porque aliás seria
dillicultoso não engolir algumas destas moscas, de que ha
grande ahundancia por toda a índia. O mais ordinário
];assalempo das mullieres é estar lodo o dia ás janellas, a
que chamam ventanas (a), e são mui hellas, grandes, e es­
paçosas, em forma de galerias e saccadas, com jelosias e
1‘otulas mui lindamente pintadas, de sorte que ellas podem
)■ ver sem serem vistas.

' C APITU LO v m .

!>«« porljagu^eaECS e o i Goas <le «eu morto d e %í-


<la> e enil>ar<ine«; rte «ua« rtâver«a« expertieõe«;
e orrtom q u e guaB’rtam iia guea^ia.

*uanto ao seu modo de guerra e rnilicia cumpre saber


q ^ os Porluguezes tem tido desde o principio guerra con­
tinuada com os Malahares, que são os piratas do mar da
Índia, e contra outros reis e povos indianos, como os A-
rahios, os reis de Sumatra, Java, Jòr, que é na lería lir-
nie de Malaca, e outros das ilhas da Sonda, e da costa e
terra lirme de toda a Índia. E afóra isso desde que os In-
glezes, lloilandezes, e oulros estrangeiros tomaram a der-
( a ) O auctor suppoz ser portugueza esta palavra caslelhaiia. que
raiiica teve eiurada iiu língua poriugueza.
SEGUNDA PARTE. 101
rola da navegação da índia, tem por esse respeito uma
nova guerra entre mãos, a qual os tem abatido muito, e
posto em termos de total ruina, de sorte que se tem visto
obrigados a reforçar suas armadas. Porque toda a sua guer­
ra é por mar, e não por terra, onde elles nada tem, com
quanto ás vezes não deixem de ter guerra com alguns re­
is particulares da terra firme, que rompem a paz e tregoas
ajustadas de parte a parte; e então poem em campo exér­
citos de terra, e mandam vir soccorros de suas cidades e
fortalezas. Mas as armadas são sempre certas, e armam e
apercebem duas cada anno, como já disse.
Para á guarda pois de toda a costa da índia desde
Goa até Gambaya, e algumas vezes alé Ormuz de uma par­
le, e da outra até ao Gabo Gomorim, para impedir as car­
reiras dos corsários iVlalabares, apercebem duas armadas
cm Goa, e chamam Armada do Norte á que vai até Or­
muz, c Armada do Sul á outra (jue vai ao Gomorini; e são
compostas de cincoenta ou sessenta galeotas, com uma ou
duas grandes galés como'as de Hespanba. Estas arniadas
■ sáem no mez de Outubro, que é o principio do seu verão,
que dura seis rnezes pouco mais ou monos, e c o tempo em
(jue correm os corsários Malabares. Para remar em suas
galés servem-se de caplivos, e forçados, e usam da mesma
urdem que nós cá usamos. As galeotas são de quinze a
vinte bancos de cada lado, e a cada remo não lia mais que
um homem que não seja forçado nem captivo, mas Gana-
rins e habitantes de Goa, Bardez, e Salcele, e Golombins,
que são a gente mais baixa e rasteira entre aquelles povos,
e estes todos servem livremente segundo se concertam.
Ghamam-ihes Lascarins, ao seu patrão Mocadcio, á galeo-
lâ porlugueza Navio, e ás dos Malabares Pardos ou Parés.
Alem destas duas armadas geraes, fazem-se outras que
vão a Malaca^ a Sonda, a Moçambi(|ue, e outras parles on­
de é mister, e conforme a seus desenhos; mas estas arma­
das são compostas de navios redondos, que são como ga-
20
VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD
á
Jeoes, iircas, e nàos da India, corn alguma grande geleola;
e vao a soccorrer e reforçar suas fortalezas, como a ilha
de Gedão, e outros logares onde elles lein guerra, ou on­
de sao accommettidos.
Todas estas armadas se fazem á custa d’ El-Rei. Sáem
também galeolas e navios dos outros portos e enseadas dos
1 oituguezes, que vem juntar-se áquelles mais, possantes,
e são bem armados; e todos juntos correm a costa, e en­
tram, e surgem em todos os portos, que pertencem a seus
amigos e alliados, assim para refrescar, corno para o ira-
iico, porque com estas armadas vai grande numero de na­
vios e galeotas mercantes, a que chamam Navios de Cha-
Inis, para os dilíerençar dos outros, que chamam Navios
da Armada, Estes navios mercantes andam assim em con-
sciva dos das armadas pelo temor dos corsários, que obs-
'IÍ
■ 1Í*-.#§]■y - lam a que andem sós. E ainda a maior parte dos solda^
dos, que tem posses, não deixam de fazer suas venia^as
ao mesmo tempo que servem a El-Rei, o que lhes é p^er-
imttido, e até certo ponto necessário, pelas poucas pre­
sas e soidos que tem. Os navios de guerra são apparelha-
dos á custa d’ El-Rei, mas os navios de Chatins coiTera
])or conta de seus donos ou fretadores; e todavia não dei­
xam de estar sujeitos, e de obedecer em tudo ao general
das armadas, a que dão o nome de Capitão-mór,
Nas grandes galés podem caber duzentos e trezentos
homens d’ armas; n’ outras galeotas grandes, a que cha-
mam Fragatas, cabem cera; e nas pequenas, que são os
navios communs, quasi quarenta ou cincoenta. íla ainda
outras embarcações mais pequenas, a que chamam Man-
chuas, onde cabem quinze o u v in te homens. Quanto aos
•navios redondos o numero de homens que levam é set^uii-
do a sua grandeza. ®
A sua ordem e modo de embarcar é este. Quando se
quer fazer um embarque em Lisboa para a índia, fazem
uma leva de soldados por todo Portugal ea^ cada fregue-
SEGUNDA PARTE,
103
sndp T A » gastadores, e acceitam toda a
e o ítín tn o qualquer qualidade e condição que seja,

ir Dor i ' ? ' " ‘'r ff''“ P^^P'’ ''^ fazem-nos


culadós^na r ® ®3o matri-
cmbírcarêm fiador até
dinheiro da viagem
r i d L . : T L S r T a f m ‘a r Í
Hdade das pessoas^";; s V u r d o i ^ - T o n ^ T ^ o ^ t h m r é
pori?cis, como em Gastelia por Maravedis, que é uma cer-
Í.Z ? » r "»“ ■' ■>“»
lid!dprm®^-‘ “V ° ' ' ^ “ >°® matriculados ha dignidades e qua-

servicos e virt t ® P^osapia, outras de seus


m rh e rn n l á . ’ V “ “ '"* de sorte que
menos difterenças, uns mais outros
té á Iiidii P °r Lisboa toda a passagem junta a>
de de se ánpiv^h mezes; e elles não tem necessida-
t pomue^F Í P^ovú,nentos para seu uso particu-
ter de vívppp « f Comece tudo o de que hão mis-
titulos e oiníld^ ®.™‘"dções de guerra. Aquelles
via r v t p - R p ' ^ * ‘ r®^ adquirem-nos em Portugal, e toda-
merecem nn np deixa de conferir alguns aos que os
São n o ^ s P "1“ ! « " ! ^ “ ®'- favorecer na índia. Os que
aos Ha nrifrp« Simplesmente chamados Fidal-
Nosso S e J lr n ®*’ amam F’iáa/;7 os da Caza d’ El-Rei
Moços fidalam^n^ ^ n t r e elles os mais estimados; outros
Cmnara e 2 \T ''°^ '-avalletros fidalgos; outros j¥opos da
nãó íém t i í l p Aifafi/os. Os que
mente 5c(Wm/n<! r™, 'g^^dade c h a m a m -scp u ra e sim p les-
r i m o hl ;p dignidades do que tu-
.. porque ellas lhes servem para haver car-
iO i VIAGEM DE FRANaSCO PTRARD

gos e governos com seus competentes proveitos. Alem


ijesles lilulos lia outro, que é o de homem honrado, que
todos querem ter. O mais que pode receber um soldado,
mesmo dos principaes, para a passagem de Lisboa a Goa,
são cincoenta ou sessenta cruzados.
Quando estes soldados se embarcam nas náos são re­
partidos por esquadras ou companhias, para fazerem quar­
to ou guarda de noutc por turno, e não de dia.
Estes soldados alistados, ainda que não tenham titulos
nern dignidades, não deixam por isso de se tratar entre
si por homens bem nascidos, e se dizer todos nobres,
quer sejam ou não de vil condição; e os verdadeiros no-
£!>• hres Iho não levam a mal, tanto mais que a diíferença de
sua condição só é sabida entre elles, e não dos índios,
nem diminue em ponto algum a nobresa dos outros, de
que todos os annos vem as listas dc Lisboa ao Vice-Piei;
íintes estes titulos, que elles se dão entre si, não é senão
para persuadir aos índios que elles são todos de bom e
illustre nascimento, e que não ha entre elles raça alguma
vil nem mecanica. E por isso não querem que algum Por-
tuguez, ou seja soldado ou outro qualquer, faça cousa ab-
jecta e deshonesta, nem vá mendigar para viver, mas an­
tes 0 sustentam o melhor que podem. De sorte que o ma­
ior trata com respeito ao mais pequeno; e prezam infi-
nilainenle este nome de Portaguez e Portugal, usando
do nome de homem branco, e despresam todos esses pobres
índios, a quem trazem debaixo dos pés. E não ficavam
esses índios pouco espantados quando nós lhes diziamos
que elles eram filhos de mariolas, sapateiros, aguadeiros,
e outros homens de vis mesteres.
Ora segundo seus titulos, qualidades, e mérito, assim
são as recompensas depois de sete annos de serviço. Estas
honras e titulos que os soldados se dão entre si, ó só de­
pois (pie lern passado o Cabo da Boa Esperança, porque
e então ([ue elles largam todos os seus modos e coslu-
SEGUNDA PARTE. IOj
mes, e lançam todas as saas colheres ao mar. Sendo
chegados á índia a qualquer logar que seja pertencente aos
Portugiiczes, são livres de ir para onde bem lhe apraz, sem
serem obrigados a cousa alguma, e mesmo não podem ser
constrangidos a ir á guerra, salvo se for extraordinaria;
por isso não recebem paga nem soldo algum. Vão sim co­
mer e beber aos aposentos desses quatro grandes senho­
res, que dao mesas a todos os soldados no inverno, c po­
dem lambem ir a todos os mosteiros em qualquer tempo
do anuo; porque na casa daquelles senhores não se dá me­
sa senão de inverno, quando os soldados estam em terra,
e as armadas recolhidas.
ííao por melhor dar-lhes de comer, que dinheiro, poiajuc
sendo elles mui dados ao jogo, jogariam tudo immedia-
tamente. Quanto' ao dinheiro que se lhes adianta quando
estam para se embarcar, não ousariam deixar de acceitar
tudo 0 que lhes é necessário para a viagem, sob pena de
procedimento. Para as duas armadas do norte e sul adi-
antam-se-lhes dous quartéis, que montam ao todo em trin­
ta e seis pardáos; e para as outras armadas, que vão ma­
is longe, adiantam-se-lhes très quartéis; o que não obsta
a que, se elles gastam mais tempo nestas viagens, não se-
jain pagos quando recolhem de mais um quartel. E o Vi-
ce-ilei Iho manda lambem dar ás vezes, quando quer gi’a-
tificar os soldados. Nunca fazem alardo; mas sabem a con­
ta dos seus soldados pelas listas; porque não querem que
os Índios saibam o seu numero, como já disse. Os outros
liabilantes, e soldados christaõs índios naturaes os fazem;
mas não os Mestiços, que são como Portuguezes.
Ainda que a maior parte destes soldados sejam envia­
dos por força, com tudo chegando á índia são todos livres
de ficar nella, ou voltar a Portugal, tendo a sua licença
e passaporte do \ice-Rei, o que elles mui difficilmente
obtem, a não ser por favor, ou mostrando alguma causa
legitima. Mas a causa principal porque tão poucos reco-
27
%,

106 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

]hem ao Reino é porque El-Rei nem agua Jhes dá para a


torna viagem, e que é mister ao menos trezentos pardáos
para as despesas delia.
Os que chegam novamente á índia são chamados Reino-
es, isto he, homens do Reino, e os mais antigos mofam
delles até fazerem uma ou duas viagens, e terem aprendi­
do os costumes e manhas da índia; e aquelle norne lhes
dura até serem chegados outros navios no anno seguinte.
Quando vão pela rua, e são conhecidos como Reinóes, os
rapazes, e moços das tendas gritam apoz elles,, e os mer­
cadores indianos folgam muito de os ver, porque mais le­
vemente se deixam enganar.
Para estes soldados Portuguezes esperarem recompensa
ou merce de El-Rei, é mister que sirvam lá sete aniios,
sem contar o anno da partida; e por isso os Mestiços, ou
,11 nascidos na índia fazem serviço oito annos. Não basta po­
fevf rem assistir lá, é mister embarcar-se, e ir em todas as fac­
ções de guerra e embarques, que se offerecem, e ter disso
l)ons certificados do Vice-Rei e Gapitaês, os quaes se não
esquecem de lançar era seus certificados todos os bons ser­
viços que prestaram, para que elles tenham a recompen­
sa proporcionada, porque se os não podem mostrar, na­
da recebem. Se querem ser recompensados é mister tam­
bém que se recolham a Portugal no fim daquelle tempo,
senão o seu serviço será perdido; e de feito o perdem ás
vezes quando por falta de meios não podem ir, porque de­
vem alli comparecer em pessoa. Mas se morrem no ca­
minho, suas mulheres e filhos, ou outros herdeiros pró­
ximos, podem servir-se dos ditos certificados, como elles
proprios 0 teriam feito. Os que se recolhem antes do di­
to tempo não tem recompensa alguma, e da mesma sorte
os que estando na índia não servem.
tia grande numero de soldados, que são enviados á ín ­
dia como degradados por suas malfeitorias, e esses não
ousariam regressar antes de expirado o seu tempo. Man-

'W - • • S-
SEGUNDA PA RTE. Í0 7
dam-nos a Ceilão, Moçambique, Malaca, e outras fortale­
zas para defensão delias, e tem somente os seus soldos,
sem esperarem mais recompensa; e a maior parte destes
casam-se alli, e la ficam toda a vida.
Quanto aos moços que são embarcados e pagos por sol­
dados em Lisboa, quando chegam á índia, não são rece­
bidos por taes, se não tem força sufficiente para menear
toda a sorte de armas; mas nem por isso lhes falta \ocro ar­
rumo; porque todos os senhores, capitaes, e fidalo^s os
tomam por pagens, ainda que sejam de baixa condfção; e
não tazem a seu amo ou ama algum serviço vil, mas só
os acompanham quando sáem fora, e andam mui galhar­
damente vestidos da libre de seu amo. E ha fidalgo que
chega a 1er doze ou quinze destes pagens, os quaes não
communicam, nem tratam com os escravos (a). Quando
sao grandes e fortes para pegar em armas, seu amo lhes
da ^algum dinheiro para as comprarem e se vestirem, e
cntao se embarcam como os outros, e os sete annos’ de
serviço se lhes começam a contar desde que sáem de pa­
gens, e seguem a rida soldadesca.
Estes soldados são todos isentos, e ninguém tem sobre
elles mando senão o Vice-Rei, salvo quando estam alista­
dos, embarcados, e tem recebido sua paga para irem á
guerra; porque então os capiíaes e capitaes-móres das ar­
madas os governam durante aquella viagem somente. De
sorte que todos os homens, que não são cazados, e que
liazem espada por profissão, se podem dizer soldados, por­
que so os homens addictos á igreja não usam espada. Es­
ta palavra soldado significa pois um homem que não é ca-
zado; e lhes é defeso trazer capa, para se distinguirem dos
cazados, que as trazem. Estes cazados não podem ser cons-
trangidos a ir á guerra, e quando querem ir a ella, é para
n o lfn l e pragmaticas foi limitado o numero dos
pa^ens que devia ter cada capitão e fidalgo ; mas pelo testemunho
do auctor se ve que essas pragmaticas ficaram sem eíleito.
Î08 VIAGEM DE FRANCISCO PÏRARD

elles grande deslionra por causa do deixarem suas mulhe­


res; porque lá são havidos em grande honra os cazados.
Por isso os soldados não desejam que com elles vão embar­
cados iiomens cazados, porque se acanham de dizer peran­
te elles palavras deshonestas, como dizem entre si sem re­
paro, e sem olíenderem o fuelindre dos oulros camaradas;
mas um homem cazado se daria por mui aggravado de la-
es palavras. Todavia a necessidade os constrange ás vezes
a embarcar-se; mas tem obrigação de levar capa para se-
i'em conhecidos por taes.
Ouanio ao numero destes sold^tdos, assim Puiduguezes
como Mestiços, só ern Goa vi mais de (|uaii'o ou cinco mil,
íóra os scddados índios, que são innumeraveis; e que toda­
via não podem igualar-se, nem comer com os Portiigue-
zes, ainda que sejam chrisíaõs, e que homens e mulheres
se possam cazar e alliar entre si. De sorte que estes sol­
dados para obter postos, cargos, e honras da republica,
assim na cidade de Goa, como nas outras fortalezas dos
PortüguGzes é mister que sejam cazados, ou pelo menos
soldados matriculados, e pagos por conta d’ El-ilei.
A ordem de seus embarques para a guerra é que o \ i-
ce-Rei e seu conselho nomeam um capitão-rnór cm cada
armada ordinaria c extraordinária, e depois os capitaes
])ara cada embarcação; e mandam dar ao dito capitão-mòr
e capitaes dinheiro para todas as despesas. Depois a som
de tambor se botam pregões pela cidade para avisar to­
dos os que se quizerem alistar para tal e tal parte; e en­
tão os capitaes tem cuidado de procurar homens honra­
dos, e os melhores soldados, e lhes dão gratificações e
honras^ para os attrahir e chamar a si. Porque estes solda­
dos, não sendo obrigados a ninguém, vão-se embarcar com
quem bem lhes parece, e não permanecem sob sua obe­
diência senão durante a viagem; e em quanto são pagos
de seus quartéis.
Pelo que pertence aos que tem mando é o Tiçe*Rei

li,.
SEGUNDA PA RTE. iOO

que lhes dá tudo, e a maior parte das vezes por favor; c


estes taes são os mais/ bem pagos e recompensados, por­
que tem mais soidos, e parte maior das presas; e semc-
Ihantemenie os que tem cargo dos provimentos de siveres,
munições, e outras cousas, no que todos tiram seu pro­
veito segundo o seu cargo, e segundo o maior ou menor
favor que para isso tem. E’ grande honra e mercê ser ca-
'pitão-mór, e mesmo capitão de um navio, porque teni
mando sobre muitos soldados honrados, que em terra são
tanto ou mais do que elle. O Vedor da Fazenda ó quem
paga aos soldados; mas os marinheiros, chusma, e outra
gente recebem dos capitaes-mores e capilaes, que para is­
so se lhes dá o dinheiro adiantado.
Porem o dinheiro que se paga aos soldados antes do em­
barque ó s(3 para arranjarem vestido, armas, e outras cou­
sas necessárias; mas não lhes é mister tratarem de se pro-
Ter de mantimentos; porque são mui hem sustentados á
custa d’ El-Reí no navio, conforme aos logares. Porque se
andam no mar usam o mantimento ordinário do navio,
que é arroz com manteiga, assucar, lentilhas, e mangai
salgadas, e pela maior parte do tempo biscoito, e não be-
})eííi senão agua; e comem tarnbem peive salgado com o
arroz. Mas quando eslam surtos em algum porto, como
pela maior parte das vezes succédé, dá-sediie toda a sorte
de mantimentos, que no tal logar ha, á custa d’ El-Rei.
iV(pielles porem que querem ir morar em terra sustenLam-
se á sua propria custa; e no mar cada soldado tem seu
prato, e comem separadamente. O capitão trata com gran­
de respeito e honra a todos os seus soldados, que são al-
li havidos em muito maior estimação que cá entre nós;
porque o titulo de soldado é o mais honroso que se pode
ter; e não ha homem tão rico, c de tão grande qualidade
que se julgue deshonrado em dar sua filha em cazarnen-
lo a um soldado.
Quando um soldado tem recebido a sua paga e quartel
^8
o X

íiO VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

para se embarcar, se depois disto se esconde para não i r


na armada, e o podem apanhar, é punido corporalmente,
e meltido em prisão. Nos navios fazem-se duas cozinhas,
a saber, a do capitão e soldados, e a dos oííiciaes do mar
c marinheiros. Em cada navio ha tres ou quatro pagens
Porluguezes, pagos e sustentados como soldados,, que só
lem por obrigação servir o capitão, tenente, e soldados,
e os ecclesiasticos que vão a bordo, ou sejam Jesuitas, ou
de outra Religião; porque não ha navio onde não vão ec­
clesiasticos. A maior parte tem escravos, e creados parti­
culares. Ha soldados de grande luzimento e qualidade, e
todavia andam todos como os nossos soldados do rcgirnen-
lo das Guardas a pé com seu arcabuz, pique, partazana, pe­
quenos escudos chinezes, arco, e ílexas. Usam pouco coti-
laças, mas fazem grande estimação das gargalheiras de
Lufalo, e giboês acolchoados, que só são capazes de resis­
tir aos golpes de espada, e ás ílexas atiradas de longe. Ser­
vem-se também de capacetes e chapeos de ferro. Quando
estam em terra trazem calças á maruja, que tem quasi
dez varas de panno, e são mui amplas e largas em baixo,
e chegam ao chão; com estas calças não usam meias, e é-
llics impossivel correr. Mas quando andam embarcados u-
sam calças de outro feitio, que chamam a franceza, isto he,
|t' ■' como ha trinta annos era moda em França, e são mui cur­
tas e estreitas. Não trazem também meias nem sapatos,
porque dizem que os sapatos lhes impediriam firmar os |iís
sobre o navio, ou sobre o bordo, e enxarcia. De noule tem
tendas de folhas de palmeira feitas delerminadameiile para
se cobrirem da chuva; e para se deitarem, usam esteiras e
chumaços, com tapetes da Pérsia; ou de Gambaya, que são
menores; e pela manhã dobram tudo, enfardelam, e amar­
ram. Nas embarcações ha tão pouco logar, que difficulto-
samente se podem os homens, quando estam deitados, e s -
iender ao comprido.
Tendo fallado dos em barques, e do seu modo de viver
SEGUNDA PA R TE. 111
no mar, direi agora alguma cousa da forma e maneira de
seu proceder quando estam nas cidades, e principalmente
em Goa; porque quando se recolhem de suas viagens, re­
sidem nas cidades que bem lhes apraz; e da mesma sorte
vivem os que se não embarcaram. Uns dão ordem á sua vi­
da de um modo, e outros de outro. A maior parte travam
amizade com moças e mulheres não cazadas, a que cha­
mam solteiras, que quer dizer mulheres de má vida (a), e
vivem com ellas mui desabiisadamente, como se fossem ca-
zados. Estas mulheres se hão por mui honradas quando
um homem branco, entende-se da Europa, procura a sua
amizade; porque ellas o sustentam e tratam o melhos que IV]
podem, e lhe lavam e arranjam toda a roupa. Da sua par­
te estes soldados que são seus amigos, como lá dizem, as
mantêm e defendem em tudo, e até são zelosos délias, co­
mo se fossem suas proprias mulheres; e por ellas se ba-
leriam e matariam mui facilmente em duello. Mas é gran­
de desventura para um soldado, ou outro homem Porlu-
guez, travar amizade com estas mulheres publicas, mesti­
ças ou Índias, porque poucos são os que sáem disso sem
risco seu; porque se ellas sabpm que elles frequentam ou­
tras mulheres ou moças, ou que tem vontade de se cazar,
ou de as deixar por qualquer modo que seja, infallivel-
mente ellas os envenenarião com uma certa droga, que os
deixaria durar seis mezes, mas que no fim deste tempo
sem falta os matará; e por isso é mister que um ho­
mem use de grande ünura e dissimulação para as deixar.
Porem os filhos que daqui procedem não são tidos por
bastardos, mas herdam de pai e mai. Quinze dias antes de
nós partirmos de Goa houve um contra-mestre de uma das
Ire's náos, que partiram antes da nossa, que foi visitar a
amiga de um soldado, o qual entrou em caza nessa occa-
sião , e lhe deu uma. cutilada de sorte que o deixou
( a ) Mulher solteira, por mulher publica, é expressão commuiu
Bos- documentos portuguezes da epocha do auctor.
llâ VIAGEAÍ DE FRANCISCO PYRARD

por morto, e se acolheo a uma igreja. Mas a mulher e a


creada ficaram mui caliadas, e quaudo veio a justiça não
procedeo contra elías, nem contra o soldado cpie se^ havia
acoutadoj o ferido porem foi levado ao hospital, e depois
de ser sao, vendo que a náo em que havia embarcado to­
da a sua lazenda era partida, vio-se obrigado a vir na nos­
sa náo, na qual cprnprou gasaüiado como passageiro sem
emprego algum, jirn sornma estas mulheres são todas mui
apaixonadas dos homens de cá. Quanto aos soldados que
lazem \ida com ellas, não deixam de se embarcar nas oc-
casiòes como os outros.
, Os ouiros que não fazem vida com as ditas mulheres,
junlam-se em numero de nove ou dez, mais ou menos, e
tomam um aposento, que lá são mui baratos; porque lím
a'’ aposento que cá valo doze escudos por mez, não chega lá
a valer um. Mobdam estes aposentos de leitos, mezas, e
)■ ■ outros ulensdios, e tem um escravo ou dous para todos.
JJe ordinário moram em salas lerreas por causa do gran­
de camr. Por isso ha alli aposentos feitos de proposito,
que não são divididos cm cainaras, c só servem para alu­
gar aos soldados, ou outros forasteiros de poucas posses;
com quanto haja cazas maiores para alugar como cá. Estes
soldados vivem pela maior parte mui mesquinbamenlc, ao
menos aquelles que não tem alguma traça; porque alguns
la que tem mulheres cazadas ou viuvas, que os mantêm
üccnllamente; outros alcançam as boas graças dos senhores
e iiaalgos, que os não deixam padecer necessidades; e ou-
tios mercadejam. Os que de todo ern lodo se vem desam-
parados c legam-se áquelles quatro grandes senhores, de
que ja tallei, que lem mesa posta para todos.
^ Aquelles porem que vivem em commum nunca comem
juntus, mas cada um tem a sua ração, e tem nella mais
lü 10, pao, carne^ e peixe do que duas pessoas poderiam
conier Os que não querem ir comer a caza, mandam um
oço juscar a sua comida e ração, o a comem onde que-
SECtUNDA parte. 113
rem. Em todo o dia cstam na sua sala. on á porta assen­
tados cm cadeiras, á sombra, c á fresca em canii/ai e ee-
roulas; e alli cantam, e locam guitarra, ou outro instrii-
mento. Este logar é juncado de folhas verdes, e lançam-
lhe nuiila agua para se conservar fresco. São mui^corte-
zes com quem passa pela rua, e de nuii boa vontade offe-
recem a casa para que possam os (juo passam entrar, sen­
tar-se, galhoíear. e praticar com elles. Nunca saem todos
juntos pola cidade, mas aos dous e aos Ires quando mui­
to, poiapie ás vezes não tem mais de ties ou (piatro ves­
tidos para servir a dez ou doze. E todavia quem os vir
marchar pela cidade dirá que são senhores de dez mil li­
bras de ronda, porque vão cheios de gravidade, e levam
junto a si um escravo, e um homem que lhes segara um
grande sombreiro ou. guarda-sol. Ha logares aonde se vão
alugar estes taes liomens, e servem-se driles meio dia
por um vintém, que valo seis brancos (a). Andam os sol­
dados, de que falíamos, vestidos de seda o mais sober­
bamente que se pode imaginar; mas logo que clicgam ás
pousadas, prompíamente largam os vestidos, e os passam
a outros, sc querem sair a seu turno.
Vagueiam de noute pela cidade, e por via dclles corre-
se muito lãsco de sc andar pela rua passadas as oito ou
nove boras, apezar de fazerem rondas os meirinlios com
seus homens, porque aípielles soldados são mais fortes.
Tem um máo costume, e è, que nunca accommetlem um
homem só por sò, mas pela maior parle das vezes cáem
sobre um só homem quatro ou cinco, e o matam, seja
de dia ou de noute. De noute matam e roubam; c por di­
nheiro não tem duvida de ir matar um homem.
Eis como os soldados passam sua vida na índia, assim
em terra como no mar, uns hem, onlros mal, segundo
sua boa ou ma sorte. Mas a maior parte delles por üm
( a ) V e j a - s e à Nota f b ) d e pag. dcsie volum e.
29^
I!4 VIAGEM DE Fi^ANClSGO PYRARD

cazam-so, e mcrcadejam; porque uns luto querem voltar á


Porlu^a! por terem muito dc que viver na ímJia; os outros
não podem por falta de meios [)aia a toriia^viagein. Não
lhes e muito custoso viver lá, poiajue não bebem senão a-
gua de Haiiguenim (a), e um homem acha boa pousada
por uma tanga ou cinco soidos por mez; de sorte que coni
seis brancos, ou tres soidos por dia, [)ode alli um homem
passar bem, e comer com muita abaslança.

CAPITU LO IX.

I>o R e in o do R e a lc ã o . R ecaii, o u B a ila g a te n a vi»«iultaH«


ra dc <i]oa>

f i a s porque a ilha de Goa, e as terras visinhas, que ora


estam em [loder e sob o dominio dos Portuguezes, depen­
diam antigamente do reiuo do Dealcão ou Decan, de que
mui ias vezes já temos fallado, não será íóra de pmoposito
dizer algmiia cousa do que, estando em Goa, soube daquel-
las ierrav.
íía pois cento e dez annos, ou pouco mais, que os Por-
Inguezes possuem a ilha de Goa (b), para recohiaar a qual
das suas maõs os reis do Dealcão tem feito todas as dili­
gencias e repetidas guerras, que tem podido, chegando a
tê-la dc cerco por duas vezes, com dous mui poderosos
exercites, composto cada um de duzentos mil homens, e
cada cerco tem durado poi* nove rnezes inteiros; c o rei do
Dealcão dizia por fanfarrice que para entulhar o rio, e dar
passagem ao seu exercito para a dita ilha, lhe bastavam
as alparcas dos seus soldados. E de feito chegou a enlra-
f a ) Disse lia pouco o auctor que na ração dc cada um havia
sempre vinho, que chegava para dous !
( } ) } Yô-sc daqui, e de outra semelhante conta, que fica a pag.
desic volume, que o auctor escrevia este livro na Europa pe­
los anuos de 1620 e tautos.
SEGÜNDA PARTR. Î15
la por iim îogar por onde achoii meio de dar passagem a
iim troço de genle, mas foram recebidos valerosaniente,
e rechaçados pelos Poriiiguezes. Mas o que mais maravi-
Ihoii este rei foi a artelharia que os Poringuezes liuham,
que era mui grossa, e elle mão a tinha.
Com tudo tendo reconhecido (|ue a não podia tomar por
força, e que ao contrario receberia maior proveito e ri­
queza tratando, e communicando com e!!os, de (jue se fi­
casse possuindo Goa; e pela ou Ira parle vendo os Porhi-
guezes que elles não podiam alli permanecer poi- muito
tempo sem a amizade deste rei, porijuo todos os manti­
mentos lhes vinham de suas terras, lizeram paz entre si
com estas condições. Que os Portuguozes vivirião na. ilha
que haviam ganhado, segundo suas leis c costumes, sem
todavia fazerem por (jualquer modo entradas nas terras
pertencentes ao dito rei; c este semelhanlemenlo mula in­
tentaria conli'a a ilha. Oiilrosim que os índios, não chris-
taos, que morassem na ilha, <los quaes fia ahi grande nu­
mero, e passam de vinte mil, vivirião sob sua lei livremen­
te, guardando com tudo na justiça c policia as leis dos
Portuguezes, e sem poderem ter templos nem pagodes na
ilha. x\lein disso qiie por cíida pessoa masculina. [)or menor
que fosse, pagarião um pardáo a Ebftei do Portugal (a).
Observam também entre si qne se acontece que uiii
clirislao oil infiel de Goa, por linvcr commellido algum
crime, sc acolha na terra do Dealcão, não pode scr pos­
to em justiça; nem (ambom o que vem do Dealcão para
Goa; mas é mui difliculloso escapar de Goa, porque se não
pede passar á terra (irme sem licença do juiz, dada por
escripto, como já disse, e os passos c fortalezas são vigia­
das por guardas; mas mesmo assim não deixam de se es­
capar muitos. íía grande numero de Portuguezes e índios
( a ) Parece o auctor referir-se ao tratado celebrado depois do
«Uinio cerco; mas neste tratado, que é datado de 13 d e Dezembro
<iç vôn, não h a as c o n d i ç õ e s , a q u e eile a llu d e .
na TIAGEM DF, FRANCISCO P Y R A R B

cliiislaõs. q u G moram nas ditas terras do Dealcão, e l á


eslam de assento, e vivem em Ioda lil>erdade, salvo
110 cxercicio da sua religião cliristã que lá não podem
ter, como semelhantcmenle acontece aos infiéis em Goa.
Este rei do Dealcão domina grande extensão de terras,
e possue muitos reinos, como Decan, Ballagate, Hidalciio,
e outros (a). Eram antigamente diversos reinos possuidos
por seus particulares reis; mas pelo decurso dos tempos
0 rei ilo Dealcão os subjugou todos, e ao presente é mui
podeioso e temido; e confina de uma banda com o reino
de Bengala, e da outra com as terras do Grão Mogor (b).
Quando eu estava em vesperas de sair de Goa, eram vin­
das novas de que este Graõ Mogor havia declarado guer­
ra ao rei do Dealcão, que estava resoluto a esperalo, e di­
zia-se que esta guerra só era dirigida a abrir caminho
para ir contra o rei de Bengala, o que o rei do Dealcão
l!io queria impedir. 0 rei do Dealcão é maliomelano, como
é uma grande parle do seu povo; o resto é gentio e idola­
tra, como os Ganarins de Goa, os Naires, e outros índios.
Era no meu tempo ura principe amavel o pacifico, não
lyrano, mas amigo de todos os estrangeiros, e dos seus
visinhos que eslam de paz com elle. 0 seu poder ó tal,
que pode pôr em campo duzentos mil homens, como fez
no ultimo cerco de Goa, que se crê que elle teria linal-
mente tomado, se não fora a traição de dous cabos prin-
cipaes do seu exercito, aos quaes elle depois mandou de-
gollar por esse respeito.
0 Vice-Rei tem sempre um embaixador junto deste rei
( a ) Já iia Nota de pag. 23 advertimos como o aiictor, do nome
do Rei, JlídalcãOy fez por corrupção o da terra, Dealcão. E talvez
assim dissesse o vulgo em Goa naquelle tempo. Deean e Ballagate
lie que não os verdadeiros nomes geographicos daquellc território,
não diversos entre si, mas equivalentes.
( 1) ) 0 mais correcto é dizer que o Decan ou Ballac/ate era aa-
tigamente dividido cm diversos senhorios, que 0 flidalcão subju*
gou, uuiüdo ao seu o lerritorio delies.
SEGUNDA PA RTE. 1Î7
ijoçp ãlguns JcstiiíRS) C|U6 Sílo por gIIô iicni rccgí Ios c íH-
zem alii algum fructo, mas secretamente. Em loda.s ás sil­
as terras lia grande numero de Portuguezes, a quem elle
permilte que morem onde feem quizerem em toda seo-uran-
■ ça, mas não com o exercicio de sua religião; e semellián-
temente ha grande íiamero de índios christaõs- mas tudo
gente que tem eommettido crimes, e que não ousa voltar
para entre os Portuguezes; e vivem alli licenciosamente
l)a mesma serie ha vas.salos do Dealcão em Goa e em ou­
tras partes, que vivem em semelhante liberdade. Em mnn-'
lo a ^ Portugueses, que estam junto a este rei em Decan
-ou Ballagate (a), podem exercitar a sua religião por catis i
dos Jesuítas, e do embaixador Portuguez que alli ha.'
Este rei também tem um embaixador ordinário em Goa
onde e mui bem servido e honrado, e tem o exercicio dá
sua rehgiao nçs seus aposentos. Todos os corpos dos iii-
heis de Goa sao levados á terra firme, e que mados em

OI anda pela cidade, vai acompanhado de miiila aenle


Tueile iein T 'r? t“ '"° ® ™ercadores daá
ai mados, adiante e atraz de si, com arcos, Ihixas arcabu-
zes, piques, es.padas, e rodellas á chineza. E posto qu.>
elle tenlia muitos formosos cavallos, é levado Ln palLp
quiin, acompanhado de senhores a cavallo. e maiida^ lam-
bein ir cavallos a dextra bem acobertados e ajaezados 1 1 ,
muitos pageiis, dos quaes um Ibe leva o abano, ou’tro a
boceta de prata clieia de betei, outro outra boceta coiii
chuuame, que é cal ^c). e outros dous com
eu vdsos de prata cheios de ague, um para beber ,e lavar

cão!^íoVca?'of^:i^^ o-ll-m or, c«rtedoII , dal


indá’ áof/“ srá'“ád Òl'‘“ . <'« 0"
/ /* 1í 'o I _____ ‘
(c ) Cal cm po para üiisturar com o b e t e i.
118 VIAGEM DE FRANCISCO PYRAîlD

a. bocca, e o outro para lavar as parles recônditas quando dis^-


so ha m ister. Tambern faz levar o seu grande sombreir.o,
com muitos tambores, flautas,, cbaramellas, e outros insiru-
inentos ao modo da terra; e é assim que raarciiam sempre
todos os embaixadores e grandes senhores daquellas partes.
Ha pouco mais ou menos quarenta anuos que' o rei do
Dealcão tendo dons íilhos,. o mais moco veio fazer-se
cbrislão a Goa, e se baotisou; e depois sendo morto o pai,
pedio partilhas a seu irmão, que o não quiz reconhecei* V

por respeito da religião; sobre o que pedio soccorro ao


Vice-Rei, e com esse soccorro fez guerra ao-dito seu irmão
mais velho, que parte por constrangimento, e parte por
conselho de seus grandes, lhe deu em (I'm em partilha as
terras visinhas de Goa, a saber, as terras de Bardez e Saí-
cete, que são sitas ao redor da ilha de Goa, de que são se­
J O' paradas só pelos rios, com mais tres ou quatro pequenas
ilhas. Aquellas duas provincias não são toialmente na ter­
ra firme, mas apenas separadas por algumas ribeiras,, que
facilmente se passam a váo., Tudo isto contem quasi vinte
legoas de território, muito elevado, e fértil em tudo, mui­
to commerciante, e povoado da. mesma gente que a ilha de
Goa. Este rei cbrislão lendo morrido sem. filhos deixou
todos os seus bens e terras a El-Rei de Portugal,, que as
possue até agora com esse titulo, e nellas tem os Portu-
guezes edifjcado fortalezas, igrejas, e parochias, com col-
iegios de Jesuiías, que poem alli todos os paroebos de
sorte que a fé christã se propaga alli todos os dias (a). To­
das estas terras são o celleiro da ilha de Goa (b).
( a ) íslo refore-se e^pecialmente ás terras de Salcete, Quanto
ás (ie^Cardez estavam eiilregiies aos Franciscanos. e a christaadade
aüi não era naquelie tempo tão florescente como em Salcete.
( 1) ) AÜiide neste paragrapho o aiictor, mui confusa e inexacta-
mente, a Meale, ou Meale-han^ pretendente ao Heino de Visapôr,
cuja historia se pode ver em Uiogo do Couto, Dec. V. L iv . I X . Gap.
ViLÍl, ÍX, X, X I ; Liv . X . Gap. I, II, V I, X I ; Dec. V II. L iv . I.
Gap. X , X I; L iv . I I . Cap. I I , V II, V III, IX , X ; L iv . IV , Gap. IX .
SEGUNDA PARTE.. 119
Mas tornando ao Rei do Dealcão; tem elle grande nu­
mero de elephantes, de que ás. vezes faz presente ao Rei de
Hespanlia, e ficam em Goa para serviço do Estado. Tam­
bém tem imulos bons cavaJlos, mas estes vera da Persia e
das terras do Mogor;. porque em quanto aos cavallos ara-
bes, sao os Vice-Reis de Goa que Ihos dão a elle, c Ibos
mandam novos e serrís, e elle lá os manda adestrar, por­
que nao ha nação em toda a índia mais dada a cavallaria;
picadores e palafreneiros
para tratar e adestrar seus cavallos, senão homens desla ler-
la e mesmo afora os Naires, não ha quem melhor que elies
saiba governar elephantes., ^
são muito
para temei. A Itn a e fertii em tudo, porque é receada de
p a n d e numero de.rios e ribeiras. Ha lam bem a l l i ^ e V n -
tes mui grossas e mui compridas. Os mais finos e molho-
res diamanles vem em quantidade do reino de Balla'>ale-
ra Doraue n f riquezas daquelle rei, e da” terl
B a lS e E a líf s®,P'-ezam senão os diamantes de
Ba la^ate. E ainda que também se acham no Pe^ú e em
T a m b e rfe * ^ n r n T nem de tanlo’ preço.
nannos cntn'm ^ ® algodão, de que fazem
S e " ’ r r n n “c f vestem mui hern, trazendo calças, e
flb e c a d S -lí ' '
mo o s d o s Tnrrnc ®'^ão redoudos co-
os (los Turcos e Arábios. Os seus sapatos são á turca
Giicíxrnâdos, doursdos p lnVnHno o -r« » .a i ’
cima e ass m adiante, descobertos por
E ’ co'usa admiravpl gentios como os maliomelanos.

carrec-ados Hp in<i, f a ™ mulheres,


S tm L n ^ mantimentos, com cavalga-

Ha pouco mais ou menos quinze annos que havia em


Goa um parente mui proximo do Rei do Deakão, mas que
m VIAGEM DE FRA^XISCO PYRARD

não era ainda cbristaõ, e todavia era vindo alli com len-
ção de se baptisar. Era doutrinado todos os dias, e assim
esteve entre os Porluguezes dous ou Ires annos naquella
esperança, e desejava mui efíicazmenlc baplizar-se; porque
lá não obrigam ninguém a isso. Neste comemos vieram
a elle alguns embaixadores do Dealcão, que lhe melteram
em cabeça que o rei era morto, e que a coroa lhe perten­
cia, como mais proximo parente, dizendo que tinham até
promessa dos principaes para isso, se elle quizesse sa­
ir donde estava; o que elle facilmente acreditou; e ajustou
com elles de sair secretamente, por não ser descoberto
dos Portuguezes, que o teriam despersuadido desse inten­
to, e aos quaes elle havia dado palavra, e delles havia re­
cebido mui bom gasalhado. De sorte que tanto fizeram,
que saio de Goa em companhia dos taes mensageiros, e
passaram ás terras do Ballagate, onde estava o rei. Sendo
alli chegado o pobre princepe, foi mui bem recebido ao
principio, mas guardado cora muita vigia; e lendo o rei
posto este negocio em conselho, foi resoluto que lhe tiras­
sem os olhos, que é o supplicio de todos os que aspiram
á coroa, excepto o filho primogênito do rei; e assim 0 u-
sam todos os reis índios e Mahometanos á imitação do
lu r c o e do Persa. E isto foi feito por temor que o rei
linha de que este princepe no decurso do tempo não abal-
lasse os Portuguezes contra eiic, como havia feito o outro
de que acima fallei (a).
No proprio tempo em que eu parti de Goa, havia alli
de morada um princepe do Dealcão, parente do rei, e se
havia feito cbristaõ, e atò cazado; icrn pensão d’ El-Rei,
como todos os reis, princepes, e grandes senhores indianos,
que se fazem chrislaõs e se acolhem entre os Porlugue-
( a ) E a historia pouco correcta (ie Cufo-kan, filho de MeaU-
Aon, que se pode ver em Diogo do Coulo, üec. X . L iv . ÍV . Cap.
V ii, X , e X I. E veja-se lambenj o Archivo Portuguez-Onental, Fas­
cículo ‘d.® Documento 23—X IY . Isto ioi no anuo de 1584.
m

z es. E s t e prii^ccpe d e p o i s (io s c r c a z a d o c i a c o o u sois ai\-


iios corn m u a boîla d a m a i n e si i ça, e a f a s l i o u - s e , o (jUiz lar-
gal-a, lia f o r m a (io c o s l u m e d o s i u d i o s ( u a i i o m e i a u o s . OjUe
se s e p a r a m da s m u i l i e r e s (j o a i i d o íiem lises n p i a z ; e p a u ­
s a n d o c s i a r a i i u i a na m o s m a l i l t e r d a d e . p e d i o s e i ’ d e s e a -
z a d o n a i g r e j a , o rpie ilie n ã o foi c o n c e d i d o . V m u l o elle
isto, fngii) para leiTa d e M o u r o s , e m a n d o u l e c a d o aus
P o r l u g u e z e s q u e n â o v o l l a r i a n i m c a m a i s para e n t r e elles,
se liio nâo d e s t i s e s s c m o c a z a m e u l o ; s o l u ’e o q u e se a s s e n ­
tou q u e m a i s valia p e r m i l t i r - l l i e is!o, e deÍKal-0 c a z a r a
so u t a l a u l e , (jiie d a r a s o a (pie r e n e g a s s e a ie; (auto assin\
q u e d e p o i s se c a z o u corn a lilha d e u m b r a m a n e , coin a
q u a i v i v e p a c i i i c a m e u l c (a).

( a ) Mfale-kan te'e dons iiliios; fufo-kdn, (îo que ;itrüz se talion;


f Mahmnrde-kan, bastardo. Este j\i(ihnincdc-kan. ou Mouwd^ <ào,
teve uni tiliio, que é o de ({iie aqui l'alla o auetor eom biisOtnle
correceào. ,
Chamoii-sc no baptismo />. J o n o d e M e n e z e . ^ , e coiHtTvou o t tulo
de Art, que tomavam as pessoas reaes do liidostào em sub'tihnrào
do oiîtro mais antiiro titulo diî Knn\ loade veni dizer-se iiidinen'nle-
nieiile. J d a l - x a , ou Î d n l - U m c^r.
Alem do (|ue deste descendente do Meaie diz Dioiio do {>>uio. î)ec.
X, Liv. IV. Cap. X!, e 0 Archico Poriuguez-OnrrdoA . î'asc'cuio
Documentos o9-XV, e 70-XLl, accre>ceularcmo> aqiii utai'^ este l)o-
cameitlo, (|ue esta no Livro competente de Rc(}ksloa ùerues na Sc-
crelaiia do Governo da India, a fl. 177 v.
P eiim o .

Dom .)oào de Ment'zes Xà que a scmi avo Miallc Xá. iegiümo î\ci
das terras firmes do Î5alagat(‘, foi dado para nom comedia as terra.'^
de Salceîe e Bardez, por falecimento do quai Sna ^îaeestade <' os
Viso-Ilei' e Governadort's de^te Estado fizeraiu tnnitas Itonra.s c
Biercès ao pai d(dle sn[t[dicaDtc. c ago'.i a elle o dUo Senoor <icu
mil pardcàos de lença para sua sustentação e <1e sua Lnuilia, dos una-
es se t!ie nâo pagam mais que ametadc. que estão uuelirados juara
as rendas Heaes, sendo-lbe a '-iia fazenda devedora de outra nie.la-
de, e or« lem por noticia que V. S.® tem passado unni provis.io
para se nâo [»aear nenhiins ordfMiados. salvo aos capitaes dos pas­
sos desta cidade: pede a V. S.* avcndo ic.-peilo a mj;\ caüdade, c
grande lamilia que tcm. e a sua nniila pobreza, e a tiào ter outifi
reniedio para a sua soslentacâo mais que a dila tciu a, Ibe Lu'a mei-
Cè mandar ao Thesourciro (lo Eslado que faca pagamciilo a elle sit-
15^2 VIA SEM DE FRANCISCO PYRARB

fíouvc lambem um íillio do liei das ilhas de Maldiva,


que veio a fazer-se ciirislão a Cocíiim, onde se baplisou,
con)o já ,disbe tratando daquclias ilhas; o (pial li-ouxe con­
sigo sua '»uillier, e aiii foram recebidos com grande hon­
ra. l)(;{)o,Í5 (|uiz csle rei olírigar a seus vassallos, que se
haviam i-ebeilado. a reconhecel-o, e para esse etíeito foi lá
uma ai inada de Porliiguezes. que levantaram um forte na-
queiias ilhas, e fizeram alli guerra por espaço de dez an-
plicanie no modo qne aliíéííora se fez sem iniiovação iienliiima,
e se,m emhmgo da (tila provisão, e de outra qualquer que aja em
coiítinrio. E K. Mercê^/><?ó‘/iaí7ío-=yeja-se esta petição na meza do
^ovrrno. tioa a 1 de Juilio de 1G22. () Goi'er7iador. — h\^o vista des­
ta petição os Vereadores e miiis oíliciaes da Camara e adjuntos dei-
la , tendo respeito á caüdade da pessoa do suppHcaute, e a não
ter outro remedio de susteiilação. Coa a 7 de .lulho de 1022. O
(iOüerniHíor=\. Cidade não tem (iii\ ida ao suppíicaiite ser salisleito
de seus ordenados visto o <|ue alteira, e o que he notorio de sua
pohreza. e V. S/' mandara o (|iie llie .parecer. Em iiieza a 9 de
Julho de G22. Cedro Lourenço Jíate Vias, Lnis d’ Ahreu, João S i­
mões, .Vlanoíd de Moraes, Àntonio de Maíralhaens, Matheus Nuiiez,
Dioíío Uodrigues, Ihuilo Martins, Simão !)ias. —Casse provisão para
o siippiicantc ser paieo de sua tença como pede, vista a âuformação
da Cidade, sem emhare:o da provisão que se passou de suspeiisã»
dos ordeurtdos, ordiiiarias, e tenças.. Goa a onze de Julho de seis­
centos e vinte e dous. O Governador.
Provisão^
Fernão d’ All)oquer(jue &c. Paço .«aber ao.s que e.ste alvará virem,
que tendo eu respeito ao que Dom João de Menezes Xá diz na siiá
petição atraz escri[ita, e ao (|iie nelia ailega, e vista a iul'ormacao
dos \ readores e mais oíliciaes da Camara desta cidade, a (pie man­
dei dar vista da dita petição: líey por bem, e por este mando a An­
tonio Sidrão, Thesoureiro de Sua Magestade, que laça pagamento
ao dito Dom João de Menezes Xá de sua teiiça como athegora se
lez sem iiiiiovação nenhuma, e som embargo da {vrovisão (jue man­
dei passar de suspeu.'ão dos ordenados, ordinárias, e tenças. Noli-
lico-o assi ao Veador ia fazeiida geral, e ao dito Thesoureiro, e a to­
das as mais pessoas a (|uc pertencer, e lhes mando (|iie assi o cum­
pram e guardem, e inteiramente façam cumftrir e guardar este al­
vará como se nelle contem, sem duvida nem embargo algum. Ma­
noel L('itao 0 fez em Goa a onze de Julho de mil seiscentos e vin­
te e dou.s. O vSecretario Alíouso Rodrigues de Guevara o fez eserts-j
.ver. O Governador.
SîîGUXlA PARTE,

nos de lal sorte que fizeram a maior parte daquelles mo­


radores tributários. Mas eiufim os Porlugiiezcs foram Ira-
hidos, e surprtdieiididos em sua fortaleza, c todos degolla-
dos. Desde então não poderam mais alli enlrar, mas o rci
mahometano das ilhas de MaldK'a fez pacto de pagar cer­
ta somma de dinheiro todos os annos àifuelle rei chi'islao,
e a seus filhos e descendentes , coin o ijiie ficaram cm
paz, porijue entre elles não haldtam chi'istaôs. Vi cm Goa
0 neto desle rei christaô, que tinlia de idade (juinze
annos. com sua mai ([ue era Portugueza. Ghama-se elle
Dom Philippe, e os Portuguezes o tratam por Mageslade
(a), e lhe chamam Rei das Ilhas de Maldiva, honrando-o,
e respeitando-o muito. Ei-Ilei de Mesjianha lhe dá uma
pensão., e assim a sua mai. A sua caza é perto do Collegio
dos .lesuitas, e ahi fui vèl-os rnuilas vezes, e aie me ro^^a-
vain a isso, porque eu linha estado nas ilhas de Maldiva,
e elles folgavam muito de ouvir contar as suas cousas. Es­
te rei menino anda em demanda com um seu lio, (|ue vi­
ve em Cochim, onde é cazado, e a causa da demanda é
que 0 tio lambem se diz rei das illias de Maldiva. Este
tio é cazado com uma dama mestiça, mui nobre, e mui ri­
ca, com 0 que se sustenta mui limpamenle, porque elle
da sna parle não tem mais que a pensão d’ El-Rei, (jue é
pequena, e ainda mui mal paga a maior parle das vezes.

CAPITULO X.

I Vias^em elo anct^i* tE iSlia d e Ceilão* e desci'âpçâo d e l l a

Jjslan d oern Goa com os Portuguezes emhanjuei-me por


$oldado em rnuitas das suas armadas, que elles aprestaram
( a ) INislo se enganou o auclor. Nem o rei das iilu s àtaui.
va, nem outro algum rei do O acute era tratado dos POp,^*.^^.2es
por Magestade. riu*uc/iLs
: •*

YTAGF.M » F FHXNí^ISr.O F Y FA R D
m
em quanto alli medetivc, diügidas alem da costa, em quA
eslá si 1liada Goa. á ilha de Gieilão, a Malnca. Siirnatiay Ja-
Ya. c a outras ilhas da Soiuia, c as dc Maluco.
Pois tem elles por cosliime armar muilos navios e ga-
leolas. que enviam a Malaca, e ale as ilhas de Maluco, pa­
ra dar guarda aos navios mercantes; e igualmente acom­
panhar (>s (]ue vão mercadejar á China e ao Japão. Poi is­
so descreverei a(|ui o que observei por todas essas parles,
nas qnaos me dilatei, c (iz a guerra.
Ceilão ó uma ilha muito grande junto da ponta do ca­
bo Comorim; oslende-se do meio-dia ao septemlnão, e a
ponta anstral hea íronleira ao cabo Comorim, enlre o qual e
a ilha não podem passar navios, porque o mar alh e bai­
xo. Avalia-se o sen circuito em trezenlas a quatrocentas
leiloas. E ’ a mais rica ilha que até ora se clescobrio, e e
^
clieia de multas cidades. Alguns índios lhe dao o nome de
'■

Tenasirim, que significa terra das delicias ou paraíso 1er-

" Não se podo pois exprimir a bondade, e fertilidade des­


ta ilha; e principiando pelos frnclos, direi que tem um
^osto c sabor tal, que se não aebarn tao excellenles em to­
da a índia; brotam nalurahncnle nos matos e bosques, e
entre elles a canella. Noineal-os todos seria impossível,
mas basta dizer que todos os qne se dão nas mais partes
da Índia, se acham alli mni comminnenie, e em perteiçao;
de sorte que os Índios tem boa razão para tomar esta
ilha pelo paraiso terreal. Ha lambem alíi certas arvoie^
do genero das palmeiras ({tie dão a areca, qne se mastiga
com 0 betei; e ha-a em tal ahnndancia, que dalli se tor-
nece toda a índia, fazendo-se delia grande Iratico para to­
da a parte em carregações inteiras de navios.
Os habitantes são gente idolatra, mas de outra sorte
( a ) Tenasirim on Tenasserim é uma extensa provincia jaz
solirc a costa oriental da í:ol[)bo de B e n g ^ . Talvez »e 4es
Ijeiü este n o m e a a l i g a a i e a u á ü b a d e C e i l ã e .
SEGUNDA PA RTE. J 23'

diversa (los do Malabar. São de grande eslatura, mui ne-


gros eieios, mas ageis e destros; é -gente mui dada a sens
prazeres e delicias, e lambem mui pusillanimes e cobardes.
Andão mis, homens e -mulheres, cobrindo só as partes
vergonhosas com ricos pannos de seda. -Tem as orelhas
furadas com muitos buracos, e carregadas de pedras pre­
ciosas; trazem grande copia de anneis nos dedos; e cin­
tos de ouro fino. xV sua lingua ..é especial; e o nome da na-
Cão é ChiiKjülá.
Estes Chingalãs siio mui proprios para artes mechani-
cas, e trabalham mui suhtil e delicadamente cm ouro, pra­
ta, feiro, e aço, e com bastante perfeição em marfim e
outiísS mateiias, -Fabricam toda a sorte de armas, como
arcabuzes, espadas, pigues, e rodellas, c|ue são as mais
i)em feitas e estimadas da índia. Estes povos sao mui bem
formados, e bons saltadores; e todos trazem os cabellos
rumo os Malabares. Nunca julguei que elles fossem tão
primoroèos em bem fabricar arcabuzes, e outras armas,
lavradas e brincadas, que são mais bellas que as que cá
se fazem.
E a região muis fértil em fructas que ha no mundo,
as quaes sao mui boas e mui excellentes; e todo o paiz ó
'/ roberto de arvores de fructo, laranjas doces e azedas, li­
mões de agosto mui suave e delicioso, romans, cocos, an-
uanazes, c outras fructas da Índia. Carnes de todas as qua­
lidades são alli abundantes; o peixe nunca falta. íía mi-
llm, mcl, cannas, assucar, e manteiga, em abundancia; mas
nao se ciia alli o arroz, que é o principal alimento, e llie
.vem de Bengalía. Mas. toda a cauella do mundo só de lá
\em, e ha delia íloreslas inteiras, fia tarnbem lá grande
numeio de elephanles, muita quantidade de pedras precio­
sas, como uibins, jacinthos, saphiras, topázios, granadas,
esmeraldas, olhos de gato, e outras, as melhores da índia,
-6 poi C i m a de tudo é la (jue ha a beila e grande pescaria
de pérolas mm finas u bellas; mas não ha diamantes.
f ;
VIAGEM DE FRANCISCO P Y R A R D '

Os Porluguezes tem duas fortalezas nesta ilha. A prin­


cipal é chamada Columbo, e a outra porto de Galle. São
fortes, e bem guardadas por soldados, que pela maior par­
le são criminosos e degradados; e da mesma sorte não
mandam alli mulheres senão de má vida. O general que
alli mandava, quando eu estava cm Goa^ chamava-se D. Je­
ronimo de Azevedo, mui bom capitão. O principal e maior
rei da'ilha chama-se (a), e ha nella muitos outros reis.
Houve um que foi preso e levado a Goa ha cousa de
vinte annos, e depois se fez christão, e se cazou, e rece­
bia uma boa pensão do Rei de Hespanha para sua sus­
tentação, como tem todas as outras pessoas, e princepes,
que se convertem. Ora este princepe tendo^ residido lon­
go tempo em Goa, bem amado de todos, houve tanta con->
iiança nelle que por mandado do Rei de Hespanha, e pa­
recer do Conselho das índias, se julgou conveniente en-
vial-o a Ceilão para-ter alli mando da mão do Rei de Hes­
panha, afim de que o povo lhe obedecesse de melhor von­
tade, por ser natural da terra; de sorte que foi mettido
de posse de todas as suas terras; mas não se passaram
dous annos que não deixasse o christianismo, e voltasse á
sua primeira lei, fazendo guerra aos Portuguezes; o que
mostra quanto toda esta gente é má e pérfida. Morava es­
te rei perto do porto de Galle; chamava-se Dom João, e
havia sido preso, e todo o seu reino conquistado pelo ca­
pitão André Furtado de Mendonça (b). Adoram um den­
te de bugio, 0 qual tendo sido tomado pêlos Portugue­
zes, quizeram resgatal-o á custa de grossos cabedaes, mas
os Portuguezes não Iho quizeram restituir, e foi queima­
do publicamente em Goa (c).
( a ) Talvez seja o Rajú, como escrevem os nossos aiictores.
( 1) ) Parece-nos que esta historia é a de D. João Modeliar, que
Diogo do Couto devia tratar na sua Década XI, que se p e rd e o .
Vejam-se no Fasciculo 3.° do Archivo Portucjuez-Oriental os D o c u ­
mentos n.° 16 2 -X Y l, 1C8-IX, 324, e outros.
( c ) Este successo do deute de bugio ou de Budda, é mui au-
S egun da parte

Este rei íendo-se levantado, e renegado a fé cliristã


mandou matar todos os Portuguezes, que se acharam em
seus estados; de sorte que depois, passando os Hollande-
zes pela ponta de Galle com tres navios, e indo alli surmr
e tazer alguma detença, como é seu costume, trataram paz
c amizade com elle em tanta confidencia de parte a parte
que os Hollandezes hiam a. terra em toda liberdade e se­
gurança e da mesma sorte os Ghingalás vinham aos na-
TIOS delles; mas neste comenos ideou: o rei uma grande
perhdia, convidando todos os capitaês, os soldados princi-
paes, e homens de qualidade a virem ao seu palacio as-
sislii a um solemne banquete, que elie dava a todos os fi­
dalgos da sua corte. O general Hollandez assim o acredi­
tou, e na boa fé foi ao iogar aprazado com sessenta ou se­
tenta dos principaes dos tres navios, que escolheo, e a
quem mandou vestir o mais louçãmenle que poude.’ F o ­
ram alli mui magnificamente recebidos ao modo da terra*
mas a sobremesa não foi agradavel aos pobres Hollandezes!
porque estando á mesa, e não^ pensando senão em recre-
ar-sc, e encher a barriga, foram subitamente accommet-
tidos, e assassinados por homens para isso subornados. A
tençlo do rei era' surprender ao mesmo tempo todos os
navios, mas não o permittio Deos assim, e foram salvos,
porque tres ou quatro marinheiros, que assistiam ao ban­
quete^ para servir os seus ofliciaes, se escaparam, e corre­
ram logo a metter-se nos bateis, indo dar rebate aos na­
vios do que era acontecido; pelo que logo sem dilação al­
guma cortaram as amarras, largando por mão as ancoras
e deram á vela em direitura ao Achem, onde Deos os le­
vou a salvamento, porque todos os seus pilotos haviam si­
no moitos. Ouvi dizer aos Hollandezes que este general
eia um dos homens mais resolutos e valerosos, que de
tenor ao do levantado Dom João, c passou cm tempo do Yicc-Rei
1). Constantino de Bragança, como é bem sabido — Veia-se Din<ro
do Couto, Dec. Y Il. Liy . IX . Gap. X Y Í l . ^
m C E I í DE FRANCISCÔ PYRARD

BUiilo tempo áqneíla parle saira de ílollanda, e o resto dos


seus companheiros não era somenos. Aquelle pérfido rei,
/juc lhe armou este laço, fazia tudo isto para se congraçar
com os Porluguezes; porque a estes ouvi dizer que aquillo
fora obra de conselho seu, e que este rei lhes havia pro-
mellido entregar aquelles navios^ á conta de lhe hear na
sua mão parte das riquezas. O general não ficou logo
morlo, nem dous ou très dos seus companheiros; mas
.quando o rei vio que parle do seu desenho linha falhado,
entrou cm tal raiva e cólera, que lhes mandou vasar os
x)lhos, e fazer-lhes outras mil cruezas.
Estes reis de Ceilão são ora amigos, ora inimigos dos
Porluguezes, mudando assim .segundo as occurrcncias.
Os Porluguezes andam em continua guerra com estes in-
.sulares, dos quaes tem já subjugado grande parte, que tem
sob seu domínio, e a pouco e pouco vão domando os ou­
tros: ha entre elles muitos convertidos ao christianismo.
A guerra é alli mui difücil aos Porluguezes, por ser o
.paiz mui coberto e cheio de arvoredo; e assim:é mister tra­
zer sempre a fouce ou o machado iia mão quando vão á
guerra; e os Porluguezes não são lão ligeiros nem tão
deslros.a marchar por estes matos, como aquelles insu­
Il '
lares, que lhes armam mil emboscadas, e depois se esca-
.pain no mais cerrado do bosque. Os Porluguezes tem sido
alli cercados mui Ias vezes em suas fortalezas, mas nunca
.entrados. A guerra entre elles é mui cruel; e quando os
.Porluguezes os captivam na guerra, fazem-nos escravos,
ou os malam. Elles porem não matam os Porluguezes ,
mas sómenle lhes cortam os narizes, e assim os mandam
embora, porque dizem que não querem que a sua terra
useja poílula do .sangue estrangeiro, ao menos lauto quanto
elles 0 poderem impedir.
Nesta ilha lia uma ponta chamada de Galle para a par-
ie do meio dia, a qual é um cabo, que entra muito ao
mar. E direi o que aconteceo a irez navios hollandezes.
ir/-
SEGUNDA PARTE. £29

que a guardavam, quando encontraram aquel-lcs dous gran­


des navios, um da Arabia, e outro do Guzerate, de que ja
fallei tratando das ilhas de Maldiva ( a ) . Estes navios de-
iiveram-se naquella altura quasi 4.res mczcs, durante o tem­
po que sopram os ventos de leste, que c aquelle em que
03 navios da índia recolhera do Sul, e de Bengala, c to­
maram dezaseis ou dezoito navios portuguezes; porque ne­
cessariamente todas as embarcações, que vem de todas as
costas e contra-costas de Bengala, Malaca, Sonda, China,
Japão, e de outras parles, hão de passar alli, o vir avis­
tar esta ponta, como nós fazemos ao Cabo de Boa Espe­
rança ([uando vamos para a índia; e da mesma sorte vem
as embarcações tocar nesta ponta para passar a toda a de­
mais costa da índia, que se entende desde o Cabo Corno-
i:im até Ormuz. E a(|uellcs que não querem chegar se a
ella, indubitavelmente se vão enlear nos baixos das ilhas
de Maldiva, donde difficullosamente poderão sair-se sem
perigo.
Estas presas todavia molestavam mais os Portuguezes
do que enriqueciam os líollandezes, porque a maior par­
te destas embarcações não traziam mais que rnantimen-
los para os portos. Verdade é que isto molestava os Por­
tuguezes por duas vias, uma pela honra e credito, qne
lhes fazia perder para com os reis e povos da índia, e a
outra pela necessidade c careslia de mantimentos, que pa­
deciam as povoações dos portos e enseadas, donde erara
as ditas embarcações; porque se isto Tbes falta um anuo.,
passa-sc ahi grande fome. Nestes navios sò havia alguns
mercadores e passageiros que fossem Portuguezes, porípio
lodo 0 resto, assim ofílciaes como marinheiros, c ainda a
maior parte dos mercadores eram índios, Gentios, Jndeos,
ou Mahomelanos. Os índios christaõs vestidos á portugue-
za não são havidos por Índios, mas por Portuguezes. Os
( a ) Cap, X X da 1.* Parle
130 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

nollandezes faziam guerra mais branda, e melhor gasa-*


lhado áquclles verdadeiros índios, que aos Portuguezes e
Mestiços; e todos os navios indios de qualquer logar que
fossem, não recebiam delles máo trato, mas antes toda a
oílerla de soccorro e assistência, como tem feito a muitos
que 0 não pediam. De sorte que os Hollandezes, Inglezes,
e Francezes, que elles aili reputam: por gente da mesma
igualha, são bem acceitos daquelles reis e povos da índia,
porque não recebem delles moléstia alguma..
Ora a ordem, que os. Hollandezes guardam quando to-
pam com algum, navio, é disparar um tiro de peça, e pa­
ra logo os outros amainam, porque não tem gana de pe­
lejar, pois são. todos mercadores particulares, ou marinhei­
ros e officiaes indianos, aos quaes os Hollandezes não fa­
zem, mal. Mas tomam aos Portuguezes,. e toda a sua fa­
zenda, e também o navio, se pertence a Portuguezes ,
ou 0 dão a índios, e lançam os Portuguezes em terra sem
lhes fazer mal, e ainda em cima lhes dão dinheiro para.
il< se manterem até chegarem a alguma terra da sua gente,
Ouando encontram navios indios, dão-lhes busca somen­
te para verem se ha alli Portuguezes escondidos, e não os
achando, deixam ir livremente os navios sem lhes fazer
outra cousa; somente lhes perguntam se são mahometa-
uos, ou de outra religião, e sendo assim, fazem-nos ju ­
rar sobre o livro da sua lei, ou sobre um biscoito, c são
cridos sobre este juramento acerca de ser a fazenda dei-
los, ou dos Portuguezes. E quando no mesmo navio são
misturados uns e outros, fazem-lhe o mesmo; pondo de
parte e deixando livre as mercadorias dos Indios, e to­
mando as dos Portuguezes, isto é, a que é propriedade del­
les; e pela maior parte das vezes poem fogo ao navio, ou
0 dão aos Indios, a quem dão juramento de não restituir
aos Portuguezes o que alli tem deixado; porque se sou­
bessem que elles lhe restituiam alguma cousa, os haveriam
por inimigos. E ’ impossivel contar os navios, que os Hoi-
SEGUNDA PA RTE. 131
landezes tem tomado na índia deste modo sem golpe de
espada; porque são havidos como reis do mar pelos ín ­
dios, e alé pelos Portuguezes, os quaes no mesmo ponto
<em q u e ‘ avistam de longe os ditos fíollandezes, ainda que
poucos sejam, não pensam em outra cousa senão em fu­
gir, ou deixar o seu navio com todo o seu recheio, para se
salvarem em algum bateL.

CAPITU LO XL.

!De.’Malaca» «na descripção» e do m em orável eorco» «lae


o» Hollandeases Ib e pozeram*

S e n d o partidos de Ceilão fomos a Malaca, que é distan­


te de Goa seiscentas legoas perto da linha equinocial, a
um gráo da banda do polo árctico, mui próxima da gran­
de ilha de Sumatra, e dos reinos de Sião e de Pegií. Os
Pbrluguezcs fabricaram alli uma. cidade/ mui forte, qu&
lhes é de grande importância, por ser como a chave, e es­
cala da navegação da China, Japão, Maluco, e outras ilhas
circumvisinhas da Sonda. De sorte que abaixo do> de Or-
muz não ha capitão que faça maior rendimento que o de
Malaca, porque está alli no estreito de Malaca e Sumatra,
onde é mister que todos os navios venham aportar, e pa­
gar òs direitos; de sorte que os mesmos navios portugue-
zes não podem passar, se não tem. passaporte e guia do
capitão de Malaca, assim para a ida como para a vinda.
Esta fortaleza faz grande pejo aos Hollandezes, Ingle-
zes, e Francezes; e por essa razão os Hollandezes tem que­
rido tornal-a, e a cercaram, desta sorte. Os Hollandezes e
0 rei de Jor se concertaram entre si para lançar os Portu-
guezes de Malaca; e para esse fim tinham, os Hollande-
Z.0S, treze grandes náos comrnandadas pelo capitão Come-
VIAGEXi DE FRANCISCO PYRARD

Jio Malalief, ( a ) sen general na India; de sortc queaos 29


de Abril de 1606 siirgio em frenle de Malaca corn não
incnos de 1500 Hollandezes, qae sairam em terra, e sitia­
ram Malaca, que ficou mui surpresa, porque o capitão ha-
Tia recebido ordem do Vice-Rei de Goa para mandar qua-
iro navios de guerra dar guarda aos mercantes, que hiam
de Goa à China e ao Japão, de sorte que lhe não haviam
fícado na fortaleza mais de trinta soldados, porque espe­
rava ver chegar a cada momento o Vice-Rei, segundo o
aviso, que de Hespanha lhe viera no galeão, que sáe de
Lisboa um mez ou dous antes da armada; e vai em direi-
íiira Malaca, e não a Goa. Este galeão é do porte de
700 a 800 tonnelladas, e vai não só para dar avisos, co­
mo para carregar de mercadorias da China, e das ilhas da
Sonda. Ficou pois o capitão da fortaleza mui confuso ;
tanto pela falta de mantimentos, como pela de homens,
e porque não tinha tido aviso algum desta empresa, nem
novas de que os Hollandezes tivessem tantos navios na ín ­
dia. A fortaleza foi por elies combatida com vinte e cin­
co pecas de artilheria grossa, que dies desembarcaram; e
eram ajudados, como disse, do rei de Jôr, e de outros ré­
gulos seus vassalos, que tinham a fortaleza cercada da ban­
da da terra com sessenta mil homens; porque é este um
rei poderoso, que domina era todo o sertão, e terras do
cima de Malaca. Este cerco durou por espaço de trez me-
7.es c dezanove dias. A fortaleza foi bem defendida por
nm fidalgo Portuguez, mui valeroso, chamado André F u r ­
tado de Mendonça, que por acaso alli se achou; porque
nada mais esperava na índia, senão o posto de Vicc-Rer,
que logo pouco depois teve ( b ) . Não contava ao lodo ma­
is do que 150 homens de peleja, entre Portuguezes e ín ­
dios; e por fortuna dos cercados, havia alli então navios
(a ) Madalif Qsci'Q\’Q Pyrard. seguimos a orthogra{)hia hoi-
londeza.
{ b ) Foi Gk»Ycriiador por via de siiccesíão, como temos vislo.
SEGUNDA PA RTE. Î33
ijfiercantes do Japão, cora cuja gente é que se perfez aquel-
le numero dos 150 homens para a defensa; e são os Ja-
pões os melhores soldados de toda a índia.
Succedt 0 tamhem muito a ponto para os cercados que
0 Vice-ilei de Goa, que então era l). Marliin Aííonso de
Castro,, sera saber todavia nada deste cerco de Malaca, li-
nlia negociado uma armada, de que elle mesmo era cabo
principal. Era esta armada composta de setenta embarca­
ções, e dividida em duas esquadras; galés, galcotas. e mais
navios de remo a uma banda; e os navios de vela a outra.
Beputa-se ser esta a mais bella armada que os Portugue-
zes era tempo alguiõ jmzeram no mar na índia,, por({uo
havia nella perto de quinze mil li.omen.s, todos mui bem;
ordenados. Sahio de Goa no mez de Maio de iG0(),. dei­
xando 0 Yice-Piei o ç^overno de Goa e do norte da índia
ao Arcebispo daquelLa cidade Dom Fi*. A lá x o de Menezes.
Um mez depois da saida do Vice-llei as duas e3([uadi’as
se füiam juntar perto de Sumatra; pois era seu desenho
e intento ir lomal-a e conquisíal-a, por([uc o rei d.esla ilha,
dava acüiheita aos líollandezes. Mas tendo sido valorosa-
mente rechaçado pelo re-i do Achem, e tendo então novas
deste cerco dc Malaca, abalou-se de Sumatra naquella der­
rota, pensando surprehender aos líollandezes em, terra,
e queimar-lhe os navios;, mas não succedeo assim,, portpio
os ditos ílollandezes foram avisados por um c]os seus fei­
tores, que eslava ein^ Sumatra, e a.pressaclamen.te parlEo
para lhes ir dar este aviso;, e nem isso. era mister, porqiin
os I foi land czes tiiihara senopre iim palaeho no mar d:o vi­
gia seis oil sele iegoa-s ao largo,, receiosos de serem colhi­
dos de súbito; e no mesmo ponto que este palacho avi­
sou a armada, foi daqui sem detença. aviso á sua ge-ntev
que logo-se recolheo ás> nãos com ioda- a artilheria;. e as­
sim levantaram o cerco aos i 9 do nicz de Agosto-,
isto deu motivo a que os {íollandczes íi.cassem cm má re­
putação e pouco credito entre aquelies reis indianos; pnr-
31^
>> w J» *'

VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD


m
fine liaviam promellido ao rei de lor e aos onlios qiie in-
fallivelmenle tomariam Malaca. e lançariam della aos i or-
tii-aezes; c na verdade foram elles a causa porque Iodos
miuellcs reis declararam guerra aos Porluguezes, sendo de
anles mui bons amigos delles. P o peior c que o capilao
Cornelio levantou o cerco, e recolheo a sua gente sem o
dar a saber ao rei do Jòi', t}ue elle deiNOU a meice dos
Porluguezes, e em guerra com elles. ^
Os líollandezes, lendo levantado o cerco, deram a vela,
paia ir sair ao encontro do Vice-Rei, e com elle comba­
teram mui fiiriosamenlc por espaço de dous dias. O Oapp
lao líollandez era liomem bravo e esforçado, e poi tal li­
do por todos os Porluguezes e índios, sendo na verdade
impossivel fazer-se melhor do que elle fez. \io-se, alein
de outros perigos, em grande aperto quando um navio poi-
luguez 0 abordou, e segurou com ganchos e arpóos de rer-
ro, de tal sorte que era impossível desenvencilliar-se delle,
c aló ja lavrava o togo nos dous navios, que teiiam aidido
com a gente, se este general Mollandez não dissesse ao capi­
tão Portuguez que não era de bom cavalleiro deixai-se
queimar assim, e que mais valia separarem-se e laj'gaiem-
se um ao outro. O Capilao Portuguez ao principio nao quiz
assenlir, porque Ibe era mandado sob pena de morte que
■à •' ■ n• se queimasse e perdesse pai'a destruir o inimigo; mas^em-
fim 0 partido que acceitou íoi que os baieis dos íioiian-
dezes viessem para salvar os seus, e os dos Porluguezes
não viessem; c assim se largai’am, e foram ambos salvos.
Mas depois o capitão Portuguez foi degolado por este res­
peito. Pereceo no combale multa gente de parle a paTte,
I mas seis Portuguezes por um ílollandez.
it'inalmente os líollandezes ücaram vlcioriosos, sem ou­
tra perda mais que a de dous navios, que se queimaiain
com oulros dous do Vicc-llei; c este se recolheo logo a
Malaca com os navios que pôde salvar, e passado um mez
moireo de dysenteria. üs Ploliaiidezes também se retira-
SEGUNDA PARTE. 135
ram com honra; e semelhanlcmente o roi de Jôr c os se­
us; e desl’ arle Malaca íicoii livre, o depois disso tem si­
do mui bem foiliíicada. Os Poiiuguezes perdei^am aüi
grande numero de esforçados c valorosos capitaes. o li-
veram baslanle perda c desiionra nesta íacçao; por(|uc
toda a sua armada foi desbaratada. Entre os mortos li-
caram dons fidalgos irmãos, grandes capitals, um chama­
do Dom Fernando, e outro Dom Pedro Mascarenlias, com
outros doits irmãos seus mais moços. Nunca entre os Por-
tuguezes houve mortes mais cai'pidas, e o sao ainda to-
do^^s os dias, mais cpie a do Vice-Pioi, (pie logo depois raor-
reo de dor e melancolia; e foi cousa admiravel (|ue treze 7^1
navios fizessem tanto eííeilo. A cidade c a mais rica e
mercante de toda a Índia, apoz as de Goa e Ormnz, pela
grande copia de mercadorias da Cdiina. Japão, M.aluco, 0
de Ioda a Sonda, que alli abicam; e com tudo é alii mui
caro 0 passadio da vida.
Os habitantes da terra são homens de boa figura, hera
apessoados, e proporcionados cm sua estatura, que é me­
diana; e da mesma sorte as mulheres. São de 'cor more­
na; e andam nús da cintura |)ara cima, e delia para bai­
xo tem roupas de algodão e de seda, das (|uaes a íjue u-
sam pela parte de baixo não passa dos joelhos, fãngem-
se de um rico cinto, e trazem punhaes em nqnissimas
bainhas. As mulheres trajam roupas de seda e Icm cami-
zas mui curtas; usam os cabellos compridos, e bem tou­
cados com pedras preciosas e muitas flores entrelaçadas.
São pela maior parte mahometanos; c todavia hoje ha al-
li grande numero de christaos. Os Padres Jesuitas tem ai-
li um mui hello Gollegio.
Os ares deste paiz são mãos, iiitemperados, e doentios;
de sorte que a propria gente da tcira c mais atreita a do­
enças do que a de outra qualquer parte da índia. Poii-
•cos são os estrangeiros que não cáem alli enfermos, c ra­
ro é O que não m orre, e ao m enos ücam-llies bons signa-
•f •

136 TIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

es, porque a uns cáe o cabello, e a oulros vem moléstias


de pellc; o que lodavia se entende dos que alii fazem lon­
ga residência. Por isso os soldados que lá ha, são quasi
todos como os de Ceilão, isto é, bannidos e degradados por
seus maleticios. Quanto aos mercadores, é o desejo de
grandes ganhos que lhes faz arriscar a vida, e quando de
lá voltam, trazem a còr livida, e nunca alli logram saude.
Os povos daquellas regiões são chamados Maknjos, assirn
lias terras de Malaca, como em Sumatra; e faliam uma lin­
gua que é entendida em todas as ilhas da Sonda; e esta
lingua é só a usada em todas aquellas partes, e por isso a
mais extensa, e a mais util de toda a índia.

CAPÍTULO XII.

Dais d a Sionda* ^simatra» c dava$ das> cidadesi dtQ


í)'
lla n la m e T u lm m ; insia» cio ISadura* B a lli» d e
SEaluco» e Banda»

s Porluguezes chamam a todas as ilhas, que estam a*


lem de Malaca, a Sonda, como quem diz as Ilhas do SuL
E debaixo deste nome são comprehendidas Sumatra, Ja­
va. as ilhas de Maluco, e todas as outras ilhas particula­
res daquella costa.
Quanto á ilha de Sumatra ( a ) , não me deterei em des­
crevei-a, por quanto não sahi alli em terra, e somente
passei á vista delia. E ’ situada debaixo da linha équino­
xial, que a corla ao meio, e é mui extensa, porque chega
ao 5.*^ gráo da banda do norte, e ao 6." da banda do suh
que é quasi a mesma altura das ilhas de Maldiva, das qua­
es fica distante seiscentas legoas. Dos habitadores, uns são
mahometanos, principalmente os que demoram á beira-mar;
( a ) Samatra escrevem os nossos autigosv. '
oulros são gentios. São mui dados ao {rafico, c por isso to­
dos os mercadores são alli bem acceitos. Os aral)ios, e ou-
iros mahometanos frequentam e traíicam alli mais que to­
dos os outros; os Porluguezes também alli vão, mas mui
poucos., porque não são amados do rei. Os líollandezes
tem alli uma feiioria, e feitores. A terra c mui rica em
pimenta, que é mais grossa que a do Malabar, c havida por
melhor por todos os Judios. Ha-a em tanta quanlid
(jue se podem ás vezes carregar trinta navios n’ um só an­
uo. Ha ouro, assim nas montanhas, como nas areias dos
rios; mas este ouro é mui baixo, e de menor estimação
que todo o outro que vem da índia. Batem delle moeda,
onde está de um lado a figura de um pagode, e do outro
a de uma carroça puxada por elephantes.
Esta ilha contem muitos -reinos, mas o mais poderoso
c 0 do Achem ( a ). Quando por alli passei o rei que en­
tão reinava era mui mancebo, e desapossando ,por força a
seu pai se havia apoderado do reino, e Jançado o pai em
prisão, e lambem .a mai, até com ferros aos pés. Um irmão
seu, que elle também havia expellido, lhe fez guerra, mas
agora eslam amigos, porque lhe foram cedidas certas ter­
ras, que íicam na distancia de quarenta Icgoas, onde ei-
le .mora.
Este rei do Achem é muito amigo dos líollandezes, que
,lem feito alli fabricar muitas cazas, e é este o loüiar or-
denado para iodos os navios de ííollanda que estam na
Índia, e onjie fazem -escala para o commercio, carga e des­
carga das mercadorias, e tem alli muitos feitores, que me-
neam grande Irafico;mas elle não quer ouvir fallar nos Por­
luguezes, ,com quem tem guerra mortal. E todavia é cou-
sa estranha que este rei nunca tenha podido andar de paz
com os Porluguezes, visto que se accommoda com todos os
outros estrangeiros, iía sim ás ^vezes alli alguns mercado-
( a ) O D a c h e m dizem commumenle os nossos documentos, c

35
.auetores amigos.
VlA G Eir CE FRANtJSCO PYRAîtD

rcs PoriijguezGs particulares, mas não recebem favor al­


gum do rei, uem tão pouco o vêm.
(Jando os ílollandezes começaram a vir á índia tiveram
guerra com este rei, e por essa causa roubaram dous na­
vios da Arabia carregados de especiaria, que baldearam
nos seus; mas depois os ílollandezes e elle íizeram-se bons
amigos, e elle até enviou seis embaixadores a ííoilanda,
íleixando os ílollandezes alli em refens alguns dos seus.
1'^sles embaixadores foram bem recebidos e honrados em
iloilanda, c voltaram ao Achem, mas não todos, porque
morreram quatro no caminlio,’'e eu vi um dos outros dous,
que na volta foi ter á ilha de Malé. Estes Arábios rouba­
dos no x\chem pelos Hollandezes vendo que o rei do A-
chem, e todos os outros reis mabometanos estavam m.ui
bem com os íiobandezes, e eram inimigos mortaes dos Por-
b *' luguezes, determinaram enviar deputados a ííoilanda para
Uatar paz e amizade com os Estados, e pedir satisfação e
justiça de sua mercadoria roubada; de sorte que foram
mui bem satisfeitos, e embolçados de sua perda, sem em­
bargo de serem passados sete annos depois que a fazen-
na lhes ha\ia sido tomada. E desde este tempo os ílollan-
dezes tem sempre estado em boa amizade com todos cs
Índios.
]\Ias na verdade o que ao principio nos fizera mal, e di­
minuira muito a reputação dos Francezes, Inglezes, e Hol-
íandezes naquellas parles, porque na Índia nos tem a to­
dos por uma só gente, por verem que todos somos ami­
gos entre nós, e inimigos dos Porluguezes; foi que se ha­
via levado á Sonda grande quantidade de moedas falsas
de quarenta soidos de Hespanha, que se fabricavam mes­
mo nos navios. Os Hollandezes aceusavam disto aos In­
glezes, e os Inglezes lançavam a culpa aos outros; mas se*
ja corno quer que for, os Hollandezes é que o pagaram bem
caro, porque na viagem seguinte foi morto grande nume­
ro deiies em muitos logares; e desde então os ín d io s não
SEGUNDA PA RTE. Í3^
?e fiaram lanlo defies, e correo rumor p,or toda a índia do
que nós todos éramos embusteiros.
Mas tornando ao rei do Achem, os Ilollandezcs e ello
Icm sempre desde a sua concordia permanecido em boa
correspondência; e este rei tem sempre empccido aos Por-
íuguezes em tudo quanto tem p o d id o , como igualmente
os reis de Jur, Baniam, e Java maior. Quem está na ín ­
dia, e nos outros logares d’ alem do Cabo de Boa Espe­
rança, quando quer ir a Sumatra, diz somente que vai ao
Achem; porque esta cidade e porto indue em si todo o
nome, e a reputação de toda a ilha; e semelliantemenle se
diz de Bantam na Java maior; de sorte que se não falia
iá senão destes dous reis.
O rei do Achem - tem muitas vezes posto cerco a Mala-
ca, e assim o de Jôr. E ’ aquelle rnui temido, como bem
mostrou quando foi accommeilido pelo Vice-Rei Dom Mar­
tini Aílonso de Castro, porque se defendeo tão bem, c fi­
cou alli tão grande numero de Portuguezes assim mortos
por armas como afogados, que o Vice-Rei não poude at
lazer senão retirar-se com vergonha e perda; e isto lhe
foi ainda de máo agouro, porque depois foi acabar em Ma-
laca, como já disse. Mas também os Holiandezes, que en­
tão estavam no Achem, serviram grandemenle ao rei, a-
inda que eram poucos; porque deram traça para se fa­
zerem tranqueiras e fortificações ao modo de HoIIanda e
de França, com muita arlilheria, de que o rei não tem fal-
Iti; e eu nunca teria acreditado que houvesse tanta ar-
tilheria na índia como na verdade ba. Desde este com­
bate, em que os Holiandezes procederam tão bom e com
tanta aíTeição, o rei começou a ter-lhes grande amizade.
A ilha de Java ( a ) está junto de Sumatra ao meio dia,
convergindo a leste, separada por um braço de mar assaz
estreito, e começa aos 7 gráos da banda do sul. E ’ uma
mui grande, rica, e opulenta iiba, que contem muitos reí-
( a ) J a o a escrevem os nossos auctores e documentos antigos.
141) Vi a g e m d e fr a n c isc o p y r a r d

nos. 0 de maior nomeada é o de Bantam, e por isso se


aporia aili mais do que em qualquer outra parte. Os ga-
ieões portuguezes da viagem de Maluco, nos q4iaes eu liia,
detiveram-se naquelle porto algum tempo, o que me deu
occasião de ver esta ;terra.
Bantam é uma grande cidade mui povoada, situada a
borda do mar no extremo de toda a ilha, e junto do es­
treito, chamado o estreito da Sonda ( o qual deu., segundo
0 meu parecer, o nome a todo este ma r ) , e separa a Ja-
va de Sumatra, da qual c distante vinte e cinco iegoas so­
mente. JJc uma e outra banda da cidade corre um rio que
a banha e rodeia, e vai sair ao mar, sendo mui largo na
sua foz, onde tem quatro braças de fundo, mas não c na­
vegável. A cidade é cercada de muros de tijollo, os quaes
não Icrn mais de dous pés de grossura. De cem em cem
■4 passos iia junto ao muro cazas mui altas, fabricadas sobre
mastros de navios, que servem á defensão da cidade, as­
sim para atalaias, como para combater de mais alto, e ma­
is em cheio os inimigos, que quizerem inveslil-a com
tiros. As cazas são formadas de ca n n a s, tem pilares de
pao, e são cobertas de palha. Os homens ricos e abonados
torram as casas por todos os lados de tapeçaria e cortina­
dos de pannos de seda, ou de algodão bem pintados. íía
cinco praças mui grandes, onde cada dia se faz mercado
de toda a sorte de mercadorias e mantimentos, que são al-
íi a baixo preço, e por isso se vive lá mui barato. Ds fruc-
los e animaes são em tudo semelhantes aos da índia, de
que já tantas vezes tenho fallado, e são aqui também mui­
to em conta. A cidade é situada n’ um logar baixo e alaga­
diço, por estar entre duas correntes de agua; de sorte que
a maior parte do inverno o rio se espraia pela cidade, e
não se pode andar pela ruas senão de batel: as ruas não
são calçadas; e por toda a parte da cidade lia muitos co­
queiros. bóra do recinto dos muros ha grande numero
de cazas para os estrangeiros.
SKGUNDA PA R TE. U I

Quanto a sua religião, são pela maior parle mabome-


lanos; mas também ha grande numero de gentios e ido­
latras. Ha na cidade um a grande m esquita, onde se prati­
ca a lei de M afam ede: os grandes e fidalgos tem cada um
lem plos em suas cazas: os doutores lhe vem da Arabia.
A gente da terra é de cor am arellada; vestem -se de rou­
pas de algodão ou de seda, que cingem ao redor do cor­
po desde a cintura até abaixo, tem um pequeno turbante,
que dá duas voltas. A s suas armas são adagas ou punha*
es, a que elles chamam cris, com a lam ina ondulada, e
são mui perigosos; o cabo é em figura de dem onio, ou ou­
tra que tal mui feia; a bainha é feita de páo, e inteiriça.
Estas adagas são ricam ente guarnecidas de ouro e pedras
preciosas; e todos, assim grandes como pequenos, as tra­
zem á cinta, porque lhes seria deshonra não as trazer.
Quando vão á guerra tem espadas e rodellas, e quan tida­
de de flexas que lançara á mão. São mui obstinados, e
mui soberbos, mesmo no seu modo de andar; e grandes
m entirosos e ladrões.
Os hom ens são muito m andriões: os escravos fazem a ma­
ior parte das cou sas; os fidalgos e burguezes ricos tem
hortas, e cazas no cam po, onde os escravos lavram c cul­
tivam a terra, trazendo os fructos e rendim entos a seus
senhores, que ordinariam ente não tem outra occupação
senão estar assentados entre as m ulheres, de que cada um
tem muitas, a mastigar continuadam enle betei; e da m es­
ma sorte suas m ulheres fazem outro tanto. A s escravas
tangem muitos instrum entos ante elles, cantam , e batem
em bacias m elodiosam ente, e as m ulheres a este som dan ­
çam umas apoz outras em presença do m arido; fazendo
cada um a o m elhor que pode, e em penhando-se em lhe
agradar, porque aquella que então mais lhe agrada, pas­
sa a noute seguinte com elle. Consom em a maior parte
do tempo a lavar-se, banhar-se, e estar dentro de a g u a ,
0 que torna o rio insalubre, e a sua agua má para beber,
36
d '

142 VIAGEM DE FRANCISCO PTRARO

por causa de tanta gente que a]li se lava, e se delônl.


Quanto ao mais as mulheres nobres são assiduamente guar­
dadas por eunucos e castrados, que são em grande n u ­
mero, e os compram para este effeito-. Os leitos são sus­
pensos, e os embalam como a gente das ilhas do Maldiva.
Esta cidade é frequentada de muito povo, porque se faz:
alli grande trato e commerck) por toda a sorte de estran­
geiros, assim clirislaõs, como indios, taes como Arábios,
Guzerates, Malabares, gente de Bengala, e de Malaca, que
vem alli procurar principalmente a pimenta, que se dá a-
bundantcmente nesta ilha, e não vale alli ordinariamen’-
te mais que a um soldo cada libra. V i muitos Ghinezes,
que estavam alli de assento, fazendo grosso trato;, e todos
Gs annos nO' mez de Janeiro chegam alli nove o a dez
grandes navios da China, carregados de fazendas de seda,
roupas de algodão, ouro, porcelana, almiscar, e muitas ou­
I' '•
tras qualidades de mercadorias da sua terra. Estes Ghine­
zes tem mandado alli fabricar bellas casas para se agasa­
lharem até terem feito o seu n egocio , e estarem ricos; e
para o conseguir não ha mester,, por mais baixo-e vil! que
seja, que elles não exercitem, e no que toca ao modo por
que procedem nesta matéria da mercancia,. são semelhan­
tes aos Judeos; e depois quando tem feito o seu negocio
voltam para a China.. A ’ sua chegada a Bantam compram
escravas, e quando se vão embora tornam a vendel-as, le­
vando comsigo por escravos os filhos que dellas- tem tido.
Observam lambem o costume de não enterrar alli,. nem em
outra qualquer terra estrangeira, nenhum dos seus defunc-
los, mas salgados e embalsaraados os levam comsigo. Gs
líollandezes tem ao presente nesta cidade muitas c a za s ,.
que abi tem mandado fabricar, e lambem uma feitoria e
feitores para raeneio de seu trafico; porque o rei lhes c in­
clinado, e 0 povo os ama.
O rei tem a sua residência na cidade; é mui humano^e
coriez; tem muitas mulheres, que são guardadas com graa-.
Segunda pa rte. 14 3
áe rigor, porque a ninguém é permettido vêl-as, nem en­
trar onde ellas estara; e ainda que fosse seu proprio filho,
não poderia ver as suas* m niheres, nem entrar onde ellas
eslam, sob pena de morte. Quando alguém morre, todos
os seus bens são d’ EI-R ek a mulher e os filhos ficam es­
cravos, salvo se ferem cagados-, e tiverem^ caza apartada da
de seu pai; ou que E l-R ei por meio de algum^ presente ,
ou por honrar a memória do pai, lhes deixe a liberdade,
e lenha feito expedir ao com petentes provisões.
Ha outro grande reino na ilha de Java^ cuja cidade prin­
cipal se cham a Tubam, situada á heira-mar,. toda cercada e
fechada de muralhas.. E ’ uma cidade m ui bella, e m uito
coramerciante; e onde a pim enta é mui cara. Entende^-se
que 0 rei de Tabam é lão poderoso, que se quiz^r if á
guerra, em vinte e quatro hora-s pode juntar trinta m il ho­
m ens, assimi de pó como de eavallov A n d a sem pre acom ­
p a n h o u de grande numero dos seus* grandes, e tem uma
corte muL luzida. Ha alli muitos elephantes e cavallos.
F o m o s dalli á ilha Madura, que fica ao norte da Ja­
va, pequena, mas fértil em arroz, de que baslece algum as
ilhas visinhas.. Iía> nella uma pequena cidade m ui liuda,
e bem murada, cham ada Aroshay. Obedece a um rei par­
ticular. Os habitadores andam vestidos e arm ados á java-
neza. São resolutos, bons soldados, mas grandes ladrões,
assim em terra como no mar.
De Madurá levámos anchoras, e passámos avante para
ir a M aluco. Surgim os ainda na ilha de Balli, onde nos-
detivemos algum tem po, e dalli rematámos nossa viagem
a M aluco. A ilh a de Balli ó situada mui perto da Java pa­
ra a banda do oriente. E ’ fértil em arroz, abundante em
galinhas, e em porcos, m ui bons e delicados, e em grande
numero. Há também lá outras especies de gado, mas rnui-
secco e magroi De cavallos ha igualm cnte ahundancia. A -
lem dos mantimentos não produz a terra outra m ercado­
ria. Qs. habitadores são gentios e idolatras, mas sem algu-
r '

144 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

m a regra e cerim ônia ce rta ; porque uns adoram um a


vacca, outros o sol, outros uma pedra; e assim cada um a- 4
dora 0 que quer. A s m ulheres queim am -se quando seus
m aridos morrem. Os seus vestidos sâo como os da gente
de Bantam; suas armas são também punhaes; trazem na
m ão um pique, e uma sarabatana ou buzina de duas bra­
ças de com prido, e vem providos de uma aljava cheia de it
pequenas flexas, para serem assopradas pelas sarabatanas,
0 que é mui perigoso para os que andam nús. São m ui
inim igos dos Portuguezes e dos M ouros. E sta ilha obede­
ce a um rei particular, que ostenta m aior m agniG cencia
que 0 de Baniam . A s suas guardas trazem piques cora p on ­
ta de ouro, e elle m archa n ura carro puxado por dous
búfalos brancos.
Quanto ás ilhas de M aluco, são ellas m uitas, e ferteís em
especaria. E is aqui os nom es das que são som ente com -
prehendidas debaixo daquelle titulo: Ternate, Amhoino ,
Maquiem, Bacham, Miáo, Morigoram, Gilolo, Catei, e Tido-
re, e são todas com o form ando uma mesma provineiá, m ui
próxim as umas das outras ( a ). São eslereis de m antim en­
tos, que alli são raros e caros, porque lhe vão de fora, po­
is não se produz nellas especie algum a de grão com estível.
Fazem farinha do páo de uma arvore, a que cham am sa-
gú, da qual farinha todos aquelles povos fazem bollos e
ápas, que são mui bons e delicados, sendo frescos. H a al­
guns coqueiros e bananeiras, muitas larangeiras e lim o-
( a ) P y r a r d é a q u i b a sta n te c o n f u s o « = Â.6 ilhas d e M a l u c o , p r o ­
p r i a m e n t e fa lla n d o ( d iz o a u c l o r d a líistoire de la eonquéte des is-
ies Moluques par les Hollandois, q u e s e r v e d e a d d i t a m e n t o á tra-
d u c ç ã o fr a n c e z a d a h istoria h e s p a n h o l a d a c o n q u i s t a d a s m e s m a s
ilh a s, e sc r ip ta por U a r t h o l o m e u L e o n a r d o d ’ A.rgensola ) « A s i-
« lh a s d e M a l u c o , p r o p r i a m e n t e fa lla n d o , n ã o são m a i s d e c i n c o ,
« a sab er, Ternate, Tidore, Maquiem, Motir, e Bacham. A f o r a es-
« las c i n c o , q n e p r o d u z e m o c r a v o , h a -o t a m b é m nas d e Medo,
« Marigoram, Cinomo, Cabel, e Amhoino, q u e tod as, c o m Celehe%,
« Gilolo, e ou tr a s m u i ta s são c o m p r e h e n d i d a s d e b a i x o d o n o m e
* d e M a l u c o , q u a n d o se lh e d á u m a s i g n i fi c a ç ã o a m p l a == »
SEGUNDA PARTE. {|5

uiros, e amendoeiras mui grandes, e das amêndoas fazem


bollos muito bons com assucar, que vendem nos bazares.
Mas principalmente ha alli admiravel quantidade de
cravo, que se nào produz em outra alguma parte do mun­
do, senão nestas ilhas, que eslam cobertas destas arvores;
e por essa razão são frequentadas de toda a sorte de mer­
cadores estrangeiros, que acodem de toda a parte do mun­
do para haver aquella especiaria; assim christaos, como
Lhinezes, índios, ,e Arábios. Ha também alli papagaios de
diversas plumagens, e mui bonitos. Os naturaes são se­
melhantes nos costumes, modo de viver, armas, e trajos,
aos de Java e Sumatra, porque todas as gentes destas re­ m
giões de Malaca avante, que os Portuguezes chamam a Son­
da, não differem e.m nada no rosto, cor, vestido, lingua, e
costumes, como quem é o mesmo povo. A religião é a
mahometana. São gente mui singella, mas todavia resolu­
tos,^ e mui valentes.
lepiate é a ilha principal, e tem bem trinta legoas de
circuito: nella se dá mais cravo que nas outras; e é gover­
nada por um rei particular. Anligamente o rei de Terna-
te era senhor de todas estas ilhas, mas agora cada uma
délias tem seu rei apartado. Os Holiandezes ha poucos an-
nos ganharam Amboino e Tidore aos Portuguezes, e quan­
to a lernate, o rei delia tendo expellido os Portuguezes
da sua fortaleza, os Hespanhoes das ilhas Philippinas ou
de Mamlha, lha retomaram, e depois se concertaram
entre sí. De sorte que hoje os Portuguezes não tem um
gião de cravo á sua disposição, o que os molesta muito,
e and^m sobre isso em pleito no conselho d’ El-Rei dJ
ilespanha contra os Hespanhoes. Eu somente estive e mc
dilatei em Ternate; em quanto ás outras ilhas, apenas
passei á vista da maior parte.
Na mesma região ha outra ilha, onde eu também esti-
uu’ celebre por certa qualidade de especiaria; e é a
ilha de Banda, distante vinte e quatro legóas de Amboino*
37
TÍAGEM DE FRANCISCO PYRARD

mui ferlil em noz muscada, e maça; e daqui se bastece


lodo 0 mundo desla especiaria, porque se não cria em ou­
ïra parle, salvo algumas arvores que são plantadas por cu­
riosidade, como vi em Goa e outros logares. Por isso a-
bicam alli muitos mercadores estrangeiros de toda a parte. íl'ír.
Tem i’ei particuhr; os naturaes são mahometanos, ousados
e guerreiros; e dos mesmos trajos e costumes que os das
ouTras ilhas e terras circumvisinhas.
Seria impossivel dizer por meudo quantas ilhas ha nes­
te mar da Sonda, ou do Sul, ( como lhe chamam os Por-
tuguezes ) attento o grande numero délias, entre grandes
e pequenas; o que torna a navegação mui diííicil pelos
bancos, arrecifes, canaes, e estreitos que alli se acham; por
onde é mister ter bons e experimentados pilotos, e ainda
das mesmas ilhas, se ó possivel; e com tudo isso não se
deixa de muitas vezes encalhar, e dar á costa. Accresce
que ninguém ousa navegar naquebes mares senão de dia;
porque em chegando a noute, é mister surgir em alguma
parte, aliás ha risco de naufragar durante a noute; e ain­
da mesmo de dia não se pode navegar sem se ir sempre
de sonda na mão.
CAPITU LO XIII. s

í>as cotasas e in g a la re s» «lue se c x lr a la e m d a s i ll i a s d e


I
f^tsmatra« d a v a , B orn éo , e «Ias p S iilip p iiia s e 83a-
n illia , B a Claina, e do d a p á o , e do tr a fico , q u e
d e s ta s p a r te s se f a * c m Goa.

2 1 resprincipaes e maiores destas ilhas são Sumatra,


Java grande, e Borneo, que sao as maiores de todo este
oceano abaixo da ilha de Sao Lourenço. Todos os povos
destas ilhas se parecem no genio, modo de viver, feições
do corpo, e linguagem, com os da terra firme de Malaca,
0 que me faz conjecturar .que ellas foram povoadas pelos
SEGUNDA PARTE. 147

Malaiôs. As demais ilhas são inniimeraveis, mui chegadas


umas ás ouïras, habitadas em toda a sua extensão, com
mui pequenas diííerenças; quasi que cada uma tem seu
rei especial, e algumas mais de um. São ferieis cm fruc-
los e mercadorias particulares, como especiarias e outras
drogas, que se não encontram em outras partes; e tirada
Sumatra e Java, que dão tudo, as outras não são abundan­
tes senão de uma só cousa particular, sendo em tudo
0 mais cslereis; de sorte que ó mister que aquella mer­
cadoria, em que abundam, lhe abone para todo o resto;
0 que é motivo para todas as cousas alii serem caras,
menos a sua propria mercadoria, que é barata; e ainda
daqui procede que estes povos são constrangidos a com-
municar e frequentar uns com os outros, para se prove­
rem do que lhes falta.
Em Sumatra e Java produzem-se muitas cousas mui
ricas e boas; mas a principal fazenda ó a pimenta, que al-
li é mais grossa e melhor que a da costa do M alabar, e
a razão, segundo eu creio, é por jazerem estas ilhas ma­
is ao oriente, e mais perto da linha, o que faz alli a ter­
ra mais húmida e orvalhada que a terra firme. Banda dá
a massa, e a noz muscada. Maluco o cravo. Bornéo a
camphora, e o benjoim. E assim as mais, que todas dão
alguma cousa singular. Fallo délias só em geral, porque
todas são habitadas da mesmo povo, e estam quasi no
mesmo parallello e clima, com a mesma temperatura ou
intemperatura. O ar allí é insalubre; as cousas necessárias
para viver mui caras, e até pela maior parte das vezes se
não acham mantimentos por dinheiro, porque como vem
por mar, acontece faltarem. A gente é traidora, pérfida,
e colérica, de sorte que por um nada não poem difficul-
dade de matar um homem com seus crizes ou punhaes,
que sempre trazem comsigo. Não se mercadeja com elles
senão com temor e risco. Os Hollandezes, Porluguezes,
e outros estrangeiros são obrigados a fiar-se delles para
rr-

148 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

0 trafico, sem embargo de haverem muitos sido alii espa­


tifados; mas 0 desejo do ganho faz esquecer ludo.
Os Portuguezes de Malaca tem commissaries e feitores
cm todas estas ilhas para o trafico; e os naturaes délias
não deixam de ir com seus navios carregados a Malaca,
que é 0 armazém e deposito de todas estas mercadorias,
cujo commercio é ahí maravilhosamenlc grande, ou por
coinmutação de dinheiro, ou de outras cousas. Acode a
estas ilhas a fazer veniaga com um infinito numero de
navios gente de toda a parte desde o Gabo de Boa Espe­
rança até á China, e alli se encontram mercadores da
Abissinia, Arabia, Persia, Guzerate, Gambaya, Goa, Ma­
labar, Bengala, China, Japão, e de todo o resto da índia.
E no tempo presente também alii vão os Inglezes e Hol-
landezes ao mesmo trato dos excellentes fructos, drogas,
e flores aromaticas e odoriferas, que a terra produz. E
quando naquellas partes as flores estam nas arvores ein
sua força e vigor, é cousa maravilhosa o suave cheiro que
cxlialam, e de que o ar fica tão cheio, que o vento o le­
va a seis e sete legoas ao longe. Mas entre os outros o
cravo é o mais precioso fructo, e por isso custa mui caro,
pois que sobre elle se chega a perder a vida, ou se pade­
cem muitos trabalhos para o alcançar.
O que nestas ilhas se importa é algodão, pannos do
raesmo, toda a sorte de roupas e pannos de seda, seda em
lama, arroz, peixe, manteiga, oleos, munições de guerra,
armas, dinheiro, e outras cousas. Os Hollandezes e to­
das as outras naçoes quando querem ir a estas ilhas, vão
primeiramente á costa do Guzerate, S, Thomé, Massuli-
patão, e Bengala a comprar roupas de algodão, sobre as
quaes tiram dobrado proveito, porque ganham primeira­
mente na fazenda que levam a essas partes, e depois ain­
da na que délias extrahem para as ditas ilhas. Mas se es­
tes insulares são finos e máos, os Ghinezes o são ainda
mais, porque o dinheiro que de toda a parte é levado a
SEGUNDA PARTE. 149
estas ilhas, os Ghinezes Iho apanbani. e o levam á Gbioa
a troco de má fazenda, bagatelias, e pedras falsas. Os Hes-
panhoes e Portuguezes dizem outro tanto dos Flamengos
e Francezes, que lhes não levam senão bugiarias e quin-
quelharias, e não extrabem de ííespanba senão dinbeiro,
como seraelhanlemente fazem em França.
No que toca ás ilhas Philippinas, que são seguidas a
estas, não tendo eu estado nellas, direi somente de passa­
gem 0 que deüas pude saber dos Portuguezes, que lhes
cbamam Manilhas, os Gaslelbanos Philippine, e os índios
Luçon, por causa da ilba principal, chamada Luçonia. São
ainda outras muitas, cada uma das quaes tem seu nome
particular. Os Castelhanos as descobriram c conquistaram,
e lhes deram o nóme do seu rei ( a ) , c da sua parte os
Portuguezes o de Manilhas, por causa de a cidade capi­
tal, em que se faz o principal trafico, ser assim chama­
da. Jaz a quatorze gráos para a banda do norte. Os habi-
ladores vieram da China, como também dalli vieram os
do Japão. Os Hespanhoes as possuem, e lem aiii um V i­
ce-Rei, e um Bispo, que ambos fazem sua residência na
cidade de Manilha, onde a christandade está muito aug-
mentada. Os Hespanhoes do Mexico, Nova Hespanha, e
Peru vem alii pelo mar do sul. Estas ilhas são assaz fer­
ieis em manlunentos e fructos, mas não abundantes em
riquezas e mercadorias. Ha alli muita algalia, e daquellas
tartarugas, cuja concha é tão procurada na índia, e não
se acha em toda ella senão alii, e nas ilhas de Maldiva,
e faz-se delia grande trafico em Gambaya e Guierale. De
sorte que os Hespanhoes não conservam em seu poder es­
tas ilhas por razão da sua riqueza, mas somente para fo­
mentar 0 trato e commercio com os^Gbinezes, porque não
sendo permittido aos estrangeiros ir á terra firme da Chi*
( a j E ’ sabido que as ilhas Philippinas foram descobertas pelo
celebre
lebre Poriuguez Fernão de Magalliaès capitaneando uma armada
dek Castella,.
A o 4 rw 1 1

38
■f
, •r

150 VÍAGKM l)K FRANXISCO PYRAR»

na, é necessário haver algiim outro logar, que sirva de a-


colheita, e escala cás mercadorias que os Chinezes trazem.
E para o mesmo effeito tom os Portuguezes a ilha de Ma­
cao ( a ).
Alli pois tem os Hespanhoes um Contractador para a
correspondência das mercadorias da China, e das índias
Orienlaes, o que faz estas ilhas maravilhosamente ricas;
mas por outra parte isto damna muito o commercio de
Hespanha nas índias Occidentaes, porque as roupas e pan-
nos de seda de Hespanha não se exlrahem alli tanto como
era costume antes de aberto este commercio. Por isso
El-Rei de Hespanha o quiz defender, e não permittir ma­
is que certos navios, como faz em Goa; mas os Chinezes
protestaram que se isso fosse avante, elles não queriam
mais commercio algum com os Hespanhoes, quer no ori­
ente, quer no occidente, de sorte que El-Rei foi constran­
gido a deixar continuar o trafico como estava em costu­
me ( b ). Extrahe-se grande quantidade de dinheiro das
Índias occidentaes para a China. Os Hespanhoes das Ma-
nilhas não deixam de mercadejar no mar do sul com os
Portuguezes e índios, mas não passam alem do cabo e
porto de Malaca, aonde creio que todos os annôs abicam
mais de trinta ou quarenta navios da China e ilhas Ma-
nilhas. Os Portuguezes e Hespanhoes se concertam soífn-
velmente em seu trafico neste mar. Os Hespanhoes por si
sós possuem aquella boa e excellenle ilha das de Maluco,
chamada Ternate.
Ora sendo a cidade de Goa o logar onde se hz a carga
( a ) Macáo não é ilha.
( b ) No Fasciculo ií," do Archivo Portuguez Oriental podem ver­
se iniiumeraveis vezes repetidas as ordens dos Heis Philippe 2.*
e 3.'’ defendendo o commercio das Philippinas e índias occideu-
taes ( da Coroa de Gastella ) com as índias Orienlaes ( da Coroa
de P ortugal), sem embargo de lhes pertencerem umas e outras.
Porem a mesma repetição destas ordens mostra o pouco effeito
ciellas, (Î que prevalecia ’ o facto índicad© pelo auclor.
SEGUNDA PARTE. 151
e descarga das mercadorias de todas as partes da índia,
e dc Portugal, segundo os regimentos d’ El-Rei, o Vice-
Rei envia dalli todos os annos dous ou tres navios á Chi­
na e Japão, dos quaes uns vão somente á China, e outros
a uma e outra parte. Por China entenda-se somente Ma­
cao, que é uma ilha e cidade, onde estam os Portuguezes
com porção de Chinas; e é alii a escala, e desembarcadou­
ro de todas as mercadorias que vem assim da China, co­
mo das outras partes do mundo. Este trato das índias não
é permittido a todos os Portuguezes em todas as partes;
por quanto o da China, Japão, Malaca, Moçambique, e
Ormuz só é concedido aos navios d’ El-Rei, salvo ás vezes
que por galardoar algum fidalgo, capitão, ou outro oíli-
cial lhe concede fazer uma viagem mercantil, com um ou
dous navios ao mais; mas esta mercê só se faz por algum
serviço assignalado, ou a algum fidalgo. Nestes navios vão
muitos mercadores particulares para fazer sua veniaga, e
estes pagam as despezas dos navios, e o frete de suas mer­
cadorias ao dono da viagem, e ainda os principaes direi­
tos a El-Rei, o qual dá sem pro estas viagens forras de tu­
do, menos de alguns direitos particulares que é mister pa­
gar aos rendeiros das alfandegas, e pelos cartazes; mas são
isentas de muitas alcavalas, qne fóra destes casos se pa­
gam de todas as mercadorias.
E a principal mercadoria que se leva de Goa a Macáo
é dinheiro, porque na China o dinheiro c mui procurado,
e a maior parte do dinheiro que vai da Europa, e por via
de Ormuz ás índias orientaes, escôa-se todo para a Chi­
na; e semelhantemente o que vem das parles do Japão e ín­
dias occidentaes pelo mar do sul, e ilhas Philippinas, ou
de Manilha, onde é também escala das mercadorias, que
vem das índias occidentaes e da China pelo dito mar do
sul, como do Peru, Nova Hespanha, Mexico, Chili, e ou­
tros logares destas partes; de sorte que se orça que to­
dos os annos entram na China mais de seis ou sete mi-
15 â VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

ihoês de ouro em moeda, e não deixam sair de lá um


tostão^ mas derretera toda esta moeda em barras, e todo
0 seu thesouro é em prata, é não em ouro, que é alli mui
frequente e commum. O melhor dinheiro na Índia é o que
vem da Persia por via de Ormuz, e é uma moeda compri­
da, a que chamam Larins, e de que os ourives da índia
fazem grande apreço, e tiram grande lucro, por quanto é
prata mui pura, limpa, branda, duclil, e boa de obrar. A-
baixo delia a melhor é a do Japão, que é igualmenle duc­
lil; a que vem das índias oceidentaes é a mais inferior,
e é dura, aspera, e menos apurada que a outra.
Quando os navios partem de Goa, vão carregados, alem
do dinheiro, de diversas fazendas da Europa, como vinhos,
pannos de lã, e entre outros escarlata, toda a sorte de o-
bras de vidro e cristal, relogios que os Ghinezes prezam
muito, grande qualidade de pannos de algodão , pedras
preciosas lapidadas e postas ein obra, como anneis, cade­
ias, collares, sinetes, brincos das orelhas , e braceletes;
porque esta gente da China gosta muito de pérolas, pe­
dras preciosas, e joías de todas as qualidades para suas
mulheres. Saem de Goa por Outubro, e vão a Gochim a
tomar as pedras, e especiarias, como pimenta e canella, e
deixam alli em troco as fazendas da Europa, ou da índia
da banda do norte. Dalli fazem-se na volta de Malaca, por
que não podem seguir viagem sem passar a Malaca para
tomar passaporte do capitão da fortaleza, e receber as fa­
zendas das ilhas da Sonda por comraulação dos pannos
de algodão, e de outras cousas da índia e da Europa.
Os que vão de Goa a Japão podem fazer conta de gas­
tar na viagem tres annos inteiros, e não pode ser menos,
por razão dos ventos, que elle chamam monções, e rei­
nam por seis mezes e mais, com'o em outra parte disse.
Mas não recebem nisso dam no, porque ás vezes dobram
nesta viagem o seu dinheiro e fazendas, e outras vezes o
triplicam, ou ainda mais. De Malaca vão a Macáo, e dal-
SEGUNDA PA RTE. 153
li ao Japão; e em Iodos estes logares llies é mister espe­
rar as monções, e no entretanto vão fazendo as suas ve-
niagas, em quanto esperam pelo vento. Largam alli a ma­
ior parte da sua fazenda, e todo o din heiro, e carregam
novamente os navios de outras fazendas da Gliina, como
sedas, e alvaiade ( a ), que é mui procurado e caro no Ja­
pão, onde todas as mulheres branqueam com elle todo o
corpo até ás pernas. Esta tinta vem da ilha de Bornéo ,
donde é levada á China, onde a refinam e temperam, e fa­
zem delia grande trafico e extracção para todo o mundo,
mas mais para o Japão do que para outra alguma parte.
Levam pois ao Japão todas estas fazendas da China, e as
que lhes restam das da Europa e índia, que vendem mui­
to bem, e das quaes não trazem outro retorno senão di­
nheiro, que acham alli em boa conta; e voltam a Macáo
a commular este dinheiro por outras fazendas. Fazem
longa detença em todos estes logares, depois tornam a
Malaca, onde é mister que ahiquem, e alli fazem nova com-
mutação de fazendas com as de Malaca, e ilhas da Sonda.
Dalli finalmente recolhem a Goa, ou a outra parte don­
de é o dono do navio.
E ’ impossivel dizer .as grandes riquezas, cousas raras,
e bonitas, que estes navios trazem ; entre outras ha ouro
em barras, a que os Portuguezes chamam pão de ouro, e
lambem vem em folhas, e em pó; grande quantidade de
trastes de madeira dourada, a saber, toda a sorte de uten-
silios e moveis lacreados, acharoados, e dourados com
mil bellos feitios; toda a sorte de pannos do seda, muita
outra seda não obrada, grande quantidade do almiscar e
algalia, grande porção do metal, a que chamam calaim,
do qual se faz grande estimação em toda a índia, e até na
Persia, e outras partes. E ’ este metal duro como prata ,
e branco como estanho, embranquece mais com o uso; e

( a ) Pyrard diz que em França sq chama Blanc d' Espagne.


31)
VIAGEM DE Fr.ANCISCO PYRAÍlD

brde-se moeda delle em Goa, c nas outras terras dos Por-


tuguezes, e cm outras partes da ín d ia , posto que raras
vezes, ponjue toda a sua moeda é de ouro ou prata, e até
a cortam em pequeninos para comprar as m-crcadorias.
Fazem também deste metal todos os seus utensílios e a-
dornos, como cá se faz de prata e de estanho, incluindo
anneis e braceletes para mulheres e crianças. Trazem ou-
trosim daquellas partos muita louça de porcellana, de que
usam cm toda a índia assim os Portuguezes como os í n ­
dios. Trazem ainda grande copia de bocetas, taboleiros ^
e açafates feitos de certa qualidade de pequenos juncos ,
cobertos de charão e verniz de Iodas as cores,, dourados,
e brincados. Mas entre outras cousas ^rande numero de
pequenos armarios de todos os feitios, feitos ao modo dos
de Alemanha, e sfio a cousa mais linda e mais bem aca­
bada que ver-se pode, porque são todos de madeira ex-
quisita,. mosqueada, e marchetada de martim, madre-perola,
e pedras preciosas. Em vez de ferro, poem-lhe ouro. A
isto chamam os Portuguezes escritórios da China. Traz-se
também de lá grande quantidade de assacar, o mais du­ ■J
ro, alvo, e fino que jamais vi; muita cera, e m e l;'p a p e l ■
\{
0 mais branco, fino, e delicado do mundo; ioda a sorte de
loelaes, e entre outros muito azougue , que lhes rende
muito, pelo levarem a todas as parles do mundo, onde ha
minas de prata, porque este azougue purifica e refina a
prata..
Eis 0 que ha do trato de Goa com a China, Japão, Ma-
laca, e outras parles. Agora quanto ao que se faz a re­
talho na illia de G o a , cumpre notar primeiramente que
todo 0 trafico ordinário a retalho é alli feito por Banianes,
(ianarins, e outros estrangeiros, assim gentios como ma-
hometanos, e raras vezes pelos Portuguezes, Mestiços, ou
iudios christaõs. No que toca ao commercio em grosso,
t‘íse faz-se por toda a gente rica, assim Portuguezes, com-o
chastaOs da terra, e outros. Tudo alli se vende, quer se-
SEGUXDA PARTE. Ï 50 0
Ja por jonto quer peîo meudo, por meio de corretores
jurados, que são gentios, moradores de G o a , ou suas vi-
sinhanças. Os cereaes, sementes, e outros mantimentos,
que vem de fora, descarregam-se na alfandega , e alii so
vendem e distribuem a quem quer, assim para seu provi­
mento, como para vender a retalho na cidade, e na ilha,
L no mesmo ponto que as ditas mercadorias são descar­
regadas nesta alfandega, os juizes da policia vem pôr o
preço nelias segundo sua vaíia, como fazem a tudo que 6
comeslivel e mantimento, tanto em grosso como a retalho.
E se estes^ generös nao sao bons e de lei, ou sejam cozi­
dos ou crûs, sao confiscados, c dados aos presos, e outros-
chnstaõs pobres da cidade , e alem disso os vendedores
sao condemnados em multa. Porque é de saber que todos
os dias os juizes e oíficiaes da policia não fazem outra
coüsa senão dar varejo ä todos os mantimentos; o nin^aem
ousaria vender cousa alguma sem que a policia lhe Tenha
piirneiiamente posto a laixa. Igualmente ninguém ousaria
vender por grosso ou por meudo, seja mantimento ou ou­
tra cousa, sem pagar o competente tributo a El-Rei; de
sorte que em toda a especie de mester, ofíicio, ou quali­
dade de mercadoria,^ por menor que seja, o poder de o
exercer, ou vender é dado de arrendamento a quem mais
onerece em hasta publica. Chamam aos que fazem esto
contracto Rendeiros; e é necessário para exercer o ofticio
ou vender a mercadoria, ter licença por escripto destes
rendeiros, que custam segundo o valor do trafico ou ines-
ter. Estes rendeiras são todos Rramanes, Banianes " e
tanarins. ’
E cousa maravilhosa a grande quantidade de gente a
vender c a comprar, que se vê em toda a semana, excepto
nos dias santos, em Goa, assim na ilha como na cidade,
por razão do grande trafico e commercio que ahi se faz ’
de sorte que parece que ha sempre feira continuada, o i
que cá são separadamente çspecieiros, mercadores de velas.
156 TIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

boticários, e drogistas, lá estam confundidos n uma so oc-


cupação, e sâo sempre Bram anes, e não outros, e tem a
venda toda a sorte de drogas, assim para medicamentos
como para alimentos; porque excepto vinho, carne, peixe,
fructas, ervas, e viandas cozidas, vendem todas as mais
cousas próprias e necessárias á vida humana, quer sejam
cousas que respeitam á mantonça dos homens e dos ca-
vallos, quer sejam as que se applicam ao curativo das
enfermidades; não vendem porem pannos; e a cada esqui­
na ou encruzilhada ha sempre uma ou duas destas boticas.
Todos os índios, assim de Goa como de outras partes,
tem um costume assaz estranho e notável, que c , que
quando querem fazer algum mercado entre s i , e são pre­
sentes pessoas, que elles não querem que saibam e enten­
dam 0 seu negocio , nem tão pouco que entrem em sus­
peita, se os virem fallar ao ouvido, costumam fazer sig-
iiaes por baixo de suas mantas de seda ou de algodão, que
sempre trazem, como nós as nossas .capas; e tocando as
maos secretamente, se dão a entender pelos dedos a que
preço querem vender ou comprar, sem que as mais pes­
soas possam saber nem conhecer cousa alguma.
Mas tornando ás ilhas da Sonda, de Maluco, Philippi-
nas, Japão, e ainda á China, poder-se-hia dizer muito ma­
is destas terras, e das cousas excedentes e singulares que
dellas se exlrahem; mas contento-me somente com o que
levo dito de passagem, deixando o resto aos que são mais
capazes e mais curiosos que eu.
Tendo pois voltado da viagem da Sonda, dilatei-me a-
inda algum tempo em Goa á espera de oceasião de regres­
sar á patria. Mas antes de passar á relação da minlna par­
tida da índ ia, parece-me, pois tenho feito tão particular
descripção de Goa, e de outros logares da índia, onde es­
tive, que não devo deixar em silencio o que, estando en­
tre os Portuguezes, notei, e alcancei com assaz de curio­
sidade assim de sua navegação, embarques, e trafico nos
S8GUNDA PARTE, m
diversos íogares da Africa e da [rjdia. como de muitas on«
tras Gousas das terras do Brazil ua America, do Aiio'da,
Moçambique, Sofala, Guama, Moliiido, Sôcotorá, t outro.'^'
iogares da cosla de Africa, e do> resto da costa da l u u u ,
desde-Ormuz, GamLaya,. Surrale. Mogov, B'io,. e oulros, aid
á Cbi.na e lapão; e do que me aconteceo de memoravet
era todos estes iogares em quanto esiive na India. E ’ o quo
referirei brevcuicnle nos capiiiiios seguinles,.

CAPÍTULO X ÍY ,

fo rm a ©- feSAio-- «fo » ■£íavá'»s p o r ta fç a a e a « » «lift


ra 4I4» BfM ftia? e i f o «-rd'Csw-, e gsoliri-ajw Sío w í Jíbc- «jsi'B-

P,
L rimeiraniente quanto a'os navios de Portugal, petaem
todos os annos ires ou (juairo, ao mais-, dos a. que (-ha-
mam. Nam de viagem, e vão para voltar, se é possi-veb
eii case- extraordinário, quando EUR'oi. ifoer enviar alii al­
guma armada,, ou al-gum Vice-Rei mais hem acompa^nhado,.
ou ainda algum aviso paiVieiilar, envia outrorr navios me-
aõs,. como gaíeo'*s-de Biscaia, navios francezes, ilanKMvgo,-.
inglezes, e caravedas: e desles nenhum volta a Portugal
salvo havendo necessidade de dar algum avis-o ex|M’<V'=sa-
inenlG, e fóra das nionções (irdiriarias. pvuque cnião da-í-
pedem uma caraveila, ou outro navio meão. E. se pela ven ­
tura as náos que partem de ÍAirlngal para Coa não pode­
rem chegar iá a salvamenLo , ou a outro porto da.
nem por isso deixa>ria-m de enviar dxi lindia aignns galen-'es
de Biscaia carregados d e jdmenta*, e oiiiras (mM-cadoria r;.
porque estes galeões são pí>ueo mais oii! menos- do [e,: ie
íie setccentas a oitocentos toneliatlas. c são tnni proprios*
para guerra-, bons de vela. e-meibores'que as náoS'.
No que toca a- estas náos. são todas fabricadas em Lis­
boa, e não em outra parte, por razão do porto que é-muM
40^
ir )8 VÎAGKM DE FRANCISCO PYRARD

p ro p rio para isso , e m ui co m m o Jo para o e m b a rq u e , ^


iiu^ihor que em o a li’a iju a lq u e r parle, a ssiin por cau -a dos
e ltiéiaes e iiilc n d e n lc s ùas tacs viag en-, como pelas in cr-
e ad o rias, iilc iis ilio s ( a que elles cham am apparelho ) pro-
vim e iitü I a ipu; cham am m aialutageiù ), e o u ïras com m o-
ilu la tic s e cousas iie ce ssa ria s ( a ) . E s ta s nàos sào o rd iu a ria -
luente do porte de m il c q u in h e n tas ale duas m il tonolla-
d as, e m ais, de sorte que .são os m aio res n avio s do m a n -
<l(c segtniilo eu pude a lc a n ç a r, e nfio podem navegar em
iofujos de dez braças de agua. Ha sim na im lia aig n m as
em bai'caçûes, mas m ui poucas, que vem da A ra b ia , S u r r a ­
ie, e outros logares c irc u m v is in lio s , (jue lem perto de m il
m il e d iize n tas to n clla d a s, mas n u n ca são lão boas nem
íão fortes como estas n á o s , porque não lhe m ettem tanto
í c i i o ; c todavia não apodrecem tão a s in lia , e não são tão
b icilm ente furadas do b ic lio , porque na ín d ia n u n ca em p re­
)■ '• gam a m ad eira sem serem passados 1res ou quatro a n n o s
íip p ois <le cortada, com o que ílca m ais secca e m ais n j a ;
e mesmo aquella m ad eira é de sua natureza m ais r ija e
m e llio r opuí a nossa. E podem lá es[>erar lodo este te m p o ,
porque ha m uita ab u n d a n cia de m ad eira, e fazem poucos
n a v io s, e não a consom em no fogo por razão do c a ío r da
ie u a ; mas pelo c o n tra rio em P o riu g u l ha pouca m ad e ira , e

í a ) Dizer o nioUor que as náos da carreira da índia eram todas


íalu icadas cm Lisi>oa, e não cm onlra parle, não pode enlendcr-se
senão em relação ás que se falíricavam cm Portugal, pois elle mes-
íio> logo aiiaixo aponta uma destas náos faloicada cm Bacaim- e
nao pudia ignorar (|ue ja sc haviam fabricado ouïras na liniia, pos­
to qnc na \crdad(i a maior parte deltas fossem taiiricadas iio Ueiuo.
ihirece-nos (jue a primeira vez que bnubrou mandar lazer algumas
õeUas náos íia índia, foi no nnno de lo8á; e depois por muilas ve­
zes .<e (mcoiiínnmdou ('sla nialeria aos Vi(’e-llcis. mas, segundo co­
lhemos dos documentos que lemos presenU^s., com pouco fnicio ,
lahez por falta de cabedal suflicienlc no ttiesmiro do Estado^.’
t^ão dignos de ver-se a esle proposilo no Fasciculo 3 ® do .4r-
chico Porhuíucz Orimtal o.s Documentos , 11—IH . 23— M , l i 3 ,
2 ÍIÍ- X W 1 ,' , 2 4 0 - X Í, 2 4 8 - Y , 2u3, 2íi7 , 30o—Y , ô
talvez üuiios.
SEGUNDA P A R T E . 459
fabricam-se muitos navios, de sorte que sc vem obrigadas
a empregar a madeira ainda verde.
Ouvi contar aos Porluguczes que nunca houve embar­
cação que fizesse tantas viagens de Portugal á índia, coma
mna náo que foi feita em Paçaim, cidade que fica entre
Goa e Cambava; e fez aquclla náo até seis viagens, sendo
que as que se fabricam em Portugal não fazem ordinaria­
mente senão duas, c ao. muito 1res, ma- a maior parle não
fazem mais de uma ( a ). Cste logar de Baçaim é na índia
compai-ado a Biscaia na ílespanba, porqm* todas as embar­
cações (]ue na índia se fazem por conta d' E l-ílei. alli se
fazem, porque não ba terra onde se aclie maior fartura de
madeira. Verdade é rpie no reino de Sião, e em Aiarla'oa-
iie se acha ainda mais e melhor, mas são estas terras ma­
is distantes e incommodas.
São pois estas grandes náos de quatro cobertas ou an­
dares, em cada nma das qnaes cabe um bomem de pó,
por mais alto que seja, sem tocar com a cabeça no íecto,
e ainda sobram mais de dons pés. A j)0 [)a e a pròa sobre-
saem ao couvez a altura de 1res ou quatro imincns. de sor­
te que parecem dous castellos levantados nos dons extre­
mos. Podem levar trinta e cinco a quaremta peças de ar-
tilheria de bronze, porque elles não usam {leças de ferro
como nós, e a sna arlilbcria é do peso du (jiiatro a ciiici)
mil libras, e a menor de 1res mil. Alom destas não dei­
xa de baver ahi algumas peças mais pequenas, eomo espe­
ras, e pedreiros, que poem nas gaveas, ponpie estas são
lão grandes que lhe cabem dez ou doze homens: e os mas-
( a ) Conta Diogo do Couto ( Dec. Y ll. Liv, ÍX.. C-in. X V i f . ) (]tie
I). Constantino de Bragança, seudo Yire-Uci da índia, inandára fa­
zer em (ian defronte tie sens paços iima náo á sqn n iu a , a qii'^ poz
noni(‘ 67/íígoy. c vulgannenle eh nnaram CoRvííí/íííaa. CUa náo desde
0 anno de IdG l, em (jiie, foi acabada, até ao de em que o vj-
ce-Hei l>. Duarte de M<‘ rie,zes veio nciia á índia . fez nove ou dez
viaizens tão prosperjçs, í | uc nunca the acoiUeceo desastre, antes loi
acabar nu rio de Lisboa feita cubreu.
í

16 0 tIAGEM DE FIIANCISCO PYBA RB

tros tão enormes, qiie não ha arvore tão grande e tão gros­
sa que abaste, não só para o grande, mas nem ainda para
0 de mezena. Poi isso ordinariamente todos os seus mas*
tros são enxerla(Í03 e accrescenlados, c cobertos ao redor
de clmmeas, que são grossos pedaços de páo embutidos
mui exactatiyenlo, e da espessura que se quer. E estes pe­
daços, depois de mui bem ajustados, são eslreitameníe b ra ­
dos com coidoallia, e cintas de ferro mui apertadas, para
que não sejam impedimento a subir e descer a ver®'a, que
é de giossura proporcional ao mastro, e tem vinte e qua­
tro braças de comprimento. São mister mais de duzentas
pessoas para levar acima uma destas vergas, e sempre com
■-N dous cabrestantes mui grossos ( a ).
Não forram as embarcações de chumbo como nós faze­
mos as no^as; e sd o poem nas juntas para segurar a es-
topa, depois cobrem o navio de outra íiada de taboas de
pinho, e outra vez o calafetam, e untam de pez, e por ci­
ma de tudo 0 cobrem de enxofre e sebo. De sorte que são
os mais tortes e espessos navios que ver-se pode, e causa
espanto ver tantas peças grossas de páo aju stad as, c tão
giande quantidade de ferro liado com ellas. E com tudo
iSbO 0 mar os quebra e rompe ás vezes mais depressa que
a ou ras embai caçoes menores , como na verdade conhecí
por expcrtencia que quanto maior e mais pesado hc um
navio, mais se alquebra; ao mesmo tempo que um navio

porque foi reeebklo no R<>ino com lauto

. .ja «dado de (íoa, p a r ^ c ^ r e l i r ^ ' dZ


‘ t duc''df“L: fo
« commcmjí nue ^
ca. "eira. íiurp™ 1 ^ ‘eou:
nas mesmas nãos, vosen-.-
« aue iie íI p Hnfrt expenmeniar esle engenho; e a c h a n d o
, q u e ü e d e tanto eífeito, o fa ç a e s tra zer e a c a d a h u m a d as n á o s .
SEGUNDA P A R T E . |(]j

menor se deixa levar sobre as ondas, o que áqiicües não


pode succéder por ra^.ao do seu peso, c a vaga os acoula, e
os paite pela continuação da (ormenia, que mais depressa
lhes quebra os mastros e as vergas, do que aos navios me-
a o s , poique quanta mais resistência acha o vento, mais
eíleito faz. Para isso porem c mister que a tormenta se­
ja bem forte, pois um navio pequeno totnará por tonnen-
ta 0 que um destes grandes ha por bonança; tão custosos
são de abalár-se; donde procede que são.mui bons de ve­
la com vento á pôpa, e nada valem com vento de bolina,
isto é, com vento que bate de uma banda ou da outra.
Estas embarcações servem só para mercancia, e nunca
paia gueira; as outras menores, como galeões de Bisca-
ia, urcas deblandres, caravellas, e outros navios francc-
zes ficam na índia para fazerem as viagens da China, Ja­
pão, Malaca, c outras partes da mesma ín d ia; e servem
também para guerra, ou para levar avisos, e acompanhar
os \ ice-Reis, Não quer isto dizer que na índia não façam
os Portuguezes outras tão boas embarcações como aquellas;
mas as de que falíamos envia El-Rei para acompanharem
as náos, e levar gente á índia; e so todos os navios, que lã
vao, houvessem de voltar, não haveria (]uem os mareasse
poi razão da muita gente que morre nas viagens, aconte­
cendo ás vezes que a de dous navios não abastaria para
mareai um só na lorna-viagem; e ainda acontece não ha-

Estado = » ( ArcJiivo Porttiquez Oriental, Fasci­


« tílias fio E l-R ei= « E a p y lue escreveo ( o Vice-ilei Aía-
<i ono mm-oii ) <^1^6 mandava na náo Cdiaunis linm ensenho.
« Piirtes se ordenára para com facilidade se poder le-
« acima, o tpiai não d ie-ou a este Hei no; en-
« huma só pnmciras náos o envi('ís]ern mais ({iic eni
— X L YÍ ) ’ ^ dtí!le-=» (,i)ito Fasciculo, Doc.
Pyrard sobre iira invcnlo lão reoentc de mn
s ra ^ fo f a a l " “ ‘|uo a cou-

4i
i0 2 VIAGEM DE FR A SCISCO P T R A R D

ver assaz mercadoria, isto be, pimenta, para a sna carga,


por tal Cjue é mister dilalar-se uma ou duas destas náos
jiara o anuo seguinte, e nesse anuo não enviam de Portu­
gal rnais de uma ou duas náos acompanhadas de alguns
navios meaos.
Advirta-se também que os soldados, que estam na Índia,
não ousariam embarcar-se por marinheiros, nem os ma­
rinheiros fazer-se soldados; porquanto os soldados são obri­
gados a permanecer lá, e os marinheiros a voltar; nem
estes ousariam lá ficar; porque ainda que não haja logar
para elles no navio de torna-viagem, esperam por outra
oceasião, e no entretanto são pagos todos os mczes em
Goa, sem que ousem mairicular-se entre os soldados; e se
isso lhes fora permittido, não se acharia gente para mare­
ar o navio na volta. Os soldados são havidos alli em tan­
ta honra, que mais não pode ser; e alem disso para sol­
dado aproveita-se toda a gente, o que não pode ser para
'iP ' marinheiro, para serem como cumpre, c o mesmo digo dos
bombardeiros , e outros oíUciaes. Os soldados lem seis
pardáos por m c z , os bombardeiros e marinheiros quatro.
8e um marinheiro quer regressar, pode fazel-o, ainda que
110 navio não haja logar vago de sua con dição; salvo ha­
vendo na índia falta de gente, porque então o fazem di­
latar até ao anno seguinte, e no entretanto vai sempre re­
cebendo 0 seu soldo. Se voltasse no navio teria os pa­
gamentos ordinários. Se porem sc embarcasse sem ir em
praça de marinheiro, seria havido por pessoa estranha,
c não teria a ração de pão c de a g u a , nem ainda gasaliia-
do, se 0 não comprasse a alguém; e por essa razao fol­
gam mais cm tal caso dc esperar um anno. e ainda d o n s ,
se não tem meios de comprar o gasalhado a outro mari­
n h e ir o , 0 que lhe custa de sessenta a oitenta pardáos, e
íambeni comprar gasalhado para seus mantimentos e mer-
cadoiias, e é o maior dó do mundo ver alli uma pessoa
sem ecisalliado; porque não é como nos nossos navios, on.
SEGUNDA PARTE. i6 3
de tudo na coberta é commum; pelo contrario lá não ha
0 mais pequeno cantinho, que não seja dado ou vendido;
c ainda os logares descobertos sobre o couvez. Ao mestre
loca dar os gasalhados da pôpa, e ao contra-mestre os de
proa. Em quanto aos que ficam entre os dous mastros, is­
to he, sobre a tolda a descoberto, dispõe delles o guardião.
Esta ordem e diíTerenças guardam só nas náos da carrei­
ra da índia, porque nas outras viagens usam pouco mais
cu menos os nossos estilos.
Nos navios medianos observam o mesmo regimento que
nas n á o s , mas os officiaes não tem comparação alguma
entre si; porque o mestre de um galeão, que tivesse feito
a viagem da índia, dar-se-Iiia por mui contente se na tor­
na viagem para Portugal tivesse o cargo de guardião n'
uma náo; pois estes marinheiros e olTiciaes dos navios de
menor porte são todos gente apanhada á força, e semelhan­
temente os marinheiros que alli poem por mestres, cou-
Ira-meslres, pilotos, e outros. E assim esperam poucos lu­
cros, porque os seus navios não regressam nunca, e se el­
les querem regressar hão mister esperar um anno ou do­
us, ou vir á sua custa. Mas quando voltam são recompen­
sados com algum cargo n’ uma náo, mas muito menor que
0 que tinham no seu galeão; e é mais honra ser marinhei­
ro n’ uma náo, do que contra-mestre n’ um navio meão ;
de sorte que aquelles cargos se buscam com empenho , e
se compram, assim pela honra como pelo proveito.
Os homens do mar nestas náos não se semelham a ou­
tros alguns que eu tenha visto, e nem ainda aos outros
Portuguezes, que navegam em outras partos. Porque é cer­
to que todos os homens do mar, andando nelle, são bár­
baros, deshumanos, incivís, não guardara respeito a pessoa
alguma; em somma são verdadeiros diabos em carne, e em
terra são anjos; exceplo somente os marinheiros das náos
(la carreira da índia, que são corlezcs c benignos , assim
em terra como no mar, e parecem todos homens honrados
VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

e bem nascidos, tratando-se todos com grande respeito


uns aos outros. Nos marinheiros francezes nunca vi cou­
sa semelhante, como abaixo direi quando delles fallar.
Em quanto á ordem qiíb os Porluguezes guardam nes­
tas náos durante suas yiagens, direi primeiramenle que a
gente que vai em cada uma delias passa de mil ou mil e
duzentos homens, ou pelo menos anda de oitocentos a no­
vecentos; os quaes são assim ordenados, IJa ahi um Capi­
tão que tem mando supremo sobre todo a navio, e gente
que nelle vai; depois ha o piloto, sola-piloto, mestre, co n ­
tra-mestre, guardião, dous trinqueiros, sessenta marinhei­
ros pouco mais ou m enos, setenta grumetes, um mestre
i- ^ bombardeiro, a que elles chamam condeslavel, assistido de
outros vinte e cinco bombardeiros, mais ou menos coníor-
me a náo, aos quaes todos elle governa abaixo do capitão,
e não reconhecem outro superior senão a elle. Este offici­
al tem cargo da artilheria, e das duas escolas grandes. Ha
lambem uin capellão e sacerdote do navio, que recebe sob
do, e é oluigado a dizer missa lodos os domingos e dias
santos; sem todavia conservar hóstia consagrada , porque
isso não é permitlido no mar. Tem também obrigação de
confessar, pregar, e fazer todas as outras funeções e cern
monias ecclesiaslicas. E ainda que alli vão padres de to­
das as Ordens, não são obrigados a isso, e só o fazem li­
vremente; não recebem soldo, e vão só como passageiros
pai‘a a índia, com ordem de não voltar mais a Portugal.
Alem disso ha alli om escrivão, que tem poder era tudo,
e é despachado por El-Rei, e não ha nada que toque ao
interesse assim d’ El-ílei como dos particulares que elle
não escreva; e regista tudo o que entra e sáe da embar­
cação, e é elle quem passa todas as cédulas e obrigações
que alli se fazem; porque cumpre advertir que todas as cé­
dulas e obrigações que se passam no mar são boas e vali­
osas entre os Porluguezes, mas entre os Francezes são de
nenhum valor. Este escrivão também faz e guarda todaj
SlîGUNDA PARTE. i65
as informações c oscrlplaras de jus-iiça cm u-ma cspccie de
cartorio; c quando alguein morre, faz o invenlario de todos
os bens que a tal pessoa linha no navio, e os faz ven­
der ein ahnoeda a quem mais dá, c o dinheiro, (jvic ha ,
0 dá a jiiro; e quando chega a Goa, ou a Lisboa, entre­
ga 0 tresiado do inventario aos parentes e hefdeiros do
deíunclo, os quaes lhe pagam as cuslas. Tem grande auc-
loridade no navio, onde nada se passa sem elle dar pri­
meiro seu parecer e consentimenlo. Todos os manlimen-
tos do navio são distrihuidos á sua vista, e faz assento dc
tudo ainda (}ue seja de um quartilho de agua. Tern as cha­
ves das escotilhas d.o navio; e mesmo quando o capitãív.
quer ir abaixo ao porão,, é mister que o escrivão o acom­
panhe sempre, e de outra sorte não poderia lá ir, não obs­
tante representar no navio a El-Rei.
Este Êapilão tem mando sobre toda a gente, assim nos
que são obrigados ao navio , como nos passageiros; e ain~
da que alli vá algum fidalgo maior qne elle, é mister que
lhe obedeça. Todavia quando quer fazer alguma cousa do
imporlaiJGia, toma o voto e conselho de todos os olíiciaes,
fidalgos, e mercadores, e os faz assignar o auto, para po-
der a lodo o tempo responder. Não pode condemnar á "
morte por crime, mas podo pôr a tormento no navio ( a
que os F ranírezes chamam passer par sam le navire, c caler Y
e outio. cav ti^os co rporaes, e pendurar por debaixo dos
braços. No civil pode condemnar até duzentos cruzados
sem appollação. Pode também conservar a qualquer ho­
mem preso com ferros aos pós durante toda a viagem .
em chegando a (erra. deve entrega!-o á. justiça.
Abaixo (io Capitão é o piloto a segunda pessoa do navio,
porque o mestre Ibe obedece, e não. faz senão o que elle
manda, Não se arrcrla nunca do seu posto á pôpa, atíeu-
U) sempre á s u a agulha e á sua bússola; e ba um sola pilo-
k) para o ajudar. O mestre é depois delle quem manda to­
dos os rnaruíhüiros, grumetes,,e outra gente do serviço do
■id
i0 6 VÍACKM DE rnANCISCO PYRARD

navio; e ha ahaixo délit* um contra-mestre para o ajudar,


Tüdos estes são nomeados por Ei-Hci. O meálre leui car-
do governo desde a pòpa até ao mastro grande, qufi
nella iie comprehendido, assim para amainar as velas,
como para todo o mais serviço necessário ; e o conlra-mes-
tre toma conta desde a {)rôa até ao mastro da mezena, en­
trando 0 dito mastro; c faz aqui o mesmo que o mostre na
pòpa, 0 qual paia este etleito não lhe pode dar ordem al­
guma; e cada um delles permanece dia c noiite na sua re­
partição; e acontece (jue no espaço de seis inezes se não
visitam talvez quatro vezes. O contra-mestre tem cuidado
de toda a carga do navio, assim para carregar como para
descarregar, e outras occurrencias necessárias, tanto no
mar como depois de chegarem a terra; mas o mestre nun­
ca se arreda do seu logar na pòpa.
Dej)OÍs destes ha um euarclião, o.ue tem mando sobre to-
(los os grumetes, e vai ahqado com elles de noite e de
dia sobre o convez, que é desde o mastro gi'ande até ao de
mezena; e quer cl)OYa,qiier vente, é mister que estejam
sempre a l l i , e apenas lem alguns couros de boi, ou de vac-
(*a para so cobrirem. Este guardião governa nos grume­
tes, e se ao segundo toi|ue do apito elles não respondem
e acodem promplamente, descarrega-lhes grandes golpes
dc bastão, ou de pedaços de cabo; porque estes gnime-
les são a gente mais rasteira do navio, e inferiores aos ma­
ri nliciros, e só servem para lançar os cabos acima, nias
não sobem aos masíios, nem passam do convez. Fazem
todo 0 serviço pezado do navio, ajudam como creados ao«
marinheiros, que lhe liateni e os reprehendem muito; não
]»odem tão pouco menear o leme, e não iia trabalho al­
gum, quer fora, quer dentro do navio, que elles não sejam
obrigados a fazer, como Leildear o navio, e dar á bomba;
e este ultimo serviço só a elles pertence, salvo se por algum
caso forluilo o navio fizer mais agua do que é costume, e
que seja mister dar ú bomba 1res ou quatro vezes por dia.
SEÔUNDA PARTS. iG7

Os marinheiros são nuii respeitados; c lia poucos que


não saibam 1er c escrever, porque isto lhes é necessário
para a arte de navegar. Por esta palavra i M a i inheiro en­
tende-se 0 que sabe liem lodo o que loca á navegação; nias
poucos são os bons, com quanto todos tenham aquellc no­
me. lodo 0 governo do navio corre por conta delles, ca­
da um segundo a sua graduação. Nas náos grandes, que
sao fortes, tomam um ou dous grumetes para sua ajuda, c
sao elles quem fez lodo o serviço alto, corno largar as ve-
ias, amainal-as, menear os cabos, e outras cousas seme-
llianlcs. Quando cumprem bem sua obrigação , são mui
honrados do mestre e do piloto; nunc^ baldeam o navio,
nem dão á homíia, senão (|uando a necessidade o requer.
O guardiao não iíics pode dar ordens. De noute são repar­
tidos em 1res esquadras; uma fica com o piloto, outra com
0 mestre, e outra com o conlra-meslre; e da mesma sorte
são repartidos com elles os gi umctes; c cada um está dc vi­
gia quatro horas ; e ao ieme vai cada liomern duas horas.
Ha larnbem nestas ditas náos grandes très bússolas; uma pa­
ra 0 piloto que está lá em cima na pôpa; no couvez hea
oulra^ e com ella um marinheiro para ouvir as vozes do pi­
loto, porque o que vai em baixo ao leme não poderia oii-
vil-o, mas este que fica no meio lhe repete a voz do piloto,
lía dous marinheiros principaes, a que chamam trinquei-
TOS, que lem cuidado da cordoalha e velas, para compfu*
€ concertar tudo quando é mister. Ha lambem (jualro mo­
ços, a que chamam pagens, que não servem para mais do
que para chamar a gente ao serviço, e bradam com toda
a lorça ao pé do mastro grande, e mesmo assim düficüí-
tosamenle' são ouvidos por todos. Chamam a gente assim
para vir entrar nos seus quartos de vigia, como para ir
pfira 0 leme, e para outros serviços particulares; c servciu
lambem para tratar das luzes, e levar os recados do mes­
tre, e outros oíliciaes; e- outrosim quando os bens dos de-
luoctos se a i rem^Htm. são elles que servem de pregoeirus.
J(í 8 Vur.EM DS FRANCISCO PTRARO

íla i-im mcÍ!’HiliO on alciaide para cxecolar os mandados


do capilão no qne tooa. ás.consas da justiça. As prisoSs sao*
ao pé da bomba,, e ahi metem os malfeitores, ordinaria­
mente de ferros aos pés; c só ellc c mais niagncm alli po­
de ir. lía oulra-s pi‘isões menores,, sobre o conyez. que sao-
certas taboas com buracos, onde mettern os pés do preso,.
0 depois SC fccliam com cadeados. Este alcaide tem lam­
bem sol» sua guarda toda a polvora, balia, murrao, e armas,,
fpic tudo íbc c carregado por conta. Semelhantomente lorn
(.ai go do fogo, c nm gueni, seja (juem f ò r , ousai ia atcen-
(icr c levar íog.o sem elle ilio dar por sua própria inao. E,
para esse fim liade- cada banda do navio junto do mastro
grande duas-grandes cozinhas, a «jue chamam fogoes , e
quando o alcaide aWi acccnde o fogo, que é pela volta das
mio ou nove horas, ha sempre aili duas guardas ou sol­
dados, um a. cada'um, para tomar conta que ninguém fa-
Lv;' ( a aiguiU'desatino com o fogo, e lambem para impedir que
íiJ<:niem o leve para outra parle do navio. E se alguma.
]H?ssoa ba. mislei' do ir ao porão a ver a sua fazenda, se tr
de confiança, o alcaide lhe acceude uma vela. por ordem.
(1.3 capitrii), Qa mele u’ uma laulerua <i.e lata toda picada
<lc huraquinhos, fecliando-a-, com um> cadeado; e sc nao é'
pes.-^oa de confiança, elle mesuu» vai cm sua companhia..
Tem cuidado dc fazer tambem. apag.;ir o fogo pelas quatro.
horas pouco mais on menos.
Mestas mesmas náo.^ ha t.ambcni mnilos artiUces neces-
sorios, de cada; oOlclo on mesioí’ dou.s, iaes com o, ciriir-
^nões í a V carpiaten^os calafales. taiioeiro.s, G outros.. A,
maior [»aiUe dos-giaiiuete.^ c.slam a, mdem ue.>les. olricices,.
cada um cm seus logares; porque Iodos os oiíiciaes do na-
xio ieiv\ 0 seu grumcíc; G uns são obrigados a dormir eta
coma no voesto da gavCia, c os outros cada um a sua esco­
la, èxcepio os quatro que íkam no certo da gavea; e quaa-
1, a } Naquelie.s l.'nij>os, e ainda até pcrlo de nossos dias, a ci-
rergia cria reautadu arte medianica.
SKGUNDA PARTR. WJ
do não estam occiipaiJos noslc.'; serviros, são stigoilos a
(odo 0 (labalho como os oiilros. 0 mesli'o. cniiiraniieslro,
guardião, e mestre hombaideiro loíii cada um seu gi'aude
apito de praia pendurado ^o pescoço com cadt'a iam.bem
de j)rala, e coni elles dão signa! de tudo (iiianto be mis­
ter fazer-se, a saber, o mestre, o conlra-meslre aos mari­
nheiros, 0 mestre bomí>aideiro a Iodos os bombaideii-os.
e 0 guardião a todos os gitiiiieles, e aos quatro moçoS.
lia também dous dispenseiros , um paia os mariidudros.
e outro para os soidados; mas nada podem repai lii- senão-
em pi’cscnça do escnvao; e e;-fles dispenseiros são laiidiem
postos pelo rei. No navio tia muitos soldados , (idaluos,
mercadores, ecclesiaslicos, e outros passageiros, assim^bo-
mens como muilieres, de que não fallo aqui, [>or nãu ser
do meu inteuto.
Envia {)ois lU'Bei todas estas nãos armadas, e apparc-
liiadas á custa de sua íazenda, e a especial mercadoria que
levam é só dinheiro, ipie o mesmo rei manda para ajnda
das despezas do Estado da índia,‘ e para a compra da pi­
menta: de sorte que iião vai navio (jiie não leve pelo me­
nos qnarenla ou cincoenla mil escudos em diiiíieiro por
sua couta, não fallando nas mercaiJorias que perleuceui
aos passageiros particulares, liste dmhei.ro dá lucro, por­
que na índia vale mais um terço ({ue em Poi tueal.'Nes­
tes iiavios vao as vezes eiidiarcados setecentos a oitocon-
lo.s soldados; o resto são homens de mar, ou [)assa<'ejros.
Mas 0 que faz que as nãos de Portugal orfereçam lão pou­
ca resislencia nas occasiões de combate, é que todos a-
quelles soldados são íilhos de camponezes. e outia inmlo'
de baixa condição, e apanhados a força desde a idade de
doze annos, de sorte (|ue iião tiuido nunca vi.-^lo gmuTa
não podem entrar em combale. (3s bombardeiios s L
almenle pela maior parlo artifices, como s-apateiios. afía-
iates, e outros, de modo (jue não sabem o (jue é dar uni
liro de peça quando 6 mislcig mas não obslaníe islo. iJ-
4; í
VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

(]a essa gente, ainda que de baixa condição, desde que


lein passado 0 Calio de Hoa Esperança, como já em ou-
l!-() iogai’ tocámos, tomam novos nomes, e todos se dizem
iidaigos’ E 0 ({üc lambem os faz resistir tão pouco no
combale, é que os inimigos os tratam benigiuunente, e
Indo c d’ Ebílei, de sorte que eiíes nunca perdem cousa
alguma, segundo claramente dizem.
Ouando pois estas grandes náos devem partir, El-Rei
as manda bastecer de to(*a a sorte de provimentos e re-
íVescüS, os <]uaes são para uso de toda a gente em geral
desde Portugal até Goa, e não mais. Ma um dispenseiro
para os soldados, a quem em primeiro logar se distribue
a ração; depois ha o dos marinheiros, e dos outros otú-
ciaes e [icssoas do navio, e todos sem excepção têm ca­
da dia igual l’açao, a saber, meia canada de vinho, e ou­
tra de agua. A pipa contem trezentas canadas. Pão dá-
se-llies quanto podem comer. Em quanto aos outros man­
timentos, como carnes salgadas, uma arroba por mez.
A arroba peza trinta libras ( a ) . Todo o resto lhes é
dado na mesma proporção, corno azeite, vinagre, sal, ce-
bollas, e peixe. Tudo isto se dá para um mez inteiro; mas
o viníio e agna dão-se cada dia, e tudo perante o escri­
vão, que 0 lança em conta, e peio nome de cada pessoa.
Se alguém não bebe vinho, pode vendel-o a outros, ou
guai’dal- 0 , e deixal-o na mão do dispenseiro, que lhe dá
conia delle; e sendo chegados a Goa, ou a quahjuer oii-
íia parítg podem tornar o vinho que lhes é devido, para
fazer delle o que bem quizerem.
Mas 0 mal que eu acho em tudo isto é que todos os
nnnistnnentos se dão crûs, c cada um é obrigado a fazer
cozinhar a sua comida, de sorte que ás vezes se vêm ma­
is de oitenta ou cem pancllas ao lume ao mesmo tempo;
e depois quando a comida de uns está cozida poõ-se ao
( a } Aliás iriiUa e duas, como c sabido.

I
fogo a dos outros; e por isso quando alguns eslam doen
les, e iião podcni dar ordem a sua cosinha, são mui inat
Iralados e alimentados, donde vem morrerem por esse res­
peito muitos. Os Francezcs e íjollandezes não tem esta
usança, por que lem iirn cozinheiro pai‘a todos, e comem
a seis e seis em um prato. xMas entre os Portuguczes o
comer e beber é igual para lodo? geral. 0 sob(‘jo do
Iodos estes viveres e utensilios do navio heam em provei­
to dos intendentes dos navios íjue residem ein G o a ; e
quando os navios se ajipareliiaío para a tonia-viagem, bas-
tecem-nos de novo á custa d’ KMlei. Os utensilios de to­
do 0 navio são carregados ao mestre; e os mantimentos
e mercadorias ao escrivão. Os soldados que estarn a bor­
do íazem guarda todas as noules, mas não eslam sugeitos
a outro algum trabalho. Quem tem refrescos no navio ven­
de-os pelo preço que quer, e chegou a vender-sc uma ga­
linha por vinte reaíes de quarenta soidos cada um, que fa­
zem quarenta libras ( a ).
No que pertence ao salario dos oíTiciaes do navio, cum­
pre notar que ao capitão, piloto, mestre, e outras pessoas
do governo dá Ei-Uei cerío espaço do navio a cada nm. c
da mesma maneira aos mariníieii'os. Os soldados, grume-
tes, maiinheiros, artífices, e ouiros oíiiciaos do navio são
pagos por igual, a saber, pela viagem (ie ihutngal a Goa
cincoeiita ciuzados cada um. O cviizodo vale cnicoonía
soidos. Sc as pessoas do governo, c os marinheiros tmii
meios dc comprar mercadonas, nãu pagam direitos do
certa quantidade dellas, cada um segumJo a sua qualidade
e^gráo. E por isso os que não tem meios do as coniprarem,
nao tiiam grande proveito desta liberiiade; em tíuanío oa
outiüs podem ganhar cinco por nm. Os (jue não lem di-
niiciio, nao deixam todavia de ascompiar, porque viniilcm
os seus gazaÜiados aos passageiros, assim íidalgos, como
( a ) Moetia franceza.
VIAGEM DE FRA.NCISCO PYRARD

soldados, e mercadores; e ha gazalhado que se vende por


trezentos cruzados ein dinheiro de contado , e com isso
com[)i’am meicadorias, que El-Rei lhes deixa levar no po­
rão; po!‘que E!-Rei só relem para si duas cobertas do na­
vio, sendo ellas ao todo c|ualro cobertas, fora a popa e a
prôa, que equivalem a mais de uina e meia.
Em (juanlo ao alojamento, os soldados vao alojados de­
baixo do convez na coberta; e os grumetes em cima a des­
coberto. Da mesma sorte vão os Padres Jesuitas , ou ou­
tros ecclesiaslicos, ({uando os ha; menos o capellão da náo,
que tem seu alojamento como ({uahpier outro olhcial. Os
mldados só tem alojamento quando vão para a índia, mas
na torna-viagem não. Os homens de mar tem seus logares
ordenados segundo suas qualidades.
Estes navios são extremainente sujos, e infectos, porque
a maior parte da gente não toma o tralialho de ir acima
para satisfazer a suas necessidades, o (pie em parte é causa
de morrer alli tanta gente. Os Hespanhoes, Francezes , e
Italianos fazem o mesmo; mas os Inglezes e Hollandezes
são mui limpos e aceiados.
Quem alli vai sem gazalhado certo vc-se muito opprimi-
do e apoquentado, ponjue não acha logar para dormir na
coberta, se não paga para ter algum. Üa mesma sorte pa­
ra [)or os mantimentos e mercailorias é mister comprar
gazalhado a alguém; de contrario será obrigado a deixar
tudo a descoberto, em risco de se m o lh a r, avariar, ou ser
roubado; pelo í|ue todos tem necessidade de comprar seus
gazalhados á gente do navio, a qual fica com outros loga­
res, que lhe são reservados.
Assim quem quer ir á índia proveitosarnenle, precisa
ter algum cargo no navio; c se El-Rei o não dá , é mister
compral-ü a outro, ou a alguma viuva. E os que tem estes
ollicios e cargos do navio, assim os que são dados, como
os comprados, se o navio não vein a Portugal a salvamen­
to, terão 0 mesmo ofíicio e cargo em outro navio que for
kl

SEGUNDA PARTE. 173

no armo segainle; e se ainda nesle não vem a salvamen­


to. esperam ainda para outra vez, até que chegam a salva­
mento. Donde vem que todos estes cargos são mui procu­
rados, e os das viuvas e orfaôs mni bem recompensados.
Mas quem alcança os taes cargos é mister que tenha fazen-
daque levar comsigo, porque ha um ditado que diz— quem
nada leva á índia, nada traz— E ainda dizem que a pri­
meira viagem c só para ver, a segunda para aprender, c
a terceira para tirar proveito;'e assim se em tres viagens
um homem não enriquece, não deve lá voltar mais.
Em quanto á religião catholica, é ella guardada a bor­
do dos navios como em terra, exceplo no que toca ao
sacramento, que é inteiramenie defeso no mar: mas todas
as mais cerimonias ahi se observam, como missa, véspe­
ras, agua benta, procissões; e o mesmo é com as cerimo­
nias da quaresma, e festas do anno. lía capellas ornadas
de bellos painéis, onde cada um vai fazer oração. Quan­
do alguém morre, o mestre dá um toque de, apito, para
advertir que lhe rezem por alma; mas não se dão tiros de
peça, como nós fazemos. Para a oração ordinaría todas as
noutes ás nove horas o mestre a som de apito chama to­
da a gente para rezar um Padre Nosso e uma Ave Maria;
depois com outro som de apito dá signal a toda a gente
de mar para ir a seus postos e quartos, e cumprir suas
obrigações*. Ao romper do dia todos os moços do navio
cantam uma oração do mar, que é repetida -por toda a
gente do navio, cada um em particular, e nesta oração se
faz menção do navio, e de todos os seus utensilios, que
vão accommodando a cada ponto da Paixão; de sorte que
esta oração dura uma boa hora, e a dizem em alta voz.
Estes navios assim guarnecidos e ordenados parlem de
Lisboa no fim de Fevereiro, ou principio de Março, o
mais tardar, e não podem surgirem porto alguni para cá
do Cabo, nem tem necessidade disso. E se pela ventura
acontecesse algum accidente, (|ue os impedisse de dobrar
44
VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

OS Abrolhos, ou passar o Gabo, são obrigados a arribar di-


reitamenle a Portugal, e perder a viagem. Quando os na­
vios não são assaz fortes para voltar a Portugal, não tem
outros portos onde possam arribar senão a Angola na
costa de Guiné, ou no Brazil á Bahia de todos os Santos,
ou ainda a Pernambuco. Semelbantemente quando podem
passar o Gabo felizmenfe, dalli até á índia ou Goa, não
íern outro porto para surgir e refrescar senão Moçambi­
que, onde todavia não vão, salvo na ultima extremidade
e aperto, e ahi se detem o menos que podem, segundo
tem por regimento; e todavia chegam ás vezes alli tão
tarde que são obrigados a dilatar-se lá muito tempo por
causa dos ventos contrários, e outros accidentes. Os na­
vios que vão a este porto seguem viagem ao mesmo tem­
po que os que dalli voltam a Portugal, a s a b e r, no mez
de Junho ou Julho, e chegam á índia ordinariamente em
Setembro ou Outubro, se lhe não sobrevem desastre; e pe­
la maior parte das vezes não vão a Goa, mas a Gochim
ou Goulão, 0 que todavia fazem forçados das correntes do
mar que para alli os irapellem, ou de calmarias, e ventos
contrários.
Depois de dol)rarem o Gabo de Boa Esperança, vão á
terra de Natal, onde de ordinário ha grandes tormentas.
Esta terra é na costa de Ethiopia alem do Gabo cento e
ciiicoenta legoas, pouco mais ou menos. Quando os Por-
tuguezes se acham na altura desta terra depois de a ter
passado, tomam conselho entre si segundo a estação, para
ver se tem assaz de tempo para ir passar entre a ilha de
São Lourenço e a terra firme, ou, se é mui tarde, tomar
por fóra da dita ilha. Porque para tomar o caminho entre
a ilha e a terra firme de Africa é mister ler passado o
Gabo cedo, a saber, até por todo o mez de Julho; mas se
e mais tarde, fica-se obrigado a seguir o outro caminho
por fóra, e em tal caso não tem elles certeza de ir tomar
a barra de Goa, mas vão surgir a Gochim, ou ás vezes não
SEGUNDA PARTE. 175
passam de Goulão, como dissemos. Porom os oulros que
tem passado o Gabo cedo, podem facilmente passar entre
a dita ilha e a África, e vão refrescar-se a Moçambique
dez ou doze dias. Os que seguirem este caminho demasi-
damente tarde, não poderão chegar facilmente a G o a , por
causa das calmas e ventos contrários, que reinara ordina­
riamente nesta estação; e assim pela maior parte das ve­
zes são obrigados a dilatar-se largo tempo em Moçambique,
e só podem chegar a Goa mui tarde, íicando-lhes retarda­
da a viagem para o outro anno.
E no qae respeita áquelles que tern tomado assim por
dentro como por fóra da ilha do S. Lourenço sem passar
a Moçambique, pode-se ter por certo que hão de correr
grandes riscos, e passar grandes moléstias e fadigas, gas­
tando ás vezes nove e dez rnezes antes do chegar a Goa.
Porque tirado Moçambique não ha outro porto que pos­
sam tomar; e os que, quando é mui tarde, o não querem
demandar, não podem escapar de ser aceomettidos da en­
fermidade do escorbuto, e ainda muitas vezes morrer de
sede. Eu vi, estando em Goa, chegar navios, em que de
mil a mil e duzentos homens que eram partidos de Lisboa,
não restavam mais de duzentos, e esses quasi todos do­
entes de escorbuto, que os consumia de sorte, que depois
de chegados não escapavam.
Direi com tudo de passagem que entre a ilha de S.
Lourenço e a costa da terra firme ha bancos ou baixos,
que são muito para temer, c onde se tem perdido grande
copia de navios porluguezes. Ghamam a estes bancos bai­
xos de Judas, e são a cincoenta legoas da dita ilha, e a
setenta da terra firme. Gomeçam, indo de cá, aos 23 grá-
os, e acabam aos 22 e meio. São parceis mui temerosos
e perigosos.
Mas tornando aos navios portuguezes, quando são che­
gados a Gochim, tomam ahi sua carga, e não vão a Goa
por causa dos ventos contrários, e das correntes que os
VIAGEiM DE FRANCISCO PYRARD

impedem. A carga é feita por ordem do Vice-Rei, a (|Qem


avisam logo de sua chegada, e este de sua parte lhes en-
da officiaes d’ El-Rei para darem a tudo aviamento; por­
que em todas as cidades da índia ha toda a sorte de ofii-
ciaes, e a mesma ordem, assim no espintual como no tem­
poral, que ha em Goa.
A ordem da navegação destes navios portuguezes é rnui-
to ma. Porque ainda que partam de Portugal todos jun­
tos e em conserva, e que levem expressamente por regi­
mento não se affastarem uns dos outros, todavia guardam
mui mal esta ordem, e não tratam de obedecer a seu al­
mirante, que elles chamam Capitao-mór; sendo a causa
disto que todos os capitaês são fidalgos de boa linhagem,
que não querem ceder em nada uns aos outros, antes ca­
da um vai como pode, sem se importar se seus compa­
nheiros vão ou não na mesma conserva ( a ) , o que é
muitas vezes causa de sua perda, porque indo sós podem
encontrar-se com navios ílollandezes, ou outros inimigos,
que os desbaratam e tomam, tanto mais que, como já dis-
( a ) Diogo do Couto na Dec. V IÍ. L iv . X , Gap. I . deixou-nos
iiin notável exemplo destas competências entre D. Constantino de
Bragança, quando no anuo de 1562 recolhia de Yice-Uei da índia,
e D. Jorge de Sousa « —Foi tamhem nesta companhia ( diz Dio-
« go do Couto ) D. Jorge de Sousa, capitão-mór da armada do an-
« no passado, que tinlia íicado na índia com a sua náo Gastello ,
« que por não abater a sua bandeira a ü . Constantino, se desviou
«Jogo delle; mas encontrando-se ambos sós em Santa Helena, não
« quiz 1). Jorge enrolar a sua bandeira; sobre o que mandou D.
« Constantino pôr a sua artilberia em cima, e por rageiras chegar
« huma náo á outra com tenção de met er a Ü. Jorge no fundo.
« ou lhe ,f iltra r a náo, e o levar preso na sua até o reino. E
« tendo tudo prestes, mandou notilicar a todos os íidalgos, caval-
« leiros, e oíliciaes da sua náo que se fossem para terra sob pena
(( de caso maior, o que todos (izeram logo. E D. Jorge mudou o
(( parecer; e tomando melhor conselho, abateo a bandeira, e met-
« tendo-se no batei da sua náo, se foi ver com ü. Conslaníino, re-
(( conciliou-se com elle, e dalli até o reino o acompanhou sempre,
« e salvou todos os dias. E chegado a Cascaes, tendo já El-Bei
« aviso do caso poroutra náo, que chegou primeiro, por se encon-
SEGUNDA PARTE. !77

se, elles não fazem grande rcsislencia, porque todos os


soldados são gente mesquinha, e a maior parle apanha­
dos á foiça enlrc a gente do campo e j)ohres ailiiices. Os
proprios capilaes não tomam muito a peito a sua defesa,
pelo pouco iiileresse (}ue nisso lhes vai, poiqm'^os [íol-
lamlezes lhes dão quanel, e não os malam. Só El-iiei, e
alguns mercadores, ({uer piasenles quer àiisenles, p'erdem
nisso. Quando estes navios são lomados ou perdidos, taz
a gente deiles entre si um anio da perda de sua fazenda,
e do oílicio que cada um tinha 'no naviO, c no seu re­
gresso :?ão recompensados de tudo, e ás vezes em dohro.
H notarei aqui outra vez o qin' já disse, que todos es­
tes soldados e gente do mar depois de passaiTin o Cabo,
se ari'ogam tilulos de nohreza. aliás serião grandcinente
YÍlu[)erados e des[)rezados dos outros Cortuguezes que es-
tam na índia, porque se tratam todos entre si com gran­
de respeito e honra desde o maior até ao rnaís pequeno,
e Iodos so estimam muito, desprezamio não somente os
índios, mas ainda todas as outras nações christãs da Ku-
ropa, que elles chamam homens brancos, e os índios
chamam Faranqni ou Frankí. E se iim índio ferir um lio-
mem branco, a lei manda que tenha a mão cortada.
Eis ahi a ordem observada pelos navios porluguczes
desde 0 emharipie em Lislioa até serem cíiegados a Goa,
ou a outro logar nas índias Orienlaes. E cumpre notar
qno em todas estas viagens não ha senão os pobres sol­
dados e gente do mar que passem mal e pohremcnte,
porque de ordinário não são pagos dc seus soidos. Al­
gumas vezes os vi estarem quatro mezes completos sem
locar um real, e todavia o rei não deixa de lhes pagar
sempre, de sorte que se pode inferir daqui que a índia
não é boa e proveitosa senão aos Vice-Reis, Governadores,
e outros ofiiciaes d’ El-Rei, mas não ao mesmo Rei, nen'à
« trarem todas uas lllias Terceiras, o mondou desembarear pres<>
k>p a r a o casle llo, o u d e e s te v e a lg u n s teiupus até llie perdoarem
45
V

17 8 yiAGKM DE FRANCISCO PYRARD

aos pobres soldados e marinheiros. Alé os presentes, qiiô


os reis da índia fazem, são Iodos para o Vice-Rei: e os
qiie eilti lhes íaz em relorno são á cnsla de El-Rei seu
amo. M:is desde qne os eslrangeiros , Erancezes, Ingíe-
zes, e Ihillamiezes lem começado a fix-qncnlai- a índia, es­
tes \ ice-Reis na,o (iiam lanlo piaoveilo como de antes,
poi se haver [lerdid > a m uor parte do sen comineixio,
c nao onsai'em os Poiãngnezes navegar com temor de ser
tomados dos ínglezes e iíoliandezes, como de feito eu ti­
ve c nihoci/ni*n(o dc gi‘ande numero de navios [lorlugue-
zes (jiie toram tomados ou roubados (ie sua fazenda, e al­
guns de.^ie.". (|ii0 vinham da (ihina e de outras partes, fo­
ram eslimados cm mais de dons milhões dc ouro. afora
oulios muilos na vinda ou ida de Poilugal, e de todas
paite.^ da índia. Poríjtie todas as forças dos Porlugue-
zes nao sao capazes de vedar aquelles mares ao.s HolTan-
ílezes; como lambem da sua parte os Iíoliandezes lhes não
podem lazer muilo mal em lerra íirme, em suas cidades
e oitalezas , nem levar-lhes vantagem na m ercancia,
salvo nm pouco na Sonda, [mr ser mui desviada das ter-
las e ioi‘ças dos Poiiuguezos.
-vias antes do acabar este capiltilo não posso passar em
silencio nina pammilandade nnii noiaveL iiue Iodos'os
roíiiigiiezes dizem ler observado nas siias viagens da In-
ilia, 0 e. qne lo d o s o s coiqios inorlos qne se'lançam ao
mar da banda do norle para ca da linha eqninocial, não
^ao ao í u n o o m a s boiam ao Imm; d' agna, i;miio sempre
a cabeça voltada para o occideiUc c os pés para o oriente;
e SC alguma vez as ondas e os venlos os fazem virar pa­
ra nm ou oülro lado, logo inconlinenii voliam áqucll.a m-i-
meira siinaçao; mas passada a linha para a banda do sul
( izein que tonos_ os corpos vão ao fundo. Dei.vo a causa
dislo a invesiigaçao dos mais curiosos nalnralislas, -Mas nós
os l'rancezes nao lemos observado tal cmisa, porque a
todos os corpos tiuo lançamos ao mar pomos uma pedr^
SEGUNDA PA RTE. 17 0
mi balia de ariilhcria amarrada aos pés para os fazer ir ao
fuiido, porque logo qiic um homem morre ii' um navio
iraíicez, cuvolve-se o coi'po n’ um leneol ou coberla com
alguR) peso para fazer mergulhar, e depois lanea-se ao mar
a 1‘aiiavenlo, e para a mesuia banda se alira um lieão do
togo, ao mesmo tempo que a sola vento se dispara um li-
ro de peça, e todos olhauí deste lado, c não do em que
se lançou o corpo. Feito isto o mestre oii patrão adverte
em voz alia que se reze pela alma do 'defunclo. Mas os
xoituguezes nao observam (\slc eslilo, como já disse, e o
nicslic se contenta de dar um lo<|ue de apito para adver­
tir que se reze.

CAPITULO X V .

too trafico fion l*orinis;iioxoK por to da a í n d i a e m jçe-


l a l f e «Ia o r d e m q u e gpuardam. "

principal trafico dos Porlugiiezes é nas índias orien-


laes, onde elles nao querem consentir (|uc alguma outra
naçtio, nem ainda os Hespanhoes, vão tratar, e isto é es-
Ireilamenle defeso por El-Jbd sob pena de morte E al­
cançaram este privilegio d’ Kl-Iiei de ilespanha, (loimue o
contiaiio sei ia a ruina do seu Esíado. R assim se vè (lue
depois que os estrangeiros da Europa tem tomado o mes­
mo caminho c trafico, isso os molesta gi’andeimmîe, solire
tudo por causa da guerra, ein (jue os estrangeiros,'Inglc-
zes ü iiohandezes, tem muito mais loi'ças, e vantagem so-
lue^ elles no mar. Porque os Porluguezes são a gente ma­
is iiouxa na guerra do mar, que ha cm Ioda a chiistan-
dadt, e nessa leputaçao suo tidos, segundo o que eu por
rnim mesmo pude conhecer. São somente hons püoloí; c
maiinhciios, c nada mais, se liem qnc em suas nav('>ui-
çOes os sen.^ giumcles c manijos não sejam gente para fa-
diga e liaballio, mas pelo conliano iiíiii negligentes, prc“
VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

guiçosos, e sujos em extremo, de sorte que se deixam to*


luar e meller no fundo muitas vezes por escusarem tra­
balho.
Mas 0 outro maior inconveniente é no que loca ao tra­
to 0 cornmercio, o qual lhes é aclualmenle mui impedido,
assim pelas presas que em seus navios se fazem, como pe­
la escassez e carestia das mercadorias, porque o^ grande
numero de navios mercantes torna as mercadorias mais
raras e mais caras para aquelles mesmos que as vão pro­
curar em competência uns dos outros. E o que anligamen-
te não custava mais de um soldo aos Portuguezes , lhes
custa agora (}iialro e cinco; e ainda aquillo que podem le­
var a salvamento a Portugal são constrangidos a dal-o a
menor preço do que era costume; e por cima de tudo tem
muito mais ditliculdade ern lhe dar consum o, e s a id a ,
porque os Uullandezes dão as mesmas fazendas a preço
ainda menor, por ser o seu trafico muito mais desimpe­
dido.
E assim os Portuguezes já não traficam na índia senão
a medo, por causa dos estrangeiros de cá; o que tem ex­
citado um grande despreso de sua nação em todos os re­
is c povos da índia, que aquelles estrangeiros tem torna­
do mais fortes cm ariillicria, armas, e munições, e até
boceorrido com homens e navios contra os Portuguezes,
que em verdade se diziam senhores do mar de toda a ín ­
dia, porque não tinliam então outros alguns competidores
alem dos Malahare?, que sempre lhes haviam feito a guer­
ra, e ainda todos os dias fazem, dando-lhes grande mo­
léstia, mas não impediam a sua grande navegarão. Os Por-
tueuezGS diziam a estes índios que o maior rei da chris-
íandade cra o seu, que tinha por vassallos todos os reis
0 principes christaõs; e que a sua nação era a luais no­
bre e valorosa de todo o occideníe; o que os índios a-'
creditaram sempre, até que os Holiandezes Iho mostraram
K 0 contrario; e lambem nós lhe temos dado a entender M
SEGUNDA PARTE. Í8i

a grandeza e soberania de cada um dos outros reis e priii-


cepes chrislaõs.
Ora os Porluguezes estabelecerain-se ao princapio na
índia, em uns legares por forra cIc armas, é em outrés
por comrnercio e amizade, e este tem sido o meio mais
seguido, porque por força so tornaram G ca, e algumas
outras cidades. Tem pois tratado paz c amizade com a
maior parle dos reis da índia, cliamando-lhes irmaõ$ ciri
ormas. e alliados dos reis de Portugal , e por estes tia-
tados se tem concertado com elles nbsla forma; que o
trafico das especiarias, c outras mercadorias que tem sai*
da nestas partes de cá, seria somente entre estes reis e
os Portuguezes, e que nenhuma enlia nação . inimiga
dos Portuguezes, seria admittida ao mesmo tiafíco; c a-
quelles reis lhes tem promettido não tiafiear, nem dar
acolheita em suas ferras a nenhuma outra nação sem con­
sentimento dos ditos Poktuguezes; e estes da sua parto
lhes tem rcciprocamentc promettido exlrahir todas as suas
mercadorias a um preço ceito, concertado entre elles,,
por cada genero de mercadoria, e levar-lhes em retoi iur
das de cá, que lhes são mais necessárias, como dinhei­
ro, roupas, e outras cousas mais estimadas entre elles.
Tem alem disso promettido aos ditos reis guardar todo o
mar daqueilas costas de corsaiios e piratas, e defendel-os,
de, e contra todos os seus inimigos daqueilas partes que-
podessem accomettel-os. Para este effeilo tem sempre a-
percebidas Iodos os an nos durante o verão, que são se­
is mezes, duas armadas em Goa, nma para ir ao norlev-
e outra ao sul, tudo á custa d’ El-llci de Portugal;: por
que lá não se falia senão d" El-Rei de Portugal,, e nãO'
do de ílespanha.
Tem outrosrm os Porluguezes feito concerto com os
ditos reis da Índia para lhes darem nos legares mais pró­
prios, e nos portos e enseadas mais accommodada.s ;io
longo da costa das suas terras, assento paru aln se apo-
4ü.
182 VIAGKM DE FRANCISCO PYRARD

zoillarcm, morar, e commereiar cm toda a segurança de


snas pessoas; e para csle eileilo tern fal»ricado ahi cida­
des e forlalezas com Leilas cazas, onde agora são se­
nhores al)solulos com o mesmo poder e mando que os
jH'oprios reis, que não tem jurisdição alguma nas ditas
cidades particulares , nas quaes os Porluguezes cobram
Iodos os dii-eilos,^ cartazes, e imposições sem darem dis­
so conta alguma'aos ditos reis; e assim vivem em gran­
de paz uns com outros sem tentarem empccer-se mutu­
amente. E se pela ventura estes reis tivessem alguma
contenda com seus visinhos, os Portuguezes, em caso
qiuc não tenham tratado paz e amizade com os ditos vi-
siniios, são obrigados a socorrel-os e a]udal-os com ho­
mens, armas, e dinheiro; e o mesmo lhes tern promel-
lido os ditos reis em semelhante caso. Mas se os reis
que assim ticerem guerra entre si, forem uns c outros
amigos dos Portuguezes, então toca aos ditos Portugue­
zes proceder de modo que os tragam a boa composição;
ou pelo menos se a algum dão ajuda, é mui secretamen-
te, como fazem com o rei de Gochim contra o de Gale-
ent, ao qual eiUretem o melhor que podem, mas sempre
lavorecendo o de Gochim ás escondidas; mas o de Gale-
cut não faz caso nem de uns, nem de outros.
Na forma pois de todos estes tratados e concertos, os
Portuguezes conseguiram ficar sendo senhores do mar
da Índia, e que nenhuns índios, assim da terra firme
como das ilhas, de qualquer região que fosse, ousassem
navegar, nem fazer viagem alguma, sem ler passaporte
seu, 0 qual dura um só anno; e estes passaportes, a que
chamam Cartazes, levam clausula de que elles não po­
dei ao na\Cj^ai senão para certas partes alli declaradas,
e ainda para essas não poderão levar pimenta, arm as,
e munições de guerra, com declaração especial’de quan­
tas armas e homens podem levar, e se lhes acharein m a ­
is do que é dito no cartaz, tudo é confiscado, e jul^ra-

rv
SEGUNDA PARTE.
183

s t! !* V t'V 7 -
IRMO. Mas dostas IlinilauÕPS *^10 Í-"““A>

i| - pod. r ::it ::ã o " :b n X ';‘


Í er a 1 < »mercadores Í ,!
sL áq;.e de ' • T , Í , T « t ' « dá occa-

midamenfe cabendo T v l r t P''''']»»! deslc-


» » p™ ád“ , t , ; j ; ‘ í ' r : z ' d . r ‘i " i i " f r
a St
zes nem n n ’
•* • t st:t t t
‘ ®™°r »Igum dos Porliioiie-
TF^âTao^f t
Por nnonin V®'’ ®®'-®* d»® 'ao a(|iiolias - niesinas pailcs-
nói*
em l o ^ a ? P®''®'" 'rnaver;«,- e'<! !r
sem q t a rn ^ J ^ !|a n n r ^ d ‘ “ p ^ “ '*'''■ '''“^ ‘^°*^^^^
e alá nnw!l^ ® ^^® Po'’l»g'eczes ouse inveslil-os-
is n t r S p'’"p'-'* d® fí®», 0 i c ! ,:
dioras 0 t ® aírovimenlo de íanr!e ;,;.

^ ® s £ ^ :K e ^ n = q r n ^ t í::r ;r :i::;:
les, porque ainda quando fossem dous ou ires navios
TIAGEM DE FRANCISCO PY'RARD

porluouezes contra um hollandez. em os llollandezes a-


lirand'o um tiro de peça, elles amainam logo
vem render-se á discrição; o que e causa de os Holla i
zes 03 Irair.rem benignameate. Não o -faziam assim no
principio, com o que se deram mal, porque como queriam
L r - s c em defensão, os llollandezes os raallralavam e ma­
tavam; mas agora já não combatem. Note-se porem que
nestes navios portuguezes não ha pela maior parte senão
mercadores particulares ricos, e que tem mulberes e büios,
os imaes mais querem perder quanto levam no navio do
,iue a vida. E é esta a razão que elles me tem allegado
ab'umas vezes, quando eu Ibes perguntava por isto. Em
ipianto aos Malabares, dizem que não engoitarn nunca o
combate, em caso de serem dous navios ou galeotas por-
Umuezas contra um navio malabar i g u a l , que levernente
irá accommetel-os, de sorte que se pode iníenr daqui que
hoje os Forluguezes, que deram tanto que rallar de si,
são os mais froxos soldados do mar. i x a‘ a-
Mas tornando ao sen commercio e tranco da Índia, di­
go que todos os annos saem de Portugal duas, Ires, qua­
tro náos do porte de duas mil tonelladas ou mais, guar­
necidas e esquipadas de mil a mil e duzentos homerus
de todas as qualidades, como em outro logar direi mais^
particularmente; e tudo á custa d El-Rci, porque nenhum
particular envia nunca navio algum á índia. Mas nao ha
crente tão malaventurada em suas viagens, e que nave-
CTue tão mal, e em tão grande desordem, como elles pro-
prios confessam, e não ha quem os iguale em desastres-
no mar. Eu mesmo tenho conhecimento de vinte e cinco
embarcações, assim naós, com galeoõs, e outros navuo^
errandes que saíram em tres annos suecessivos de Lisboa
para Goa partindo n’ um destes annos quatorze, e com
clies 0 Conde da Feira, que hia por Vice-Rei, e morreo
na viar-em na altura da costa de Guiné; e nos dous an-
pos seguintes partiram onze navios; mas posso certificar
SEGUNDA PARTE. 185

que destes vinte e cinco não voltaram a Portugal mais


de quatro; os outros deram á costa, perderam-se, e foram
ao fundo na índia, fora très ou quatro tomados pelos IIol-
landezes; não fallando nos outros navios da índia que em
grande numero se perderam Ccá e lá.
O defeito não está nos navios, que são mui bons, nem
nos seus pilotos, que são mui expertos; mas em verda­
de se pode dizer que como os seus navios são grandes,
acham lambem grandes tormentas ; a gente não é para
grandes fadigas; e os oíTiciaes, excepto os pilotos, não
são mui expertos nos seus cargos, porque a maior parle
delles, ou para melhor dizer todos, tanto capitaes, mes­
tres, contra-mestres, gnardiaes, como marinheiros, bom­
bardeiros, c outros tem os seus oilicios por favor, ou por
dinheiro, ou em recompensa de serviços ou perdas pas­
sadas; e ás vezes até estes officios são dados ás viuvas,
ou fdhos dos que morreram nas viagens ou em outras par­
tes em serviço d’ Ei-Rci; e estes taes os vendem depois
a quem querem, sem investigar a capacidade ou o méri­
to das pessoas. Alem disso quando El-Rei quer enviar
armadas extraordinárias e de maiores forças, manda to­
mar estes officiaes e outros homens, assim do mar como
soldados, em qualquer parte onde os pode achar, ainda
que sejam pobres pais de familia com mulher e filhos ;
mas por cima de tudo isto creio que a principal causa,
porque suas viagens são tão desastrosas, ó pela grande
severidade e cruehladc de que usam para com todos a-
quelles pobres escravos, e outras gentes e nações, que
tem sob seu poder e dominio. E o que de mais a mais
causa desordem entre elles é que os capitaõs, por serem
fidalgos, tem grande ambição e competência sobre qual
chegará primeiro para carregar a sua náo também em
primeiro logar, e assim não esperam nunca uns pelos ou­
tros, por acontecer a maior parte das vezes que o que
47
VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

chega derradeiro tem de esperar para o anno seguinte,


se quer prover-se de pimenta, e outras especiarias.
Tudo isto junto é á causa da grande perda de homens,
dinheiro, navios, e outras cousas na índia pertencentes
a E l-R ei, e até mesmo da perda da propria India. Porque
ao presente o rendimento delia está muito longe de abas­
tar para pagamento e satisfação de todo o seu estado as­
sim no espiritual como no temporal, de sorte que a í n ­
dia lhe despende m ais'do que rende; e é bem certo que
se não fora pela reputação, e pelo interesse da fé catlio-
lica, como elles dizem, muito tempo ha que teriam de­
samparado todas aquellas terras. Ha alguns annos propoz
El-Rei em sen çonselho se devia ou não largar a índia,
por razão da moléstia e perda que com ella recebia. Os
Portuguezes lhe reprezentaram e requereram sobre isso,
que se elle eslava resoluto a largar t u d o , fosse servido
S. Mageslade de lhes deixar a elles a índia com todos
os seus proes, que elles ficando todavia por vassallos da
sua coroa, manleriam e sustentariam aquelle Estado mui­
to bem; todavia El-Rei não acceitou o alvilre, e tudo
ficou como de antes.
No que toca ás cousas que os Portuguezes levam á ín ­
dia para seu trato; primeiramente El-kei não envia alli
senão dinheiro, mas os particulares enviam e levam alem
do dinheiro, pannos de lã, chapéos, espadas, toda a sor­
te de armas e munições de guerra, ou material para el-
las; também toda a sorte de quinquelharias destas parles
occidentaes, papel, ferro, chumbo, espelhos, fructos seccos
de todas as especies, peixe salgado, vinhos, queijos de ílol-
landa, azeite, azeitonas, vinagres, c outras cousas seme­
lhantes, que são lá de grande estimação. Alem do tudo
isto levam livros im pressos, porque na índia não ha
imprensa. Pannos brancos e de seda não os levam, por­
que os ha lá era abastança. Todas aquellas mercadorias são
alli mui procuradas, e ganha-se nellas muitas vezes qua-
SEGUNDA PARTE, 187

iro por am; e nos rofresços ganha-se na viagem séis e se­


le por um.
A ordem do Governo em Goa é que o Vice-Rei é ab­
soluto em ludo o que loca ao serviço d’ El-Rei, e bem do
Eslado. E se elle nào cumpre bem as obrigações do seu
cargo, podem queixar-se delle a El-Rei por escripto, fa­
zendo menção por capilulos das cousas de que o accusarn,
e sobre isso manda El-Rei resolver o que ha por bem. Por
que Goa c regida e administrada como se fosse a propria
Lisboa, como eu já largamente disse alraz; e não ha ahi
JJespanhóes alguns ou Castelhanos, como os Porluguezes
lhes chamam; e por isso os Porluguezes se amam alli
muito mais qiie em Portugal, onde os Castelhanos os do-
-minam; mas em Goa são elles só os senhores, e estariam
alli muito mais a seu gosto, se não fora o temor que a-
gora tem de nós e dos outros Europeos. E se não fora
outrosim a opinião em que estam de que nós vamos lá
só para os espiar, e desapossar, folgariam muito mais de
nos ler entre si do que aos Hespanhóes; mas são tão ze-
lozos do seu Estado, que dezejaram que ninguém tivera
conhecimento delle. E quando elles nos vem lá, dizem-nos
mil injurias, e nos fazem mil affrontas pelas ruas; de que
não escapavamos nós outros que haviam os partido de
França em nossos navios, sem permissão de seu rei, a
qual é mister obter, pelo que elles dizem. São um pouco
mais benignos com os estrangeiros que parlem com elles
de Lisboa na armada; e ainda assim não deixam de os
maltratar, e andar desconfiados delles, dizendo que enga­
naram a El-Rei, fazendo-se passar por Porluguezes. E na
verdade nenhum estrangeiro passa com elles á Índia se­
não por grande favor; e ainda os Porluguezes carecem
de licença e passaporte do N icc-R ei( a ) , e serem ma­
triculados na Caza da índia. Quando lia novas de virem
( a ) Parece o auctor referir-se ás armadas, em que vinha no­
vo Vice Rei; que eram na verdade as que traziam mais gente.
188 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

alguns navios Inglezes, Hollandezes, ou outros destas


partes, lançam logo mão de todos os estrangeiros, que
Gstam em suas cidades, e os mettem em prisão. Todos
os outros estrangeiros, como Italianos, e todos os de Le-
v<ante, são bem acceilos entre elles, e tratados como os
k proprios Portuguezes.
Em fim é tal o seu trafico que todos os povos orien-
taes desde o Gabo de Boa Esperança até a China e Ja­
pão vão levar suas mercadorias a Goa, ou os mesmos
Portuguezes as vão buscar áquellas terras, isto he, ás da-
quelles povos que estam de paz e amizade com elles,
como á China ( o que se entende só da ilha de M acáo ),
Japão, Malaca, Pegú, Bengala, Geylão, Gomorim, e toda
a costa de Malabar, como Goulão, Gochim, Galecut, Ga-
nanor, Onor, Mangalor; e o resto da costa até Goa; e de
Goa a Moçambique, entrando B açaim , Damão, Chaul,
Dabul, Cambaya, Surrate, Dio, e todo o longo da costa
até Ormuz, e dalli a Arabia, e da Arabia a Moçambique.
Todas as mercadorias destas terras vem dar entrada, e
depositar-se em Goa; mas no que toca á pimenta, essa fi­
ca sempre nos depositos ou celleiros das terras onde se
cria, até que as náos d’ El-Rei de Portugal sejam che­
gadas a Goa; e se não podem tomar a barra de Goa, ne­
cessariamente devem tomar a de Gochim ou Goulão, e
não outros portos. E quando vão áquellas duas barras ,
é porque as correntes c ventos as irnpellem a isso, e as
não deixam subir até Goa. Muitas vezes porem ainda que
as náos tenham entrado cm Goa, algumas dellas não dei­
xam de ir. a Gochim, depois de haverem descarregado
a fazenda que trazem de Portugal. Acontece tarnbem
nuiiías vezes que o rei de Gochim não quer dar a sua pi­
menta senão indo as ditas náos carregal-a a seus portos,
porque os do seu conselho lhe representam que a sua
terra ganha nisso, como é bem verdade; porque quando
as náos lá vão, ha sempre quatrocentas ou quinhentas
SKGÜNDÀ PARTE. 189
pessoas de Portugal, recem-chegadas á India, a maior
parle das quaes não sabem o que vale a íiiercadoria, e
não trazem senão dinheiro, e viclualhas das embarcações,
0 que enriquece grandemente a terra. Mas quando os na­
vios se delem em Goa , são os Portngnezes de Cocliim
que alli vão com canella, e outras mercadorias, (|ue ciles
obtem a preço modico, e ainda por eomnmtaçâo de al­
guma outra mercadoria. E quando as náos são carrega­
das em Cochim, não voltam a Goa, mas saem logo direi-
lamente na derrota de Portugal, e vão passar á cabeça
das Ilhas de Maldiva. que é da banda de norte da linha.
Finalmente as armadas e frotas que vem das paftes do
sul de Goa, quando tem acabado suas viagens, e estam a
onze legoas de Goa na altura de um cabo, chamado Ca-
ho da Rama, e o tem dobrado, disparam toda a sua ar-
telharia em sinal de contentamento, por estarem a salvo
de piratas; e este cabo faz a separação da costa do Ma­
labar e Dealcão. Outro tanto succede ás armadas, (jue vem
do norte, (|uando chegam aos Ilhéos Queimados, a doze
legoas de Goa, porque também estam livres de perigo.

CAPITULO XVI.

c no tra fic ono n r a s l l • Rio d a Prata» Angola • C o n g o *


a. Viiomé» Mina» e do» cccravos d* Africa.

^ O s Portugiiezes na sua navegação mercantil para o Bra­


zil, índias oceidentaes, Angola, e cuíras parles daquem
^*do Cabo da Boa Esperança, não se servem de grandes na­
vios, mas só de caravellas, as maiores das quaes não ex-
. cedpTn 0 porte de mil e duzenlas a mil e trezentas tonel-
! lad ?; ^^n também usam de navios redondos, (jue compram
; aos Fra 'czes e Flamengos. Xs caravellas tem u las la-
t tin. s, e são maslreados de outro modo que os navios re-
43
TUGKM DK FRANCISCO PYRARB

dondos, os qnaes tern velas qiiadr<adas, e são de maior


porte li mas diizentas tenelladas. Nestes navios seguem sua
derrota para o Brazil, e saem de Lislma carregados de to­
da a sorte de mercadorias da Europa, necessárias á vi­
da e commodidade do homem, como pan nos de linho,
de lã. c de seda, vinhos, azeite, c outras cousas. que pe­
I la maior parte tomam na sua passagem nas ilhas Canarias,
e nas dos Açores, e taes são entre outras o vinho, fari­
nha de trigo, carne de vacca salgada, coiros de boi, e
peixe salgado. O vinho dos Açores é muito mais fraco
que os das Canarias e de Hespanha; e também o trigo não
se pode guardar por muito tempo senão com dilhculda-
de. Todas estas mercadorias recebem elles alli em com-
mutnrão d’ outras que .trazem de Portugal, e as levam ao
Brazil, onde não se produz nem trigo nem vinho; e p’or
não haver Lá sementeira de cereal algum, e nem ainda mo­
inhos. é mister levar a farinha já moida de Portugal;
accrescendo ipie o trigo se damnaria no mar em uma tão
longa navegação, visto (|ue o que se leva de França a
Ilespaidia está sugeito a corromper-se, e a botar máo chei­
ro; de sotte (jue em Hespanha sò o povo mesquinho come
pão feito dos trigos de França, e 05 ricos comem o da
tcria, (|ue por isso é mais caro que o outro.
Os 1’ortuguczes pois tendo tomado carga de todas estas
mercadorias vão-se na volta do Brazil, para sair em ter­
ra em algum dos portos daquelle paiz, e principalmente
no dc Pernambuco, que é o logar onde se faz maior tra-
íico de assucares. e onde se produz maior quantidade de
páo do Brazil. íla depois a Bahia de todos os Santos, e
outros logares desta costa ( de ipie mais particularmente
íaiiaremos na torna-viagem ), onde se faz tamliem o mes­
mo Iratico, mas não tanto como em Pernambuco. Chega­
dos alli, e tendo vendido e cominutado todas as suas mer­
cadorias, parte por dinheiro, e parte por outras mercado-
nas da terra, regressam sem fazer mais longa viagem^
SEGUKDA PARTE.

depois de se terem dilatado très ou qualro mezes a re-


Cuiher 0 seu dinheiro, e fazer as suas compras, as (piaes
S C limitam a assiicares, e conservas de todas as qualida­
des; porque do páo vermelho, ou do Brazil, não podem
tomar a mais pequena qiiaiitiiiade soh pena de morte, e
todo se carrega por conta d’ Kl-Bei de llespanha. que o
tem reservado a si. como nas índias orientacs a pimen­
ta. Quanto á gengihre, é também defesa, porque a gran­
de quantidade delia damnaria a venda da sua pimenta; de
sorte que ninguém ousará levar outra cotisa senão os do­
ces. le n d o assim carregado de assucares vão-se direi­
tamente a Portugal; e partem ordinariamente cm Agosto
ou Setembro para chegarem em Novembro, porque regu­
larmente gastam dous mezes e meio neste caminh').
Todas as mercadorias, que os Porluguezes levam, assim
dalli como d’ outros paizes remotos, pagam á entrada de
íjisboa trinta por cento; e não podem sair do Brazil sem
dar (iança e caucão em como vão a Portugal; e toda a
sua mercadoria fica registada. E posto que por algum
máo tempo, ou outra cau.sa legitima sejam constrangidos
a tomar porto em outra parte, ou seja em terras de lles-
panlia ou não, e a pagar alli os direitos por haverem
feito descarga das suas mercadoria.^, não deixarão co(n
tudo de pagar os direitos em Portugal, poiípie é essa a
condição dos rendeiros da alfandega. Alem disso noiihuns
estrangeiros, mas só os Porluguezes ou [íes[)anlioes, ou.sa-
rião mercadejar nesta terra do Brazil ha dez ou doze an-
nos a esla parte.
Quando os Porluguezes não (jiicrem voltar do Brasil
direitamenle a Portugal, mas fazer mais larga viagem,
vendem aíli uma parle da sua fazenda, a que acíi uu me­
lhor saida, e tornam a carregar mui hem o seu n ivio de
farinha de Mandioca, que é uma raiz, de que abaixo
faüarei; e com esta carga, e com a outra fKorlc da faz'^ni-
da que trouxeram, tomam a derrota do reino de Angola,
192 YIÀGEM DK FRANCISCO PYRARD

que é a leste do Brazil, afastado delle mil legoas ou ma­


is, e possuido pelos Porluguezes. Jaz a oito grâos da linha
para o sul, na cosla d’ Africa, entre a Guinc e o Caboda
Boa Ksperança. E ’ a mais pobre terra do mundo, e é nel-
la mui caro o sustento da vida, por não produzir mais
que alguns fructos. 0 que cusla dez soldos em França, cus­
tará quarenta no Brazil, mas alii cem. 0 unico trato que
alii se faz é o de escravos negros, e nem para outra cou-
sa a tem os Porluguezes, por que a não ser isso não que-
reriam alli estar, por quanto a terra não produz mais que
alguns fructos, e gado, e isso mesmo acanhadamente. Daqui
procede que em Hespanha não sentenceam á morte os mal­
feitores, como se faz em França, mas enviam-nos a estas
terras desertas para alli traOcarem. A farinha de mandi­
oca, que não custa mais de quarenta soldos o alqueire,
que pesa pouco mais ou menos vinte libras no Brazil, va­
le em Angola ás vezes oito francos. E em quanto ás mer­
cadorias da Europa, custam alli duas vezes mais caras que
no Brazil. Tiram em commulação de suas mercadorias es­
cravos, de que alli ha tão grande numero que mais não
pode ser, e passa por certo que é esta uma das maiores
e mais certas rendas d’ El-Rei de Hespanha em todas a-
quellas coslas, porque lhe vem sem dispendio ou custo al­
gum. Por cada cabeça de escravo, grande ou pequeno,
que dalli sáe, pagam-se dez cruzados; e quando chegam
a outra terra para ser vendidos, ou ficar nella, pagam a-
inda trinta por cento do seu valor. Por isso na primeira
cumpra custam pouco mais de nada, e no navio só des­
pendem 0 mantimento; mas ás vezes morre grande nume­
ro delles.
Í Quanto á moeda meuda desta terra de Angola, não é
mais do que pequenas conchas ou búzios, e pequenas peças
de panno feito de uma certa planta. Estes.pannos são do
comprimento de uma vara pouco mais ou menos, confor­
me 0 preço; e quando alli vão ao mercado para comprar
SKGUNDA PARTE. 103

0 que lião mislcr, nãolev;im oiilra moeda. Corn esle paiz não
; despende natia o rei de ílespaniia, e tira dcllo andes
proveitos. Ha alli ii na ^mina de praia, o mesmo os natu-
raes trazem ás vezes este nvMal; de sorte qae os Porln-
giiczes, assim os daíjuella banda, como os de Moçambi­
que e de Sofala, querem concerlai'-se para conquistarem
; a terra cada um da sua parle, e assim chegarem ao sitio
I daquclla mina, e ganhal-a. Por vinte e cinco soidos de
custo tirarão delia quarenta, c a prata é mui boa e pii-
( ra. A causa porijuc não vai maior numero de navios a
Angola, é por ser alli o ar intemperado o maisadio; c a-
! lem disso temerem-se da costa de Guiné, (|ue lambem é
mui inlemperada, e cheia de calmas; o (pie íaz ser alli
lão grande a carestiado sustento da vida, e os escravos tão
liaratos; mas quando estes chegam a outras terras são
mui caros por respeito do lisco (jue nisso se corro.
Os que querem voltar dalli direitamente a Portugal,
saern com carregamento de escravos; mas os que (jiierem
! fazer mais longa viagem, vão-nos vender ao Rio da Prata,
' donde tiram muito dinheiro, e dalli voltam ainda ao Bra­
zil a tornar nova carga de assucares e doces, e do Bra­
zil a Portugal. Outros vão direilamente de Angola ao Bra­
zil para vender os seus escravos, porcjue alli hão mister
grande numero delles para servir em seus engenhos dc
, as.-mcar; ponjue os da America não são de tão l»oin Ira-
i balho, e não obedecem de lão boa mente como os de
Angola, e de Cabo Verde. Mas pela maior parle das ve­
zes vão ás índias occidentacs, onde os vendem por alto
preço.
Ò Rio da Prata jaz a trinta e cinco gráos da banda
do sul na America, que é a mesma altura pouco mais ou
menos do Cabo da Boa Esperança; mas os qne abi vao,
fazem-no secrelamenle e com temor, por quanto o rei dc
Hespanha lem defendido o trato para estas partes, p aia
não ser defraudado nos seus direitos; e lodo o dinheiro
41) '
'y"' y

'4

194 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

que se lira porcsla via é IFia secrelamentc que se não pode


(l''sc)brir. pois a defeza é Ifio eslreiia (|oe leva pena de mor-
le. J)e s.Tte que para levarem o dinlieiro, alam os saccos
dieios ( l’ile ás aiíclioras, e depois de saidos os ofliciaes d’
El-Uei. levantando as anclioras, o guardam, e assini lodo
ü ilinlndro (jue daqiielias partes sc tira, é roubando c de-
traudando os direitos d' El-Rei de liespanha. E nem por
isso deixam de iirar dalli muito, poripie lodo o dinbeiro
que c üi re no ilrazil c cm Angola de lá vem.
b]ste Uio da Praia se chaîna assim porque vem e pas­
sa ao [H3 (la monlanlia do Polosi, doiule sc tira a maior
parle da (uala que vem das indias occidenlaes, e alli es­
tes mercadores vendem mui bem seus escravos, e não ex.-
traliem senão praia . e depois vão dalli lomar nova car­
ga de assucares ao Brazil.
Em Iodas as terras d ’ El-Rei de H esp an h a, especial-
inente d aquem’ do Cai»o, os escravos são mui procura­
dos; mas islo sc entende na America, e não na Afnca ,
jionjue os moradores do Brazil tem grande necessidade
delles [)ara os seus assucares. [)ois ba engenho onde Ira-
baiiiam mais de cem, afora os que hão mister para ou-
tr'os trabalhos. E presam mais um escravo Gafre, isto c,
d' África, que limz do Brazil. <jue não são tão fortes co­
mo os de Angola e Cabo Verde, e mais depressa se dei­
xarão matai' do que obrigal-os a fazer alguma cousa con­
tia sua vontade, e são na verdade gente branda e frou­
xa. Mas 0 maior proveito (jue se lira dos escravos é le­
vando-os ás índias occidenlaes direitamente, porque são
alli mni caros, e em retorno não sc tira senão ouro, pra­
ta, peroias finas, ou cochonilba.
Os Portuguezes aient do trafico do Congo lem lambem
0 de Guintí, donde exlrahem marfim, (jue alli ha em gran­
de abiiiuiancia, com algodoos, e pimenta lon ga, a (|ue
cfiamam Malínjaeta, A gente desta terra é mui soffrega de
eousas de ferro, e toda a sorte de quinquelbaria. Na mes-
SEGUNDA P A R T E . 10.5
ma costa jazem as ilhas de Santo Thom e, Princepe , e
Armo hom, onde elles fazem trafico de ,trengilire, assuca-
res , algodão, e escravos. íía lamhem alli a Mina. onde
ha uma forlaleza delles, e fazem ahi grande trafico de ou-
10 c escravos com a gente da lei’ra. Tem lambem as i-
Ihas de Cabo Verde, owlc tratam e n csci'avos commu-
tando-os por ferro , e outros metaes de hai>:o preço . c
(juimpielharias, como fazem por -toda a cosia d' .Vfrica ,
na (]nal, assim daquem como dalem do Cabo, a maior ri­
queza qu-e ha é de escravos, como em Moçamhiijue, So-
fala, e Mina, onde se acha oui‘o c marfim.
De sorte qne é cousa maravilliosa o grande numero de
esci*avos que dalli se lira todos os an n o s, e que se le­
vam a America ou a Portugal, sem contar os (p-ie ficam
na terra a servir os P ortug*w ezese os reis daí[uella cos­
ta; e mesmo no sertão o maior tiohnto tpie estes reis po­
dem ler dc seus povos, são escravos. Ponpie dc ccrlo •nu­
mero de filhos 0 pai e a mai pagam uma parle a setis
reis, os (piaes os vendem; c os mesmos, {>ais e míií-s ven­
dem seus pioprios filhos. De sorte ([ue alü Íaz-S(; trafi­
co de geute, como cá de animaes, Estes escinvos são ha­
vidos pelos rnais fortes, robustos, animosos. lins. c ohe-
diemos do mundo, o que os faz prezar tanto. São todos
negros. Os PorUiguezes chamam-lhes (hfres ( a i : e aos
que procedem de l*orlngnez c Cafre, chamam Mnlalos. Ha
certos distificlos donde os escravos são melhores, e mais
estimados por sen hom natural.
Em todos estes paizes estrangeiros não ha Porliiirnez,
por mais pobre que seja , homem on m ulher, (pie não
lenha de seu dous ou Ires escravos, que ganham a vida a
seu senhor, para ipiem devem trabalhar nm cei'to lemoo
cada dia, c alem disso snslentur-so de sen ganho. l\)c isso
^ ( a ) Ja na ão'a ( a ) dc nag. ai desto v(d. advfolimos (, ir >
Porluguezes <o chamam Cafres ao> ncíír.v. da VfVica oricnlal
por esse res()eilo se (Jeuoimim também Ca(rarta, ’
196 YIAOF.M T!E rRANCISf.O ÍTRARD

soria impossível fpje os Porloguezes c Hespanlioes podes-


som lialiilar. e grangoar lodas as terras cjiie possuem, se
não fosse pela força c serviço de seus escravos, por íjiian-
1o a llcspaiiha é de rmii pequena extensão, e mui pou­
co povoada cm comparação dos grandes territórios que pos­
suo, e do trafico que fazem com tanta moléstia e tiaba-
lho’ Porem o (pie os Porluguezes possuem, assim aquem
do Cabo em Angola, Guiné, e ilhas circumvisinhas, como
no Brazil, é de diverso modo do ipie nas índias oiienta-
es. Porque naquellas ditas terras são senhoies soberanos
da maior parle délias . como os Hespanhoes nas Índias
occidentacs, não tem lá competidores alguns, e tem for­
talezas nas co stas, e no serlao, que pela maior paite é
seu. e 0 vão conquislando ainda cada dia. Ha alli íidal-
cos [lortuguezes (jue tem casas fortes, e fazem la\iar e
cultivar as terras, e fabricar assucares , como cá farião.
Junto do Rio de São N icente ha minas de ouro, que el­
)■ *' les tratam de conquistar, e já tiram délias alguma cousa.
l^hs porque o Biazil e Angola sao de tao grande proveito
a El-Bei de llespanba, e de tão pouco custo e risco, sen­
do a navegação para estas parles facil e de pouco peri­
go. E também estes paizes dao saida aos fruclos e mer-
tadoiias de llespanha , e por isso El-Hei não permillc
que ahi se plantem e semeem aquelles fruetos.

CAPITULO XVII.
1ÏO trinfico c m ISoçamBíiqcae « Sofiilu» C n a m a * llellnclc^ r
ü o m b a r»a . Socíílorá.. e onlro»* logare». Wo c e rc o
do M o ç a m b iq u e , e o q u e tJell« r e s u l t o u .

j , 0 (pie toca ao trafico Moçnmhupic, Sofcihi, CuciMãf


e outros logares, direi primeiramente de Moçambique , don­
de a maior riqueza, que se leva a Goa, é principalmeiite
SEGUNDA PARTE.

em escravos, ou Cafres, que se transporiam a toda a par­


te. Vai também muito marfim, c ébano, o mais negro, e
exceliente do mundo, e lhe chamam os PortugueziÍs Pao
de Moçambique, e ambar-grís. K’ Moçamliiqne logar de gran­
de imporlancia a El-llei de ílespanha, assim pelos provei­
tos que dclle tira,^como por lhe servir de muito a seus
Estados e navegaçao; porque é uma ilha, forialeza, e por­
to mui proprio para acoiheila dos navios, (|ue vão de Por­
tugal a Goa, depois de passarem o Caho, de sorte (lue os
([ue são perseguidos de toimenia, enfermidade, falia de
mantimenlos, e outras necessidades, se acolhem alli. Pode-
se dizer que é uma senlinella e abrigo á entrada das ín ­
dias,, 0 como uma especie de albeigaria para refresco dos
rortuguezes fatigados de uma larga e penosa navegação,
depois de lerem andado tão longo tempo por mar sein
tomar terra, e passado algumas vezes sete c oito mozes
poi tantos calores, calmas, e outras moléstias que ha na
passagem da linha, e ainda na costa de Guiné, que c mui
intemperada e malsadia , e que causa muitas enfermida­
des de escorbuto e fehres peslileneiaes, de que muita
gente morre. De sorte que nos não devemos espantar (pie
elles folguem de achar algum porto para se refrescar,e
para isso não tem outro mais proximo (]ue o d e Moçarn-
biquo, por terem por inslrucção não tomar outro porto
desde Lisboa até alli em razão de serem seus navios tão
grandes, e demandarem tantas braças de agua. que- não
podem achar bons portos mais proximos, e do seu senFio-
rio. E se por ventura vão tomar outros-, ó foi-çados p e b
tormenta, e pela maior parte das vezes perdem-se uelles^
ou pelo menos perdem o tempo de sua viagem.
E pois para elles grande prazer chegar alli dejiois de*
haverem passado e dobrado o Cabo díi Boa hlspiu'ança, e
aquella perigosa ferra de Natal, por onde nunca se pas­
sa sem encontrar tormentas, e outros accidentes que (b's-
.mastream os navios, rompem as vergas ou o leme, e ás.
50
^' X

198 YIAGKM DE FRANCISCO PYRARD

vezes uma e outra cousa jiintamenle. Por isso neste lo-


gar lao favoravei tie Mooarnbitjue El-Rei (ie Hespauha Lem
um hospilal, e uai anuazein para provimento das cousas
necessarias ás annatlas; e c só com esla consideracao que
die faz forliikar lã) bem e guardar csle logar pelo pro­
veito (pie ddle lira iieslas cousas. E sem isto seria mui
dinkulloso fazer a viage.m da India á ida, assim como é
commodo na tornaviagem achar a illia de Santa Helena.
Ora tendo os H tllandczes percebido ([uanto este logar
de Moçambique era proveitoso aos Portuguezes, e quanta
moléstia receberiam se o perdessem, determinaram lomar-
Iho , c do feito lhe pozerarn cerco por duas vezes , trez
mezes cada uma, a sabeiq no anuo de 1607, e no anno de
1609. O primeiro cerco foi de oito grandes n á o s , mas
não poderam tomar a fortaleza, antes p.n-deram alli mui­
ta gente. Só chegaram a ser senhores da ilha, e da cida­
de aberta, que queimaram de ambas as vezes. O segundo
cerco foi de treze náos grandes, de que não tiraram me­
lhor resultado, ü a primeira veztomaram uma nâo de Por­
tugal mui rica, (jiie estava surta defronte da fortaleza, e de-
pois de a sa({uearem (pieiniaram-na. Nesse tempo a fortale­
za, era facil de tom ir, m is depois tôm-na grandemente for­
tificado, como tem feito a outras fortalezas da índia desde
que viram que os 11 )}landezes e outros estrangeiros os vinham
desinquietar. Os 11 )llandezes perderam alli uma peça grossa,
e um navio que naufragou quando se apparelliava para
dar á vela ao sair do porto. Aconteceo-lhes ainda outro de­
sastre, e foi que d irante o cerco tres dos seus homens lhe
fugiram para terra mil contentes, e se recolheram na forta­
leza dos Portuguezes, o que magoou muito aos Hollandezes;
porque se não foram estes tres traidores , terião infallivel-
menle ganhado a fortaleza, como eu depois soube, porque os
de dentro estavam no ultimo extrem>, e resolutos a render-
se; mas estes tres homens lhes fizeram cobrar animo, dan­
do-lhes a entender que os Hollandezes estavam determinados
SEGUNDA PARTE. 190
a levantar o cerco por falta de immicõcs, assim de guer­
ra como de i)Occa, como na verdade era. Disseram lambem
(jue 0 motivo (pie os movera a passar-se aos Portugiiezes e-
ra 0 desejo de se fazerem catliolicos, c (pie os ílollandezf‘S
os haviam obrigado a embarcar <á força; o (|ue era ialso, por­
que eram Ires líillres que nada valiam . como eu pioprin
sei pelos ter visto e tratado depois. Os Porluguezes lizeiaim
então grande festa por haverem ganhado estes tres Iioinens,
e sobre tudo os Jesiiilas pensavam ter feito uma grande
obra na conversão destes ti'es marotos, que os estavam en­
ganando. porque elles não tinham devoção nem alíenção al­
guma á religião catholica; e a causada sua fugida era não
poderem aguentar a fadiga, por([ae não prestavam paia
0 trabalho; e julgavam qne chegaiiam a ser alguma cousa
entre os Portuguezes, ps quaes faziam grande alarde da con­
versão destes tres miseráveis. Oia os ííollandezcs vendo-
sc trahidos por elles, que poderiam avisar o inimigo das
faltas que padeciam, resolveram-se a levantar o cerco , e
ainda porrjue temiam a vinda das máos de Portugal, por
se ir chegando o tempo proprio, e poderiam qiieimar-lites
os navios; e de feito cilas chegaram sete ou oito dias de­
pois de levantado o cerco,
Estes Hollandezes antes do chegar a. Moçambique ha­
viam tomado um navio que vinlia de Portiigai. c tinham
ainda presos os homens dclle: e no intento dc recolmar
seus tres homens, usaram dc um ci^pediculi'. mas cruel o liar-
haro. Mandaram propôr pacto ao governador, dunnado Dom
Estevão de Allaide, (jiic era um bravo e galhardo (ididgo ,
oíTerecendo-llie a restituição dc todos os prisioneiros [‘(irtu-
guezes, que em seu poder tinham, a troco daqu(‘lios ires ho­
mens, e senão que matariam a sua vista seis dos princiipa-
es prisioneiros. O governador deu em resi)osia a esm propo­
sição que os estilos da guorra defonliam restituir homens,
que voluntariamente haviam vindo ofíerecer-sc a servir a> seu
rei, nem arriscal-os ao alve irio do seus inimigos para os man-
200 TIA6EM DR FRANCISCO PYRARD

(larem matar, o que lanlo montava como ser elle governador


0 proprio algoz desses homens. Que no que tocava aos Por-
tugiiozos (]uc elles lá tinham presos, esses eram prisionei­
ros de guerra, e por tanto os podiam pôr em resgate, que
lhes seriam mui hem pagos; e se os matassem a sangue frio,
não era isso acção de Icaes cavalleiros. Andaram um dia
inteiro nestes recados sem poder chegar a conclusão alguma.
O que vendo os íiollandezes, tomaram a resolução de matar
aquelles seis Porluguezes, que todos eram homens cazados, ri­
cos, e dos principaes oíTiciaes do navio, como piloto, mestre
etc. , e passando avante amarraram-lhes as maõs alraz das
N costas, e os fizeram sair forá das tranqueiras, segurando sem­
pre a ponta das cordas dentro da tranqueira. Estes pobres
homens bradavam por soccorro e m.isericordia ao governa­
dor para o commover á piedade, mas elle coníenlou-se de
exliortal-os a morrer com constância, dizendo que não podia
restituir os 1res íiollandezes, porque Deos c El-Rei Iho defen­
diam, pois eram vindos para se converter. Sobre isto os
íiollandezes mataram aquelles seis homens a tiros de arca-
buz á vista dos outros; e logo levantaram o cerco, e se fo­
ram á Sonda. Quanto aos très Hollandezes, foram depois
levados a Goa, onde não fizeram muito caso delles, mas ao
contrario lhes diziam mil injurias, e nos acompanharam na
volta para Portugal. Um delles vinha na mesma n á o , em
que eu também vin h a.. ( a ) ..................... .....................

um seu companheiro que foi captivado pelos Turcos, e que


depois veio a Goa por terra, onde elles fclizmenle se haviam
encontrado.
Mas tornando a Moçambique] é uma pequena ilha, no ex­
tremo e ponta da qual ha uma fortaleza do lado de leste,
que defende o porto. Esta ilha esta dentro de uma grande
( a Aqui está lacerada a folha do nosso original, e faltam très
regras, que não podemos supprir.
SEGUNDA P.ARTE.
2 0 i

bahia. cheia de arrecifes e baixos, havendo apenas um ca­


nal mm estreito e dilïïcil de entrar, por 1er arrecifes e
baixos de uma e outra banda, de sorte que para o en-
tiar e mister ter pilotos da ilha, e assim mesmo ir sem­
pre de sonda na mâo. Esta entrada é de travesia , mas
com bom piloto, e em bom tempo, pode-se entrar com
toda a segurança, e achar nelia bom fundo. Não ha por­
to ou enseada em toda a índ ia, onde os Portuguezes
tenham perdido tantos navios como nesta bahia. Para a
entrar e mister ter a prôa a oeste, e assim fica o norte
a direita, e o sul á esquerda. Do lado do norte está a
teria brme e do lado do sul estam dous ilheos desertos
a par um do outro, na distancia de quasi uma le^ma de
Moçambique. O mais proximo chama-se S. Thiacro''; o ou­
tro que mal se vê, por ter o primeiro por d’ avante, cha­
ma-se S. Jorge. Entre a ilha de Moçambique e a terra fir­
me ha só meia legoa de mar. Do lado do sul tudo são
baixos e areias; mas o porto é do lado do norte, e tem
bom íundo A ilha é mui estreita, não tendo mais de très
quartas de legoa de comprido, e meio quarto de lar^^o V
povoaçao e dispersa por Ioda ella, sem forma de cÍdade
cercada, mas com uma fortaleza mui grande. A terra é
de si mui esteril; não tem aguas doces, mas somente al­
gumas cisternas, e vão buscar a agua doce á terra firme
em bateis. Ha ahi cinco ou seis igrejas, capellas, e con­
ventos. Os navios podem chegar-se á ilha quanto querem
porque a costa é mui segura, e o seu fundo de boa are­
ia; não se pode porem navegar ao redor de toda a ilha,
mas somente da parte do norte, porque da do sul só ha
baixos e rochedos.
Esta ilha jaz na costa de Melinde ou p]lIiiopia, quasi a
dezoito graos da equinocial para o polo antarctico , e é
abastada de Goa novecentas ou mil legoas, e seiscentas
a . . ç a j ........................

( a ) iVqui ha lacuna pela mesma causa dita na Nota de pag. 200


51
202 VIAGEM DE FRANCISCO PÏRARD

iaraní^eiras, limoeiros, bananeiras, e outras arvores de


fructo das índias. Ha grande copia de gado, como bois,
vaccas, carneiros, porcos, cabras, e outras especies, e todos
estes animaes são mui baratos, e semelhantes aos da iliia
de São Lonrenço.’ ^ 'i
No Brazil c em Moçambique a carne de porco e liavida
pela mais saborosa, delicada, e sã de todas; e por isso os
médicos a recommendam aos doentes, elhes defendem todas
as outras. Ha lambem ahi muitas galinhas mui boas e de­
licadas, mas todas de pennas negras, e a carne da mes­
ma côr, ou seja crua ou c o z id a , o que causa estranheza
a quem não está costumado a vôl-a e comel-a, e parece que
a carne foi cozida em alguma droga negra. Antes de os
Portuguezes chegarem á ilha de Moçambique, não eia ha­
bitada^, assim por sua pequenez, como pela falta de agua
doce; e hoje em dia sò é habitada de Portuguezes, mesti­
ços, e cafres da terra firme, chrislaõs, pela maior parte es­
cravos dos Portuguezes. ‘ ^
Dos territórios circumvisinhos no continente, uns são
amigos, outros inimigos dos Portuguezes, e com estes tem '
guerra continuada e mui crua. Os Portuguezes não tem
outra terra na índia, onde seja tão penoso viver e mo­
rar, porque é mister que todos os mantimentos lhe venham
de Goa, e o Vice-Rei não permitte que se levem alli mer­
cadorias de outra parte, salvo alguns barcos dos logares
visinhos, qiie levam algumas pequenas commodidades. T u­
do quanto alli se consome vai de fora, e todos os annos
0 Vice-Rei de Goa envia alli muitos navios carregados de
mercadorias da índia e de Portugal, os quaes voltam car­
regados de escravos, marfim, pão de ébano, e quantidade
de ouro purificado, que se apanha nos rios. E todavia se
não fora para acolher os navios de Portugal, os Porlugue-
2 6 s não farião alli assento, mas este logar lhes ó de gran.
SEGUNDA PA RTE.

de necessidade para aquelle fmi; e cada dia vão conquis­


tando terra pelo serlão dentro. De Moçambique levam-se
a Goa mui bellas esteiras, e todas as mercadorias que dalli
se extrahem são a mui vil preço.
Ser-me-bia mui dilíicil, e até impossivel discernir todas
as nações que ha desde o Cabo da Boa Esperança alé o
Golpho Arábico, ou Estreito de Meca, porque se lhes dá
diversos nomes, e todavia todas se assemelham entre si,
e cornos negros de Cabo Verde ou de Guiné. Os povos,
assim de Moçambique como da terra Grme circumvisinha,
são todos Cafres, posto que de diversos reinos e linguas;
e fazem crua guerra uns aos outros, matando-se, eaptivan- . >.
do-se, comendo-se, e vendendo-se por escravos. Não tem
fé nem religião.; e ninguém se pode Gar delles, por serem
perGdos e falsarios. Andam lotalrnente nús, sem mesmo
cobrirem as partes vergonhosas; são de espirito mui gros­
seiro e brutal; o seu trabalho ó semelhante ao das bestas;
não lhes imporia ser escravos, mas até dizem que não
nasceram para outra cousa. Os pais e mães vendem seus
Glhos. Gomem de tudo como as bestas feras. São gente
sem ambição, mas vinpiivos, desdenhosos, traidores, e má-
os. Lançam de si máo cheiro, mormente quando estam
quentes.
A cento e vinte legoas de Moçambique para o Gabo na
mesma costa está o reino de Sofala, onde os Portugue-
zes tem uma especie de fortaleza, mas de pouca conse­
quência, a qual está sob o governo do Capitão de Moçam­
bique, que alii tem um feitor e um escrivão para tratar
e commerciar com a gente da terra. Este Capitão residia
ordinariamente em Sofala, e não em Moçambique, e até o
nome do governo é de Sofala, e não de Moçambique, por
ser alli a sua antiga residência, e ser de maior honra a-
quelle titulo do que este. Diz-se mesmo que era de Sofa­
la que Salomão tirava o seu ouro para fabricar o Templo;
e ha grande apparencia de se haver tirado grande quan-
20i VIAGEM DE FRANCISCO PTRARD

lidade das minas, que são próximas da fortaleza dos Por-


lüguezes. O feitor que alli está faz grande commercio des-
lo rnelal, que envia a Moçambique; e todo o ouro que os
Porluguezes tem lhe vem do trafico com os reis e povos
daquellas terras; porque os Portuguezes não entram nem
b
pescam nos rios-, mas a gente da terra somente.
Ha ainda feitores em outros logares fora o de Sofala ,
assim para o ouro^ como para todas as outras fazendas.
Quasi a trinta legoas de Moçambique, entre Sofala e a
mesma iiba de Moçambique, ha um rio na terra de Cua-
ma, chamado por outro nome o Rio negro, onde se acha
grande quantidade de ouro purificado, limpo, e em pó, a
que chamam areia de ouro; e reputa-se este ouro de Sofa­
la e do Rio de Guama o mais puro e fino que ha em to­
do 0 mundo. R’ cousa admiravel que nas minas de Sofala
e do Monomatapa tudo é ouro fino em pó, e areia de ou­
ro, que não ó mister refinar mais. Vi alli um ramalhete de
ouro massiço purificado; da grossura de um covado, e ra-
inozo como coral, que havia sido achado neste estado na­
tural no Rio de Guama. O que mostra que o ouro está na
terra em veios, e que a agua tendo minado a terra ficá-
ra 0 ouro na sua forma natural, por ser mais duro. Esta
peça de ouro era cuidadosamente guardada, e foi envia­
da pelo navio, em que eu vim embarcado de Goa na tor­
na viagem para Portugal, de presente á Rainha de Hepanha.
Quando eu parti da índia para regressar á Europa os Gafres
visinhos de Moçambique traziam rija guerra com os Portugue­
zes; e 0 Vice-Rei que então estava em Goa, quando passara
por Moçambiíjue, havia alli deixado um seu sobrinho, e
muita gente para fazer a guerra., conquistar, e descobrir.
Este mancebo recem-chegado, querendo mostrar a sua ca-
vallaria, foi com uma armada de galeotas e outros navios
ao Rio de Guama no intento de passar mais avante do (pie
alé alli 0 tinham feito outros alguns Portuguezes; mas lá
licou e Ü G e a maior oarte dos seus, e o resto a muito cus-

Lv
SEGUNDA PARTK. 205
to pôde salvar-se. O Vice-Rei com a nova deste desastre
íicou mui penallsado, e resolveo vingar-se, Para isso ser-
vio-se do capitão e governador de Moçambique , aqnelle
mesmo que alli havia governado durante os dons cercos,
c que era um dos mais bravos e denodados fidalgos, do
que havia memória entre os Porluguezcs, amigo de Deos
e dos homens, mormente dos estrangeiros. Chamava-se D.
Estevão de Athaide. Tinha ganhado maravilhosa repu­
tação entre os sens naturaes,e entre os proprios índios,
por haver defendido os dous cercos com tão pouca gen­
te como elle linha, sem embargo de haver sido tomado de
súbito. E por isso esperava elle uma extraordinária re­
compensa del-Rei, tanto mais que os Gapitaès de Moçam­
bique que alli estarn tres annos. segundo o costume, re­
colhem ordinariamente com o cabedal de cem mil cru­
zados, pouco mais ou menos», assim das suas ordinárias
e trafico, como de seus lalrocinios e outras traças; mas
elle por razão daquelles dous cercos, em vez de tirar pro­
veito, havia despeso todo o seu proprio cabedal, e á con­
ta disso fora continuado mais um anuo no governo alera
dos tres annos ordinários,
O V ice-Rei resolveo em conselho que era mister cas­
tigar aquelles Cafres, e enviar a esse fim uma armada ,
de que deu a capilania mór a D. Estevão , como quem
era experimentado naquellas regiões, peda longa residên­
cia de quatro annos que alli fizera. O intento desta ex­
pedição era dc ir mui avante pelo Rio de Guama, depois
sair em terra, e ir conquistar as minas de ouro e prata,
que eslam entre Angola e Sofala; c os Portuguezes de
Angola tinham aviso para virem a encontrar-se com elles
por terra n’ um certo logar indicado, e dalli irem todos
juntos áquella conquista. Para este eíTeito iançou-se ban­
do em Goa a som de tambor para todos os que quizes-
sem ir á empreza, a quem se adiantou um anuo de su­
as ordiuarias, que são setenta e dous pardáos ( cada um
52
Pt

206 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

dos quaes vale trinta e dons soldos e meio ). Eu fui mui


instado para ir, porque todos os estrangeiros o podem fa­
zer; mas temí que me não deixassem lá para lhes guar­
dar as minas sem poder tocar nellas.
Parte-se de Goa para ir a Moçambique uma só vez no
anno, que é por Janeiro, Fevereiro, ou Março, mais ce­
do ou mais tarde conforme os ventos da monção, a que
é mister conformar-se. E para voltar a Goa sae-se de Mo­
çambique no mez de Agosto ou Setembro. De Goa a Mo­
çambique leva-se toda a sorte de mercadorias da Europa
e da índia, como trigo, arroz, seda, pannos de algodão,
especiarias, e outras cousas. Mas este comraercio não é
livre a todos, o Vice-Rei e o Capitão é só quem pode as­
sociar-se a quem bem lhes apraz. Este commercio é um
dos melhores e mais uteis de toda a Ín d ia , porque se
vende pelo que se quer tudo quanto alli se leva, e em
retorno tomam-se outras fazendas boas, como acima disse.
Na costa de Melinde os Portuguezes tem mais uma for­
taleza Bombaça ovi Momhaça, onde se faz grande
traúco, mas não dão grande apreço a esta fortaleza por
ser de pouca importância. Está entre Moçambique e o
estreito de Meca. Ora á entrada do estreito junto da costa
dos Abexins ou do Preste João, a vinte legoas da terra firme
onde está o cabo de Guardafui, ha uma mui grande e
bella ilha chamada Socotorá. A terra que lhe fiea mais pró­
xima é 0 Cabo de Guardafui, o qual entra muito pelo
mar, e faz de um lado o estreito de Meca, onde é o li­
mite da costa d’ Africa e de Melinde. Esta ilha está á
entrada do golpho, mas um pouco para o Abexim. Tem
quasi cincoenta legoas de circuito, é bem povoada, e tem
um rei particular, que é vassalo do Rei Xarife da A ra ­
bia. A gente é mahornetana, e mixta de Abexins e A rá­
bios; mas dizem-se Arábios, e delles tem os usos, costu­
mes, e linguagem. A terra é abundante de s e d a ’ e fruc-
tos, e 0 povo commercea em Goa, onde são bem accei-
segu Kda parte . 207
los, e mais estimados que os Arabios^propriamenle ditos,
os quaes não ousam ir lá senão com passaporte, e ainda
assim raras vezes. Estes Socotoranos vão fazer suas ve-
niagas por toda a costa da Arabia, e dalli vão a Goa e
a outras parles, com passaporte dos Portuguezes, como os
outros IndioS. Vestem ao modo dos Arábios. Levam em
retorno mercadorias da índia para a Arabia, A sua ilha
produz uma tal quantidade de lamaras que é maravilha,
e levando-as a Goa dão alli cada libra das mais bellas è
melhores do mundo por dous reaes, e nunca, por mais ca­
ras que sejam em Goa, vale a libra mais de quatro re­
aes ( a ). Também exportam muito arroz, e mui bellas
esteiras feitas de folhas de palmeira, afora grande quan­
tidade de incenso, que é tão commum em Goa, que co­
brem em elle os navios por fora, como nós cá fazemos
com 0 breu, ou pez. Também tem muita copia de aloes.
São gente mui tratavel, mas de quem se deve desconfiar,
Uma vez surgiram alli dous navios inglezes para refrescar
e fazer veniaga, sendo mui bem recebidos, e até estive­
ram alli nove ou dez dias em boa correspondência; mas
em fim o rei ideou armar-lhes uma traição, convidando-
os a um banquete, como já de outras vezes tinha feito,
para os attrahir, e por fim matar, e tomar-lhes o navio',
segundo me disseram depois os ditos Inglezes em Goa!
Mas estes tendo sido avisados não sei como, ou fosse por
simples desconfiança, ou de outra sorte, ausentaram-se a
toda a pressa. Esta ilha cria também cavallos; e é mui
estimada na índia. E todos os que delia vão commerciar
a Goa são Arábios.

(a) A valiam os um Hard fran cez em dous reaes pouro m ais ou


m en os. ^
iU b VIAGEM DE FRANCISCO PYRAUD

CAPITULO XVIII.
s>o rcÊESd d c OrzsBs:»'.. nu^ cfiejt«crípçã.o. e do caotigo de
Ulna K*rfli£eÂ|i)c <Ee O r m u z em (mOA*

j m conlimiação á extremidade da costa da India está


Ormuz, reino mui grande, afastado de Goa quinhentas le-
goas, eni altura de vinte e 1res gráos da equinocial da
handa do seplemtrião, junto da Persia, na bocca e sobre
0 estreito do mar pcrsico, na qnal bocca ha uma pequena
ilha, que não tem mais de 1res legoas de circuito, chama­
da Ormuz, e é possnida e dominada pelos Portuguezes,
que alli mandaram fabricar uma fortaleza boa e bem guar­
dada. Esta ilha é abaixo de Goa a mais rica terra , e de
maior rendimento de (juanlas possuem os Portuguezes na
Índia, porque é o caminho por onde passam muitas merca­
(i > dorias, e onde Iodas as cousas abundam, principalmente
as nquezas da Persia , afora as mercadorias da índia, que
alli são levadas cm grande quantidade para provimento da
Persia e da Syria, e de todos os paizes de Levante. Todas
as mercadorias que alli vão são mui boas, porque é a es­
cala e emporio de tudo quanto vem da Pérsia, Arabia,
Armenia, Turquia, Europa, c outros logares, donde vem
por terra cm caravanas, e ssmelbantemente alli vão ter
todas as da índia.
O que de Ormuz vem a Goa são primeiramente as pé­
rolas íinas, que se pescam naquelle estreito, e que são
sem competência as mais bellas, mais grossas, e mais lu-
zidías de todas as da índia Oriental. Pescam-se lá em gran­
de quantidade, e daqui lhes vem o nome de pérolas ori-
entaes. Vem também dalli grande quantidade de moeda
de prata, chamada Larins, que é a melhor prata do mun­
do, e os Larins se dizem de Ormuz. Extrahem-se lambem
de Ormuz sedas da Persia, assim em pannos como em
outras obras. Alem disso tapeies, que nós cá chamaoios
SEGUNDA PARTE. 209
de lurquia, e lá da Persia, e de Ormuz, que são os ma­
is bellos, e melhor acabados do mnndo. Também cavallos da
Arabia, da Persia, e de Ormuz, os mais lindos e bem ajaeza-
dos que é possivel ver, pois são todos acobertados de ouro, pra­
ta, seda, e pérolas, ao modo da Persia e de Ormuz, e á por-
tugueza; e estes cavallos são mui caros e mui estimados em
Goa. Toda a sorte de assucares, conservas, marmelladas, pas­
sas ou uvas seccas da Persia e de Ormuz. Tamaras mui
grossas e mui excellentes. Cameloes ondeados da Persia e
de Ormuz de todas as cores, c fabricados da lã daquelies
grandes carneiros, que não tem a lã encarapin liada como os
nossos; c da qual fabricam também grande quantidade de ga-
boès ou albornozes, a que os índios chamam Monsaus^ e os
Portuguezes Cambolins de Ormuz, que tem listas de quatro
dedos de largura, de differentes cores. Toda a gente se serve
delles nas viagens de marparase cobrir da chuva. E ’ um tecido
como panno de linho. Fazem também outros gahoes, capas, e
capotes de feltro, como os nossos chapeos, o que resiste mui­
to á chuva.
Quanto ás drogas, assim aromaticas como medieinacs e
outras, seria árduo especificar todas as que vem de Ormiiz,
onde tem sido levadas de fóra, e semelhanlemenle dizer to­
das as mercadorias que para alli se levam da índia c da
Europa. Basta dizer que c provérbio cominarn naquellas terras,
que se o mundo fosse um ovo, Ormuz seria a sua gemma
( a ), porque é o melhor sitio do mundo, não por sua fertili­
dade, mas por sua situação commoda ao trafico de todas as
partes do mundo, donde é mister que as mi rcadorias e fazen-
( a ) João de Barros ( Dec. 11. L iv . II. Cap. ü ) diz, descre­
vendo Ormuz=coni que a cidade he lão viçosa e abastada, que di-
« zern os moradores delia, que o Mundo he hum annel, e Orraijz
«huma ledra preciosa eugastada nelle==
E já antes de João de Barros havia escripto Gaspar Correa ( nas
Lendas da índia ) tratando o mesmo assumpto : = com o qual
« trato lao grande se fez esta cidade de Ormuz, que commuínenlc
« entre as gentes, a Índia é annel, e a pedra Ormuz-=
53
m VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

das venham passar alii e pagar tributo aos Portuguezes, que


visitam todos os navios, para ver se levam mercadorias de
contrabando, e defesas por EI-Rci.
Mas alli os Gapitaes da fortaleza fazem mui bem o seu
negocio, porque por dinheiro deixam passar tudo. Por isso
ester» capitals não aspiram na índia a outra dignidade sal­
vo á de Vice-Reis, e não occupam outro cargo. Nos très
annos daquella capitania ficam maravilhosamente ricos ,
pelos grandes direitos e imposições que lançam sobre to­
das as cousas; e para o fazer mais impunemente , dão
grandes presentes ao Vice-Rei. O capitão que governava em
Ormuz quando eu eslava em Goa, chamava-se D. Pedro
Goutinho, fidalgo porluguez de mui nobre linhagem. Seu
».. . irmão D. Diogo Goutinho havia comprado a capitania de
Gochim em vida ; e não ha na índia outra capitania em
vida senão esta, porque não dá ao capitão outro proveito
mais que seus ordenados, por razão de haver em Gochim
um Veador da Fazenda como em Goa, que c o inleden-
te geral de tudo quanto pertence a El-Rei, e muda-se de
1res em 1res annos; e assim o capitão não corre com cou-
sa alguma da fazenda real.
Mas tornando áquelle capitão de Ormnz; dizia-se então
que elle se recolhia rico no seu triennio em mais de seis­
centos mil escudos; e voltou a Poitugal na nossa armada.
Em Goa hombreava com o Vice-Rei em dadivas, liberalida­
des, e esmolas, mas não na dignidade e honra. O Vice-
Rei ( a ) André Furtado de Mendonça e elle não estavam
amigos por essa razão, e alem disso porque o Governador
André Furtado tendo-lhe pedido emprestados cincoenta mil
pardáos para serviço d’ El-Rei, promettendo pagar-lhos em
Portugal ou na índia, onde mais quizesse, elle recusou-se-
e replicando o Governador que era para aperceber uma ar­
mada contra os Malabares, respondeo então aquelle capi-
( a ) Aliás Governador.

m
SEGUNDA PARTE 21 1
tão (}ue cIIg ePíT hoiTiom para á sua ciisla aperceber urna
armada, e capilaneal-a em pessoa por serviço d’ El-Rei ,■
e não para dar o seu dinheiro a outrem. Esta foi a causa',
poirpie recolhendo-se ambos a Portugal, não se embarcarani
no mesmo navio; e o Governador André Furtado parlio pri­
meiro com tenção de chegar a Portugal antes do outro, pa­ I

ra 0 malsinar, e prevenir-lhe ináo recebimento. Quaiido
estes Governadores e capitals se recolhem para o reino, não
levam muitas mercadorias grossas, mas somente pérolas, pe­
dras preciosas, ambar-gris, almiscar, ouro, prata, e outras
cousas raras e preciosas. Quando eu parti de Goa o filho
do Vice-Rei Ruy Lourenço de Tavora, que não tinha de
idade mais de doze a treze annos, era já provido na capi­
tania de Orinuz, e ia entrar nella.
Esta ilha quanto ao mais é mui fértil, mas não tem a-
gua, e é em tudo semelhante á ilha de Mayo na costa de
Gabo Verde, porque toda é de rochedos de sal, e pedra sal­
gada, que serve de sal. Ha também alli salitro. Os reis de
Ormnz pagam tributo ao rei da Persia, c estam em paz e
amizade com os Portuguezes. São mahometanos como os
Persas, e mandam furar os olhos a seus succcssores, como
fazem os do Dealcão. O povo de Ormuz é quasi tão liCgro
como os mouros de Ethiopia, e não se assemelham em na­
da aos Persas, que são mais brancos. Quando algum ho­
mem principal morre cm Ormuz, suas mulheres são""obriga­
das a carpil-o uma vez por dia durante algumas semanas
continuas,’ e ha alli mulheres a quem se paga para carpir
os mortos.
Os habitantes^usam camisas compridas, cingindo-se com
um largo cinto de tafetá como muitos outros índios, e to­
dos os Arábios. Na cabeça trazem turbantes brancos ma-
tisados de muitas cores. Muitos d’ entre elles trazem arme­
is no nariz. Faliam a lingua da Persia; e são mui dados a
deshonestidades, e sobre tudo a peceados de ruim qualidade.
Amam a musica, e os instrumentos de musica. Suas armas
CM) Xi Qw VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

são arcos lurquescos dourados, cujas cordas são de fma


seda, c os arcos fabricados de páo mui forle e bem enver-
uisados, ou de ponta de búfalo; e as flexas são de cannas
douradas, bem feitas; e são mui destros no uso destas ar­
mas. Trazem também massas de ferro bem feitas, e íauxia-
das de ouro e prata.
Ha dez ou doze annos, pouco mais ou menos, que um
irmão do rei de Ormuz veio a Goa n um navio carregado
de grandes riquezas, para entre os Portuguezes se fazer
christão , como dizia, por razão de certa desavença que
tinha com seu irmão. Foi recebido dos Portuguezes com
todas as honras que foi possivel, e o aposentaram iT uma
das mais bellas casas da cidade. Depois de estar algum
C. I tempo ern Goa, pedio socorro aos Portuguezes para haver
0 que lhe pertencia, com promessa de que o que assim al-.
cancasse, o daria aos Portuguezes a troco de uma pensão.
Estes enviaram uma grossa armada ao reino de Ormuz, e
se concertaram com o rei para que desse a seu irmão cer­
tas terras, como de feito deu.
Mas acontcceo que o principe que estava em Goa, pro-
inettendo cada dia fazer-se christão, e não o pondo por o-
bra, commeleo medonhas impudicicias com um mancebo Portu-
guez estudante, pelo qualcrnne foi condemnado pela justiça da
inquisição de Goa a ser queimado; o que foi executado ha
quatro ou cinco annos, pouco mais ou menos, sem embar­
go deste principe antes de sua execução se converter, e ser
baptizado pelos Jesuitas; e não obstante mesmo promelter
elle cinco mil escudos para ser relevado da sentença, e a-
iem disso mandar edificar igrejas em remissão de seu pec-
cado. Todas estas promesS'as não demoveram muito aos
Porloguezes, aos quaes elle não promeltia senão o que elles
já possuiam. Alern de que elle já de antes havia sido apa­
nhado e reprehendido muitas vezes deste enorme vicio, do
C[ual havia promettido abster-se; mas lendo reincidido, rece-
beo por isso o merecido castigo. Quanto ao pobre mancebo
SEGUNDA PARTE. 213
Portuguez, foi mettido n* uma pipa, c lançado ao mar,
para evilar o escandalo. ( a )
( a ) Na \ida do Arcebispo D. F r. Aleixo de Menezes, qe.e prece­
de a iliUoria da Fiiniaçâo do Real Connento de Santa Monica da
Cidade de Goa, por F r. Agostinho de Santa Maria ( Lisboa 1G99! í
toca-se este successo pela forma seguinte:

«=Diirando este governo ( quer dizer o 'governo do Estado pelo
« Arcel)ispo, desde IGOG alé 1G09 ) veio o liei de Ormuz a Goa
« por causa de algumas duvidas, e demandas f|ue trazia com seu
« irmão sobre o reino. Assentou a sua caza naipiella cidade, e co-
« mo era muito vicioso, e de abomináveis costumes ( como são or-
« dinariamente os Mouros ) conquistou com dadivas a muitos mo-
« COS nobres, e bem parecidos, para uzar mal delies; notou-se-lhe
« esta maldade; fez-se queixa delia ao Arcebispo, que mandando
« tirar huma devassa, resultou delia mandar prender ao Rei, e me-
« tello em a cadea publica: processou-se a causa; foi sentenceado
« a ser degollailo, e que se lhe queimasse o corpo conforme as leis,
« por ser vassalo do liei de Portugal, c commetler o delito nos se-
« us Estades. Depois de sentenceado, pedio toda a Relação, e algu-
« mas das pessoas mais principaes da mesma cidade ao Arcebispo se
« não executasse a sentença; e que mandasse o Rei para Portugal,
« representando-lhe todos que seria huma grande mina para os Rc-
« is visinhos aquella execução. Não foi deste parecer o nosso Arce-
« bispo, que entendeo que antes este castigo lhes causaria maior temor.
« Mandou executar a sentença, e para isso mandou assistir com o Rei
<x Religiosos de todas as Religiões; e foi tão ditozo, que sahindo ao tea-
« tro para lhe cortarem a cabeça, á vista da fogueira se fez Cliristão,
« e pedio o santo baptismo, qnc logo se lhe deo; depois de o receber,
« alegre, ao que se entendeo, de pagar com a vida a pena dos seus
« delitos, tirou de uma cadea de ouro, e a deu ao algoz, que lhe ha-
« via de cortar a cabeça, como cortou , e depois foi queimado o
« seu corpo.
« Desta execução ( em que o tempo mostrou se havia feito nci-
la grande serviço a l>eos, e ao Rei de Portugal, porque com
ella ficarão os Reis visinhos e tributários mm temerosos, e ma­
is obedientes, do (|ue antes erão ) se levantarão grandes calum-
nias contra o nosso Arcebispo. Dizião que mandara matar atinellc
Rei só por Ibe tomar a fazenda, e assim o escreverão ao Rei de
« Portugal. (|uei\ando-se delle com menos resjieilo do que merecião
« as suas tão ajustadas acções. E o Rei com estes informes sinistros,
« e queixas mal fundadas, cscrcvco nas primeiras nãos ao Arcebis-
« po e\tranbando-lbc o que havia obrado; mandando-lbe que toda
« a fazenda do Rei de Ormuz se pozesse no seu tbesouro; e sendo
« caso que se ouvesse repartido, e feito delia algumas mercês, que
54
214 VIACKM DE FRANCISCO PTRAR®

CAPITU LO X IX .

Dos r e in o s d e C a m b a ya * Slurrate, do G rã o BSos^or, D in .


e do r e sto d a c o sta d a I n d ia e M a la b a r ; e do
R e i d c T an or* e s a a p e r b d ia .

f e n d o fallado de Ormuz; segue-se passar a Cambaya e


Surrate, doride vem o maior e principal trafico de Goa, e
é affastado della cem legoas para a banda do norte. Este
trafico é tal que duas ou très vezes no anno vem trezen­
tos ou quatrocentos navios juntos em conserva, a que cha­
mam cafilas de Gambaya, e se podem comparar com as
*■ . I caravanas de Alepo. E então em Goa toda a gente espe­
ra estas cafilas e armadas^ como acontece em Hespanha com
Il t
as das índias. E quando ellas não chegam a seus devidos
tempos, entra-se logo em desconfiança dos Hollandezes e
'■ .‘t Malabares, ou da propria gente de Gambaya, que pela ma­
ior parte das vezes as embargam quando eslam prestes a
partir, como aconteceo no anno, em que eu sahi de Goa, e
muitas outras vezes antes disso; e esteve então a armada
« quaesquer pessoas, que a tivessem recebido, a tornassem logo i
« repor. Porem como o Arcebispo era tão prudente, tão desapega-
« do, e tão zelozo da fazenda real, nada havia disposto da fazenda
« daquelle Rei, e somente havia mandado satisfazer algumas divi-
« das, que a fazenda real devia aos mesmos, que o accusarão e ca-
« lumniarão, que em virtude da ordem real repuzerão cora grande
« sentimento de seu coração ( justo castigo da sua maldade ) . No
« anuo seguinte informado melhor o Rei da verdade de todo este
« successo, e do bem que nelle se ouvera o Arcebispo, lhe escre-
« veo huma carta, em que lhe dizia fora mal informado do como
« havia procedido na execução, que tinha feito naquelle R ei; mas
« que certificado já da inteireza, com que se ouvera, se dava por
« muito bem servido, e Ibe fazia merco de seis mil cruzados pelo
<' trabalho, que havia tido= »
Confrontando esta narrativa com a do auctor, vê-se que andam
conformes na substancia do caso, posto que difiiram ern algumas
circunstancias. Yeja-se o que já fica dito a pag. 79 deste volu­
me.
SEGUNDA PARTE.
215
prestes por mais de dous mezes sem poder sair, de sorte que
já Iodos julgavam a fome immineiile. A causa dislo foi o
desconlenlamento que o rei ou bachá de Cambaya tinha com
0 Vice-Rei da Índia, por este lhe Iiaver recusado certa cou-
sa. E posto que este rei seja vassalo do Grão Mo^^or que t
é 0 senhor de todas estas terras, não deixa todavia de ser ►
alli ahsolulo em tudo o que não offende o serviço do Mo^^or.
Quando pois esta armada chega, é maravilhoso o conîen-
lamento dos mercadores e de todo o povo; mas raras ve­
zes deixam os corsários malahares de apanhar ahmma
cousa. Estes navios ou galeolas vão a remos, e sempre ter­
ra terra, e não deixam de adiantar caminho mesmo contra
0 vento; e todos tem seu signal, e a diviza de seu dono na
bandeira, poi onde os mercadores, a quem eiíes pertencem, os
conhecem de longe, e então se atiram muitas bomhardadas
da cidade, fortalezas, e palacio do Vice-Rei, defronte do qual
vem surgir, como fazem todos os outros navios, porque é alli
a alfandega, e bangaçal, e o peso real. Poucos são os habi­
tantes de Goa, assim christaõs como outros, que não tenliam
parte nesta armada, ao menos nos navios que são de Goa,
ou de outros logares dos Portuguezes; porque com esta fro­
ta vem muitos navios de Gamhaya e de Surratc.
Das mercadorias que trazem a primeira é o annil ou indi­
go, que é uma tinta azuí escura, (jue só se acha em Cam­
baya e Surrate, onde vem de todo o paiz circuíuvisinho, e se
prepaia nestas duas cidades somente. Esta droga é de gran­
de trafico, e muito procurada, mesmo pelos Inglazes e^HoI-
landezes, e é a principal causa porque elles tem alli feito­ r" :
res, para haverem esta tinta. Alem disso trazem muitas pe­
drarias, não finas, como diamantes e rubins. mas de outras
sortes, que elles sabem mui l)em obrar, e fazer délias m ui­
tas peças bonitas. Também muito cristal de rocha, ferro,
cobre, alumen de rocha, grande quantidade de trigo do me­
lhor do mundo, que colhem duas vezes no anno; e dizem
que se não foi a por causa dos Portuguezes, o não semea-
2Í6 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

rião, porque elles não são costumados a comer pão. E é por


isso (jue se come o pão em Goa tão barato; porque os mes­
tiços, c a maior parte dos Portuguezes preferem comer ar­
roz, (jue lambem se ciia cm grande abundancia em Camba­
va. donde o trazem a Goa.
* '

A fora isto trazem infinitas qulidades de legumes, como


ervilhas, favas, lenlilhas, e outras de todos os feitios e cores;
e até ervilhas da China, (jue se comem como as outras. Tam­
bém muitas drogas medicinaes, manteigas, oleos de muitas
sortes, assim para comer, como cheirosos, e para untar o
corpo, sabão branco e negro, assucares e conservas, papel,
cera, mel, muito opio ou sueco de papoula, de que elles
fazem grande trafico e veniaga entre os índios, assim mou­
*=. ros ou mahometanos, como gentios.
Mas a principal riqueza que dalli vem é em roupas de
seda, c principalmente de algodão, das quaes toda a gente
anda vestida desde o Cabo da Boa Esperança até á China,
assim homens como mulberes, desde a cabeça até aos pés.
Fazem obras e paiinos de algodão brancos de neve, e mui
delicados e finos, c lambem medianos, e mais grossos para
diversos usos. Fazem ainda outros pintados com diversas in­
venções e figuras. Em quanto ás obras de seda, fazem-nas
lambem de todos os feitios, e entre outras sobrecéos e cober­
tas de cama acolchoadas mui lindamente, e bem obradas, a
(jue chamam colchas, e semelhantemente colcboõs estofados
de algodão, pintados, e fabricados com muito artificio. Tra­
zem íambem camilhas e leitos pintados, e iacreados de todas
as cores e feitios, com outros utensilios de casad o mesmo
modo obrados. Ligas, a que chamam percintas, para fazer o
«assento de leitos, cadeiras, tamboretes, e'escabellos; e outros
semelhantes tecidos sarjados, feitos de algodão fino e bran­
co. Fazem também camas de algodão em forma de rerle, co­
mo as do Brazil, mas não servem para dormir, e sim pa­
ra sairein ao campo, quando querem, levados por quatro
homens ou dous, como iT urn palanquim ou lileira; e vão
SEGUNDA PAUTE. 2 i7
aí li muito á sua vontade, e assim o usam por toda a ín ­
dia. Fazem tapetes ao modo dos da Pérsia e de Ormuz, mas
não tão finos, nem tão caros, porque tem o pello mais
grosso e mais comprido, mas com os mesmos feitios ; e
fazem ainda outros mais pequenos de algodão em tiras
de muitas cores. Fabricam outrosim escritórios ao modo í

dos de Alemanha, marchetados de madre pérola, marfim,
ouro, prata, e pedraria, tudo feito com muito primor. F a ­
zem outros pequenos contadores, cofres, e caixinhas de
tartaruga, que elles lornarn tão clara e polida, que não
lia nada mais lindo, porque estas conchas de tartaruga
são lisas de sua natureza.
Finalm ente seria nunca acabar se quizesse fallar de to­
das as diversidades de obras, quer de ouro, prata, ferro,
aço, cobre, e outros metaes, quer de pedras finas, madei­
ras exquisitas, e outras matérias ricas e singulares, por­
que toda aquella gente he experta, e em nada ficam a-
traz dos de cá, antes pelo contrario creio que elles tem
de ordinário o espirito mais vivo que o nosso, e a mão
tão subtil; e basta-lhes ver ou ouvir uma vez alguma cou­
sa para a ficarem sabendo. Todavia sendo assim gente
fina e subtil, não são enganadores; nem fáceis de enga­
nar. E 0 que é mais estimável em suas obras, é que sen­
do bem feitas são a baixo preço. Nunca vi gênios tão
bons e tão cortezes como são estes índios, que nada tem
de barbaro e selvagem, como nós pensamos; e até não que­
rem tomar cousa alguma dos costumes e usos dos Par-
tuguezes. As obras de mecanica aprendem-nas mui bem,
sendo todos mui curiosos e desejosos de aprender, de sor­
te que os Portuguezes tomam e aprendem mais delles ,
do que elles dos Portuguezes, os quaes quando são re-
cem-chegados a Goa são mui lorpas antes de terem to­
mado 0 geito e modos dos índios. Deve-se pois ter por
certo que todas estas terras de Gambaya, Surrale, e ou­
tras do rio Indo , e do Grão M o go r, são as melhores e
55
218 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

mais ferieis de toda a India, e a s que alimentam todas as


ouïras corn o trafico e commercio de todas as cousas. A
sua gente, assim homens como m ulheres, é a mais enge­
nhosa que se pode achar. E ’ alli também que portam to­
dos os navios da índia, e vive-se lá mais commodamente
que em outra qualquer parte.
Gambaya ó um grande reino, de quem a cidade m etro ­
politana e corte do rei tem o nome ( a ) . Jaz cm altu­
ra de 23 gráos alcm da equinocial. O seu golpho tem na
hocca vinte legoas de largura, e a cidade está no fundo
do golpho. Tem rei particular, vassalo do Grão M o g o r,
mahometano de religião, ainda que a maior parle do po­
vo seja gentio. Cada um vive alli na* sua religião, o que
é causa de se ver lá gente de todas as leis e seitas. A bai­
xo de Goa não vi na índia uma cidade tão famosa e o-
pulenta como Gam baya, principalmente no commercio e
mercancia. Mas a principal nação e raça que lá ha, são
os Banianes, que são em tal numero, que se não falia se­
não nos Banianes de Gambaya, e ha-os por todos os por­
tos e logares da índia onde se commercea, e lambem os
Guzerales, que são os mahometanos de Surrate e outras
terras. Os Banianes guardam o mesmo modo de viver
que os Bramanes, salvo não terem linha. E ’ o povo o ma­
is sabedor nas sciencias, que ver-se pode, mormente nas
mathematicas e astrologia. Alem disso são homens hones­
tos, bem vestidos, e mui lhanos no seu trato. Não ha no
mundo povo mais conhecedor de pérolas e pedraria; e mes-
l'ho em Goa os ourives , lapidarios , e outros officiaes de
obras delicadas, são todos Banianes e Bram anes de Gam­
baya, e tem as suas ruas e tendas á parte.
A cidade de Gambaya é uma das maiores e mais ri­
cas da costa da índia, onde abicam os m ercadores de to­
das as parles do mundo. A lingua de todas estas terras.
I
( a ) Camhayete é o nome por que antigameute era conhecida
esla cidade, e o que os nossos auctores lhe dão.
SEGUNDA PARTE. 219

e também de todas as outras do Grão Mogor, de Bengala,


e outras circuravisiuhas, é a língua de Gazerate, que é a
principal, mais util, e mais extensa, e que se entende em
mais diversos logares que outra alguma da índia ( a )'. Os
homens e mulheres de Gambaya, Guzerate, e Surrate são
de côr um pouco morena, mas mui hellos, e bem propor­
cionados. As mulheres, que cuidam da sua conservação, são
tão bellas, brancas, formosas, e gentis,, como as destas par­
tes ( b ).
(a ) Não duvidamos de que assim fosse no tempo do auctor. Ho­
je porem a lingua mais extensa, e que se entende em toda a pe­
nínsula indiana, é a lingua Ilindostana, a que em Goa vulgarmen­
te chamam lingua moura.
(b ) DestesRanianes disse João de Harros na Dec. IV . L iv . V . Cap,
1. = « Todo este reino de Guzerate lie mui povoado de quatro ge-
« neros de gente de povo natural da mesma terra , a que chamam
« Baneanes, de duas sortes: huns ^ão Hangaçarys, que comem car-
« ne e pescado; outros Baneanes, que não comem cousa que li­
ft vesse vida; outros são Resbustos, que antigamente eram os no-
« bres daquella terra , também gentios, outros mouros chamados
« Luteas, que são naturaes da terra, convertidos novamente á sei­
ft ta de Mafamcde; outros são mouros que vieram de fóra, e conquis-
« taram a terra lançando delia os Resbustos, A gente popular hc mui
« dada ao trabalho ,” assi da agricultura, como da raccanica ; e nesta
« parte hc tão subtil e industriosa , que tem com o trato das obras
« que fazem enriquecido aquelle reino, porque mais seda e ouro fiado
« SC gasta nelle cm pannos tecidos de diversas sortes, que em toda a
« índia; e a cidade de Patam pode competir em numero de teares com
« as cidades de Florenca e Milão. De marfim, de madre pérola, con-
« chas de tartaruga, laquequa, cristal, lacre, verniz, páo preto, e a-
« marcllo, e de outras cousas que servem para leitos, cadeiras, vasos,
« e armas de toda sorte, só deste reino sabem mais obras quô de to­
ft do o restante da Índia. E daqui vem ser eile abastado de todas as
« cousas necessárias, porque as que naluralmcnte , ou artificialmente
« não tem, lhas trazem os que vem buscar as que elles tem, que são
« muitas. A gente do povo he naturalmente fraca, e cativa de condi-
« cão, por serem da linhagem Baneane, a qual guarda com grande re­
ft íigião a seita de Pythagoras, de nao comerem cousa que seja viva.
<( E são tão supersticiosos na observância deste preceito—não matarás—
<( que as immundicias que em si criam, as sacudem em parte (pie não
« sejam maltratados. Pelo que quando os Mouros querem delles haver
ft alguma cousa , trazem-lhes diante hum passaro , ou outro qualquer
« animal, ainda que seja huma cobra; e fazendo que a querem matar,
r

VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

Mas lendo fallado de Gambaya e Surrate, terras perten­


centes ao Grão Mogor, parece-rne que posso dizer alguma
cousa deste Principe, segundo o que delle por lá soube.
Este Grão Mogor, que elles chamam Akebar Pachn, isto
é, 0 grande rei soberano, é o mais poderoso rei de toda
a índia, de que eu tenlio conhecimento , e contam-se lá
cousas maravilhosas de sua grandeza e m agnificência. Faz
a sua residência em 1res cidades principalmente, das qua­
es uma se chama Delhi, outra Agrá, e a ultima, que é a
maior de todas, e onde elle mais ordinariamente mora
« ciles a compram e soltam por ncão verem sua morte, e tem que í‘a-
« zem nisto grande serviço a Deos. Tc huma carreira de formigas se
« atravessam por hum caminho por onde algum Baneane vá, ou a pé
« ou a cavallo, hade rodear por não passar por cima dellas. Por pre-
».. i. « ceito de sua religião não podem ter arma alguma cm caza; e lie a
« gente mais delgada, e engenhosa em o negocio do commercio, que
« quantas temos descoberto , tirando os Ghins, que nisso e na meca-
« nica levam vantagem a todas as nações do mundo=))
E Diogq do Couto na Dcc. IV . Liv . I. Gap. V II. accresccnta : =
« Este reino ( de Gamhaya) foi sempre povoado de dous generös de
« gentios, Guzerates, e Baneanes, todos muito supersticiosos, como em
« seu lugar se verá, quando fallarmos de toda esta gentilidade da In-
« dia. Os Guzerates todos são dados á mecanica, em que se estrema-
« ram de todos os do oriente, cujas íouçuinhas já em tempo dos Bo-
« i^anos eram muito estimadas, as quaes hiam ter a ellcs por via do
« Mar Boxo, como se ve em Arriano, auctor grego, no tratado que fez
« sobre aquella navegaçao, no qual nomea muitas e diversas sortes de
« roupas, como são, ganisc, monoche, sagmatogene, milochini, aue diz
tf serem muito finas, e de algodão; pelo que em quanto a nós parece
« que eram os canequins, bofetás, beirames, sabagagis, e outras que
tf SC acham escritas nos livros das leis dos Bomanos, das quaes coÀ ü-
tf mavam a pagar grandes direitos; e ainda hoje entre nós, com aquelíe
« remo estar destruido, pelas mudanças que nelle houve , a fineza de
tf suas roupas de muitas sortes, a delicadeza de suas obras são tidas cm
« mais períeição que todas as da índia. Os Baneanes são todos dados
« a mercancia, em que também precederam a todos por sua grande
tf habilidade, e agudeza, pela qual, e pçr outras partes que neíles se
« notam, presumem os Theologos Cbrisíaõs que descendem de algum
tf dos tribus de Israel, que são desaparecidos, e ainda mais o parecem
tf no^ grande estudo, c cuidado que todos poem em enganar os chris-
« taos, como cousa que tem por preceito. Ambas estas nações de gen-
« les p o tão íraquissimas, e aíTeminadas,, que não fazem* diííerenca a
« mulheres mais que nas barbas= »
SEGUNDA FARTE. 22 Î
coffio capital do seu império, é Lahore, que fica a mais de
cento e vinte legoas da costa de Gambaya. Pode pôr em
campo trinta mil elephaníes, oitenta mií cavailos, e duzen­
tos mil homens de pé. A sua guarda ordinaria é de dez
rnii homens, que occupam sempre o espaço de sete legoas
em volta de sua pessoa. Quando alguém vai ou para lhe
faíiar, ou para tratar seus negocios particulares, a prim ei­
ra guarda que encontra o conduz á outra, e assim vai pas­
sando de urna a outra, até chegar á cidade, onde é apre­
sentado a quem compete; e é de notar que os da primei­
ra guarda que acompanham estas pessoas até á segu n d a, t
são teÚQos de tirar um bilhete para sua descarga em co­
mo as apresentaram, e assim por diante os outros corpos
de guarda, de sorte que dest’ arte sabem quem vai e vem.
Estes soldados das guardas são pagos todas as semanas.
Eülende-se na Índia que este rei é o Grão Tarlaro, como
lhe elles chamam. Estes Taríaros são os melhores solda­
dos, e os mais fortes, poderosos, e destros, que se pode
ver. Trazem grossos arcos do ferro, que o mais forte d’
entre nós teria muita difficuldade em dobrar e estender
por pouco que fosse. As riquezas deste principe são inestima
veis, e tem diversas arrecadações, e apartadas para as pé­
rolas, ouro, prata, pedraria, e outras cousas preciosas. Sen­
do uma vez vindo um Bachá á sua corte para dar conta
do tributo que lhe trazia, esteve nove mezes inteiros á
espera de que o officiai, que tinha cargo de o receber, ti­
vesse tempo e vagar de o contar, por via do grande nu­
mero de outros vassalos chegados antes delle para cum­
prirem a mesma obrigação. E isto pode dar a conhecer
a extensão e riqueza das terras deste principe.
E ’ grande amigo dos Jesuítas, e tem sempre alguns com ’ ■1
sigo, respeitando-os e honrando-os muito. Nunca se levan­
ta para saudar pessoa algum a, que chegue ã sua presen­
ça, salvo a elles, porque quando entram no logar "onde elle
está, levanta-se, e raando-os sentar. Ha Padres Jesuitas nas
56

I
^ ^^ VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

cidadcs de Lahore, Delhi, e Agrá, mas poucos em cada


uma dellas. Tern fabricado alii igrejas, e tern liberdade dC'
prégar, e converter loda a gente, que por sua livre von­
tade 0 quizcr: e todavia fazem pouco fruclo. Donde Iodos
os Jesuilas da índia dizem que é mais facil converter
cincoenta, e ainda cem gentios ou idolatras, que um maho-
melano. O defuncto Grfio Mogor El-Rei Akcbar, que mor-
rco ha seis ou sete annos, promettia e dava esperança do
se fazer christão, e só punha uma co n d ição , que era,
liberdade para ficar com todas as suas mulheres, como
a sua lei lhe permitte, e sobre esta difficuldade morreo.
Sou filho, que lhe succedeo, expellio os Jesuilas, e mesmo
os outros christaos, que tratou duramente, mas fazia assim
»• . i. para se segurar na posse do reino, porque passados do­
ns ou tres annos, tornou a admittir os christaos junto a
si, como estavam em vida de seu pai.
Quando aquelle rei Akebar morreo, toda a índia ficou
confusa e sobresaltada com temor de rompimento de guer­
ra, porque era aquelle rei mui temido e respeitado de to­
dos os outros reis da índia; e pode-se afíirmar aíTouta-
menle que ó senhor dos mais bellos e melhores territó­
rios do mundo, o dos mais valerosos povos, como são os
Tarlaros, e outros povos mui ricos e industriosos. Em to­
da a índia não se falia do Turco, mas somente do gran­
de Akebar; e quando aquelles mesmos reis, que não são
seus vassalos, faliam delle, é baixando a cabeça em sig­
nal de acatamento. Tem mui boa correspondência e alli-
ança com o rei da Persia, e mandam um ao outro pre­
sentes e em baixadores. Dá soccorro a este rei da Persia,
ou Sophi, que lambem chamam o Grão Xá, contra o Turco.
Aquelle que agora é o grande Akebar, ou Grão Mogor,
tinha um filho, que se levantou contra clle, mas sendo
apaniiado, e levado perante elle, não o mandou matar,
mas contentou-se de o reter preso. E ’ mui amigo dos es­
trangeiros, e linha junto a si um agente ou embaixador
SEGUNDA PARTE 223
do rei de ínglatcrra. Tem este rei tal ambição, que quan­
do chegam a elle alguns embaixadores, ou outras pessoas,
Ibes pergunta quem são, e em que qualidade são havidos
junto de seus ainos, como fez aos que o Grão Turco lhe
enviou; e sendo informado de tudo isso, m enospreza-
os a elles e a seus amos, e os retem junto a si, dando-
lhes rendas, cargos, dignidades, e tudo quanto elles podem
apetecer, de sorte que os taes embaixadores largam as
suas embaixadas, e íicam lá de assento, como fez o de I ut
glaterra, segundo o que eu ouvi dizer aos ínglezes que
bavia em Goa. Este principe em todos os serviços de mesa
e camara faz-se servir das mais bellas donzellas e mullieres,
que se podem achar ( a ).
( a ) Akbar , ou hquehav ( como escrevem os nossos auctores )
não é denominação commum a todos os reis de Delhi ou Grão Mo-
goies, como o auclor parece julgar; mas o longo e glorioso reina­
do de Akl)ar, que durou 51 annos, talvez deu oceasião a que se
entende-se vulgarmente na índia que este appellido era generico
daquclles potentados.
No mais dá o auclor noticias certas das cousas do Grão Mogor.
Àkhar niorroo em 1005, cinco annos antes de Pyrard sairdeG oa.
O bom acolhimento que nelle acharam sempre os .íesuitas de Goa,
e as esperanças, que chegou a haver de sua conversão, é cousa tra­
tada nos chronisias da índia portuguezes e estrangeiros, e se po­
de ver melhor em vários documentos recentemenle juiblicados no
hasciculo S.° do nosso Archiüo Portuguez Oriental.
Pyrard loca aqui successes oceorridos nos dons reinados, de Ak-
har, e de Jeliangir, sen filho, E ' certo (jue contra este ultimo se
levantou seu íillio Cdiiisero, que vencido e preso foi perdoado pelo
pai. Tornando novamente a levantar-se, foi ainda vencido e preso;
e com quanto alcançasse a liberdade no íim de dez annos, foi as­
sassinado por seu irmão Xá Jelian, que depois succedeo ao pai.
O caso do chamado embaixador de Inglaterra , (jue se deixou
ficar no Grão Mogor, e a que o nosso auclor rapidamente allu­
de, segundo a iníormaçao que lhe deram em Goa alguns Inílezes,
e NCidadciro, e passou assim. Em 1008 chegou a Surrale um na­
vio inglez, capitão VVillíam ílawkins, para abrir alli relações c()m-
merciaes á Companhia, que então se acabava de formar.* Os Por­
tuguezes oppozeram-se a este intento, mas o Inglez vencendo to­
das as difliculdades foi a .A-grá, onde chegou a 10 de Abril de
10 0 9 , e alli obteve audiência de Jehangir, a quem apresentou u-
TÍAGEÍá DE FRANCISCO PYRARD

Apoz Cambaya, Surrate, 8 outras terras do Grão Mogor


resta íaJlar de I)íu, que é uma ilha, que antigameute de­
pendia do reino de Gambaya, e é habitada da mesma gen­
te, Banianes, Bramanes, gentios, e musulmanos. Quando
os Poríuguezes alli foram pela primeira vez, fizeram con ­
certos de paz e amizade para commerciarem com o rei H
de Cambaya, assim como tem feito com os outros, e o rei
lhes permittio que residissem naquella ilha, onde com o
5empo se tem tão bem fortificado, que ficaram senhores a b ­
» ■ solutos delia, e ora a dominam. Fabricararn abi duas forta­
lezas ( a ) , e seguraram a cidade com nma boa cerca de
i.ia carta d Ei-Bei de Inglaterra. Hawkins fallava tu rco ; e a su-i
conversação agradou muito ao rei, que o convidou a ir todos os di­
as ao. paço, e lhe perguntava pelas cousas da Europa , e das ín .
dias occidenlaes. Por íim deu positivas ordens para o Íno-Iez cpr
provjdo de tudo quanto lhe fosse necessário para as empresas ^onimeir-
ciae^, que pretendia. Jehangir rogou rauilp .instantenieníe ao ca-
piUo Hay:j^ns que ficasse na ladia até eJle ter mandado uma em-
.laixada a Europa, assegurando-lho uma renda de mais de tres mil
andaria segundo o uso annexa a"uni coni-
mando de quatrocentos, cavaHos, e ao governo de ura disíricío c-i
jas rendas elle recebesse. Hawkins acccitoii. Âiem das merc& se-
brediias foi também instado para receber uma nuilber e elíe inl- I
gou desarrozoado regeilar a oííerta, mas pôz por condição que a mu­
lher fosse christa , e de feito recebeo a uma donzella Ârnienia
com a qual se deu muUo bem, pqsío que depois em iuglalerra nãò
julgassem legal o matrimonio. Por algum tempo foi o capitão ííaw
k,ns OU.1 valido de Johaogir, c a , roda da fo rtu L „1 “ " ;
tendo elle em yao teutado restauraí-a , largou a corte do firão
Mogor a de ^ovembro de 1611, partindo não só sem obter con
irniâçao a.guma de privilégios comraerciaes , mas sem ao menos
levar uma carta a seu rei, e por cima de tudo cora o dissabor de
ouvir muitas vezes ao primeiro ministro Âbdiil Hassan que não e
la proprio da grandeza do imperador Mogor escrever a lãn n f
queno regulo. í Veia-se Hiat.nvii nf n . P®“

.ru, jLuuu, I ) idi 101 0 primeiro recebimento que tiveram no


ln( osiao os actuaes dominadores delle (Veja-seainda no Cap. s e S e ) ■-.ff. í

( a ) Duas fortalezas, diz o auctor, referindo-se sem d u v id ^ oue


m it h V f li f a r r a z a d a no segundo cerco a fortaleza pri-
*rn> ’ p^poísíoda restaurada, e com novo risco, por D João deCas
tro, epara isso foiaquellefamoso empenho das barbas na CamaradeGoa"
SEGUNDA PARTE. 225

baluartes, o rei de Gambaya poz-lhe depois cerco por duas


vezes, mas nada conseguio, e ao presente vivem em boa a-
mizade.
Esta ilha de Diu é mui próxima da terra firme na cos­
ta de Gambaya, a vinte legoas da bocca do golpho, para a
banda do norte, e a trinta legoas da grande cidade de Gam­
baya. E ’ de grande nomeada, e de muito rendimento aos
Portuguezes por causa do bom porto e enseada que tem ,
onde os navios estam em muita segurança por respeito das
fortificações que os guardam. De maneira que é alli a aco­
lheita e escala de todos os navios que vem de Gambaya ,
Surrate, Mar Roxo, Mar Pérsico, Orm uz, e outras parles
da índia; e os mercadores folgam de aportar alli, assim pe­
la bondade do porto, como pela commodidade dos manti­
mentos, que lá são baratos; e também porque temem entrar
neste golpho, donde os ventos contrários depois os impedem
de sair; mas a principal causa é porque os Portuguezes os
obrigam a ir alli para tirarem delles os direitos das al-
fandegas, e tornar o logar mais opulento. Isto rende mui­
to ao Rei de Hespanha. Vão buscar as mercadorias a Gam­
baya em grandes barcos de quinze e vinte tonelladas cada
um que vão e vem carregados. O proveito é dos corsários
malabares, porque tomam quantos querem, e só de uma vez,
quando eu alli estava, vi tomarem quarenta ou cincoenta,
0 que mui frequentemente lhes acontece.
Esta ilha de Diu é admiravelmente bella, rica, e fértil, e
a ella portam navios em mui grande num ero, o que a faz
0 mais rico e opulento logar da índia abaixo de Goa; por­
que se vive alli mui barato, e com todos os regalos e de­
licias que se podem imaginar; e até os soldados da índia alli
vão a invernar com grande prazer. Todas as nações e re­
ligiões estam alli em grande liberdade, mas ainda que os
Portuguezes são os dominantes da terra, está-se alli em ma­
ior liberdade de consciência que em Goa, onde não ha e-
xercicio de outra religião senão da christã. A terra é abun-
57
226 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

danle de gado, avcs^ e lodos os oulros comestiveis; e o res­


to vem da terra firme em grande abundancia. O clima é
mui bom o sadio, de sorte que este logar c de mui grande
importância aos Porluguezes, que p o r'via disso o guardam
bem.
Desde Cambaya e Diu vai sempre correndo a costa até
Goa, e daqui até ao Gabo Gomorim; e é propriamente a isto
que se chama a costa da índia; a qual tem de extensão de
Cambaya a Goa cem legoas, de Goa a Gocbim outras cem,
e de Gocbim ao Gomorim sessenta, de sorle que toda esta
costa tem duzentas e sessenta legoas. E cumpre saber que
nem todo o paiz que vai desde o Gabo da Doa Esperança
até á Gbina se chama propriamente ín d ia , mas só o que
fica seguido a esta costa; o resto tem cada um seu nome
particular, segundo os logares. Assim quando se está em
»■ . Goa, e se quer fazer alguma viagem, diz-se para que parte
se quer ir, se para a banda do sul, ou para a banda do
norte. A costa do norte corre desde Gambaya até Goa, e
a do sul desde Goa até ao Gabo Gomorim; mas quando se
está em outra parte, e se quer ir para algum logar que fi­
que entre Gambaya e o Gabo Gomorim, diz-se que se vai
á costa da índia.
Nesta costa desde Gambaya até Goa os Portuguezes não
tem mais que très fortalezas, que não são tão fortes, nem
tão importantes como as outras. A primeira cidade e for­
taleza, que se encontra vindo de Gambaya, é Damão, de­
pois Baçaim, e ChauL Adiante de Gbaul ba outra forta­
leza chamada Dahul, mas não é do dominio dos Portugue­
zes, e só tem alli um feitor. Toda esta costa é mui boa,
fértil, e saudavel, e delia vem grandes riquezas e commo-,
d idades a Goa, e a outras partes. Mas estas très fortale­
zas pertencentes aos Portuguezes esíam todavia á discri­
ção dos reis visinbos, que são vassalos do Grão Mogor.
Damao bastece Goa de muito arroz. De Baçaim vem to­
da a madeira para fabricação dc cazas e navios, e a ma-
SEGUNDA PA R TE . 907
^ m i t

ior parte destes se fabricam slli. De Baçaim vem iguaí-


mente pedra de cantaria, mui bella e rija, como granito; )«
e eu nunca vi columnas e pilares de pedra inteiriça tão
grandes, como neste logar. Todas as ig r e ja s , e palacios
soberbos de Goa são fabricado's desta pedra.
A cidade e fortaleza de Chaul c mui differente das ou­
tras duas, porque a terra é extremamente rica e abundan­
te de todas as mercadorias estimadas, que os mercadores
de todas as partes da índia e do oriente vem alli buscar.
Mas a principal mercadoria consiste em sedas, que as ba
alli em tal quantidade, que quasi sò ellas baslecem Goa e
toda índia, e são muito mais bellas que as da China;
e em Goa sao mais prezadas que todas as mais as sedas de
Chaul, de que se fazem mui bellas roupas, afóra grande co­
pia de roupas de algodão exquisitas que também alli ha.
Duas são as cidades de Chaul, uma dos Poriuguezes, que
é mui forte, e onde em tempos passados tiveram grande
guerra com 0 rei visinho, mas agora estam em boa paz.
Outra é da gente da terra, e nella se fazem todas aquellas
manufacturas de seda, e também muitos cofres, bocetas,
estojos, escritórios ao modo da China, mui ricos, e bem
obrados. Fazem também camas e leitos lacreados do todas
as cores. O povo é alli mui habilidoso e industrioso; 0
rei é mahometano, mui poderoso c temido, e cliama-se 0
Melique de Chaul. E ’ vassalo de Grão Mogor, como os
outros seus visinhos. Toda esta costa c mui rica e salubre,
com mui bons portos. Vive-se alli mui barato, e a maior
parte dos habitantes são gentios e idolatras. Este rei tem
grande numero de elephantes; e quando come manda vir
ante si muitas mulheres formosas, que cantam e tangem r-
inslrum entos; e outras tomam uma peça de’ lafelá desco­
res, c a rasgam em^pedaços tão pequenos que para nada
podem servir, e então os que estam presentes leva cada
um seu pedaço, e 0 po"^ em forma de condecoração. De­
pois destes prazeres, faz elrei sahir toda a gente, e íica cm
228 TIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

lal contemplação da vaidade e incerteza da vida, que so­


bre isso adormece. Todos estes reis da índia visinhos do
Mogor, e que lhe não podem resistir, não desestimam de
ser seus vassalos, e com isso se hão por mais fortes , e
são mais honrados entre os seus visinhos.
Abaixo de Chaul para a banda de Goa ha ainda uma
boa cidade e porto, chamado Dahul, onde os Portuguezes
só tem um feitor; e dalli vem muitas commodidades a Goa.
Desde Goa até ao Gomorim, que é a costa do Malabar,
ha muitas fortalezas, como Onor, que está aos quatorze grá-
os do norte, depois Barcelor a treze gráos , Mangalor a
doze, Cananor a o n z e , Cranganor a dez; depois Cochim
que está a oito gráos; e ainda depois Coiilão a sete. E to­
dos estes logares são do dominio dos Portuguezes, que tem
»•. I nelles fortalezas, e toda esta costa bastece Goa de pimenta
e especiarias. No que toca a Cochim e Galecut já fallei a-
traz assaz largamente. E quando eu parti de Goa para re­
colher á patria, um rei visinho havia posto cerco por ter­
ra a uma das fortalezas dos Portuguezes, os quaes ap res­
tavam uma armada para a soccorrer; e não sei o que de­
pois succedco.
Mas antes de concluir este capitulo direi que quando
eu eslava na Fndia houve um grande navio de um dos re­
is desta costa, que é o de Tanor, o qual navio veio carre­
gado de arroz às ilhas de Máldiva, quando em lá estava;
e lendo ido o mesmo navio ao Achem a fazer veniaga, e
travado alli amizade com, os Hollandezes , que tendo em
outro tempo surgido em Tanor, haviam já conhecimento da-
quelle rei; foi feito concerto entre o capitão e principaes
do navio, e os Hollandezes, que estes poderiam traficar li­
vremente em T a n o r, onde enviarião dous feitores com fa­
zendas, e um presente para o rei no seu navio, o que foi
acceito, e se embarcaram neste navio dous Hollandezes com
muita fazenda e o prezente, que foi bem recebido pelo rei;
mas todavia com grande deshonra sua entre todos os outros
SEGUNDA PARTE. 229
reis, senhores, e mercadores da índia; porque se ha por
li
cerlo que elle mandou dar aviso a Gochiin de como csles
dous Hollandezes alli estavam, e que se os Porluguezes os
viessem reiiuerer, elle Ihos enlregaria, como malvada e [ler-
fidamenle fez. Mas por colorar sua traição, e não se des­
confiar que elle era 0 motor desle negocio, assim por não »
perder a sua reputação entre os outros reis Naires, de cu­ ►
ja casta era, como por temor de ter guerra com os Hollan-
dezes e seus amigos; encommendou aos de Cochirn , que
está a vinte legoas dal'.i { porque Tanor é entre Gaiccut e
Gocliim ) que viessem com poder bastante, para dizer que
-fôra constrangido pela força. Em somma estes Hollandezes
foram assim entregues com sua fazenda, e levados a Gochim, t ..
onde ouvi dizer (}ue foram enforcados depois. O rei de
Calecut sempre foi inimigo daquelle rei, que segue as par­ I

tes do de Gochim. Quando os Hollandezes por alli passam, t


a desforra que tiram é dar muita surriada de artillieria nas
terras deste rei, porque não poderam mais ter outra satis-
iação.
Eis 0 que eu pude notar dos diversos paizes, assim da
costa d’ África como da índia, em quanto andei com os
Portuguezes, que tem de tudo isto mui particular conheci­
mento por razao do que alli possuem, e do trato ordinário
que fazem em todo o resto, que não é do seu dominio.

CAPITU LO X X .

M u ita» prefla» cie n a v io » porlia|;ueBe» , e o u tra» c o u ­


t a s »uceeclicla» n a lan lia csesi q a a n to o a u c to r
«e d e te v e e m ^ oa.

'HT
X endo voltado a Goa de minha viagem a Malaca e á Son­
da, alli me detive por espaço d seis mezes a passar o in­
verno. Mas antes de referir o mea embarque para Porlu-
58
230 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

gal, direi certas coiisas notáveis que succêderam na India


era quanto lá estive. Primeiramentt» faiei raenção de ura
lecontro que houve entre uns M )llaiul3zes que vinhara á ín ­
dia, e urn grande navio portuguez que vinha de Ormuz pa­
ra boa. Fazia grande calmaria, o que foi causa de os Hol-
andezes não poderem tão promptarnente entrar este navio,
que elles julgavam já ter na mão, ou pelo rnenos logo que
Messe vento, mas sobrevindo a nouie, os Portuf^^uezes lan­
çaram ao mar dous bateis, onde se salvaram, levando com-
sigo 0 mais precioso do navio, como ouro, prata em moe­
da de larins, muitas pérolas orientaes, e outras riquezas; de
sorte que quando os Holiandezes furam accommetler o na-
Mo, não acharam resistência algu i a, por(|ne todos os Por-
».. 1,
tuguezes se haviam posto em salvo, excepto um mercador
velho, a quem elles não quizeram permitiir que embarcas­
se a fazenda que lhe pertencia, e elle vendo isto, lhes disse
que pouco lhe importava morrer, porquanto perdia toda a
1, sua fazenda. E assim mais quiz esperar os Holiandezes, que
íicaram mui indignados de se ver privados de uma tão boa
preza, roubaram o resto que havia, e queimaram o navio
em que hiam muitos cavallos da Persia e Ormuz; e grande
carga de doces, como conservas, tamiuas, o passas de uvas,
que são como as nossas passas de Damasco, porfiue as ma­
is excellentes conservas de marmelo, que os Portuguezes
chamam^ marmelada, e nós costignais, vêm da Persia e Or­
muz. Não se pode avaliar quanto dam no tiveram na perda
(leste navio, que todavia não foi o unico, porque depois
dei le muitos outros foram queimados.
De outra vez um grande navio de Cocliim pertencente aos
ortuguezes, e carregada de mercadorias de Bengala, donde
vinha, toi encontrado por alguns paráos ou galeolas de cor-^
sanos Malabares, que o quizeram accom netler, e vendo que
não eiarn assaz fortes para o entrar, o deixaram, bem pe-
zarosos de lues falhar o intento; mas a fortuna delles e a
( e$( ita dos Portuguezes quiz que no caminho encontrassem
SEGUNDA PARTE. 231
um navio Holiandez, a quem salvaram; e deram aviso ao
capitão de andar naquellas paragens o tal navio porluguez,
oílerecendo-se-lhe amostrar-lhe onde elle eslava, e ajndar-lho
a tomar, o qtie o capilão Holiandez acceilou, e ao primeiro
tiro os Porluguezes se renderam. Os Malabares queriam ma­
lar tudo, mas os Holiandezes o atalharam.
Depois de dado o primeiro sacco pelos Malabares, a saber,
do fato e mercadorias leves, que vão ho convez e na cober­
ta somente, disseram que pela sua parte não pretendiam ma­
is nada do resto da carga, mas os Holiandezes lhes repli­
caram (jue elles lhes davam o terço de tudo o que ahi hou­
vesse; 0 que assim se fez; retendo comludo os Holiandezes
0 navio, do qual se fez presente ao rei de Tanor. Mas o pe-
iôr foi que deixaram sete pobres christaõs captives entre as
mãos daquelles Malabares, a quem o capitão Holiandez os
'deu para os porem em resgate, ao que elles se obrigaram,
e com tudo mataram um deJles. O capitão do navio era um
dos sete, e os Malabares trataram a todos como grande cru­
eza. Depois disto houve grande disputa entre dous cabos
principaes destes Malabares, por razão de terem os Holian­
dezes dado duas peças de artilheria do mesmo navio a um
chamado Marcare, que deve ser a maior pessoa entre a-
quella gente; mas o capitão das galés disse que isto lhe
pertencia a elle, e era devido a suas galés, que se haviam
arriscado nesta facção; o que os poz a ambos em grande
•conflicto, e para os apaziguar esperava-se todos os dias
a vinda do rei de Galecuta uma de suas terras. Por via
disto aquelles dous cabos andavam pelas ruas mui bem
acompanhados, e estavam quatro legoas afastados um do
outro, com uma cidade entre meio de ambos. Era este na­
vio 0 que eslava nas ilhas de Maldiva quando nós alli de­
mos á costa.
Um anno {)ouco mais ou menos antes que nós paríisse-
íiíos de Goa, foi um i\avio inglez ao rio de Surrale e Cam­
bava, a lazer veniaga, e ura fidalgo que nclle vinha saio
232 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

em terra, e foi da parte d’ El-Rei de Inglaterra em for­


ma de embaixador ao Grão Mogor, onde dizem qne foi
hem recebido. E por quanto os navios grandes n ã j po­
dem cliegar-se ás cidades e terra de Gamhaya e Surrate ,
onde este era vindo para tratar em anil ou indigo, que
serve para lingir os pannos de azul, quiz a sua desaventu-
ra que enviassem a terra dous bateis carregados de mer­
cadorias, com dezasele homens; mas entre a terra e o na­
vio se metteram de [>er meio muitas galeotas dos Porlu-
guezes, que foram cortar o passo áquelles dons bateis, os
quaes estavam tão longe que a artilheria do navio lhes
iião podia acudir, e assim foram tom ados, e levados a
Goa por D. Fernando da Silva de Menezes, capitão raór
da armada do norte, o qual depois embarcou no m('smo-
navio, em que eu vim a Portugal, e me fez muitas galan-
terias, como adiante direi. Estes dezasele Inglezes ficaram
presos, e dentro em pouco tempo restavam só seis ou se-
t e , porque o resto morreo. Quanto ao seu navio , levou
ancoras logo que estes homens foram apanhados, e foi-se
na derrota do Achem. Haviam partido de Inglaterra dous
navios juntamente, urn dos quaes tinha ido em direitura
ao Achem, e o outro era este que veio a Gamhaya ( a ) .
Uns seis mezes antes do meu embarque outro navio
inglez, que também vinha commerciar ás índias orienlaes,
estando na costa de Melinde perto de Mombaça enviou
0 seu balei ás ilhas de Zanzibar a sondar e recon hecera
costa; mas sendo surprendido pela gente da terra, os Por-
luguezes, que fingiam andar pescando, mataram nove ou
dez homens do batei. Vi chegar um destes presos a Goa,
0 qual tinha aspecto de pessoa principal, como de cabo
maior. Esteve miylo tempo preso, e queriam melel-o em
( n ) Este é sem duvida o navio Hector, c\\]o eapitão H-awkins
foi ao Grão Mogor por embaixador d’ El-Hei de Inülalerra, como
já se disse no Capitulo antecedente. ( Veja-se The English in Wes­
tern índia, pag. 8, e seguiutes).
SEGUNDA PARTE. 233
processo, por ter sido apanhado sondando. Dizia elle que
lhe tinham matado um seu primo a sangue frio, e depo­
is lhe haviam posto a cabeça na ponta de uma lança em
signal de trofeo. O que o pôz a elle em perigo foi ter sido
apanhado com a sonda na mão, que é uma cousa mui ar­
riscada na costa dos Poríuguezes. Em fim embarcou em u-
ma das náos da mesma viagem, em que eu vim.
Quatro mczes depois o mesmo navio inglez vindo de Sur-
rate para ir ao Achem ( a ) , estando na altura de Ghauh
sessenta legoas ao mar desta costa, que é a das terras do
Grão Mogor, que são amigos dos Inglezes, foi dar de noute
n’ uns baixos e cachopos, onde naufragou e se perdeo; mas
a gente te\e tempo de lançar ao mar os seus clous bateis,
e nelles se embarcaram perto de oitenta pessoas que eram,
com todo 0 seu dinheiio, e o mais precioso que tinham, c
ganharam a terra do Grão Mogor para as bandas de Surra-
te e Cambava, onde foram m(ii bem recebidos por meio de
muito dinheiro que deram; e tomaram a resolução de i r á
corte do Mogor, e dalli recolher por terra pela Tartaria,
0 que fizeram, tomando passaportes datjuelle rei, que tam­
bém lhes mandou dar dinheiio, cavallos a rm as, búfalos,
e bois para os levar a elles e ao seu fato, e provimentos,
e assim partiram.
D ’ entre elles houve uns quinze que não qiiizeram a-
com[)anhar os outros; e alii íicaram á espera que Deos lhe
deparasse alguma outra oceasião. flavia na corte do Mo­
gor nin Padre Jesuila, que se famiiiarisou com elles, sem
embargo de serem proteslanirs. Era o tempo em que a
grande frota, a que chamam cafila, hia de Sonate e Cambaya
para Goa. Ora estes Inglezcs tinham muito dinheiro, e a-
quelle Padre Jesuíta tanto fez que alcançou seguro para
quatro priucipaes d’ entre elles poderem ir para Goa , e alli ‘C■■
( a ) o m r s m o n a v i o diz o aiictor; mas não saix*mos a que na­
vio se refere; pois nem nos parece qne possa ser o H e c t o r , nem a-
inda 0 outro, que andava na costa de Meliude dous uiezes antes,
59
234 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

niorar e viver sem jlies ser fcilo nojo algum. Depois es­
tes Inglezes embarcaram para recolher á Europa n’ uma
das náos da nossa viagem. E quando eslavamos prestes
a partir chegou um dos outros Inglezes, que haviam toma­
do 0 caminho por terra, e nos disse que por todas as ter­
ras do Grão Mogor, que se extendiam muito ao longe, não
lhes foi feito mal algum por virtude do passaporte que
delle levavam, e que tomavam lingua cada dia mediante
hom pagamcnlo; mas que quando foram entrados mui a-
vante na grande Tartaria, lhes foi impossivel proseguir seu
caminho, poripie foram assaltados e desbaratados, de sor­
to (}ue não ficou a terça parte delles, que se vio obrigada
a retroceder para o mesmo logar donde íiaviam partido ;
e não se sabe o que depois foi feito delles. Estes Ingle­
zes, que estavam em Goa embarcaram-se depois todos corn-
nosco. ( a ).
CAPITULO X X L
do amictor c m B«oa. ^ stiu io das* iH ília s wa-
«íBieíIe tom iso. r»râ<9*ão do ancíos*, e sew Hva*a-
mcaiEo CJhic^ada d e <i«iatro náof«* e o u tr a »
coiswas* a in íc n ío .

J endo pois passado o inverno em Goa depois de reco­


lher da Sonda, quando voltou o bom tempo tomei a re­
solução de partir, e embarcar-me para regressar á patria.
( ü ) Hiilip Anrlerson na sua obra The h'nfiltsh in We.sfern India
pav- 8 e 9, extrada de Pyrard estes successes relativos aos Inííie-
zes, mas imii resumida e inexactamente. Entre outras inexaclidões
apontaremos nma. Fallando destes nitimos Inglezes, (|iie, dando ã
i costa, se salvaram nos bateis, diz Vyravá—mais ils eurent temps
ae tirer leurs deux bateaux, et de s' embarquer dedans environ qua­
tre -vingt qu' ils cíío/cní A —»
■G Anderson escreve —Z7ic crew, twen -
TY-FOUîi in nimber, having contrived to reach the shore near Surate
^''=I)e sorte que do quatre-vingt de l^yrard fez Anderson tiventy-
four, isto é , de oitenia fez vinte e quatro; com grande discredito
df‘ sun erudiCíão, e con» grave pertur!)ação da ordem e sentido da
historia que a ninguém é dado alterar.
SEGUNDA PARTE 235
0 estado dc Goa quando de Lá parti, era como sc sc-
giie.
Fazia as vezes de Vice-Uei o Arcebispo, ao qual o Vice-
ílei I). iMartim Aííonso de Castro, que morreo em Malaca.
tinha deixado [)or Governador em sua ausência, e neste car­
go governou très annos, porque aquelles ({ue nelle são pos­
tos pelos Vice-Reis, ou por eleição, são chamados simples­ ► 0
mente Governadores da índia ( a ) , como era esto, que to­
davia tinha 0 governo supremo na ausência do outro, e go­
vernou imii avisadamente. Mas os inimigos dos Porlugue-
zes, como Malabares, Hollandezes, e outros, tomaram ma­
ior atrevimento, vendo que somente tinham contra, si um
eccicsiastico, e faziam todos os dias correrias c presas ate
nas barras e portos dos Portuguezes.
Este Arcebispo D. Fr. Alcixo de Menezes não leria go­
vernado tanto tempo, se não se estivesse á espera de novo
Vice-Rei vindo de Portugal, e de feito El-Rei de llcspanha
tendo tido novas da morto do outro, enviava para llie suc­
céder ao Conde da Feira, o qual ( como eu já disse cm
outro logar ) morreo na costa de Guiné, pelo cpie houve
ajuntamento geral em Goa da nobresa, clero, e povo, para
se determinar o que se devia fazer, e loi resoluto que o A r­
cebispo sairia do cargo , e sc elegesse André Furtado de
Mendonça, o maior e mais famoso capitão, que então havia
entre elles ( b ). Estava na índia havia trinta annos, e nun-
( a ) Quando o auctor saio do Goa íiovernava o Vioe-Ilei Itiii Lou-
renço d*o Tavora. Quando elle cliegoii a Goa ó que L^ovornava o
Arccl)ispo, segundo elle mesmo já lem dito em outros locares, o
e conforme com a verdade. Veja-se a pag. 3 deste vol. a ^ola (a) •V"
e pag. 64 a Nota (h).
( ]) ) Neste paraíiiapho commette o auctor ccrlas inexactidoes ,
(jiie cumi>re corrigir.
{) \rcc!)ispo 1). F r. Meixo de Menezes ficou governando o Estado
na ansencia do Vice-ítei l). .Martin» AfToni^o de C.astro, quando na
monção de 1CÜ6 foi á empreza de Malaca, onde tnorreo. Pela niorie
deste, abertas as vias de successão, saio nomeado Governador o mes­
mo A rcebispo, que licou no governo até ser sabida em Goa a mo»--
yiAGEM DE FRANCISCO PYRAJRD

ca linha querido governos, mas somente ser capitão mór


(ias armadas; e era miii liberal para os soldados. Foi po­
is eleito ( a ), e recebido com as mesmas cerimônias, com
que 0 são os qne vem de Portugal, e começou logo a re­
formar 0 Estado, e a pôr tudo em boa ordem com provi-
so?^^s suas. Todos os reis da índia folgaram muito de que
eile fosse Governador, e lhe enviaram embaixadores e pre­
sentes. ApiesloLi muitas armadas, e fortificou muitas forta­
lezas; em sornma este fidalgo era amado de Deos, (Jo rei,
e do povo, e semelhanlemenle dos capilaès e soldados, mas
não da nobreza, por(]Uê não era ladrão nem ambicioso, e
não era affeiçoado a quem roubava a El-Rei. Era homem
solteiro. Em menos de Ires rnezes de governo aprestou mui­
tas armadas para enviar a toda a parle onde era mister, e
fez mais (jue outros em muitos an nos.
I I :'ll'
Esle Governador linha um sobiinho chamado D. Diogo
de Mendonça, qne estava nomeado capitão mór da armada, S
que se apreslava para o norte, e era um dos quatro fidal­
gos. de que em outro logar failed, que davam mezas aos
soldados pobres neste inverno. Porque de inverno traba­
lha-se para pôr as armadas de verga d’ alto no principio
do verão. Durante o inverno ern Goa, eu e os meus com­
panheiros iarnos comer como os Portugnezes a caza des­
te íldalgo , que nos convidava a isso, e fazia tenção de
nos levar comsigo á guerra, e eu pela minha parle havia
prometiido ir cm sua companhia. Mas o Yice-Rei tomou
a resolução de nos mandar meter a todos cm prisão com
alguns Inglezcs, que também alli estavam, sob pretexto de
que nós linbamos !á ido por espias, e por dar aviso de tu­
do, e estar próxima a estação, em que os Hollapdezes li-
líi (io Conde da Feira; e abertas então as novas via» de succesmo a
!â7 de Maio de 1609, saio neltas nomeado André Furtado de Men­
donça; e não por eleição. Vejam-se a pag. 6i deste voi. as Notas
{ a j e ( b ).
a ) Veja-se a Nota antecedente.
SEGUNDA PARTE. 237
nham por costume vir surgir na barra de Goa. O mesmo
íez a todos os outros estrangeiros, excepto áquclles niie e-
ram vindos á índia nas náos de Portugal. De soite que foi
imsler que os Padres Jesuilas tomassem a seu cargo o
nosso livramento, e se juniassem quatro ou cinco d’ eiilie
dies, a saber o Pai dos Ghrislaõs, chamado o Padre Gas­
par Alemão , um Padre Ingiez, chamado Thomaz Estevão
( a ),^ os Padres João de Cenes, Loreno, de Verdun, Nico-
lao Trigaut W allon, de Douay, e o bom Padre Estevão
áa Lvv2, Francez, de Rouen, os quaes todos juntos tanto
trabalharam , que alcançaram a nossa soltura, depois de
haveim os estado presos peito de tres semanas. E na ver­
dade estes bons Padres bem desejavam restiluir-nos á pa­
ina, pois lhes davamos lá tanta moléstia, e nos assistiram
sempre em tudo como a seus proprios irmaõs.
Mas 0 que principalmente nos consolou, e que causou
tristeza e pezar a todo o povo de Goa foi que no íim de
tres mezes de governo daquelle Governador, chegou novo
Vice-Rei, chamado Ruy Lourencode Tavora, que achou pres­
tes tudo quanto 0 outro se havia afadigado a pôr em or­
dem, e assim foi elle quem tirou toda a honra e proveito,
dando os cargos a quem bem lhe aprouve. Havia partido
de Portugal extraordinariamente antes da armada das náos
de viagem, e dilatou-se muito tempo a invernar em Mo­
çambique á espera de monção. 0 Estado da índia linha
mandado requerer a El-Rei de Hespanha que desse o titu­
lo de Vice-Rei a André Furtado, o que o rei de boa von­
tade outorgara, mas o outro era partido de Portugal an-

( fi ) Este Padre foi o primeiro In^Iez, que pas.coo á índia, e o


pnm iro Eiiropeo, qne redu7.io a escripto as regras grammalicaes
da Imgua canarina oii conrani. A oxistcncia e as aerões de.Me
liomem notave! estavam ignoradas, aló nós colliírirmos a*s nnrici;;s
quo ddie podemos ohter, e as piildicarmos n’ nm a rli20 f''pen;iV
qne saio no Archiúo Unioenal, jornal de Lisboa, n ° Id 4 “ võl'
Janeiro de 1881. , • w i.
GO
238 VIAGKM DE FRANCISCO PYRARD

les de «hcgarem a Hespanha estes requerimentos de Goa(a).


Dous inezes depois da chegada daqueile Vice-Rei, che­
garam a Goa quatro grandes náos de viagem, cada uma
<ío porlc de duas mil tonelladas pouco mais ou menos, de
(inc era Capitão mór Dom Manoel de Menezes. Haviam
saído de Lisboa cinco, mas não se saina o que era fei­
to da outra, por causa das tormentas, de que tinham sido a-
cossados no cal »o da Boa Esperança. Ern cada náo se tinham
embarcado ate mil pessoas, assim soldados, como marinhei­
ros, mercadores, e fidalgos; e quando chegaram a Goa não
lla^ia mais de trezentas em cada uma, e dessa mesma gen­
te metade estava enferma por causa das grandes calmas,
fadigas, e nescessidade de agua, que haviam padecido no
mar, por terem andado outo mezes sem tomar terra.
Irouxeram um alvará d’ El-Rei de Ilespanha defendendo
ao \ ice-Rei que perniittisse que qualquer Francez, Hollan-
, dez, on Inglez se detivesse na índia, com ordem de os fa­
zer embarcar para se recolherem a Europa, sob pena de
moi le, sé alguns alli houvesse, por quanto não traziam ou­
tro intento, salvo espiar e tomar conhecimento da terra. Is­
to foi causa de que nós supplicassemos aquelles bons Pa-
<hcs Jesuítas que impetrassem do \ice-R ei licença de nos
embarcarmos para recolher a Europa, e dar-nos de que vi­
ver na viagem, porque nem aos proprios Portuguezes é per-
mittido embarcar-se sem licença. O que facilmente obiive-
nios altento o expresso mandado que o Vice-Rei tivera
c EI-Rci de Hespanba para assirn o fazer. Mas era mis-
a ) ^ao nos parece que houvesse da parte d’ El-Rei muita von­
tade de nomear \ice^-Rei a André Furtado; pois se assim fosse, não se
j)0( e explicar a razao por que se não deu essa nomeação. Ninguém
melhoi (|ue El-Rei devia saber que sendo elle nomeado Governador
nas primeiras vms de siiccossão do Conde da Feira, devia estar ac-
(Ic ílnv^ln^ qnando se fez a nomeação
ni.itn íin Javora. Donde se vé claramcnte que El-Rei
rcI O ^ Vice-Rei Ruv Lou-
íimento.s, dc que folia Pyrard, em abono de André Furtado.
SEGUNDA PA RTE. 239
ter ter a licença por escripto, e assip;nada da mão do Vi-
ce-üci, e isto o o (pie não era facil de obter; e ainda me­
nos ter os mantimentos. Todavia os capiiães de Goa me
queriam levar comsigo á China e ao Japão, e outros a Ato-
çambique e Sofala; mas aquelles bons Padres nos acon-
»e laiam que regressássemos á patria, e deixássemos aquella
gen te, que por fim nos pregariam alguma má peça. De
SOI te que nos levaram ante o Vice-Rei ã nós os tres Fran-
cezcs, e elle ficou mui espantado de saber quem nus éra­
mos, dizendo (jiie nunca em tempo algum era vindo navio
Irancez as índias orientaes ; todavia sendo informado do
modo como nós tinbamos vindo, e da diuturnidade do tem­
po que alli nos baviamos dilatado, prometleo dar-nos a
licença, e mantimentos para a viagem, quando esta estives­
se prestes.
Por espaço de quatro mezes se estiveram concertando
as naos, e neste meio tempo se enviou uma armada de
leotas para dar guarda aos navios que eram idos a Cana-
nor, Mangaíor, Rarcelor, e Onor na costa do Malabar ao
sul de Goa, a trazerem pimenta para a carga das náos. Por­
que 0 rei de Cocbim não linba querido dar a sua pimenta,
salvo se Ibe enviassem la as próprias náos a recebel-a. E
cumpre observar que só o Rei de líespanba pode baver e
comprar pimenta; porque os mercadores não podem com­
prar nem uma libra, e não ousariam nav'egar um só "rão
delia; mas em todas as outras mercadorias da índia podem
os mercadores traficar livremente. Por isso El-Rei referva em
cada uma das naos^ o logar de quinbentas tonclladas de
pimenta, e o mais é para a fazenda dos mercadores o ma­
rinheiros, que não pagam frete, mas somente em Lisboa
trinta por cento. Chegados a Goa aquelles dez navios com
a pimenta, foram carregadas as náos e prestes para a tor-
na-yiagem a Portugal, das quaes foi por cabo principal e
capitão mór André Furtado de Mendonça, que havia tres
mezes que tinha saido do cargo do Governador.
f <

2 i0 VIAP.RM DE FRA?:CISCO PYRARD

ïivcm os pois a licença do Vice-Rei, mas não nos dcn


mantimentos como nos promette!a, e somente se ordena\a
no nosso passaporte aos olïiciaes do navio que nos deixas­
sem embarcar a nós, e ao nosso fato, e matalotagem, que
é O mantimento, que cada iim leva; e que nos dessein nma
ração de biscouto e agua, como se dá aos marinheiros. Por-
(pie, segundo já disse^ El-Rei dá todas estas commodidades
(joando se vai para a índia, mas na torna-viagem não dá
nada, senão aos olíiciaes de mar, a saber, biscouto para to­
da a viagem, e outra cousa não; e isto se faz de caso pen­
sado, com temor de que se se dessem mantimentos na tor­
na-viagem, como se dão á ida, a maior parte da gente se
viria embora, e assim são obrigados a ficar na índia.
*■ . 1. Em quanto pois se carregavam as náos cada um apare-
Ibava a sua malalotagem ; mas deve-se notar que quando
um Vice-Rei, Arcebispo, em outro grande senhor passade
Goa a Portugal, todos os soldados pobres, e outros folgam
com isso, porque estes grandes promettem suslentar um cer­
to numero de homens, como cem , por exemplo, mais ou
menos. Ora o Arcebispo de Goa fazia tenção de se embar­
car em uma das náos, mas depois tomou outro accoialo, e
ficou ainda ern Goa aquelle anno. Mas quando se soul'o
(|uc André Furlado devia recolher-se. cada um se foi a elle
para ser posto no seu rol, por-que elle tinha mandado rnel-
ter mantimento pai’a perto de duzentas pessoas com os seus
servidores. Desconfiava-se que este fidalgo estava empeço­
nhado, porque muito tempo havia que estava enfermo, e na
índia dão-se venenos lentos, e que duram quanto se quer.
Fizemos diligencia por nos embarcarmos na sua náo, mas
não houve meio de o obter, porque o nosso passaporte tra­
zia 0 nome de outra embarcação; e isso foi a nossa salva­
ção, posto que nesta viagem tenhamos [»adecido tudo (jiianto
se pode dizer de mal e necessidades. Ilouve (jiiatro íngíe-
zes (jue se embaicaram com elle vencendo as maiores dilïi-
culdadcs do- mundo. Porque nós estavamos repartidos a qiia-
SEGUNDA PARTE.

Iro e quatro, entre Francezes, Inglezes, eHollandezes. Mas a-


quelles pobres Inglezes ficaram bem espantados de lhes serem
lançados ferros aos pés no mesmo ponto em que foram em­
barcados na náo. E ainda todos os estrangeiros que se em­
barcai arn nas outras très náos, que sai ram antes de nós,
sendo chegados a Lisboa, foram todos mottidos em prisão;
roas nós fomos mais felizes no meio dos males que pade­
cemos. ^
A náo em que se embarcou André' Furtado charnava-se
Nossa Senhora da Penha de França, o mesmo nome que
tem uma igreja de Lisboa. Foi a primeira que carre^^ou e
ficou prestes, e saio a 26 de Dezmnbi o de 1609. Quando
elle pariio toda a gente de Goa se carpia e lastimava, por­
que ha\ia trinta annos que elle eslava na índia, para onde
viera mui moço, e onde fizera a guerra mui venturosa­
mente. Era tão amado do clero, do povo, e até dos reis
da índia, que todos diziam que nunca houvera Vice-Rei,
nem cabo que fosse tão grande capitão, tão esforçado, virtuo­
so, e amado, como tinha sido este Senhor Furtado. Quando elle
se foi a embarcar e dar á vela, era a mais bella cousa do
mundo^ ver como todos o hiam acompanhar até á barra, e
despedir-se delle em suas manchuas cobertas, e feitas em
forma de galeota, cheias de toda a sorte de musicas, refres­
cos de fructas, e presentes. E posto que todos mostrassem
grande alegria e contentamento, não deixavam todavia de
estar tristes, e magoados em seus corações de ver partir es­
te fidalgo. El Rei de Hespanha, desejoso de o ver, o man-
dára chamar ( a ). Na despedida prometteo aos moradores de
Goa voltar depois de se ter avistado com El-Rei ( b ). Mas
não acabou a sua viagem, porque morreo no mar junto
( a ) O q u e tinh a g o v e r n a d o a í n d i a nã o podia p e r m a n e c e r nella
I s l a era a razão p o r q u e A n d r é F u r t a d o se recolhia, posto q u e não
ge possa d u v i d a r q u e E l - R e i tivesse desejo d e ver o mais famoso
ca p ita o da í n d i a d a q u e lla ep o ch a.
b )_ A n d r é F u r t a d o só p o d ia v oltar á í n d i a c o m o V i c e - R e i * e
ISSO nã o e sta va e m su a m ã o p r o m e te l-o . ’
61
VIAGEM DE FRANCláCO E^YRAIID

das illias dos Açores, como ea depois da miidia volta sou­


be estando em Héspanha. >
E porque nem Iodas as Ypiatro náos sairám juntas e ao
mesmo tempo, por estarem prestes umas primeiro que as
outras, foi resoluto que se faria deteuça na ilha de Santa
Helena por espaço de vinte d ia s , e que passados eiles se
deixaria uma carta na capella para dar aviso da passagem
e partida.
A outra náo, chamada Nossa Senhora do Carmo, saio a
8 de Janeiro de 1610^ e nella se embarcou D. Manoel de
Menezes, capitão mór das quatro náos da viagem daqueile
anno de Poitògal á índia. Mas na torna viagem, e quando
0 Vice-Rei (o u governador ) recolhe a Portugal, é elle o capi­
tão mór da armada.
A terceira náo, chamada Nossa Senhora da Piedade, saio
a 15 do dito mez, e nella foi por capitão D. Pedro-Couti-
liho, que sabia de capitão de Ormuz. Na mesma náo pas*
sou a Portugal o embaixador da Persia, que da parle de
seu rei hia perante EbRei de Héspanha para o incitar a
fazer a guerra ao Turco, e levava grandes presentes.
Da quarta náo, que é a cm que nos mandaram embar­
car, fallarei no capitulo seguinte.

CAPITU LO XXII.

parSiíSia de modo €5o» ra ç ã o a E>orsIo;


ír a la m e a to do aeseíor; S>t€Efios d a In d ia .

quarta náo de viagem era chamada Nossa Senhora de


Jesus, e nesta nos embarcámos por ordem do Vice-Rei a
30 de Janeiro. Éram os tres Francezes, e um Holiandez,
que todavia caio tão gravemente enfermo, que se vio o-
brigado a voltar para terça ,e íicaf em Goa. Ifavia também
um Flamengo, que passou por grum ete, e foi recebendo
0 soido competente. O capitão desta náo chamava-se A n ­
tonio Carrozo. Embarcáraos-»de noiUe por causa da maró,
o.qiie é moi perigozo por respeito dos iadroès , que en­
tão vão esperar os pobres que se vão embarcar com seu
fato e mercadorias para os roubar e despojarem, e ainda
muitas vezes os aleijam e matam. Estivemos- quatro dias
a bordo da náo antes de dar á vela, o que só fizemos a
3 de Fevereiro.
E ’ cousa admiravel como nestas nãos, que parecem for­
talezas, vai embarcada tanta multidão de gente, e tão gran­
de quantidade de mercadorias. A nossa levava tal
sobre 0 c.jnvez, que as mercadorias chegavam a meia altu­
ra do mastro; c por fóra sobre os porla-ouvens^ que são
0 resalto de uma e outra banda, não se via senão mercado­
rias, mantimentos/ e ranchos, que são as pequenas cabanas,
em quo os- mariidieiros e outra gente se mettem, e,as co­
brem de pelles frescas do bois e vaceas; em somma, tudo
eslava tão empacliado , que apenas se podia alli dar um
passo.
No segundo dia do nosso embarque, estando ainda sur­
tos, e os officiaes da náo em terra, um chamado Manoel
Fernandes ( que é aquelle que levou uma estocada em Gca,
de que bia morrendo , quando foi ver a mancelia de um
soldado, como em outro iogar disse ( a ) ) em quanto se
trabalhava no arranjo da náo, veio dar-me uma bofetada,
dizendo qiic se nós não queríamos trabalhar, nos lança­
ria ao mar; e que nós éramos Luteranos Hollandezes. Es­
te homem linha na verdade sido maltratado pelos ílollan-
dezes, como fui informado; e depois durante a viagem rne
tratou com muita brandura e civilidade; o que creio que
foi depois de saber que nós oramos Francezes, posto que
elles nos aborrecem tanto oii mais que a qualquer outra
nação. Eu soííri com tudo aquella desaltenção com a

a ) À pag. í i l deste võliime.


244 VUGEM DE FRANCISCO PYRARD

raaior mansidão que me foi possivel, tem«^ndo que me a-


contecesse peior, ou que me mandassem desembarcar.
Quando o nosso capitão se embarcou, vieram mais de
Irinla galeotas ou manchuas ao redor da nossa náo com
musicas de toda a sorte de instrumentos; e as galeotas das
armadas davam descargas de arcabuzaria, com salvas de
artilharia, e desta forma cada um se despedia de seus a-
migos. Ao mesmo tempo que nós davamos á vela, sabia
também a aimada que h ia á conquista de Giiama entre So-
fala e Moçambique. E como se sáe da barra de Goa, a do­
ze legoas para o norte, avistam-se umas ilhas aridas, a que
pelo seu aspecto os Portuguezes chamam Ilhéos Queima’^
dos, que são rochedos mui perigosos. E’ a primeira terra
que avistam os navios que vem de Lisboa para Goa. F i­
cou delida em Goa uma das quatro náos que vieram este
»■ «
.
anno, porque tendo chegado muito tarde , não coube no
tempo concertal-a; e em logar delia tornou-se outra que
havia ficado do anno antecedente. E também não havia
pimenta para a sua c a rg a , porque mesmo as outras não
tinham para si carga sufficiente. Isto redunda em damno
dos officiaes do navio, quando chegam muito tarde, porque
c mister deterem-se lá um anuo, em que nada mais fa­
zem senão despesa; mas por isso são os primeiros que fi­
cam prestes no anno seguinte.
Na nossa náo hiam ao todo outocentas pessoas, pouco
mais ou m enos, entrando os escravos, e quasi sessenta
mulheres Portuguezas e Indianas. Hiam também dous frades
Franciscanos, sem licença do Arcebispo, nem de seu supe­
rior, e estes se haviam embarcado secretamente, e tinham
dinheiro para pagar seu psalhado e comedorias; e até creio
que em Goa mesmo o tinham pago ao mestre piloto, que
ora meeiro na sua matalotagem ou victualhas. Custa a pas­
sagem por cada pessoa trezentos pardáos, e é mister pagal-
I' os adiantados em Goa. Estes dous frades Franciscanos fo­
ram presos no Brazil quando nós alli chegámos, e enviados
SEGUNDA PARTE, 245
a P orlu p l. A ’ índia vai quem quer, mas não é assim na
volta, principalmente para os Jesuítas, e outros Religiosos, sc
não tem causa legitima.
Quando pois estivemos embarcados, ficámos mui espanta­
dos do costume que os Portuguezes usam em seus navios de
Goa a Lisboa, que é não dar á gente do navio senão uma
pequena ração de pão e agua, corno já disse; e nós julga­
vamos que teriamos uma ração ordinária como em nossos
navios; o que nos impedio de fazer o nosso provimento,
como facilmente poderamos ter feito; e de mais a mais ti­
nham promeltido dar-nos mantimentos, de sorte que nos
embarcamos desprovidos totalmente delles, alem de quatro
ou cinco dias somente. Como estivemos á vela, no dia se­
guinte nos apresentámos ao capitão e ao escrivão, e lhes
mostrámos o nosso passaporte, que já baviamos feito ver
na oceasião do embarque aos guardas do navio, que são
dous homens postos por El-Rei para tomar conta de tudo
0 que alli entra e s á e , assim de homens como de merca­
dorias. O capitão ficou admirado de saber que nós está­
vamos no seu navio; porque se pode estar alli cinco e seis
mezes sem saberem nada uns dos outros; tão grandes são
os navios, e tanta gente vai nelles; e quando o capitão sou­
be de nós que não tínhamos provimento algum de viveres,
disse-nos que baviamos sido mui mal-avisados em lermos
aquelle descuido; e ficou mui agastado contra o Vice-Rei
e Vedor da Fazenda, por ser costume quando algum se em­
barca por mandado dei Rei, dar-lhe comedorias á custa do
mesmo Rei; e chamava-lhes ladroós, porque apezar de tu­
do não deixariam de lançar em conta a El-Rei os nossos
mantimentos como se nol-os houveram dado; e que se ago­
ra nos mandasse dar pão e a g u a , seria cercear outro tan­
to a ração dos marinheiros. Todavia isto lhes fez ter tan­
ta compaixão de nós, que em lodo o discurso da viagem
foram mui meigos e cortezes comnosco, e foi defendido a
todos dizerem-nos ou fazerem-nos alguma cousa desagrada-
246 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

ve], 0 que foi bem observado; mas no que toca ao comer


padecemos tudo quanto é possível. E ainda por tao pouco
biscouto e aguaj|ue nos fallecia, quiz a má ventura que o
navio fosse tão empachado, que era impossivel havel-o pa­
ra mais de quinze dias a contar do logar onde eslavamos,
de sorte que foram obrigados a tomado emprestado de vá­
rios para juntar a nossa ração de um mez, que era pouco
mais ou menos trinta libras de biscouto, e um barril de
agua para cada um contendo doze canadas ( a ); mas o pe-
ior era que não tendo nós um logar fechado onde guar­
dássemos estes provimentos, nol-os roubavam de noute, a-
pezar da rigorosa defesa que disso havia sob pena corpo­
ral; e alem disso quando chovia, não tinhamos meio de os
pór a coberto.
»•. K- Havia ainda uma grande mortificação geral em toda a
I : náo, e era, uma especie de animaes semelhantes a bizouros,
que clles chamam baratas, e que alh ha em tal quantidade,
que atormentam e molestam grandemente a todos os que
vem da índia, mas não aos que vão; porque estes bichos
vem das Índias; e quando se matam entre as mãos, lançam
0 maior fedor do mundo. A nossa náo estava toda cheia
delles, e furam todos os cofres, pipas, e outros vasos de páo;
0 que muitas vezes é causa de se derramar o vinho e agua.
Este bicho come também o biscouto, e faz nelle grande es­
trago.
O biscouto, de que se servem, e se fabrica em Goa, é
tão alvo como o nosso paõ de cabido ( b ); e para o faze­
rem tomam o pão mais alvo, cortam-no em quatro fatias,
e 0 tornam a melter no forno por duas vezes. Este biscou­
to é muito gostoso. Tinhamos agua, em quanto a houve, tan­
ta como os marinheiros, e ofíiciaes da náo; e semelhante-
( a ) Vingt-quatre p i n t e s , diz o texto original.
( b ) Pain de chapitre , que o Dictionnaire Üniversel de Maurice
de La Chaire inierpréla assim: = Pain qu’ on distribuait autrefois,
tous les jours, omob chanoines dans quelques chapitres^
SEGUNDA PARTE

mente bisconto; mas no fim de tres mezes a ração veio a


faltar, e ás vezes a viagem dura outo e nove mezes, mais ou
menos. Tudo isto nos fez padecer muitas amofmações nesla
viagem de Goa até á Bahia de Todos os Santos, onde esti­
vemos seis mezes, ou perto delles. Algumas vezes, mas ra­
ras , algum homem bemfazejo nos convidava a comer corn
elle, ou nos mandava alguma cousa. Mas o que é mais ra­
ro é 0 beber, que poucas vezes nos davam, isto é, uma pou­
ca de agua ardente, ou vinho de passa. Quanto aos manti­
mentos 0 mal é que são todos salgados, para melhor se
conservarem; o que dá maior seccura; de sorte que a ma­
ior parte das vezes eu não ousava comer por razão da pou­
ca agua que tinha por dia, e pelos grandes calores e calmas
que fazia. Mas o que ainda torna a agua mais escassa ó que
0 principal mantimento é arroz, que é mister cozer em a-
gua, 0 que consome muita. No demais estavamos media­
namente bem, e éramos tratados com assaz de respeito; por­
que se alffum imprudente nos dissesse ou fizesse alguma
cousa rnal fe ita , logo sem detença receberia o competente
castigo.
Logo pois que começámos a navegar, o capitão tomou o
nome de todos os que estavam na náo; e depois ordenou
cabos da guarda, assim de dia como de noute. E de dia
principalmente para atalhar que ninguém traga fogo pelo
navio, 0 que é estreitamente defeso, com temor de^algum
inconveniente; porque no demais a justiça é alli tão rigo-
rosamente observada pelo capitão, que elle pode sem appel-
iação mandar dar tratos; e em causa civel condemnar em
cem cruzados definitivamente.
24-8 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

CAPITU LO X X ÍÍL

Toa'Ma-viftgesaa cSo asacior ; a v is ía -M e a IBlaa <le M io g o


K o d r ã g í a e « ; t o r s K i e a i í a I io r B 'i w e S ; p â i’^iSowof« a c c B í l e c s -
Ses? T e r r a d e T^'aSai; C îîîj îî c5a s î«a E sp e-
fi^aaaea? ie flîis îc s la d e s . e eaSstiasi.

^ o v e o u dez dias depois de sairmos do porto avistámos


tres navios á vela, qiie vinliam das partes da Arabia, c hi-
am para as ilhas de Maldiva, porque eslavamos então na
altura da cabeça destas ilhas, que é proximamente a oito
gráos da linha para a banda do norte. Os Portuguezes á
vista daquelles navios tomaram pavor julgando que fossem
»,, i; Hollandezes, o que tainbem a nós mesmos dava grande aj)-
prehensão, por estarmos entro aquella gente, da qual uns
diziam que se fossem Hollandezes era mister lançar-nos ao
mar, outros porem com mais piedade diziam que a culpa
não era nossa. Os que haviam sido maltratados pelos Hol­
landezes, e lhes tinham passado pelas maõs, como a maior
parte tinha acontecido, eram os mais fogosos contra nós, c
difficilmente se podiam applacar: mas por fim não soube­
mos que navios eram aquelles; e eu por mim julguei que
eram das ilhas de M aldiva, e vinham da Arabia, ou eram
Arábios que hiam á Sonda, Sumatra, e Java, com o que os
Portuguezes muito folgaram, e nós também.
A 15 de Março de 16 10 avistámos a ilha de Diogo Ro­
drigues, que está em altura de vinte gráos da linha equino­
cial da banda do pólo antarctico, e quasi quarenta legoas a-
partada da ilha de S. Lourenço para a banda de leste. A-
vistámol-a ao romper do dia. E ’ deserta. A ’ vista desta i-
iha tivemos uma mui forte e aspera tormenta, tal que ape­
nas podiamos levar as nossas velas inferiores; o vento era
mui contrario, e nos impeilia com toda a força para a ilha,
de tal sorte que quasi que a não podiamos dobrar; o que
nos deu grande receio de alli morrermos, segundo parecia.
SIÍÜ Ü N D A PA IiTR . 9r.q

visto serem os mares tão grossos e tormentosos, c o vento


lao impetuoso e contrario, e nós tão proximos de uma ilha
desconhecida, para onde o vento nos impcllia. A maior par­
le dos ouvens, assim do mastro grande como do de davanle
ou de mezcna„ começavam a rom per-se; o que nos punha
cm grande susto, porque estes ouvens são os ligamentos e
prisões, que seguiam e sustem o mastro em pé, e sem isso
não poderia o mastro permanecer um a hora em pé c firme.
Passada a tempestade, que durou o espaço de cinco dias
fiiriosamerde, o nosso navio ficou todo aberto; e temendo
que ao j)assar a Terra de Natal, e o Cabo da Boa Espe­
rança sobreviessem outras tormentas, como ordinariameulc
costuma acontecer nestes logares, o mestre do navio man­
dou metter em baixo Ioda a arliiheria, e também o batei,
e amarrar o navio com cabos por très parles, a saber, pela
popa, pelo meio, e pela proa. Estes cabos abarcam o na­
vio lodo ao redor p(da banda de fora c por baixo da qui-
ilia, e vem alar-se depois de duas ou 1res voltas mui bom
ligadas e apertadas com os cabrestantes, de sorte que islo
segura e aperta o navio; porque estes cabos são os a que
se a m a i T a m . as anclioras, con] que o navio se segura no
surgidouro.
Alguns dias depois desta tormenta houve uma dama mes­
tiça da índia, muilicr de um fidalgo Portuguez, mui bella,
e de idade de quasi trinta annos, que foi aceometida de
dores de parto , e morreo com a criança, e não liveiam
outra sepultura senão o mar Depois disto vi outro piedo­
so espectáculo de um dos grumeles, que eslarn de ordiná­
rio em cima da gavea do niasiro grande, quando fazia gran­
de calma, e que o navio balançava de nm lado para o ou­
tro , dc tal sorte que parecia que se bia virar de baixo
para cima, tão grossas eram as vagas, posto que não fizes­
se vento algum; porque aqnelle [)obrc moço caio inespera-
damenle dc cima abaixo no couvez, onde ficou todo parti­
do; e morreo no mesmo instante.
03
-250 VIAGKM DE FRANCISCO PYRARD

Finalm eníe ao passar a Terra de Natí i não tivemos tor­


menta alguma, rnas S(3 no Gabo da iloa Esperança, que a-
vislámos a 8 de Abril de IGíO , Quando estivemos na al­ Ï
tura do Cabo fazia o maior frio do mundo, corn m uitas
neves, g(dos, e nevoeiros espessos, que nos deram insiippor-
lavel fadiga, tanto mais que tendo nós permanecido tão lar­
go tempo na índia, já quasi que não sabíamos o que era
frio, e demais a mais não tínhamos outro vestido senão de
algodão ou de seda mui leve, sern outra cousa alguma que
nos podesse agasalhar do frio ou da chuva, e das ondas,
que lão continuadamente, e em tão grande abiindancia nos
vinham bater nas costas, aue 1 muitas vezes bnuei tão mo-
j. ^ ^

lhado como se tivesse saielo do fundo do mar; e assim ti­


nha do me enxugar com toda esta írieva no corpo; porque
não tinha logar algum para mo pôr a coberto. Mas por ou­
tra parle a([ueciamos bem a dai' á bomba, e deitar a agua
fora do navio, e a fazer outros ser\iços. Aqui padecemos
tambem menos sede por causa do grande frio , e porque a
agua ao beber-se gelava quasi a bocea e dentes; o que nos
fez durar mais a nossa agua: mas ser-me-liia impossivei
contar todos os agastamentos e misérias que padecemos ao
passar este Ca!>o. Entre outras foi que um dia estando nós
já. proximos delle, tivemos uma tormenta mui aspera e pe­
nosa, qnc nos parlio a nossa verga grande de meio a meio,
0 que nos deu muita lida e íraí) 3 Ího. tanto mais que os Por-
tiiguezes não andam providos de apparelho, materiaes^ e de
boa enxarcia c liamos, isto c , cordoalha, e outros utensílios,
como os Erancczcs c líoliandezes, de sorte que quando lhes
acontece algum accidente em seus navios, ficam bem em­
baraçados,
Daraiile esta tormenta sobreveio ainda uma grande dis­
puta e builia, porque lendo-se tomado a resolução de lançar
ao mar todas as caixas, fato, e mercadorias que estavam
de cima, para alliviar o navio, e nos salvar do perigo, co­
meçou-se pelas que estavam mais próximas, e primeiras que
SKGUîN’DA PARTR. 2 51
se acharam á n)ao, o que oxcitoii um toi ni inor e tamulto
fie uns coisti a os oiili os, que passo ram ás pancadas, e gol­
pes de espada, a ponio de que o capiiao sc vio obrigado a
inandar prender iiiuitos, e iancar-ihes ierros aos pés. Esta
tormenta duiou perio de dons mezes inteiros , que tanlo
gastámos a dobrar o Caho, corn miiiios infoi’liimos e incon­
venientes que nos acontecei am. Se desde a hora em que o
avistámos, nos tivesse continuado o vento favoravel por se­
is horas somente, tèÍ-o-hiamos dobrado felizmente; mas es­
tando tão perto delle, quiz a má ventura que tivéssemos
de recuar muito para longe; c assim ficámos alé ao ul­
timo de Ma?o seguinte sem poder passar por causa destas
grandes tormentas, e dos ventos contrários, que durante
aquelle tempo alii .encontrámos.
A causa deste iiiconveinentc foi partirmos de Goa mui­
to tarde, pois o costume ó sair sempre no fim de Dezem­
bro, ou principio de Janeiro. E é certo que corremos gran­
de perigo i>or causa da faria das tormenías, que não ha­
via memória de serem tão grandes, e de tão longa dura-,
ção, como dizia um dos nossos pilotos, que havia feito mui­
tas vezes aquella viagem. A nossa verga grande partio-se
ao meio por duas vezes, as veias romperam-se também ma­
is de trinta vezes, caíram ao mar e affogaram-se très ma­
rinheiros e doiis escravos. O navio foi de tal sorte açouta-
do do mar e ficou tão aberto, que no resto da viagem não
cessaram de trabalhar dia e noiite as duas bombas ; e a-
inda assim mal se podia despejar a agua que nelle entra­
va em lal abundancia, que não era bastante a esjotal-a to­
da a gente do navio, que nisso trabalhava, entraíido o ca­
pitão. Nesta extremidade, que era sem rem eJio, o capitão
com os fidalgos e mercadores poseram o negocio em con­
selho, e resolveram voltar para a índia, vendo que não po­
díamos passar o Cabo; accresccndo também (pic ó defeso
pelo Rei de Hespanha dilatarem-se nestes mares na dili­
gencia de dobrar o Gabo alem de 20 do mez de Maio, Mas
252 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

OS meslTGvS pilotos, m arinheiros, e outra gente do navio


não foram deste parecer, dizendo que o nosso navio não
estava em estado de voltar para traz, e tornar a passar por
aquella Terra de Natal,, onde as tormentas são continuadas;
e segando este ultimo aceordo determinámos esperar, e fi-
car pairando á mercê de Deos. Accresce que é impossivel
aos n a v i o s poi tuguezes, por sua grandeza, poder portar e
sui’gir no Cabo da Boa Esperança, embora os Francezes
e os ílollandczes o possam iazer, por navegarem em navi­
os mais pequenos.
Succedeo-nos ainda outro mui grande inconveniente, e
foi (jiie estando perlo-^de terra sobreveio calmaria, de sor­
te que as velas de nada serviam, nem podiam ajudar o
navio a amarar-se. O mar impellia-nos para íerra, e nos
metteo dentro de uma grande enseada, onde chegámos a
$ - I
estar tão perto de terra, que julgavamos não poder já dalli
sair, nem dobrar as. duas pontas da enseada, e assim não
tinbamos outra, esperança senão na misericórdia divina, e
na compaixão da gente da terra. Cada um de nós se apa­
relhava já para pegar em suas armas, c outras cousas na
tenção de ver se ganhava terra no caso de naufragio, o que
os harharos, naturaes do logar,. esperavam na piaia com
alvoroço, e ci‘Cio que toda a composição, que d elles podía­
mos esperar, redundaria em sermos comidos por elles, se­
gundo as contas que lhe íaziam, a julgarmos j)or seus mo­
dos ; e estava na praia tal multidão delles que mais não
podia ser. Mas neste meio tempo aprouve á bondade divi­
na salvar-nos deste perigo por meio de um pouco de vento
íeiueulio que se levantou, e que nos poz fóra da enseada,
e assim nos salvou a nos e ao nosso navio.
A passagem deste Cabo é arriscada e peiigosa por razão
dos ventos, que ordinariamente alíi combatem os navios; e
pelas giandes e altas montanhas do roclia viva , que alli
se „vem, com grandes'pontas o despenliadeiros, que pare­
cem locar as nuvens com os topes.
SEGUNDA PARTE. 233
Q primeiro signal deste Cabo quando se vem da Jndra.,
é vcrem-se no mar a trinta ou cpiarenla Icgoas 'distante ija
terra, a maior miiilidão do lobos marinhos, que é possí­
vel, os quacs. marcham, em bandos. Vò-*se lambem rnaiide.
copia dc passaj-os brancos como cisnes, com a jXínla do-
rabo das azas negra, c por isso os Poriuguezes lhes cha­
mam Mangas (k vellndo. Estes fobos mariiilios c pass.à-
ros são como scntinellas , qnc Deos alli quiz pôr , conm
ontrosim as:trombas ou juncos, de que já cm ourro leúen-
tallei. Islo dá grande consolação aos- podi-os- naveí-anlf^s\
ponpie estes aniinaes niiiica. deixam de vir saiular'^os na­
vios., E quando se vêm , toma-se logo a sonda . e nunca
mais se lar^a em quunto se está. á vista do dito Calio: Onan-
do os marinheiros Porliiguezes se sentem proxirnos delle,.
correm, logo- a appárélbar as suas linhas para a* pesca; noi*-
(jiie é impossivcl vei’ mais peixe do que ba nesíG' mar, dc
todas as (|ualidades, e exceilenle; e entre outras lia u.m;i
especioj a que cliamam. caru/io, para cuja pesca lançam su­
as liiilias ás. vezes até onlenia e œm braças de pirdnndiihi-
de ; e destes apanham-se alguns que qnalro homens dübcub
tosamente podem carregar. Este Cabo da Boa Es{.ieranca é
chamado o Leão^do^^nar. por ser- c&te aqui mui furioso'
Ei>te Cabo, pelo menos o das Agulluis, que sáo m ais'ao
mar, está a Iriiiia e cinco gráos da linha equinocial da irui-
da do-polo anlractico; c a outra ponta, jiropiiamenti? cha­
mada o Gaboula, Boa Esperança está a. trinta e qualro 'i*
meio. O povo que habita esta. costa, até Moçambique, c
mui brutal- e grosseiro, bronco quanto- pode seiv e sem es­
perteza alguma, negro, e disforme, scnucaboHos’ nem outro
algum peilo na cabeça, e os olhos sempi-e ramelosos. Co-
brem as partes- vergonhosas de pelles de aiiimaes com' todo
0 peilo; depois eobreim as costas com uma pelle inteira
que prendem adiante ao pescoço, deixando os rabos dos
anirnaes- pendentes, de sorte que de longe se diria que el­
les tem rabo. As mulheres tem. os peitos mui cmnpridos
K• ^

VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

e vcstojo-sc do mesmo modo. Coincm carne liumann, e a-


nimax‘s m is, entrando intestinos e tripas, sem as lavarem,
como faliam os caè,s. Os homens não lem outras armas se­
não certos <Jardos agudos com ponta de terro. xVIem disso
vivem sem lei e sem religião, como heslas feras.
ifm íim depois <le havermos padecido muitas fadigas no
meio de tantas tormentas, jirouve a Deos enviar-nos nm
tão hom vento, que no ultimo dia de Maio de IGIO dobrá­
mos felizniente o Cabo, e no seguinte dia quando nos cor-
tiíicámos de o ler passa<lo, entrámos em esperança de ir a
\ tngal, e não retroceder para a Índia. Porque quando se
^olía da índia nunca chegam a ter esta esperança sem ha­
ver [lassado o Cabo, e antes disso estam sempre arrisca­
dos a i'eiroced(’r ; e semeiliantemente acontece aos que vão
. t* de Portugal á índia. Naqnelle dia pois em signal de regosi-
jo caniou-se uma missa secea com Te Beam cm acção de
$ i
giaras a Deos. C no domingo seguinte representou-sc uma
iiiiii bonita comedia, (|uc se linha ensaiado e aprendido
dunmte a \iagem de Goa até ao Cabo. para ser represen­
tada (jiuuid.0 0 houvéssemos passado, O que foi cousa qiia-
hi ini|iüssivcl e não esperada, porque nunca os navios
jKissam 0 Cal»() tão tardo nesta estação quando voltam da
iiidia; e se não viesse aquellc bom vento, leriamos rnor-
.‘dli sem fsp(‘ranca alguma de salvação , poiapie nos
era impossível retroceder para a índia, por estar o n.iss > na-
>10 aiiei io. e ser necessário passar a Terra de Nalal.
Tres dias depois, (}.iic foi aos 5 de Junho , juiilou-se con­
selho jiara saber se se devia ir em direitura a P ortugal,
se iia\ia provimento suflkienie de agua para o tentar, o
se 0 navio jiodia aguentar: e íinalmentc depois do muitos
pareceres foi resoluto que se arribasse á üba de Santa fle-
Jena para refrescaig e concertar o navio, por quanto era es­
ta ilha a terra mais próxim a, havia vento á pôpa nessa
dierrota. e apezar de ser afastada do Cabo seisccnlas lego-
as, iicava no caminho. Tomada esta resolução, e lemeudo
SEGUNDA P A R T E .

nós achar ílollandczcs nafjuella ilha, rcpoz-se cm cima to­


da a arliliicria que sc havia ineltido em haix.o, c armou-so
0 navio. ííavia ao tudo quarciila peças grossas de bronze.

C A PÍT U LO X X IV .

l ll ia de M elo n a i Nua dc^crlpção; e o «ftae alSi


no« SM ccedeo*

A 25 do mesmo mcz dc Junho chegámos á ilha de San­


ta ílelena, onde não achámos oulro algum navio; senão
somente na capeila cartas das outras tres náos, que tinham
passado juntas. Ac.hámos lambem cartas, que deixára uma
caravella enviada por El-Uei de Hespanha para saber no­
vas nossas, e que tendo perdido a esperança da nossa che­
gada alli, SC havia recoíliido.
Tendo desembarcado, fiquei mui espantado de ver a ca-
pella no estado em (pie eslava, porque quando eu alii pas­
sara para a ín d ia, como atraz disse, esta capeila estava
mui bem ornada de um I)om altar, e de beilas imagciis o
painéis, e no alto do fronlispicio tinha uma Leila e gran­
ule cruz de pedra de cantaria, branca como mármore, e bem
fabricada, que os Portuguezes haviam trazido dc Portugal;
mas ao tempo da minha torna-viagem tudo havia sido feito
pedaços pelos líollandezes, que alli passam ordinariamente,
em desforra dc os Portuguezes tirarem todos os painéis, i-
magens, bilhetes, c escriptos que os ditos líollandezes al­
li tinham deixado, dc sorte que uma vez deixai'am um bi­
lhete que dizia aos Portuguezes „ deixai as nossas imagens
e painéis, que nós deixaremos os vossos,, mas não o !i-
zeram assim; antes em revindicta uns dos outros tudo tem
sido q iic te d o e destruido, e nem ainda tem poupado a ma­
ior parte das arvt^fres. Nós fizemos reformar de novo o al»
U r, c pór-lhe paramentos; e depois tendo feito aguada, to-
TIAGEM DE FRANCISCO PYExARD

mado refrescos, o concerlado o nosso navio o mcllior qne


1103 foi possível, no fim de nove dias ( a ), nos rcembarcá--
rnos para levar anehoras e dar á vela.
]\ías antes de sair de Santa Helena, direi o qiie pude sa-
líer mais parliculàrmenle desta ilha na minha volta; porque
na nossa primeira passagem não tivemos tanta vapi% nem
curiosidade de a observar tão hem. Esta ilha esta , como
já disse, a seiscentas legoa-s icmco mais ou menos do Êaho
da Hoa Esperança para o occidente, além da equinocial qua­
si dezascis gráos. E ’ mui dilíicd de achar quando se vai jia-
ra a índia, c- muitos a tem buscado em vão, porque tpiein
vai para O' oriente não segue esta denota, mas só na tor­
na-viagem, de soi'te que foi uma grande casualidade haver-
mol-a nós enconlrado na nossa primeira passagem, e disso
se admiravam muito Porluguezes e Hollaudezes. E.sse eucon-
liO foi também, contra a opinião e pensammiío do nosso
piloto, porque estando nós mesmo a par deda, o nosso ca-
]fi(ãü-mór lhe- perguntou se elle já alli havia passado al-
uma vez, c tendo respondido que sim, lhe perguntou enlao.
a que por lo se devia ir surgir; mas não sabendo elle onde
eslava, acertou de haver alii um moço llolíandez, seu cria­
do, que soube dar melhor razão deste negocio, por^ ha\er
alii do feito estado, k lo póz então ao nosso capitao m(ir
em grande desconfiança de ([iic fòra enganado por este p i­
loto, como depois na verdade mui, hem se descobria (|ue
assim fora, E todavia aquelle jiiloto gaidiava lodos os Ine­
zes cem escudos de ordenado,, mesa franca com o capitão,
e lodos os dias a sua rnação de uma canada de vinho, ( b.),
e pãcTj com seu creado qiie recebia paga de marinheiro, e
era também sustentado, alem do que elle proprio ja havia

( a V Â s s i m csíá no origina), mas deve ler-se dezanove dias, que


a conta que resulta das datas apontadas pelo auctor.
( b ) Une (fuarte de vín, escreve Pyrard. Ora uma quarte continua
las pintes, o cada uma destas equivale a meia= canada porlugue:$a;
(lua
pelo (jue a quarta c igual a t<wa canada.
SEGUiSTDA PART 1Î . Q r. 7
cu 5t:ul(v a sitstoiiiar (lurantc sois 011 sole m-zos, jimlarnohi-.
com siia nmlher, o.t , S. Maló. 0 que mosira 00m
m a>.soiiardn sc devem escolher pilotos compelerUes V aw
Hi!ia inij)ortanfc viagoni.
yid.'i loi naado á iilia (le Santa ííeíena. O' porto ó muj
•oin, c podeiii cfiegar-sc os navios moi junto (ic terra, e a^
lo as naos. ['em esla iliw cinco ou seis legoas de cirnn-
0-, os seus ares sao mui itons, as aguas imù sadias c
descem das moatamias muitos regatos almndaiUes mie 'vão
en .UI no niar. ^o alto da moiilaiiiia lia grande (fiiaiilid.nli'
de arvores do eliama e do páo rosa. Ila alJi nmiías esiieci-
os de aiunwes, como cabra.s, javalLs, perdizes hraiica,s e vou
mellias pombas lwavo.s, galiuiias da índia, piiaisoès, c ou-
103. Us truclos sao l,m,oVs. ^ em grande
ifuaiUidade. Ao redor do Ioda a rllia pesca-.se nuiilo nei.ve
0 eiUrc oalros uma espocic, ij.uc os Poriuguezes chamara
oioídla, que e da torma dos nossos sargos,. o iitial se sal
ga esecea para servir nas viagens. Ma Nambeiú alnmdaii-
cia do enguias do mar, c outras muitas especies.
Uuando os Portugnezes Glicgam a esta ilha, aprestam sii-
. 7 liiilu , para fazerem uma pesca geral, e em ipianio iiih
vao pescar, vao. outros á caça nas montanhas, e assim nin.
-.hcs f.dla carne nem pei.vc-., A carne porem- não- se noile
conservar longo tempo no-sal, mas c mister coiiiel-a iiioiiin-
lam enle, e ainda guardal-a das moscas , porqne de oiili a
sorte fica logo toda coberta de bichos. E porque ivís nãò
sabíamos isto^. tendo deixado postas de carne, para nos ser
vir-mos délias no fim. de uma ou duas horas, fomos' acíial-
<is totalmcntc cíieias de bichos. Quanto ao iieixe esse "uar
da-se bem no saL. ’ ®
Toda a ilha é rodeaila de grandes roclicdbs;:-em-irue o-
mar bate furiosamento sem cessar; e ba concavidades na.s
(jiiaes entrando, a agua assim com impeto,. repudia is ve
zespara 0 ar, e dura este repudio por longo tem po' d o ii'
) de procode que com esta detenç.a, e com 0 bater do sol ■
65
I .

258 yiAGKM r»G FRANCISCO TYRARD

coiiiliiuaclo, se forma sal mni alvo e bom ; o qual poslo


(|uc iiiio soja cm graiule qiiaiitidade, 6 lodavia baslaiUe pa-
la 0 uso oidinario. ,
Esla ilba c exlrcmaaienle pcqiicna, mas ile mm graiulc
commodidade para a viagcra das Indias Oiicnlacs, e sc-
I'ia mni diillcil, quasi impossível ipesmo, fazel-a, se iiao
lionvessc abi a dita illia. E cii creio que Decs a quiz por
jicslc iogar, quo c quasi a mcio caminho, c no meio do
grande occano , para dar conbccimenlo da fc a todos a-
-(im'llcs Tiovos indios, e mostrarmos a nos as cousas admi-
lavcis, qiie so vêm naqucilas regiors tão remotas. E por-
i^so a providencia lhe deu a melhor tcnqieratura de ar, de
ierra, e de agua. que c possivel; ([ue segundo ine persuado se
líão oodeíá achar outra tal no resto do mundo, attenta a sua
]!C([ueuez. Antes de os Porluguezcs irem á índia, não ba-
I • •J
Aia nesta ilha gado algum, nem fruclos, mas somente al-
enjnas aguas
#7 ‘O
doces, e as arvores que a terra pioduz na-
iuralmente..
A ilha de si é mui secea, mas chove alli frequentemen­
te/ As montanhas são mui altas, e mui diíTiceis de su­
bir. c se não fossem as cahras e os porcos, que alii ha
f‘in cr: nde numero, e (juc pizam c trilham os caminhos,
seria, jroj ossivel s^íbii-as, c a-inda mais oesem-as. ^ i ul!i
muitas vezes iiomens tão em m aranliados, que bradavam
po!- soecorro, c se se llu-s não aceudisse , não pedenão
ter daili sa-ido. Eaz iiin calor excessivo nos vaíles , e no
alto das .monlanbas um írio espantoso p-or causa dos cen­
tos frios; de sorte que tinbamos necessidade de pôr-nos
(.'.brigados do vento, e acccndcr fogo, ainda que então li-
•vessernos o .sol (|ii:)si a piiimo sobre nos..' A maior }>arte
das vezes é inisder subir de gatinhas, e descer dc eostas
t'seorrogando.; e.sem esta diíílculdade não permaneeeria al­
ii gado rdgirm, porque lodos os navios quando ■ passairp to-
.mariam tanto iiuanto lhes aprouvessè; e agora epie ordina-
iiam eüle aiü vão também os líoliandezes, estes extingnin-
SEGUKDA PARTE

am iiido, (le sortc quo lioje s 6 por acaso se aclia alii al­
gum friiclo, c a maior parle das arvores cslam quebradas
(HI corladas; c os iiavios ao passar levam os fruclos, ain­
da que cslejam cm Jlor, e dizem que antes querem apanlial-
os assim, que deixal-os aos liollandezes c Inglezcs, c es­
tes aos Porlugiiczcs.
Assim csla terra está inteiramente miidada desde que al­
ii vão ouli íis gentes aiem dos Porliiguezes. Era cousa Lei­
la e admiravel quando al)i chegámos no anno do IGOi cm
com})aração do quo achei á torna-viagem no anno de IGIO,
]H)r causa da ruina, assim da capella c da cruz, como das
arvores e cazinhas, de sortc que agora não se pode con­
tar com os fruclos da terra. Tinha eu visto que havia li­
ma quantidade prodigiosa do mostarda; agora quasi nenhu­
ma.
Os Portuguezes tom costumado deixar alii os sens doen­
tes; e agora os liollamlezcs fazem o rnesmo. Deixam-se pro-
vimentos aos doentes, como biscouto, e outras commodida-
des do navio; e cm quanto á carne e peixe, não lhes faltam
alli. Os animaes estam tão aífeitos a isto que quando vêm
chegar os navios, fogem todos para as moiitanlias, e quan­
do sentem que são partidos, voltam para os valles, e entre
outros ])ara o da cajicjla, que é o mais bcllo e vasto; e por­
que se líie semea sempre alguma coiisa, vem alli comer. Os
homens quo ficam na ilha apanham a caça com esta inven­
ção, que como Iia alli liorlas cercadas de muros, deixam a
porta aberta, c depois de os animaes estarem dentro, uma,
pessoa escondida puxa de longe uma corda presa na por­
ta, -e a feciia, c assim apanham quanta caça querem, e sol­
tam 0 resto. Os doentes ficam alli até virem outros navios
que os recebam; e infallivclmente recobram a saude, tão
])ons são os ares; -c nenhum morre, segundo as informa­
ções í{uo coilú. Mas não ousarão deixar alli mais gente a-
lem dos doentes, pelo Rei de ílespanha o ter defendido ex­
pressamente, com temor de que se não fzessem senhores
i. i'

280 V U G Eii DE FRANCISCO PYRARR

e proprietaries da ilha; o qiK". iiicommodaria muilo os po­


bres navegantes fatigados do mar^ qiie não achai iam coiisa
alguma pcara se refrescar e reslaiirar, on ihe venderiam l»eni
caro 0 quo bnivcsse, e assim seriam obrigados a deixar ab
li urna parle dos lucros da sna viagem.
Ouvi dizer aos Poilagiiczcs qiie uma vez um ermitão bar
via permanecido alli alguns aimos-. mas El-Rei de Hespa-
nha mandou <]ue- fosse recolhido a Portugal, porque fazia
um grande tiafico* de pelles de cabra, que matava cm tão
grande numero, que com o tempo leria desiruido todas as
da ilha. Dizem lambem que uma vez dons homens c duas
mudieres, todos escravos, se escaparam e esconderam nes­
ta ilha, e abi permaneceram- largo tem po, sem pod(‘r ser
descobertos, porque quando viam vir os navios ao longe,
lam-se acolher nos logares mais remotos e inaccessiveis; e
no discurso do tempomultiplicaram até ao numero de vinte,
I I e faziam grande destroço, sem que os podessem apanhar;
mas em fim forcam apanhados; e tk'pois disso não houve
mais morcadores nesta ilhea.
Quando allr chegam os Ucavios, toda a gente vai, uns á
caça, outros á pesca, outros a fazer caguada, outros a lavar
roupa, colher íruetos, ervas, rno,starda, c outras cousas, ca­
da um para si. Diz-se alli missa todos os dias, c cada um y-

regala como pode. Todos os que passam, escrevem mui


gostosamenle seus nomes, e data de sua passagem, gravan­
do-os na casca das figueiras; o que dura em quanto dura
a arvore, e as letixas ci-escem^ até cOO comprimento de meio
pé. Vêra-se alli nomes escripíos dos cannos de 1 5 1 5 e 1520.
Houve dous Poriuguezes e- dous escravos, com um Índio
da nossa n á o , que tinham feko deseuho' seerGíamenie de
iicar nesta ilha, e até já tinham levado para terra todo o
seu fato, e se Laviam ido esconder nas montanhas com al­
gum provimento de arcahuzf‘s, munições, e linhas de pescar;
luas foram descobertos, e recolhidos á náo.
i^ariiraos pois dc Santa Helena na resolução de ir ao
SSSÜNDA PARTT!:._ 26 Í

Brazil, aos 14 do Julhs) do d i t O ' aniio; c ton ian d ooslad er-


vciilo, que nos ievoii lá pela graya do
alias so livossemos vento- contrario soin, diivida nos
pcrdi

... .W..V jrui iaz,ui ci” uauci em. oama. noieiiOj loi-o-
liiamos^dci.vado em Goa; mas o costume' é metlol-o no fan -
CIO cm Santa Helena, on rompel-o, porquanto- ás vezes o ba­
lei 0 causa, da perda do navio,, e dá aso aos capilfics e prin-
cipaos dos iiavíos ac serem^ pollroès, blades' na csperaiiray
cp.io tem. do se salvar nolle, quando virem o navio em no*
ngo.

CAPITULO X X V ..
ít'© ««ciíleiite «lacceílido ©o n a­
vio,; mcB-g;iíi23iaííoa* fi^ssnceas t clic^ada ao BraziJ;
S^ertia cio u a v io ..

O 'Cndb partidos de Santa Helena sobreveio-nos um ii>


eonvc'iucnie, que julgamos seria a nossa perda; porque len­
do levado.-uma de nos&as anciíoras da. banda^ de terra, e>
querendo, levar a oulra> quiz a má sorte que esta se achas­
se embaraçada lu um grosso cabo. velho, que^ estava no fun­
do dü.mar desde muito tempo: Este cabo ficára alli dos
navios Hbllandezes, segundo se dizia, e fez escorregar a
nossa anchora por elle lodo,, e todavia nós julgavamos que
ella aiüda es^tava amarrada no fundo, o que foi- causa do
nosso pavor, porque temiamos que o navio- estivesse roto,
e nos parecia que o não fazer agua seria por estarem os
rombosr cheios de areia; mas omosso receio era que quan­
do elle saisse ao mar,, e começasse a, trabalhar, os rombos
se doslapassemj e tudo- se perdesse..
Não podendo pois levar esta anchora, com a força quê
se fa 2da para a tirar, se foi. o navio acercando da terra
G6
YIAGKM DE FRANCISCO PYRARD

sfin nos darmos fc, até que estando jà mui proximo della,
0 cajolão reparou nisso, mandou coitar o cal)0 a toda a
pressa. largar a anciiora por Trião, e pôr prompíamciite á
vela, 0 que foi feito sern detença em quanto ás velas de
inezena e gurupez; mas não pudemos fazer isto tão prestes
que no meio tempo o vento, ^que vinha *da 1)anda dc ter-
ra, não virasse para o mar. e nos impeliisse para a terra,
de sorte que o navio ficou sobro o costado cm pouca agua
e fundo por espaço de cinco horas; ô que nos espantou
muito; e crescia a nossa admãração por vermos sair tabo-
as do fundo do nosso navio da pa/ie de fora, o que nos fa­
zia crer que estavamos perdidos. Com tudo o navio foi al-
liviadü das aguas doces, que tinhamos tomado na ilha, e
»■ :■ de outras consas de menor valor; 'fizemos lançar anchora.»
111 ui longe ao mar, para espiar o navio á força de homens,
( dépens do termos feito muitas orações a Deos, e píidc-
cido grandes trabailios; em fim por graça do mesmo Senhor
o navio corneçon a hoiar, foi puxado ao mar.
11 aviam trazido para o pé do mastro grande a imagem
de Nossa .Senhora de Jesus, cujo nome o navio tiivíia, é
toda a gente a invocava, e llio rezava. E os frades Frau-
riscanos. que hiam a bordo, trouxeram tarribcm a imagem
<le S. Francisco o o seu cordão; de sorte que depois de
havermos trabalhado imriío, e alliviado o navio, começámo.s
a recobrar esjH'rança. E houve muitos que disseram Itr vis­
to um jicixG, (|iie não havia deexado o leme, e quo quan-
fjo furam liuscar a imagem e o cordão do S. Francisco,
higo aqiielio peixe se salára, de socte que muitos acredita­
vam que isto fòra milagre de S. Francisco, outros diziam
(|ue 0 fora de Nossa Senhora de Jesus; mas nesta disputa
í',u creio íiue isto veio só da mão do Todo Poderoso, que
nos tmiia sob smi guarda.
O que não obstante o uavio fazia muita mais agua do
que era costume, u que dava oceasião a duvidar-se sc nós
jdc.viaiiios iiccir nesta ilha, ou não; e lambem porque não
SEGUNDA PARTE.

iinha agua doco, nom toneis para tomar outra. Com tudo
tendo-iios dilalaílo alli por cs()aço de dez dias depois daquei-
le desastre, foi resoluto que nos aveníiirasseinos em ir á
Bahia de Todos os Santos, cidade capital do Brazil, onde
Icm seu assento o Vice-Rei Portnguez, da qual estávamos
afastados quinhentas e cincoenta legoas.
Logo que assim foi resoluto, lembrou cpie não era bom
deixar alii uma pequena imagem em vulto do Menino Je­
sus, que mm fidalgo Porluguez tinha deixado e doado á ca-
polla da iiha; de sorte que todos diziam que a causa do
accidente (|ue nos era acontecido, era que a imagem de
Nossa Senhora, que nós levavamos, não queria deixar seu
filho apoz si. Tendo pois deliberado ir bnscaba, foram com
a cruz e bandeira, cantando hymnos e ladainhas, e fize­
ram uma procissão ao redor dacapella; e depois desta antes dc
entrar no navio fizeram outra procissão em volla delie no
batei; e deixai aro somente na dita capella os painéis do
Nossa ‘Senhora, e dc Santa Helena, com um altar, e portas
novas, que nos lhe fizemos.
Mas tornando ao nosso inconveniente, direi ainda, que
nos deu assaz dc trabalho, c foi mister achar um homem
que soubesse mergulhar bem; de sorte que o capitão bra­
dou que se ahi houvesse algum que o soubesse c quizesse
fazer, lhe daria cera cruzados, e uma certidão para haver
alguma recompensa'd’ El-Rei. Mas não se achava quem tal
soubesse, por mais esforço que alguns fizessem pelo con­
seguir, porque era mister ddalar-se muito debaixo d’ agua,
e atravessar por debaixo do navio, a sete ou oito braeas de
fundo ou mais, e fazia muito frio, pvorque então o sol es­
tava no Iropioo de cancer, que é o inverno dnlli. Mas hou­
ve um carpinteiro do nosso navio o Corvo, de Saint Ma­
io, que tinha corrido a mesma fortuna que eu, o qual se
arriscou a experimentar, com quanto não julgasse poder le­
var a cousa ávante. O capiluo e os priiicipaes do navio lhe
fa&iam mui grandes'promessas, e sobre isso vendo ellc íam-
264 VIAGEM DE FRANCISCO PYUARD

bem que se nuo podia recusar depois do haver dado algii“


mas pi'ovas de sua habilidade, foi muitas vezes observar^ o
navio por baixo a ver se estava roto; e post.oque muitas taboas
do^ forro exterior estivessem quebradas e desfeitas, das quaes-
até trouxe algumas ([ue só estavam presas a uui ou dous-
pregos, julgou que a quiilia estava eiuseu perfeito ser ( e é
a quilha a mais. importante peça do navio.) , de sorte que-
todos foram mui ledos de haver achado um tal homem, do
qual teriam feito antes muito maior cabedal, sc o houveram
conhecido..
Por derradeiro ficámos persuadidos que Deos nos havia
mandado aquelle infortúnio para atalhar oalro meJor. Por­
que se 0 nosso-mivio não liouvora tocado como tocou, leria­
mos partido na derrota de Portugal, c ido a pique,, porque«
0 leme estava despregado, como se conhcceo' ao obsei vai o-
navio-, porquanto se achou que de nove pregos e gonzos ,
quo 0 seguram, estavam seis quebrados-, ou d.esp rega dos,
esses dos mais necessários,, de sorte- quo á menor tormenta
que nos assallassoi seriamos perdidos. Esto hmic tiniia íhaa-*
do assim desmantelado por razão das tormeiites, que Invia-
mos^ lido no Cabo da Boa Es[)crança.. Quando, pois sc des-
cobrio^ isto,, foi mister d(3Sarmal-o com grande trabalho, o
que difficiiltosamenie podemos fazer com os dous cabreslan-
les, e com toda a gente do.- navio, lão pesado,era. Eipor boa
fortuna se adiou haver no navio muito a ponto gonzos e
pregos,, porque os Porliiguczes não trazem nem ferreiro,,
nern serrallieiro, corno nós fazemos. Quando o ieme foi con­
certado, no fim de seis dias, fez-se ura petitorio pelo navio
para se dar alguma, cousa ao nosso mergulhador de Saint
Malò, e não sc tirou dinheiro, aígiim, mas só mercadorias-
da índia, como. roupas dc algodão, e canella, que tudo mon­
tou a doze ou quinze escudos. Mãs quando depois esti-
vemus outra ve/ em perigo^ no Brazil, foi mister que elle-
tornasse a mergulhar para levar cabos ao fiindo do mar pa­
ra rossegar as anchoras e o lem e, e outros muitos Iraba-
æGUNDA PARTE.

)hos, de sorte que o Vice-Rei lhe deu quinze escudos, e lhe


disseram que se elle fosse a Portugal, teria lá mais de cou-
lo e cincoenta escudos, e que se elle fosse Portuguez, al­
cançaria mais de trezentos escudos, alem de poder obter
um cargo em alguma náo da índia.
I
A 8 de Agosto começámos a avistar a terra do Brazil, ►
que é mui branca, e parece como lençóes, e toalhas que es-
tam a enxugar, ou antes neve; e por essa razão os Portu-
guezes lhe chamam a Terra dos lençóes. Do logar donde
começámos a avistal-a, era ainda a distancia de doze legoas.
A 9 do mesmo mez surgimos a quatro legoas pouco ma­
is ou menos fora da entrada daquella bahia, na qual não
ousámos entrar por não a conhecermos, e o nosso piloto
dizer que nunca alli estivera; pelo que enviámos a lancha,
guarnecida por sete ou oito homens, a dar aviso ao Vice-
Rei da nossa chegada, e que nos enviasse pilotos para nos
guiarem. Em quanto assim estivemos aguardando a volta
da lancha, estando surtos, aconteceo por desgraça que a a-
marra se partio sendo comida por uma rocha contra a
qual roçava no mar, q que foi causa de que o vento que
soprava do mar nos hia lançando á costa, e estivemos em
grande perigo. O que sendo percebido, e que a náo hia
descaindo para a terra, soltaram-se as velas, e assim nos a-
marámos, á espera da volta da lancha.
Vindo a noute vimos fogos de signal, que significavam
que nos vinham de soccorro très caravellas carregadas de
refrescos, e traziam pilotos para nos guiar; os quaes sendo
em fim chegados, foi grande o nosso contentamento, tanto
mais que havia seis mezes inteiros que éramos partidos de
Goa, e por essa causa extremamente fatigados do mar. R es­
tavam ainda no navio quinhentas e cincoenta pessoas, a ma­
ior parte das quaes estava enferma.
A 10 do mez pela manhãa entrámos na bahia da banda
do norte. Ha alli uma mui bella igreja da invocação de S an ­
to Antonio, com grande numero de Religiosos, que saudá-
67
VIAGEM DE FRANaSCO PYRARD

mos com descargas da nossa artilheria. A entrada desta ba-


hia tem de largura pouco mais ou menos dez legoas; no
meio delia ha uma pequena ilha de quatro legoas proxima­
mente de circuito, de uma e outra banda da qual podem en­
trar navios. Nós tomámos da banda do norte, e sendo en­
trados quasi a tres legoas dentro, surgimos, e saudámos no­
vamente a cidade e o Vice-Rei a tiros de artilheria; e seme­
lhantemente 0 Vice-Rei nos mandou dar uma salva de to­
da a sua artilheria, e ordenou se fizessem muitos fogos de
alegria e artificio.
No dia seguinte, 1 1 do mez, foi resoluto que se chegas­
se mais 0 navio para dentro, porque não estavamos alli se­
guros, assim por causa dos Inglezes e Hollandezes, como
pelo risco do tempo. O que foi motivo de levarmos ancho-
ras para nos acercarmos mais da cidade, e estando a náo
á vela, 0 Vice-Rei com a nobreza veio a fazer-nos visita;
mas querendo atracar, aconteceo por má ventura que a náo
tocou n um banco de areia, porque esta bahia é mui pe­
rigosa, por haver nella muitos bancos de areia, o que não
podemos atalhar, posto que tivéssemos dous bons pilotos
da terra.
Vendo nós que não havia meio de salvar p navio, apezar
do muito que para isso trabalhámos por espaço de seis
horas, assentou-se, para salvar a fazenda e a gente, de cor­
tar 0 mastro grande. E logo sem detença o Vice-Rei man­
dou vir trinta ou quarenta caravellas, e outras embarcações
pequenas para ao redor da náo, para recolherem a gente e
a fazenda. Sendo assirn feito, e as mercadorias promptamen-
te passadas ás caravellas, o navio ficou alliviado, começou
a fluctuar, e nos chegámos para debaixo do alcance das ar-
tilherias da cidade, que se chama de São Salvador. Ainda
nesta occasião nos servio bem o nosso carpinteiro Francez.
Enviou-se logo a Lisboa uma caravella de aviso a dar con­
ta da nossa chegada, e saber o que deveriamos fazer. Em
quanto á náo achou-se que já não prestava para nada por
SEGUNDA PARTE 267
razão das grandes fadigas e tormentas que havia soffrido;
e por isso foi tolalmente descarregada das mercadorias que
levava.

CAPITU LO X X V I.

»o B razil » e sa a s singrolaridade« • e do q a e a lli a-


conleceo em q a a n to o anctor l à cstcTe.

A Bahia de Todos os Santos tem de largura cincoenta ou


sessenta legoas, e está situada em altura de treze gráos da
equinocial da banda do sul. Ha nella muitas ilhotas, e en­
tre outras uma chamada ilha dos Francezes, porque foram
os Francezes quem primeiramente descobrio o Brazil, e era
alli que elles se recolhiam por sua segurança, e por se livra­
rem dos commettimentos dos selvagens ( a ). Entram nesta
bahia muitos formozos rios, navegáveis em bateis e barcos
muito pelo sertão dentro, e por elles são conduzidas as com-
modidades de toda a especie áquella terra.
A cidade de São Salvador é um sitio muito alto, no to­
po de uma alta montanha de difficil accesso, e que do lado
do mar é talhada a pique. Tudo quanto alli se leva, ou
d alli sáe, sobe ou desce somente por meio de um certo
engenho maravilhoso; e não se usam alli carretas, porque
seria mui difficil e dispendioso, mas por meio daquella ma
quina custa pouco,
Nas fraldas da montanha, em extensão de mais de um quar­
to de legoa, ha cazas bem fabricadas de uma e outra par
te, formando uma bella e grande rua, bem povoada de to
da a sorte de lojas de mesteres e artifices. E ’ alli que es
tara situadas todas as tercenas e armazéns de carga e des-
( a ) O s F ra n ce ze s d izem que o B razil fora descoberto pelo seu V i­
ce n te Pinson a ’20 de Janeiro de 15 0 0 , o qual assim a n te ce d e ra ao
F o rtu g u e z P e d ra lv re z C a b r a l, que aó alli ch egou a 24 d e A b ril dc
m esm o an uo.
268 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

carga das mercadorias, assim d’ El-Rei como de parliculares.


E não se fazem subir á cidade por aquelle engenho, que
disse, as mercadorias, senão á proporção que se distribu­
em e vendem. Porque para pôr lá em cima uma pipa de
vinho custa vinte soidos, e outro tanto para a pôr em bai­
xo, de sorte que são quarenta soidos o custo de cada gi­
ro; porque quando se leva acima uma pipa, ou outra cou-
sa pesada, vem para baixo outra do mesmo peso ao mes­
mo tempo, e é como os baldes que sobem e descera n’ um
poço.
E ’ esta cidade cercada de muros, e bem edificada. E ’
bispado , e ha nelia um collegio de Jesuitas afora os que
há nos campos; um convento de Franciscanos; um de S.
Bento; e um de Nossa Senhora do Carmo; que todos são
*•. K' casas e igrejas bem feitas e bem edificadas. Cada dia se
$ í converte alh grande numero de pessoas á fé christã, e to­
davia não são tão firmes na fé como os índios orientaes,
«. . S quando são baptisados, mas ficam sempre assaz volúveis e
brutaes.
Ha nesta cidade um hospital, que tem o mesmo regim en­
to que os de Hespanha e de França. Ha também uma Mi­
sericórdia, e uma mui bella igreja calhedral ou Sé, onde
ha um Deão e Conegos; mas não ha Inquisição, o que é
motivo de haver lá tão grande numero de christaõs novos,
que são Judeos, ou raça de Judeos que se fizerão christa-
üs. Dizia-se então que El-Rei de Hespanha queria estabe­
lecer alli uma casa de Inquisição, do que todos estes judeos
estavam mui amedrontados. Em quanto ao mais os Portu-
guezes governam-se no Brazil em tudo como em Portugal,
e não como nas índias orientaes. El-Rei de Hespanha sus­
tenta na cidade de São Salvador tres companhias de infan­
taria, de cem homens cada uma, das quaes entra cada dia
uma de guarda ao palacio do Vice-Rei ou Governador do

A costa do Brazil contem quasi outocentas ou novecen-


Segunda pa r te . m
tas legoas. E ’ uma terra mui aspera e bravia, quasi toda
coberta de bosques; e até mui perto e em volta das cidades
todos estes bosques são cheios de bugios e monos, que
fazem muito damno. A terra produz pouco, e não avonda
para sustentar os Portuguezes; e por isso toda a sorle dc
vWeres lhe vem ou de Portugal, ou das ilhas dos Açores e
Canarias. Assim que se não fora a grande quantidade dc
assucar, que se fabrica no Brazil, não haveria meio algum
de alli viver. A libra de assucar não se vende lá por ma­
is de dous soidos e seis dinheiros; e o que nós compramos
em França, ou seja de mantimentos ou de cousas de ves­
tir, por cinco soidos, vale no Brazil trinta ou quarenta soi­
dos.,
A riqueza desta terra é principalmerite em assucares, dos
quaes, como já disse em outro iogarj os Portuguezes carre­
gam seus navios. Porque não julgo que haja logar em to­
do 0 mundo, onde se crie assucar em tanta abundancia co­
mo alli. Não se falia em França senão do assucar da Ma­
deira, e da ilha de Santo Thomé, mas este é uma bagatella
em confiparação do do^ razil, porque na ilha da Madeira não
ha mais de sete ou oito engenhos a fazer assucar, e quatro
ou cinco na de Santo Thomé. Mas segundo meu proprio
conhecimento ha no Brazil, em cento e cincoenta legoas de
costa, perto de quatrocentos engenhos, e toda a costa tem
bem outocentas legoas. Todavia o resto da costa não tem
tantos como aquellas cento e cincoenta legoas, que se com-
prehendem desde vinte e cinco legoas para cá de Pernan-
buco, até vinte e cinco legoas para lá da Bahia de Todos
os Santos. Cada um destes engenhos ou moinhos rende por
anno cem mil arrobas de assucar pouco mais ou menos, e
a arroba peza trinta e dous ar rateis, e quatro arrobas fa­
zem um quintal, que pode custar lá quinze francos. Ven­
dem-nos em França este assucar por assucar da Madeira,
e é tão bom como elle, mas cá refinam-no, e mettem-no em
fôrma, lá porém é mister partil-o e pizal-o para o metter
68
270 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

na caixa, porque aliás estando em pão não se accommoda-


ria na caixa, e perder-sediia mais de amelade; e é por es­
ta razão que o refiíiam depois; mas quem o podesse trazer
em pão, faria muito melhor, porque assim vinha no seu
estado natural. Os que o refinam cá botam-lhe metade de
alumen e cal.
O que os Porluguezes pois extrahem deste paiz é dinhei­
ro, assucar, conservas, balsamo, e tabaco, mas não páo bra­
zil, que El-Rei de Hespanha reserva para si, como em ou­
tro logar disse, porque sendo a terra ruim para se habi­
tar, não tira delia rendimento algum; somente os seus ren­
deiros recolhem todo este páo, e o enviam a estas partes
da Europa. E ha-o lá em muita abastança, e ninguém ou.
saria tratar nelle, porque se fosse achado n’ um navio pou­
H co ou muito, que não fosse comprado a El-Rei, o navio se­
».
.
ria confiscado.
t ■> Esta terra do Brazil é pois tão má, que seria impossi-
vel habital-a, e permanecer ahi por muito tempo, se não fora
este trafico dos assucares e do páo; e ainda o assucar se
faz alli com grande fadiga e trabalho. E assim os Portu-
guezes confessam que os Francezes a descobriram e habita­
ram antes defies, mas que não poderam alli permanecer,
porque o paiz é desagradavel e penoso, e lhes dava mui­
ta fadiga a elles, que folgam de achar seu comer feito. Mes­
mo a maior parte dos Porluguezes que lá estam, são de­
gradados, fallidos, ou criminosos. Também quando El-Rei
de Hespanha faz fundar alli alguma cidade, durante sessenta
annos não cobra nella direito algum sobre qualquer mer­
cadoria que seja, e se venda a retalho na terra. Afóra is­
to 0 logar onde fabricam as suas casas não lhes custa na­
da, e não pagam delle nem renda nem foro.
x4s mercadorias na entrada e na salda não pagam senão
Ires por cento, e tudo o que sc cria na terra, assim assuca­
res como outros fruetos, pagam somente o dizimo, que El-
Rei de Hespanha alcançou do Papa, porque ha alli terras
SEGUNDA PARTE. 271
urnas licas c outras pobres, de sorte c|ue haveria assim ec^
clesiasticos uns ricos e outros pobres, ainda que todos ti­
vessem 0 mesmo cargo; e desta maneira todos estes eccle-
siasticos passam igualmente, a saber, cada um segundo o seu
gráo e cargo, de sorte que nenhum tem motivo de queixa.
Nunca vi terra onde o dinheiro seja tão commum, como
é nesta do Brazil, e vem do Rio da Prata, que é a qui­
nhentas legoas desta bahia. Não se vê alli moeda meuda,
mas somente peças de oito, quatro, e'dous reales, e meta­
de destas, que valem cinco soidos; e procuram em Portugal
as moedas de cinco soidos, e de seis brancos, para as ven­
dei alli por moeda meuda, e nisso tiram proveito; porque
usam mui pouco outra moeda afora a de prata.
Nesta terra do Brazil os Portuguezes não tem gente bas­
tante para a povoar, e occupam toda a costa, onde tem quan­
tidade de cidades, fortalezas, e bellas casas nobres, até vin­
te e trinta legoas pelo sertão. Ha senhores que possuem
grandes territórios, e nelles muitos engenhos de assucar, os
quaes territórios lhes ha dado El-Rei de Hespanha em ’ re­
compensa de algum serviço, e são erigidos em titulo de
alguma dignidade, como baronia, condado &c. E estes se­
nhores dão terras a quem quer ir morar nelias, e plantar
cannas de assucar, com a condição de mandarem moer es­
tas aos moinhos ou engenhos dos mesmos senhores, pagan­
do-lhes um tanto, fambem dão licença de coiãar lenha pa­
ia o fogo das caldeiras dos engenlios, pagando-lhes tanto
como se a fossem buscar a outra terra. Estes colonos edi-
ficam alli casas, com jardins, e plantações de toda a sorte
de íruclos; criam muito gado, aves, e outros comesi.iveis,
como cá nas fazendas arrendadas ( a ). Plantam arroz, mi^
Iho grosso e miudo, raizes de mandioca, batatas, e outras
semelhantes. Desta maneira o rendimento do Brazil é ma­
is que sufficiente para sustentação de todas as guarnições,
( a ) M é t a i r i e s diz o auctor; contracto agrícola que não tem termo
correspondente em portuguez.
272 YIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

do Vice-Rei, Governadores, capitaes, soldados, e ministros


da justiça; em somma, de toda a sorte de officiaes d’ El-Rei,
sem haver necessidade de enviar dinheiro de Portugal para
isso, e ainda por cima de tudo El-Rei de Hespanha tira dal-
li outros muitos proveitos cada anno, assim em páo brazil,
como em outros direitos sobre os assucares e outras mer­
cadorias. Também se faz neste paiz grande quantidade de
oleo de baleia, e especialmenle na bahia de Todos os San­
tos, e delle se faz mui grande trafico. Assim é este paiz o
em que se vê mais dinheiro que em outro logar onde eu
tenha estado, e vem todo do Rio da Prata.
Os que do Rrazil tornam para Portugal carregam seus
navios de assucares e conservas, assim seccas como liqui­
das, taes como de laranjas, limões, e outras fructas, e prin­
cipalmente de gengibre verde, do qual ha nestas partes u-
ma maravilhosa abundancia; mas é defezo fazel-o seccar, e
leval-o assim a Hespanha, e só pode ser levado em conser­
va , pelas razoes que já em outro logar disse. Carregam
também de tabaco, de que ha abundancia por toda a Ame­
rica; e alem de tudo isto levam grande quantidade de di­
nheiro. Depois de haverem estado nove ou dez annos nestas
terras, recolhem mui ricos, e ha alli entre outros, muitos
christaõs novos que são judeos baptisados, que tem de seu
0 cabedal de sessenta, oitenta, e cem mil cruzados, e mais;
mas elles não fazem grande conta desta gente.
Alem disso os Brazileiros, e semelhantemente os Portu-
guezes, que alli ha, para se manter ( porque o pão é lá
mui raro, e mui caro, e a farinha vai feita de Portugal )
fazem certa farinha d’ uma raiz chamada Mandioca, que co­
mem, e da qual se alimentam. E ’ gostosa, e come-se pisa­
da em migalhas com a carne; parece-se com castanhas p i­
ladas. Vivi delia por espaço de seis mezes em logar de pão
assim em terra como no navio no meu regresso, pois não
havia a bordo outro biscouto. Esta raiz tem uma estranha
propriedade, e é, que comendo-a em pó depois de secca,
SEGUNDA . PA ftÏE. 273
é mui sadia^ mas se pelo contrario a comerem verde, mata.
Ha-a lá em táo grande (piantidade, que se carregam delia
navios para levar ao reino de Angola, que é na costa de
Guiné, donde vem os escravos, que se levam ás índias oc-
cidenlaes. Quanto á carne a mais commum é a de porco,
que é mui boa, e até os medicos a recommendãm aos do­
entes com preferencia á de carneiro, galinha, e outras.
Todavia é ciítremamente cara no Brazil a mantença da
vida; pois vale lá a libra de porco dez soidos, a de vacca
sete soidos e seis dinheiros, a de carneiro de^ soidos; uma
galinha como as nossas vale um escudo. Ha muitas galinhas
da índia, que vale cadâ uma dous escudos; üm par de o-
vos cinco soidos; a canada de vinho quarenta soidos. Fa­
zem vinho de canna de assucar, que é barato, mas só ser­
ve aos escravos, e naturaes da terra. Ha muita quantidade
de fruGlas, como laran jas, lim ões, bananas, cocos, e ou­
tras.
Os Portuguezes tem bellas hortas cheias de boas hor­
taliças, como alfaces, repolhos, m elões, pepinos, rabanos,
e outras ervas cultivadas. A vínha não produz lá, porque
as formigas, que ha em grande quantidade, comem ó friic-
to. Dá-se 0 arroz, e o milho, mas só se servem deste para
mantimento dos animaes ; o que os Hespanhoes não fazem
nas índias occidentaes, porque o misturam com o trigo e
fazem delle pão. Ha alli mui boa pesca de baleias o outros
peixes; e eu vi muitas vezes matar baleias. Tiram délias
azeite em tão grande abundancia, que carregam navios.
Quanto aos naturaes do Brazil, que vivem entre os Por­
tuguezes, mantem-se mais de peixe que de outra cousa; e
pouco se ajudam da caça, porque sendo o paiz cheio de
matlas, e havendo nelias bestas feras, não ousam ir ao mat-
Î0 com temor de ser devorados.
A terra lie mui povoada; os habitantes de estatura me­
d ian a; tern a cabeça grossa, os hombros largos, côr aver­
melhada. As mulheres são mui bem proporcionadas; trazem
69
YIAGEM DE FRANCISCO PTRARD

OS cabellos compridos, e os homens curtos. Não querem ter


barbas, e as mulheres lhas arrancam. Alem disso andam
mis como sairam do ventre da mai; e níis nascem, nús vi­
vem, e nús morrem, sem ao menos cobrirem as partes ver­
gonhosas. Os que siirvcm os Portuguezes trazem uma cami-
za. Não tem nem lã, nem linho, nem seda; nem tão pou­
co tratam de adijuirir algumas destas cousas, por lhes não
serem necessárias, atlento o seu uso d(' andar nús.
Alem disso tudo entre elles é commum, nem tem terras
algumas patrimoniaes. Não tem forma alguma de cazamento,
mas usam toda a casta de deshonestidade, e são principal­
mente mui dados á luxuria. Podem ter tantas mulheres quan­
tas querem, e as tomam indifferenlernente sem haver respei­
to ao parentesco; praticando todos os actos publicamente e
»■ .
sem vergonha, como se fossem brutos animaes. E ’ isto o
t * que alcancei acerca da gente daquella terra ; porejue os
que vivem junto dos Portuguezes são mais civilisados.
Não tem templos, nem religião, e não adoram deos algum
nem idolo. Não mercadejam com pessoa alguma, nem co­
nhecem moeda. São todavia dados á guerra ; as suas ar­
mas são arcos e flechas; e bastões de páo brazil feitos em
forma de massa, com que se matam, e esquartejam, assan-
do-se, e comendo-se uns aos outros, como manjar delica­
do; e gostam mais da carne da gente branca, que da ou­
tra. Ouvi dizer a alguns daquelles, que depois se haviam
baptizado, e ha dcllcs grande numero convertidos pelos Pa­
dres Jesuitas, que elles tinham comido muitos homens, e
({ue 0 pedaço mais delicado eram os pés e as maõs. Os
Portuguezes não ousam sair da cidade sem armas, com te­
mor de encontrarem estes selvagens, que andam pelos mal-
los.
Estes povos vivem longo tempo por causa dos bons ares
da terra, e diz-se que vivem até cento e cincoenla annos.
São por isso mui sadios, e não adoecem facilmente; e se se
sentem doentes, elles mesmos se curam tomando o sueco
ííe. certas ervas, que conhecera ser apropriadas; e não tem
medicos nem cirurgiões. Nas terras que ficam em volta
desta bahia são sugeilos á siphyiis, mas não fazem caso
Goste mal, poiajue tem o guaiaco, que promptamente o cu­
ra. íla outra moléstia, a qiic os Poríuguczes cliamam Bi­
cho, que causa dor dc cabeça e dos membros, ao que
se promptamente se não acode com remedio, faz-se na via
posterior uma úlcera, de que se morre; mas o remedio é,
logo que 0 individuo se sente assim, tomar-se um quarto
dc limão, c metlcr-se na via até ires ou quatro vezes, e com
isto cuia-se facilmente. Criam-se também nos pés uma es-
pecie de bichinhos ou ouções, que engrossam com o tempo
e chegam a tomar a grossura da ponta dos dedos, c se os
não tiram, fazem-se grandes úlceras, c sobrevem gangrena,
e todavia não causa dor alguma. \ i pessoas que haviam per­
dido os pés; mas o bicho é mui facil dc tirar, c ha signa-
es por onde se conhece; por isso de quatro em quatro dias
passam revista aos pés, e tiram-nos. Estes animacs nascem
na terra, e pegam-so principalmente aos pés de quem anda
descalço, porque estes ouçoes saltam como pulgas, e alcan­
çam as pernas das pessoas.
No demais a cousa de que os Portuguezes fazem mais es­
timação no Brazil, são os escravos da costa d’ Africa c das
índias orientaes, porque não se atrevem a fugir nem a cs-
capar-se, porque a gente da terra os apanharia e os come-
ria, 0 que não farão aos da propria terra, que alem disso
não são tão aptos para o trabalho como os outros. E ’ cou-
p mui divertida todos os domingos e dias santos ver alli
juntos todos os escravos, homens e mulheres, a dançar e a
jogar em publico nas praças e ruas, porque naquelles dias
não são siigeitos a seus senhores. Mas nada mais direi das
singularidades desta terra, assim pelo que já sobre isso te­
nho dito no capítulo do trafico dos Portuguezes nella, co­
mo por ser mui conhecida e frequentada dos nossos, que a-
cerca delia tem assaz escripto.
276 YIAGEM DE FMNCISGO PYRARD

Só direi que quando nós alli chegámos, todos os Portn-


guezes estavam em grande susto e temor por se dizer que
0 nosso rei Henrique o Grande aprestava uma armada, a
maior parte dos navios da qual se esquipavam em Hollan-
da, para lhes fazer guerra; e o rebate não se limitava só á
Bahia de todos os Santos, mas chegava a todos os outros lo-
gares e fortalezas das ín d ias, onde havia vassalos do Rei
de Hespanha; e era cousa admiravel a grande estimação que
elles faziam do nosso r e i, e os grandes louvores, que lhe
davam por seu extremado valor, e outras partes. Mas a nos­
sa má sina quiz que no principio de Setembro chegasse
alli uma naveta partida de Sevilha determinada mente por
esse respeito, que levou a triste e deplorável nova da mor*
*■ . te e infeliz caso do nosso bom rei, que Deos perdoe; o que
os poz em segurança, ficando mui socegados, e até nol-o di­
$ ■Í ziam por modo de mofa, e por nos fazer pirraça; e nós não
sabiamos o que sobre isso deviamos crer nem pensar; mas
entre elles havia alguns que davam demonstração de muito
sentimento, e os bravos capitaes e soldados, e todos os ho­
mens de juizo, diziam que era grande pena a perda deste rei;
e que era o mais bravo e valeroso principe do mundo. E
na verdade os Jesuitas, e outros ecclesiasticos em seus ser­
mons e officios mandavam fazer oração por elle, e o reco­
mendavam a todo 0 povo dizendo que era um rei mui chris-
tão e muicatholico.
Achei também no Brazil um Francez, natural de Nantes,
chamado Julião Miguel, mercador mui rico e experto. Esta­
va associado a um Portuguez, que tinha , ou por compra ,
ou por merce, obtido licença de pescar baleias por sete an-
nos nesta bahia, onde se faz a mais rica pesca de baleias
que ha no mundo, de cujo azeite se faz alli mui grande
trafico. Este mercador Francez passava por Hespanhol, e
por tal era havido, e era mui bem acceito ao Rei de Hes­
panha, ao qual havia sido enviado como embaixador pelo
fallecido Monsieur de Mercure no tempo da Liga; e ^desde
SEGUNDA PARTE. 277
então ficou tendo a sua ordinaria residência em Bilbao na
Biscaia; e eu julgo que por oceasião dos bons serviços que
havia prestado a este Rei, alcancára esta licença da pesca;
por quanto tão longe está isto de ser permittido aos Fran-
cezeSs Inglezes, Hollandezes, e outros estrangeiros, que alé
lhes é defeso sob pena de morte o navegar naquellas par­
tes. Faziam porem por sua conta estes dous socios aquel-
la pesca, que é muito para ver, e de todos os logares da
cidade da banda do mar se disfrueta o prazer desta pes­
caria e apanho das baleias. Um dia entre outros aconleceo
que uma destas grandes baleias, vendo que a sua cria es­
tava apanhada, remetteo com tal fúria contra os pescadores
e sua barca, que a virou e os lançou ao mar, e salvou as­
sim a cria, e os homens tiveram assaz de trabalho para
se salvar. Eu nunca teria acreditado que este animal ti­
vesse este bom natural, este desembaraço, e destreza. O pro­
veito desta pesca só consiste no azeite, que delia se tira;
porque a carne daquelle peixe não se come, salvo quando
SC apanham alguns pequenos, cuja carne é mui delicada.
Para fazer pois esta pesca vem todos os annos dous na­
vios de Biscaia com alguns Biscainhos, que tem fama de
ser os primeiros para esta sorte de pesca. Quando nós ab
li chegámos, um dos dous navios, vindos naquelle anuo ,
era partido da bahia havia dous mezes, e só alli achámos
p mais pequeno, em que a maior parte dos homens era
de Rayonna, e d’ oulros logares das provincias vasconças
de França. Travei com elles grande amizade, e frequon-
tei-os ordinariamente. Quanto ao Senhor Julião Miguel, e-
ra elle domiciliado naquella cidade durante a pesca, e es­
lava alli como um morador natural.
Em todos os navios havia um capitão, que comnvanda-
va durante a viagem. Ora uma noute o capitão do navio
que alli ficára, tomou a resolução de levar ancoras, e dar
á vela, apezar de não ter mais de* meia carga de azei le de
baleia. Ausentou-se^ pois secretamente, sem ter guia nem
70
278 VIAGEM DE FRANCISCO PTRARD

passaporte do Vicc-Rci, o que ó cousa contra o regimento,'


c é piinivcl com confiscação, e pena corporal. A oceasião
disto foi que elle se havia concertado secretamente com um
mercador, qae lhe devia vender e entregar grande quantida­
de de páo vermelho, o que é alli expressamente defeso, e de­
via ir carregal-o a duzentas legoas, pouco mais ou menos,
da bahia para a banda do sul. Mas o Vice-Rei tendo lido
aviso do caso, mandou logo por terra ordem para tomar o
navio, c trazer toda a gente delle presa; o que assim se fez;
sondo 0 navio reconduzido á bahia, e o capitão e os prin-
cipaes mettidos cm prisão com ferros aos pés. O navio foi
desaparelhado de toda a sua enxarcia e apparelho, e neste
estado ficava quando eu de lá parti. Muitos daqiielles pre­
sos me deram cartas para eu trazer, e fazer entregar a
t , seus parentes e amigos. Achei depois navios de Rayonna e
de São João da Luz, quando estive em Galliza, cujos ho­
f r mens folgaram muito de ouvir novas dos seus, e de se en­
carregar das suas cartas. Regalaram-me muito no seu na­
vio, onde dormi uma noule; e foi isto n’ um porto de GaL
liza, chamado Pontevedra.
No que toca a Julião Miguel, não foi preso com os ou­
tros, porque se deu por ignorante dos planos do capitão,
dizendo que não lhe encommendára nada daquillo. Fez-nos
grandes cortezias e civilidades, e até quando estavamos pres­
tes a embarcar nos fez presente de alguns mantimentos,
como farinha de mandioca, e outras cousas, entre ellas car­
ne de vacea salgada, que vem do Rio da Prata. E ’ impos-
sivel ver carne mais gorda, tenra, e mais saborosa que a-
quclla; pois são aquelles bois os mais bcllos e grandes do
mundo; e vem do Peru. Faz-se grande trafico dos seus cou­
ros, e ha tão grande quantidade daquelles animaes que pe­
la maior parle das vezes os matam só para lhe aproveita­
rem 0 couro. Salgam aquellas carnes, e as cortara em pos­
tas assaz largas, mas delgadas, e só da grossura de dous
dedos ao mais. Quando estam repassadas de sal, sacode-se

L
SEGUNDA PA RTE, 279
esle sem as lavar, e poem-se assim a seccar ao sol; e de­
pois de bem seccas podem conservar-se largo tempo sem se
damnificarem, com tanto que sejam guardadas cm secco ;
porque se as deixam molhar, sem as pôr logo e logo a sec­
car ao sol, corrompem-se, e enchem-se de bichos.
Quando estava nesta bahia encontrei ainda um Francez,
natural de Provença perto de Marselha, que era servidor »
ik
de um dos maiores senhores daquella terra, a que chama­
vam Mangue la bote, nome que os negros de Angola lhe
haviam dado, e quer dizer o valeroso e grande capilão, por­
que havia sido alli Vice-Rei. Este senhor tinha feito tuo va-
lerosamente a guerra contra os N eg ro s, que era delles
mui temido ( a ) . Passava por ter de seu cabedal mais de
trezentos mil escudos, e tirava grandes rendimentos de mui­
tos engenhos de assucar que possuia. Este Francez, que es­
tava cm sua caza, era musico, e tangedor de instrumentos;
e servia-lhe para ensinar musica a vinte ou trinta escravos,
que todos juntos formavam uma consonância de vozes c ins­
trumentos, que tangiam sem cessar. Este senhor me rogou e
solicitou muito para fiear^com elle, e me promeltia cem es­
cudos de salario, e boa comida, somente para governar cer­
to numero de escravos no trabalho. Dizia-me também que
dentro de um anno, ao mais tardar, se iria para Portugal,
e de feito estava fabricando um mui bom e grande navio do
porte de quinhentas tonelíadas para esse fim; e andava bus­
cando e recolhendo todas as raridades, assim de animaes,
como de outras cousas, que podia achar, para fazer delías
presente a El-Rei de Hespanha. Entre outros tinha dous a-
nimaes dos a que chamam .febras, de que faço menção no
( a ) Governador devia se r, e não Vice-Rei. Percorrendo nós po­
rem 0 catalogo dos Govérnadores de Angola daquelies tempos, a nenhum i ■
acliamos applicavet o soÍ)renonie de lUangue la bole, senão a ioão
turtado de Mendonça, governou Angola desde IdOi a KiO^. I).
írancisco de Almeida, que governou pouco tempo era 1592, fugio
sim para o Brazil; mas não parece que lhe possa caber o titulo (lue
Pyrard mdica. ^
280 m CEM DE nUNCISCO PTRARO

tratado dos animaes ( a ). Eu teria de mui boa TOnlade ac-


ceitado as condições, que elle me oíTerecia; mas o mal é que
quando se faz algum concerto cum elles e que depois se quer
desfazer, elles o não permiitem.
Ora logo que chegámos á bahia, e cidade de S. Salvador,
fomos, meus companheiros e eu, procurar o Vice-Rei, e Ihu
mostrámos o nosso passaporte assígnado pelo Vice-Rei e Ve-
dor da Fazenda de Goa. Elle tendo-o visto, nos recebeo com
bastante corlezia, e nos disse que viessemos comer e beber
a seu aposento, e até dormir, se quizessemos, Este Vice-Rei
era um fidalgo mui honrado; não linha mulher com sigo,
mas somente dous filhos, um de idade de vinte e cinco an-
i:os, e outro de vinte, que eram ambos mui estimados. O
pai chamava-se D. Francisco de Menezes. Durante o tempo
que aili estive, o filho mais velho foi achado na camara de
». . t.' uma dama portugueza, e surprendido pelo m arido, que o
ferio levemente, mas elle salvou-se; a dama porem levou
cinco ou seis golpes de espada, de que todavia não morreo;
e não sei o que depois aconleceo.
Mas não quero passar em silencio o que me aconleceo
aqui. Andando eu um dia passeando só pela cidade, vestido
de seda á poitugueza ao modo de Goa, que é differente do
dos Porluguezes de Lisboa, e do Brazil, encontrei uma es­
crava rapariga, negra de Angola, que me disse, sem ceri­
mônia e sem ter conhecimento comigo , que a seguisse
sem receio algum, que elía me queria levar a ver um ho­
mem honrado, que desejava fallar-me. Nisto me detive um
pouco a pensar se o deveria fazer ou não, e se me fiaria
110 que ella me dizia; em fiin determinei-me a acompanhal-a,
para ver em que isto parava. Ella fez-me dar mil voltas e
rodeios por ruas escusas, o que a cada passo me punha em
grande temor, e quasi em resolução de não passar mais a-
( a ) 0 auctor chama a este animal Fsure, e pela descripeão que
dá dclle no Tratado dos animaes, parece ser a ZeLra, ou Zevra. E~
iu s ou Lsvre, como se acha no livro, provavelmente é erro de copia.
SEGUNDA PARTE. 281
vanle; mas ella me dava animo, e tanto fez qne me levou a
um aposento mui bello e grande, bem mobilado, e giiarnt'-
cido, onde não vi mais ninguém senão uma joven dam:i.
portugucza, (|uc ime fez mui bom gazalliado, e rne mandou
logo aprestar uma mui boa refeição; e vendo que o meu cha-
peo não era bom, ella com sua propria mão mo tirou da
cabeça, e me deo outro novo de lãdeííespanba com uma bella
presillia, fazendo-me promeller que tornaria a visilal-a . e
d.i sua parte promettendo-me que me favorcceria, c me da­
ria gosto em tudo o que podesse. Não faltei á promessa, e
bia visilal-a frequentemente em quanto lá estive; e ella me
fez uma infinidade de obséquios e favores.
Tomei também conhecimento e amizade com outra rapa­
riga Portugueza, líatural da cidade do Porto, chamada Ma­
ria Mena, que era dona de uma casa de pasto, de sorte que
me não faltava de comer e de beber, porque mo dava quan­
do eu 0 queria, sem dizer cousa alguma a seu marido, í‘
ainda me dava dinheiro para eu pagar na presença dello.
Ghamava-me elia o seu camarada. Em somma as mulheres
alli são muito mais affaveis, e mais amigas dos estrangei­
ros do que os homens.
Eu e meus companheiros tivemos, estando alli, um pro­
cesso contra a dona de uma caza onde nos haviamos alo­
jado, porque ella nos queria reter o nosso fato; mas por
uma siniples queixa nossa foi condemnada a entregar-nos
0 fato, c nas custas.
Também naquella terra me mostraram os Porluguezcs
uma forca, onde alguns annos antes haviam sido enforca­
dos treze Francezes. Eram da llochella, e foram tomados
com 0 seu navio. Um dos capita‘' s chamava-se Vain de mil,
e 0 outro Brífaut. Vi lá um Inglez, que tinha sido preso
com elles, e tinha estado com a corda ao pescoço, já pres­
tes para ser tamhom enforcado com os outros, mas foi sal­
vo parque os Erancezes clamaram em altas vozes que elle
tinha vindo com elles á força, e o haviam tomado no mar
/1
VIAGEM DE FRANCISCO PYÎURD

em um navio inglez. Este logiez possiiia então mais de m il


escudos, e estava em caza de um fidalgo.

CAPITU LO XXVÍÍ.

Saãtia do ESrazãE; Poi'Bsaiaalmco« lllia » do» Açore». B er*


íesigas csM PorSsigaB t grataíl.o tormtesija ; Bissa» <ie
B a y o n a ! Jorísad a a S. Tíiiaj^o $ regresso do
a n c to r » e ssaa cSiegada a Frasaca'

i_ jm fim tendo estado no Brazil por espaço de dous me-


zes, como andasse lidando por buscar modo de passar a
Portugal, aconteceo que Ires fidalgos Portuguezes, que me
tinliam grande aífeição, me prometteram dar-me gazalhado
I $ ■t em sua companhia. Estes tres fidalgos eram D. Fernando
da Silva de Menezes, que havia sido,, como já cm outro lo-
gar disse, capitão mór da armada do norte em Goa, e do­
us cunhados seus, que tinham vindo embarcados no mesmo
navio, em que eu também viera, e m e fizeram durante a
viagem muitos bons officios. ílaviam elles afretado uma ca-
rjivclia, para os levar a. si, á sua comiliva, falo, e merca­
dorias em direitura a Portugal, afim de obterem mercês
ou recompensas d’ El-Rei de Hespanha por seus serviços
na índia, como é costum e; e depois tornar-se, porque to­
dos elles eram cazados na índia.
Estando eu pois posto em cuidado de buscar alguma boa
occasião de passar á Europa, porque a passagem não cus­
ta menos de cem ou cento e vinte libras, e porque sendo
perdida a náo, em que eu viera, não linha mais que ver
com a gente delia, como pelo meu passaporte era obrigado,
e cada um tratava de si como melhor podia; neste come-
nos aquelles honrados fidalgos me offerecerarn pagar-me a
passagem, que montava em dez escudos, e alem disso dar-me
de comer. Estando pois as cousas assim concertadas, quan-
SEGUNDA PARTE 283
do a caravella foi prestes , liia eu a ern])arcar-me coru o
meo fato; e foi então (pio o mestre do navio disse que rne
nao havia de levar, porque de outra vez ti[ilia levado uni
hrancez, que lhe tinha dado mais enfado que toda a outra
gente, e que por essa causa fizera juramento de nunca mais
levar outro algum. Sobre isso , e por meu respeito houve
grande disputa entre o Vice-almirante ( a ) e este mestre.
Mas 0 peior foi que cra já nouie, e o navio estava a des­
fraldar as velas. O Vice-almirante tomado de cólera lhe dis­
se que a sua mágoa era que aquelles fidalgos fossem com
elle, pois não podia ir a salvamento; e finalmente lhe fez
grandes ameaças para quando por ventura tornasse outra
vez áquella bahia. Mas a recusa deste mestre foi a minha
salvação, porque quando cheguei a Portugal ( b ), a primei­
ra nova que soube, foi que aquelles très pobres fidalgos ha­
viam sido captiyos dos corsários com a sua caravella, e le­
vados a Barberia, do que eu tive extrema magoa e despra­
zer, pela grande amizade com que elles me tratavam.
Vendo-me pois frustrado por aquelle lado, estava em gran­
de abalo acerca da minha tornada, quando por dita houve
dous Flam engos, natnralisados Poríuguezes, que fokaram
de se encontrar comnosco. Eram associados entre si, e tinham
uma mui bella urca, feita em Dunquerque, cujas armas ti­
nha, e era do porte de duzentas e cincoenta tonelladas. Per­
guntaram-nos se queriamos ir com um delles, porque o ou­
tro ÛCOU em S. Salvador; e nòs acceilámos de mui boa von­
tade a proposição, dizendo que iriamos como qualquer ma­
rinheiro, sem com tudo nos pagarem soldada; e assim nos
davamos por mui felizes de ir, posto que fossemos trabalhan­
do de graça, e elles não estavam menos satisfeitos de nos
1er achado, porque aproveitavam do serviço de très homens

(a ^ Talvez o auclor queira dizer== tVce-jRei.


( 1)} O aiictor não foi a Portugal, como se ve da sua narração
mas a Gailiza. Como porem tudo pertencia então ao Rei deHespanha’
lião merece grande ceusiira esta inadvertência.
284 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

sem despenderem soldadas. Feito este concerto, nos adver«


tiram que lirassemos passaporte, e licença do Yice-Rei por
escripto; o (jiie tendo nós feito, embarcámo-nos nesta urca,
que liia carregada de assucares, e bem provida de artilhe-
ria, e de todas as outras sortes do armas e munições. A
gente que levava era porto de sessenta pessoas , entrando
eu e os meus dous companheiros, e sai mos desta bahia a
7 de Outubro de 1610 .
Tivemos á saida vento contrario, o que foi causa de an­
darmos vinte e cinco dias sem poder dobrar o cabo de San­
\ to Agostinho, que é distante da Bahia cem legoas, em al­
tura de oito gráos da equinocial para o sul. E a 3 de No­
vembro dobrámos o dito cabo com grande perigo, por cau­
sa dos baixos e bancos de pedra, por junto dos quaes pas­
».. : sámos. No mesmo dia avistámos a cidade de Pernambuco,
que pertence aos Portuguezes no Brazil ; é mui bem edifi­
cada, e tern mui bei las igrejas.
Dous dias depois vimos uma caravella, que hia á vela,
dc que toda a nossa gente teve grande temor, julgando ser
navio de corsários; de sorte que todos pegámos em armas;
mas depois conheceo-se que era de Portuguezes.
A 5 de Dezembro tornámos a passar a linha equinocial
para a banda do polo árctico. Passei-a dez ou doze vezes
durante as minhas viagens.
A 25 do dito mez começámos a ver fluetuar a e r v a , a
que os Portuguezes chamam Sargaço, e se cria no fundo do
mar. E ’ um signal, que se ve continuadamente nestes lo-
gares; o mar está todo coberio delia; e começa aos vinte e
um gráos, e continua até as trinta.
A 5 de Janeiro de 1 6 1 1 avistámos as ilhas dos Açores,
c entie outras, a do Corvo, das Flores, e a Terceira, que
é a principal, em altura de trinta e nove gráos e meio.
A 15 de Janeiro avistámos a terra de Portugal, clTama-
da as Beríeugas, que são distantes de ínsboa oito ou dez
legoas para a banda do norte; e foi pela manhã ao romper
SEGUNDA PARTE. 285

do dia. Pensavamos estar ainda na distancia de sessenta


legoas, porque o vento era do sul, e havia-grande tormenta.
O nosso desenho era de entrar em Lisboa; mas não po­
demos por causa do vento contrario; e sobre isso houve gran­
de disputa entre o capitão e um mercador Judeu, que por
outro nome se chama em Portugal Christão novo; porque
0 navio era uma urca de Flandres do porte de duzentas
e vinte lonelladas, como já disse. Û capitão era Hollan-
dez, e residia ordinariamente em L isb o a , e era socio de
outro Hollandez, a quem pertencia a maior parte da fazen­
da. O Judeu levava também alli mais de cem mil escudos
de fazenda, pela maior parte sua; e hia encarregado assim
da do mercador principal, como da de outros. Havia ainda
no navio outro Judeu tão rico como aquelle; e alem destes
mais quatro ou cinco Judeos mercadores. Havia muito tem­
po que não era chegado um navio tão rico como este.
Finalmente estando á vista das Berlengas, faziam os ten-
ção de entrar, não obstante o vento contrario, e iamos sem­
pre bordejando, ora para a terra, ora para o mar. Sobre
isto fomos surprendidos por uma tormenta, e mais violen­
ta que era possível, acompanhada de vento contrario. Nós
estavamos sobre a costa; o que nos punha em grande te­
mor; de sorte que o mercador judeu veio dizer ao capitão,
que vista a tempestade e o vento, não havia apparencia de
poder entrar em Lisboa. O capitão lhe respondeo, que lhe
désse elle um termo, assignado de sua mão, com promes­
sa de participar em todas as despezas, perdas, dam nos,
e riscos, que poderíam seguir-se deste retardamento; quando
não, que elle se aguentaria no mar, no que rao havia pè-
rigo algum; e que alli esperaria até vir a bonança, e o v e n -.
to favoravel. O mercador disse que elle lhe não dava tal
seguro, e que o que queria era que elle capitão pozesse a
prôa nas ilhas de Bayonna, que ficavam dalli cousa de oi*
tenta legoas. E acabando de dizer isto, pega elle mesmo
no leme, e poe o navio a sotavento, de sorte que sobre
72
VIAGEM DR FRANCISCO PYRARD

isso houve grande contenda, com muitas injurias, e pala­


vras mal soantes'de parle a p arle; mas em fira tudo se ap-
placou, e 0 mercador assignou o termo, e nós tomámos a
derrota das ilhas de Bayonna em Galliza; e a isto se juntou
que a tempestade era tão furiosa, que só por si ella basta­
va para acalmar toda a sua cólera.
Todavia gastámos cinco dias em ir das Berlengas a estas
ilhas, e durante todo este tempo estivemos dehaixo de uma
continua tempestade , que até hia augrnentando cada vez
mais. Com isto nos aconteceo outra desavenlura^ e foi, que
0 nosso navio entrou a fazer agua de tal sorte, que era im­
possível poder vedal-a ; c a maior parte do tempo iamos
proxirnos de terra, o que nos dava ainda mais que temer,
üm destes dias ju lgám os, pelo que diziam muitos m ari­
Il I t
nheiros, estar de fronte da bahia, e diziam elles que a co­
nheciam muito bem; e isto hia sendo a nossa perdição, por­
que caminhámos para ella com vento á pôpa, e quando che­
gámos bem perto, conheceo-se que não era alli; de sorte
que foi um verdadeiro milagre salvar-nos, porque o vento
vinha do mar, e nós eslavamos já tão perto de terra, que
tivemos bastante trabalho para nos safarmos delia.
Creio que nesta occasião se fizeram no navio promessas
no valor de mais de mil e quinhentos escudos ; porque o
principal mercador fez uma de oitocentos cruzados, a sa­
ber, quatrocentos para cazamento de uma orfã, e quatrocen­
tos para fazer uma alampada , e outros utensilios a uma
Nossa Senhora, que era perto dalli; e com eíTeito logo que
saio em terra, foi em busca de uma orfã em quem cumprio
a prom essa, e o mesmo fez com os mordomos da igreja.
Muitos outros fizeram da sua parte outro tanto; porque não
havia alli quem se não encommendasse ao Santo da sua pa-
rochia. Porque é costume dos Portugnezes occupar-se an­
tes em fazer promessas aos Santos, do que trabalhar por
salvar a vida.
Em fim desde Lisboa até estas ilhas por mais de [dez
SEGUNDA PARTE.
287
vezes nos julgámos perdidos, por causa do niáo eslado do
vio, e irmos tao proximos de terra, para a qual o vento
i mar nos impellia com tal violência, que rasgava todas
as nossas velas. Foi este o maior p erigo , em que me achei
nos dez annos da minha viagem; e acontece muitas vezes
que depois de muitas viagens lon gas, trabalhosas, e peri­
gosas, \cm os navegantes perder-se lio porto; como se tem
VIS 0 succeder a muitos Vice-Reis, que depois de terem rou­
bado inhnitamente na India, vem perecer á tornada no por-
Ifc? ® suas riquezas ( a )
das i has^Hllt^ de entrar na bahia
.s ilhas de Bayonna, encontramos um pequeno navio oue
so T p n rf “ “ á vista do qual todos os nos-
entraÜrtrHf Icmerosos, e julgámos já ser
entrados do inimigo, apezar do sermos ao todo perto de cem
pessoas, porque sao elles gente que não tem aíTouteza nem re­
solução alguma, mas so palavras e vaidade. São bons mer­
cadores e bons marinheiros, e mais nada. Estou certo de que
quinze ou vinte Francezes nos teriam facilmente tomado- e
0 navio vaha mais de quinhentos mil escudos. No dia ante­
cedente um navio de corsários tinha tomado uma caravella
naquelle mesmo sitio; e quando nós entrámos, estavam am­
bos surtos nas ditas ilhas, onde descarregaram esta cara-
vella mas elles estavam de uma banda, e nós passámos da
o u tra , 0 fomos para perto da cidade. Ha ires ou quatro
pequenas cidades nesta bahia. '
Quando pois felizmente desembarcámos a 21 de Janeiro
i í i s ã o " L ‘^ r^ ‘' ‘ n ’ lembrei-me da promessa, que na minha
piisao cm Goa, havia feito, e era, que se Deos me fizesse
ria® a S Thi nTn' «espanha, iria em roma-
n ^ ^80 do Galhza, e isto era o que eu pedia sem-
pi e a Deos de todo o meu coração quando hia no mar •
e outrosim de ir aportar a qualquer outro le g a r, què
ríor quizPyrard acabar a narração de suas via^ns nn.
mais alguma amostra de seu espirito malicioso. ^
288 TIAGEM de FRANCISCO PTBARD

iião fosse a Lisboa, por contar q\ie indubitavelmente alli


ficaria preso; e de feito todos os outros estrangeiros, que
tinham vindo da índia, haviam sido encarregados aos ca­
pitais dos navios da parte do Vice-Rei de Goa; mas porque
0 nosso navio se havia perdido na Bahia de Todos os San­
tos, 0 capitão delle já não era responsável de nós, e assim
ficámos cm nossa liberdade. Mas sem embargo disso se nos
houvéssemos aportado a Lisboa, não deixariamos de ficar la
presos* mas aprouve á bondade divina de nos levar a salva­
N mento’ a estas ilhas de Bayonna, onde logo que surgimos,
achámos muitos navios francezes, que estavam tanibem sur­
tos para fazer sua veniaga; e apenas souberam da^ nossa
chegada, veio toda a gente delles ver-nos por adm iração;
c então soubemos delles tudo o que era acontecido em
França, donde havia dez annos que não tínhamos sabido
novas certas. , . i
Tendo nós desembarcado, e depois de havermos toma­
do alguns dias de folgas com estes Francezes, dito adeos
e agradecido aos Portuguezes do nosso navio, e principal-
mente ao capitão, que me gratificou com algum dinheiro;
determinei ir cumprir o meu voto, deixando alli os mms
dous companheiros, que não quizeram ainda então partir,
e que eu não tornei depois a v e r ; e fui-me só caminho
de S. Thiago, que dista dalli dez legoas, e passei pela ci­
dade de Poüteved-a, que é mui bonita. , . , ^ ,
Satisfeita a minha devoção a S. Thiago, fui a Lorunha,
que é um porto de mar na distancia de dez legoas, paia
buscar adi modo de passar a fran ça, e não podendo alli
achal-o, live por noticia que n um pequeno porto a duas
legoas daquelle logar havia um pequeno barco da Rochella,
do porte de umas trinta e cinco tonelladas, carregado de
laranias, e prestes a partir. Sem delença me encaminhei
ao dito sitio, e pedi ao mestre que me levasse de passa­
gem- 0 que elle fez com prompta vontade; e tendo sabido
todas as minhas aventuras, folgou muito deste enconlio, e
SEGUNDA PA RTE.
289

PeJa passagem.
á Eochella, onde, grácaf a’ Deis® r í ' n
de Feveremo; e è n líL L ^ S :^ ; £ fT ic tr '^ “ ^
terra de França one en tant vez a »
do barco em qVe p a « d c p L ’"^'’’'* ^^«'6 mestre
da ilha de Oleron^ l f n ,; , e era
ver Ilevado á patria e ®®“ *“ *^“ eD<o de me ha-
R ochella, não querendo n u n c a ^ ^ í^ °^ f“ “ ' íau<amenle na
outro aposento senão a sua cazl e m uL*^ “ f »ornasse
5 entou aos princinaes da rírlíirín " ^ ufano me apre-
admiração. v ^ ^consideravam com

n t e P í cam U o d f l e r r a ' r
cidade de lavai na Bretanhíi^^^V ? que é a
vereiro de 1 6 1 1 ; do que seja D m fo m fo !' '

™ seounpa parte, e ba viagem.

73
ADDENDUM.
0 loo'ar proprio desta iVoia s e H a e m a lg u n i dos C a p U u l o s X X Í oü
X X I I 'd e s te livro, nos q u a es o a u c t o r trata da. a r m a d a , q u e v e i o d e
P o r tu g a l á I n d ia no a n n o d e 1 6 0 9 , e d a q u e v o lt o u d a , I n d ia á
P o r t u g a l n a i m m e d i a t a rhonção, C o m o p o r e m g u a n d o se i m p r i m i ­
am a q u e lle s d o u s C a p i t u lo s , a i n d a n ã o t i n h a m o s v is to o cUrioSo
Livro da Fazenda e Ileal Patrimonio dos Reinos de Poriugal, q u e
d e u logar as reflexões, q u e aqiii p o m o s , p or isso só a g o r a p o d e ­
m os a p r e s e n ta l-a s . ' « . ■ , « . ?
O Livro da Fazenda e Real Pâtrimoúio dos Retnos de Portugal
foi escripto por L uis de F i g u e i r e d o F a l c ã o e a t r e os a n n o s d e 1 6 0 7
e 1 6 1 4 , e im p resso u l i i m a m e n l e e m L i s b o a , n a i m p r e n s a n a c i o n a l ,
e m 1 8 o 9 . Uraã das m a is curiosas p artes d este L i v r o he a rela ção
das arm ad as, q u e v i e r a m d e P o r t u g a l á In d ia j c o m a n o t i c i a das
e m b a r c a ç õ e s q u e v o lta ra m a s a l v a m e n t o e das q u e se p e r d e r a m .
C o n f r o n t a n d o o L iv r o d e L u i s d e F i g u e i r e d o c o m a q a r r a t i y a d e
P y r a r d no p a h i c u l a r , q u e le m o s dito, da a r m a d a d e 1 6 0 9 n a v i n d a
’ e " t o r n a d a , a c h a m o s q u e sim e o n c o r d a m era parte, mas ém o u i r á
p arte ha en tre elles no.lavel v a r ie d a d e .
* E prirneiram énte c o n c o r d a m era que^ p artiram dfeiLishoa no a n ­
n o de 1 6 0 9 c in c o nãofe , e c h e g a r a m a I n d i a sò qiiatrp. Q u a n d o
P y r a r d saio de G o à ainda se h ã o sdb'ià áqiii o qiiè é ra feito da naò
q u e faltava; m as L u is de f i g u e i r e d o nos d e c la r à q u e essa náO d-
ra a Guadalupe, cap itão M a n o e l B a rr e to B o l i m , a q u a l a r r ib o u a
A n g o l a n a v i n d a , e dahi foi a L is b o a .
 s q u e c h e g a r a m á í n d i a eram Nossa Senhora da Piedade, em
(jue v i n h a por capitão m ó r D . M a n o e l d e M e n e z e s ; i V o w a Senhora
de Jesus, C a p itã o A n t o n i o B a rr o zo , q u e n a torna v i a g e m se perd eo
no B ra z il, e era a em q u e hia e m b a r c a d o P y r a r d ; Nossa Senhora
da Penha de França , capi ão A m b r o z i o d e P i n a ; e São Boaven-
tura, cap itão Liiis d e B a r d i .
N a t o r n a v i a g e m sairam d e G o a q u a tr o náos, a sab er; (res das
q u e tinh am v i n d o n a q u e l l e a n u o , e u m a q u e íicára do a n n o p a s­
sado ; íicando s e m e l h a n t e m e n l e na í n d i a o u tr a d e s te a n n o ,
q u e era a náo São Boaventura. N isto c o n c o r d a m , ou nã o se c o n ­
tradizem os d o u s a u c lo r c s . M as em outras c i r c u n s t a n c ia s va r ia m e n ­
tre si. Pyrard n o m e ia as náos da t o r n a v i a g e m a s s i m : Nossa Se­
nhora da Penha de França, Nossa Senhora da Piedade, e Nossa Se­
nhora de Jesus-, todas da a rm a d a deste a n n o . N o m e i a m a is Nossa
Senhora do Carmo, q u e d e v e ser a q u e íicára do a n u o p assado.
M as e m L u i s de F i g u e i r e d o a c h a m o s a do a n n o a n t e c e d e n t e d e ­
n o m in a d a Nossa Senhora de Monserrate. P a r e c e - n o s q n e nesta p a r ­
te a e q u i v o c a ç ã o é de P y r a r d , (jue o u v i n d o d iz e r Nossa Senhora
de Monserrate se p ersu a d iría q u e diziam Nossa Senhora do Monte
do Carmo-, e q u i v o c a ç ã o facil e d e s c u l p á v e l n ’ u m e s tr a n g e ir o .
S e fosse p o r é m só nisto a d i v e r g ê n c i a dos d o n s a u c t o r e s , n ã o
teriam O^vinsistido n e st e ponto; m a s ha outras d ifléren ças q u e i m ­
porta m mais á historia. ^
291
P o r ura lado diz L u i s d e F i g u e i r e d o q u e a n á o Nossa Senhora
de Monserrate, d a a r m a d a d e 1 6 0 8 , era q u e v e i o por cap itão M a ­
n o e l d e Frias, recolliera a L is b o a no a n n o d e 1 6 1 0 indo n elia por
capitão G a s p a r F e r r e i r a , piloto q u e t r o u x e r a n o dito a n n o de
1 6 0 8 á í n d i a ao V i c e - R e y K u y L o u r e n c o d e T a v o r a ; e q u e a náo
S. Boaoentura, da a r m a d a d e Í 6 0 9 , c a p i tã o L u is d e B a r d i , c h e ­
g a r á a L is b o a a 7 d e J u l h o d e 1 6 1 1 , m o r r e n d o o cap itão do Ga­
b o para lá, e A n d r é F u r t a d o q u e h ia n e lia .
P o r outra parte P y r a r d affirma com o t e s t e m u n h a de vista q u e
A n d r é F u r t a d o em bar cára na náo i V o w a Senhora da Penha de Fran­
ça , e saira d e G o a a 26 d e D e z e m b r o de 16 0 9 . N esta parte
tem 0 te s t e m u n h o d e P y r a r d m uito m aior va lo r q u e o de L u is
d e F i g u e i r e d o , posto q u e t a m b é m seja a u c to r c o n t e m p o r â n e o ; e
a in d a q u e não fora o te s t e m u n h o d irecto d e P y r a r d , bastaria V e -
flectir q u e A n d r é F u r t a d o , ten d o a c a b a d o de g o v e r n a r a í n d i a ,
n ã o p o d e r ia ficar n elia p a r a o a n n o s e g u i n t e .
A n á o Nossa Senhora da Penha de JFrança c h e g o u a L is b o a a I
d e Julh o d e 1 6 1 0 , s e g u n d o o teste m u n h o de L u is de F i g u e i r e d o , e
isto e x p lic a c o m o P y r a r d depois da sua volta estand o era H e s p a -
n h a , o n d e d e s e m b a r c o u a 2 1 de Jan eiro d e 1 6 1 1 , p o u d e saber ahi
da m o r te d e A n d r é F u rtad o, q u e morrera no raar j u n t o das ilhas dos
Açores.
H e pois m anifesto o erro de L u is d e F i g u e i r e d o qu a n d o diz q u e
A n d r é F u r ta d o fôra na ná o S. Boaventura ,i^OT(\ue esta náo ficou
n a í n d i a a q u e lle a n n o , foi n a m o n ç ã o s e g u i n t e , c h e g a n d o a L is ­
b oa, s e g u n d o o m e s m o L u is d e F i g u e i r e d o , a 7 d e J u lh o de 1 6 1 1 .
A confrontação doà d o u s a u c t o r e s a in d a nos oíTerece outras r e ­
flexões. N a náo Nossa Senhora da Piedade veio no an u o de 16 0 9
por cap itão o capitão raòr da a r m a d a D. M a n o e l d e M e n e z e s ; e
n a t o r n a v i a g e m diz P y ra rd q u e fora cap itão d a dita náo D . P e ­
dro C o u t i n h o , q u e saia da fortaleza d e O r m u z , o le v a v a a ' P o r ­
tugal 0 e m b a i x a d o r da Persia. D . M a n o el de M e n e z e s foi na náo
Nossa Senhora do Carmo, ( q u e d e v e ser a Monserrate de L u is d e
F i g u e i r e d o ) , e a d v e r te hem P y r a r d q u e fora por sim p les capitão
d a q u e lla náo , p o ra u e q u a n d o o V ic e -R e i ou G o v e r n a d o r recolhia
a P o r t u g a l , era elle o capitão inór d a A r m a d a n a t o r n a v i a g e m ;
c d esta v e z o era A n d r é F u r ta d o . F az-n os porem e s p e c ie dizer L u is
d e F i g u e i r e d o q u e na náo Monserrate ( q u e com o dissem os, d e v e
ser a Senhora do Carmo d e P y r a r d ) fôra por capitão G asp ar F e r ­
reira , piloto q u e tro u x era á ín d i a o V i c e - R e i R u y L o u r e n c o de
T a v o r a . N o m eio destas d iv e r g ê n c ia s s o m e n te o b s e r v a r e m o s ’ q u e
no que toca ás náos da to r n a v i a g e m deste an n o nos in clin a m o s
mais a crer o t e s t e m u n h o ocular de P y r a r d do q u e as i n v e s t i g a ­
ções de L u is de F i g u e i r e d o F a l c ã o , posto q u e feitas com o m a m r
desejo de acertar na e x p o siçã o dos factos.
1 I(

i'1tVa'l ^»i'v
I".
. [, V ;.. .

]i|;K r: ( ( '." 'ui " (.1 .j n ! /' !€■ ]


iM M i ■ : ‘ ;v ( 4 ■ :i'
■ .■ :/•
; - f , ,,i - 1 . ;•
>,v
- c-; v ':
v: : ’ iii'iiiU- ': ■
^'\r.Viv4V iiViiiVi,<-rr i- ■ ^':'
•'. ■ fi[> . 1 : '■■

I ■i'flfi';.
='■'>{ 1-
p . , ^ ;,
■t
.
' ■
r. - ^ '
'• .
y-W i
1,
O r’ f - " Cf i ' * - ,

Tiiv -S ; 4 ■ ; ■■ r f i : ■

I' 'V . : i H Tri-V '' • 'i.r ti


■ •':: .?5 f) ■ V i U - V o ’ V;,, ;V,

V 'f:'-
V i - v i - 4 r ' •''Vr,4' • a- 4h: ■
■i
'-'^ p i•.' ■' ' '

'■ ■ '' .':^ .. i a i '-Wi o v

' t >\ c iM 'U . ‘ ^ ^ r. ^

i t,\\f*
'.’"r'^'j'*i < ...v:!K :'*■ ,;L. 0'|V;

;s y-‘i ; H ' a ; ; ' f ■if'-

■ I, *■■>I', o
■ fy: . v'll ; ■ ' VI ^;.V ,r :
nt,:..': : :■ ■ ' vb 'Aii:

V'i%
’i- iil:’ - ' ' . ‘ i-’ i i • i ■
■ . . ' h fi " .,'i' ;■'

-.Wit’S:-
.^‘'f %rW
■ Kp'li V -w ■
ili- l ;*> ■;-

•o/
'. jf. K S 'f .- W a - J-
.. ■

, ■ V. 'i

vc'VVf

.:v-iK ‘‘'-i ,
OBSEIUAGOES
õ IIEOGRAPIÜCAS
S O B R E A VIAGEM

DE FRANCISCO PYRARD

POR P- DÏÏVAL,
S

eEOGRAPIIO I)’ EL-KEI DE FRANÇA.

( EM IG6Ü )
----- '■■ g3»CgXE*-------
M
OBSERVAÇÕES

SOUHE A l'IUMElRA l'AUTK.

Panr
A a ç ) . 1.

A França, que a natureza tem banhado de dous ricos marcs,


e dotado de nmitos bons portos e enseadas.
O s dons mares são o Occano e o mar Mediterrâneo. O Occniio da
a Franca o meio de traficar em todas as re-iioes, que elle hanlia,
u' um *e II’ outro coutinenle; e omar Mediterrâneo Ifie ahre o com-
mercio, a que nós chamamos ordniariaraenle commcrcio do Levante.
xJoje estamos em vesperas de ver a commiinicaçâo destes dons ma­
res pela juneçào dos rios de Garonna e Aude. Alem disso o Oce­
ano e 0 mar* Mediterrâneo servem de defenscão á trança em al­
gumas das suas provincias; e n’ outras parles -montanhas excessi-
vamente altas, e possantes fortalezas lhe servem de outros tantos
hahiartes. Franca, em consequência desta situação, leva grande
vantagem a seus visinhos, e mórmenlc contra a caza de Austria,
ponjue pode levemente cortar a communicação das forças dc mar
daquella caza; e tendo niais de quatrocentas legoas de costa so­
bre os dons mares , pode fazer-se senhora dellcs , e arliiUa do
iraíico. Ilavia-se julgado até agora (|ue os Francezes eram pouco
propensos a navegação, mas a expcriencia tem mostrado o contra­
rio; porque muitas armadas foram [loslas no mar nos últimos tem­
pos do reinado do Luis X .III, e depois, iio de Luis X IV , tem
294 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

estabelecido em França militas companhias, a saber, para a Groe-


Jandia, para o Canada, para a Terra-firme ( a ) , e para as Ilhas
(la America. Afora islo lem-se feito eslabeleciraentos na ilha de Ma­
dagascar, no Bastião de França, e em outras partes; mas as duas
companhias das Indjas Orieiitaes, e das Indias Occidentaes , nova-
mente formadas, são as mais consideráveis. De sorte que vamos
ver novamente florescer a navegação e commercio, e os Francezes
nao terao mais necessidade de ir buscar emprego nos navios das
outras nações. E ’ uma das très vantagens que outr’ ora reconbel
ceo Antonio 1 erez, quando disse ao Rei Henrique o Grande ciue
os rrancezes senão capazes de conquistar toda a terr.i «« podes-
sem juntar ao seu grande esforço, Roma, o Mar, e o t/msellio
Ha lioje para os negocios da marinha o superintendente dtes ma­
res de ponente e de levante, e oGeneral das Gale íjuaiido tem
havido no reino muitos almirantes, o de Franca tinha a i
dicção desde Galais até S a n t ih lò V o d ^ B r k V n h T t í n L \ f ‘sua
ate ao Raz , o da Guyenna até ao rio de Bidassoa , e o de Le­
vante ao longo das costas do mar Mediterrâneo. Os antigos Gau-
iezes souberam servir-se bem destas commodidades do mar
» . . t :
^Carthaginezes , lhes fizeram al-
cançar muitas vantagens J; e os Romanos não desbaratarair estes
s navios e:aul(: :ze.« a s e u .s'di lo.
Os melliores porto.s d 0 r e i n o s ã o , í 'alí i/v c m Pi ' it r dia ; D íc a e
e 0 Havre de Grace em X o r m a i i d m ; .S',lia i- •J/;?.!/,
T;,-'.: .1/'/3 •VÁ, H la v e t . 0 0 r
-

outro nome, Forlo .Lnin J l o r h i h a ) ) . e .1 des >1


; í "(' Im l h a ; C) í if line
era Poictou; la ihchellc no })ais íi’ A: ini;n , B r o u f i n e . e a T r c nvld.'~
de em Sai monge ; íFordi^(í^rr e m C e v e ; ill! a '■ h No:n'- ''e :
' ' -^7 ' , e
Set te em Languedoc; 31a\r s e i i J r , Toiihj.! , ‘■ Milro-, c ; ’.i 1 Vo v c i i r a. o : : -
de la gol fib os em grant le ] : i ; m e r n ; im ("!>n 0 ,n !;:í .ns buii i a - r 0,1
Bretanha. Podem-se junt i ■» » ^ ,• >.)> os (1 e i) ;li
que , e de Mardik em v' n i n n r e s . (* o d e Î( *. <»/]LV' ••* K.' n n o n - ii ! ÍOH.
:
II »>

l i a r e s a algnn.< . Î ,Vs t e s
tos C ass:i m .<e
, a B a c i a do Hav r e , a Cai.i Ir 1 d c 1...* 1!‘<í.. (
V-. l',

Pag.

Os Portuguezes e Hespanhoes tentam avassalíar si sós


os elementos.,, vedar os mares. etc.
principio estas duas nações somente foram as que emprehen-
deram as viagens longuinquas, e que enviaram colonias ás terras
remotas, os liespanbocs paia o Occidenie, os Portuguezes iiara o
Oiiente. Obtiveram até do Papa Alexandre vI uma doação de
( d ) A m erica rentrai, como na 5 » Obn-rvaeSo m e l h >r so vera.
OBSERVAÇÕES GEOGRAPHICAS

todas estas terras por conquistar. No anno de 1493 este Sunimo


Pcntifiee, que Sixto V põe na conta dos très maiores Papas da
Igreja, fez o re^íuiamento desta doação, pela qual investie a Fer­
nando Hei de Ararão e Isabel Rainiia de Castel Ia de todas as
terras que elles nodessem fazer descobrir ao occidenle de uma
linha f|ue se devia lançar imasinariamente de um pólo a outro,
cem legoas alem das ilhas dos Àcores. O que houvesse dc ser des­
coberto ao oriente desta linha devia pertencer ao Hei de Portugal.
A diííiculdade foi quando se chegou á divisão, porque de uma par­
te os Castelhanos queriam começar a contar aqiiellas cem legoas da
mais Occidental dos Açores;^ e os l*ortuguezes pertendiam contal-as
da mais oriental, na fenção de ganharem, pelo que assim largavam
nos sertões da America, a rica possessão das ilhas de Maiuco, que
depois foram trespassadas ao se i Hei pelo Imperador Carlos Quinto
por 350^ Ducados. As outras nações 'da Europa não ficaram con­
tentes da liberalidade do Papa Alexandre \ I no que toca a este re­
gulamento; e os Francezes, Inglezes, e nollandeze' quizeram ter ca­
da uns a sua parte. E porque depois dessas primeiras conquistas
tem havido diversas mudanças na posse de muiios logares daquellas
remoias reviõe'^, parece de algum modo necessário dar aqui noticia
do estado presente das terras, fortalezas, e outros logares que per­
tencem aos Eiiropeos nas índias, assim oceijentaes como orientaes.
Os (pie forem curiosos de lhe ver a posição, recorram ás cartas,
que deüas tenho formado.

Estado presente das terras, fortalezas, e outros logares, que perten­


cem aos Europeos nas índias Oceidentaes e Orientaes.

O->.^8 Francezes tem no Canadá, chamado por outro nome a Nova


França, Montreal', os Très Rios, Quebec, Tadoueac, e outros loga­
res tí borda do rio de São Lourenço. Tem também a Accagia ; a
ilha do ('abo Hretão, com o forte de S. Pedro, donde trabeam em
Nepiaignit com os selvagens da costa. Na ilha da Terra Nova.
Plaisance, e a Bahia do pequeno Niort. Penitagoet, Sao Joao , o>
Porto Real, e outras fortalezas do Canada e da Accadia foram-lhes
tomadas pelos limlezes. Nas ilhas Antilhas, São Christomo em mT-
te, ( a outra parte é dos Inalezes ) São Bartholomeu, Santa Cruz,
São Martinho em parte ( a outra parte é dos Ilollandozes;
lupe, a Desejada, Maria-galante, os Santos , a Martinica , Santa
f'^Ha aue os Inglezes lhes tem usurpado ha pouco , Grana'^a e
ó. Granadinos-, 0. Tartaruga-, e algumas
tal da Ilha Hespanhola, por outro nome chamada de Sao Domin­
gos. Na terra firme da Am erica meridional, na costa de Guayanna^
a iiha Cauenna. onde ha os fortes de b. Miguel de Ceperoux ,
ch a m a d o L j e o Forte Luiz, e a colonia d e M ahm . O com m ercio

È
yiAGEM DE FRANCISCO PYRARD

na costa d Africa nos rios de Senegal e de Gambia; am Ilufisque


perto do Cabo Verde, e em muitos locares da Guine. O Forte Del-
phim, e outras fortalezas na ilha de Madagascar, chamada hoje a
Ilha Delphina. As ilhas de Santa Maria, nourhon, Diogo liodri-
gues, etc.
Os llespanhóes possuem a maior e melhor parte da America, com
grande numero de cidades. Na America Septemtrional , a Nora
J/espanha, onde estam as Audiências on Parlamentos do Mexico ,
de Guadalajara, e de Guatimala; as ilhas da Cuba. Hispaniola
(os Francezes oslam estabelecidos na parte occidental della T , Bor-
riguen , etc. E alem d sto , Santo Agostinho , c São Mafheus na
Florida, e uma parte do Novo Mexico. Na America Meridiom^l , a
Caslella do Ouro, chamada por outro nome Terra Firme, onde es-
lam as Audiências de Panamá, e do Novo Beino de (Tranada ; 0
Ferú, onde estam as de Quito, de JAmn, e da Prata; o Chili, e 0
Paraguay, ipia comprehende os paizes de Tucuman , e da Prata.
Na costa d’ Africa sobre o oceano, Larache, }íahomera; a«: ilhas de
Salomão Sul; e a= ilhas emanarias
Oriente tem as ilhas Philinoinas. lí. madas antisann
le Manilhos, pela maior parte. Tinham de anies uma narte das
ilhas de Maluco, a salrer , em Ternate, Gammalama e Nossa Se­
nhora do Bozario; Tidore, Taroula, Castello velho , Maricece ( ? ) ;
em Gilolo, Gilolo, Sahugo , Aguilanio, Tolo, ísiau , e .>affouqo\
mas elles abandonaram todos estes logares, de tres ou ciuatro an-
nos a esta parte.
Os Portuguezes tem toda a costa do Brazil na America Meridio-
nal, e ao longo desta costa as capitanias do Pará , Maranhão, Cia-
r ij Paraih i, Tamaracá, Pernambuco, Se>^egippe, Bahia
de Todos os Santos, os Jlheos, Porto Seguro, Espirito Santo, Bio
dé ianeiro, e São Vicente. Junto das boceas do Amazonas as for-
talezas do Esteiro, Cordova , e Cogemina ; em Africa na costa do
lieino de Marrocos, Masagão, e Cart-guessem ( sic ). A kuns fortes
na costa de do Congo, e de Angola, e habitações na ilha
de S. Thomè. As ilhas dos Açores ou Terceiras; as da" Madeira e
Porto Santo; as de Cabo-Verde; do Princepe, de Fernmdo Pó , d'
Anno bom, ^ etc. Os Portuguezes foram por laríro tempo os mais
poderosos d’ entre os Euroneos na índias Orientaes; mas hoje são
os Holiandezes quem possue alli os melhores logares. Eis o que
resta á coroa de Portugal. Em Cafraria, que é a costa de Mono-
motapa, o castello de Sofala, a villa de Sena, uma feitoria com um
pequeno forte no Cabo das Correntes, e outras eazas fortes nas fozes
de Cuama, e outros rios da costa. Em Zanguehar, que é a costa
de Melinde, a cidade e fortaleza de Siocambigue, com o forte de São
Marcos; kitorms, e alguns pequenos fortes em Angoxe, e em Quilima-
ne. A fortaleza de Quiloa, e uma feitoria em A/onfia. A cidade e
íortaleza de Mombaça; a fortaleza de AJelinde, com as povoações, e
leitorias de J^ate e Ampasa. O trafico em toda a costa d’ Africa, des-
OBSERVAÇÕES GEOGRAPHICAS 297
île 0 rabo da Boa Esperança até ao Mar Vermelho, na ilha de Socoforá,
em Aden, em Fniaque, em Fassorá, etc. Na , bdlorias, e
metade das aTandegas na ilha de Bnlwrem, e no fonrio. o trafico de
Bändel rico f?) , no caho de Jaqnete, e outros locares. Na Tndia do
Mogol. Diu, Damão com os fortes de S. Jeronimo, Sanqens { a 1 Onel~
nie-Maliim, e Tarapor: Paçaim com a ilha de Salcefte; o forte de
Ifandorá, chamado por outro nome. Manará fh ); a povoação de Ta~
ná fortificada com tresfo rics; e Serra de Âsserini. Oqvíi. aldea á
horda de Ganges; o trafico em Aqrá, em Aniedah'^d, em ^amhnya,
em Baroche, cm Surrale, em Bengala, etc. No Decan t^m Chanl\
^m as fortalesa.s do .l^rro. de Baranjá, e a.aldea de Mazaqâo ( c )!
(joa com sua« fortalesas, e denendcncias na terra de Pardpz,' o. ilha de
de Salcpíe, d) Na costa da Ehina, Aíacáo. Na ilha de Solor, a povoa*
ção^c forte de Larantuca. O trafico na Per.na, em Golcondá. em .4r-
^'ocão,^ em Peqú, em Tanauxerim, em TJrior, Odm, e outros logares
de Siõo. em Camboja, no Macassar, na ilha de Timor etc
Os Inglezes tem augmentado extraordinariamente os seus Estados de
inm rica. mormente depois nue tem contenda com os ITolIandezes.
rns«uem na America Sepfemtrional a Nom Innlaterra\ a B a M a da ■í
Trindade. Clnvchet, e a veqvenn Plaisance na ilha da Terra Nom\ a
Virginia, e as ilhas Bermvdesv Pentagoet, São João, Porto Real,
e outras fortalezas no Canadá, e na Acendia, as ouaes ganharam aos
Francezes. A iVona JJollanda, rnie tomaram aos Tíollandezes em 1664,
com a Nom Amsterdam, e o forte de Orangf>. Nas ilhas Antilhas as
Barbadas a Barbada, a Barbuda, a Engnia(Xnquille\ São Chrü-
tovão em parte (a outra parte édos Francezes), Ãíonserrate dus Neves, por
outro nome Meuvis, Antigoa. Santa Luzia, por usurpação aos Fran­
cezes; a Dominica, e São Vicente em parte. A ilha de Santa Catha-
nn«, chamada da Providencia-, a ilha ^nmaicn, ea da Trindade. Uma
colonia em Suriname, com alguns fortes nas costas da Guaynn^i.
Em Africa Tanger, perto do Estreito, São Phihnpe junto do ' Caho
Verde, ( e ) Pnqrin, Co’^m'yntim, Nasch^nge, Trnngnerari, e outros
lugares em Guiné. Os Tíolandezes tomaram-lhe Cormantin no anno
de 1665. Um forte na ilha de Santa Uelena etc. Madraspatão {Ma­
drasta) na costa de Coromandel, cas ilhas de Bombaim, Angediva, e

(d ) S a ã it Jean, escreve o auctor coni visível equivocação. Os In-rleres escre­


vem S a n ja y i ou S u n ia n . °
(b) Nao adm ira que o auctor escrevendo em tal tem po, e na Europa, enn-
nm disse alguns pontos de pequ ena im portância. Bandorà. é d i v e r s o d e M a n o r 'd .
andork è na ilha de S a lc e te , ju n to à dc B o m b a im ; M anora m u ito m ais ao norte
no sertão.
(c) O utra pequena equivocação. A aldea de M azap^o é na ilha de Bomba-
im , e pertencia por con sequ ên cia á jurisdicção de B açaim . A equivocação precede'o
sem duvida de ser a q u ellc sitio de M azagão proxim o e fronteiro à ilha de C a­
v a nj à ,
(d) A terra de Salcete, ao Sul de Goa, não è ilha; mas devem os desculpar
o auctor, porque m uitos docum entos p o r t u g u e z e s llie cham am ilha.
(e) Provavelm ente algum a transitória o c c u p a ç a o da ilha portu"uera deste no-
K P , hoje c o n h e cid a pelo de ilh a do Fogo. °

75
298 YIAGEM DE FRANCISCO PTRARD

Pouleron (a) €ma caza e aposentos onde tern ura Presidente era 5 ur-
rnte, e oulra era xítu. Feitorias era lsp ihani,(ivi{ Gonibru (Comerão)
onde tera raetade da alfandega, em Agrá, era Amednbacl, era Comb^y
era Barodá. era Baroche, era Snrrote, era I)abul\ era Bettapoh (b),
ein MosuUpfytnm; ç,vci Siãn, era Camboja, era f unkitn , pic.
Os Ilollandozes foram d“ sapossados da sua Nova Ifollanda pelos
Ingipzes no anno de lfib’4, e perderam alii a sua cidade de
lúatte, a que iinhani chamado Nova Abater dam ^c o scu forte de
Orange . Da niesma sorte perderam nas ilhas ^ Antil/ias a
de Sanío Enstadiio, e mais para o meio-dia as de e de
Tabnqo. Tora ainda a ilha de Sabá, parte da de São jtlartmho,
onde ha lanihem Fraucezes; a cidade de Coro na Terra r i me', as
cnlonias de Boirnn, dc Esquihe, de Hrebic , e oulras nas costas da
Gua ana. Era Africa, Argvim, e Soréa junto do Cabo Verde; o for­
te de S nto André no rio de G mbia. Sã/) Jorge da Mina-, o lor-
te de Nassau, e o de Cabo ^ orso, pretendido nelos Suecos, em (jiii-
né; muitos fortes no ( ongo, a Povoação na ilha S. í iome etc.
í c ). Junto do •'abo d ' Boa Espernea, e na Tafel-bay o\\ Ia -
rI ble bay. d<'us fortes. A le'^te da ilha de Madagascar, a hg
nefo. Na costa do Afaíabar, Onor, Parcelor,, Àf(inga-0 '< , Canan >r ,
»,.
Cranganor^ Cockim, e Coulão Na costa le Co-onvam.eL TuUco^im,
Negap tão. Ca ical, Giieldres junto de Pallecaíe; leitorias ^e.Li Ca-
lical, era Foíser-'^ ( d ) , e em outros logares. Na peninsica^ aa Ín ­
dia d’ alem do Ganges,. Malaca com os portos, ilhas, e, loaalezas ,
que delia dependem. Na ilha de Oilão, N^gumbo, ‘ olumbo GaJe,
fíaticale, Tringuilemale. iaffanapatão, e uma jorta.cza na ilha da
Manar. Na ilha de .]ava, Sacatra . chama iii Baiana , c suas de­
pendências. Parte das ilhas de Maluco, a saber em lernate lo -

(a) A n g eã iv a , e P o u le r n n . E ’ srabiJo qnçrffk I l h a . <lo i i u u h . i ' . m toi p e iiUn por


Portugal a losCU erra pelo tratado de 23 d e . . l u n b o i l e . 1 ! / H ; -pi ' o vice-Ilei An-
toiiio de M ello;de Castro duvidou em fazer en trega dà il h a aos l u g l e z e « , os quaes
durante a contenda se recolheram im ilha de A ngediva, que a esse tem po esta.
va desoccupada. Só no anuo do 16G5 he que se faz a enírega de ^ ouba-m ,
e os Intrlezes sairam de A n gediva. O auctor pnrem que escrevia em b r a n c a no
anno de^lGÔG fao que parece) ainda não estava inf.irm ado da saida dos Ingle-
zes de Ano-ediva; e assim nom ea entre as su a s possessões a B om baim pela noti-
cia que tinlia do tratado; e a A n g e d iv a pelo facto da o ccu p a ça o . Esta ilh a de A n ­
g e d iv a pela sa i Ia do s Inglezes ficou novam ente desoccupada ate que nos nos
estabelecem os nella defiiiitivam en te no anno de 1683 governando o vice-R ei Coii-

^ ^ P o M /^ rem ê se m d u v i d a o m e s m o l o g a r q u e os Inglezes escrevem Pa^oíJ erwfn «


P a la v e r a m , n o a c t u a l d is tr ic t o d e G h in g le p u t , ou antes C h e g a ,p a L , n à ]ne^ u\ea-
cia de M adrasta, I l m ilhas ao sudoeste desta cidade. N ao ha ilh a algu m a a

^ (b) Provavelm ente com este nom e d esign a o a u c t o r o lo g a r d e P ettu h, très m ilha»

ao noroeste de M asu lip atam . -n , u« « Trim ni


(c) A l g u n s lo g a r e s o c c iip a d o s pelos H ollandezos em A n gola e ilha de S. 1 homè
foram • depois recobrad os pelos P o rtu g u e ze s .
( d) P a r c í e - n o 8 q u e é o m e s m o l o g a r q u e o s I n g l e z e s escrevem l oiíaíw ra, no ac­
tu a l d'stricto de G a n jã o , Presidên cia de M sd rajta.
OBSERVAÇÕES GEOGRABHICAS 299
eomma >J ahicco f Mahya; em Molir o porto (it Nassau- em Mn.
fabiUola, Nuff'aquia, por ioutro norae Nahaca, e Man-
t Loboua; em Gilolo >abo'u e Co-
, na 11ha de kmhomo, Couhelia, e Z oüîo ; nas illias de Handa
’c ^ / i \ w « , e Revenge na de Poulewau Na
As illias de Savo, e /ioion iuato
a Macassar urn forte na de Timor. Parte da Terra Austral a one
d’” . os terras
d’ ’ a« r • por oiitro iiome da Coneordia
Ldeh, de Lmoin, e dt Naitz. Miutas feitorias, a saber na Per­
il f Comorão) , em Ispahan; nas terras do Mogol em Agra em
Amedabad, em Cambaya, em Baroche, em Surrafe , e C o J i ’ em
Coimbatore, em paced em Patna, em ripilipatan ( a ). No’ De-
can ( j) ) em \ingorla. Lm Coromandel em Nepapatão. Em Gol-

7m O did N em Avd , em Em .ymo


om Arow, em Frio man, em 7n/«-
em iambi, em I altmbam , e ouiros Iodares Na
e\i ilc iT s a r ^ l iapard. Na ilhas Celebes em ^Manado,
> Macassar. () traheo na iliia de òdeotorá , na co4a da Arabia
em .joca, em Aden , e em luirtague; nas iihas de Larek ( c ), em Ke~
sem, e outras próximas de Ormuz; em Eisnagd em On:cd ; em Ar-
racan; em lea n : ...

^ uuuas Jidiu-s ua uiina etc. Em lUma na illia de Bor


neo E com excliisao das outras nações pretendem ell s o trato na
de :bu??mí ^ no iapão, nas iliias de Amboino, B alli
e outiaS. Eni tma na ilna ' ambua, elc. ^
Os Siieco: r t! tia America Septemlrional a iVora onde es-
t Ult it, o ipemlKtiírg, Elsimbourg etc; e pretenções sobre o Ca­
n a ,

bo torso em '.oiue
a - Ijinamarqiiezes tem também àigumas terras em uma e*outra
l Na America do Norte a Noca Dinamarca. Na Costa de Go-
ro;uaiid^j . ranqaebar.
Pag. 5.

PavtinYios dc S. Mãlô com bofu vento de nordeste para dãr


principio a nossa viagem.

dons navios, em um dos quaes hia P yrard , navegavam para

C ) Falvez P ip e ii no a ctu a l dist-icto de B ijn onr nas rrovincias B ritauic


N oroeste. as d(

(l>) D svia d iicr Cowc«o™ {c) L o / ’à ?


300 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

as índias Orientaes; e ror issso não é fora de^ pioposito dar aqui
as Derrotas , que ordinariamente seguem as nações da Europa, que
para alli navegam. E para não fazer uma observação imperleila ,
junto aqui as iderrotas das mesmas nações para as India»^ Ocviden-
taes. Taes observações serão talvez fastidiosas aos que nao buscam
nos livros senão aventuras romanescas, ou historias divertidas; mas
eu não as ponho aqui senão para os que fazem da Carta um de
seus divertimentos, c que querem conhecer as navegações de longo
curso.

Derrotas dos Diiropeos para as índias Occidentacs»

w s que navegam no mar Oceano nos ensinam que os \entos ,


que sopram ordinariamente na zona tórrida , sao chamados líriz a s ,
e ventos geraes , c que estes ventos correm d oriente paia
I
oceidente, segundo o movimento de primeiro m ovei, que faz tam­
bém mover o mar da mesma maneira. Os ventos que reinam ordi­
nariamente desde os 30 até aos 40 grãos de latidiide septenitrionai,
são vendavaes d’ oceidente para oriente. Nos mares proximos dos
t (
pòlos não lia ventos regulares. Aos pilotos cumpre escolher as sazões
comniüítas para sua nave::ação; conliecer por experiencia todos os bai­
xos , e as ( orrentes das paragens ou sitios aonde hão de ir ; saber
hem a qualidade e andadura de seus navios; bem observar o vento
que tem, para oar o devido desconto a sua derrota quando a mai-
cam na carta; c íinalmenle ter todo o resguardo com_ a variação
da agulha, a (|ual, segundo o que se tem conhecido, não é semnre
a mesma no mesmo logar.
Chamamos á America índias Oceidentaes, porque muitos ae seus
habitadores andam ordinariamente semi-nús, da mesma maneira que
a m;;jür [larte dos das Índias Orientaes; ou porque dalli se extrabem
nieicadorias mui preciosas; ou em liiii porque se acreditou ser pe­
gada com a índia da Asia. Os Uespanhoes são a nação que para al­
li tem feito maior somma de viagens.
A derrota antiga e ordinaria era ir primeiramente ás ilhas Cana-
rias, a saber, á grande Canaria, ou á Gomera, e dalh navegar pa­
ra 0 sul e sudoeste para aproveitar as monções ou ventos geraes da
zona tórrida, ({ue sopram de leste a oeste, e que levavam os nave­
gantes á Deseja Ia , ou á Dominica , ou a Guadalupe , ilhas que fa­
zem parte das Auiilhas, e que ministram boas aguas. Em íim a
.t favor dos mesmos ventos navegavam por Ocoa na ilha Uespanhola,
( a > e para outros logares da sua dependencia.
Hoje em dia, como tem duas armadas, uma para a Nova
paiiha, e outra para a Terra firme, depois de haverem seguido

( d ) lloje vul^^íirmcnte— 6ao D o m in çfu s.


OBSERVAÇÕES GEOORAPIIICAS 301

lo de ^ ' a B r A m õ „ i r n : ' p a V l , c ! ; r n , " r î t ^ * í'


d i r e " ‘| , " Í V % l f s 1? «'■'«• qile
pá ílhà H i l l a : e d e r o l f f / ’ l ^ r " ' “ e o oábo T i C

co“í i í ^ 4 í w ™ r ':r a \ t f i i f
por.to de Vera Cruz por uma (oriente
outra meridional no vercão. A n fa m e n L ^ a n o r^ f ^ P^^i’
^ulli os mercadores vão por terra á cid'ide dp Tnc À

d i i î î ! "
Uesp^DhTa Vm^'cru^ Gasiam-se quazi très mezes na vrajem'de

Camarão para desembarcar em î x i l h o on l “ n'''’"

embiircam-se no porto d’VcapiiIco e no do fe>irvî.t^


do cid O nm onîr A «..; I ^ 9 ’ ^ ^''‘^bvidade, amiios no inar

tlepois de ter na^^ado i vis


outras ilhas visinfias, toma a^derrota'mra
4 Amuica Méridional até itîconhecer alli os Cabos da Velh e dl A
gina, e seguir depois a Cartagena, onde se deTembarea nara o n t
Z p” '? n" Granada. Os na?ios destinados para o P e r / navt^?am r
ate lo rto P e llo , eomo d’ antes navegavam paia Nome de Deos^-' e
abi descarregam as mercadorias da Europa , que são levadas nor ter
I a as costas de grandes carneiros, chamados vicuvos até Panama
ouvao por um boni es|aço de caminho pelo Od V c b a r /
Panama emhaream-se estas mercadorias para Lima ou para Àrica
que e o porto de mar mais proximo do Potosi cîdade ^famosn nm’
SMS minas, que antigamente/bram reputadas a s’maïs rfcas do nuln-

Na tornada para a Euro[a, as armadas, assim a da Nova Ile»;

oc Forto bello e de Cartagena, juntam-se todas na Havana na ilhâ


n P IV occidentacs, qu^ e mui j e û ­
nai de Bahanrî e^ ton am a derrota pelo ca-
Finvi^^ de lercm corrido ao longo da costa da
(a , (.a Viigima, e oa da Nova Franca, nassam ao «ul das T e r
c c im no mvcrno, e ao none ,!as mccn.is ’.l'a , "o w â o ali J "
’ 76
302 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

avistar ou o Cabo Finis terra, ou o de S . Vicente, e depois en­


caminhar-se ao porto de Cadiz, ou ao de Santa Maria^ assim como
de antes hiam ao de San Lucar. ToJos estes portos são na provín­
cia de A.ndalusia. Em nosso tempo tem ás vezes estas armadas ido to­
mar a Corunha em Galliza , c Santander em Biscaia ; mas tem sido
por evitar o encontro dos Inglezes , que andando então de guerra
com os Uespanhoes, esperavam estas armadas na sua passagem ordi­
nária. A antiga derrota da tornada era ao sair de Cartagena e de
Santa Martha, cidades maritimas di terra firme da America, ir pas­
sar a oeste da ilha deS. Dimingos, que é a mesma que a llespanhola,
e a leste das da Jamaica e da Cuba; e depois^ desembocar de todas
as Antilhas pelo canal entre a Mogana e as Gaicas, a fim de ga­
nhar 0 mar largo , e aproveitar ahi a commodidade dos ventos d'
oeste.
Os Francezes tomam a sua derrota ou para o C in alá , ou para
as Antilhas, ouparaa Gayenna e Terra íirme, que lhe está provima.
Se vão ao Canadá , b seu trajecto é apenas de umas sete­
centas legoas pelo occeano, e vão passar pelo norte e pelo sul da
ilha da Terra nova, de caminho para o Uio grande. Se vão ás An­
tilhas ou á Gayenna, tem por costume ir passar á vista das Gana-
rias, e seguir depois a derrota para meio dia até que na zona tór­
rida achem a commodidade dos ventos de leste, que all\ nnnca fa­
lham. Encontram em seu caminho daquelles peixes voadores , que
são do tamanho de arenques, e não podem voar senão em quanto
tem as asas mo'ha las, e acham perpetuamente inimigos mais possantes
que elles ou seja no ar ou seja na agoa. Não encontram^ porem tão
grossas serras de agua em ponto algum de sua navegação, como as
que encontram no mar de Gascunha.
Podem-se conhecer as derrotas das outras nações da Europa para
a America pelas qne acima ficam referidas, guardada a proporção
das terras, que cada uma oceupa.

Derrota dos Europeos para as índias Oriantaes.

X elo nome de Índias Orientaes conhecemos as costas d' Africa e


Asia, com todas as ilhas e peninsulas do nosso hemispherio, que jazem
DO mar das índias alem do Gabo da Boa Esperança indo para o oriente.
Neste espaço ha a Cafraria em parte, o Zanguebar, a ilha Delphina
( a ) ; as costas da Arab a e da Persia ; as do imperio do Mogol,
com as duas penínsulas da índia; as da China, as ilh^s de Maldiva,
Ceilão, da Sunda, de Japão, Philippinas, e de Maluco. As diversas
nações da Europa, e as differentes comoanhias estabelecidas para o
coramercio tem avançado ou recuado á proporção de seus interesses

( a ) S5o Lo u ren ço, ou M a 1.-igascar.


OBSERVAÇÕES GEOGRAPHICAS 303
as linhas Jos meridianos, que abrangem as terras solireditas, e fabricado
por este respeito Cartas a seu sabor, alargando nellas as regiões, que
lhes tocam em partilha.
Os Portuguezes no tempo do seu grande estabelecimento nas índias
dividiram todas estas costas em sete grandes partes. A 1.® era a
costa d’ Africa; a 2.* a da Arabia; a 3.® a da Persia até ao golpho
de Cambava; a 4.“ a da índia desde este golpho até ao Cabo ( amo-
rim ; a 5.*" entre este Caho’e o rio Ganges; a 6.® desde o Ganges
até ao Cabo de Singapura; e a 7.® entre este Cabo e o de Liampò na
China.
A maior parte das regiões das índias Orientaes são as mais bellas,
e mais deliciosas de todo o universo, e sem contra iicção as mais ricas,
por quanto as riquezas dos outros logares do mundo de lá vem como
de sua origem, ou antes, alli vai quem quer ser rico. E ’ por is­
so que os Europeos em suas navegações tem buscado todos os ca­
minhos imaginayeis para lá ir com facilidade; e foi isso o que os
Portuguezes conseguiram felizmente no século passado. Os Ilollan-
dezes tem crescido alli tanto em poler no nosso temoo, que querem
ser senhores assim de seus mares com a de seus co nmercios. Os
Inglezes também tem querido haver a sua parte. E os Francezessão
persuadidos que em nada cedem ás outras nações, e que tem todas
as qualidades necessárias para taes empresas; e por isso no
anno de 1664 fudaram irna celebre comoantiia para o coumercio
das índias orientaes, e El-Rei lhe concedeo para esse íim artigos
mui favoráveis.
Muitos logares maritimos da índia tem nomes portuguezes, c al­
guns nomes hollandezes sobre os que lhe foram da los pelos Por­
tuguezes. Ila também outros que são chamados dos nomes dos San­
tos, cuja festa se celebrava quan lo foram descobertos , ou o nome
dos principaes cabos que commandavam taes empresas. A natureza
das terras onde são situados estes logares, e as coiisis que nellas
se tem visto, ou alguma outra consideração tem outrosim contri-
buido para o nome que lhe foi posto.
A lingua portugueza é usada em quasi to las as costas das índias
Orientaes; e também entre os Europeos e índios que nellas^ traficam;
mas quando se torna destas índias para a Europa pelos Estados do
Turco , deixa-se 4ísta lingua em Bagdad para ahi se começar a
faüar o Turco, e o Franco , ou Italiano corrupto.

Derrota dos Franeezes para a Ilha Delphi na.


íi

A’ saida dos portos de França tomam a


te até a altura do Gabo de Finis terra
derrota quasi ao sudoes­
em Hespanha. üalli vão
no rumo de sul, e passam a oeste, e á vista da ilha da Madeira,
ou de preferencia, a leste da de Porto Sauto-. Avistam a ilha de
301- YIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

Palma, uma das Canarias , passando-lhe dez iegoas a oeste pouco


mais oil menos. Podem tamlicm [assar entre TeneriíTe e a grande
«'anaria, mas então devem evitar com grande cautella o baixo dos
Selvagens , que fica ao sul de Porto Santo, e dispor as cousas de
maneira que o não possem senão de dia. E ’ um aggregado de ilhe-
os que se consideram como um banco porque são pequenos, e ro­
deados de rochedos. Depois vão sempre no rumo do sul, e passam
pelo meio do canal que íica entre as ilhas de Cabo Verde e a ter­
. ,* ra firme de Africa, isto é, quasi a trinta ou quarenta legoas a leste
destas ilhas. Não passam mais proximos da costa de Guiné do que
noventa ou cem legoas , porque as correntes do mar os impellem
para ella, e porque ha alli calmarias importunas. Semelhantemente
não se aproximam da costa do Brazil mais do que da costa de
Guiné para evitar os Ahrólhos, que começam perto da ilha de Santa
Barbara, onde Santa Catliarina, quasi a dezoito grãos e meio de la­
titude meridional; porque de outra maneira ver-se-hiam obrigados
a arrihar á E u ro p a .E p o r essa razão seguem uma derrota media entre
a ilha da Ascensão e a da Trindade, que jazem a vinte grãos de latitude
meridional. Daqui vão para o sudeste até ganharem aos trinta e
dous grãos da mesma latitude meridional o norte das ilhas deTristão
da Cunha, das quaes se não acercam , porque ordinariamente os
mares são alli mui grossos. Estas ilhas são sete em numero, e entre
cilas ha uma maior que as outras. Caminhando daqui para les-
sudeste acham-se os signaes do Cabo da Boa Esperança, que são
a erva verde, chamada Sargaço, e Trombas, as quaes são pedaços de
cannas de ires e quatro pés de cumprimento, e dagrossura dc um bra­
ço, que nadam sobre as aguas com suas raizes. Tem por costume pas­
sar a distancia do Cabo das Agulhas, que possam sondar o lianco,
(]ue estã ao meio dia delle. Dalli vão a leste, e depois a nordeste
para chegar finalmente ã ilha Delphina.
No caminho sobre dito detôm-se ãs vezes nas ilhas Canarias, ou
nas de Cabo Verde; outras vezes no Cabo Branco, no Ruíisco, nas
ilhas dos Ídolos, em Tagrin, on na Bahia de Saldanha ( a ) na costa
da Africa., segundo a necessidade, e as occurrencias. As ilhas dos
Ídolos são a nove grãos e meio de latitude septemlrional, cobertas
de maltas, c muito altas. Na grande, que está ao sul, ha agua doce,
frutos, c aves; mas não ha que fiar na gente da terra. O melhor
porto das ilhas dc Caho Verde é a enseada dos Inglezes na ilha dc
S. Vicente. ( b ) E ’ em forma semicircular, com vinte e duas braças
de fundo, e uma grande rocha ã entrada. As altas montanhas da ilha
de Santo Antão lhe servem de abrigo contra os ventos de oeste e .ocs-
iioroesle.
A Bahia dc Saldanha, que tem sete a oito legoas de comprimen­
to sobre duas ou tres de largura, tem bom surgidouro, porque se

í H ) A(/ut d i de Saldanha, é o nome povtngnez.


1» )> h’ o 1(rrla grande , heje o i»ais frequentado daíjuclle artliipelago.
OBSERVAÇÕES GEOGRAPHIGAS 3 05

fh co ^ q w “ r s e ' l l m . ' ’®

Derrota da ilha Delphina a fvrrote, a 3Iaévlifaiào, a Bívnala,


€ a Bantam.
t

v " '“ P“>'® <! tf(a. Borois dc ler a-


d f liaho Í V ? “ '"'/'''V P ' - ' " »s J 'f iK s <!e ^azareth a cesle
«O j)ai\o (Ia ba}a de Malha, a Icsíc do des Sete IimaCs ^ceiiiodo o
runio de aorcoale. l>cdc-se l,i.d,cm ir a^it(ar a ill!a de l i e Z Hc-
diigiies, deixal-a a Icsie, rasfar ciilrc os lai^cs dc Garajez e deS
lirandao, enire a iJlia de Ikq iie Pires e o i:ai^o de J orto dos
nhos, e contiriuar sua derrola. Saindo da iahia de Saiíto Acodiiiío
pode-se tomar a ceste da ilha, doi>ar os hahos da í S
da, e os haixos do Parcel a dir.eiía, e ir rara roí deste ((mo PiVein
os PortUêúezes. Pm todas <stas derrotas é mister íiaTcr’ Ions pilotos
fact s mlae r J r e h * ' ” -'“ ” '’'’ ' ' " ’ t í o lâ a irn ía is

Ha dc Surrale a Masulipafão um caminho por (erra, qiie se fazem


quarenta jornadas pequenas com Bastante facilidade, e por Boas ter­
ras; porque desde Surrale até ás fronteiras de Golconda^, é uma re-
f /^V^^•** ‘''P■'^^o^^auapôr, Kossari, Aurcngalad iun-
c Am lart, Patri, Bajurá, ( andahar, rdeguir ( a )
..;ejbidar, que ^o nos Estados do Megol; e depois a Indur, a Gol-
Go^condá c cm íim a Masulipatão, terras do reino de
O caminho por mar de Surrate a Masulipatão é ao longo da cos­
ta da Índia ate a altura do Cabo de Comorim, da qual se vai avis­
tar a ponta de Galle na ilha de Ceilão, e depois de passar ao meL
dia desta ilha, navega-se para o norte. Se se vai a Bengala, ou ao
Porto Grande ou Pequeno, vai-se avistar o CaBo Godaverv, e de­
pois 0 das Palmeiras. '

Tornada da Ilha Delpktna a Franca.


ii
A tornada da ilha Delphina a França faz-se de outro modo differen-
te da derrota por onde se vai a ella , por causa dos ventos geracs
que reinam de leste a oeste na zona tórrida, como temos dito. Por-
(jue depois de se haver dobrado o Cabo da Boa Esperanço e estan­
do-se a umas cem legoas a oeste, segue-se o rumo de nor-noroeste
ate aos dezaseis gráos de latitude meridional, donde se vai direito
( a ) Eidgheer escreTcm os Ingle7.ps.
77
306 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

ao poente a avistar a ilha de Santa íleleaa , na. qnal se costumam


ir refrescar. Os In^iezes tem nesta ilha um, forte ha poucos annos.
Da ilha de Santa Helena vai-se á ilha da Ascensão , onde ha o re­
galo da pescaria das tartarugas; e depois caminha-se sempre para
noroeste até á altura de França. Nesta tornada quando se esta um
pouco para cá da liulia, deixa-se o Penedo de S. Pedro á esquerda,
deixam-se depois as ilhas de Gabo Verde á direita , e do mesmo
modo as Terceiras; e ha toJo o resguardo com os Abrolhos, qim
são ao poente de umas e outras destas Ilhas,

Derota dos Portuguezes para Goa.

O s Portuguezes vão ás índias Orientaes pelo meio dia do Çabo da


Boa Esperança; e a sua navegação no mar das índias é regulada
por certas saz^s, e ventos, a que elles chamam Monções . Depois
de haverem dobrado aquelle famoso Gabo, tomam o caminíia para G£»a
por entre a terra firme de Africja e a ilha Delphina , a leste ou a
oeste dos baixos da Judia. Vão refrescar-se a Moçambique; fazer agua­
da ao rio da Quitangonha, que lhe fica visinho para a banda do norte;
e saindo de Moçambique vão passar entre as ilhas de Gomorq e a de
João Martins; e* daqui vão seguindo sempre, para nordeste até ao dé­
cimo sexto gráo de latitude septemtrional, na distancia de umas cem
legoas da , Gosta Deserta. Em fim tomam o rumo de leste para ir a
Goa, onde surgem defronte da fortaleza em seis braças de agua, so­
bre um fundo de vasa molle. Se passassem a leste da ilha Delphina,
não teriam as correntes do mar tanto á feição como tem, quando lhe
passam a oeste.

Derrota de Goa para Macáo.

Quando os Portuguezes vão de Goa para Macáo, caminham ao longo


da costa de Malâbar até ao Gabo Gomorim, depois pelo meio dia de
Geilão, e de todas as ilhas as mais meridionaes; e vão passar pelos es­
treitos, que ficam na visinhança da ilha de Baile, e navegam ao longo
de Macassar e das .Manilhas até Macáo. Este caminho é mui traba­
lhoso, e todavia são obrigados a fazer estes grandes rodeios, porque os
Ilollandezes os impedem de passar pelos estreitos de Malaca e da Son­
da; e até muitas/yezes os vão esperar nas alturas de Goclúm, e da
ponta de Galle na costa dUi ilha de Geilão.
A navegação de Macáo ao , Japão é de uns vinte dias.
Tornada de Goá para Portugal- . '

N a tornada, saindo de Goa os Portuguezes metlem pára a oeste cou-


OBSERVAÇÕES GEOGRAPHICAS 307
za de cento c cincoenta legoas, e depois vem avistar a Gosta De­
serta em Africa, ao longo , e á vista da qual ganham Moçambiíjue;
e navegando entre a ilha Delpliina c os baixos da Judia costeam a
Terra de Natal, onde de ordinário as correntes são de nordeste a
sudoeste, e onde a navegação é mui perigosa. Depois disso tornam a
Portugal pelo Cabo da Boa* Esperança, seguindo a derrota acima de­
clarada.

Derrota dos Hespanhoes para as Manilhas.

I a r a abreviar uma viagem de tão longo curso, como é a das índias


ürientaes, os Hespanhoes, que q^uerem ir ás Pliilippinas, a que chamam
Manilhas, vão prinieiramentc pelo mar do norte em direitura ao Mexi­
co, região da America Scptemtrional. Dalli vão emharcar-se ao porto
de Acapidco no mar de sul, e na mesma região, para ahi se aprovei­
tarem da commodidade dos ventos geraes. Quando tornam das Manilhas
para o Mexico, caminham ao longo da costa para se poderem servir
dos ventos, que vem da banda da terra firme. Trato mais ampla-
mente desta derrota no artigo das derrotas dos'Europeos para as Ín ­
dias Occídentaes.

Derrota dos Dollandezes para Jacatrá, por outro nome Batavia, na ilha
de Jara , para as ilhas de Maluco, Cochim, e Malaca.

Os Hollandezes tomam níuitns vezes o caminho das índias Orientaos


picio méio dia do Cabo da Boa Esperança, como fazem os Portuguezes.
■^ão também pelos estreitos de Lc Maire e de Hrowers, o primeiro dos
quaes não tem mais de sete legoas de comprimento, principalmente
quando querem ir ás ilhas de Maluco e a Batavia. Seguem este ca­
minho alravez do Mar Pacifico por causa dos ventos, e das corren­
tes, que alU acham favoráveis navegando assim para o oceidente; c
porque de ordinário gastam menos tempo, e perdem menos gente que
na outra derrota.
Quando pelo meio dia d’Africa vão dobrar o Cabo da Boa Espe
rança, detém-se muitas vezes na Bahia da Mesa, a que chamam Tafel-
baij ( a ). Esta bahia é uma acolheita nrai commoda para os navios, ii
porque podem ahi surgir com toda a segurança em seis ou oito bra­
ços de agua, e ficar abrigados das tempestades , que são tão fre­
quentes nestas paragens. São alem disso os ares allimui saõs, acha-
se toda a sorte de refrescos, agua excellente, e tão accessivel, que
se faz alli aguada sem trabalho algum. E ’ por estas considerações que

( a ) Oí Iiiglezes sicrevem a seu in o d o ^ T a b la -b o i/.


VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

os Ilollandezcs alli lem fundado iim estabelecimento de ha annos a


esta parte, não se dando por contentes do iiso antigo de deixar alli
simplesmente cartas para fs sens compatriotas, que houvessem dépas­
sai-. A monianha ou Meza da bahia é avaliada na sua altura em 1330
pés de rei.
Os Ilollandezes, que se nào detem na Bahia de Meza, vâolmuitas
vezes ganhar a ilha Wauricia, por outro nome chamada do Cisne,
a qual tem muitas montanhas qiie produzem palmeiras, páo verme­
lho, pão amarello, e chano excellente. Esta ilha tem na sua parte
meridional um porto entre os baixos, no qual pr dem caber mais de
ciiKoenla grandes navios ao abri^io de um forte alli fabricado no anno
de 1640. Dalli por entre diversos baixos vão ganhar o canal de Mamale,
ou 0 de Malique para passar a Cochim ( a ), e nesta ultima derrota
temas correntes assaz favoraveí^^.
No que loca á derrota para Malaca, quer alli vão da ilha Mau-
ricia, quer de Cochim. vão passar pelo canal da ilha de Nicobar, que é
ao norte da ilha de Sumatra, e deixam á esquerda a ilha de PuIoLada,
por outro nome chamada ilha da Pimenta, de quasi vinte legoas
de circuito.
Na torna viagem para Ilollanda seguem pouco mais ou menos o
mesmo caminho, que levam os outros Europeos quando tornam das ín ­
dias ürientaes á sua pairia.

Ouïras derrotas para as índias Orientaes.

O s povos que hahitam ao longo do Mar Mediterrâneo quando querem


ir ás índias ürientaes vão por Alxandi eta a Alepo e a B ir, onde en­
tram no Euphrates para ir a Bagdad e a Passorá. A’s vezes tomam
0 raminho do deserto para ir a estas duas ultimas cidades, e dalli vão
a Ppahan, e a Agrá em caraNanas; ou então embarcando no Tigris vão
ao Congo e a Gomorão ( h ) , perto de Ormuz, pelo mar de El-Catif,
e ás índias Orientaes pelo oceano. As alfandegas do Turco edo Persa
tiram proveito das mercadorias, que seguem este caminho.
O transporte de Bagdad a Bassorá é commodo, porque nas barcas
que andam nesta carreira, ás vezes se servem de velas, outras ve­
zes de remos, e mais commumenle as deixam ir com a corrente,
-" ' ■ ■■ ^
( a } C aiiaes de M a m a le , e de M u liq u e , Estas deiium iiiações iião se acham
1105 (Jeograplins m odernos ; mas tem os por certo que o Canal de M a m a le è
I) (jiie lica entre as ilhas L aceadivas ( que nos auctores e docum entos portu-
UMCzcs antigos sao u(uncadas de M a m a le ) e as ilhas de M aldiva-, e o C a­
nal de M alUl^^e deve ser ou o que passa por entre as ilhas de M ald iva a um
e m eio «ráo de latitude scpteintrional, ou o outro que passa m esm o sobre o
equador.
f b ) ,\ssim escrevem os nossos auctores o que os Francezes escrevem Gom -
h ru e G o m r o í , e os lu glczes G om hrovn.
OBSEaVAÇÕES CEOGRAPIIICAS 309
porpi-òaoporpópa. O rio que os
a todos “ Ho grailles èiú d f ^ <1™ da'o
menos seis b r a fà r E^^ c o n i l f l , «o
nos rápido, c mais iiiscoso-^e oa diflerenea como o lUiodano, mas me-
é todavia lioa para iielicr.’ Retalhà-s? este''rio ** um poin o salgada,
pomuc a terra alli é baixa e areno«a ‘" '’f'’®-

■ m ik :r :tX a r T le p :% e lo S % to ^ le va n te , é
em Setembro da commodidade das r s n ** pora se aproveitar
«am a Bagdad. ü “ E a d i t m d ^ ' ^ V NovemVo che-
'tle lia-ssorl a Comorf^, ondt o u t i t r i s ' ! 'd- e doze
era liarcas, chamadas^ TraiKaiins- mas em iin e b t* transporto
«ao é alli boa para Suriaite ToVdTnarhm enl 1'" ® a man­
eios inglezes, ou mouros (me fazem ‘^"'Itaroa alli em na^
. d ^ ^ v a l i a - s e pouco a r n H i r n o f ^ . l i î l V V r t e S L V Í T o Í

wenas joriiadas^mé ' Maiuiipmdo'“ o o L^ ti t i t f ac n~*“ P®'


i l l i T & t ' ^ ï f s a o ® ■' • f e î* ïr » S S iim * m ar*
■ndnho « lír ik v a r a u p r t ,e s ^ U is L r F ^ ® este o" oal
annos partiram para as Missões da Cfíina

T ^^rá,
pomada .alguma, tem pcucss aldeas z,.qnd'e’s d t l" '’ acha ne Ile
temerosas, osdcse w ív ím do crand(?Í^^^^^^^ “■™ níanhas
raesmo algumas destas m o tia n lu fitt ““
certos homens, que os trm M rlm nf.? ‘ “ costas ,de
Os que babilani nas Jjordas do Alar^Nteg t so b m fn t * r <'* ^
nham o Araxes o Mu* rim m « « *n - sobem pelo l^azze, s:a-
ao rio indo, ouaté ao Gangis ’ e estes riof^ós
E por essa razão que ^icanor ' rei da SvrH ao. oqeano.
Fonte .Euxmo,,que é o Mar Negro áo Mar b S ^ f f T ^ juntar o
param por largo tempo a cidade de Caííã p a S mn^ Genoveses occu­
pa ainda para os daoiiel'as reoinecní m commercio.
por Erzerum, e pelo Aiphrates^ q L Jeva ? T r P . o r Trebizonda, ii
tiissemos, ao mar das índia« D« \irtc/vn,r^Í^ ? e daJIi, como já
l“ «'oAIblamod e do *i2 e m n term '"'*® •
de de Moscou, sob<m pelo Voío-a ni^in’ n a sua qda-
T ...... . A v . i ^ i - i a f e ’ r i a 'S “r a „

eiúii.v e r.v,a „,„i„, v > j a r ; r í r ú u r p . t r “; t " ' * ; ? ' i r ; i “ ^r


^ ’ i ‘ o’ *io . ti c s t c * tomo

78
VIA.GrEM DE FRàNClSuO PHIARD
310
t lATVi lirtio art i p l l l tïO O ô lob iô, CO'.ÎIO cU llioH R ^ R
taes, e qaa toiMam ® b i c c Ii o, e Â.le.^andre iMagno.
te a fh e ra m « “ Pi-J'«“ ® ;” ' f “ te:n sida in u t.h n m te
D ira i agoia ; , , , , , ’ 03 F r iiu '.J a i eim re'aanderara subir
procura los para ® " f’ p ^ „ , - „ „ » lo N u r Saptaiiitrio nal, que Hie
pelo rio de Sagu en ii no C in id i « ,j’ „e b

s r r t â s r ï r i ,* H / s r is s fW - s » n

î^ BSSæ
cadorias d as I n ü a s , se tran^poi tavaiu m a is frescas do que
N ilo; en là o c b e g a v a m * Europa^as^^esp^ciaria^^^

Nilo,*^ d esceo por este a té a sua o z . b e faite v e r d a d e ac


a l g u m outro braço diverso d aq u e lle o u d e h a as cataractas o e s te g i a u u e
rio.
Pag. 7 .

Avistámos as ilhas Canarias, e passámos por ellas.

E
l i s t a p a s s a g e m f a r -s e n riS ?o % *^ et

smmms
" ® r - ’; “ t f l n i s ™ h ' f f ó feito“ . . r U e t l i e L o u r t , fidalgo Françez.

K m ^ T u e S p a , com

:æ , :^bièd^o d f m"
pete'1 .^ 0 ^ pHm‘ï™ ÜSdiàno, 'lí ' £Te|eJi| é a. maior^ije b-
lias, com a montanha do Pieo, que leva Ijc a gen-
até ao cume. Esta montanha esta sempre coberta de neve, g
OBSERVAÇÕES GEOGRAPIIICAS 311
(e do mar a repula a mais alla do mundo. Avisti-sc do cincoeiila
logons ao longe; serve de pliarol, quando se navega nos m ires jiro-
xinios; c alguns poem alii o primeiro Meridiano, A ilha de Tene-
rilíe é lão fértil, que produz todos os annos, segando se diz, mais
de vinte e oito mil toneis do mais excellente vinho, que ate rra
cria. As outras ilhas Canarias s<ão a Gomera , Palma, Forlavcntura,
e Lancerote. Diz-se que a ilha Inaccessivel jaz ao paente das Ca-
narias , e que quando se quer lá ir custa indizivel trabalho, ao mesmo
tempo que ás vezes se vai lá ter impensadamente. Dá-se-lhc lam-
liem 0 nome de ilha Encantada, Furiimada, çr muitas vezes lhe cha­
mam a ilha Alcidiana, ou ilha de São Borondom. No de mais a.s
ilhas Canarias servem muitas vezes de logir o ide as frotas iiespa-
nholas, que trazem a prata das índias Oceidentaes, esperam umas
pelas outras, e ahi recebem ordem determinando o porto onde de­
vem ir entrar,
Pag. ibid.

A principal è a de S. Nicoláo, de que iodas as outras de­


pendem, e é a sede do bispo, e da justiça.
0 auctor trata aqui das ilhas de Cabo Verde, nns o que elle diz
da ilha de S. Nicoláo, deve entender-se di de Santiago, onde ha
uma cidade do mesmo nome, capital de tolas estas ilhis ( a ), a-
inda que não seja a mais populosa, pn* causa de seus ares insa­
lubres, nem tão pouco é bem fortificada , porque tem sido multis
vezes saqueada por gente do mar, ainda que pouca cm numero.

Pag. 8.

Avistámos a costa de Guiné, na terra de Serra Leoa.


I l a em Guiné uma grande montanha ou serra deste nome, assim como
também um celebre promontono ou cabo, conhecido pelo nome de
Tagrin. Os Inglezes tem alli hoje uma fortaleza, (pie lhes foi cedida
pelos Porluguezes.
Pag. 1 1 .
Era a ilha de Anno bom.
Recebeo dos Portuguezes este nome, por a haverem descoberto no
primeiro dia do anno.

( a cidade chamava-se da -R ib e ir a G rande. Hoje a Capital é iia F ilia da


P ra ia ,
3 12 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

Pag. 15.

Av istomos ao romper da aurora a ilha de Santa Helena.

i^sia illia, qiie teni quasi dezaseis legoas de circuilo, é no mar da


Klliiopia. Não ha no miindo ilha, qiie seja mais afastada da terra
iirme, Chamam-lhe a hospedaria do mar, por(|ue ha nella agoa doce
em ahudaiicia, e os que tornam das índias Orientaes tern por costume
vir deniandal-a, e re fresca r-se nella. E’ alta e montanhosa com iima costa
imii limpa, onde em toda a parte ha horn fundo, de sorte que mesmo
perto das rochas lia mais de dez hracas de agua; todavia é mister
A ter resguardo comas anchoras, que os navios alii tern deixado por
varias vezes, quando lá tem estado. Os Inglezes acharam esta ilha
tcão commoda, que ha poucos annos fabricaram alli um forte. ( a ) .

Pag. 17 .

Cabo da Boa Esperança,

0 Cabo da Boa Esperança é ornais comprido, mais celebre, ema­


is perigoso que ha no mundo. Occupa a parte mais meridional da
Africa, e foi assim chamado, quando depois de haver sido dobrado,
se teve esperança de passar brevemente ás índias Orientaes, o que
succedco no anno de 1498. ( b ). Antes disso era chamado o Ca­
bo das Tormentas , por serem mui frequentes em sua visinhança.
Alguns lhe tem também chamado o Leão do mar, e outros a Cabeça

( a j Parece incrivel como os Portuguezes deixaram de fazer nesta ilh a uma


fortaleza. Quando n o fim do século X V I com ecjou a ser frequentada das outras
naçSes da Europa, m a n d o u sim E l-R ei P h ilippe II tom ar inform ações à ín d ia so­
b r e se con vin ha ou n âo fortificar-se a dita ilha, no que havia em seus conselhos
f\lgum a c o n tra rie d a d e de pareceres. E p a r a se resolver o negocio determ inou q u e ,o
capitão môr e capitães das náos, q u e v ie r a m do R eino no anno de 1598, n a s u a tor-
n aviagem , vissem toda aquella ilha, e os p o r t o s e aguadas q u e tem, em que-se pos­
sa surgir, e levassem uma re la çã o delles, e u m a p la n ta d a ilha, p a ra S u a M agesta-
de ver tudo c<.in o q u e o V ice R e i lhe e screvesse sobre esta m a t e r i a . ( A rch iv a
P ortu y u ez O r ie n ta l, F ascícu lo 3.® Poe. 334. ) Nada porem se fez nem então,
ntra depois. A m orte de P h ilippe II n o'raesm o an n o de 1598 foi talvez a causa
principal d<; n ã o ir por dian te a q u e lle pensam ento.
( b ) E ’ sabido que o Cabo foi pela prim eira vez dobrado por B artholom eii
P ias n aviagem que fez sahindo de Lisboa em Setem bro de 1486, e recolhendo
em Dc/em bro de 1487. E que a prim eira vingem da In d ia foi feita pela arm ada
de Vasco da Gam a, que saio de Lisboa em Jnlho-de 1497, e r.ccolheo. [ a i • nâo
delia 1 cm .Itilho de 1499. E ’ por tanto cxacia a data de 1498, que o auctov as­
sign a à prim eira pastagem à India pelo Cubo da Boa Esperuuça.
OBSERVAÇÕES GEOGRAPHICAS

il Africa, lîa signaes que dão a conhecer que se está proximo dél­
ié; e sio, que a cincoenta eu ses^enla legoas ao mar, se vê boiar
troncos de cannas grossas, chaniados T r o m b a s ; e vcar grande quan-
ticlaoe de passaros brancos ccm malhas pretas. Os que voltara das
Jndias Orieniaes vêm alli rebanhos
---- --------- --- de
V, lohos raarinos parecidos corn
ursos; e nesse temno Jancara coniinuadaraente a sonda.
I) r K* VIOCCO fiV i*» IA n »"vk __ ____ â _ t

•1Aleni- disso o (a lo7 da Boa Esperança V é famoso


lojiiucv por
ijtu muitas con-
muiius con­
siderações, mas particiilarmentc por ser o limite da navegação das
índias Occidentaes e das Índias Orienlaes; e porque os que vão ás
Índias Orienlaes, e os que de lá voltam estani na necessidade de
0 demandar. A batiia que íica a leste do Cabo Pm uma bccca de
cinco Icgoas , e todo o seu contorno é de rochas escarpadas até »
Dorda do mar. A terra alli é de ares temperados, e a vivenda de­
ve ser fommoda. Aluiios valles visinhos tem ervas e flores em a-
bundancia. Ila rios piscosos, e bosques cheios de veados, bois, etc.
Os habitadores andam vestidos das pelles destes animaes. São mui
destros no correr, mas mui sujos no seu comer ; e parece quando
faliam que se esta ouvindo galinhas da índia.

Pag. 18.

Chamam-lhe Cabo das agulhas , porque na altura delle os


de marear ficam fixas, e apontam directamente para o
norte, sem declinar para leste nem para oeste, etc.

1 em-se observado que junto do Cabo a agulha de marear não é


nxa, 0 que faz julgar que a variação do magnete não é sempre a
mesma no mesmo Jogar. Sobre o parcel ou banco que está ao me­
io dia do Cabo, o mar tem quasi setenta ou oitenta braças de fun­
do. A sonda, pelo que dizem os pilotos, traz dalli areia branca fina

Pag. 29.

A ilha de São Lourenço é mui grande etc. ii

N
. ..sta pagina e nas seguintes está a descripção da ilha de Mada­
gascar, que os Portuguezes tem chamado de São Lourenço. Mas co­
mo depois da viagem de Pjrard temos tido muitas Belacôes desU
ilha mais amplas que a sua , é aqui logar de dar aos curiosos o
exlracto, quç dellas tenho feito.
79
3 14 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

Descripção da ilha Delphina.

D e l p h t n a è s i l m á m no Mar Oriental, que chamamos Mar das


índias, e é a maior ilha das que são próximas de Africa, da qual
não e afastada mais de cem ou cento e vinte legoas. Não ha üha no
mundo, que tenha tão grande extensão, porque tem de cumprimen­
to mais de trezentas e cineoenta das nossas legoas , e quasi cem de
largura.^ üs indigenas; lhe chamam M a d e e a s e e 3 1 a d e g a s c a r , o s Por-
tuguezes S ã o L o u r e n ç o , o os Francczes ilha D e l p h i n a . Os antio-os
conheciam-na pelos nomes de H J e n u t liia s , e de C e r n e E t h i o p i c a . °Os
seus ares são temperados , o terreno proprio para toda a sorte de
graõs e de arvores e faz-se alli facilmente provimento de viveres
porque, as aguas são exceilentes , e os fructos deliciosos. ’
As montanhas tem bosques , pastos, e plantações de diversas es-
pecies; e os campos são regados de rios e largos piscosos. A maior
parte destes rios vem das altas montanhas que atravessam a ilha de
meio dia ao septomtrião, e que provavelmente tem minas de ouro,
f porquanto se apanham ãlgumas vezes areias de ouro nas ribeiras que
dellas descem.
Entre os habitadores ha prelos e brancos, que quasi todos são i-
dolatras, e ha lá mui poucos mahometanos. As ultimas Relações des­
ta liha dizem que os seus primeiros habitadores eram descendentes
0OS antigos Judeqs, porque a cirçumcisão. que alli se usà-em algUnís
logafes, nãõ se faz na íorma da lei de Mafamede; que os ricos não
sao alli hqvidois dm inâior conta, os pobres, e que se guarda
sempre a^ precedencia do náscinfiento; (jue em alguns districtos da
ilha se vem ainda homens selvai^ens que deixam crescer a barba e
os cabellos, vivem no mais interior dos matto.', e andam tolalmen-
tc nus; que ha , crocodilos na maior parte dos rios, e na terra ser­
pentes, que iião faz’em mal; que ha outrosim grande numero de bo­
is, que tem uma gelía de gordura no cachaco, c que por, isso alguém
acreditou que eítes hóis eram camellos,
Herbert diz que se acham jilli salamandras, cuja figura se parede
com a do camoleão, e que são tão frias que snpportam o fogo por
tao largo tempo como faria o gelo, e até o apagam, quando não é
muito orte. Marco Polo, de Veneza, faz menção de um passaro
(lesta ilha, a que elle chama R u c , e aílirma ser semelhante á aguia,
e tao grande qne as pennas de sins azas tem mais de doze péi
de comprimènto; e que tém tanta ‘força que podé leVar nas unhas
um elephaníe pelos a-es; mas os nossos Frincezes, que tem habi­
tado nesta ilha por dilatado tempo, ainda o não poderam descobrir.
Ila nesta ilha grande numero de senhores particulares , que tem
0 nome de M o k m d r i a n o s , e qne continuamenie fazem guerra üiis
ao^ outros par<i se apossarem do gido.
’ í^^lezes , e Hollaiidezes alli tem álglimas vezés
aporiaüo, a saber os Poriiignezes na angra'do Galeão , os Tngle-
zes na nania de Santo Agostinho , e os üuliandezes na de Antão

' V
OBSERVAÇÕES GEOGRAPHIGAS

Gil; mas os Francezes depois que alli fabricaram o forte Delnhim


tem recenhecido niui particularmente toda a cosia oriental e meri-
dional da ilha , ou por trato e co nmercio , ou por euerra , e tem
visitado uma boa parte do interior das terra s, das qiiaes tomaram
posse em nome del-Ilci E no verdade a ilha D elphila lhes e mu”
qne Moçambique aos Porluguezes, porqiia não ha
na sar Stantos
pa.sar o bai\os.
T * liram
’ dalli a rro z, couP“ ''" cila
ros, c e r aé , necessário
ffommas
tr a fm ê r S r ia s ’
^ dizer da ilha Delphina
em geral. Pelo que toca aos particulares da sua costa, está ^ e r i-
guado que (em poucos portos bons, e poucos rios navegáveis por-
<jue a maior parte estam entupidos. ^
A angra Delphina é o logar que os Francezes tem escolhido co­
mo mais commodo para seus desembarques. A entrada delia tem
duas legoas de largura entre as duas pontas que a formam e a
mem legoa da ponta que (ica ao norte ha uma rocha que k
Í T Í n í a d a ' Z o ‘V f s a id T " ’ ' '
Jtapere é uma a n ^ a assaz commoda para os n a v io s , e barcos ^
mas 0 seu accesso é arriscado por causa das rochas que alli ha
debaixo d agua. A pequena ilha (^e Santa Clara, que está á <ua
entrada, oBerece nm bom abrigo. . t t w a .ua
No rio 3langhafia não podem entrar senão bateis, mas os navios
grandes podem süPgir com segurança junto da ilha de Santa Luzia,
que e 0 logar onde os Francezes primeiramente habitaram
Manambato -tem a foz cheia de rochedos
Fotae eSame só correm para o mar quando ha grandes chuvas.
Manampam , chamado na sua parte final Manatenqha , corre li­
vrem ente para o mar, mas tem tantos cacliopos nas siias quatro fo­
zes, que ainda se não tentou fazer alli entrar barcos
Ambule por outro nome o rio de Gtl. vem das montanhas
onde, pelo que se diz, ha ouro. Não tem impedimento na sua de­
sembocadura no mar.
Manmgltare tem sete b oceas, mas todas cheias de rocfias (riie
impedem a entrada ; e alem disso ainda que grande , é mais urna
torrente, que um no. ® íi
JJataiara, que tira o seu nome de uma provincia mui fértil tem
duas boceas, afastadas'uma da outra sete legoas. ^
Manghasi é de diílicil accesso, mesmo para pequenos barcos por causa
s^^en^ia^^^^' ^ fodavia os Francezes tiveram alli antigamenlc uma re-
harahon, largo na foz, pode rccelier alguns bsreos.
Morombe está quasi sempre entupido.
Mananzare é assaz íundo para embarcações pcquf'nas A kuns Fran
cezes habitaram na sua visinhança , doude L v ia m t ir a d a
316 v ia g e m de FKANXISCO PTRÀRD

em pó; mas foram aili mortos; e semelhante sorte tem tido depois os
que se tem fiado muito nos naturaes da terra.
Ambahé não se entupe, e é proprio para barcos.
O Porto das ameixas tem bom sur^ddouro para navios.
A anera de Galenbule não é boa por via dos rochedos, que ahi ha
. .i debaixo^d’ agua; com tudo acha-se bom abrigo para barcos junto da
ilha. 11a alli abundancia de arroz ao longo da costa.
Matianguru tem quatro boccas, das quaes a mais septenatrional,
chamada ítimiame, é assaz larga , e tem seis ou sete pés d’ agua.
l'm barco pode subir por elle mais de dez Icgoas, e acham-se alli
nedacos grossos de cristal.
A bahia de Aníâo Gil, é assim chamada do nome de um Portugucz
nue primeiro a descobrio. Entra quatorze logoas pela terra dentro, e tem
nove legoas de bocca, com muitas aldeas ao longo de suas bordas. Uma
ilheta que alli ha proporciona boa acolheita aos navios. Os Hollande-
zes tem alli portado muitas vezes no intento de traficar com os na-
lur3.0s
A iíhade Santa Maria a duas legoas da terra íirme, tem tres le-
coas de largura, dez ou doze aldeas, c quasi seiscentos habitantes
i ^ alem de al«uns Francezes. E ’ rodeada de rochas, sobre as quaes po­
dem navegar canoas na maré cheia; e ha alli bello coral branco, e
diversas conchas mui estimadas mesmo pelos da Europa. Acha—se am-
bar-gris na costa occidental. , j
Para alem da bahia de Antão Gil a costa corre norte-sul; porem des­
de a angra Delphina até esta bahia corre su-sudoeste e nor-noroeste.
A bahia de Vohemaro é neste espaço ( a ), e o terreno produz ar­
roz em abundancia. , ^ f .
O Cabo Natal, c o de São Sebasttao formara as duas pontas ma­
is .septemtrionaes da ilha ( b ). . j t-
Toda a costa occidental é mui pouco conhecida dos brancezes.
B a nelia muitos logares, que conservam ainda os nomes de alguns
P orlu gu ezes, que alli desembarcaram antigam ente; e é esta costa
fronteira á s ’ terras que elles possuem na terra firme de Africa.
Mais adiante ha os baixos mui extensos conhecidos pelo nome de
Parcels- depois o rio de Mansiatre ; e outros ; mas nenhum é tão
conhecido como o de Onghlaté. Este rio de Onghlaté é por outro
nome chamado de Santo Agostinho, julga-se que ha ouro na sua vi-
sinhanca, mas 0 ar alli é insalubre.
A bahia de Santo Agostinho tem uma ilheía na entrada, e qua­
si oito braças de agua de profundidade com um bom fundo de areia.
Os lochedos cobrem a bahia da banda do norte e do sul; só o noroeste,
e 0 oes-noroeste a varejam. Os Inglezes surgem muitas vezes nesta
bahia quando vão a Surraie; a ainda alli se vém os restos de um
( a ) Isto é, desde a babia de AntSo Gil para o norte. j.,,-
(b ) ^’ào se acba o nome de Cabo íífllaí nos geograpbos modernos' deve ser
« Cabo Ambro.
OBSERVAÇÕES GEOGRAPIIICAS 317
y

forte de t^rra, fihrieada pelos companheiros de P v n rd F f lu •


pa.le servir aos i^-aiirczes tanto como .Uocamfa,.ciueVos P u -f
« trahco das imii ts. ' aos í oi taguezes para
A aiiifiade Careuibola c a ane os ílolIandoTac />i
B iiteno, por razã . de um navio dello^ n u -ill? n« ^ S'MiCe-
^Kirembuve é rio profundo e os terr tniTr-
de bois hr .vios. E ’ esia r n n r f ^ sãocli dos
tras, ^ue nella h al,ila:f! Ã o 'g ^ i e ? ■ e o f T '
g,ar-se a esta costa scni peri^m! ‘ ® n^^vios nuo podem die-
Mandrerei ..jn fa (iiie e n iid - é nníc .,m^ «
a m w r p .rte ,1o t L p . f o . t r é n h . p X ““ «

- A angra U .,s G u eõe^é fon.e He pro


q..e. al). faziam arit.^m ente S ’r o s T u s Portu.uezSs,
en vid o ' 0 forte da íliiela per o do f « que haviam
vêm restos pcrio do no lanschere, de que ainda se
tanschere nao corre ao mar seruão quando ha «rande pPti,-

terra dentro, salvo qiiatido está d -on síruido


u m a le g o a d e la rv iira e n.ui n , L ^ ^ 7 0
Ti'‘‘ pela
'• "m lavo^de
fcrtil, 0 cheia de g r a iX s ' aldeas <^'fcanu-izinl,a é mui

.: Pag. 3S.

Moçambique,

üfoç «mhiqiie é o melhor o-ovenio p a u i *


gnezes tem nestas ri-giões; Torune ’ tem . os Porfe*:i~
lha do mesmo nome a nu I ÂT. . “ . ' <o t.leza lu i-
alli que os s e is uaviis avLardam' p ilV m óT ló” r'^ '' ^
gens as índias Orie.-itaesv 0 port e % o no-dVa
se entra nclle d eixa m -se'd u a .p ei uen i ? . 1?;^^
habitantes seriam alli miis' mi »! '“ ‘"'o e-q ierda. Os
saiubies. numerosos, se os ares nào íosiem tão in!

Png, 50. A
Achem na ilha de Samatra.

s umatra é a ilha mais afamada de todo o Oricute


por causa da sua'
80
VIAGEM DE FRANaSCO PYRARD

firandeza e de suas riquezas, pois tem de comprimento trezentas le-


«oas de Franca, e de largura sdenta, e tem muiias minas de ouro.
Está dcz legoas afastada da terra iirme, e os anli.^os julgaram que
ella era peninsula por razão do grande numéro de ilhetas que pa­
rece üue a prendera ao continente. Tem cinco ou seis rets, de que
O mais conhecido é o do Âcliem; osoutios t- m a sua reM.Icncia em
Camper, Jambi, Menancabo, e Palimbain. De tal sorte se tem man­
. , < tido em sua ilba, que os Europeos ainda alli nao poder.im ter lor-
talezas.Ha nella uma montanha que lança logo e chamas da njesma
sorte que Monte Gibel na Sicilia, Â pimenta (|ue se colhe nesta ilha é
melhor aue a da costa de Mala bur, purque a terra alli he mais
humida. Apanha-se alii ouro em grãos e em pecpienos pedaços e
3sto eraco^as feitas nos regatos, ^’o .«edão da ilha ha ainda habi­
tantes barbaros que não tem dificuldade de comer a carne de seus
inim i'os crúa com sal e pimenta, que semnre trazem com.^igo para
N este eifeito. A cidade de Achem é amais considerável de loda a ilha, e
lá foi maior do que ora é. Está a meia legoa do mar, n uma gran­
de plan ide á borda de um rio. tão largo como a Soma mas tao bai-
10 que barcas meãs não podem entrar nelle. Ha lambem ulli uma fortaleza
á borda deste rio.

Pag. 85.
Û
Descripção dãs ilhas de Maldiva, sua situação etc»

Sendo a descripção destis ilhas a mnis curiosa e a mais ampl||


de todas as desta Viagem, nada tenho a accrescentar-lne.
Ï.
Pag. i 9 4 . íí'-

Santo Thomè,

E sta cidade de Santo Thomé é ra costa de roromandcl, ao meio Ü


An»
dia da de Mcliapcr, que alguuí ionfundon tornSauio ihome. Deiiya
O seu n o m e d o d este sud o, q u e alli fez m u itc s mih^gres, e prog­ 'V -i f ,? ! !

n o s t ic o u q u e In nn ns briinc('S liuviara d e vir aqu el as i c g i o c s ; o q u e


s e verificou ( o m a v i n d a d o s ! o r t im u e z c s . A g en te da t rra d iz que
aouelles q u e mariyii.-^aram o S a n to Âpostolo t e m u m a perna m a is g ros-
sa q u e a o u tr a . A c i d a d e ü c b aiito T b o w é p e r t e n c e b c j e ao r w
de ôolcondá, Aii

■'•li'-
bBSERVAÇÕES GEOGRAPHICAS

Pag. 1 9 8 .

Perguntou-me se os Francezes eramaquelles f r a n k i , ou fran -


Qui, tm faltados nas índias.

nome de França é tão conhecido nas outras nações, que os


Euro()eos que querem ser bem acceitos na Asia todos tomam o de
rrancos. Os Turcos mesmo e muitos Levantiaos chamam gerulmente
por este nome a todos os que sabem que professam a religião ca­
lho íca. Os índios Orientaes tmdo conhecido pelos nomes de Rumes
e de Romanos aos Mamelucos, que vieram em soccorro dos reis de
Cambaya, ch iuiam Francos aos Portuguezes, Egypcios, e outros po­
vos occidentaes, por razão dos progressos das aimas francezas na
Terra Sauia e no Egypto, cuja noticia chegou até elles.

Pag. 2 3 1 ,

Cambaya e Surrate, onde entre elles só se mette o rio.

l*ambaya é na extremidade ou no fundo do seu golpho, a mais de


vinte e cinco leiloas de Surrate, que íica á direita no mesmo colobo
sobre o rio Tapti. &

Pag. 2 4 3 .

Contava a todos aqueUes reis indianos as maravilhas da gran­


deza e magnificência da Hollanda.

Rescripção da llollanda.

vhamamos Hollanda ás Provincias Unidas, porque a Hollanda c d’


entre ellas a Provinoia mais rica. e mais povoada. Cada Província
é uma repui)lica, todas juntas formam um todo a que chamamos
os Estados Geraes das Provincias Unidas dos Paizes líaixos. A Ma-
gesbule desie Estado reside nos Senhores dos Estados Geraes que tem
0 titulo de Altos e Poderosos Senhores; mas a aiictoridade absolu­
ta sobre as cousas reservadas á causa de alliaiiça pertence aos Es­
tados Provinciues. O sello dos Estados Geraes e um Leão, que se-
320- TIAQEM DE FRANCISCQ PYRARlh

gura iim feixe de sete fléchas mai estrcitaraente lisadas; e todavia


eilas Provincias nào Scào sempre tão hem unidas, que se nào senie-
lliem algumas vezes a um coiqm corn mnitas cabeças, das quaes umas
0 querem levar i)ara um lado, ein quanto as outras o pucliam pa-'
la outro lado.
Não ha Estado que tenha maior numero de fortalezas, e que seja
meJli''r defendido pela natureza do que este, porque alem délias tem
0 mar e muitos rios, a saber, o Meuse, o Vahal, e o Issel, que 0\
d;efendem,, e lhe dão meios de prover de peixe as regiões visinhas.
Alem, das Provincias unidas os Estados Geraes tem muitas cida­
des em Flandres, no Brabante, no Liege, e em Alemanha sobre o^
iUieno ;■e esias cidades, que são extraordinariamente fortes, Ibes’
dão meio de levantar grandes contribuições. Tem em Flandres a E -
j I usg, Middelhurg. Ardemburg, o Sas d*e Gand, Axel, e Hulst, Ber-
gopzom, Bre la, Bois le Duc, Grave, e o castello de Rovestein no-
Drabantei esta ultima praça é do Duque deNeuburg^ Dalem, üol-
duc, e Fanquemont em Limburg, Maestricht no Liege; e em Ale­
manha sobre 0 Uheno Wesel , Reez , Emei i k , e Orsov no Ducado
de Ueves pertencente ao Eleitor de Brandeburír, e Bhimberg que
# do Arcebispo de Colonia Do lado de Wesiphalia tem guarnição na
cidade de Embden, e nos fortes de Eideler e Lcer-ürt. Tení ain­
da ocaipado Borkelo pertencente aO' Bispo de MuRsier. Por isso mui­
tos Prineepes visinbos tem pretenções sobre os línllandezes ; e até
a Ordem de Malta tem exigido deiles com grande instancia a res­
tituição de suas Comniendas,, para a qual. tem cmpregacío a media-^’
ção d’ El-ílei de França.
Da lambem dims Companhias? dé mercadores; uma para as índias
Orientaes, e ouira para as Oceidentaes. A primeira destas Compa­
nhias tem chcgiido a ser tão possante, que parece ho|e uma Bepu-
hlica, á (jual prestam vassalqgem-mais leg «asde Icrritorio, do (jue
ha geira-^ de terra em toda a lloUanda. Tem mais d-.: quatorze oa
quinze mil borne is de guerra, e um grande numero de navios a seu
>osvjço, no que andam occupados ordinariamente mais de oitenta mik
homens. ílu já longo tempo que ella linha mais de .vinte fortalezas
consideráveis, c outras tantas feitorias nas índias ; de que dou em
outra ftíirlc a relação. . . ,
Os liollandezes não se contemam com« o levante e com o poen­
te; vão também ás partes do norte, onde tem tomado ass''nto no
Sjdgí‘ll)cig, e junto do e.sireito de Veigats; navegam oiitrodm parm
0 Sul na Nova Ifelanda, na Nova llolianda, e na terra de Nuits,,
oyde ha pouco le.m dei-cobei to. terras de vasta, extensão; sem toda-
vjo poderem até agora haver-se com os naturaes , nem por forca,
íiem, por. brand ura.
De s.orte <,ue- se pode dizer dos Hollande?.es que- não são men-off>
poderosos no mar (jiie na terra. E com eífeito tem muitas vezes des-^'
taraíado as frotas hespanhoícts, tido mão nos íriglezes que preícudum
soberanos do mar;
que ha quem diga que só elles á sua parte tem tantos como lodo o
resto da Europa. Tem com que armar mais de mil navios, não obs­
tante não produzir a sua terra nem madeiras, nem as outras cau­
sas necessárias a este intento. Ao [inncipio só limitavam os seus pla­
nos á pesca, e ao trafico costeiro; hoje porem abarcam o mais ri­
co commercio que se faz por mar, e querem até tratar
igual com a potência, cujos vassalos foram.
E ’ alem disso em llollanda que tem chegado a rnór excellencia
0 modo de fazer cercos e fortificações; e guarda-se alli tão hoa or­
dem na guerra que os habitantes se tem enriquecido com ella, ao
mesmo tempo que nos outros paizes os empobrece. Nota-se ainda
que durante as suas guerras tem pagado maiores contribuições , e
de melhor vontade, que quando estavam sob o dominio do rei de
Hespanha , e averiguou-se que só no anno de 160o pagaram até se­
te milhões de ouro.
Entre as Provincias Unidas ha quatro para Occidente, jfloUando,
Zelanda, Utrecht, e Gueldres; e quatro para Oriente, Zutphen, Over-
Jssel ou Trans-[salarie, Frisia , e Groningue. Os que contam só se­
te , fazem uma só de Gueldres , e Zutphen. Nas assembleas estas
Provincias dão seu voto nesta ordem; Gueldres e Zutphen çrjniei-
ro, e depois Hollanda, Zelanda, Utrecht, Frisia, Over-lssel, Groniii-
gue, e as Ommelandes. E ’ para notar que é mister que todas es­
tas Provincias consintarn nas resoluções, cpie se tomam cm suas
assembleas, nas quaes se não segue a pluralidade de votos.
A província de Uollanda propriamente dita é uma grande penin-
iula, que se mantem contra os assaltos do mar por melo de seus
diques, aos quaes se fuz, dia e noite , uma vigilante guarda, e on­
de se df'spcnde tanto que muitas vezes um pé de terra (]uadrado
custa alli mais de cem escudos. E ’ esta província um verdadeiro
lago gelado no inverno , e um pantano perpetuo no verão. Diz se
também que a terra alli e ócca, e que treme como se boiasse n'
agua. Por outro lado os prados são alli tão bons, que se criam vac-
cas que dão très grandes colhas de leite por dia. Suas arm as. e o
seu commercio a tornam famosa em todas as partes do mundo , e
a pescaria dos arenques , (jue se faz pelos seus navios chamado.*^
Busios , é mui considerável. Só ella paga mais contribuições que
todas as outras Provincias juntas ; porque por cada cem libras ella
entra com cincoenta e sete e meia. O grande numero de seus na­
vios faz confessar que ella tem mais cazas no mar que em terra; e
um Hespanhol affirmava uma vez com chiste que alli choviam na­
vios. Cada morador tem alli o seu barco, e o seu batei; e quando
viaja por terra, leva ordinariamente um grande vara-páo ao homhro
para o ajudar a sair dos logares onde poderá atolar-se. E' costume
aili andar sobre o gelo com patinos, e antigamente barcos á vela,
que tinham um ferro por baixo, andavam muitas vezes dez legoas
a’ uma hora. Abolio-se já o pernicioso costume que havia na terra
de brigarem a golpes de faca. Não ha paiz no mundo de seme­
lhante extensão, que seja tão rico, tão forte, e tão povoado, e on­
de haja tno hellas cida les; porque sendo estas cidades novas, são
fjuasi todas ediíicadas regularmente, e as pessoas que as tem fun­
dado tem tido melhores engenheiros e architectos do que tinham
seus predecissores. Gultiva-se alli exc( llentcmente a pintura, a gra­
vura, as nianiifycturas de todas as sortes, e particuiarmente as de
pannos de lã e outros tecidos. Os que dizem que os Paizes líaixos
são 0 annel d.i Europa, dizem lambem que a llollanda é a sua pe­
dra. E ’ verdade que ha alli tres cousas, que molestam muito os ha­
bitantes, a saber, os ventos do norte, as chuvas diuturnas, e os ne­
voeiros cerrados. Os Estados Provinciaes da Hollanda são qualifica­
dos de Nobres e mui poderosos Senhores. Muitos julgam que na líol-
landa só ha mercadfjres , mas enganam-se ; poríjue ha alli muitas
famibas illusires entre as quaes os Brederodes são mui nobres, os
Vassenaer mui antigos, e os Egmons mui ricos. A nobreza é a pri-
mciia que vota, posto que não t: nha mais que um voto; dezoito ci­
dades tem cada uma o seu com a soberania commum sanccionada
por uma alliança.
Entre as suys cidades ha seis principaes, que se chamam grandes,
e são, íJoít ou Dordrecht, Haerlem, D elf, Leiden, Amsterdam , e
Goude
JJort é 0 logar onde se bate a moeda. Tem o primeiro voto, por
ser aquell i onde os Condes de Holland i e seus súbditos se davam
reciprocamente juramento. Os seus magistrados tem o privilegio de ■Ví
•r
tra. cr co.ms.^^o guardas, o que se não pratica nas outras cidades da .:V

Provincia. o anno de 1421 de cidade que <ra na terra firm * tor­


nou-se em ilha por uma espantosa cheia do mar, que submergio ma­
is de dez mil pessoas, e setenta e duas aldeas, de que se vêm ain­
da 03 tristes signaes cm pontas de torres.
haerlem inventou a imprensa, cujos caracteres foram roubados por
um creado, e lev.-tdos a Moguucia ^Mayence) , que se arroga toda
a glo-ii da iíiven-ão. Seus navios tiveram em outro tempo a honra
da tomada de Damieta no Egvpto, ach ndo meio de romper a ca­
deia e r rro que lhe fechava o porto. 0 Duque d’ Alba tendo to­
mado e^ta cida le, mandou lazer nelia execuções tão cruéis, que Iia
quem deriv * dalli o provérbio, com (jue se descreve uma grande des­
ordem —fazer Arlem ( a ); e porque este mesmo Duque se gabava de
ter nundado matar mais de dezoito mil pessoas pela mão do algoz
ficou em llollanda o costume de chamar Duque d’ Alba a um ho­
mem cruel. Haerh-m tem obreiros que fabricam pannos os mais fi­
nos e os mais brancos de toda a província, e nota-se que uma vez
se lhes metteo em cabeça abandonar o seu officio para se fazferem
mercadores de tulipas.

( a ) Daqui se deriva também sem duvida o riíâo portuguez, de estilo fami­


liar—/arer arUtt, ou a rr e lia , isto he, fazer uma maldade com premeditaçio.
OBSEftVAÇÕlíS GEOGRAPHICAS

M f é 0 logar da gepultura dos Princepes de Orange


^ í / e n e o olho. ou segundo outros o ja. diiii da llollanda nor cau-
celebre '''* <=^ c
I ?i ' s " “ un inutilnicaic Irabidliadó

P'"' **** Anahapiis as em M iisler.


parelhas com as meibore- cidades do meiidó Por
Mra“ o t S m i m r ' T " 7 seus na' ics, e da commodidadc que'tem
P - I Pai, laz bOjC a maior parte oo c iniiuTcio (luc anles se
a zii em Aniuerpia (Anoers) , Se, ilha, e Lisboa. £1^80 L^ a ian-
d e riV cóm*''^ustn°t*í* 1***^^* as ouiras cidades da j.ra>iucia iiintas. Po­
das r a H S e Í t ? e h “^" ser chamaea o mercado e ten o iiii,versai
eeL^ cheia esladc diversas mercadorias. Ene tn laiito
qumliu.tas lonclladas de ouro no sen hanco. A de.^i eza para a cons-
triíccao da sim casa da Camara ( / oUel de \’,lle . foi pi odq'fosa
c o íeenies
cor m e V eT onde
onde“ os seus habitantes re ppam hom ar. »s aguas são
ím teraam , o arsenal do paiz , e a fiatria de Erasmo um dos
e S e s ^ a (pie chamam peejuenas.
ciciatíes, ® ® coiiMde.averdas doze
m e h .í excellentes queijos, que tem a rôd'>a ver*
melna, c por uma serea, que se achou na sua vizinliança no anno de

 Ilaya, residência do Tonselho dos Est .dos Geraes, não é mai< aue
hõ L Euronà“ ' ' «it^liniosaque
A vilia (ie que llie íica p o.dint. é conhecida pe'o narto
de irezemos c sessenti, e qiiairo lilims, qiie alii teve em mitrofom-
po Sigundc) se diz, uma Condeç.i de ííolli,nd<i.
Aicniaer é a melhor ciiiade dâ iloüanda do Norte
s a lm S '!" Pda pescaria dos
l a Ilnlle c Tewel são dons afomados portos de mar- csl- para
la r d ^ f "e
lanaez, aan eK ''n
e aqnelie ,“ f “o meio-dia
para os hahilautes iijm am a cauda do Leãolio 1-

a iit offsmiím nl “„ . f l l í “ "'“ 1 !"’, P”" 'il’ ordadc, e a ultima


Hdns T e n e s /-nm * jlosputiha. Qiuindo SC comparara os Es-
lados Geraes com um nayio, diz-se qiie a Zelanda é o ha'el E ’ for-
mada de o,to ilhas prineipaes, quatro das c|uacs são prand s A de
l aWicrcm e a mais bella de todos os Paiz.s-llaixos cora as ciihdes
de ihíddelburg, a Hessingue, amhas fortes. Mid’delbur<^ capital
da província, e o logar onoe no anno de l(j09 se achou o7 iso dos o-
culos de ver ao longe. A pequena ilha de Vuveland é conhecidrna
324 TIAGfiU DK FRANCISCO PTRARD

historia do aono de 1573 pela oii'ada pasíageoi dos Hespanhocs a-


trave Z do niar. rt >

A cidade de Utrecht é habitada da maior parte da nobreza do
j)aiz. Ha mais de cincoenta e seis cidades , ás quaes se pode ir de
Utrecht por canal em menos de um dia.
A Gueldres tem quatio districtos, dos qiiaes o que fica á parte do
meio-dia pertence aos Hespanhoes, que no anno de 1627 trabalharam
inutilmente por fazer vir o ílhenoá cidade de Gueldres, e dalli entrar no
Meuse, afim de tirar as Frovincias unidas o commercio da Alema­
nha. Nimmegue , capita! da Gueldres íloüandeza, c o forte de Sch-
tn'i, chave de todo o paiz, estam no districto da Beíuve] logar on­
de habitavam os antigos Ilatavos.
A cidade de Zutphen tem o mesmo nome da provincia.
A Over-íssel, por outro nome Trans-isalane, é assim chamada da
siia situação álem do íssel. qoe se communica com o Rheno por me-
io de um canal, que Dniso alli fez antigamente. Tem as cidades de
Deventer e Coevorden, o mais regala:- pentágono que se tem fabricado.
A Frisia cria bons e fortes cavaiibs. Teve em diversos tempos
Princepes, Duques, e Reis, que residiam em Staveren. Os seus ha­
bitantes defeud?ram-se í?alhardamente contra os Romanos em tem­
po de Tiherio e de Nero. Leuvarâen tem o parlamento (trib u n a l) ,
e 0 almirantado da provincia. Esta ultima prerogativa compete tam­
bém a \msterdam , a Horn, e a Rotterdam em Hollanda. No anno
de 1369 só esta provincia perdeo mais de vinte mil de seus habi­
tantes por effeito de uma chuva diluvial, que veio na vespera do dia
de Todos os Santos, e (pie se extendeo ás províncias visinhas.
Schelling é uma ilha na costa da F risia , onde se caça por um mo­
do divertido cães mariphos; porque os heraens que os querem apanhar se
disfarçam em palhaços, e com >rii momices attrahera insensivelmente
para *o meio da ilha’ estes pobres animaes, que licam encantados de
os ver, e no entretanto se armam as redes, que os impedem de tor­
nar para o ma'',
A Groningue tem pastos, alii se fazem as turfas, que servem pa­
ra combustível. Tem poucas ri iiides alem da do mesmo nome, cuja-
burguezia procede vigorosa mente na defensão de seus privilégios. Ba­
te-se alli moeda, que serve também na Frisia.

Pag. 246.

A Masulipatão ou Bengala etc.

azul-patan é uma cidade marítima do reino de Golcondá ; aão’


é cercada de muros ; as ruas são estreitas, e as casas baixas; mas
(t forte de seu assento, n’ um logar pantanoso; onde ha uma ponte
OBSERVAÇÕES GKOGRAPHICAS

de quinhentos passos. O sen porto íica a raria legoa da cidade , é


comniod) para toda a sorte de navios, epori.-so a maior parle das
nações da Europa tera alli seus feitores. A gente da terra faz um gran­
de coramcrcio de pannos pintados, e outras obras de algodão tão de-
licadamente trabalhadas, e com tão vivas cores, que se estimam mais
(]ue as de seda.
Bengala ó a cidade capita! de um reino do mesmo nome em terras
do Mo»ol. Alguns dizem (pie o seu nome é Chaiigão. Este paiz e
afamado pela temperatura de seus ares, pela fertilidade de seu solo, pela
abimdaneia do seu arroz, de que a maior parte das índias se prov(3, por
suas bellas canas ou/o/uí, por suas sedas, c'per seu excellente páo de
Calamba, o mai-; raro e o mais o iorifero do mundo. Dá também o seu
nome ao maior, e ao mais lemoso golpbo da Asia. Os habitantes de
iiengílasão extiaordinariamente ladinos; e os creados que alli se tomam
tem lama de ser mui máoshomens.

Pag. 29 1,

Quanto ao Ganges os Indianos o hão por sagrado.

8' Indianos dizem que a ?goa deste rio os sancfifica, ou bebendo-


a, ou seja lavando-se nella; e por isso vão cm rimaria acs logares
onde tlla passa, e csMoi-oles a faz(m levar sempre comsigo. E ’ pa­
ra ver ás vezes quatro cu cinco mil Indianos em volta (Ío Ganges,no
qual vão lançar ouro e prata. Akm disfb este rio era em outro
ten po celebre por seu ouro, como é hoje por esta agua, a qual e
mui leve.

Pag, ibid.

Abaixo delle (Ganges) é o rio Indo que corre por Surrate e


Carnbaya.

a erro nesttí artigo, e mui considerável, porque o rio Indo, e sua


foz são para cá do tropico de (dancer, e o gol[)ho de Cambava, perto
do qual está Cambava é Surrate, é de lá, isto é, ao meio-dia do
mesmo trqp'co de Cancer; de sorte que ba di/ferença bem mais de
cento e vinte Icgoas, Isto se conlirma |)elas ultimas llelações, que
dtUfuelles logares tem sido feitas, e pelas cartas mais modernas. Alem
disso 0 Indo, a que a gente da terra chama Panjab, por causa de cin­
co rios que se juntam na parte superior do seu curso, é navegavel dos-
YIAGEM DE FRANaSCG PYRARD

de Lahor até ao Sinde. Alexandre Maiçno fez descer por elle os seus
navios até ao oceano, cujo fluxo e refluxo causou grande admiração
aos pilotos deste conquis^dor, porque era cousa de que elles não-
tiuliam conhecimento.

. »
Pag. 3 12 .

Todo 0 paiz que corre desde Barcelor até ao Cabo Comorim


se chama Malabar.

O Malabar, de que se tem fallado era muitos logares desta Via­


gem, é uni paiz baixo com uma costa assaz agradavel, e habitada
por gente, que são pirotas de officio. Sopra sobre esta cos/a certo vento
110 inverno que move por tal sorte o m ir vizinho, que arroja quanti­
dade de areias á entra la dos portos, de maneira que então mesmo
pequenos barcos não polem alli entrar; e no verão outro vento con­
trario áquelle corre com tanta força que torna a levar a areia, e
deixa livre a navegação.
0 grande numero de rios que ha no Malabar, faz alli inútil o servi­
ço dos cavallos, principalmente na guerra. Por outra parte os rios adubara
éxtremameiite a i n-ra, criara crocodilos, cuja carne é boa para co­
mer, e servem para transporte dos mantimentos e mercadorias, que
são especiarias de muitas qualidades.
Os Malabares passam bem todo um dia sem comer, tomando dous
graõs de uma massa, a *^que chamam Aníião , e que lhes vem dc
Oambaya ; mas são obriga los a continuar a comer esta droga, por-
uue se uma vez a deixarem, não poderão viver quatro dias, ainda
(jue usassem de outros alimentos.
Os fillios não su medem alli a seus pais; são os filhos das irmãs
que herdam, por serem com certeza do seu sangue ( a ) . As nuiíhe-
res queimam-se depois da morte de seus maridos, para mostrar que
lhes tem tanto amor, que lhes não querem sobreviver. Ha poucos an-
nos que duzcntas destas mulheres se queimaram d 'pois da morte ’do
Naiquí de M iduré, que e um pequeno estado visinho do Malabar;
mas desde certo tempo para cá esta lei tem sido moderada era fa­
vor das viuvas ( b ã.
Calicut c uma ciaade mercantil, onde os Portuguezes primeiramen­
te aportaram, se bem que com menos favoravei successo do que em

(&) Isto acontece na casta dos Naíres.


r (1)) A queima das mullieres de algumas castas hindiis na fogueira, qne con­
fine 0 cadiver dos maridos, n<âo está ainda boje totalmcnte exlincta na Índia,
^pezar dos esforços para isso empregados aos tempos antigos pelos Portugueaes,
on«8 modernos pelos Inglezes.
OBSERVAÇÕES GEOGRAPIIICAS 327

Cochim, fade elles obtiveram licença para fazer uma fortaleza , que
foi a primeira que tiveram iias índias OrieiUaes. Esta fortaleza fol­
hes tomada pelos Hollandezes no anno de 1662. O princepe de Ca-
heut chama-se o Samorim; pretende cobrar tributo de todos os reis
do Malabar, mas muitos se tem isentado de Iho pagar. Alem deste
princepe ha no paiz os reis de Cananor, de Tanor, de Cranganor,
de Cochim, de Coulão, de Travancor, e outros dez ou doze áe me­
nos conta; mas os /ogares de que tem os titulos são hoje pela ma­
ior parte dos Europeos , ao menos as cidades de baixo que são á
neira-mar, porque quasi todas estas cidades são duplas.
Tamul é o nome de uma lingua particular- que alli ha ; e alem
da língua Malaya ha outras a que chamam a Bagadana, e a Gran-
donica ( a ).
Cochim, que é quasi igual a Goa na grandeza , paga tributo aos
Hollandezes, que alíi tem uma fortaleza, como dissemos. O seu por-
to é perigoso por causa dos rochedos ecachopos que tem na entrada.
Coulão já foi mais rica e mais povoada do que agora é , porque
chegou a ter mais de cem mil habitantes. O Samorim prezava-a por
causa do seu assento, do seu porto, e da sua íidelidade. Depois,
tendo as areias do màr entupido o seu porto, Goa c Cochim lhe
t»raram todo o commercio.
Onor tem pimenta mui pezada , e arroz preto, que é melhor que
0 branco.

Pag. 3 7 9 .

Destes Mèsanos Malabares ha alguns que são corsários epiratas'


I l a em diversas partes do mundo muitos povos, que vivem por este
modo, ou outro semelhante. Os Iroquezes no Canadá; os Chichimecos no
Mexico; os Caraibas na Guaiana; Os Araucos no Chili; os Quirandis
no Paraguay; os Mouros e os Árabes na Africa; os Giacos ou GaUas
no Monomotapa; osJ)rusos no Monte Libano; os Alarms e os Hedui-
nos na Arabia; os Curdos nos coníins da Turquia e da Persia; os Ab~
cassai na Georgia; os Culis e os liesbutos nas índias Orientaes; os
que chamamos Bohemios e Eggpcios em França; os Bandidos em Italia;
os Casacos em Polonia e no Mar Negro; os pequenos 7'artaros nas
BonteiiMs da Polonia e de Moscovia; os Uscoques e os Morlacos na
üalmacia; os Arnautas na Grécia; os Mainotas na Moréa; os Cimme-
riolas no Eniro; os mantanhezes a que chamam Mosse-Txoupes c ii
Clannes em Escoeia; os Thories em Irlanda; os N/flc/oíaí emCandia; e
antig tmente os Assasnnos e os Sarracenos em Suria; os Drillas na
Asia Menorí os Bandoleros nos Pyreneos.

(a) Por aqui se vô qu5o pouco erauí conhecidas então na Europa a$ tinguas
desta parto da índia.
■Jf-

328 YIÂGEM DE FRANCISCO PYRAR»

OBSERVA í;Ô ES. ï


■4 .
í.
SOBRE A SEGUNDA PAUTE.
'I
Pag. 17 .

. ( Nos vimos entre as mãos dos diabos destes Cafres mais ne­
gros que carvão.

l i região que tem o nome de Cafraria e a mais meridional de to*


da a Africa , ao longo do mar da Ethiopia , com uma extensão de
cosias de quasi'mil e duzentas legoas. E ’ cheia de montanhas, su-
geita a grandes frios, e dividida por muitos régulos, que pela ma­
ior parte pagam tributo ao Imperador do Monomotapa. O de Sofa-
la paga-o também a El-Rei de de Portugal, que tem guarnição na
fortaleza deste mesmo nome , situada á borda de um rio largo de
uma legoa, onde se resgata quantidade de ouro das minas que ha
no sertão. Este ouro é o melhor do mundo , e o de cá parece um
pouco de cobre á vista delle. Pela maior parte das vezes apanha-
se nos rios com redes depois das chuvas. Diz-se com alguma ve­
rosimilhança que Salomão daqui mandava ir o que empregava nos ■í,;,
seus hellos' ediíicios.
A costa da Cafraria é baixa , e cheia de arvoredo ; mns a terra
alli produz flores de um cheiro agradavel, e as arvores são de uma
bella apparcncia.
Tres grandes rios vão sair ao mar das índias pela Cafraria, e to­
dos tres são conhecidos na sua origem pelo nome de Zambeze. O
mais septemtrional é chamado Cuama; o do meio do Esiurito ^anío.
e 0 mais meridional dos infantes.
Os Cafres vivem sem lei , como o seu nome testiíica. Tomam
grande prazer na pesca do peixe, a que chamam pnxe-mulher, por­
que se parece com uma sereia, e os refresca quando se aproximam
delle. 'duitos dclles tem a destreza de roubar com os pés, e o fa­
zem cm quanto olham para a gente íixaiuenie como para a diver­
tir. Rastecem muitas vezes de seu gado aos navegantes que alli a-
portam, mas estes agora prendem os bois a gro.-sos páos, c encer­
ram os carneiros antes de os pagar, portjue os Cafres tinham por
costume de os tornar a recolher a seu poder por meio de certo as­
sobio, que lhes é particular. Podf‘-se dizer delles ao ver a sua cor,
que se assemelham aos nossos limpa chaminés. Alem- disso tem a ca-
lieça grande, o nariz chato, ou porque lho calcam de proposito des­
de u infanda, ou porque quando são meninos as maes os trazem
OBSERVAÇÕES GEOGRÀPIIICAS 329

conímuadamente ás costas; seja como for, passa por belleza entre


eiles. Tem também os cabellos mui crespos, os beiços excessivamen­
te grossos, 0 espinhaço agudo, e os quadris largos,* de sorte que são
a cqusa raais medonha que ver-se pode; e por isso não nos devemos
admirar de Pyrard lhe chamar—os diabos destes Cafres=.

Pag. 33.

Descripção da cidade de Goa,

P
^ sta descripção de Goa sendo mui ampla, nada tenho a accrescentar
desta cidade, senão que é uma das mais bellas da índia, re-
ra Vice Uei Portuguez. eo arsenal da coroa de Portugal pa-
Tinrfa Onentaes. A ilha de Goa faz a separação da costa da
Hí. ^ peninsula da índia d’aquem do Ganges,
us que alli chegam esperam em duas pequenas ilhas, que estam a
cinco legoas da cidade, que lhe cheguem pilotos para os metter ordi­
nariamente no porto de Murniurgão. ( a j Goa é muito grande, e
seria ainda mais povoada do que ora é, se os excessivos calores não
üzessem morrer alli tanta gente. O seu hospital é havido pelo mais
bello, mms rico, e melhor servido que o do Espirito Santo de Roma,
c que a Enfermaria de Malta.

Pag. 1 1 4 .

Do Reino do Dealcão, Decan, ou Ballagate etc,

E ste Estado comprehende très reinos principaes; o de Decan, onde


residência do rei, a qual tem bem cinco
legoas de circuito; o de Balagate,cuja capital é Bider; eo Concao, de
que e capital Goa. Não é visinho do reino de Bengala, como se diz
na pag. 116, mas confina com o reino de Golcondá, atravez do qual
Passar-s9 para chegar ao de Bengala, que hoje pertence
ao Grao Mogol, como temos dito. Orei do Üeeanchama-se Idalcão,
ou antes Idal-xa. Presentemente já tem artilheria grossa, e entre ou­
tras peças, tem uma cujo calibre leva balas que pezam bem ^outo-

(a) Refere-se eàuetor aos ilhéos de S. Jorge ao s-.l de Goa. Os aTvios


«ntram era Mormugào sóno inverno; no terapo da boft mopc5* entrara no
«utre porto doaorte, chamado da Aguada. *
83
330 VIAGEM DE FRANCISCO PTRARD

cen tas libras ( a ). N a R e la ç ã o da v i a g e m d e M a ô d e s lo , feita nesta re«^ião


do D e c a n no anno d e 1 6 3 8 , h a uih roteiro ou itinerário m u i exacto” d e

(a) Pareeeria isto exageraçSo se nSo lessemos do E a s t In d ia G azetteer per Wal­


ler Hamilton,. London, 1815, artigo Bejapoor^ o seguinte:=« Ainda alii per-
« manecem algumas enormes bombardas , que correspondem á magnitude da
« fortaleza. Diz-se que só foram deixadas alli doze, dentre as quaes as très
* maiores tem as dimensões seguintes- 1 .» bombarda malabar. Diâmetro na
« culatra 4 pés e cinco pollegadas; comprimento da culatra até á bocea 21
<f pés e cinco pollegadas ; circumferencia des munhões quatro pés e sete
t( pellegadas; diâmetro da bocea quatro pés a très pollegadas; dito do ea-
« libre ou vão da bócea um pè e nove pollegadas.—A 2.® é uma bombar-
« da de bronze fundida por Aurengzebe para comraemorar a conquista de Bejapoor.
«Tem; diametro da culatra quatre pés e 10 pollegadas e meia; dito na boceâ
« quatro pés e oito pollegadas; dito do calibre ou vão da bocea dous pés e quatro
« pollegadas; comprimento quatroze pés e uma pollegada; circumferencia no
« meio très pés e sete pollegadas.—A 8 * é chamada a E xtra v a g a n te ( h ig h - fly e r } ,
« e mede em extensão 30 pés é très pollegadas, e meia; circumferencia na
« culatra nove pés e duas pollegadas; circumferencia na córnija, medida na
«parte mais estreita, seis pés; diametro do calibre ou vão da bocea um pé e
« uma pollegada—A primeira e a uliima destas très bombardas são construídas
« de barras de íerro; apertadas com arcós; nàó assentam sobre reparos, mas
«jazem sobre toros de páo—A peça de bronze é fixada no seu centro*sobro
« um immenso ferro que se firma no chão, e abarca os munhões da peça era
« forma de argola movei, ficando a culatra sobre um tòro de páo assente n’nma
« grossa parede de sorte que não pode recuar. O calibre desta peca requer
«uma baila de ferro do pezo de 2646 librai.=)»
O auctor refere-se ou á 1.® ou á 3.* destas bombardas; porque a 2.®aIom
de ser fabricada mais modernamente por Aurengzebe, excede ainda o calibre
indicado pelo mesmo auctor. Mas esta é justamente a mai* celebre, e por isso
daremos aqui a sua descripção como a achamos em dois escriptores medernos
jnui curiosos investigadores das cousas indianas, Edward Thornton no seu Ga-
xe ttee r o f the te rrito rie s u n d er the governm ent o f the E a s t- Jn d ia Com pany, and o f the
n a tive states on the continent o f In d ia , London, 1857, artigo B e e ja p o o r, diz • se-
guinte:=« Entre as varias maravilhas desta arruinada capital do extincto rei-
•c no de Beejapoor, não é a menos digna de ser notada a vasta bombarda cha­
re mada M a lih i M a id a n , ou o R e i ãa p la n íc ie , uma das. maiores peças de artilhe-
« ria de bronze que ha no mundo. Tem na bocea quatro pés e oito pollegadas
« do diametto , o calibre ou vão da bocea tem dous pés e quatro pollegadas, o
« comprimento, quasi quinze pés, o peso quarenta tonelladas. A sua transporta-
rf eào a Inglaterra foi suggerida pelo governo de Bombaim; máscomo a despeza
« necessária para ser levada até á beiramar foi avaliada em 3 Oj0 rupias
<( ( 30í|! cruzados ) , as auctoridades da métropole exprimiram a opinião de que
« 0 objecto não era de importância suíBciente para justificar aquella desp«sa=»
Edward B Eastwich no seu Handbook fo r ín d ia , London, Í859, livro, que faz parte
da eollccção do Murray, quando dssereve a cidade de B ija p ú r , pag. 377, diz o se-
guintex=« Intra-se na cidade por uma pequena porta, feita por Gokla, que trans-
« formou a porta Makkab em um K a c h e r i e thesouro, que ainda serve. A-
« primeira cousa que merece menção junto da porta Makkah é a celebrada bom-
'<barda chamada o M a lik -i-M a id a n , ou M onarcha da p la n íc ie , que se diz ser a maior
«<peça de arilhetia de bronze que ha no mundo. Está montada n’uma torre re-
•< donda, ehamada a B u r j~ is h a r z (n k j ou a Torre do Leã o , por ser ornada com duas
OBSERVAÇÕES GEOGRAPHICAS 331
n V is a p ô r a G oa; e posto q u e eu ten ha fei­
to d e lle uraa C arta particular, muitos folgarão d e v e r aqui um e x -
li CtCVv•
« cabeças de leSo de pedra. A seguinte inscripcão, que fica á mïo direita da
i-íicaa sua data. « Durîita’o íeiuado do 410,10^ « “
« Ah Adil Xa a quem, por favor de Murtaza ( Ali ) Deas concedeo uma
« bn hante Victoria, este bastião foi feito era cinco mezes firme como uma mon-
« tanha, pelos venturosos esforços de Majlis Xá, No qual tempo um anjo em
«jubilo deu a data do anno, dizendo que o bastião Sharzah era seu igual »>Aca-
« bado de escrever no anno da Hegira 1079 (de Chrislo 1668 h Esta cele-
« brada peça è feita de bronze, tão macio, que admitte mui fino polimento.
« Quando se lhe bate sôa como um sino. As suas dimenções são as seguintes:
quatro pes e dez pollegadas; na líocca cinco pés e duas
<pollegadas, diâmetro no calibre -ou vão da bocca dous pés e quatro pollegadas
« e meia; do ouvido très quartos de pellegada; comprimento quatorze pós e
« très pollegadas. Tem as seguintes inscripções « Não ha Deos senão D e o s , e
«nenhum íora elle.* Abul Hhazi Nizam Xá, rei servo da raca do apostolo
«{Muharaed) e da casa de Deos, 936 « Muhamed Bin Hasan Rúmi o fe^z » Xá
«AlamgifGhazi, oasylo da religião, que satisfez as pretencões do justo, tomou
« posse do remo, e conqui^stou Bijapúr. Gora a data da conquista veio a boa for-
« tuna e disse seja subjU;gado o monarcha da planicie—No 30.® anno do seu exal-
« tado reinado—Anno da Hegira 1097» Esta ultima inscripcão commémora a vic-
« tona de Auraugzib. A bocca é obrada em forma de boçca de dragão. Est i
K peça era considerada com superticiosa reverencia por todos os habitantes
« de Bijapur e até ha pouco tempo os Hindus a adoravam untando-a com n-
« seite « ^cinabre. Paliando da magnificência de seus antigos reis, o novo conta
« por admiração que esta peca era conduzida diante delles nas^ occasion«
.« solemnes. Correm entre os naturaes os mais absurdas historias dos temiveis
« produzidos pelo seu fogo. Dizem que muitos edifícios foram arra-
« zados só pelo abalo que ella dava; e muitas damas caiam doentes do su^in
« Ha^um pequeno tanque junto delia pela parte detraz, no qual se diz que o bo n
« bardeiro, depois de botar fogo ao rastilho era obrigade a mergulhar a cah^~
« para escapar á morte que aliás seria certa por causa do tremendo estouro *o
« ridículo character destas lendas foi manifesto a 5 de Janeiro de 1829 ou ,'a
« por ordem do Rajá de Satará, a peça foi carregada com oitenta libras” d«
«polvora grossa e disparada. Muitos habitantes sairam da cidade cheios de terror
« quando ouviram que se tratava de dar fogo á peça; mas a explosão, posto ou«
« estrepitosa, nada teve de muito ex.traordiuario, e totalmente illudio a pv
» pectação das gentes.=«
Semelhante á 1 .a e 3.» descriptas por Walter Hamilton é outra bombarda
que pertenceo também ao Hidalcão, e fiçou na fortaleza d e B e n a sla riin , que nòí ii
chamamos de São Thiago, na ilha de Goa, e hoje se guarda no arsenal des­
ta cidade. Paliando desta fertaleza de São Thiago diz o Marquez de Pomba;
n e sIn stru cç õ e s que em nome de El-Rei D. José deu ao Governador e cap.tão générai
da índia em 1774, que ha na dita fortaleza dezaseis pecas, e unxi dellasdo g e n n n
de c m H o de disform e grandeza. E annotando esto logar *diz o Secretario Claudio
Lagrange Monteiro do Barbuda=» Mas ainda ostavaassestado cm 1839, sobre
« os restos d’hum Baluarte desta Fortaleza, provavelmeute construido pelos Muu-
« ros, essa canhão de não tão desform e grandeza, como dizem as In slra ccS e s o
« que pelo Barão de CanJal foi mandado recollier no Arsenal, a Vim^ do
«ser aqui inaugurado como trofoo, o que se executou em 1840—He verd-alei-
332 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

Itoteiro de Goa a Yisapôr, e de Visapôr a D abul, e de Vahul


Goa por mar.

la rtin d o de Goa passa-se o Rio da Madre de Deos, que parece


ser 0 do Matidovy ( a ) ; passa-se depois ás terras de Bardez
pelas aldeas de Dicaparli e Danda a Ambi, á Oerpoll, (bj a Ambolira,
( Ambollee ) a Herenckassi sobre urn pequeno rio do mesmo nome
que desce das raontaohas do Balagate; a Berouli, a Yerserée, a Ou­
ter, a Berapôr, a Matoura, a Calingra, a Cangir, a B a ri, a Vorri,
A â Atrouvad , a Badarali ( Beeduralee ) pequena cidade , a Kervues
( Korrulee? ), a Skoeoeri, aRaibag ( Raibaa ou Raeebag ), cidade. En-
coütra-sc depois a cidade de Gottevi sobre o pequeno rio de Cug-
ni, Coesi ( Koorchee ) , Omgar, o Rio de Corstene ( Krishtna ou
Khrisna ) que atravessa todo o Decan, Einatour , Katerna ( Katral )
Tangli ( Tangree ) , Erari; passa-se depois a Atoni ( Rutnee ) , a Bard-
gie, a Agger; depois ás cidades de Talsenghe { Tulsung ) , d’ Ho-
mouvar ( líonyva) , e de Ticota ( Tehoteh ) , e tinalmente a Visapôr
( Reijapoor).
No roteiro que se segue de Visapôr a Dabul , caminha-se para
ponente , e vai-se primeiramente a Atoni ( Rutnee ) pelos mesmos
íogares que acabamos de d ize r, e depois a Agelle , á cidade d’
Areq, a Berce, a Mirsiec ( AJhuesal) , cidade e fortaleza , a Epour,
á cidade de Graen ( Ghalwar ? ) sobre o Rio de Corstene ( Krish-
tna ); a Toncq, a Astacea, á cidade d’ Asta, a Bailou va, ás cidades
d’ Oerea, e d’ ísselampôr ( Islanwoor ) , a Taflet, a Cassegan ( Ka-
segaon) , á cidade de Calliar, a Guloure, a V inge, a Qualampôr , a
Dombo, á cidade de Tamba, ( Tamb ) a Morei , a Supera , a Be-
loure, a Veradpatan, á cidade de Heleuvake donde se passa o rio
de Coina, ( (luina ) o maior do paiz, a GuUamata, a Poli, a Cam-
Im rlei, a Cnipolone ( Chiploon ) , e depois embarca-se no rio Gboy-

<( ramente hum pedreiro do comprimento de dezaseis palmos e meio, e de quator-


« ze pollegadas e tres linhas de calibre, construido de ferro e em barras de
t< uma pollegada de largo, covenientemente reforçadas .--Alguns escriptores lha
« dao 0 nome í q M o u risca , talvez porser'obra de Mouros —»
( a ) Não ha duvida que ho o do Blandovy, no passo chamado de Daugina,
onde está ainda hoje0 extincto Convento da invocação da Madre de Deos, qne foi
caza capitular da Provincia de Franciscanos Reformados da mesma denominação.
( b / Da ^íadre de Deos não se passa ás terras de i?ardez, mas ás de B ic h o lim ,
•'ndc se não achara todavia os Íogares nomeados pelo auctor.—A maior parte
dos nomes deste Roteiro estam por tal sorte alterados no fexto que é mui
difficil, 0 em alguns impossivel achar-lhe os correspondentes nos mappas ©
geographos modernos. P61-os-hemos pois como os achámos no texto, e aceres-
centaromos em parenthesis os seus correspondentes que nos foi possível achar,
segundo a mais usual ortbographia ingleza.
ÔBSERYAÇt)E5 GEOGRAPHICAS 333
gu^^îiié caminham dezaseis legoas por a-
r^ m \r n jaz norte sul. Chaul . cidade e fortaleza
PfçpT < P >' o d e m a r , hca na parte septemtrional ; segueni-se a
Ei.seadd de Per<> Soyes, na quai esta Kehsi, e mais avaute em ili-
ra o lo^j.ir de * anda u nmallo (Danda Itajapoor), Siffardan (Srevurd

S r iï* ' s 3 ; ,7 c S =

Pag. 12 4 .

Ceilâo ê uma ilha muito grande etc. *

ililh a de Teilão, segundo dizem os sen«? m inrinc e .


po muito maior do que hoie é normie Mr» «' » cm outro tem-
circuito foi reduzida a trezentas.’ íon?par.fm -nra u^m?ne^nl^f‘
tos crera que ella é a Taprohana dos ®
puros e sãos de t.das^ as índias é'’ n ,r
líie chamam terra das dilioias, e dizem’ aue ?h*T nn / alguns
0 paraiso terreal, do que o Pico de Alhim o n .^ . ^nde era
vão em romaria, dcá testemunho, e hem assim n« ^^^‘erdotes pagãos
tal, as mattas de canella, e os rios 1 n t T ^ cris-
alü h a , mmos diamantes. E na verdade ^a
é com ccncza a melhor do mundo. A n a n h iie ‘
íim, e a pescaria das pérolas se faz na sm e.\ccllente niar-
ilba de Manar. Ha tanto arroz na Hha a. e .0 d
logar de aveia. ^ cavallos em
O Pico de Adam afraz menciona !o A nmo ..u . 1 ii
da. A f„hula .diz ,|„e Adam alli i ' „

lagrimas que Eva^dtrramou uuidiuc


íillio Ahel. d u iÍe " c ecem
m annos
ann''"'®pela
f “ morte 1“ seu
‘‘ f ’ 'de

( a ) Aqui ho quo nos parece haver níf» e/> r •. . * •— — .


taj engano. E.^te nome n/o pode ser outro scnío o"«; e ^ ‘ ^ ‘’ Sraphica, mas to-
« r , que he o que hoje chamam os Ingle 7
.es " escreviam os Sangni-
Goa, en3o ao norte, como aqui se põe 0qual ho aO sul dà
( b ) Parece ser 0 Ria Shoitree.

84
334 VIAGEM DE FRANCISCO PTRARD

Os habitantes de Geilão são de diversas religiões, destros, e bem


apessoados, mas negros e feios. As suas forças militares consistem
em elephantes, que passam pelos mais corajosos e mais dóceis de toda
a índia, d’ onde vem cbamarem-lhes nobres.
Tiveram em outro tempo um bugio branco em tal veneração, que
tendo este bugio caido era poder dos Portuguezes, o rei do Pegu
offereceo, posto que inutilmente, trezentos mil escudos por seu res-
{ s )
Os Banianes que poem no numero de suas falsas divindades a Ramo,
um de seus heroes, dizem entre outras tontices, que este querendo
passar a esta ilha, todos os peixes de concha se juntaram na super­
ficie do mar para lhe formar uma ponte.
O estreito de Manar não tem mais largura que o alcance de um
tiro de mosquete, por razão de muitas ilhetas que alli se formam cada
dia pelas pedras que alli se lançam para se poder chegar mais perto
de um pagode ou templo dos idolatras, que está na terra firme da
Co^ta da Pescaria. Só as pequenas enabarcações podem passar este
estreito. Ura espaço de mar tão abbreviado faz crer que a ilha foi
em outro tempo pegada á terra firme, da qual é boje afastada dez ou
doze legoas.
Por ultimo os Portuguezes não possuem já alli hoje cousa alguma;
são os Hollandezes que occupam a maior parte dos logares marítimos,
como temos dito. Ha muitos reinos nesta ilha, a saber, Candia, as
Sete Corlas, Ceitavaca, Galle, Columbo, C h iláo , Jafanapatãó , T rin -
quilemale, Baticalou, e Jala. A melhor cidade é Candia no interior
na ilha.

Pag. 12 6 .
Os Portuguezes tem duas fortalezas nesta ilha. A principal é
chamada Columbo, e a outra porto de Galle.

E s t e s dous logares de Columbo e Galle são presentemente dos Hol­


landezes, que igualmente possuem Negurabo , Baticalou, Trinquile-
raale, Jaflanapatão, e uma fortaleza na ilha de Manar.

Pag. 1 3 1 .
Descripção de Malaca.
Malaca é como o centro das índias orientaes onde se pode aguardar

( a ) 0 auctor refere-se confusamente & bem sabida bistoria do dento de


bogio, Ou de Budda, como outros dizem, .apanhado por D. Constantino de Bra­
gança era Jafanapalào.— A^eja-se a N o t a ( c ) dc pag 120 deste volume.
OBSERVAÇÕES GEOGRAPHICAS 335
pelos ventos propícios á navegação, ainda que as avenidas deste lo-
gar sejam periííosas, por razão de muitas illietas e cochopos que ahi
ha. Podem entrar no seu rio barcos, mas os navios grandes surgem
entre as duas ilhas que ha na barra. A cidade deve a sua origem a
pescadores de Pegú, Sião, e Bengala, que alli ficaram de assento ha
uns cento e tnnta annos, e que formaram não só uma cidade, mas
uma nova lingua, que é hoje recebida em muitos logares da índia.
Os Portuguezes haviam deitado voz de que os at*es eram alli insa­
lubres, para tirar ás outras nações o desejo de se estabelecerem na-
quelle sitio. E ’ hoje dominada pelos Hollandezes.

Pag. 139.

A ilha de Java está junto de Sumatra.


E sta ilha tem muitos Regulos, quasi tantos quantas ás cidades, mas
0 conhecimento defies nos é mut pouco necessário. Ha entre outros
os de Japara, Tubam, Jortam, Panaruam, Panarucam, e Palambiiam.
A maior parte defies são pagaõs, e alíuns mahomelanos , e quasi
todos reconhecem o grande Alateran, ou Imperador de Materan, a
quem antigamente perteuceo a soberania de toda a ilha. Pescam se
liaco.sta de Java ostras, algumas das quaes pezam bem trezentas libras.
A ilha produz cannas tão grossas, que uma só délias basta ás ve­
xes para lazer um batei. Tamoem dá excellente Calambá, que é páo
de alóes; sal, que se produz junto de Jortam; ouro e pimenta eiu
quantidade. A sua costa meridional não é ainda conhecida.
E ’ esta ilha uma das maiores da Asia, e por causa da sua abundan-
cia alguns lhe chamam o epilogo de mundo. A sua cidade de
tam jaz ao pé de uma cullina cercada de dous ribeiros, e cortada
por um terceiro. O seu porto é o maior e o mais frequentado que ha
cm todas as ilhas da Sonda, porque alli se acha toda a sorte de
especiarias pedrarias, e outras faztndas da índia, \lguns Uespanhoes
chamam a Bantam a guela do oriente.
Jacatrá ou Batavui é a residência do conselho da companhia llol >
landeza das Índias Orientaes desde o anno de 1619. Tem uma boa
fortaleza de quatro baluartes regulares, meias-luas, e outras obras. Esta
situada n’uma bahia, que por ser amparada de algumas ilhas da parte
do mar, forma o mais bello surgidouro que ba em toda a Iridia.
A
Jortam, é abaixo deste um dos melhores portos, e mais frequen­
tados.
Pag. 144.
Quanto ás ilhas de Maluco.
ila cinco ilhas assim chamadas, que estam como á fronte de outras
336 YIAGEM DE FRAKCISCO PYRARb

muitas maiores, que délias tiram o nome. São peauenas, e insalubres


em virtude de seu assento junto da linha equiiiociaí. Tem alguns Reis,
mas os Hollandezes occupam a melhor parte por meio de .'uas forta­
lezas. Antes (le serem descobertas pelos Europeos, o Imperador Car­
los Quinto as maadou descobiir por Magalhães, seguindo a derrota do
poente. Depois foram entregues aos Portuguezes, que as pretenderam
por terem ido a ellas pelo oriente. Depois di.'So o governo délias foi
aniiexo ao das Manilhas, ficando o .‘^eu commercio aos Portuguezes.
Ha alguns annos a esta parte os Ilespanhoes s:ii'am délias.
Transporta-se dalli noz musca In, gengibre, e principalmente cravo.
Ternate é a ilha mais considerável das cinco; tem oito legoas de cir­
cuito, e uma montanha que Lmça fogo. As outras são Tidore, que é
a maior, Motir, Maquiem , e I acham. Os Malucos são bons soldados,
e ordinariamente seguem a religião raithometana. Alem dos reis de
Ternate, de Tidore, e de racham, ha outros muitos nas ilhas Cele­
bes e de Gilolo. O de Macassar na Celebes tem ha nouto tempo a esta
parte feito fortificar extraordinariamente a sua cidadíe, e dá livre en­
I', -. trada em seus portos aos n ivios estrangeiros. No anno a 1661 fez
um tratado com a Companhia llollandeza dos Índias Orientaes, e
deixou 0 partido dos Portuguezes. Aas terras deste príncipe tem mui
bons ares, mas os calores alli são insuportáveis durante o dia. Em
outro tempo a gente de Macassar comia carne humana; e por isso os
reis das Ilhas de Maluco, e outro-' visinhos enviavam alli os seus mal­
feitores. Celebes fertil em arroz, e a Terra dos Papuas produzem ouro,
ambargris, e aves do paraizo.

Pag. 14 5 .

Na mesma região ha outra ilha, onde eu tamhem estive, mui


celebre por certa qualidade de especiaria] e é a ilha de
Banda, distante vinte e quatro legoas de Amboino.

^ a n d a é uma ilha ao meio dia das de Maluco, e a leste da dc


Amboino, com outras cinco ou s *is ilhas na sua visinhança, ás qua­
es ella da 0 nome. E ’ a unica üha do mimdi) que produz nóz mus-
cada, e massa. Tem um volcão, ou montanha que vomita chamas;
e no anno de i 6ta a artüheria que havia na ilha foi damnificada
pelas emanaçõ(*s do volcão. Os lloll ndezes tabricaram na de Acro os for­
tes dcN.is^aíi e da Bélgica, onde o porto é tão boni, que os navios se che­
gam até um tiio de mosquete da tena e se põe ao abrigo da arti-
ilieria da fortaleza em nove ou dez braças dc agua. .
Amboino, ilha fértil em cravo, jaz iguaimente ao meio dia das de
Maluco. Dá o nome a algumas outras ilhas que ha na vizinhança.
OBSERVAÇÕES GEOGRAPHICAS 3 3 7

n e !li7 e m “ m "ilaffo rtatzL^ “ \ X ' ’" r Hollandczes, que


CUJOS baluartes são revestidos dJ ^ ^onbellal; Victona,
llieria, e uma ííuarnioão d<‘ ««■ P^ca com sessenta peças de arti-
Vio, etc. E ’ 0 melhor ‘J« " V " . » d» í."-
lera feito concerto com os naturaes í I o íílíi ‘ 7*^ üatavia. Alem disso

qao é Isou, ha uma i S de "Cs <^”p“ al,


onde os navios cstain abrigados d i todos o s7 e n 7 s'"“

Pag. 14 9 .

No que toca ás ilhas Philipinas etc.

são em »umerr*de"*quar7ía a estas ilhas, que


íores, porque se mettermos na contn Callondo senão das líia
de onze mil. São md S s p
tantes pagam os teus tributos ^‘ queosbabi
vezes q«escabaudo,.as‘ r ^ o r cau7da® ? P^opo^ mm J
I içoes; mas porque ellas f á c i l ^ " " «''""‘*6 despesa das «uar-
de Maluco, Sua Ma«est ,de fu. f í r , ‘^ “ " " ’ '«''cio com a fchina e 'ibio
tc natural da t e r 7 t valoro
logares.
à « ' 7 . 7 ‘r " ' “ ^»"‘' «^ val™ . 1 gen'-
e ainda se mantem livre em muitos
Lucon por outro nome JVnr/i -
as vezes são também clmnadas^^io destas ilhas, que
sede do governador e rio nn u nome da cidade de MavílK/t
mas bonita, « imin t o r t i ( l a r \ r 7 ' * P “ a®^‘» «'<<a<lc d pmtuefia ’
barcos. Por dons lados i cegada , 7 7 7 m«veg,a 7 p o r
mar; de sorte que não pode7 7 m toad7 Ã.® 7 " ‘«rcef,7/!ca7,
índios tem mais de vinte mil Chinezes P ’ 7 Ucspanboes e
porio dc um dos mais ricos c o n Z l t i J P"'’ ‘ “ '‘o o em
Caviíe a duas Icgoas da cidaile 'm mundo
dos grandes ventos, e defendido nnr ^*'^''7'"^'’ Principal, abri-ado
hia de Manilba tem quarenta |e J 7 ' ' ? f«««* <<e maileiía. A ?,a-
inodidadc de faliricar^ grandes ’ e ha nelia a co -

7 a 4 '7 ™ r ‘' , t a 7
A de tendaija tem p.irticiilarraente” li * 7'® Particulares

S ã f 7 c ' : r r . . 7 ™ t r i ã 'í í n t ,';''t


na.io deste copitao, que passara ao ser;içò“del 7 7 7 f a s le lla '';:"

85
338 HACBM DE PnAHClSCÔ PTRARO

fins 0 de Portugal îhe havia recusado o acresceatamento de meio


ducado por niez em sua moradia. .
Os üLnanhoes que navegam para as Philippinas, como nao vao
peio n'isso hemispherio, mas pcio Mexico, e pelo mar do sul, corn-
prehendem estas ilhas bem como as de Maluco nos limites das suas
Indias occidentaes, as quaes elles exlendem ate Maiaca.

Pag. 1 5 6 .

Mas tornando ás ilhas da Sonda, de Maluco, Phüippinas,


Japão, e ainda á China, poder^se-hia dizer muito mais
destas terras etc.

Resta-nos fazer algumas observações sobre a China e Japao.


K China tem recebido quasi tantos nomes como tem tido famílias
reaes. Sempre passou por um dos mais consideráveis reinos do mun­
do, por causa da sua grandeza, das suas riquezas, da belleza de
suas cidades, e do grande numero de seus habitantes, cuja polidez
c maximas tem sido estimadas de muitos europeos. Diz-se que a
imprensa, a manufactura das sedas, as cadeiras, a artilhena, e a pol-
vora foram alli usadas primeiro que na Europa. Âlem do ([ue e ne­
cessário á vida do homem, c de muitas delicias, a China produz as
maic preciosas mercadorias do oriente , e parece que a natureza re-
m iio a cada uma de suas províncias algum dom particular. Os qiie
âüi ícm residido confessam que tudo quanto ha de bello, e se acha
disperso no resto do mundo, está accumulado na China, e que ate ha alli
cuantidadede cousas quede balde se pocuranam noutra parte, h es­
ta região (le figura quasi quadrada, e tão povoada que algumas vezes
CO ícm conmdo nclla mais dc sessenta milhões de pessoas, entrando
^Tmienteas que poiem ser tributadas. Os Portuguezes, quando ao
r,.incipio eutraara n-'sle reino, perguntavam se as Chinezas davam
a luz nove ou dez lilhos década vez. Os seus nos sao tao cobertos
dc embarcacòes, que se julga que só nellesha tantas como em todos
os outros rios do mundo. O rendimento annual do seü rei tem sioo
avaliado em cento e cincoenta milhões de ouro, e segundo outros ein
quatrocentos milhões de ducados. Os Chinezes zombam de nossas
I 1 cartas geograpliicas, que poem o seu reino n’uma das extremidades do
mundo e dizem qne eiles estam no meio (os Judeos pretenderam a
a mesma coiisa para Jerusalem, os Gregos para Delphos, e os Mou­
cos para Granada) . Dizem também que ellcs tem dous olhos, a gente
Ir. 'da Europa um só, e os outros póvos nenhum. Tem composto a sua
historia, que nos foi transmitliaa pelo Padre Martini , Jesuíta, e e
reputada por taolo mais íiel, quanto só diz respeito a seu propno paiz,
Observações geographicas 339
€ SÓ foi escripta para eíles. São tão ciosos do segredo de sua poliiica
€ de outros seus uegocios, que para os ter occuitos, não dão volun­
tariamente entrada nas suas terras aos eslraugeiros. O grande muro,
ou antes tranqueira de mais de quatrocentas legoas, que mandaram
fazer, é obra que tem tido mais fama que eífeito, porque os Tarta­
ros tem” muitas vezes invadido a China não obstante aquelia defensão.
Os aue tem dito que a China se podia comparar toda a uma grande
cidade por causa da multidão da sua gente, tem também dito que era
mister um muro daquella extensão para ser proporcionado á grandeza
de uma tal cidade, mas não é crivei que nesta fortiíicação haja pe­
dras da altura de sete loezas, e da largura de cinco, como dizem os Chi-
nezes. Se houvermos de acreditar esta mesma historiadas hostilidades
dos Tartaros lêm-se aili repetido ha quatro milannos; e até os ca-
vallos chinezes não podem supportar a vista dos da Tartaria. Nestes
annos últimos tem havido estrannas revoluções no reino; porque os re­
beldes passaram a ser senhores, e excepto aíguraas ilhas, e províncias do
meio-dia, que tem permanecido na obediência dos Chinezes, os Tarta-
rostem conquistado todo o paiz em menos de seteaimos, eisto depois do an­
no de 1B49. A vida soldadesca não é alli a mais estimada; e como os letrados
tem primazia sobre os que seguem a vida das armas, o Estado não leni
subsistido senão por sua política, e por seus numerosos exercitos,
e não pela valentia de seus povos. Os principaes oííiciaes são alli
chamados Mandarias. A perguiça é alli punida pelas leis publicas, e
irala-se por criminosos aos generaes dos exercitos que não são bem suc-
cedidos em suas emprezas. O paganismo é alli geralmentc recebido,
e comtudo a virtude é lá tida em grande e?timação. O publico e
mais rico em proporção do que são os particulares. Toda a China,
é dividida em dezaseis províncias, cada uma das quaes vale mais
que grandes reinos. Dez ficam ao meio-dia, a saber Yunnarn^ Quansi,
Cantam^ Fuquiem, Chequiam, Nanquim, Kiamsi^ Huquam, Suscuem, e
Quicheu. As seis da parte do septemtrião são, Chensi, Ckansi, Jlonam,
tkantung^ Pequim y e Leaotung. Estas seis províncias são as a que
muitos chamam CathaiOy ao mesmo tempo que dão o nome de Mangi
ás províncias meridionaes.
O Japão comprehende principalmente tres grandes ilhas, Niphony
XimOy e Xioco f a ). Niphon, segundo alguns auctores , é separada
da terra de Yeso por um braço de mar de dez legoas pouco mais
ou menos; outros dizem aue é pegada com ella, mas que por causa A
da diíiiculdade dos caminhos os Japonezes preferem ir alli por mar
{ í) ). Todas estas ilhas tem ares temperados, são abundantes de ar­
roz, pérolas, e minas de prata, a qual é mui estimada. As pérolas
são sim grossas, mas excessivamente avermelhadas. Acha-sc alli uma

( a ) N ip h on , A 'ioiéíiou, o S itk o k f, escrevem os Tnglezes.


b ) Hoje está averiguado que a ilha de N iphon é separada da de Icio pe­
to estreito chamado de Sangar, cujaS costas de uma e outra banda estaiu pçr-
teúamente exploradas, e descriptas nas cartas geograpuicas.
340 VUGEM DE FRANCISCO PYRARD

arvore mui extraordinária, porque tem a qualidade de seccar quan­


do a regam, e para a alimentar é mister pôr na cova junto ao tronco
limalha de ferro com areia bem secca; e para fózer reverdecer os se-
lis ramos, é necessário pregal-©s com um prégo. Os Japonezes são
idolatras e bons soldados. ISão obstante os perigos do mar visinho,
tem aliiumas vezes tomado a ilha de Corai junto da China. Tem a
mais feliz memória do mundo, e uma lingua muito abundante, por­
que para cada cousa tem muitos nomes, uns significativos de des-
preso, outros de honra; uns usados pelos princepes, outros pelo po­
vo. Tem também usos e costumes totalmente contrários aos nossos.
Bebem a agua um pouco quente, e dcão por razão disso que a agua
fria aperta o corpo, provoca a tosse, e as enfermidades do estomago,
e a agua quente conserva o calor natural , relaxa os canaes, e ap-
piaca mais facilmente a sede. Dão aos doentes poções mui doces e
dc bom cheiro. Nunca sangram, porque querem poupar o sangue co­
mo a carroça da vida. Estimam os dfentes negros pelos mais l)ellos.
Montam a cavallo do lado direito. Saiidnm com uma sacudidella de
pés etc. Para ter audiência do rei do Japão que se chama <ubo ou
Cesar, he necessário ga.-tar o tempo de ires aiinos nos preparativos,
e 0 festim dura bem tres me^es. ílavia-se feito alli grande progres­
so na propagação da fé; porque no anno de lo96 contavam-se na-
quelle reino mais de seiscentos mil chrisíaõs; mas do anno de 1614
para Ceá tem sido furiosamente perseguidos, e ninguém ousa a pro­
fessar ai li 0 cbnstianismo senão ás escondidas. Ao anno de 1636 os
Padres Jesuítas, os llespanhoes, e os Portuguezes foram expulsos dal-
ii, e os lloliandezcs ficaram sós com a liberilade de commercio, por­
que quando alli chegam o que mais apertadamente defendem aos
seus e fallar em cousas de religião. Ha no Japão muitos Tonos ou
princepes particulares, a maior parle dos quaes limitam o seu poder
ao recinto de uma só cidade. E ’ geraimente alli recebido o costume
de quando um destes Tonos perde os seus Estados , os súbditos
delle perderem igualmente os sens bens. A cidade capital é Meaco,
que se diz ser de noventa mil fogos ; Yeddo uma fortaleza real , e
Saçay um porto dc mar. No anno de 16S8 houve em Yeddo um
incêndio que causou a perda de mais de quarenta e oito milhões
de ouro. Os Hespaniioes fazem a sua navegação ao longo das ilhas
do Japão quando tornam das de Maluco e das Philippinas ao- Me­
xico e ao Peru,

Pag. 19 1

Reino de Angola,

ll.ííe reino é ás vezes coraprehendido no de Gongo em África, ca-


OBSERVAÇÕES GEOGfíAPHÍCAS 34 í
Maiembò elc. mas estes não reconhecem norsobe-
10^0 tÍtiWn* antigainente. 0 rei de Angola to-
mí. J ^ o s U tanto da carnrfe cão
tjue criam rebanhos destes aiiimaes e S um só r^n pc/hwIa i ■

hasâÕ T o n r . .P^f'iae atiram bem u.L Z zl, d,> le -


nm ® primeira cáia em terra. Dizem (aie o sol é
" d e sr múlher“* S^omóm
Pag. 193.
0 Rio dü Prata.

^ste no uo seu principio tem o nome de Paraguav e denois de se


lhe juntar o Paraná, correm as suas aguas po7nmis de sLsÔuti 1^
“'S«”’“- E’ "'«i P»«co funcio, posto que tm smfboJ
do seu^curs^*^!)™? ®'‘enla
ao seu curso. Depois de Icgoas demuitas
ter lormado largura,^e
ilhas dez na maior
e a maior parte,
catororf^tt
do mundo conserva a cloçnra de suas aguas mais de S n t ? ec^ool

Pag. 20G.

, Á a costa de Melinde os Portuguezes tem mais uma fortale­


za chamada Mombaça.
r
£'band'a'de‘‘c i*í'',Íê‘‘H 1 “® Íí “« I“ <*ias,
“fieLr e éacjue
ái i antigos
os , ,■ chamavam Chama-se lhe muitas
Barberia. E’ cheiavezes Zan-
de arvo­ ii
redo e de pantanos, e por isso os ares alli são máos. Osnaturaes da terra
qu^e^os^ÀrTbes^^rSo^^^^^^^ dão-se ao commercio da mesma sorte
nniil“ ^^ .pnncipalmente tem o nome de Z a n m e h \ r e ha
e de J /J n d r ”rm r'/r^ M o ç c M i q u e , de Q u i lo a , á a M o m h a ca ,
L if e V ^ / A .paile que hca ao sepiemlrião é’ chamada Avea e as
xT a ^ T os Estad os d e B r a m , k y a d o -
nij^uezes vao alli muitas vezes invernar, porque os m a n tim e n to s são
86
342 TUGEU DB PRANCBCO WIIASD

lUi abundantes, e baratos. A entradi do P^ta ® ‘to estreita, e tf»


cheia de recites, que em muitos togares ha apenas a paisagem oe
Qai navio.
Pag. ibid,

Ütticí tnui gfands b h e llã ilh a chdtticidd Socotòfá.

Ak ilha Aq Socotorá tem de conaprimento vinte e cinco Icgoas, e de


Itr^ura dez; ob-dece au n rei da Afa na. Tc»ii u n ooni porto, e b ^
bias ou ensead.is muiperíodos
comm »das pert» delle.
rochedos. ahi seinvcmar
Po te seonda pole surgir
mais com-
mSd.meoie <|ue eu Mocam'.iqu. ou Mim.aca, “»
mais sadios, etemu.ua narro se n i.erno ’'3*;”
pesaria excellente, e ga lo em f f •«.J®
perto de uma enseada cliamada alaneia i a ). "»i; “
fornece é de iiricil a-cesso, porqie a gante da terra o lem occuiio
-para se aproveitar dellc.
Pag. 208.

Do reino de OrmuZf e $m descripção.

Ha ffrande mudança em Ormuz, que agora pertence aos Jo»


o reFx.a-Âb is quê a tomo i no anao de 1622 com ajuda dos la-
fflezes c de tois de h »ver raon lado arrazir a Fortaleza, transfeno^t
commèrcio dclla a C »morão ( Gamroit ), que fez chamar do seu pro-
prio nome (lande.-AioMi. Os Portugae/.es per j«™'" or^u/®é lÕS
A valnr da seis OU sele mdhoes. A terra da ilha de urmu,. e loai
sal e não produz uma fevera de c'-va. A ilha não lem uma goti
de’aí?ua
______doce, e toda v m carreia la deiiíYifora;forice nu
^ cat»Vi'\rf»!ivani linti^m
por ilha
»ssodeosKa*
mc os habitantes dornnrn cm unas cueia. u ^
muz seria o sr,.i diamante. Co lorao í
Je Ormuî tinha feito dizer d“®.*® « '“ ®*^Xn l <m»crM-
ceo com as minas ileda poare cidate, c»ta “f.;,.;™q,,
que defendem a entrada do sen porto, onde ^ tem «J«®*
tediicto quadrado, defendido p.ir quatro peças d artilhena. O por
( a ) (Jol«sj«a&, ewrsve« m IngUzM.
OBSERTAÇÕES GBOGRAPHICAS 343

to é foramodo, porque se surge alli era toda segurança a ciaco ou


seis braças d’ agua. Tmlas as uaçõ^s que commerceara no mar da«;
Ind;as, êxct pto Poriug iez“s, bvam alli merca Jo; ias, e tiram vel»
hidos, sedas cruas, e outras lazeinlas da Pérsia. Os Ingle-
les tera tUi uietade dos direitos, e a liberdade de exportar alguns ca~
vallos.
Pag. 2 1 8 .

A cidade de Camhaya,

'amhaya era chamada o Cairo das índias por causa da sua grande-
*a, que é de duas ley:oas de circuito, por causa de seu griinlecom-
mercio, e por causa da fertilidade de su:i terra, que produz entre outra»
cousas, algodão, aoil, opio, e agalbas, de que ha uma mina em Ba~
Toche. Mas desde as perdas dos Ponuguezes nas índias Orientaes.
está niiii decaila. O seu porto é muito niáo porque posto que aa
maré cheia haja alli rans de sa.te braças d’ agua, cora tudo o refluxo
deixa os navios em secco n’ um fundo mixto de areia e vasa.
Surrate é uma das cidades da Asia que faz mais commercio, ainda
Í a chegada alli seja perigosa, e as casas sejam baixas e cobertas de.
|uc
olhas de palmeiras. O seu rio é salgado pela maré, mas tão baixo
na sua foz, que é a quatro legoas abaixo da cid ide, que apenas po--
de supportar barcos de setenti e oitenta toneliadas, e é forçado des­
carregar as mercadorias em Sohali. O porto de Surrate corre de nor­
deste sudoeste; tem sete braças na maré ciieia, e s6 cinco na va­
lante, e então a maior pane do< bancos Hcam desc ibertos. O fundo
é de areia, e está-se alli ao abrigo de todo- os ventos, exce;ito do»
de sudoeste. Os Inglezes tem alli o seu principal com.mercio das ín­
dias Orientaes. Hj uns seis annos que esta cidade foi saqueada por
«m rebelde do Mogol. e avaliou-se a perda que houve nessa occa*
sião em mais de trinta milhões.
Pag. 2 2 0 .
ii
Este Grão Mogor.

Esteprineepe, que se chama Mosor, ou Mogol, é soberano d’um' immen^


império, que comprehende a maior p irie <ía terra (irme da índia. Tira
a sua origem d’ uma tribu do mesmo nome que ba em Giaiíalay; tem
por tributários muitos roittos indianos, e passa por ser o mais rico prin-
344 VJAGSM DE FEANCISCO PYRARD

- epe do luuado em pedras preciosns, porque alem das de sua coroa


tem as de muitos pnncepos seus vizinhos, cujos predecessor es tinham
tido por lomio tempo a curiosidade de as guardar boas. E ’ alem disso
herdeiro das ped'arias dos grandes da sua corte; e igualm cnle her­
deiro universal daquelles a quem dá lenças; e todas as cazas por
vliante das quaes passa, lhe devem um presente. As terras perten­
cem itie; e a sua vontade serve de lei na decisão dos negocios de
seus súbditos. Cada dia se lhe mostra algum a parte de seus thesou-
ros, umas vezes os seus elepiiantes, outras vezes as suas pedrarias,
lí' oiiíro dia outra cousa; e ordinariam ente pão vô cada cousa senão
unia vez no anno; porque todo o seu thesoiíro está dividido em tan­
tas partes í|uantos são os dias do anno, üm dos templos do seu Es­
tado tí‘m 0 pavimento e o teclo cobertos de laminas de ouio puro.
N •\o palacio de A gra, que é a cidade onde reside a corte, ha duas
toires cobertas de laminas de ouro, um Ihrono com quatro leões de
prata verm elha dourada, engastado de pedras p reciosas, e aquelle.'
leões sustentam um docel de ouro macisso. D iz-se também que ha
neste palacio dous alqfleires de carbúnculos, cinco alqueires de es­
meraldas, doze alqueires de outras varias pedras preciosas; mil e du­
zentos alfiinges com bainhas de onro cobertas das mais preciosas
pedras. D iz-se que o thesouro de Xá-Ciioram ( Xá-íehan ? ) , um de
seus pre iecessores, era de mais de mil e quinhentos milhões d’ es­
cudos'. O -Mogol era caso de necessidade pode armar duzentos rail
cavallos, quinhentos mil homens de pé, e mais de dous mil elephan-
íes. Paísam de quarenta òs reinos que lhe reconhecem vassalagem ,
e estes reinos quasi todos tiram Os nomes das suas cidades capitã­
es. Alem disto ha alguns Estados pequenos, cujos senhores chamados
llajás ou llanes, Stão de raça ihui antiga, e se mantem em fortalezas,
e em montanhas imicessiveis. O maior mal que elles fazem é fazer
entradas e roubos sobre os subdilOs do Mogol. O Mogol guarda boa
correspondência com o Turco, prevalocéndo-se do grande numero de
seus vassailos, da grandeza de suas riquezas, e da extensão do sen
império; mas o Persa leva-llie vantagem em armas, ém cavallos^, e
em soldados aguerridos.

Pasr. 2 2 5 .
fsta ilha de Dia é mui próxima da terra firme.

1 em 0 comprimento de uma legoa, e a largura de quatro tiros de


mosquete. E ’ separada da terra firme por um canal tão estreito, aue
-'C passa sobre uma ponte de pedra { a ), e o seu porto pode iis-
f a). 0 egieiro eti eanal, que divide a ilha da terra firme, pasja-íe a ráe em
' aí ío^are?, saas Büe ha peste alguma.
OBSERVAÇÕES GEOGRAPHICAS 345
^ ^ entnida d file fica debaixo d »
artilheila de duas fortalezas que defendem a cidade ( a ). Os l’or-
t^uguezes tem tido muit.;s vezes contenda com os reis d.> paiz por
occasiao da fortaleza de Diu, a qual elles t-m serr.pre ülorioLm ente
defendido, partu ularmente nos annos de 1339 e lo4() O Mo'^ol vio
com extremo descontentamento o estabelecimento dos Portufnezé?
nas costas dos seus Estados { b ) , e como de todas as p r t e s X
índias Orieníaes se navegava a Diu por causa d . sua v an t•hsa si-
® alli abundava; fez diligencia p r attrahir os n e r-
cadores ao Sinde e a Surrate. Diz se que um s.dd uio Poriu L ^ f o i
lao valeroso na defensao desta fortaleza, que faltando-lhe peíouros
arrancou os dentes queixaes para carregar o seu mosquete. ’

Pag; 267.

Do Brazil, e suas singularidades.

ü / f™ • f»' chamado Terra de Santa Cruz, quan­


do primeicamente foKlescoberlo em nome d’ËI-ltei de Êortuaal o que
succe.leo no aujio de ;1,Õ01. ExP-nd-se para o sept, ratrião e p^rã o " í
ente ao longo de niar de norte, on le ha uma grande rocha dcM i-
xo d agua, cujas aiierturas ftTmam muitos bons no tos Os seus II
mîtes para 0 poente não são conhecidos; os que te.n para o meió-
dia vaiiam ^segiindo a voiiiade dos Castelhanos e V o n u g u .L Z Z
uns e outros explicam a seu mod,o o re.Milamento do-áiin o-d é 1493 •
e como nao vieram aindii a concerto,.os Poriuguezes tomam por B n ’
zil tudo 0 que se extende des ie o rio Aíaranhão : c ) ate ao da Pr ^
,e os Hespanhoes o limitam á C apitania de São Y icente. '
Posto q iie o Brazil esteja na zona tórrida, todavia o seu ar ó tom.
perado, e as suas aguas as melhores do mundo; p oris^ oo ; naturaes
yivem muitas v e z p ate cento e cincoenta annos Andam p !|, ma"
lor paitc nus, gostam da dança para lhe dissipar a meluaciiolia e
^ passar rios aJudando-se de um cesto e de K m a
cordg Alguns dos que comem seus inimigos não querem -leix.d-os
baplizar antes de os matarem, porque então dizem que lhe não a- ii
^ ' ... ' —■ I ----: , -
(a )Toda a ciilado é cingida de excellente fortiGcacão de baluartes ctc~ m-,«
na extremidade oriental ha a grande fortaleza ou ca'^telio, que "e co-uin..?«
iga com aqueilas fortificações da cidade. A isto chama o auctor o
lalezas; sendo na verdade uma só, toda ligada e unida Ma» for-
( b J yuando os Poriuguezes se estabeleceram em Diu ainda o ns«
«ra senhor de cambaya. O auclor porem falia do tempo em ouo est« pí xn
passou ao domjnio da Mogol . [ e m que esto remo
hní,'' estrangeiros chamam rio M aranhão ao Río Amazònas, que desem­
boca 00 Parà, e nío na Proviucia a que nós chamamos Maranhão
. 87
346 \1AGEM DE FRANCISCO PYRARD

c h a m a c a r n e tã o d e l i ' .'.rln. N ã o p r o n u t i c i i m I r e s Ieli\^s d o n o s s o a l-


p h a h e l o , a sa! e r í, / e /*, e d i z - s e q u e a r a z ã o é ’ p o r q a e n ã o t e m
n e m f , n e ; n lei, i crn rei
A i e i n d o p á o u r . i z i l i.a n e s te p a i z a m b a r , b a l s a m o , t a b a c o , o l e o d c
b a l e a , g a d o , d o e e s , e s o i i r r t n d ;» a s s u c a r « m ( F i a n t i d a l e , q u e se f a ­
b r i c a c m n i a í j u i n a s d e g u a n i c p r e ç o , a ({ue c o a m a m e i g e i i h o s . E n ­
t r e as s o r te s d e assu a r q ^ e n a , o d o canti o u cnndi t i r a o n o m e
d e C a n tc io , c n a o oa sa.» c a n d u r a o u b r a n q u u l a o , n e m t ã o p o u c o d a
i l h a liC C a n d i : . A v i s u h -riça d o r i o d a P r ; ta d á t m b ' m a o s P o r -
tu g o o z c s a c o a m i d id a d e oe r e c e b e r e m ju a iiti ia d e d e p ra ta d o P e -
r ú . I l a n o B r a z ; ! ; i n i m a e s , a r v o r e s , f r u c t ) S , e r a i z o s , q u e se n ã o
v ê m e m o i f i m j ) ^ r t O a u i n ia ! c h a m a d o P e r g u i c a é d e u m a ta l c o n s ­
t i t u i ç ã o q i i c g:)sta h e m d o u s d as i n t e i r o s <‘ m s u b i r a u m a a r v o r e ,
e o u t r o t a i d ) í u r j ) ) « m d e s c e r . A s s e r p e n t e s c o i ) r a s , e sa p os n ã o
l e r a a ili p n ; o ; : ! i , e p o r isso e r v e u le ra u i t i m e n t o aos n a t u r a e s . O s
c a m p o s sã o a p ii a d e s p a r a os ; s s u '‘ a r e s , as i i m u t a n h a s p a r a os a r ­
v o r e d o s , os v o ü e pa iM " s D ib a c o s , p a r i os f r u c ! ." s , e p a r a a m a o d i o -
c a q u e c u m a es. e c ie d ^ n i z , d e q u e se í a z f a r i n h a .
A costa d o B a z d e d i . i í u d a o u q u a t o r z e '- ' a p i t a n i a s q u e s ã o h o j e
to d a s d os P o r l j g u e ’ <v', O s i r . a u c e z e s t i v e r a m a l g u m a s a n l i g a m e n t e ,
e os í l o i i a n d e / e ' p c i d e r a m e m n o sso t e m p o o q u e aili h a v i a m c o n q u i s -
t a d i , , se . d o l o í a i m e i u c . ' vp id.sos n o a n n o d e 1 6 3 5 . A g u e r r a q u e e l -
le s c i i l a o t iilia m < o n / l u j l a e r r a n ã o lh e s j r e r m i t t i o a c u d i r a l l i c o m
s o e c o r r o , c a l e m dis^ o a s c o l n ia s p o r t u g u e z a s e s l i - v a m alli m e l h o r es­
t a b e l e c i d a s q u e as s u a s . ( o n i t u d o n o a n n o d e 1 6 6 2 os P o r t u g u e z e s
f i z e r a m c o m e lie s u m t r a t a d o p a r a cs r e s a r c i r , a f i m d e os n ã o ' t e r e m
p o r in rm ig o s ao m e s m o te m p o q u e te m a d e fe n d e r-s e dos H e s p a -
n h o e s . A s c id a d e s q u e ha n o B r a z il n ã o t e m p e la m a io r p a rte m a is
de c e m , o u c e n to e v in t e c a za s .
E n t r e as G a p i t a - n a s Taniaracá é a m a i s p e q u e n a e a m a i s a n t i g a .
Pernambuco é r e m i t a d a u m p .t r a i s o t e r r e a l p o r c a u s a d a ' b e l l e z a d e s e u
t e r r e n o . A Jh:hia de Todos os Santos t<em a c i d a d e d e S ã o S a l v a d o r ,
c a jiita l d o p a i z c r c N i d e a c a d o G o v e r n i d o r . F o i t o m a d a n o a n n o d e
\utti [»elos í l . i i a i i d ‘ z e s , ( [u e l i z e r a m aili t ã o g r a n d e s a c c o , q u e c a d a
u m d e S' u s r e ! í d e s t<‘ v e á ' U • p a r t e m a i s d e q u i n z é m i l e s c u d o s ,
m a s e>ta f o r t u .i a foi c a u s a d e s:ia r e t i r a d a , e a s c a r e t i r a d a d e u l o g a r
aos H e s p a n h o e ^ d e r e t o m a r a c i d a d e . O s P a d r e s J e s u í t a s p e r d e r a m
a l l i u m c r u c i í i m o e o r e , o i i i C ' t i m a v e l A « a p i t a n i a d o Rio de Janei­
ro, q u e os .< a !v a g e n s c h a u i a m Ganabará^ t e m u m m u i b o m p o r t o p a ­
r a s u r g i d o u r o d e n a v i o s ; o seu r i o n o s ío g a r e s q u e é n a v e g a v e l e n t r a
b e r a d o z * ie.^'oas p * h » t e r r a d o u t r o e te tu s e te a o i t o d e l a r g u r a . T e m
a l g u m a s i l l m s , n ’ u m a d a s (ju a e s n o a n n o d e 1 5 3 3 e m t e m p o «de H e n ­
r i q u e 1 1 Y i l l r - g e g n o i i f e z f a ií r i c a r u m f e r t e , a q u e c h a m o u \ c l i g n i .
T a m b é m se l i i i u a d a d o o n o m e d e F r a n ç a A n l - a r c t i c a a o p a i z c i r c u n ­
v i z i n h o . N o a n u o d e 1 6 5 S a c h o u -s e u n ia m in a d e p ra ta , n e s ta c a p i­
t a n i a . A (le São \ieente t e m m in a.s d e o u r o e p r a t a . P o d e m - s e v e r n a s
ca rta s os n o m e s dos o u tro s lo g a re s.
Observações geographícas

Os principaes povos do Brazil são o s Tupinarabas , os Margajas,


03 Tapuias, e outros, que diíferem em costumes , e em linguas, e
que se ordinário se distinguem pelos diversos modos de cabellos que
usam. 0 seu numero era maior antes da chegada dos Portuguezcs,
mas muitos Tnpinamhas por con'Crvar a su i liberdade atravessaram
grandes desertos, e foram tomar assento junto do rio Maranhão. Os
Taj)uias são mais diíliceis de amansar que os naturaes que liahitam
aldêas. Estas aldêas não tem mais de cinco ou seis casas, mas mui­
to compridas, e capazes de conter quinhentas ou seiscent is pessoas,
e algumas vezes mil e duzentas ou mil e quinh' ntas. A m iior par­
te dos selvagens do Brazil têm-se até agora tão bem defendido, que
não obstante as guerras que entre si fazem, tem todavia impedido
os europeos de fazer grandes progressos no interior de suas terras,
e até muitas vezes tem destruído estabelecimentos, e engenhos de
assucar que estes tinham fabricado.

Pag. 284.

Avistámos as ilhas dos Açores.

E stas ilhas são chamadas T e r c e i r a s tirando o nome daquella que


particularmeute é chamada T e r c e i r a . 0 grande numero de aves de
rapina chamadas A ç o r e s , que alli ha, lhes deu este nome; e igual­
mente tem 0 de F l a m e n g a ^ ., porque foram descobertas por um Fla­
mengo. Ghamam-se A ltan ' em comparação das Ganarias, talvez porque
são mais septemtrionaes. Os Portuguézes, que as senhoreara, tiram
dalli trigos, vinhos, pastel, couros, e outros generös. Sele são as
principaes, sem contar as do C o r n o e F l o r e s , onde muitos tem pos­
to 0 primeiro meridiano. A n g r a , cidade capital, e sede de ura bis­
po é na T e r c e i r a . As outras ilhas são, a G r a c i o s a , S ã o J o r g e , F a -
y a l, P ic o , S ã o M ig u e l, e S a n ta A Ja ria .

Pag. ibid.

Avistámos a terra de Portugal,


D e s c r ip r ã o d e P o r tu g a l.

1 ortugal é um reino á borda do oceano na parte occidental de Hes-


panha onde aníigamente era a Lusitania. Tem de existência mais de qui­
nhentos e vinte aanos; e D. Affonso YI, que boje alli reina, é o seu
VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

22." rei, contando os très Piiilippes reis de Hespanha. Funda o seu di­
reito na acclamaçào de sen pai D. João IV, e no cazamenio de seu
hisavô D. João Duque de Bragança com D. Catharina, filha de D. Du­
arte, infante de Portugal, o qual morreu no anno de 1540, e era ir­
mão de D. Maria, mulher de Alexandre, dnque de Parma.
Os reis de França tem algum direito sobre este reino por via de
Roberto de Bolonha, íilbo de Mathilde de Bolonha, mulher de Afion-
so 111 , que a re[)udiou depois de ser rei. < atharina de. Medieis sus­
citou este direito, mas foi-lhe respondido que tal direito estava ob­
soleto.
O nome de P o r t u g a l é provavelmente derivado do de P o r t o e de C a ­
l e pequena povoação próxima do Porto. O comprimento do reino é
de quasi cento e Vinte legoas, e na largura tem vinte e cinco ou
trinta, c em partes cincoenta. A sua situação, e a experiencia de
seus habitantes nas cousas da navegação dt ram logar a seus prince-
pes de se fazerem obedecer nas quatro partes do mundo, onde con­
tam por vassalios muitos reis , com a commodidade de fazer vir á
inropa as mais raras e as mais preciosas mercadorias do Oriente.
As suas conquistas chegaram a extender-se a mais de cinco mil le­
goas de costa, e todos os logares por elles occupados eram á beira
mar, porí|ue o seu intento foi sempre assenhorear-se só de commer-
cio.’ íla alguns annos a esta parte que não tem podido tirar delle
0, proveito costumado, por causa das guerras, e dos grossos presidi-
os que tem sido obrigados a''sustentar nas conquistas, o que os mo-
veo a dar uma parle délias aos Inglezes f á )i
As províncias de Portugal téin cada uma suas commodidades par­
ticulares. Brqduzem entre outras cotisas limões, e excellentes laranjas.
Tem algumas minas, porque ós Gregos e Romanos vinham buscara
Portugal 0 ouro, que os Portuguezés vão buscar ás índias. São tão
povoadas, morménte a bèira-mar , óue .se contara no reino mais de
seiscentas cidades ^e villas
..._ rprivilegiadas,- e
____o____ 7 ® quatro mil paro-
çliias. Só é alli recebida a religião catholioa romana; e os da raça
judaica foram obrigados a hagtizar^ se.
Ha tres arcebispados; Lisboa , Braga, e Evora-; e dez bispados.
Os arcebispad-s de Lisboa e Evora tem hera cada um duzentas
mil libras de renda. Ha Inrmi^ições em Lisboa, Coimbra, e Evora,
e Relações ( i a r l e m e n s ) em Lisboa e Porto. Vinte e sete povoa­
ções tem districtos, a que chamam Comarcas, e Almoxarifados.
A Ordem de Christo, cuja caza capitular é em Thomar, é a mais
considerável de todas. Os reis são os seus grão mestres, e desta Ordem
( a ) 0 auclor sabia certamente que as conquistas cedidas por Portugal aos In-
glezes eram somente T a n g e r em Africa, e a Ilh a de J io m b a im na India; mas
era tfio palpavel a nacionaes e estrangeiros que estas cessões e principalmente
a legunda haviam de trazer apoz si a perda de outras muiUs conquistas, que
e auctor insensivelmente se exprime como se fora cedida uma grande parte
das mesmas conquistas.
OBSEUVAÇü IÍS GEOailAPlIlCAS 349

v : , r a , ' , ” f t s a s g R r i J a .... ..

vez u,n „.ilhào de ou™ só V iés ,ic um ? a

0 refugo dos das de ïmuueal

p s f t :;; í '1“
t r ir lT a í;* ‘odos as a-udafc'

D on n é ,Vf)i/io)'iv«f’os*'*L'o*’/ry”'^ « > governos geraes. E n tre


fja r v c ^ ’ JJeu a , È s le m a d iir a , A le m ! e J o , c A l-
A. (Ic Jh tX v T C I^ O X ír O € ] \ Il]l^ iO o liini'S íloÎi/*ÎA'O /\ #'' 1
uo .csi,aeo de dezoito legoas de com^ mernó '“c’l z e íi"';

Delicias c medulla das llcsiianlias. [ > o m , cida Ic do mial o ,i


gos, íaz grande coim iierdo. fííYMa ó famosa m -I i e„i..i. ? - ‘ '
los Conedios. e nela iiroleneão^^ seu d e l i's ‘ Ï u
mao' düs ílcspanlias. ^ lumu.ag-iLo 'pra'
la -
I tls A J o n t e s Icni niinas. lía nslla a rirlví 1a do

íãtal de um ducado dc qi-areiita iiiH á i i L o. Io


IHchende bom cincooiua^ vdlla c'o ,S s ?en-a «i tzem ''do “
que deliragança très vezes Marquez se c v e z e s P t l c V •?“ '

x r d o " d S “S d t K d f S l l t “ ■ l>'>MeÍ dc'baD


dade ^rineir?oí'''‘('' ‘^"í " “'P“ . ‘'''uelas, c castanhas. A sua ci-

{ a ) 0 auclor confuade um pouco i e r c m c u í c o qukío com cincoror cento.


88
350 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

no, e uma das mai> bailas, mais ricas, maiores, e melhor povoadas
da Europa Tm i ;iais de trinta mil cazas, e um admiravel porto,
com a c^mmodt }adí‘ do fluxo e refluxo da maré. Faz particularmen­
te 0 trafico ua> índias Orieutaes.
A povoação de Belcm, que lhe fica próxim a, é o mausoleo, ou
logar df s-^pultuiM de muito.» reis de Portugal. Santarém tem tanta
copia de oliv.o's nos seus arredores, que os hahitaute.s se gabam de
poder fazer um rio de azeite do tamanho do Tejo. Setuhal é bem
assente, bem <diiic ida , e mui mercanul , por causa do seu porto,
que é 0 melhor de lodo o reino, e tem de comprimento trinta mi­
lhas, e de larg.ra tres. As suas salinas, e p-scaria , pelo (jue di­
zem os Porluguezes, dão maior rendimento ao seu rei, do que to­
do 0 Aragcão a Ei »'*• i de Ilespai.ha.
O Alemtf'jo e reputado o c-dieiro de Portugal , por causa dos
seus trigos. A sua cidade principal, Evora, pretende o primeiro lo­
gar alruixo de dshoa. No anno de 1603 os Ponuguezes alcança­
ram elli uma celebre victoria. Eivas é conhecida por seus excel-
lentes azeite.s, e pelos cercos que tem sustenta io com feliz exito
contra os asiel.i.mos. Ourique c o logar da famo'a batalha, que no
anuo de 1139 ueu a coroa ao primeiro rei de Portugal. Era Âftbn-
so, que venceo cinco reis mouros, e que em memória disso poz no
seu es mdo , (pie era de pr ua , cinco es- udetes de azul em forma
de cruz. cadaescud 'te co u cinco dmheiros de prata postos em as­
pa, <)' qiiaes representam os trinta dinhei-os, por que Nosso Senhor
foi >enlido, contan(io-.'e duas vezes o do meio.
O Alqarde, ainda (]ue pequeno na extensão, tem o titulo de reino.
Foi reunido á coroa pelo cazammto <ie Alfonso 111 com Beatriz de
Castclla ( a ; . Produz figos, azeitonas, amêndoas, e vinhos mui estima­
dos. O propio nome de Algarve em lingua mourisca quer dizem cam­
po fértil.
Pag. 286.
Tomámos a derrota das ilhas de Bayonna em Galliza etc*
A Galliza é uma das grandes provincias que a Hespanha tem á borda
de oceano, na qual ha muitos bons portos; mais para hem a conhe­
cer parece de algum modo necessário tratar em geral da Ilespauha,
cuja parte é Galliza.
Dcscripção de Hespanha.

A Hespanha é uma grande peninsula, do comprimento de duzentas


legoas, e outras tantas de largura, entre o 9.® e o 24.® gráo de longi­
I. ' I

tude, e enlre 35." «râos e meio e 43.® e meio de latitude septem-


trional. Esta piminsula jaz ao longo de mar oceano e do mar me­

t a ) a annexação do A lg a rve foi por conquista, c nâo por doto de cuzamcnlo


cemo alguns auctores tom dito.
OBSERVAÇÕES GEOGRAPIIICAS 35Í
diteraneo. Para o oriente avizinha com a França por espaço de cento
e vinte Icgoas, ficando entre meio os Montes Pyrenéos. Seria de fi­
gura quadrada, se lhe tirassem a Catalunha. Alem do nome de lies-
panka, teve também os ác Iberia^ Hesperia, e de Mus-Arabia. Mui­
tas causas a iazem pouco habitada ; a sua esterilidade, as suas
montanhas; a pouco fecimdidade de suasmulheres; o exterminiodos Mou­
ros, que cm numéro de mais de oitocentos mil foram obrigados a
sair della no anno do lolO, e finalmentc o grande numero de pesso­
as que se envia ás colonias, e ás guerras externas. Dabi vem que
nunca se chegou a ver mais de scie mil' hespanhoes iiaturaes cm
exercito aigum.
Peina alli mais calor que frio; e as provincias sitas ao oriente e
meio-dia Scào melhores que as outras. As montanhas sem arvores, on­
de ha roci edos continuados, são chamadas na liiigoa do paiz Serras.
Faltam alli cereaes, mas colhem-se os mais fortes vinhos, os mais
deliciosos fruetos, eos mais doces azeites da Europa. O ouro e a prata
que alli se leva da America é bastante para fazer acudir a íiespa-
nha todas as outras commodidades da vida. No anuo de ltil8 foi
verificado que desde o primeiro descobrimento deste Novo Mundo
por Colombo se havia tirado delle mais de mil e quinhetos e trinta
c seis milhões de ouro, e no anno de 1.Gio achou-se que os reis dc Iles-
panha haviam tido á sua parte quarenta milhões de ouro só cm barras
de prata e ouro, afora os outros direitos recebidos de diversas mer­
cadorias. Estas sommas são immensas, mas não tem talvez enrique­
cido a Hespanha na mesma proporção que as colouias enviadas pa­
ra colher aquellas riquezas a tem enfraquecido. Por outra parte a ne­
cessidade de adquirir mercadorias estrangeiras esgota a melhor parle
destes thesouros. Isto fez dizer ao rei flcnrique o Grande que as
pistolas dos Hespanhoes indicavam entre elles as suas riquezas, mas
que sendo levadas a outra parte manifestavam a sua pobreza. Ha em
Hespanha minas dc cobre, de azougue, de chnnnho, de ferro, e de
sal: as de ouro e prata tem sido poupadas desd-que começou a haver
a commodidadc das da America. Reputahi-se geralmentè os cavallos
desta região, e os de Andalusia por superiores a tolos os mais; rnas
nem por isso deixa dc se viajar alli em mulas , e em jumentos
por causa da asperesa das montanhas.
Não ha princepe no mundo que tenha tão grandes Estados como
0 rei de llespinha, dc sorte que com justa razão se pode dizer o
maior senhor de terras do univers). E ’ verdade que estes Estados ii
se acham dispersos na Europa, America, Africa, e Asia. Alguns de
seus predecessores se tem gloria io de que o sol nunca se põe nas
suas terras, e que a extensão de seus dominios não se podia medir
senão pelo curso d ;ste astro. Em algumas cartas que os reis da Per­
sia lhes escreveram no século passado, dizem = lo rei que tem o sol
por chapeo=^. Entre outros litulos toma o rei dc Hespanha pirticu-
larmentc o de Oatholico desde Fernando V, c o de rei das Hespa-
ulias, mas este ultimo só ha pouco tempo. Seriam necessárias mui-
VIAGEM DE FRANCISCO PVRARf)

las jiOginas para os conter todos. Kis os de qiie usa o rei Philippe IV
iia caita de poderes que deu no anno dc 1Ò5& a Dorn Luis dc Ha­
ro para tratar da jiaz— « J)om Philippe por graça de Dcos Ilei de
« ( asieüa, de l.cao, d’ Aragão, dus Duas Sicilias, de Jerusalem, dc
« Portugal, de Na\aira, de tJranada, dc Toledo, dc Valencia, dc Gal-
c liza, de ]\lalhoica, de Scvilha, de Sardenha, de ( ordova, de C or-
« bcga, de Miirciti, de .lacn , dos Algarves, d’ Algcziras, de Gihrai-
t.s !ar, das ilhas » ana'iias, das lUdias Orienlaes e Occidentaes, das
(( HI -as e Terra iirrne do Mar Oceano , Archidtique d’ Austria , Duque
« de Burton ha, de Pra haute, e dc Álilão, Conde de llapsbourg, de
« Flandres, dc Tirol, e de i arcelona, Senhor de Bisca\a, e de Ma-
'« linas, etc. — »
A jH'iucijial Ordcin de Cavallaria cm llcspanha é a do Tosao; as
oulras são asdeSão Thiago, dc Calatrava, d’ Alcantara, e de Mon-
tesa. Os Pels dc Hespanha (cm tornado para si os grão mestrados
destas Ordens sob o nome de Admini.^tradores ],'crpeluos. ila alem
disso mais de oilcrila Grandes dc Despanha, que são pouco mais ou
menos como os Duques e Pares em iTanca; mas esta dignidade, corno
anda aiincxa a senhoiio de terras , passa a femeas. O rei dc Hes-
panha tem Ires sortes de guardas, AValoiis, Alemães, e Borgonhezes.
Os Ilcspanhoes reimlain as artes p)r causa deshonrosa, e por isso
a maior paite dos seus artifices são Francezes. Prezam mais aguer­
1 /■ ’i;
«L, *ÎTiV'. ra , na qual fazem mui bom serviço , [irincipolmenle na infaiUeria.
Sempre tem conservado a reputação de ser lieis a seus prmcepcs,
e (le não revelar voluntariamente o seu segredo. Marcham lentameii-
te a qiial(]uer conquista, mas de ordinário guardam hem o que gaii-
Bam. São tardios em deterininar-sc, mas corajosos cm proseguir na
sua determinação, não lhes metendo medo as diíliculdadcs que re-
Vrescem. São muito previstos, c iiiiiica jrerdem nem a paciência, nem
íi esperança, posto <jue a sua lentidão lhes faça muitas vezes per­
der hoas oceasiões. Alguns d’ entre elles tem a vaidade de dizer que
0 sen paiz prove o mundo dc gencracs para os exercitos; que Decs
lãllava a Moisés no Monte Siiiav em lingua castelhana; e que o Se­
nhor do universo deve nascer liespanhol, Não se adiam livros hes-
panhoes mais antigos que os do amio de 1200; c antes disso as leis
eram alli cscriplas em latim.
A llespanlia foi sugeila a estrangeiros diirauíc longo tempo. Os
( ’citas, os lihodios, os Phenicios, os Carthagiuezes, os Bomaiios, os
Yandalos, os Suevos, os Godos, c os Mouros, dominaram ou sobre
toda cila, ou sobre algema das suas partes. A sua primeira divisão
foi em duas partes; uma daquem e outra dalem do Ebro, que então
limitava os domiaios de Iloma c de Carthago ; porque ao depois o
que os Bomanos chamaram llesçanha ulterior somente comprehendia
a 1'etica c a Ludtania. N' uma e n’ outra os Bomanos tinbam esta-
lulecido quatorze ( onvcnlos jurídicos, ou districtos judiciários. Na
decaiidencm da dominação dos Mouros formaram-se alli cinco leinos;
Leão com la sld ia , Aragão, N a u irra, Portugal, e Granada. Depois
OBSERVAÇÕES GEOGRAPIIICÀS 353
«íehaiYo do dominio dos reis de Caslefla
Porliigal e Aragao; e e pnncipalmente por estes très títulos que o
rei de líesiiaiiha tem possuído todos os seus grandes Esiados nos
quaes lia hoje oito vice-remados. Desde Pelajiio a Gasiella lem re>
tai( ü dez vezes em femea. No anno de 1640 Portugal acclamou rei
ao Duque de Jíraganca. lei
Os priíicipaes rios de Despanha são, o Douro, mui piscoso o Tein
afamaâo p..r suas are,as de ouro, o Guadhma que s l d ,rsu m ir-Íe
por debaivo do chao, o Guadalquivir o mais profundo, e o Ebro
famoso por seu nome. Iodos tem suas origens emCasteila mas não
sao tao navegaveis como os de França, O Gnadiana deu motivo aos
Despan ioes paia dizerem oue elles tem na sua terra a mais rica
ponte do mundo, porque sobre ella pascem de ordinário mais úe á ã
mil carneiros, e pode passar um grosso exercito em batalha. Pare­
ce que os antigos pozeram mui advertidamente a este rio o nome
de Anas, porque entra e sáe da terra assim como um pato entra e
sae da agua. A.guns modernos dizem que são as montanhas que
occultam este no; outros asseveram que são as sangrias, que se lh e
faz para reira Gos campos, que são mui pouco ferteis, masé certo que
isto acontece junto de suas origens, e não junto a Merida, como o in­
dicam algumas cartas antigas. , v
Seja como Jor, é isto uma das 1res maravilhas de Hespanha. e as
outras duas sao, uma cidavie cingida de fogo cora muros de seixos,
que G Madrid; e uma ponte sobre a qual corre agua, queé o aqiie-
duclo de Segovia. Algumas cidades deste Eqado tem certos apoel-
hdos por excellencia, como, Seyilha a mercante, Granada a grande
Valença Barcelona » riça , Sanigoça a contente, Yaltiadolid
a gentil. Toledo a anti-,'a, e Madrid areai.
íla ena Hespanha oito arcebispidos, e quarenta e oito bispados.
Os arcebispados sao, Toledo, Burgos, Compostella, Seviiha, Gra-
Y^ícncia, Saragoça, e Tarragona. O rei Becaredo I introduzio alli
a religião catholica romana, a qual é hoje a unica recebida; e ha aiU
a Inquisição contra as outras crenças. Todavia ha em Toledo algumas
igrejas, onde se segue o rito mus-arabico, queé o que suardavam
os chnstaos, que viviam entre os Arabes.
Muitos portos de mar são de grande consideração, como, a Passa­
gem de Santo Andre, Corunha, Cadiz, Carthagêua, Alicante etc.
Coutam-se era Hespanha quinze grandes partes, que quasi iodas ii
tiverain titulo de remo no tempo dos Mouros. Destas são cin-'o da
banda do oceano a s a b e r , Asturias, Galliza, Portugal, An­
daluzia: cinco da banda do mar mediterrâneo, a saber, Granada
c
luurcia, \aloncia, Catalunha, e as ilhas úc Malhorca Minorca' e ou—
tras cinco no interior do paiz, que são Aragão, Navarra, as duas
Castellas, e Leão.
A Biscaia tem malas que lhe dão meios de fabricar mais navios
que todas as outras provincias de Hespauha. Tem também tão gran­
de quantidade de minas, e de forjas de feno, que é ás vezes
89
354 VIAGEM .DE FRANCISCO PYRARD

cliám^da a Defensão de Caslella. E ’ separa ia da França pela peque­


no no Bidasso.i, que forma uma ilhelac'le!)re em noS'O tempo pela
])az que ahi se concliiio no anno de 1659 tnlre as coroas de França
e Hespanha. Os Hiscamho's, q;ie s<ão o< a n tig v)S . antabros, se g l o ­
riam de nunca haverem sido subjugados. A t >rra assim como a do
reino de NaVarraé bem cultivada, porque não lia alli nem talha { ca­
pitação ), dizimo, nem direitos de entrada.
Aòiunas criain cavallos, que são estimados por sua força. Ser-
yio de abrigo aos reis Gudos , e é ainda o titiPo do Princepe de
Hespanha, cujos irmãos segundos são chamados Infantes, e isto des­
de 0 reinado de D. João I.
A Giilliza e mais po[)u!osa que fértil.
A Andaluzia é tão bella e tão abundante de trigo , vinho, e a-
zeite, que passa por ser o ceüeiro e a adega do reino.
O reino de Granada era muito mais rico e mais povoado no tem­
po dos seus últimos reis Mouros, que o perderam no anuo de 1491;
e era também mais fértil , porque os Mouros tinham mil invenções
para regar as terras fazendo nelias regueiros e valias, pelas qúaes
faziam \ir as aguas dos grandes reservatórios que formavam nas mon­
tanhas pr ximas da Serra Nevada. O seu assento, e a disposição de
seus ,'ogares concorda com aquella que Julio Cesar descreve nos seus
commeniarios.
O reino de Murcia é chamado o Jardim de Hespanha, por causa
de seus excellentes fructos.
O reino de Valencia é a mais agradavel região de toda a Hespanha.
A Catalunha pro luz vinho, azeite, cereaes. e fructos era quanti­
dade. A visinhança dos Pyreneos lhe fornece mármore mui fino, jas­
pe, e lapis-lazuli. Os que fazem de Hespanha a cabeça dos Estados
do rei catholico dizem que a Catalunha é uma de suas orelhas, e
Portugal a outra. Contam-se nelia dez cidades, dezasete Viguerias
( julgados ) , oil grandes haliados , e mais de cera cidades muradas,
que tem sido muitas vezes tomadas e retomadas durante as ultimas guerras.
As ilhas de Malhorca e Minorca são as antigas Baleares.
O Aragão é um paiz cheio de montanhas.
A Navarra consiste em seis meirinbados ou governos , dos quaes
0 que e a(|ucm dos Pyreneos ticou pertencendo á França. Basta ver­
se a arvore de geração para se conhecerem os direitos de Sua Ma-
gcstade t hristianissima sobre este reino de Navarra, o qual foi u-
surpado a seus predecessores no anno de 1512 ponco mais ou me­
nos sem outro fundamento mais do que a conveniência e a força.
A Castella tira o seu nome de ura Gastello , cuja figura se vê no
primeiro quartel das armas do rei de Hespanha.
O reino de Leão é oprimeiro que os Christaõs fundaram depois 8a in-
va-âo dos Mouros.

FIM DAS OBSERVACOES GEOGRAPHICAS.


T

3f ) j
TRATADO E DESGRIPÇAO
E>OS ANIMAES, ARVORES, E FRUCTOS
«
DAS INDÍAS ORJENTAES,

OBSERVADOS PGR

FRANCISCO PYRARI).

Amda que muitos tenham escripto amplamenle cia natureza, forma


e apparencia (le grande numéro de aniiiiaes a nós desconhecidos e
das arvores e fructos das In-iias Orientaes; todavia tendo-os eu vis­
to, conhecido, e meneado tão parlicularmente , como de feito o fiz
durante tão longo tempo, e até vivido delles ; julguei ser obriíiacão
minha por era escnptura o que uma tão louíía experiencia nie en­
sinou, certo de que talvez mnguem ate agora lhes tenha tão narti-
culanueiite observado a natureza.

CAPITULO !.•

Dos Elephantes e dos Tigres.

0 Elephante é o maior de todos os animaes, e que tem mais ins


tin^lo e conhecimento; deserte que se pode dizer que tem al-um
uso de razão , alera de ser mfinitamente proveitosa e servicaf ao
homem. Se alguém quer montar em cima delle, é este animal tão
submisso obeiiente, e bem ensinado a favorecer a coramodidid“- do
homem, segundo a qualidade da pessoa que delle se quer servir
que agacha P.o-se ellc mesmo dá ajuda com a tromba a quem aue-
montar nelie. *
Sobre tudo folsa este animal de ser louvado e amimulo e nor
este mem se humilha; sendo todavia tão grande a sua forca que qua-
si se nao pode conoecer seino p-la exiieriencia. Vi um levantar ú
com os dLntes duas peç^.s de artilheria de bronze, ligadas e amar­
radas entre si com cordas, cada uma das quaes pozava mil arraieis-
e nao so as levautou, mas andou com ellas por espa-o de quinhen­
tos passos. T mbem vi um elephante puxar navios’ e galeras para
terra, ou pol Os a thictnar no mar. E uma cousa admiravel a natu­
reza destes elephantes, que são tão obedientes que faze n tudo quiu-
to se lhes manda, coin tanto (jue sejam tratados com mimo.
Em toda a regiã() do Aíalabar. e mesmo no reino do liealcão ou
Uecan, nolei que so osNayres domam e ensinam este aairnil; e vi

li
356 VUGEM M FRANCISCO PYRARR

em Calecut rapazinhos Nayres estar sempre junto dos elephantes pe­


quenos, amimal-os, leval-os de uma banda para a outra, e de al^ ra
modo cosiumarem-se com eües; e só os Nayres os governam, lhes
dão de comer, e os conduzem pela cidade," ou por qualquer outra
parte onde é mister; porque ninguém mais o podería conseguir, nem
ousaria chegar-se a estes animaes. Quando um clephante é conduzi­
do pelo seu Nayre, não ha uada tão manso e tão tralavel; faz tudo
0 que lhe mandam; recebe bem todas as pessoas que lhe mostram; rece­
be toda a sorte de pessoas para o montar, estende a tronoba, da qual se
serve como de mão, e os ajuda a montar; e se é uma criança, levanla-a
com a mesma tromba, ea põe sobre si. Se porem não está alli o
Nayre, não ha ninguém tão ousado que se lhe chegue, porque o ele-
phánte mataria a quem o tentasse.
Tem sobre o nariz uma grande tromba mui comprida, que é como
uma manga de couro, e a menêa para um e outro lado, e lhe serve de
mão para levar o comer á bocca, ou para fazer qualquer outra cou-
za e alem disso é tão rija que toma com ella um homem e
0 levanta a tal altura, que ao cair se faz em pedaços; e assim sãó
t. justiçados os malfeitores em Calicut. E disseram-me que havia um
em Goa ha pouco tempo, que matou muitas pessoas desta maneira
quando ia pela cidade, ainda tendo conductor, e com eíTeito vi mui­
tos dos quaes ninguém se podia approximar apezar de terem o seu
Navre, por serem de natureza mais bravia.
Quando os levam á guerra, prende-se-lhe na tromba uma espada,
com a qual cortam tudo quanto encontram. Vi muitos a quem ti­
nham feito isto por divertimento, e meneavam a espada para um e
outro lado bem furiosamenle. Estes animaes não comem carne, nem
ainda quando são do mato, mas vivera somente de ramos e folhas de
arvores que quebram com a tromba, e mastigara páos muito grossos.
Os que são domésticos, são mimosos no seu mantimento, e é mister dar-
lhe arroz bem cosido e temperado com manteiga e as -ucar, que se lhes
offerece em bollas grossas, e consomem bem cem libras de arroz
por dia; e alem disso é preciso dar-lhe folhas de arvores, principal­
mente de figueira brava, para refrescarem. E ’ por esta razão que
me persuado que só os reisos possuem, por custarem tanto a manter; e a
magnificência e poder dos reis daiiuellas terras mostra-se em susten­
tar muitos; porque este animal lhes é mui util mesmo na guerra.
V i muitos em caza de rei de Calicut. O rei de Bengala tem dez
mil, eo Grão Mogor, por outro nome chamado A bar, que quer dizer
0 grande rei, sustenta até a numero de tres mil (a)^ segundo eu
soube de muitos índios e Árabes que estiveram em sua corte.
E ’ alem disso cousa muito notável que este auiraai não cobre nun­
ca a femea, se é visto por alguém.
Ha quem diga que não tem juntas nas pernas, e que se não podem
■ ■■ I B ll " — ^ ................... .. I I ■ 11^1 ■ I I II I I I I 1^ — —

( a ) Esie numero està eecripto no original francês em algarifimo —3000-


ma* parect-aoi pelo Beatido que deferia «er trinta mil —3Ó00QC
TRATADO DOS AXlMAES, AUYORES ClC. 357
íleilar, mas é falso; porque se dobram e sc deitam como querem.
Naüa mais direi , porque muitos auctores tem escrito assaz destes
auimaes.
No (jue toca ao lihinoceronte, como nunca vi nenhum, e só dellcs
ouvi failar, nada também direi.
Em quanto aos Tigres ha grande quantidade deiles na Índia, e
são alli mais communs do que cá os Lobos. E ’ um animal mui furi­
oso, niuí eruel, que não foge dos homens, senão estam em grande nu­
mero, antes pelo contrario busca-O' e aceomete-os para os devorar.
De sorte (]ue toda a gente traz armas para se defender deiles, e
apeziir disso acham-se todos os dias muitos homens devorados por el­
les. Os reis aprazem se muito em ir á c a .a destes tigres, para os des-
baslar, e livrar deiles o pobre povo ; accrescendo a isto quo assim
^nhecem e cx[)erimenlam a aíTouteza e hardidez da sua nobreza. Os
Nayres não fazem outra cousa mais do. que ir a esta caça, e a ma­
ior parte os combatem com espada e rodella (o que não é sem risco, por
que 0 animal é ousado e furioso ) e depois de os matarem, levam-nos
ante o rei em grande honra e triumpho. Vi muitos Nayres que as­
sim levavam os tigres mortos, e não poucos d’ entre elfes iam bem
ieridos. Estes thres são da altura de um rafeiro, mais compridos,
com a cabeça grossa, semelhante á de galo. A pelle é mui bonita;
toda molhada de branco, preto, e ruivo.

CAPITULO II .

Dos Crocodilos e Tartarugas.

H a grande quantidade de Crocodilos nõs rios da ilha de São Lou-


renço, da costa de Bengala, e das terras do Malabar. Vivem na agua
doce, são mui grandes, cobertos de escamas, e por isso difliceisde
matar; mas tem o ventre brando, e facil de peneirar. Exbalam chei­
ro de almiscar; o que experimentámos nos que matámos na illia de
São Lourenço, porque" logo que eram feridos todo o ar ficava embal­
samado como de almiscar, e até a costa lançava o mesmo cheiro.
Quem os tem comido diz (|uc a sua carne é mui saborosa e boa.
Eu nunca a provei. A guela é guarnecida de dentes mui agudos, e
a
os debaixo passam e atrevessam a maxíÜa superior, que é toda cheia
de buracos nos logares onde passam estes dentes, e é esta a que
se move.
As Tartarugas andam á tona d’ agua para se aquecerem ao sol,
e ha-as tão grandes que só a concha bastaria para cobrir uma chou­
pana ou caza pobre, e cabem-lhe em cima dez pessoas e mais assen­
tadas. Ha grande quatidade delias nas ilhas de Maldiva, e alli .«c vém
muitas illieia.s quO não são iiabitadas de outros animaes senão des-
90
VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

Ris grandes Tartarugas, que as cobrem tolalmeníe. Quando nós che­


gámos ás ilhas de Maldiva, apanhámos uma que tinha quinhentos ou
seiscentos ovos do tamanho de gemas de ovos de g ilin h i; a qual co­
zemos em agua do mar, e a comemos, e disso vivemos tres ou quatro (iias
quarenta pessoas que nós éramos, por não termos outra coasa alguma
que comer. Ã carne é mui gorda e saborosa como a de vitella; mas
como a comíamos sem pão, nem outro tempero, muitos dos nossos caí­
ram doentes, e eu em particular estive muito mal, vomitando sem
cessar até lançar sangue. Â gente daquellas ilhas serve-se das con­
chas para fazer rodellas, e diversos inoveis e trastes.
Nas ilhas de Maldiva lia outra especie mais pequena , que todavia
tem tres ou quatro pés de diâmetro. A concha é escura, atirando
parte para negra e parte para vermelha, mui lisa, iirilhante, e tão
admiravelmente disposta que é cousa extremamenle bella vêl-a de­
pois de polida. Essa é a razão porque ella é tão procurada de todos
os índios, reis, grandes senhores, e pessoas ricas , principalraente
de Cambava e Surrate, que delia fazem cofres e caixinhas guarne­
cidas de ouro e prata, bracelletes, e outros ornamentos, e moveis.
Esta especie não se cria senão nas ilhas de Maldiva e Pbilippinas,
ou Manilhas, e é uma das boas mercadorias que dalli se extrahe.
E ' cousa admiravel a naluresa e duração da vida deste ani­
mal; porque aquelles insulares quando as apanham chegam-nas ao
fogo, e depois tiram-lhe a concha; e sendo assim tirada e separada
a concha do corpo do animal, tornam a lançar a tartaruga no mar
ainda viva, e lá se lhe renova e refaz outra concha, e é defeso ma-
tal-as. Alem disso aquella gente não come nunca especie alguma de
tartaruga, porque dizem elles que é um animal, que tem rauila con­
formidade e semelhança com o homem.

CAPITULO I I I .

Dos Peixes do mar indico , e especialmente das ilhas de


Maldiva.

0 mar que está debaixo da zona torida tem peixes estranhos, e


mui differentes dos dos nossos mares. Mas entre outros é cousa mara­
vilhosa certos peixes que comem e devoram os homens . Nas
ilhas de Maldiva ha muitos desta qualidade, porque como o mar é
baixo , aggregam-sealli em grande quantidade. Este peixe é n ui gran­
de de nove a dez pés de comprimento, grossura á proporção, que ex­
cede 0 braçado de um homem; não tem escamas, mas é coberto de
uma especie de couro de côr denegerida, branco na barriga, mas toda­
via sem a dureza e espessura do da baleia. A cabeça é rodonda,
alta, e mui larga, guarnecida de quantidade de grandes dentes ogu-
TBATADO DOS ANÍMAES, ARVOÍÜÍS eíC 3r>9
dos. Os habitantes das ilhas deM;ildiva são mui incommodados deste
animal, porque os vem devorar quando anIam pescando, ou se ba­
nham; e 0 menos que faz he decepar lhes os braçosou as pernas. Yê-
se alü grande numero de pes'0as, de que umas são estropeadas (f(*
uma perna, outras de um braço, outras de uma mão, outras feriilas
em outra parte do corpo pela morde;!ura de taes peixes. Vi muita
gente naqueílas ilhas de MaMiva assim maltratada; e vi até apanhar
alguns destes peixes, e achar-se-lhes no ventre membros inteiros de
homens. Estes desastres acontecem todos os d ias, porque de ordi­
nário aquella gente hanha se o lava-se no mar. Uma vez estive quasi
a ser devorado por estes peixes ao passar de uma para outra ilha
por um trajecto bem peíjueno. Os naturaes me aíTinnivam qne es­
tes peixes andando em bandos tem aceometido muitas vezes baleis,
e barquinhos de pescadores, virado os barcos, e devorado os homens.
Isto não aconteceo em quanto eu alii estive, mas todavia todos mo
asseveraram como cousa certa. Dizem que Deos lhes nivia lae<
animaes para os punir de seus peceados; e chamam a estes auimaes
Paimones.
11a tarahem outros peixes mais pequenos, chamados pelos Portii-
guezs Tubarões, os quaes tem a caneca larga c redonda, a guela
niui grande, e muitas ordens de dentes; são cobertos de couro sem
escama como os precedentes, e tamhein comem carne humana, e
devoram ou estropiam os qne nadam, ou se banham no mar. Acham-
se em todos aquelles mares, c acompanham ás vezes os navios á
espera de presa, e até comem as camizas ou lençóes que se botam
de molho no mar. E ’ cousa admiravel haver sempre ao redor delles
outros pequenos peixes, que tem a pclleneitra, easpera na barriga, e por
este logar mais áspero se agarram ao tubarão, e elle assim os não
pode devorar.
As ilhas.de Maldiva são mais cheias de peixes de diversas sortes do
que outro algum logar do mundo. Os habitantes go.-lam muito de pei­
xe, e não comem senão os melhores e mais delicados, despresando os
outros. Ila alli um peixe pequeno, do tamanho de ura pé pouco mais
ou menos, de forma quadrada, coberto dc humu concha inlcriça , tão
dura que é mister machado para a quebrar, tendo só a ponta do ra­
bo movei para lhe servir de leme: ea concha é de cor amareilada ,
.«:aipicada de esirelias pretas; pelo que alguns lhe chamam peixe es-
írellado. E ’ o mais saboroso que ser pode, tem a carne branca, rija,
sem espinha alguma; e dir-se-ha que é carne de galinha, de boa queé.
Também ha lá liayas iníinitameiite grandes, de seis e sete pés
de largura, mas os naturaes não fazem estimação alguma dellas, nem
as comem nunca, por terern este peixe na conta de ruim; ainda que
eu, tendo-o comido, o achei tão bom couio os sens semelhaiUes de
cá. Alas elles, como já disse, são lão gulosos, e delicados, c tem u-
nia quantidade tão admiravel de peixes, (pie se não dignam de co­
mer a maior parte dos que são semelhantes aos nossos, e que cá
-se comem, dizendo que os não acham suíTicientemonte bons. Somen-
360 Y1AGK.M DE FRANCISCO PYRARD

tii esfüiam estas grandes Rayas, e da pelle sccca e bem extendida


Îazeni tambores, e não se servem de outros.
lia alli (juantidadc de peixes que tem concha dura; Carangue­
jos de todas as especics, mui grandes, de que vi muilos, cuja con­
cha brilhava com diversas cores mui agradaveis á vista. Destes ca­
ranguejos ha uma especic, como aquelia a que os marinheiros cha­
mam Crabe , que abunda nas ilhas de Maldiva , mas de estranha
grandeza, que andam no mar e em terra, onde fazem grandes ca­
vernas para se recolher. Yi alguns destes, cujas garras eram mais
grossas que os dous punhos. Ila ilhas que são todas cheias delles, e
dão moléstia e incommodo aos habitantes , porque mui frequente­
mente os ferem agarrando-se-lhe aos pés, e por esta razão em mui­
tas ilhas ninguém ousará andar de noute, que é quando todos an­
dam por fora, e enchem tudo; e a mim iiie aconteceo ser assim fe­
rido delles andando de noute. .
Estes povos recebem lambem incommodo de outra sorte de pei­
xe grande todo coberto de pontas duras como espinhas , do cora-
])rimenlo de quatro dedos, sem haver logar algum do peixe ondeas
não haja. Quando vão á pesca acontece muitas vezes áquella gente
porem-lhe os pés em cima. ou passar junto delles, e então se in ­
troduzem nos. pés aquellcs espinhos, que passam por ser venenosos.
O mar daijuellas partes é clieio de cobras ou serpentes do m a r,
que mordem a quem encontram. Quanto aos peixes voadores, acham-
se em toda a parte debaixo da zona tórrida, e principalmente junto
da linha eíjuinocial. Alcm daquclles que vi no mar á ida, vi tam­
bém muitos nas ilhas de Maldiva. llavendo fallado delles na rela­
ção da minha viagem, não repetirei aqui o que lá escrevi.
JPor ultimo íiquei admirado de ver tantas sortes de diversos peixes,
que nos são desconhecidos, grandes e pequenos de todos os teitios,
alguns dos quaes são enriquecidos de bellas cores, outros brilhan­
tes como se fossem cobertos de ouro; em somma de tão grande di­
versidade, que só tica logar para a admiração, e parâ reconhecer que
íis maravilhas de nosso creador se manifestam mais no mar que em
qnabjuer outra parte de suas obras,

CAPITULO IV ,

Dos Papagaios, e de um Passaro admiravel que se cria


na China.

oda a índia, Africa, Brazil, e Ilhas de sua dependcncia são che-


ia.^î, entre outras muitas sortes de passaros, de Papagaios em gran­
de numero, c de todos os feitios. Uns tem a plumagem cinzenta e
roxa, e destes ha-os na ilha de São Lourenço, são bons para comer,
TRjíTilO ICS SKIWAKS, ARVCP.IS elc. 36Í
* ?«■ '"> q«e OS pciBbcs (croa^ps; c dcllcs comemos
DlUitrs (lUi^rdo Psihrm rc”rQ/>'^r«i1
I j n iL ’ r>- T^ luiiicnivs
lie trsziii) a Franca vcm dp r l r n í ^ r maiores Papascaics verdes
Iias índias íão ™ c *e s ^
fn hiivi n « 1- ‘ P‘ ^ueiiOs, mas mui lindos e fallam mni
Os

q « a t e e M a o S r r id a . “® ® «“ «rande

;:?S s p iT a r

« r d ^ V v . r ^ l 'i r d o n s * o 'p e T c L " ?


0 Pico do ccmprfricnl^a de m
e.^pecie de unlia (urva e na narte i n s u p e r i o r uma
ma, e km perdei.te ' rm p i n i! na de ci^
la domada, stmelhante a nerc-ímiíÜS^ mui amplo , de cor amarel-
saber donde podeiia ter v?ndn* pcf muito admirado, e sem
reza, periuq.tf?af;a to" s ?s
dava rescliição- até one í Iippo JÍJ^ vinham de fora, e ninguém lhe
«eram que ad«el?^2lm\í
^a; que os Chinezes se sprvi«m^ ííp II p vhma, e só Ia se cria-
aeda por agua cciro os outros rpctllncÇ?^*^^ apanhar peixe, porque
|^empo.%fa^ha , eixe , X í r ™ % S e e^cm^^élle

s m p r ; u e " Í L ^ ^ e ; 'V o r s % 'e i x e ^ ■ t^ fL S ^ ’ ^

te m a is d e mil e d u z e n ta s ^ 8 ^ ^ fica d is ta n -

? r , , K
la r 0 pescoço do
; ; o aKs s a río , , dr é irx a ns d oi - l.í e* so“ a a b S U c i f n t e ' ’« »

CO cl,e^o que^^es^“
quue õ l" esle “«o aâr.ifiZ®
te '“«' r t i n c i o da"® i . p®P
e ‘n® u® ®=a ^
s a‘*m "r k"'«“«
i. vr *o___usíeS ^r-o saõ
sim andär^^uiit tempo Ö mTr t rroltl^rZ*- '^®®®
q e e c

e € S Ä c S “p U tfe ^ ti
A
'■ « “ A t 7 „ T f í l 7 .n .‘Â

uma especic de m f f m « « o pequena, e todavia, não


daSbrma! t l S f ' e ' prop“ L ' ' ‘ d e I m t ™
é
doz a» sua^^e'pecielT'^ll“
^vz sile p ccT e 7
Ü« se.pecie. A pelie era ^^admiravelmente heífa, P[op?a
macra ee oro
bn
9i
362 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARO

lhante cam> velludo, o pello semélhímtemenie curto , e o que é má~


is estranho é ser comp >sta de p ‘quenas listas extremamente bran­
cos, e e'itre naioeats pretas, tão proporei )n »-iaine!ite qu ', até ás o -
réllias, ponta da ca u ia , e outras 8'ítréníi iades, nada h tvia que no­
tar nesti fi;5ura tão bem conapaS'uda, que apouas i arte hum uia po­
dería fazer cousa semelíiante. l í ’ aiern diss) u n anim»l mui bravio,
e que nunca se amaaça corapletamente. O s do mato são extrema-
m eiite. ferozes, comein e devoram os homens. >'hamara*!he no ç a it
onde se criam Z e b r a s ( a Gdam-se em Anqola na A fric», doiiae og
haviam levado ao B razil, para os dar de presente á El-H ei dô íle s-
pinha; e tendo sido apanhados m u p-rqueuos , estavam um pouco
mansos; e todavia só o homem que tratava delíes se atrevia a che-
gar-se-ihe ao pé; e até pouco antes de eu alii ch é g ir, ura que por
descuido se soltou matou um palafreneiro , e têl-o-hia devorado se
iho não tirassem dos dentes. E ainda o homem que os tratava me
mostrou signaes de elles o haverem mordido m varias partes, ape-
zar de estarem presos co:u prisão muitò curta, 'ertaniente é a pelle
de animal mais liuda que ' cr-sé pode.

CAPITU LO Y.

Da Pimenta e da Gengibre; da Massa e Noz muscada; do


Cravo B da Canella,

A Pimenta cria-se abundaatem ente em Gochim, Caíecut, Cananor,


Barcelor, e por toda a costa do Walabar. Extrahem~na dalli só os
Porluguezes, e ninguém mais ousaria corapral-a nestas regiões, lla -
a também em grande copia na ilha de Sumatra, e em Java, ondé
os Arábios, e todos os ouiros índios, e de alguns annos para cá os
Hollándezes e Inglezes, e todos os que alli navegam contra vonta­
de do rei de Hespanha a tomara, e fazem delia provimento. E ’ ma­
is grossa e mais pesada que a do M alabar, mas os índios lhe dão
mais estimação, posto que os Portuguezes gabão a sua, que dizem
que tem mais força. Bfa-a de 1res especles; preta, b ía rte a , e lon­
ga. A longa cria-se em Bengala, no Brazil, e em Guiné.
Mas a pimenta preta e a branca são da mesma form a, e provêm
de uma píaiita ou arvore, que é semelhante á hera, e se planta ao
é de outra arvore; quando vai crescendo enrosca*se, e vai .subin-
ó até ás mais altas pontas da a r v o re , como se fosse a videira ,
lu p u lo. h e ra , ou qualquer outra planta trepadeira. A sua folha é
( a ) Jà na N o ta ( a } de pag. í 8q desta vdiume advertimos qde no ori-
giaal íraucer se oicrevo E m e , provavaImenla por corrupeSa da Z t b r e , 0«
Z evre.
TRATADO DOS ANIMAES, ARVORES OtC. 353
semelhante a da lara igeira. O frueto dí-se em peqa' nos cachos n--
long.idos , ra ii seuíelíiaates a ^:rjsel'u< v ;rm ‘ih.is. \ prjaeipio e vrer-
de, perto de amaiurar íaz-^se v r in e lh ) , e j i i i io sécca hoa ne­
gro. olhe-se nos niczes de dezein >ro e janeiro.
Quanto á Gengibre é mais c»nm iin qu; a Pimenta, e cria-se
em toda a índia, e raasmo no Brazil, e na ilha de São Lonrenço.
Não estive eni (oear algum da índia onde não visse gengibre. O
Rei de llespaaha defende extrahir-se grande quantidade , porque
se a levasseiií em abundancia, isso lhe estorvaria a venda da sua
pimenta, porque muita genie se contentaria com aqueüa especiaria.
h uma raiz que se criii lia' terra , como a do lirio. Os índios fa­
zem delia grande quiutidade do conservas.
A IVo2 huscada e a Uassa só se dão na ilha de Ban ia , que c
distante vinte e quatro legoas das de Maluca; e ha-a alli en tão
grande quantidade que basta ao provimento de todo o mundo. A
Noz musca<la amadurece 1res vezes no anuo, a saber, em a b ril,
agosto , e dezembro. A de abril é a meihor. A arvore semeliia-se
pouco mais ou menos ao pecegueiro ; o friicto e coberto de u na
casca ou pelle mui espessa, que se abre depois de mídura como u-
ma noz, saindo a Noz muscaia com outra casca, qiie é a ííassa,
de cor vermelha. Seccanio separa-se a Massa, e fica cor da laran­
ja, e é droga de grande virtude para fortificar e aquenlar o esto-
mago,^ expellir as vemosidades, e fazer digerir os alimentos.
O Cravo só se pro iuz nas ilhas de Maluco; as suás folhas seme-
mam-se ás do loureiro; o páo da arvore, e as folhas tem com pouca
diíTerença o mesmo gosto do fructo. Ao redor da arvore não nasce
erva alíiim a, porque as raizes são tão qaentes, que absorvem toda
a humidade. Tem-se feito experiencia de que poado um sacco de
cravo sobre um vaso cheio d agua, esta se conso.ue e diminue, sem
todavia o cravo se damnar.
A flor do cravo qumdo abre é branca, depois faz-se amarella, e
por fim vermelha. E ’ então que o cravo se produz na flor, eque’ o
seu cheiro é mais forte e melhor, e na verdade é o mais suave e mais
admiravel cheiro que se pode imiginur. Quaudo as flores estam na
sua força, dir-se-hia que o ar está todo emoalsaniido do seu aroma.
Estando maduro cáe o cravo no chão; apeftam-no, e raólham-no na
agua do mar; depois seccam-no em cánniços por debaixo dos quaes se
põe fogo, que lança fumo, com o qual íica o cravo negro, sen lo de
antes mui vermeibo.
A Canella só se produz na ilha de Ceilão, onde se acha em tão gran­ íi
de abundancia,: que a maior parte da terra está coberta delia, como
cá de matto ordinário. A arvore é como a oliveira, e a folln como
a do lüureiro; dá urai flor branca, e um fructo de feitio da azei­
tona madura.
Tem duas cascas; a primeira nada vale; a s'egunda é a verdiideira
canella, que fendera na arvore, e alli a deixam seccar; depois de se-
íar S€cc tiram-na, e não deixa por isso de se criar outra no fim de
dous ou ^ tres mezes, sem que a arvore receba damno. Esta arvore
produz se commumente sem ser plantada; e ha alli tão grande quan­
tidade de Cauella , que a libra não vale mais de seis dinhei­
ros.

CAPITULO Yl.

Dû Ánil ou IndigOi do Âímiscar, Âmhar-grh, Benjoim, San*


dalo, e páo de Aloes.

Á n il, por outro nome chamado í n d i g o , somente se produz no rei-


ao de Cambava e Surrate. E’ uma erva que cresce como o alecrim,
0 procede de "semente. Quando a colhem poem-na a seccar, e tornam
a moihal-a muitas vezes, e outras tantas a fazem novamente seccar,
até tomar a côr azul. Fazem delia grande esiimção para a tintura­
ria. e é uma das melhores mercadorias da índia.’
O A m b a r - g r i s procede do mar, eprincipalmenle na zona tórrida.
Yi muita qualidade delle nas ilhas de Maldiva, onde se acha á bei­
ra-mar. Ninguém nos paizes onde eu tenho estado sabe verdadei*-
ramente donde vem esta droga, e como se cria; só se sabe bem que
vem do mar.
0 A l m í s c a r vem só da China. Procede de um pequeno animal do
tamanho de um gato. Para lhe tirar o almíscar matam este animal,
e 0 esmagam inteiramente dentro da pelle, na qual o deixam apo-
drecer; e depois de podre fazem da mesma pelle pequenas bolças,
ue enchem da carne cortada em pedaços muitos, e assim a venaem.
S s Chinezes fazem disto grande trafico, e o sofisticam e misturam,
como a tudo quanto lhe sáe das mãos; de sorte que se não encon­
tra puro e natural.
A l g a l i a s ha-as por toda a Índia em grande quantidade.
O t i e n j o i m procede , como as outras gommas , de uma arvore
muito alta ; e é uma gomma mui aromatica. Dá-se principalmentc
em Malaca e em Sumatra.
O S a n d a l o branco é uma arvore que se cria na índia, e ha-o^
em grande quantidade na ilha de São Lourenço, e também o San­
dalo vermelho. Os índios servem-se delle para esfregar o corpo, e
lhe dar bom cheiro , e refrescar a pelle quando tem calor. A ar­
vore não dá fructo algum.
Ha duas sortes de páo de A l o e s na lodia ; um que é chamado
pelos índios C a l a m b a , e outro a que chamam G a r o á . Os índi­
os servem-se deste páo para esfregar o corpo, e fazer perfu­
mes.
»RATADO DOS animaes, arvorm etc. 365

CAPITULO VII.

Dot Tamarindos, Canafistula, e Mirabolanos.

.4 “ZtÁ. ?55'?;ín,”".1ÍS*í, C'"'i

2 SS S“ ï4 £ ”S ;H S r H r - '“ "

W s r Æ Æ = 1 " ,S “ -

quantidade de conservas e doces. * *c»do, de que se faz grande

CAPITULO VIII.
Da A rm e Triste, do Ébano, do Betle, e da arvore da
Algodão.

Íslim X n ï ï a porqte“ n5o tfec^ ^ n u tcfsen lo de“ *"! ii


?a t^is^^d^o t “. i s l ^ e t ^ r i f ? T f r - ^
sol lança novameníe os’sens ?íios caem íhe^aí^nA *’ ® «
car alguma. E’ do tamanho da "’®®■
do loureiro quando é um pouco cortidf ^* can«^ . ^-'^^melha-se a
çar na comida; e a agua ^ se exnfimt I f"‘*n P'"'® '»“•
remedio conlra a moléstia dos ofhos ^ ^ ^ P®""*
fe i^ ^ r itlS % ‘‘ dfum a'’ “flfÍ ’ ‘®“ « f“"“* <*»
F uiui ouro. m mniL
O pao é nmi duro Ha
muito em Moçambique,semelhante
e é o melhor. Ha
á rosa.

92
366 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

lambem grande quantidade na ilha de Santa Ileilena, mas não tão


bom, por ser cheio de nós.
O Belle é uma planta que se põe ao pé das outras arvores, so­
bre as qnaes trepa como a hera; a folha é do timanho da da taii-
chagem. Ha esta planta em grande abundancia nas índias Orienta'
e s , e principalmenle nas ilins de .Maldiva , porque a «ente d illi
Ioda a cultiva mui curiosamente. Os In lios usam muito desta [dan-
ta, e todos mascam a sua folha quasi continu i lamente, misturando-a
com uma pouca de c a l, e cora o Iruclo a que chamam Areca, pa­
ra lhe diminuir 0 amargor. Dizem que é boa para a sanie, e que
não viviriam sem ella, porque esta folha é mui quente, e ajula a
digestão; e por isso a mastigam a toda a hora, e a tem na bocca ,
excepto quando dormem. E na verdade o gosto é bom , tem bom
cheiro, e dá hora hálito; e posto que seja quente, tolavia refresca
a bocca, sacia a sede, e impede de beber continuadam mte , como
seria mister pelo grande calor. Depois de lhe chuparem o sueco ,
lança-se fora a massa. Usei desta droga o tempo que estive naquel-
las*partes, e dei-me muito bem com ella. Conserva de tul sorte a
saude dos dentes que nunca vi alli pessoa alguma que padecesse
delles , ou que tivesse perdido um só. E ’ verdade que tinge de
vermelho os dentes e a liocca que parece coral, mas lá hão isto
por formosura, e o tem em* tanta honra que se alguém enirar era
uma casa, e não lhe offerecerera Betle, o receberá por allronta e
deshonra; de sorte que se alguns amigos se encontram no caminho,
por honra , e regalo oíferecem entre si belle. Em somma era to­
das as festas, banquetes, e folias é esta a primeira e a mais esti­
mada parte dos regalos.
A arvore que dá o Algodão cresce em altura como as nossas roseiras,
a folha é como a do bordo, a flor como botões de rosa, e caindo a
flor aquelle botão abre-se e deita o algoílão, no qual ha semente
que se seraea e planta em viveiros, e assim se reproduz continua-
daraente o algodão, do qual os Índios se servem para tecer seus pan­
nes, e não tem outros, nem de linho, nem de canhamo, como nós cá
temos. Nem elles tem estes nossos tecidos em estimação alguma a
vista da delicadesa daquelles pannos de algodão.
Ua lambem outra especie de Algodão que procede de uma arvo­
re maior que a precedente, e é como um freixo, a qual pro luz cer­
tas vagens cheias de algodão, que por ser mui lino , não serve se­
não para encher colchões e travesseiros da cama.

CAPITULO IX .

Das Bananas, e Ananazes. •


A fíawan^íVa é uma arvore de altura de nove ou dez pés, mui coni-
mum nas índias, maravilhosa, c tenra como 'alo de couve, e tã»
TRATADO DOS ANIMAES, ARVORES‘ ClC 367
grossa como a coxa de um homem, coberta se diversas cascas umas
sobre as outras, como as cebollas, asquaes sendo tiradas, fica o ama-
go da grossura de um braço, e este amago serve para se comer, as folhas
são de comprimento de vara e meia, e de largara de meia vara. Os ín ­
dios gentios servem-se das folhas comode toalha épratov onde comem ,
e não servem a este uso mais que uma só vez. O íruclo é mui delicado
e precioso; dá-se ordinariamente as crianças como papa; e cada arvore
não produz fructo mais que uma vez, e depois cortam-na para rebentar
novament *, ecada um destes rebentões produz fructo todos os annos uma
vez. 11a muita quantidade destas arvores. O fructo dá-se em cachos,
em cada um dos quaes chega a haver duzentos fructos; e cada fructo
é da grossura de um braço, e comprimento de umpé ( a ); é mui bom
e saboio>o, e ach i-se em todas as estações ; ao principio é verde,
depois faz-se amarelio, e então é que está maduro. Nas ilhas de Mal-
diva ha grandes hortas todas cheas destas arvores.
0 Ananaz dá-se em uma planta muito rasteira, que nunca passa
da altura de 1res ou quatro pés, e por baixo rebenta em forma de
mouta; as folhas são estreitas e compridas, picantes, e desvairadas.
O fructo semclba-se a uma alcachofra, ou antes a uma pinha, salvo
ser ura pouco maior. Quando está maduro é amardlo, e por dentro
é mui tenro, e mui bom para comer. No alto do fructo tem um ra­
mo de folhas, o qual sendo plantado, produz outros fructos. Pode es­
tar quinze dias coibido sem se damnar, por causa da sua grande
humidade, que o conserva. Cortando-se este fructo com faca, e deixan­
do-se esta por limpar, íica toda ferrugenta n’uma noiite; tão quente e
penetrante é o sueco do fructo. Todavia alguns índios fazem delle vi­
nho, que é como a cidra da nossa terra, mas melhor, mais forte,
e mais quente.

CAPITULO X .

Dos Duriões, Rambutões, Jacas, e Mangas,

ü . arvore dos Ditriões semelba-se propriamente na grandeza a u-


ma pereira; o seu fructo é do tamanho de um melão, e os índios a
estimam-no muito por ser um dos mais saborosos e melhores da
Índia. Quem não está costumado a elle não o acha bom; e tem o
mesmo cheiro que as cebollas d e ' c á , mas o gosto é muito niais
excellente.
Os Ramhutões são fructos cobertos de uma casca espinhosa como
a castanha; tem a côr vermelha, o fructo interior é do tamanho tíe

(a ) Ha B a n a n a s desde a grossura de um dedo de homem ate k do brac®


de uma criança dç collo. Em quauíQ ae comiirimenlo_ rara strá a que cbogr. w
ter «m pé.
368 tiAgem de prancisco ptrard
uma noz, provido de um núcleo semelhante a uma amêndoa, e de
igual gosto; sobre a qual ha uma carne ou polpa, que se desfaz
na bocca com um gosto mui agradavel. E ’ mui estimado na índia.
As Jacas dão-se n’ uma arvore da altura de um castanheiro, e
são do tamanho de abohoras. Prende ao grosso da arvore, e não
á ponta dos ramos, e vergonleas, como todos o» outros fructos. Dir-se-
hia de longe que são abohoras amarradas á arvore. A parte externa é
como a de pinha, e de cor amarella. Estando maduro tem o gosto e
sabor mui doce, mas afora is^o mui laxativo. Dentro do fructo em
vez de amêndoa ou pevides, acha-se grande quantidade de casta­
nhas tão boas e saborosas como as de Fran ça; e estas castanhas ,
ao contrario da natureza do fructo, apertam o ventre. De sorte que
depois de se comer o fructo para íitalhar a que elle faça mal
basta comer uma destas castanhas crua e não cozida.
As Mangas produzem-se em arvores que são da altura das no­
gueiras de cá , posto que as folhas sejam mais pequenas e maii
estreitas. O fructo é da forma de ameixas da gro.ssura de um pu­
nho. Ha dentro um caroço, que não se pella completamente. E s ­
tando maduras são amarellas, e mui boas, e ha-as em grande quan­
tidade na índia, posto que não nas ilhas de Maldiva. Quando ain­
da estam verdes , salgam-nas como nós cá fazemos ás azeitonas ,
Í ara durarem por todo o anno; porque este fructo, assim como as
acas, ftambutões, e Ananazes, dão-se n’ uma certa estação, c
não
durante todo o anno , como as bananas, e uma infinidade de ou­
tros.
CAPITULO X I.

De muitas arvores e plantas, que se criam nas ilhas de


Maldiva.

A s ilhas de Maldiva são mui ferteis em toda a sorte de fructos, • a


fora parte daqnelles que acima tenho descripto, e alli se dão, ha
muitos outros, de alguns dos quaes farei aqui especial menção, por serem
mui differentes do feitio dos que nós cá lemos, por haver usado dél­
iés, e pelos ter observado mais parlicularmente nas ilhas de Maldiva
que em outra parte, sem com tudo querer aílirmar que alguns delles
se não dêm em outra parte da índia, ou que eu os haja visto só
a lli.
Primeiramente muito me espantou, e achei grandemente notável a
natureza d’ uma especie de raiz particular ás ilhas de Maldiva , e da
qual usam muito na comida, temperaudo-a delicadaraente. Cresce a‘é
a grossura da coxa de um homem, semeam-na , e culíivam-na, e o
que é maravilhoso é cortarem apenas a raiz em muitos pedaços
mui pequenos, e assim a semeam , de modo que se não reproduz
t r a t a d o d o s a n im a e S j a r v o r e s e tc . 359

L l r a r T a T i a ™ ? e l “ d<is OT estranha , e

i« e n le '^ C !* E Íu 'rra s q u e^ "ãT “r '* ® " " ‘ ‘'“ s «®-


Komeira, Limoeiro e la ra n a ê iri n , " Coqueiro , ii,maneira ,
ciJas, « que dão k c t o « " 1 ^ 00® notó!'"’

E ’ U M m r X f L ' ‘i g“ande“ ^comr^m ‘ '" " " ‘""i { a ).


tias e mui peuuenas^e o hwMn abertos , íolhas redon-
favas. Estas folhareV™c"o ie r « L . „ a \ “ “ " “ '^'l longas vagens de
Ila outra chamada Coneri i b ^ ®são mm saborosos,
e de ramos mui compridos- as i?randc,
lios pinhões ; o fructo é comn -»mnr ^ redondas, e tem peque-
delicioso. E ’ mui estimado ^ms ®
Esta arvore fructiíica em todn n ♦ ^^^aldiva, e mesmo em Goa.
geiras vê-se nelia ao mesmo ?emn??,’ “ ? *o">f'onça das laran-
iò maduro, e outro maduro, ^ liffljio, algum mc-

que C T L “ folhai muf^seShãnte''"


como os cÔcos, nào adherente aníf^ Iigueira. 0 fructo nasce
mas sáe do alto do tronco da nas outras arvores,
E ’ este fructo propriamente dn fí>v^ divisão dos ramos,
c de tamanho í? " '
as talhadas assígnaladas na neHp semeiha-se a melão, tendo
das do melão; e o gosto mufío "^^sma disposição
vem-se delle como de ahohora D in ser-
algumas destas arvores nas suas na comida. Os 1 ortuguezes tem
fla outra arvore, cuia nature/a p ac^^’ \ ®fructo por imii delicioso,
lha a um Merlier (c), c^^íi? fructo «p ^ ^ asseme-
cas, e é mui deliUdo e-* s a t t o fd ? ^
uma amêndoa ou avelã, o aual tamhp^m
turbar o espirito por pouco^mie Hp IIp ca^ gnsto, mas faz per­
to, causaria estranhos accidentes dp dopn*?a” ^’ e se se comesse mui-
que eu posso dar hom testimunho nnrmiA^^’ e chegaria a matar; do
cipio da minha estada nas ilhas d p ^ A ? a i d - a c o n t e c i d o no prin-
de, comer deste fructo, fiquei com ’ padecendo necessida­
de vinte e quatro horas. ^ ^ ® espirito perturbado por espaço

Também chaTam^^festri^voir"^^^ f fo ^ a n g u e iro . ii


N a iu ra l de Gôa , quo nós acabamos de daf á íue^em Gôa
( b ) Congnare, escreve o auctor • mas nT« ? a ®!
era Goa se chama Conári, e ao fructo eoaeram. ° <ie ser a arvore q«e
íg ) Assim oslá no original franc«? ■ .Ita .,^4 - i
correspo“-'«»« v"> ponvgu“ . . ’ P " '“
( d ] Parece ser o J m b g branco.
93
1
.A.

370 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

Ha uma arvore, a que chamam (a), que produz um fructo


que se deixa coQier aos pissaros, mas aproveitam-se as raizes delia
para a linturarii, e dão uma bella cor encarnada; e toJavia para se
lhe tirarem os raizes não é mister cortar a arvore, mas vao-1 has cortan­
do ora de um lado, ora do outro, sem que por isso a arvore receba d ^ n o .
0 Macaqueró é uma bella arvore, rauí alta, e grande, c
de muito
proveito. As suis raizes estam fora da terra, são compridas, grossas,
Dellas, lisas, e só prendem na terra por uma extremidade, como se
a arvore licasse suspensa sobre estacas, e sobre arcadas, porque en­
tre um»s e outras ha espaço vão. Quando estas arvores estam uni­
das umas ás outras, cortam-lhes estas raizes, e deixam so quatro
cm cada arvore para a suster, a qual por isso não recebe damno,
mas lanca logo outras. A flor é do comprimento de um pe, grossa,
branca, e dobrada, c dá cheiro excellente. O fructo e do
de nma abobora, redondo, tem a pelle um pouco dura, c dividida
por quadrados era bocados que peneiram ale ao a m a g o d o feitio
de umapinlia, mas com a differença quá estes quadrados sao do pr«-
prio fructo, que é excellente. Tem a côr muito encarnada; a maior
parte do fructo não se come; por dentro é cheio de pinhões, que sao
inünitamente saborosos, e melhores que os de
pridas de vara e meia, e largas de um palmo; dividem-se em duas
pelles, sobre os quaes se escreve com tinta como em pergaminho.
Jl madeira não tem prestimo algum, porque é toda huraida, porosa,
c cheia de filamentos. , , ,
Ha nas ilhas de Maldiva grande abundancia dc uma arvore , a
aue os Portuguezes chamam Figueira da índia , que tem a foina
como a nogueira, dando um pequeno fructo que para nada mais
serve do que lirar-se delle depois de torrado um oleo negro, co »
flue untam e pintam de negro os navios era vez de pez c sebo.
O que é admiravcl na natureza desta arvore é que os ramos, de­
pois de haverem crescido a grande altura, lançam de si uma peque­
na raiz, que naturalraenie se curva e vai entrar na terra, donde
<;e produzem outras semelhantes arvores , e assim ate ao mfinito ;
de sorte que depressa teriain occupado um região in teira, se as
não cortassem. O páo desta arvore só serve para o fogo ( b ) . ^
Ouanto ás arvores qns produzem flores, ha-as grandes que nao
produzem outra cousa, e as que produzem são mui suaves c odori-
feras como a Innapa, cuja folha pizada a gente das ilhas de Mal­
d iv a ’ appiica a esfregar os pés e as maos
\ermelba, o que elles hão por grande belleza. Esta cor nã^o se ti­
ra por mais lavagens que se façam, e dura até que as unhas cres­
çam, ou a pelle se renove; e então ( o que ordinariamente acon-

a l Ou antes Ogost , e também s£ diz Sapanga. ^


(L j E’ a Ficuí indica, religiosa, bengalensis, « de outras espccies, conhecid ^
pelos nomes vulgares de Pimpôlí, ou Arvore de Gralha—Yejam-se as Observaeõe:
sobre a Mistoria Natural de G6a por Manoel GaUío da SUra, ja citadas.
TRATADO DOS ANIMAES, ARVORES ClC. 371
tece no fim de cinco ou seis mezes ) tornam novamente a e&fre-
gar-se com a mesma tinta. A flor chama-se I n n a m a u s ; é mui pe­
quena, mas de cheiro mui activo e agradavel. ( a )
Assim é também a arvore chamada O n n im a u s , que igualmente
iiào produz frueto algum, mas só flores brancas, mui sua\es e a-
gradaveis. Não duram na arvore mais de vinte e quatro horas ,
depois caem, e a arvore incessanlemente as produz pelo decurso de
iodo 0 anno.
Ha ainda outra arvore de natureza mui singular, chamada I r u -
ã e m a u s y que em sua liiigua significa f l o r d o s o l , porque as suas
flores não abrem nem npparecem nunca senão ao nascer do sol, e
caem quando elle se põe ; o que é o contrario da Arvore triste.
•E’ a mais excellente liar, e que lança melhor cheiro que todas as
outras; e da qual fazem ordinariamente uso o rei e as rainhas.
Ha uma infinidade de outras especies de flores, que se dão na­
turalmente em todas as estações do anno, e de tão excellente chei­
ro e perfume, que em comparação délias nada valem as melhores
que nós cá temos, nem ainda os nossos visinhos; o que procede de
estarem mais perto daquelle que lhes dá o seu principal lustre ,
e ainda com mais primázia nas ilhas de Maldiva do que em qual­
quer outra parte. A gente desta terra gosta muito de flores, poera-
nas entre os cahellos, enchem délias todos os dias as suas camase
vestido, e são mui habilidosos em fazer com ellas lindos ramalhetes,
toucas, tranças, e grinaldas,

CAPITULO X I I .

Descripçào mui particular da arvore admirarei que dá os


cocos, a qual só por si produz todas as commodi-
dades , e cousas necessárias á vida do homem.
E m toda a índia não ha arvore que sirva tanto em tudo para a
sustentação e commodidade do homem, como aquella que produzes
Cocos. Os Portuguezes lhe chamam P a l m e i r a , e ao frueto Cócos.
.Os naturaes das ilhas de Maldiva chamara-lhe B o n i, e ao frueto
C a r é . Os do Mda bar T e n g u a , e os Guzerates N a r q u i l l y . Não se dá
senão nos paizes que ficam entre os dous tropicos, porque esta ar­
vore requer só logares quei.ies e húmidos, e todavia não se cria em
toda a zona tórrida, mas só em certos logares, onde nasce tão na­ íi
turalmente e sem cultura, que é cousa admiravcl; e principalmcn-
te nas ilhas de .Maldiva, onde a ha em maior abundancia que em
lodo 0 resto do mundo. Produz-se aqui em tal quantidade que a
gente da terra é obrigada a cortal-a para fazer logar as suas ca-

( a ) Em Goa chama-se a planta M d t i,


372. YUGEM DE FRANaSCO PTRARb

zas e edifícios; e ordinariamente não deixam estas arvores mui pró­


ximas das cazas, assim porque frequentemeule cáem de per si mes­
mas com 0 vento, o que derruba as cazas, e mata a gente; como
porque os seus fructos que também cáem todos os dias em grande
quantidade por causa dos ratos, matam muitas vezes a gente, não
só porque a arvore e alta, mas porque o mesmo fructo é pesado.
Vi alguns que em verdes tinham tal grossura que pesavam bem dez
Jibras; e os ratos só buscam os verdes, porque os seccos são mui
duros de roer. Alem disso estes animaes o que príncipalmente
desejam é beber a agua que este fructo encerra; e tem a industria
de fazer um buraco na parte superior, para que a agua se nãO' der­
rame, e fazem este buraco da sua mesma grossura para poderem
entrar dentro a comer e a beber ; e quaudo o fructo não tem já
dentro substancia alguma, damna*se, e cáe, de sorte que nas ilhas
desertas a terra é toda coberta deile;: mas nos logares habitados a
gente tem cuidado de o apanhar quando está secco para fazer fogo,
que é melhor que o de qualquer outra lenha, Recebe aquella gen­
te grande prejuizo da destruição e ruína que fazem estes ralos ; e
ainda mais aquelles morcegos, de que falleí, e que são mur gran­
des , os quacs causam damno assim nesta arvore , como em todas
as suas vasilhas de vinho, que rompem e quebrara, porque gostam
muito de bebei o vinho, e ordinariamente o derramam, E" também
aqueila gente atormentada dastormigas que ha em todas aquellas
ilhas, e que f.izem o seu ninho ao pé destas arvores, com o que
descarnam as raizes da terra, e a arvore cáe.
Esta arvore é mais alta não só que alguma outra destas partes,
mas também de toda a índia; e a sua altura é pouco mais ou me­
nos de vinte toezas. E ’ toda direita, sem ramos até acima , e não
é grossa em proporção, mais mui delgada; com tudo é mais grossa
para 0 pé. e vai sempre diminuído em grossura até ao alto. E nun­
ca vi nenhuma (}ue fosse toda da mesma grossura, ainda que s«ja
privada de ramos até ao alto. Não íem grandos raizes, o que é cau­
sa de ser pouco lírm e, e de o vento forte demdjar algumas, que
ás vezes caem, como disse, sobre as cazas, em cujas minas fica a
gente que está neílas, porque são baixas, e pouco fortes para re­
sistir a tão grande peso. A casca da arvore é branca; o tronco mui
brando , e cheio de filamentos. A. juadeira serve para a láWícação
de cazas; e com tudo só weíade da arvore se pode aproveitar para
este mister; isto é, a parte íuíeiior junto ao pé, que é mais grossa ,
porque 0 resto é só medulla, e é mui tenra. A parte mais inferior
de todas, que vai desde a raiz da arvore até altura de très pés,
que é a maior grossura , cortam-na em separado , e depois de va-
sada fazem delia vasilhas para conservar mel, para conter agua, ou
outras semelhantes cousas do uso domestico. Serve também a madeira
da palmeira para fazer embarcações, e ha-as todas formadas delia,,
sem entrar «utra madeira, nem pedaço algum de ferro.
TRATADO DOS à Aj MAES, arvo res RtC. 373
São todos RO parto superior, e mais alia da arvore cm
i a d T l . r l ' T “”'®"^' 0 s c p r e rectos. De
Deno ril^ A,Mr/.“ "?”®? , as '»i'las com igualdade umas
h oum/no ““ dcJo pouco ma-
As folhas sao t o coiü.tniiíeato le in-ia hraat e mais’
^ dousdclos d« cada banda poí
que sao divididas em duas peio itimo, oade ha um leuhomui del-a-
UO mas mui duro, que sustem a. íolha^. Scão de còr branca quan-
pardas ' ^ secca^sL
^ 0 fructo nunca nasce nos ramos, mas só, sobre o tronco da arvn-
re ao pe dos ramos, e vem em cachos, cada um das quaes nrend»
a arvore por ura pé da grossura de ura braço, mui lon^^o e mui
duro; e deste pe eslam pendentes os cócos, até ao numero de dní
(oenta ou sessenta ordinariamente , e lás vezes mais E o aiie é
mais adrairavel é que todis os mezes a arvore pro luz um^ amo
ío cocos, de sorte que ás vezes e.stá carrega la de quinze ou vin
te cachos , uns com cocos maduros, outros com meio nnduros \
outros que apenas começam a abotoar, segundo a ordim do seu ins!
cimento; e amadurecem perfeitamente em seis mezes A«sim dur-i^
é p jo ^ n l " “ ’í* ■ a it^
Ksta arvore dsman la log,ircs baixos, húmidos, aouaticos uanimn
»os c areuosos. E por isso é que cila se dá tão bem ms Ims d ?
Maldtva, que são terras baixas," e onde no fundo de tres Õu ouLm
vo?»," p "|a" frescura c nutrição destas ,m-
vores. Pelo contrario na terra íirme é com grande trab dlm nnp -
ona e>ta arvore, e e mister encanar a ag«a,%u faze
ta á mao por escravos, pela manhãa e á tarde. ° ^‘
Para plantar esta íirvore é necessário tomar o fructo sobre a
mesma arvore quando elle está bem maduro naluralmente mas mda
de mais, porque estando maduro de mais e mui secco, a'agua oíi-
tem dentro lambem estara secca; e é a agu.t só que se cmnve^ríí
® ® ® ® mister que 0 fructo^seja comasui
ca.ca inteira mettiJo na terra bumida , e íique bem e n l S o F*
se for enterrado sem a casca exterior será impossível que a arvore
brote, porque a terra fará apodrecer a cíisca‘ interior antes que o
g.rraen e a raiz se desenvolvam, e a arvore sáia á superfície du
terra. Aos scis ou sete annos dá fructo ^
Quem quer utilisar-se da substancia deste fructo toca cnm A
dedos ou com outra cousa na casca, e por ahi pode’ iuí-ar
03 ado elle está; se estxá duro ou molle, maduro ou verde. Se 1 '-
^ ttuetua e chocalha no interior, mas miando
maduro, ou só o começa a estar, a agua não ^cho'''i-
amadurecendo, vai sempre a agua secan
do-se, ate de todo desapparccer; e então o miolo torna-^ se. cq ^
94
374 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

dura, e nao deita leite, mas só oleo pela expressão, e desp ‘ga-se da cas-*
ca por si mesmo, e em vez de óranco como até aili era no interior
íica cór de chumbo, ena sua parte superior da mesma côr parda co­
mo a casca.
\’s arvores que nas ilhas de Maldiva são próximas da cerca do pa­
lácio real, não se sobe senão de nouie, sendo defeso subir a ellas dc
dia, porque se devassaria délias o interior do recinto por não ter mu­
ros tão altos como estas arvores. E ainda os que se occupam em co­
lher 0 fructo destas arvores, que elles .chamam R a v e n j , nãonusariam
subir a cilas de dia em Jogar onde possam ver o interior da cerca
de qualquer caza por mais pobre que seja, sem primeiramente gri­
larem 1res vezes em voz alta antes de subirem a ellas. Isto se usa
assim por causa das mulheres q.ue se banhara c lavam nuas em se­
us tan(|ucs, e junto aos poços dentro do recinto de suas habitações.
Guarda-se isto mui estreitaraonte entre elles.
E’ cousa admiravei ver as commodidades que se tiram desta ar­
vore, de que não ha pedaço ou parcella que não tenha alguma ser­
ventia. Os jamos fendem-se em dous , e com elles se cobrem as
cazas, e fazem sebes mui fortes e bem feitas ., com que cercam
as cazas e hortas ; afora uma infinidade de outras applicaçõcs, que
seria inutil referir aqui. Com as folhas cobrem-sc as cazas , so­
brepondo-as umas nas outras,, e scgura,ndo-as com diversas fiadas
de cordel postas longitudinalracnte; e não se cobrem as cazas de ou­
tra matéria; e isto resiste muito bem á agua, de que não passa u-
nia goita; mas é mister renovar esta cobertura de 1res em très
annos.
Quando a folha eslá ainda verde, servem-se delia como de pa­
pel para escrever cartas e outras missivas , versos , e canções , e
âs doi»r«m com muita graça, o que se faz com facas e ponteiros
de ferro. Também quando as folhas estam seceas as fendem etn
tiras, de que fazem tecidos e entrançados cm forma de esteira mui
iindamente obrados ; e destas esteiras cosidas umas nas outras se
fazem velas de navios tão grandes como se quer, e por todas as
ilhas de Maldiva não se servem dc outras velas. Destas mesman
esteiras se servem em forma de alcatifas communs para se sentarem
no chão, segundo seu costume, c por toda a costa de Malabar não
ba outras esteiras, porque não ba lá verdadeiro junco como em Caol
( a ), e nas ilhas dc Maldiva se fazem desta mesma matéria outras es­
teiras melhores e mais bonitas. Das me-mas folhas inteiras aquelles
povos fazem e tecem mui convenientemente alcofas, cabazes, e mil ou­
tras obras, como nós fazemos cá de vimes e salgueiros; e scmelhan-
íemente fazem chapeos de sol, e da cabeça mui lindos, que se usam
para tapar a chuva, e eu me servi lá sempre delles.
Em somma destas follias quando são novas e brancas fazem mil sor-

f a j Será .Xaeí?
T ratado dos an im aes , a r v o r es etc 375
íes dtt obras, c formam délias passaros, peixes, e todos os outros ani­
maes, como cá se faz de panno de linho appropria iamente afeiçoado
Quando querem fazer um presente de flores, fnictos, betie, oÍi ou­
tra cou.^a, meltem-no n’ uma especie de condeça feita destas folhas
com muita perfeição; e quando hão de tirar o que está dentro, cor­
tam a condeça, e abrem-tia com uma faca, e depois de tirado o que
ella contem lançam-na fora. O pequeno lenho que corre pelo meio da fo ­
lha, depois de seccoíica mui duro, de sorte que fazem delle vassouras,
e não usam de outras. Esta m-^sma varinha serve para fazer cofres e
bahús, tecendo umas nas outras, e ficam mui fortes, e podem fechar-
se á chave.
Fazem também desta matéria cabos de armas, como pequ?nos chu-
ços, aza^aias, e outras semelhantes. Li^am uns aos outros estes pão—
zinhos, que não são mais grossos que a ponta de uma a^^ulheta, e tem
0 comprimento dc meia braça, e os vão juntando até á^grossura qiie
querem. Este lenho pela sua parte mais grossa, que é no pé da fo­
lha, é da grossiira que disse, c dalli vai sempre diminuindo ate á
ponta, que não é mais grossa que um pequeno alfinete; e agéitam estes
paozinliüs tão bem que formam delles um bastão todo i^ual sem
ser nem mais fraco, nem mais grosso n um logar que n’outro; e°dcpoisd'‘
bem ligado o cobrem de um verniz que elles tem de todas as cores com
mil figuras e feitios a seu gosto; e chamam a estes bastões Z a c o n -
t é . Estes bastões são da grossura de uma pollegada, mui rijos e for­
tes, e todavia dobram-se, mas não se quebram. Fazem-nos tão ^^ros-
sos e tão compridos quanto querem; .e também fabricam assim arcos
Não se servem dc outros alfinetes cm tudo quanto é mister e os
aparam e aguçam com facas. ’ ^
Quanto ao coco ^quando está com toda a sua casca inteira c da
grossura da cabeça de um homem. A casca é por fora amarella
quando está madura, e da espessura de très a quatro dedos Esta
casca decompõe-se em filamentos, de que se faz cordoalha. Para es-
.se eífeito descasca-se o frueto estando verde como nós faríamos aê
nossas nozes, e separando aquella casca da outra mais interior
poem-na a cortir no mar coberta de areia. Depois de assim ter es­
tado por espaço de très semanas, tiram-na, e batem-na com malhos
de .páo, como nós cá fazemos ao linho, e ao canharao; e assim ti­
ram os filamentos separados, expoem-nos ao sol, e depois os ton^em
e entrançam para fazer cordas , das quaes sa serveui cm tudo e
não ha outras cm -ioda a índia. Esta mesma casca estando secea
serve para calafelar os navios.
E desta mesma corda fazem o murrão para os arcabuzes que
conserva mui bem o fogo, e faz bom carvão, melhor que o do nos­
so ( a ); mas para fazerem e>te murrão não se servem do fio prepara­
do para as cordas, mas é mister que a casca se seque com o fruc-
( a ) Sem duvida o fogo, o n3o o carvSo.
375 TUGEM DE FRANCISCO PTRARO

to, e se nao co!ha verde, nera seja cortida , ou massada como S


ouïra , e os iilamentos sejara fiados e torcidos com toda a borra.
Tem eiUão a cor da casca dc carvalho, cora que se curtem os cou­
ros; e a borra que ha entre estes filamentos é como serradura de
nuuíeira. Nas cazas, corpos de guarda , e em outros logares usam
de^ta casca secca para conservar o fogo, o qual na verdade se con­
serva alli muito bem ; e com uma pequena faisca que lhe toque
pega-lhe logo o fogo, e nunca se extinguirá em quanto durar a me­
nor parcelh desta matéria. Depois de terem feito o murrão fervem-
no com cinza, como nós cá fazemos, e depois dohram-no , e fazem
delle groS'Qs meadas em forma de rolo , deixando no centro um
buraco ou annel da grossura do braço, e nelle as enfiara quando
levam seus arcabuzes. Nunca cortam este murrão, mas vão*no des­
dobrando á proporção que se vai queimando, como nós cá fazemos
ao rolo de cera. Não usam de outro murrão nestas ilhas, e em to­
do 0 resto da índia. Fazem larnbem murrão de algodão nos loga­
res onde este é commum, e o coco raro.
 noz sendo separada da casca filamentosa é ainda tamanha que
ás vezes lhe cabe dentro da sua pro; ria casca interna, depois de vazia e
limpa, uma canada, ou uma canada e meia de agua, ou outro qual­
)■ quer liquido. Ha-as também menores, de diversas grandezas, e as
mais pequenas são do tamanho de uma laranja.
A ca.sca interior é mui dura, e da grossura de^dous toslfies , ou
mais. Os índios servem-se delia para fazer escudellas, púcaros, me­
didas de meia canada, e outros ulensilios, como cultieres, e cou-
sas semelhantes do uso domestico. Alem disso fazem desta casca car­
vão de ferreiro, e não usam de outro.
Dentro desta casca ha um miolo, ou massa branca, mui espessa
0 rija, a qual é .saborosa como amêndoas, mui boa, c da qual usauí
por muitos modos. Primeiramente os índios comem-na como nós co­
memos pão com todas as outras viandas, seja carne seja ptdxe. A-
lem disso desta massi branca tiram um leite que é lão doce como
0 leite ordinário quando temassiicar, ouantes como leite de amêndoas. Pa­
ra tirar este leite ralam o miolo, c o reduzem a farinha, depois aper­
tam-no, c expreinem-no, e assim fazem correr o leite, que passam
por uma peneira. Este leite é mui laxativo quando se toma com mel
uu assucar, e se bebe cm jejum. Não usam de outro purgante.
Fazem oleo de-te mesmo leite, porque cozendo-o converte-se e con­
densa-se em oleo, o (jual é mui bom para frigir, e não se servem d’
íiutro, nem mesmo para temperar a comida, ou deitar em seus mo-
ibos, como igiiülmente para as luzes. O que não é somente u.sado
lias ilhas de Maidiva, mas em toda a índia Oriental; e até os Portu-
guezes se não servem de outro azeite. E’ também mui bom para asi
feridas c chagas, e é a principal receita nas ilhas de Maldiva ; e eu
ínm elle me curei. E’ igualmente remedio efíicaz contra a sarna ,
a qual faz secear e desapparccer poucos dias depois de se untarem
coia elle. Os nvdicos c cirurgiões que ha entre os Portugueses, ser-
tra tad o DOS ANLMAES, ARVORES CtC. 377
vem-se delle nos reraedios e unguentos, ainda que possam ter o azeite
de Hesoanha, e o hão por mais medicinal, e muito bom para certas
eníermidades. Este oleo sendo guardado por tres mezes pouco mais
ou menos, endurece, e congela-se em forma de manteiga mui bran­
ca, ainda que o oleo seja amarellado; mas esta m mteiga não é gos­
tosa, e nao se pode comer com pão, como fazemos com a outra •
por isso nao usam delia senão naquiilo em que usam o oleo e der­
retendo-a nao perde o seu gosto. Do residuo deste mesmo miolo de­
pois de exprimido, e se lhe tirar o leite, fazem-se bons doces e con­
sentas cora 0 assiicar que da mesma arvore se extrahe.
INo interior do miolo, como no centro do frueto, acha-se uma boa
quantidade de agua, maior ou menor, na proporção do coco; nos
maiores ha bem meia canada de agua mui boa,*clara como agua
da lonte, e e lao agradavel, e do mesmo gosto que agua com assu-
car; fresca o mais possível, e refrigera muito , mormente quando o
frueto esta meio maduro ; mas o vinho que se faz deste frueto é
mui quente. Estando assim meio maduro, entrando a casca externa
e interna, e tudo, pode-se comer como se fosse uma macã doce.
Quando a arvore começa a fruetificar, e o cacho a abotoar bro­
ta uma casca, comprida e aguda em forma de ponta de animal a
qual depois de sair, abre-se, e expande-se lançando uma flor ama-
rella donde procedem os pés dos cocos. Esta casca depois de secea
cae em terra, ou as vezes a cortam, e delia sa fazem bocetas va­
sos, ou medidas de líquidos; de sorte que não ha nada nesta arvo­
re que não tenha sua serventia; até das flores se fazem boas con­
servas e doces.
Ha ainda outro produeto da Palmeira, e é uma especie de panno
que se acha na base dos ramos entre o tronco da arvore e o ca­
cho dos fruetos. Os Índios servem-se deste panno para fazer saccos*
e também este panno, por ser claro e tino, é mui proprio para fazer
peneiras para passar e coar o que se quer. r r
Sáe tarnliem desta arvore ura licor de que usam em logar de vi­
nho ( a ) . Cortando o cacho na sua maior grossura, e deixando-lhe
so 0 comprimento de um pé, destilla-se dalli um ücor mui doce e
mui saboroso, como se fosse h i p o c r a s ( b ) , e isto em quanto está
fresco. ?ms ilhas de Maldiva bebem este licor em logar de vinho
porque não ousariao beberoutro, masnãose pode guardar sem azedar
mais de vinte e quatro horas. Pode-se tirar de cada ramo ordinaria­
mente uma canada por dia, e ba alguns donde se tiram duas ou tres
canadas e mais; e cada ramo continua a destillar sem interrupção por
espaço de seis mezes. Para receber este liquido prendem uma panel-
( a ) S u r a é o nome vulgar deste liquido. "
( b ) Ilip o e ra s era uma bebida, que se preparava cora vinbo, assucar ca-
nella, cravo, gengibre, e eulras semelbaates drogas. Nas boticas prepara-
se com amêndoas doces pizadas, canella, assucar, agua ardente e vinh»
da Madeira; deixa-so macerar tudo por alguuá dias, a aromatisa-sò depois
95
378 VIA6EM DK FRANCISCO PYRARB

Ia feita tarábem de palmeira ( a ) ao pé do ramo ou cacho cortado


de sorte que lhe não dê o venlo. ,, . » lu /»«r
Com este liquido fazem mel e assucar ( I ) ). Recolhendo nma cer­
ta porção põe-no ao fogo, e 0 fazem ferver cora ^ ~
cas e daras que ha no mar. Tendo fervido certo tempo *
te-se em mel, tão excellente como 0 nosso, ou ainda como 0 meitmr
xarope, que se podo achar, amarello cor de cera, e ,
ou espesso como querem. Deste mel forma-se também assucar, lazcna^
0 cozer cora outras pedrinhas, e deixando-o seccar; e tíca bom as­
sucar branco ou candi, de que fazem grande tralico, e 0 levam a
Cael ( c ) e Cciião; mas este assucar não é tão branco como 0 üe
canna; mas ha sitios onde sáe mais branco que em outros.
Quando deste liquido se não quer fazer mel nem assucar poem*
po ao fogo, e fazem delle mui boa agua ardente , a que chamam
Orraca, e é tão forte como a que nós cá temos.
Os Portuguezes usara de uma bebida formada desta orraca, mas
luntando-lhe passas de uvas, que vem da Pérsia, e melem-na n um
pipo de trinta ou trinta e cinco libras pouco mais ou menos, depois
mexem tudo com um páo até ficar vermelho e doce. Chamam a is­
to v in h o d e passa, e os Portuguezes não bebem d’ outro , porque e
mui bom, e a baixo preço. As pessoas principaes usam ás vazes do
vinho de üespanha, que íiaquella terra é mui cap .
Se se quer fazer vinagre deixa-se azedar aquelle liquido da pal­
meira por dez ou doze dias; e é tão forte como 0 melhor vinigre
que nós cá temos.
Pode-se n’ uma mesma arvore ter ao rae^o tempo fructo c vi­
nho. Mas verdadeiraraente 0 fructo então não é tão bom, nem em
tanta abundancia» Por isso nas ilhas de Maldiva, onde ha tantas des­
tas arvores, apartam e destinam algumas somente para tirar dellas
vinho, e não pode ter cada uma mais de dous ou tres cortes por
onde destille 0 liquido. Todavia não deixa de se recolher vinho á"
uma arvore que também dá fructo, mas é era pequena quantidade.
Tem esta arvore ainda outro prestimo e é que no alto delia ha
um talo tenro de dous ou tres pés de comprimento, que é bom para
se comer, e é doce como amêndoa, e eu 0 comi muitas vezes. Quan­
do as arvores se cortam para dar logar á fabricação de cazas, cor­
tam logo este talo, 0 qup nunca se faz n’ outra occasiào.
E’ também cousa mui admiravel que quando os cocos estam ma­
duros e seccos, se se pocm em logar húmido, ou na terra por es­
paço de tres semanas ou ura mez, a agua que ha dentro do coco
íorma-se n’ uma especie de pomo que c pela parte de cima de cor
araarella, e por deairo branco, tenro e doce quanto ser pode, c
desfaz-se na bocca. Os gulosos e curiosos da terra usam disto mui-

{ a) Ou de barro.
( b ; ja g ra se cUama esta especie dc mellaço,
( c) Aa«l ?
TRATADO DOS ANIMAES, ARVORES ClC, 379
tâs vcies, C0D30 de mdDjar mui delicudo, e dá-se muito ás crian»
ças. Este pomo é o germen do coco, que brotaria, e produziria
outra arvore, se lhe dessem tempo, porque o miolo que está dentro
da casca interior, como já disse, de naaa serve na geração da pal­
meira, mas sómente esta agua que está no centro é a que lhe for­
nece a substancia. O resto do coco apodrece, e para nada serve.
Fazem ainda outra sorte de mercadoria do coco, que se espalha
por toda a índia, e é mui cara, a que chamam C o p r a ( a ). Para
isto tomara o miolo do coco, partem-no áo meio, e o poem a sec-
car ao sol, com o que secca e encolhe muito, e se guarda pelo
tempo que se quer. Mettem-no em saccos , e o expedem a toda a
parte; tem mui bom gosto, e servem-se delle nos seus molhos e
sopa Exporta-se muito para a Arabia. O oleo que daqui se tira
é muito melhor, e guarda-se por mais largo tempo que o que
se tira dos fructos frescos.
Tinge-se de preto com uma tinta feita da serradura damadeira da
palmeira, que lançam de molho em agua, e lhe misturam mel da
mesma arvore, e a deixam as sol por muitos dias. Esta tinta é muito
preta, e muito boa.
Do pé dos fructos fazem pincéis para pintarem seus bateis, galés,
templos, e cazas, que pintam inteiramente, mas nunca fazem fi­
guras de homens, como já disse.
Vi frequentemente nas ilhas de Maldiva fazer infinito numero de na­
vios do porte de cem ou cento e vinte tonelladas todos desta ma­
deira, sem entrar nelles ferro algum, ou outro páo, ou utensilio que
não proviesse desta arvore. Até as ancoras são fabricadas desta mes­
ma matéria; são mui boas e mui commodas, e formadas de um páo da
mesma arvore, posto de travez, que elles vasam, e depois enchem to­
do de pedras, e o tapam muito bem, a fim de tornar a anchora mais:
pesada, e ficar mais segura em qualquer parte. As taboas do naviü
são presas com cavilhas que se ligam e cozem umas ás outras com
cordas fabricadas dos filamentos do fructo.
Alem disso quando estes navios são inteiraraente acabados, arma­
dos, e esquipados da madeira e do fructo desta arvore, carregam-
nos cora mercadorias que também procedem da mesma arvore, co­
mo cordoalha, esteiras, velas de folhas de palmeira, doees, oleo, vi­
nho, assucar, e outras cousas produsidas inteiramente desta arvore.
Estes navios vão assim carregados e esquipados em tudo dos pro-
diictos desta arvore entrando até os provimentos de bebida e co­ ií
mida, ou á Arabia, que dista oitocentas ou novecentas legoas, ou á
costa do Malabar, a Cambaya, Sumatra, e outros logares. .Duram taes
navios quatro ou cinco annos, fazendo muitas e longas viagens, com
(a) O auctor escreve Supparra; mas S u p p a rra ou su p p a ri é formada de
areca, e náo de coco. O mioio de coco cgriidç ^ *íCC9 ao 80l Cliama-se C«-
ii( m , cuífH , 0« mail vuig^rmaate Copra.
380 VUGEM DE FRANCISCO PTRARD

tanto que os vão concertando, e reparando.


Para fazer os seus-tambores vasa aquella gente um tronco desta
arvore até o deixarem hem delgado, depois quando apanham o pei­
xe que nós chamamos Raya, e que elles nunca comem, esfolam-no,
e com a pelle cobrem os ditos tambores. Estas Rayas são as maio­
res que ver-se pode.
Usam lambem deste páo como o mais proprio para polir e aça-
calar ou as suas armas, ou toda a sorte de utensilios de uso domes­
tico, assim de ferro como de cobre. Servera-se também da porcelana
pisada com azeite para esfregar, limpar, e polir suas armas, e outros
utensilios.
Por derradeiro direi ainda que ha duas especies de coqueiros, uma
cujo fructo recente é doce e tenro como uma maçã, e o da outra não.
Was os que assim são tenros e doces são mui raros, e tidos era
grande estimação; porem depois de maduros não são tão bons como
os outros.
Dilatei*me na descripção desta arvore, por ser uma das maiores
maravilhas da índia; e eu ter habitado cinco annos nas ilhas de
Maldiva, cuja principal riqueza, manlença, e commodidades consis­
tem nella, e a gente alli lhe sabe melhor aproveitar a substancia, e
fabricar delia diversos miraos e regalos mais delicadamente que em
alguma outra parte da índia. E em verdade não só tenho visto tu­
do isto muitas vezes, mas ainda comi e sustentei-me ordinariamen­
te destas arvores, e o que mais é, possui eu mesmo grande nume­
ro dellas, e das melhores, donde fazia extrahir todas as cororaodi-
dades que tenho dito. Por isso julguei que teria cabimento descrever
e explicar particularmenle o que uma tão longa e certa experien«
cia me havia ensinado.

FIM DO TRATADO DOS ANIMAES, ARVORES


381
AVISOS
AOS QUE QUIZEREM KMPREHENDER A VIAGEM

DAS INDUS ORIENTAES.


DA ORDEM E POLICIA QUE OS FRANCEZES OUABDAM EM SUA NAVEGAÇÃO.
«

BOS GRANDES ERROS E DESORDENS QUE ELLES NISSO COMMETTES,


GOM SEUS EXEMPLOS, E ÜMA ADVERTENCU PARA OS EVITAR,

por Francisco pyrard.

® q n e r m eraprehender a Tiagem
cnit Orientaes saber em que tempo e estação devem partir
-eja na ida, ou iia tornada, e de que cousas devam prover-se e ro’
MO devem dirigir-se para evitar os accidentes que de hora em ho-
ra sobrevem, como eu muitas vezes experimentei, direi sobre tudo
m t n h f p a l a v r a s de passagem, para servirem de conclusão a
nha viagem ; e tocarei um pouco nas desordens e pouca policia
que ha na nossa navegação, e no meio de as remediar.
hUrei pois em primeiro logar que os viajantes devem sobre todas
as cousas cuidar ern parUr a tempo proprio, alim de passar com
Jicidade o Cabo da Boa Esperança, e a terra de Natal, onde os ven­
tos e as tempestades são mui frequentes, e mui perigosas, nrinci-
pairaente quando se passam contra-monção. "
E também necessário escolher bons e experimentados pilotos
que tenham feilo e praticado a viagem por muitas vezes : e é bem
certo que se nós houvêramos tido um bom piloto, teriamos levado
ao cabo a nossa viagem felizmente. ”
o iá aguentado o mar
e feito algumas viagen-s, porque um navio novo, que ainda não es-
acontecer qualquer accidente n’
uma longa viagem, nao se lhe pode dar remedio. Alem disso pa­
ra fazer uma viagem bem ordenada, devem ir pelos menos quatro
ou cinco navios em conserva , um dos quaes só sirva para levar
mantimentos, utensílios náuticos, e outro apparelho e material pro-
prio para reparar os demais navios quando disso hajam mister- .H
distribmndo-se acertadamente os homens e os provimentos quando
chegar a sua vez, e abandonando-se o navio depois que íicar vazio
rara isto seria o mais adequado um pequeno patacho, porque é so­
bre maneira proprio para se chegar a terra, e ir a descobrir.
iNao acho que seja conveniente forrar os navios de chumbo, como
nos havíamos feito ao nosso. Porque, comquanto isto possa servir
contra o bicho, e atalhar ime fure o navio; todavia ficam a'^sim os
navios mui pezados. E os Portuguezes não se servem do chumbo
96
38 2 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

senão nas juntas e união das taboas. A folha de lata me parece mui
hoa para este oflicio.
E ’ lambem mister fazer provimento de agua doce muito m iis q u e
de vinhos, porque o calor é tão forte, que os vinhos mais accres-
cenlam a s e ie que a saciam; todavia deve havei os , e também a-
gua ardente, para se beber n is proximidades do Cabo da Boa Espe­
rança, que 6 sitio frio; e igualm ente para se guardarem para a tor­
na viagem , quando se chega ás alturas de Hespanha e de França.
Mas estes vinhos devem ser de Hespanha, porque os de França não
se podem guardar debaixo do zona tórrida. O que nós levámos es­
tragou-se logo que chegámos á linha.
E’ ainda necessário levar velas de cera, porque as de sebo der­
retem -se. D eve-se levar provimento de azeite de oliveira para a
nomida, porque é cousa mui sadia no mar, e alem disso mui pres­
tável para tempero e molhos; e semelhantemente é necessário ter
azeite de eoco para as luzes.
Sobre tudo é necessário poupar os refrescos e provim entos, por­
que sendo a viagem longa e d iflicil, sobrevem muitos accidentes e
enfórmidades, e entre outras a do Escorbuto. O que foi experim en­
tado por muitos dos nossos, que em très ou quatro mezes de via­
gem tinham, sem consideração comido e dissipado tudo ; e depois
sobrevindo-lhes algumas enfermidades não tinham nada para seu al-
livio; 0 que foi causa de morrerem muitos que não podiam comer
dos mantimentos do navio, que consistiam em carnes salgadas, bis­
coito, e peixe salgado.
Mas entre outras cousas deve-se estar advertido das enfermida­
des que sobrevem ordinariamente nesta viagem ; como é aquella que
é mui frequente na zona tórrida , c é uma das mais cruéis e p e­
nosas, que é possivel ver e sentir; o que eu sei pela haver e x p e ­
rimentado duas vezes, uma na ida quando chegámos á ilha de São
Lourenço, c outra estando em Goa, onde me accom m etleo na caza-'
cm quê me agazalhava, qae era a de D. Diogo Furta io de M en­
donça. Esta enfermidade c uma g ra n ie dor de estomago, que só dá
de noule, mas de um modo tã*o estranho , que quasi que se não
j)ode respirar, e não faz o paciente outra cousa mais que revolver-
.-;e e atormentar-se por causa das incriveis dores que sente. Isto a-
rontece ordinariamente perto da linha onde ha os maiores e mais
violentos calores, e todavia procede de frio, porque o calor excessi­
vo do dia attrahe, c faz cxhalar to lo o calor natural do corpo, c so-
hrcvi.ido a noute íica-se tão frouxo e tão abatido, que se não sen­
te 0 frio da noute, e adormece-se insensivelmente ao sereno, de sor­
te que com a frescura corre o frio todo á bocea do estomago , (jue
por esse respeito íica inchado e com dores. Este mal dura ás vezes
vinte e quatro horas ; mas não deixa de repelir 1res ou quatro dias
depois; e não obedece a outro remedio senão ao calor, como beber
bom vinho dc Hespanlia ou das C a p a ria s, agua ardente, agua de
e=a:icl]a, c outras cousas quentes.

'(
AVISOS PARA A VIAGEM DAS INDIAS CtC.
383

e bem c o S a de tS d
e a r d a „oute. E ’ ll^ar a® c;bt“a ‘‘e“ "aT p e“ as"com
Que igualmente o estoniago; para o
e L tofadas largas a raedida do estomago acolclfoidas
n f . f ni n ^l^odao, cem rmiitos pos cheirosos. E e co-isa cstri-
F i v X d r c a l o T ''' e
toca a outra enfermidade chamada pelos Flollandczes Fscar
^e
cezeses cchamamos
lfa t a X '! :;^ ^ ^ de terra, nao sei porque
mal ^ a qu noisrn (Solla
s'os orp.im
C :
mette no mar, c cura-se em terra; é uma enfermidade mui commiioi
nas longas viagens, e contagiosa, mesmo pela approximacão ou noi­
se receber o hal. to dos enfermos. Procede o r d i n ä r s te clL
de ongas da viagem , e demora no mar sem t o m X e r r a e f a Â
fd o ' L t : T i i : : ' / r - '“ p"- «v S
^ z r p r ::i
?aès s lo % s “^ s a s T o m l ® ao sereno da noulc;
Os que são feridos delia ficara inchados como hvdronico^ n a
mchaçao e dura corao páo,
ces, e pescoço, e todas estas partes se cobrem de san^ue^nizado de
co rh v id a e de chumbo; e são como tumores c contusões
os museulos e os nervos inteiriçados e tolhidos. Alem d?sso as <^00
f negras, e mm volumosas; os dentes abalados
e deslocados, ficando mui mal seguros, e até pela maior nn-ie oá-
em. Accresce a isto um hálito tão fétido e infecto quc^nin-^ueni
se pode aproximar do enfermo, e sente-se 0 máo chWr^o de um ex-
tiem o do navio ao outro. Não se perde 0 anetite Tmc n *
modo dos dentes é tal que não se pode conier% aívò cousas iiquH as'
poucas ha nos navios; e todavia lica-se tão esíainia Io e
tdo avido que parece que nem todos os viveres do mun Io basfam
para saciar a fome. »lan 10 oastani
Em (im ha mais incomino lo que dor, a qual pronriamen'e só se sr^n
te na bocea e nas gengivas ,'e rauitas\-ezesX^^^^^^^^^

ii

sr?
comecam a alterar-se e a uicer;ir-<Tí‘ to“ 1
í £ i£
as gtngiva>
pes, desraaio.ç, e dcsfallecimento de' nervos '’ °™
Quando csla vamos na ilha de São Lourm eo morreram dcsla doen
ça tres ou qua Iro dos nossos, e abiimlo-se-lbes a cabeca aebou sH b é
todo 0 cerebro negro, alterado, e podre. Os p .ib n õ l'ííc a ls ê c “o ' t
384 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

e engilhados como pergaminho que se chegou ao fogo. O figado e


0 baço engrossam desraesuradamente, e fazem-se negros, e íicam co­
bertos de aposlemas cheias de materia a mais fedida do mundo. Quan­
do se tem esta doença, nunca se cura, nem cerra chaga alguma,
antes se tornam gangrenadas e pútridas. Quando se anda embarcado,
e que esta enfermidade accommette, por mais remedies que se usem ,
tudo é debalde, e não ha outro senão sair em terra em algum a p ar­
te, se se pode, afim de se terem refrescos de aguas doces e íruc-
tos, sem 0 que nunca se pode sarar, faça-se o que se íizer. E ’ cousa
terrivel ver os grossos pedaços de carne podre que é mister cortar
das gengivas.
Taes são as enfermidades a que principal mente se está sugeito du­
rante esta viagem , e de que é mister estar bem advertido, para as
prevenir, ou curar o melhor que possa ser. Mas sobre tudo antes
de partir é necessário fazer provimento de sumo de laranjas e de li­
mões, para evitar esta moléstia do escorbuto, porque não ha cousa
mais eílicaz para lhe resistir que os refrescos de terra, que consis­
tem em aguas frescas, laranjas, e limões, como muitas vezes expe­
rimentei.
Alem disso é mister ser sohrio assim no comer como no beber; e
quando se chega a algumas ilhas onde se podem haver carnes frescas,
não é bom corne-las em grande quantidade, nem ainda as fruetas.
Também não se deve dormir m uito, porque o muito dormir faz
m al, priücipalm ente sendo de dia.
Demais disso, como já disse, deve-se partir em boa hora e esta­
ção, a saber, no principio de Março, porque se não se parte a este
tempo, acham-se calmas sobre a linha equinocial, e correntes de
agua na costa de Guiué, que causam a perda da viagem , como a
nos nos aconteceo, porque não tendo partido senão a 18 de Maio,
isso foi causa de ficarmos retardados nas alturas de Guiné mais de
quatro mezes em consequência de ventos contrario«. E se houvêramos
partido mais cedo, teriamos passado mui asinha; alem de que a cos­
ta de Guiné é doentia e intemperada, e por isso é mister que os que
vão á índia tenham resguardo de se não deixar abater na costa
de Guiné, porque é o logar mais doentio de mundo, donde mui dif-
ticultosam ente se podem safar por causadas calmas. Do mesmo mo­
do junto do Cabo da Boa Esperança acham-se ordinariamente gran­
des tormentas e ventos contrários.
Semelhantemente deve-se estar advertido que quando se vai para
a Índia não se deve nunca tomar terra para cá do Cabo da Boa E s­
perança, mas na torna viagem tem-se por costume somente ir tomar
terra á ilha de Santa Helena.
Na mesma tornaviagera é mister partir no lim de Dezembro , ou
principio de Janeiro para evitar os mesmos perigos , porque é ne­
cessário passar o Gabo da Boa Esperança no principio de Maio ou
antes, se poder ser. E porque nos não partimos de Goa senão no
ultimo de Janeiro, estivemos quasi perdidos, e andámos dous mezes
AViSOS PARA A VIAGe M DAS JNDIAS CtC.

á vista do Cabo sem o podermos dobrar, e incessantemente ator­


mentados de ventos contrários.
Será bom também levar sacerdotes para o exercicio da nossa re-
bgiao, e para assistir e consolar os enfermos, e administrar-lhes os
bacramenms da Igreja.
Passo agora ao que diz respeito á ordem e policia da nossa na-
vegaçtão, e aos grandes erros que nella se commetem, como na mi­
nha viagem cqnheci, e dos meios de os remediar.
Quando partimos de França levámos dous navios, um dos quaes
era a alm irante, e o outro a vice-almirante., O capitão-mór de am­
bos hia na alnurantc, e o seu tenente-general commandava o outro,
qjorque o capitão-mór levava comsigo no seu navio o seu tenente
particular; e o teiunte-general tinha também comsigo outro tenente
particular; de sorte que cada navio tinha o sen capitão, seu tenen­
te, com um piloto, um sota-pilolo, um mestre, um contra m estre ,
um mercador, um segundo mercador, um escrivão, dous cirurgiões,
dous dispenseiros, dous cozinheiros postos pelo capitão, e dous crea-
dos principaes. Havia também um mestre bombardeiro assistido de
cinco ou seis bombardeiros. Eis as pessoas do governo, c os offici-
.aes d^ um navio francez.
O Ca|)itão tem mando absoluto em tudo, e o primeiro mercador
lem poder sobre as mercadorias e cousas do commercio somente, por
que 0 segundo não é mais que seu ajudante, e para íiear em seu
legar se por ventura o primeiro vem a morrer. Por isso de cada of-
iicio ha sempre dous, o que avizadamente assim foi ordenado para
na talta de um supprir oeutro; o que se faz sem augmentar o orde-
m adq, mas so por h onra; porque os ordenados não levantam nem
diminuem nunca; e se um homem morrer no primeiro dia de
seu einbarque, os seus herdeiros serão pagos por todo o decurso da via­
gem . rsa nossa viagem os ordenados eram por mez, c antes de par­
tir pagavam -se a cada um tres mezes adiantados; e montavam estes
ordenados a metade mais de que costumam pagar á sua gente de
mar os outros estrangeiros, Inglezes ou Hollandezes, que guardam
em seus navios a mesma ordem que nós.
O C a p i t ã o t e m p o is m a n d o s o b r e t u d o , e o f e i t o r o u p r i m e i r o m e r ­
c a d o r t e m a seu c a r g o as m e r c a d o r i a s , e a b a i x o d e si u m e s c r i v ã o
q u e a n d a a o m o d o d a g e n t e d o m a r , e é p o sto p e lo d o n o d o s n a v i o s *
c o m o I g u a l m e n t e o s ã o os o u tr o s o fíic ia e s ; m a s este e s c r i v ã o n ã o t e m
t a n t a a u c t o r i d a d e e p o d e r c o m o os d o s n a v i o s p o r t u g u e z e s ; s o m e n t e
u.^seiita as m e r c a d o r i a s q u e e n t r a m e s a e m d o n a v i o p a r a v e n i a g a , e
n a o I c m o u t r a o b r i g a ç ã o . N o q u e to c a a o p i l o t o , n ã o t e m m a n d o
s e n a o s o m e i il e n as cou sa s d a n a v e g a ç ã o , c n ã o c tã o r e s p e i t a d o c o m o
os p i o lo s p o r t u g u e z e s . 0 m e s t r e g o v e r n a s o b r e to d a a g e n t e d e m a r ,
e t e m c a r g o d o n a v i o , e d e to d o s os u te n s ílio s e m a n t i m e n t o s , o q u e
t o d a v i a e u a c h o m u i t o m a l f e i t o , p e lo q u e o b s e r v e i , p o r q u a n t o elle se
cu n loia com o s d is p e n s e iro s .

97
386 VIAGEM DE FRANCISCO PVRARD .

Ora 0 mestre e contra mestre trabalham como qualquer marinheiro.


11a também dous creados principaes, que o capitão e o mestre esco­
lhem , e são entre todos os mais capazes e melhores marinheiros. São
encarregados de tomar conta da cordoalha, veias, apparelho, e outras
cousas do navio, e são elles que cortam e talham estas peças quan­
do é mister; e são os primeiros abaixo de mestre e contra-m estre
entre ag en te de niar , e mui necessários, Tem mando, sobre todos
os ma inheiros principaes, e moços do navio, aos quaes só elles po­
dem dar castigo de açoutes.
Quanto aos cirurgiões^ e boticários, são applicados somente aos de­
veres do seu cargo, e não entram na conta de homens do mar, co­
mo os outros oüicios. Porque entre nós não é como entre os Portu-
guezes, onde toda a outra sorte de gente, como bombardeiros, dis-
penseiros, cozinheiros, tanoeiros, carpinteiros, ferreiros, cozedores de
v e la s , e outros m ais, entram na conta de m arinheiros, e fazem o
jnesmo serviço que elles. Porque tirado o capitão e o seu tenente, o
leitor, escrivão, e cirurgiões , toJo o resto vigia de noute por seu
turno, e trabalha como os outros, ainda (pie sejam gente muito lim ­
pa; e vi mujtos filhos de cazas nobres, que hiam somente por seu
prazer, e não venciam soldada alguma, e todavia eram sugeitos ao
mesmo trabalho e fadiga que os outros.
Em quanto aos dispenseiros são dous para se ajudarem, por quan­
to. velam de noute, e dão de quatro em quatro dias pão, v in h o , e
agua a cada p essoa, começando pelo capitão , e acabando no moço
ou pagem, e a todos por igual, a sa b er, a cada um tres libras áe
biscouto para quatro dias, uma canada de vinho de llespanha, e tres
canadas d agua somente. Os outros mantimentos são cozinhados pe­
los cozinheiros para toda a g en te, c depois os dispenseiros os (iis-
tribuem igualmeiite nos pratos , c cada prato é para seis pessoas
cada uma das quaes leva o seu biscouto e bebida. A ’ mesa do ca­
pitão ba sempre alguma cousa d’ extraordinário e melhor e com
nlle comera mais de seis pessoas, porque todos os homens honrados
e de qualklade tem alli logar. O mestre não come á mesa do ca­
pitão, nem lão pouco o piloto. Escoliiem se seis pessoas de igual con­
dição para comerem juntas-
Eis aqui como nós viviaraos nos nossos n a v io s; mas o que eu
entre outras coasas achava que faltava alli era que os donos dos
navios devem pôr um superintendente para os maniimentos, o qual
■'í não estivesse á m crce do capitão nem do mestre, porque estes pu­
nham os dis-penseiros que muito hem queriam, homens de mão go­
verno, e que não ousavam negar-lhes nada do que elles pediam, com
temor de ser tirados de seus cargos. Isto íoi causa de que os nos­
sos mantimentos foram logo comidos e consumidos, e recresciam to­
dos os dias mil insolências e disputas n sta matéria.
Um dia depois do embarque o capitão e o mestre chamam toda
«a geuie do navio para arranjar a camaradagem, que é pôl-os a do­
us e dous, começando pelo capitão e tenente, até aos mais-infimos
AVISOS PARA A VIAGEM DAS ÍNDIAS GÍC. 387

moço?, e não se lhes dá outro nome senão o de marinheiro«! F q/q

lud o m t s u t , e outra o con ira mesire, para se reve 7'irom Pnv


<|ue q u a n d o uma p . r l e d o r m e a oulra velá e t r a b a t o nor c
(|uatro ou cinco lioras. N os nossos navios (hincezes nãó In ,1 w
ma'inlieiros, como ha entro os Porlu»-iiezes e «ão
todo» iniiae», e posto que haja alguns mais anti»os e"n n is éam zo-
que osoutros, naq se distinguem pelos nomes e ?iralid , d è r nns sÒ
em receberem maiores soldadas, iJim aues, mas so
Âlem disso, direi ainda livrem ente uma cousa, que já em outro Io
m toquei, posto que não seja honrosa aos Francez-s moi T Z \ .
advertir para que se corrijam c lhe non In m Z h Z 1’ ' ^
vi marinfieiros tão máos c viciosos c L o os nossos porqu'rnâ'nos“
sa viagem a niaior parte dos ofliciaes e mariidieiros S de sô.nt'
Maio, e quasi todos parentes; e não obstante isso n<ão havia de ' or
dinario outra cousa senão brigas e disputas entre e L e ’■
que dous homens mostrassem entre si henevoleocii ln W tin
lespeito. Ninguém queria obedecer a quem governava" Afora ’i s s o ^ l
que eu acho ainda peior era serem os maiores praguejadores e hhs
phemadores do nome de Deos que ver-se podia 3 r Í o r t ê au e^ m^^
iiao admiro de que a nossa viagem fosse tão mal succedida á vis­
ta das grandes ollensas que se corametiam todos os dias n oV n osso'
na\ios; porque a maior parle dos homens eram ehrios e com ilo's o
mais possível, e leríam cumido e bebido todos os mantimentos n’um
so úia, S0 Iho consentissem, sem lhes importar nada do futuro í)e
sorte que lod oso s refrescos que se levavam para oí paíticuh^^^^^^
paia acudir nas doenças e necessidades, estavam consumidos antes dp
passarmos a linha, e quando depois adoeciam, n ã r am i f c m n
q u e re fre s c ar-se senão com os m a n tim e n to s o rJin a rils do n a v il
c o m o os q u e g o z a v a m s a u d e . ao nauo ,
S ã o l a m b e m p e l a m a i o r p a r t e a g e n t e m e n o s d e v o t a q u e I n não
g u a r d a m a q u a r e s m a , n e m os d ia s d e j e j u m , c r o u b a m o c o n n r e
0 b e b e r u n s a o s o u t r o s . E n a v e r d a d e c o n fe s s o f r a n c a r n e n t e quj^^^^^^^^^
q u e i i a t r a t a r c o m a g e n t e in a is b a r b a r a d o m u n d o , d o q u e c o m "elles-
hh v e z e s n o m a is fo r te d a t o r m e n t a p ô r - s e a p ra o -iie ia r e
I d a s p b e m a r c o m m a i o r f o r ç a . N o d e m a i s s ã o b o n s s o ld a d o s T n S ^ ^
c a p a z e s d o q u e to d a s as o u t r a s n a ç õ e s d a s m a is a lta s c m -
p r e z â s d o m u n d o ; m a s n ã o q u e r e m o b e d e c e r , n ã o p o d e m padecer
q u a l q u e r p n v a ç a o d e b o c e a , n e m s o ífr e r c o r r e c c ã i P^^em padecer
Iodas estas cousas me fizerão desde o princípio ter má ooinião dn
resultado de cossa viagem ; e accresce que dilatámos muito a nossa
partida, porque em vez de nos embarcarmos por todo o mez de Fe
vereiro , como tínhamos determinado , a grande custo ò nmlmn:;
lazer no fira de Maio; o que foi grande erro; m a » u,n dos ndn
fcipaes e mais nocivos foi a nossa grande delonga depois de termos
VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD.

dobrado o Cabo da Boa Esperança. Outro erro foi igiialmente tomar­


mos por fora de iJha de São Lourenço, cuja causa foi que nos en­
tretivemos de mais com os navios hoHandezes, e tinhamos bonança,
dexando ir os navios á sua voutade, eom a maior parte das veias
feiradas, mas os HoHandezes mais tinos que n ós, seguiam sempre a
sua derrota para a costa d’Africa, e nós iamos atraz delles, e nesses
ties ou quatro dias cada um se esmerava em melhor se banquetear
( 0 que entra em pontos de brio dos ca[)itães ) ao som de trom be­
tas, e de muitas sortes de instrum entos, e surriadas de arlilh eria, e
era o navio onde se havia dado o banquete o que disparava toda
a sua artilheria quaudo cada um se recolhia a bordo do seu navio,
e se despedia.
Os flollandezes nos disseram que eram elles os que nós viramos
na costa de Guiné nas alturas de Serra Leoa. E na verdade cum -
pie confessar que elles são mais dignos de fazer esta viagem que
nós; porque os Francezes são mais mimosos , menos solfredores de
fadiga , e não poupara os provim entos como elles , que , posto que
ccmain muito, guardam bem esses poucos refrescos que levam para
quando encontram seus am igos, ou quando estam doentes; os nos­
sos porem em quanto tem refrescos não querem comer das victualhas
do navio. 0,s HoHandezes tanihem passam sem vinho, e não bebem
senão agua. Os que nós encontrámos não tinham mais de uma ca­
nada de vinho cada quinze dias, e nós tinhamos quatro. O seu bis-
coiito era todo negro, e o nosso como pão de cabido.
Nesta costa da Ethiopia vêm -se toda a noute quantidade de fogos
no cume das altas montanhas.
Mas não quero deixar de observar de passagem que os navios indo
de conserva, ou encontrando-se no mar a tal distancia , que não pos­
sam faliar de uns para os outros de viva voz, supprem esta falta por
meio de trombetas, e assim se fazem ouvir com o som destes ins­
trumentos tão bem como cora própria voz humana. E isto se observa
somente entre os navios francezes , inglezes, e hoHandezes,
Mas tornando ás desordens acontecidas na nossa viagem , o que me
dava peior presagio, como disse, eram as grandes oífensas que se
commetiam diariamente entre nós; o serviço de Deos não era aili de
modo algum observado, como vi que se observa entre os outros es­
trangeiros, assim Portiiguezes, como Inglezes e HoHandezes, e até
enire os Índios, que são muito mais observantes de sua lei ([uc nós
da nossa. Não havia outrosim entre nós senão bulhas, até mesmo
enire cs principaes, como entre o capitão e o primeiro m ercad o r,
que bateram um no outro, e estiveram mais de seis mezes sem se
íaliar, nem comer juntos; e se não fora a tormenta que nos sobre­
veio na terra de Natal, e que os fez pensar em suas consciências,
creio que se não lallariam mais em toda a viagem . E ainda en­
tendo que não fizeram as pazes com receio da morte , da qual
todos nos vimos bem perto, e não fazíamos mais que pedir perdão
a Üeos e ao mundo, e tratar de esgotar a agua do navio chegan-*
AVISOS PARA A VIAGEM DAS ÍNDIAS etC . 389

do a eslar quatro di;is e quatro nouíes sem velas sem lomp « c.


mastros; mas o >|ue foi causa de suas n S e s fo fà u r d e D O is ’de
fada a tormenta, tomou-se conselho e votos sobr3o q u ^ e r a ^ L s ír r

testado de toda a fe n te para fazer o seu rclatoiio depois de acih ad i


particular n“ o d e m píejudfcarT ó‘’ in!S^^^^^
« ijg . s " ‘. r i " , K ' i r d r s í S " !

r ís r d f ip ,!í:£ .r ■ ■ •r-
xa sem outra formalidade e dn mpc«.? i ^
fora. tirada a çaiva do tmucador, e re to 'm o t.v o 'd e '“
laipedim ciito á canna do lem e Voin P\oiivq de causar
caidxa, e de sua auctoridade absoluta repôr aJli a^^'sÎa-^
seram um a outro palavras pesadas / o m in i- l - ’ P*"'® ‘I“ ®
muito custo os sepat,ram K v t m s % S or“ d L ” l “ %*^ *
bom ; e o nosso canitão env^ u intrA
Crescente, a d a r a v i s o a M onsieur ^ bordo d e
sado npdin rirr lu • ^ ^ o n siG U T d t Ia B a i 'd c l i c r e d o ciue e n m « ; -
i M t z s e ' ^ ^
todos os princ paes So dL*^^ n tv in ? '“ '" '“
^ r
0 to'ndo
« <=®^o de
que ouvinSo o m e rca d tr.'Îô r.so ^ o trà sta c t " a r f e t o n l,“ " " ' “ “ ’ • “
ícute^lL^antoT“» Í lít fo ^ i^ h '
r p o f S e ’ ïe t t l S í r “ - '- 'ò í e l :

:" S a f r t S u tS s
primeiro que lhe pozessc niãn 'rn m ;-i/l P'^ote.lando que mataria o
queria parlir dalli fem qSe elle licL sV res^" mas^'ot^^P*'“ ''"®'''
era homem manso c benigno, posto nue fosso f-?
elle mémo ao capitao mór que ífie n e río a s s rp a ^ ’ supplicou
dosdous navios. O capitão mór a^nÓMin n ^
0 mercador não fez apreço alíum di*sA ^ ^upplica ; e comtudo
e orgullioso boniem q u r n S vi o A m ^
to d o l ^ vingativo, e brigão eom

0u í ! r p 7 o fc?í% fn ta ^ bulhas, e
bos, como se faziam entre^nós t'entas vinganças e ron­
de noute ao mar o fato uns dos oiifrot; '''” o ‘ nça botavam
seguravam as cainizas e outra m nm cordas que
maldade e travessura aue n^A somma mio havia especie de
doente, zombavam del?e com todá S í ”’
,b J “ y
98
390 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

diziam que era mais uma ração que se poupava nos mantimentosj
Maldiziam até a viagem, e a lo los os que a tinham emprchendido,
de sorte que não havendo alli nem regra nem policia, nem temor
de Dcos, desesperei totalmente do bom successo da nossa em preza.
E se é licito coiijccturar alguma cousa funesta pelos dias direi que
tomei nota de partir de Saint Maló uma sexta feira; em semelhante
dia parti de Goa, das ilhas de Maldiva, de Santa Helena, e do Hra-
2ÍI e nenhuma das minhas viagens foi feliz, como tenho dito.
Èmfim em quanto ao meu particular experimentei que sendo esta
viagem a primeira que íiz por mar, eslreei-me muito mal, poi en-
conlrar homens tão barbaros, tão incivis, e deshumanos; porque en­
tre todos os do navio Corvo, a cujo bordo eu hia, não conhecí um
só que fosse meigo e cortez, e que prezasse a honra por pouco que
fosse salvo o nosso capitão chamado Du Cios Ne uf , que era con-
destable de Saint Maló, porque era pessoa de bons costumes , mui
sabio principalmente nas mathematicas, e eín tudo o que diz respei­
to ao conhecimento do globo, e da carta nautica; de sorte que nin­
guém diria que era Maloino ( a ); pelo que nã^o era prop no para
fazer esta viagem, e era a primeira q^e íazia. Era homem letrado,
e tinha mais ar de cortezão que de outra cousa. Em somma era mui
brando e mui timido para capitão, e os de Sarnt Maló, que se co­
nhecem todos, e por isso se estimam menos, não faziam caso algum
de seus mandados; porque nenhum dc nossos capitaes tinha poder
d’ El-Rei nem do tribunal do Parlamento para administrar justiça;
e por isso cada um fazia o que queria. Alem disso era de uma com­
pleição melancholica , e assaz delicada e fraca
sendo para grandes fadigas , não tinha as qualidades requisitas a
"um soldado, e a um navegador. O que deve servir de advertência
aos aue querem emprehender grandes viagens , para escolher bem
os homens segundo suas qualidades e condições; porque e mister que
‘OS cabecas e os principaes de taes empresas tenham boas condi-
còes e bops costumes; e eu conheci como pelo máo governo e di-
reccão da nossa nos veio lodo o mal. . ,
E ’ também mister que o capitão seja homem de auctoridade , e
bem nascido, e que entenda da esphera, e da carta da navegação;
outrosim Uque
U lillU O llil U.V
seja soldado , e
^
que

supporte facilmente^ a fadiga ,. c
— » A ,
j
sobre tudo
fíK / u x \ y
y
que
^
tenha ___
poder __ n t \ á \ c k c í c k m n c o i i
absoluto sobre osm que
__ , _____ 0/1 Á A a
estam a seu car-
o em n tar_
go e até 0 de os conaemnar á morte. Porque se é da mesma ter­
ra^ e de baixo nascimento, não lhe têm respeito; e se elle inten-
ta'fazer*se respeitar á força , ha perigo de algum levantamento. A-
lem disso é mister que elle escolha homens das partes requisitas;
e sobre tudo que não sejam dados ao vinho, motins, nem bulhas;
norque basta um só bulbento no navio para perturbar fjjdo. Depo­
is deve pôr por dispenseiros homens lieis. Não deve ralhar com a

ta ) P« 5oríô H w ssn tp ií auptinemení íon Jíalouin, diz q originíib


AVISOS PARA A VIAGEM DAS INDJAS OtC. 391
sua gente senão o menos que poder ser, e principalmente como?
que tem algum cargo. Gratilique aos que procedem bem, e com ma­
is prelerencia aos bons marinheiros que aos bons soldados. Vi que
por uma bofetada que mestre deu a um bombardeiro Flamengo,
ramaram uma conjuração sendo chegados a Siimatra de fazer um
rasuino de polvora com um longo murrão para botarem fogo a toda
ü polvora do navio, e elles salvarem-se , como depois nos confessa­
ram estando nos naufragados nas ilhas de Maldiva. E ainda não
onstante havermos sido aqui todos presos, disseram o mais mal de
DOS que puderam ao rei das ilhas, e que éramos to ios ladrões , e
corsários, e que os haviamos trazido a elles por forca; o que toía-
Tia nao teve resultado, porque a gente das ilhas de Maldiva não
nos podia tratar por isso peior do que o íizeram. Isto mostra
como 0 desespero de um só homem é capaz ás vezes de perder
uma communidade inteira.
Por cima de tudo nunca é demais a estimação e recompensa que
se der a um bom marinheiro, porque se encontram poucos. Acham-
se muitos remolgos ( a ) que só servem para puxar os cabos, mas ma-
rinneiros são aquelles que apparelham, e fazem a manobra de um
navio, e vão sempre nas gaveas; e um bom marinheiro pode salvar
um navio mais depressa que um bom soldado.
Em íim é mister que um capitão ponha desde o principio boa ordem
no seu navio, e tenha sobre tudo cuidado de se fazerem orações a
Deos, para o que deve levar Padres, como já dissemos, e fazel-os res­
peitar, porque a gente do mar não trata cora respeito e honra a al­
guém senão sendo a isso obrigada. Faça tambera castigar rigoro­
samente os roubos, e principalmente quando são de cousas de comer
e beber, que é em que se exercem grandes ladroeiras.
Eisaqui em poucas palavras as desordens e inconvenientes que ordi­
nariamente acontecem entre nós, e que são causas de todas as nos­
sas empresas serem tão mal succedidas; ao que se pode dar re­
médio facilmente pelos meios que tenho exposto, e que podem ser­
v ir muito aos que d’ora avante quizerem emprebeuder taes viagens.

( a ) Cora este vocábulo do yso faraliar pareceo-nos que nos approxiraavamoí


â,o sentido do auclor, já que o não podemos verter exactaraento. Elle diz
íia llt^ jo rb in s, que hoje escrevera H ale-boubin es,

m DOS AVISOS PARA A VIAGEM DAS JNDIAS ORIENTAES,


392

DISCURSO
SOBRE AS YIAGENS ÁS REGIÕES RE5SOTAS,
E rO APEBCEBIMENTO NECESSABIO PARA AS EMPREUENBEB B IILM EN IB,
B FORBÂR DELLÂ8 BELAÇÕES EXACTAS:

Poi* 11. IV. IV.

O s que visitam as regiões mais remotas e menos conhecidas sem,


outro intento mais que o de observar alli curiosameute por si mesmos,
ou apiender da gente da terra tudo o que depende du natureza deK
Ja, e 0 natural, mudo de vida, policia, costiinies, usos, e industriai
dos seus habitantes, fazem na verdade mui bom serviço ao publica
cqmmuiiieando por meio de suas relações aos que não saem da pa*
tria 0 Iructo e a satisfação de seus trabalhos. E seria de algum mo­
do justo que os soberanos ajudassem ou recompensassem os que se
arritcam a estas viagens, Mas sem diminuir as obrigações que se
lhes devem, accrescentar-se-hiam ainda mais, se para viajar cora
mais prazer e utilidade para os outros e para si proprios, tomassem
mais cuidado, do que ordinariamente fazem, de se aperèeber de
tudo quanto é necessário, e de não se esquecer de cousaalguma c|ue
mereça ser sabida, e certiíicar-se tanto quanto é possível da veraa-^
de do que escrevem.
Poucas relações ba onde se não ache que seus aucíores tera
deixado, por nejfligeiicia ou por incapacidade , de observar, ou in­
formar-se de diversas cousas notáveis; porque a maior parle delles
empreliendem estas viagens com o espirito mal insiruido dos di­
versos conhecimentos que seria mister ter ad([uirido de antemão;
e alem disso cada um segundo o seu genio applica a sua curiosi­
dade somente áquillo que maior impressão lhe causa, não fazendo
caso do resto. O político inslrue-se particularmente do governo e da
ordem do Estado; o geographo observa a situação dos logares; o his­
toriador intorma-se do que se tem passado de mais notável; o natu­
ralista das plantas e dos animaes; o que é inclinado á medicina at-
tende ao que diz respeito a esta sciencia; o mercador applica o seu
espirito ao que é bom para o negocio; e o amador das artes ao que
neste ramo se pratica. Ora o verdadeiro genio de viajante deve ser
universal, e reunir todas estas dilferentes propensões na sua afim de
se imtruir igualmente de tudo o que o merece , qualquer que seja
a ordem de cousas a que pertença. Acha-se lambem nas relações
que nas cousas mais notáveis, de que ellas traiam, a qualidade da
injormação de que depende o grão de credito que se lhe deve dar,
não vem exactamente assignalada; de sorte que se não sabe que fé
mereçam.
Portanto os que empreheüdem viajar, se não querem commeitec
DISCURSO SOBRE A S VIAGEN S O tC. 393
AS mesmas faltas, que elles por certo tem notado em seus prede­
cessores, devem estabelecer regras e leis immudaveis, que constantemen­
te sigam, e ter sempre diante dos olhos o plano de uma viagem
eraprehendida com todo o apercebimento requisito, e melhor execu­
tada; e igualmente a idea e resenha de tudo o que entra no conhe­
cimento perfeito de um paiz, para formar delle uma relação capaz
de dar plena satisfação, o que é facil a qualquer pessoa, por pouco
que lhe applique a reflexão. Todavia tentar-se-ha de lhe delinear
aqui alguns traços.

D o a p e r c e b im e n to n e c e s s á r io p a r a v i a j a r u tilm e n te nas m a is r e m o ta s
r e g iõ e s ,

Suppõe-se que se tem dado providencia á despesa que é mister fa­


zer-se; ás cautellas que se devem tomar para não arriscar o viajan­
te 0 seu dinheiro no caminho, e não lhe faltar nos diversos loga-
res; ás comraodidades que nelles se podem prevenir; ás correspon­
dências necessárias; e a todas ás mais cousas semelhantes. Somen­
te de passagem se advertirá neste ponto duas cousas.
Uma é prover-se de muito mais dinheiro do que parece necessá­
rio, porque mais vale que sóbre, do que seja tão escasso que ol)ri-
gue antes a regular pela holsa a detença que se hade lazer em
cada logar, do que pelo tempo que for necessário para se instruir
bem das cousas. E não só se deve attender á necessidade , mas
lambera a que é mister fazer certas liberalidades a proposito, porque
os presentes, que tornam os homens oíliciosos em todos os paizes ,
facilitam muito o descobrimento do que se busca ; e por esse res­
peito muitas vezes o tempo e a detença abbreviada compensa bem
as despezas.
A outra é fazer conta de gastar muito mais tempo do que também
se julga necessário, a íim de não ver a maior parte das cousas de
corrida, ou de não deixar de ver as que o merecem.
Uma terceira advertência se pode juntar a estas, porque é mui des-
presada, e diz respeito de mais perto á pessoa do viajante, e é saber-
se este tratar a si mesmo das enfermidades e accidentes que mais se
devem receiar nas viagens, das febres malignas, das feridas e que­
das, a que poucos viajantes escapam, passando por climas tão con­ à
trários a seu temperamento, e caminhando sempre com algum perigo;
por isso devem ir providos contra estes males de alguns excellentes
remedios, os mais simplices, e de mais prompto efleito, e que pos­
sam ser preparados em toda a parte, se o viajante os não leva com-
sigo, ou lhe vem a faltar. Alem da necessidade que o mesmo via­
jante pode ter destes remedios, é ainda mui util poder acudir com
elles ás pessoas, era cuja companhia se acha, as quaes assim íicam
totalmente rendidas a bem servil-o.
99
394 VIAGEM DË FRANCISCO PYRARD

Suppõe-se ainda que os que viajam tem assaz de experiencia do


mundo para procederem bem; que tem assaz de moderação natural
ou adquirida para saber-se amoldar ás circunstancias rauto quan­
to é necessário aos que todos os dias tratam com gentes novas e
de toda a sorte de gênios; que tem ou por natureza ou par arte o
dom de se fazer Ioga bem querer e estimar daquelles com que se
encontram; que são precautos e circumspectos, e apparelhados para os
mais desastrosos accidentes, conservando o tino no meio da surpreza;
que tem exprimentado o seu vigor e firmeza em alguns perigos, oú
ao menos que se sentem cora animo bastante para não desmaiar nel-
les. Taes são as partes do espirito mais necessárias para viajar feliz­
mente.
O apercebimento porem de que falíamos tem por objecto as cousas
que se requerera da parte do espirito, para o viajante se instruir
perfeitaraente do que ha n’ um paiz, que é o fim que se propõe
quem emprehende as viagens.
O desenho destas longas viagens como se não forma, e se não
executa de ordinário arrebatadamente , dá também espaço
para se fazerem com tempo estes provimentos do espirito, se já não
estam feitos d’ ante-mão; e merecem bem alguns mezes de applica-
ção, aue para isso são necessários.
1. Deve-se pois de antemão ter da esphera, da geograpiiia, e da
historia natural mais algum conhecimento do que o que um homem bem
criado, e que tem cuitivado um pouco o seu espirito, ordinariamente
não ignora nestas matérias; mas mui particularmente e a fundo nas
do paiz que se vai visitar tudo o qus os antigos e modernos acerca delle
ensinam, para o bem verificar, confirmar, ou rectiíicar. Ter lido exac-
tamente todas as relações que houver do mesmo paiz, boas ou más;
saber o que os historiadores referem ter-se alli passado antigamente
de mais memorável, e levar comsigo os competentes extractos destes
auctores.
2. Para se ajudar destes conhecimentos , e juntar-lhe outros no*
vos e melhores, é mister saber servir-se do astrolabio para tomar
as alturas, e da bússola para marcar bem a situação dos logares en­
tre si, e 0 caminho que se tem seguido; prover-se destes instru­
mentos exactos, bem feitos, e commodos, e da melhor carta geogra-
phica do paiz que se tiver feito.
Saber tirar a planta de um sitio campestre, e de uma cida­
de; e designar sofiVivelnaente tudo o que um sitio campestre contem,
como igualmente plantas, animaes, e maquinas; e para este elfeito
saber servir-se dos instrumentos mais commodos e mais simplices
que nisso se empregam, do compasso de proporção , quadrante , e
outros ; e até saber formil-os em caso de necessidade; e sobre tudo
riscar uma carta geographica bem exacta do paiz por onde se tem
pissadi). Alera disso para extender a vista mais ao longe , e desco-
f)rir logares de que muitas vezes se não pode approximar o viajan­
te, não devem esquecer bons oculos dever ao longe. Convirá mes-
discurso sobre as v u g ek s etc. 39 5
l " a L a ' q L “ e lte qualquer que seja a dis-

Dhf donde'"se ' d qu',ndo^rctqa"prox.mo ! T

r . ‘- S í ^ e t t r
K £4?t-- A^^acfíTiots £ S f -
do commum, como igualmente das diversas
pode ser mui util a de soht^r f^ypr
cn artes
^ a jte s, entre as quaes
rl ‘
es que se podem e n c o m rt^ L m gem !'“'“ ^
0. Ter adquirido a'gum conhecimento da liugiia do nai/ nn,i„
se vai ou daquella que ahi é entendida pela maior Mrte dã cê^
t^e , cultnal-a quando para lá se caminha pelo au-ilio dos hvfes*
ou de alguém que a entenda, se por acaso se podè éncontr ^
por qualquer outro modo; pois a vantagem que^damif resi fá n ?l
SC pode assaz estimar. ® ^ «aqui resulta nao
6. Senão se tem todas estas luzes e conhecimentos Hpvíí
curar de os supprir associando-se a alguém uue os nossin^
sa pessoa e docij, razoavel e nronrii n-im pav» e se es-
zade, alem do auxilio que se^ ganharem tod^ n^
prazer , e consolação de^ uma tal corananhii o^^casioes, e do
melhor instruído de todas as cotisas nefss Intpc mlinitamente
dão um ao outro os companheirofde^ vuagé^^^

0 que em uma viagem sc deve fazer e observar melhor do oue se


costuma. ^

V
ger^alfmaVetu S ie T c L * V c 1 rta “ q u a ll' s f p L l p t r íf c íf T
lha™osvfaJa“ut“ s!' V e mais V '
1. Por que elles ordinariamente esquecem ou flesnri»<am a-

» “ ,ir r v í; r r ,; ^ .; i
qualquer parte em que se ache n os dilFereutcs ohipftnç^a’
V S s V
«m pai. e do seus luhitaatvs, se redaz a’ o'%a'pUufos segmn'«“ “ “
396 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

A ’ natureza do paiz, que comprehende o clima, sua situação, e


extensão, temperatura, disposição em montanhas, collinas, planicies, rios
etc. qualidade de terra fértil, esteriletc. o que produz de mineraes, plan­
tas, arvores frucliferas, cereaes, e animaes de todas jis especies. Os
homens accrescentam a isto a cu ltu ra, e a habitação era cidades
v illa s , c aldeas.
Ao natural dos homens que o habitam, seu temperamento, dis^
posição do corpo, saude, enfermidades, idade a que chegam, genio,
jnclinacões.
A ’ vida privada segundo as differentes condições da gente das
cidades, do campo, dos ricos, e dos pobres, seus mantimentos, ves­
tidos, habitação, moveis, cazamentos, modo de viver com as mu­
lheres, educação dos filhos, costumes, convivência, brincos e diver­
timentos , applicaçôes ordinárias , artes, commercio com os povos
visinhos ou remotos, moedas, pesos, medidas, sciencias.
Ao governo; o soberano, sua casa,^ corte, forças do Estado, ren­
das, milicia, allianças, interesses, oíiiciaes de policia e de justiça.
A ’ historia, o qúe é antigo e moderno, as revoluções, e outros
successos notáveis; mórmente o estado actual das cousas publicas.
A’ religião, a sua introducção, auctores, diversidade, alterações, e
mudanças, estado presente, seus ministros.
De tantas matérias, de que o viajante deve tomar conhecimento,
só delle depende aprender alguma cousa em toda a parte, e de toda
a sorte de gente, se se applicar a isso como cumpre,
2. Porque as cousas se aprendem ou pela oHservação própria ,
que é a via mais segura e satisfatória, ou pela relação de outrem;
deve 0 viajante, tanto quanto lhe for possivel, preferir a primeira,
e não poupar nisso nem tempo, nem trabalho , nem despesa; e
reportar-se sobre q que não pode saber por si cabalmente aos que
por sua profissão tem mais conhecimento da m atéria; por exemplo
e da gente do campo que deve averiguar o que toca á colheita dos fru-
ctos , e cereaes, e de que modo isso se laz, assim como sobre os
animaes bravios e domésticos; dos médicos e droguistas o que res­
peita ás drogas; dos que pertencem á corte , ou nella tem vivido,
ou que estam ou tem estado nos cargos da paz e da guerra, o que
tocar ao governo assim no tempo passado como no presente, dos
mercadores o que se extrahe do paiz , ou a elle vem de fora etc.
notando a qualidade das pessoas, se foram conformes ou discrepan-
les nas suas relações etc. para não assentar sobre esta informação
senão uma crença proporcionada á confiança que nelias se pode ter.
3. E ’mister tef muito resguardo nestas informações para não for­
mar ideas fabas das cousas por má versão de interp^tes ignoran­
tes, ou pelo pouco conhecimento que se tem da lingua, mas sobre
tudo pela propensão que ha de julgar os costumes estrangeiros pe­
los nossos, 0 que traz apoz si muitos erros, que se evitarão toman­
do informação de muitas pessoas bem conhecedoras da mesma cou­
sa, se se lhes sabem fazer as perguntas para perfeito esclarecimento
DISCURSO SOBRE AS VIAGENS CtC. 397
• to da matéria, e se só depois disso se faz a ccmparaçao com o que
entre nós se lhe assemelha. Se se podem receber" memórias escriptas
de quem é capaz de as dar taes, não se deve ommittir, porque serão
de proveito mais cedo ou mais tarde, quando se encontrar um me­
lhor interprete, ou se tiver aprendido melhor a lingua.
4. Como todos os dias, todos os logares, e toda a gente com quem
se trata instruem o viajante que é attcnto e experto, deve elle todos
os dias sem fallencia encher o seu diário.; porque estando ainda en­
tão a v ista como presente, e a memória bem fresca, nada fica em -

esquecimento,.nem se omraittc circunstancia alguma importante, como


ordinariamente acontece se ha qualquer dilacão no assentar do dia-
jrio; e disto se deve fazer uma lei inviolável.^
5. Este diário sendo como o thesouro do Viajante, deve excluir
•delle as hagatellas que o avolumem inutilmente, é só assentar o que
0 merece, e seja notável e instruciivo,
6. í*or isso mesmo que é o seu thesouro não deve o viajante ha­
ver nada por mais precioso que o seu diário; e para o salvar dos riscos
que corre, é mister que o tenha duplicado, ou mesmo triplicado, para
ter sempre uma copia conisigo, outra no sua bagagem, e poder de
tempo em tempo deixar uma terceira em mãos boas e seguras,
7 . Entrando ágora na enumeraç.ão do que O viajante deve mais
particularmente observar ou averiguar alem do que se costuma, como
0 provam ns relações, que córrem no publico, é mister que do pa-
iz que se percorre, á proporção qíiò se vai caminhando, se note a
natureza e qualidade, até Onde a vista se pode extender á direita e
a esquerda; se è plano ou montanhoso; coherto de arvoredos ou raso;
.cultivado e habitado, ou inculto e deserto etc. de sorte que se pos­
sa fazer uma idea particular delle. para ajudar a qual deve riscar u-
ma carta do seu caminho, guardando hem as distancias e situações
dos logares, que íicam á direita e á esquerda , taes como se offére-
cem á vista; e esta mesma carta pode servir de carta geral do pa-
iz juntando-Hie as partes que elíe não vio, determinando a mais e-
xacta situaçao e extensão dellas segundo a relação uniforme de mui­
tas pessoas. Os nomes dos paizes, e dos logares, qiié os naturaes
vulgarmente usam, lancem-se .escrupulosamente no diário como elles
os pronunciam.
Sobre este ponto deve-se ter advertência de observar com toda a
exactidão possivel a hora dos eclipses de lua que houver, para sa­
ber precisamente a longitude do paiz, e a distancia a que fica do
nosso ( onde o mesmo eclipse não deixará de ter sido observado )
pela differença da hora da observação. E ’ também bom observar a
declinação da agulha magnética.
Se se extrahem mineraes ou mefaes em alguma parte, não se de­
ve deixar de ir a esses logares, e averiguar hem por si, ou inqui­
rir dos outros tudo o que pode dar algum conhecimento de sua ge­
ração, e das praticas de que se serveni para os apurar, e saber se
iOO
398 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

ellas são mais industriosas, fáceis , c proveitosas que as nossas. Se


se enconlrarern destas matérias, de que por ignorancia, ou por ou­
tro respeito se não faça caso nos proprios logares, experimentai-as,
pois 0 descobrimento dellas pode ser ulil a quem o faz, ou a quem
souber aproveitar-se da noticia.
Observar as arvores, e animaes que nos são communs, notanao
as suas diíTerenças dos nossos em certas cousas, melhor do que se
faz ordinariamente; e outrosim, as especies das arvores silvestres , a
qualidade c belleza da madeira etc. as plantas medicinacs; e ate os
mais pequenos insectos. ^ i •
8. Em quanto ao povo indagar se é são e vigoroso, de longa v i­
da se 6 isento de alguma das nossas enfermidades, se as tem
particulares, e^de que reraedios se serve proveitosamente naquellas
que nos são communs. O tempero dos m p ja re s , e bebidas dos r i­
cos e pobres; o modo particular das edificações, seus materiaes, e
disposição,, os moveis das cazas, modo de conversar no estilo serio,
e no e*stilo jocoso. . , . .
9. Se ha ahi alguma arte mais excellente, ver trabalhar os me­
lhores mestres delia onde elles são mais estimados; notár se a ex-
cellencia das obras vem da. industria , ou da bondade da matena
prima, e descobrir as delicadezas e os segredos da arte, se possí­
vel for, para os trazer á patria. • r^ j n
10. De que obras ou matérias do paiz se faz negocio fora delle,
e para que partes; e o qjne os estrangeiros alli levam de fora; o peso,
quilate, forma, e nome aas moedas que alli correm, das quaes cum­
pre referir as diversas especies, particularmente o valor proporcional
da prata com o ouro, e o preço dós outros metaes; as medidas e
pesos evactamente referidos aos nossos mais communs.
11. Aprender até aonde puder a lingua, e escripta dò paiz. Se
alli não houver grammitica e diccionario, compôl-os; se ha livros,
saber de que tratam, e quaes são os mais estimados; adquirir alguns,
c fazer traduzir por um bom interprete os seus togares mais notá­
veis para dar a conhecer o genio e o- espirito da nação.
12. Se algumas sciencias alli são cultivadas, intruir-se nellas por
via dos que as professara com maior applauso; c não se contentar,
como tem feito os qtte até agora tem viajado na Persia e nas ín ­
dias de notar que ha ahi medicos e astrologos, e que os mercado­
res fazem suas contas de ura modo inco^mparavelmente mais facil e
mais prompto que o nosso, sem terem tido a curiosidade de saber
os prmcipios da sua medicina, nem da sua pratica na cura das en­
fermidades, ou quaes os seus melhores remedies; os fundamentos
de sua astrologia e suas regras; se é a mesma que a dos Árabes
ou differente etc. e sem ter aprendido o seu methodo de con­
tar .
13. Na historia de paiz tanto quanto se pode saber até ao estado
presente distinguindo bem o certo do duvidoso por meio dos livros,
;>c 03 ha, da tradição commum, e das relações particulares.
DISCURSO SOBRE AS VIAGENS etC. 399
'' Í4 . Da religião saber ao certo quaes são os proprios sentimentos
da gente, e não se fiar somente no que se pode conjecturar ou pen­
sar por comparação com a nossa, porque dest’ arte se acha o via­
jante de ordinário mui distante da verdade.

Das Relaçòcs.

U m diário exacto, onde nada se ommittio daquillo que o viajan­


te deve ver por si mesmo, ou saber dos outros, contem os mate-
riaes suflicienles de uma Relação exacta e completa, mas desvai­
rados. E porque a boa razão c o uso tem feito conservar nas R e ­
lações a forma do diário, mas mais vaga e mais extensa, como ma-
is agradavel, por quanto parece ao leitor que vai viajando com o
auctor, que lhe serve de guia; não é mui difficil de arranjar a Re­
lação , sendo apenas mister apanhar de diversos logares do diário
tudo 0 que pertence a cada assumpto, desprezando o que é de pou­
ca importância, e pdl-o na ordem mais natural, e no logar em que
fica mais ageito, o que depende da primeira oceasião propria que o
curso da viagem oíTerece, para se enfiar tudo na narração , como
se de uma só vez se houvera aprendido tudo quanto nessa materia
se sabe.
A advertência que nisto ha a fazer é que não seja o viajante tão
escrupuloso da historia que ponha na Relação todos os menores ca­
sos que lhe tem succedido, e por esta razão se lhe aconselhou que
os bannisse até do seu diário, por quanto o leitor não se importa com
essas bagatellas, c só se lhe deve dar conta dos accidentes notá­
veis e instruetivos.
Concluindo observaremos que se deve determinar bem que milhas
ou legoas exactas se entendem quando se marcam as distancias , e
a grandeza das cidades, segundo a diíferença commum que dá dellas
uma idea certa, podendo-se pouco mais ou menos , por exemplo ,
fazer as grandes de seis milhas ao menos, as meãs maiores de tres
milhas, e as pequenas menores: explicar as medidas e pesos que se
empregam , nos logares onde se acertar de fallar nelles , e o valor
dps moedas. E porque se faz frequentemente menção destas cou-
sas n’ uma Relação , bom é pôr-lhe logo no principio uma adver-
leicia separada , que possa ser logo manifesta ao leitor.

riM DO DISCURSO SOBRE AS VIAGENS.


400

DESCRIPÇÃO EXACTA
B A COHTA B ’ A F R I C A .

A parte d’ Africa que corre desde o Estreito de Gibraltar até ao


Cabo Branco, no mar oceano, é um costa que vulgar e erroneamen­
te se chame Barbaria, mas que todavia o não é, porque a verdadeira
Barbaria é no mar mediterrâneo, e é a costa que começa em Trir-
poli, e segue a Tunis e Argel até ao Estreito; mas a *costa que
diz sobre o mar oceano desde o dito Estreito até ao dito Cabo
Branco, é verdadeiramente a costa da Mauritania , e assim se deve
chamar por ser a costa dos Mouros. Esta costa c região de Maurita­
nia abrange tres reinos, Fez, Marrocos, e Suz.
Fez tem por capital uma cidade do mesmo nome de Fez, e por
porto de' mar Tetuão,.‘.que é um pouco dentro do estreito, Tanger,
A rz ila , e Ceuta, Earache, Mamora, Salé, Fudela.
Tanger é hoje dos Inglezes, Ceutai e Mamora dV El-Rei de Hespa-
nba, e as outras praças de Mouros.
O reino de í}Jarracos tem por capital a cidade do mesmo nome
de Marrocos, e por portos de mar Azamor, Mazagão, Houladilia, e
Saíim. Mazagão e’ do Rei de Portugal, o mais dos Mouros.
O reino de Suz tem muitas cidades no sertão, o que os outros não
tem, porque um tem só F e z , e outro Marrocos,, a trinta ou quarenta
legoas no sertão, mas este reino de Suz tem alli a capital Tarudau,
e alem delia Tagaunest, Onfroy, e Illeng, e por portos do mar Mogador,
Santa Cruz, e Messa. Os Mouros chamam a estas praças pelos mes­
mos nomes, salvo Safim, que chamara Aaçffy, e Santa t r u z , que cha­
mam Agades.
Estes tres reinos tinham cada um antigaraente o seu rei ; e houve
dous, a saber, o de Fez, cujo nome não sei, e o de Marrocos cha­
mado Muley Hamet, que foi na batalha que elles ganharam contra o
Rei de Portugal D. Sebastião para as partes de Ceuta e Xarache.
Estes reis reinaram em quanto foram assaz poderosos para repellir
a gente da campina que é dividida em tribus. O chefe ou ancião da
tribu, que e’ quem a governa, tem o titulo de Xeque, ou Capitão;
habitam em tendas, e por Aduares, sendo cada aduar a reunião de
quarenta ou cincoenta tendas dispostas em circulo; os, rebanhos fi­
cam no meio; e uma tribu terá trinta, quarenta, e ate cincoenta adu­
ares, mais ou menos, segundo onumero de gente que contem.
Estes reis eram obrigados a sair muitas vezes em campo com e-
xercito, se queriam ser pagos da garama ou imposição a que cada
tribu era obrigada , e ainda assim difficultosamente* cobravam seu
pagamento, porque estes Arábios emmalavam as bagagens, e se pas­
savam a outras terras, e mesmo resistiam se se sentiam com for­
cas.
B E S C R I P p J o DA COSIA d ’ AFRICA 401

ze^nín^cavalVoV^^P e quin-
dar«altos^P rnm»«r.r^ coDgregado muitas Iribus passaram a

fe T u o s ^ ^ K r : S^^e^s
là r^ c re ir';'» “
de^nbrTraTos“‘^ íc ,!« * possuído por muitos chefes
ouc Gueilhau dn= especialmeute por Xeque Bembonker, e por x t
Slamoraf SaTé, e Fu3ella®*ou" K í a ® e ® f *'®
Tetuão Tanffpr « Arl-n e o segundo para as partes de
Os Mouro"®de lató Z a ^ ? ± '®!? ® P” >>eipal fortaleza.
Hespanha, que vieram no a n í f riTÍfiOft*^'': Mouriscos expulsos de
dita costa da Aíauritania i ® Passando ao longo da
dade de Salé em grLde’ nSmm áquella ci-
dinos, como tamhem Andaluzes , como Grana-
Divan. Os Mouros rermlní^í^^^^^’ ^ <“J*Jg‘r8ni em republica e em
Salé velha, e os ditos Mouri«fríI« r ^ g*’3Dde cidade que se chama
que se chama Rieval MetiP^Pm ai "^'^«de nova .
corsários por se vincarem díí guarniçao na fortaleza, e fizeram-se

I t^ rn ^ ^ m a rT té tra Z q rd ^ e

ísu s";". r..fíL?'áí!! " “'■•s "*■li. X

tendo reduzido os Arabios^o P^^-


a Malhorca, onde todos os cbrícii-^*” opaeamentoda garama
e HolIandezesTaficaC DeuoL d f f; ® Inllezes.
ram guerras entre «i de «nr»o*^® morte os seus parentes tive-

s s „'s i c £ £ r,“ H ' " “*■“


s : '5 .^ i é ’ ’s s ~ i . í S ‘í ; S !
mui?o trabalho èm reM ní aos*^®AÍ,rS P” '®® ““ ^eve
iraugeram a sair de Marrocos,
com certa quietação até 1630 ^
\
fuSr pa?a Safim“* i I S ’» “ ®®” ®
^ ’ todavia remou

u ã^^elV ® m ai/® L 1res“a u ís e t "®"'“, “ “'®^ Abdemeleck, que


eez. Era mui cruel MiilAv^Fuf» f morto por um renegado fran-
procedente de uma m m i r í c r ^ i r m ã o , que era branco.
r a :e T fr m \ d t ;t iu o r d ;r o \ t u ? r “»®^ ®"®-
!0Í
402 TIAGEM DE FRANCISCO PYRARO

Seguio-se no reinado seu irmão mais moço Muley Hamet Xe((ue,


0 qual sendo tolo entregue a seus a nores os Arábios da campina ,
da mais principal tribu, que alli h a , chamada dos Chibavettes , se
levantaram contra ellc, e se apoderaram de Marrocos e da bella ca*
za ou serralho, chamado Cebrohé , e alli mataram ao dito rei Mu­
ley Ilamet Xeque, ultimo filho do dito Muley Zidan. E o chefe
da dita tribu dos <Jliibavettes , chamado Crommelhunte, se apoderou
do reino, ha couza de dois ou tres aniios somente, e é quem ho­
je reina em Marrocos na qualidade de tyraiino. E ’ senhor do por­
to de Houladilla; poz sitio a Safim , mas não tem podido tomal-a,
ao menos não ha novas disso.
O reino de Suz não tem andado em menor de^orJem; ha cinco*
enta annos a esta parte que alli duram as guerras c iv is : cora tu­
do ura principe do paiz, chamado Cidy A lle y , tendo prevalecido
reinou trinta annos. Tinha a sua residência em Illeng, e raorreo
não ha mais de oito a dez annos. Deixou vinte e dois filhos, e al­
guns irmãos , que todos andam em guerra uns com outros , e
dominara em diversos logares , um em ThearunJem , outro em On-
frey , outro em Tanganor , outro em Illeng; e um dos irmãos do de­
funto c senhor da fortaleza de Agades ou Santa Cruz ; e os outros
íinalmente percorrem a campina.
Não tem havido Cônsules neste paiz; senão somente em Sale e
em Tetuão, desde que Salé foi e.recta em Republica ou D iv a n ; eá
sombra de Salé foi recebido um era Tetuão sem haver opposição de
Xeque Gueilhan, nem de Xeque Bembouker. Muitos se apresenta-
laram a Muley Zidan para exercer este cargo; entre outros um cha­
mado De Mas em 1617, outro chamado Fate em 1619, e em 1622
Maret , que não foi acceito, porque o rei não quiz tolerar que alguém
alem delle imposesse algum, tributo nas suas terras, o que elle de­
clarou a Monsieur de Razilly em 1623. Em Suz nunca, se apre­
sentou ninguém por Consul , por quanto as guerras são causa de
não haver quem vá a este reino. Alguns barcos de Provença vão
negociar a Tetuão e a Sale, onde não ha mercadores francezes, nem
tão pouco em Saíim e Uouladilla ; e se os ha, é para fazer seu
negocioa bordo. Em Santa Cruz ha uma caza franceza.
A Cidade de Marrocos é pelo menos do tamanho de Pariz, não
mettendo em conta os arrabaldes; mas é mui vasta, e tem dentro
muito espaço vazio. E ’ situada n’ uma planicie a sete ou oito legoas
áquem das montanhas, que se chamam o Atlas , das quaes parece
estar-se mui proximo quando se está em Marrocos, porque estam
bem á vista, e se distinguem os seus cumes cobertos de neve em
todas as estações; todavia ha pelo menos sete a oito legoas do pé
destas montanhas até á dita cidade de Mariocos.
Destas montanhas descem muitas ribeiras pequenas de bella e boa
agua, que primeiramente vem regar ura jardim , que se chama
Mecera pequeno, e ahi formam um grande lago mui bonito, que tem
DESCRIPÇÃO DA COSTA d’ AFRICA

hera mil pés quadrados. Esta agua passa depois a outro jardim ma-
ior, chamado
lado EEll Abessera, que é_ cheio
......... ....................
de ruas de laraiigeiras , li-
moeiros, palmeiras de tamaras, oliveiras, amendoeiras, figueiras’, e
romeiras, entremeiadas de arbustos de jasmim, e outras flores chei­
rosas. Destes dous jardins, que são públicos e de uso conimum, es­
ta agua passa ao bello palacio do rei, chamando Elbedeh , onde se
diz (porque não entrei nelle ) que forma quatro lagos, abaixo dos
quaes ha quatro jardins, o topo de cujas arvores toca ao rez da bor­
la dos ditos lagos, de sorte que estes jardins estam em baixo e os
ditos lagos em cima, bem compassados, ficando um jardim entre do­
ns lagos, e um lago entre dous jardins.
Os reis de Marrocos dão ordinariamente suas audiências debaixo
do gande portal deste palacio; assim como se faz em Constantinopla.
Alguns reis tem havido, que depois de ter feito recolher as mulhe­
res em seu serralho por sua camareira mór , que se chama Lanssi
Ramena, tem dado audiência dentro do palacio a alguns embaixa­
dores, mas mui raras vezes, em uma longa sala, cuja abóbada e pa­
redes são cobertas de fino ouro da grossura de um ducado, alem da
qual sala ha outros muitos bellos apozenios, segundo nos contavam
os eunucos guardas do dito palacio , e as mulheres judias que alli
entravam a levar os provimentos.
Contigua a esta caza ha outra, que se chama o Michouard , onde
residem os Elchats ou renegados, que acompanham o rei quando
sáe. Ha também outra caza que se chama das Rachas , isto he ,
caza do dizimo , e a esta caza são obrigados os mercadores chris-
tãos a acudir com todas as suas mercadorias, eahi o Lumina Sul­
tão , ou thesoureiro d’ El-R ei hia receber o direito Lehetel isto
é , 0 direito ligitimo, convem a saher , de cala dez fardos de fa­
zenda iguaes um, e assim no demais. Ha ainda outras cazas con­
tíguas, mode moram os alcaides eunucos, e outros oíliciaes , e ainda
um jardim commum , no qual ha uma caverna de leões, e tudo isto
n úm grande recinto murado, chamado Aliá Seba (a), como cm Paris
0 Louvre.
Junto a esta cerca ha uma grande mesquita, do comprimento de
cem passos, e sobre esta mesquita uma torre quadrada, da qual sáe
pela parle superior um grosso varão de ferro, em que estam enfia­
das très bolas de ouro; a primeira mui grossa, a outra de cima
menor, e a outra mais décima ainla menor , as quaes bolas de ou­
ro, principalmente a debaixo, e a mais grossa, estam amolgadas
de muitos pelouros de mosquete que lhe foram atirados, e ainda
em algumas partes passadas de meio a meio; porque não são massisas, mas
somente da gtossui’a de um dedo; do que tendo-me eu admirado,
e perguntado a mouros velhos o motivo porque se haviam atirado
estes tiros de mosquete, me responderánv que haviam sido os sol-

fa; Será—Afcaíf6a ?
m VIAGEM DE FRANaSCO PYRARD f,*:

.'íí-
dados de Jacob Elmançor quando tomaram a cidade que os haviam
atirado ; e perguntando eu ainda porque não tinham elles leva­
do aquellas bolas, disseram que o não haviam ousado a fazer por
serem sagradas.
No extremo desta mesquita ha uma sala em forma de capella ,que
é onde são sepultados os reis de Marrocos, e nella os Chrislãos entravám
livremente acompanhados do porteiro, eahi vi muitos monumentos que
não sul)iam a maior altura que dous óu très pés somente acima do
chão. Esta sala é de abóbada, a qual, e as paredes são cobertas de
mosaico concavo , cujas concavidades são douradas de fino ouro da
grossura de um ducado.
A quinhentos passos deste logar ha um grande recinto murado ,
do tamanho de Magny, o qual he a Judaria, onde ha muitos Judeos,
que tem svnagoga ; e boas cazas. Tem só uma porta , que se fecha
á noute. e" se abre pela m anhã, debaixo da vigilancia de um especi­
al encarregado.
A cincoenta passos dalli ha uma grande caza , ou por melhor di­
zer prizão , que se chama Segena , que é onde estam os pobres cap­
tives christãos, edonde saem pela manhã para ir ao trabalho, e fi­
cam encerrados á noute.
A mil passos dalli ha um grande recinto de cazas, chamado a
Alfandega, e é onde assistem os mercadores christaõs, na qual cada
nação tinha os seus aposentos quando alli assistiam ; e esta caw
era lambem sugeita a ser fechada á noute, e aberta pela manhã,
para o que havia um porteiro, que disso tinha cargo.
Ha também neste bairro uma grande mesquita, que tem uma am­
pla torre, a qual se diz ser semelhante a outra que ha em Sevilha
em Hespanha , e fabricada pelo mesmo archilecto. Não entrei nesta
torre, mas asseveraram-me que quatro cavalleiros a M r podem subir •'rt-
até ao mais alto delia , e ainda uma carroça o pode fazer. í:
Perto dalli ha uma grande cerca onde está a prizão dos Albauros,
e junto delia muitas cazinhas, onde mettiam os mercadores cliris-
taõs e judeos, que o tinham merecido. . , > 3
Em toda esta grande cidade não ha todavia mais de dous juizes,
um Cadv, que é o juiz do civel, e um Jlaquin, que é o ju izd o
crime. O Cadv sentado á porta de sua caza, ou dentro do seu pa­
tio dá andiencia ás parles verhalmente, as quaes logo julga, e man­
da dar á execução a sua sentença verba[, porque não tem escri­
vão, mas ha junto dclle citairios, que são uma especie de raeiri-
nhos que vão dar á e.xecução o mandado , ou raetter na cadea o
condemnado. E porque alguém se poderá admirar da facilidade com
que qualquer pessoa faz comparecer perante aquelle juiz a outra par­
te sem citação nem intimação, cumpre saber que quando unaa pes­
soa tem apregoado na rua a outra pessoa com as palavras Aoi sei
chera, isto é, vem á justiça, é mister que esta vá logo sem deten-
ça, porque aliás correria risco de ser apedrejada pelo povo, que
DESCUIPCAO DA COSTA D AFRICA 405
não aclia coiisa alguma mui razoavel do que comparecer em justiça.
Quanto ao llaquiu ou juiz do crime , tem diante da sua caza
um-a grande praça onde lia pranchas, e páos arvorados, no alio dos
(juaes ha ganchos de ferro , em que se espetam os (jiie Scão con-
demnados a este suppiicio. \garrain n’ um homem pebs pés , ou
pelos homhros , e m-no sobre estes ganchos, e seja (jiial íbr
0 logar I or onde H[ue preso, assim o deixam ate morrer, de sor­
te (jue é melhor para o padecente íicar cravado pelo logar mais
mortal. Este ílaquin lem também em sua caza espadas em cabides
para cortar as cabeças , e bordões para bastonar os menos crimi­
nosos. E como elle tem ordinariamente muito que fazer , e a cida­
de é grande, ha um seu tenente, que esta n’ uma tenda perto de
Yalcaseba (a) , o qual da sua parte exerce a mesma jurisdição.
Esta cidade é mui grande, mas as suas ruas, e a apparencia das
cazas não são melhores que as das nossas villas. Tem algumas :a-
zas bonitas; mas a maior parte não tem mais que um, ou dous an­
dares ao muito. As ruas não são calçadas, e por isso são lama­ iv.l
centas quando chove , e cheias de pó no verão. Desde Abril até
Outubro não ha alli chuvas, mas grande calor de dia , e grande
orvalho de noiite.
Os Mouros são mui ciumentos, e não imaginam que possa haver
mulher honesta; e por isso não vão uns ás cazas dos outros sem
ahi estar o dono délias, c esto ter manlaJo recolher suas mulhe­
res.
Deixámos as aguas das montanhas no palacio do rei , chamado
Redel. Dalli estas aguas vão regar e prover a dita cidade em mui­
tos logares, e depois saindo delia entre as duas portas chamadas do
Cany e de Duquella , juntam-se , e formam um no nias vadeavel ,
í|ue corre para oceidente a entrar no mar enlr Mogador e Saíim.
Este rio chama-se o Tausit.
Antes de sair de Marrocos não cáe rml fallar de algumas acções
de Mulcy Zidan , que alli rclna\a, quando eu lí estive. Houve um
dia grande briga entre os caplivos franccics da Semana , entre os
quaes havia grande numero de Provetiçaes , e de Uociielezes. .A-
qiielles faziam as suas devoções a um cuit) laS ig aiia, on lc havia
uma capcila, c alguns Padres também caplivos lhes diziam alli mis-
.sa; no extremo opposto estavam os ou lro', que faziam as suis
devoções a seu modo em seu> cubic ihs. Os Provcne.ics amotinadas
foram perturbar os Uociielezes, sobre o (pie hmve tint) barníno
que 0 Alcaide da Seguia se vio obrigad > a dar co:iti a Muley Zidan,
que mandou lhe levassem dous de cadi parte , o que foi feito ; o
logo os mercadores francezes correram a elle para interceder cad i
um pelo seu partido; mas o rei depois de ouvir as partes, e saber
que a briga era sobre pontos de religião miiidou (l,i,ir a cada um

( a) X lc a íe b a ?
m
VÍAGEM DE FRANCISCO PYRARD

t-incoonta açoules oe bastão nas nadegas , é pòz defesa ciiie Jienhiini


niais se niettcsse coni os outros, sjb pena de morte , querendo que
cada um exeicitasse a sua religião, ja que e!le para isso lhes dava
permissão.
|\o anuo (le 1()22 veio a Marrocos um embiixador dos Senhores
hstados, um Eslri.beiro do Principe de Orange, e um di'Cipulo de
Joiisieur Erpeiiio., Iholessor de lingiias orientaes e estrangeiras em
b e}de, todos com presentes, que ío:am mui agradaveis ao ilei Mu-
ley Zidan, mas principalmente o do dito Senhor Erpenio , <{ue era
nm Atlas , e um Novo Testamento em arabtgo. Foi-nos contado pe­
los eu niicos que a juelle rei não cessava de ler no Novo Testamento.
L tomo este embaixador se liia enfadando de lhe não darem despa-
cfio, íqi acoiiselliado cjue apresentasse ao rei um requerimenio o
qual 101 leito pelo discipulo do dito Erpenio, chamado GoÜo, em letra
c língua arabiga , e cm estylo christão . 0 rei ficou maravilhado da
belleza deste recjuerimenío , as.-im pela letra e iinguagoni como pelo
Cístvlo extraordinário, c não conhecido naquella terra. Convocou os
íaiiyres, ou escrivães, e lhes mostrou o requerimento, que elles
admiraram ; e chamando o embaixader , perguntou-lhe quem havia
leito 0 requnimento ; o embaixador respondeu que era o senhor
COiio , discípulo dq senhor Erpenio . 0 rei quiz vèl-o , e faliuu-liie
em arabigo; o discipulo respondeo em hespanhol que entendia muito
bem tudo 0 que S. M. dizia , mas cpie lhe nOo podia responder na
mesma língua pelo não ajudar a garganta , porque é mister fallar
tanto com a garganta como com a lingiii; o (pie o dito rei
que entendia muito bem o hespanhol, achou mui bem dito, e con­
cedendo 0 que se pedia no requerimento, mandou dar despacho e
a\lamento ao dito embaixador para sua tornada; e hoje o dito sc-
imor Coiio esta em Leydc professor das iinguas orientaes em loírar
do dito í^enhor Erpenio.
Em 1623 Mou'ieur de Razilly sendo chegado ao porto de S a ~
íim com tres navios de El-Hei , fez saber qiíe vinha da parte de Sua
Magestade. Muley Zidau lhe enviou dar as boas vindas, e lhe es-
creveo que podia sair em terra com mais vinte companheiros . M. de
Kazilly julgando que a carta coutiiiiia o que e!le havia pedido, dc- .
zenmarcou com quarenta pessoas, tres frades capuchos, e muitos
bdagüs, levando algumas rabecas e trombetas . Doiis dias depois
mandou orei prendera todos, e mettei-os na cadea , excepto ao
Senhor (Ic Hazilly e aos tres írades capuchos, chamados Pedro
a Alençon, Miguel de Vesius , e Uodolpho , e escreveo ao ditoSe-
nhor de Hazilly para vir a enconlra!-o no seu almohada ou exer­
cito; 0 que elle íez , eahi se queixou dc que os seus homens houves­
sem sido presos contra o s guro que Cile lhe havia dado por sua
carta . Muley Zidan lhe disse que lesse hem a carta, e veria que
elle nada lhe havia promettido , e que se (.'idifero queda sua parte
lie enviara , havia dito outra cousa, que o desmentia; que em subs-"
DESCRIPÇÀO DA COSTA d’ AFRICA
407
ííjeca. qi?e um ProlTnraMhe sous moveis e a'sua l)ib!,o_
nhocs lhe haviam tomído o í^rta ia ,e que os
íiavia alli Ihul-s de S n t o ’ ® Escurial. Disse'^nue
^^eíahcch, e que pretclídem"^^^^^^^^^ chamam cídv
D eclarou q u e deseja\a que o S e id m r i(f?{ 17 n ^'Earrocos.
D a h a l h a s s e p o r lhe h a v e r a . í u e j i e s Eranca , e
■^leur d e R a z i l i v l h e p r o r n i u e o f i 7o í n ^ " » e n í o do R e i . ' M o n -
p a r a l e v a r os f r a d e s an, chos P ed io -Z

tanto que os mercadores com


seiítal-o dentro de ^eis m e/P- ■ ;Catcsscm e se obrigassem a aore-
Z

les (lel)aÍTO(la clausula i.ue se cNe nàTím”'''^*


jnezes, licariam cíes-ncarre-mdns rmr d o s seis
hxoa em seiscentos diicados^^de ouro \Jujcf 7 Ho ^ que se
cadores tmham razão. Monsieui de H l i L
conseguio, de sorte que não tendo vo Tido
res pagaram a somma estipulada do rma « / 1 niercado-
taçao, a qual sendo levada ao p ’idi*a i Muley Zidan lhe deu c/ui-
iu,r a som',na ,„o a d à f ; . “ a e ' í ; f ' < f c c S ’ '»»ndou‘ r S
e oh“ ! t„uóTla. ';Í Vany
mercado dos cavallos, porque fóra dLtí-''nnl';f d “ ''' ''“ <^■ ■ "■ «'>3 0 ,;
es, mouros e os arabios compram cava ^ om campo onde
eoira; a outra porta tira o no ,“ d? "» ear-
A província de Dunuella «cá ao ma.ÇI á " “ fronteira,
ieste. Em ínianlo n TjtUíiat u^te, assiui como a de I)orí n
ouvi fallar d^lla como de pVo^uhín ^ chamam Tuííilélv
c jaz entre Fez e o nnr mnliíf dependente do r e i n o d o Fe? ’
reino; todavia talvez li,o chamem^d^invf ehamar^-l/ic
e liugia , <|ue tainbcra se chainam reiiiná P aV Argel
â a « r S .'- - '- « • « «K „ t t
estiveram cm '^Mai-roáol*'tf ám páz ’ cm f “ P“ ^eas que
A a n - o c o s , e que M a i T o o o s cra „ , à j “ m ?s e S
dífícada, e as suas casas se semelhavam óc^ melhor e-
ISao sei que território possue ^ e m . a " H e s p a n h a .
domina no p^iz que corre desdo^^TntnTr^ > oius sei hem que
zilla ; e não ha mais d ^ d o u s on 4 .. d ’ Ar-
Tetuao por as.alto a tempo L a u e Z i T Z apoderou de
vam no rio , os quies vendo r ^ a ev
jtilgaram que estavam perdido«;- í . v . l • ‘oil homens
do Gueilhán ll.es c n í i o K o , qáe ■ X lè Z '^ '1«^"-
servar o coniraci-cio. Tomada a cid-i lá ,« '|U8 queria con-
negocio. Ksta cidade estii X r e s leXlVdA® " so
«m pequeno rio por onde os barcos ,,,,0 ^ “ '' '''' « ‘ e™
)-em com custo. £ ’ verdade qne Ladcbe X l e n á e a T íe i Z ' í l Z
408 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

panha, e igiialmente Ceula desde a ultimi revolução do reino de Por­


tugal, porque o Governador della permaneço na obeliencia de lies

'‘ ‘^Tancfer nada Valeria scni o porto (jue or


nicio do imr raollie, quo Ihcs hade custar grossas “
dcrein liar em Gueilhan , porque quando elle
dará commandar as suas tropas por outro Xeque , c < 1 ,
é a sua tribu, mas outra tribu de aVrabios frilioirrv da R iinha
Monsieur o Cavalleiro Giielind^ley, :J
dp Inr^Iat^rra c one a^ora tem tornado a Taurrer, m • (libbe lu pou
CO q u f ^ vlce-aliriranre Lawson o Governador e Tangcr c urn
Engenheiro haviam uma vez estado em coaferen.ia n unu tenda
B ^ m ‘l ^ d e dous exercilos, o d3 Gueilhau comp .sto- de vinte m.l
cavallos e o delles que não passava de mil homens; e uizendo-lae
cu qu^ êlles haviam iommetild). um gran ie X r i ^ u e X n os-
disse que bem o haviam conhecido depois; e que o dito Gueilhan
havia obrigado a prometter-lhe de o irem a visitar a saa lortaleza ,
d’ À?zilia," masque só lá foi o Engenheiro a levar as escu as do,
outros, e que se todos tres l.i houveram ido, nenhum d. Ia lor

Ceuta e em Larache não hi porto senão Itío se


porto de Mamom è mui bom, c todavia El-Ilei de IL,panha nao se
serve delle e nao lira dalli proveita algum. ■f
Salé é uma cuscada com barra , onle podem entrar navios
duzentas tonelladas em boa conjunção, e com auxiho de P'^^tos^
Em Yudella podia-se fazer, segundo dizem, um porto,
nlli uma lingua de terra que sae ao mar, mas nao tem
nem povoação, nem. fortaleza, c a que ha é a tres legoas acima t e

^^A:amor c um pequeno porto para barcos, e máo; e não ha alh


senão somente pescadores. . . „
Mazanão que íica acima, a dez ou doze legoas do Gabo de Can
sin é uma [»equena cidade hem murada, e guarnecida de arti 1 1 -
na ’ em cuja fortilicação não assistem ordinariamente ^
o u ’ tres miseráveis Portuguezes de guarniçao, que muitas
tem n ã o ;e todivia tem resistido a muitos milhaic» de Moiuo... ^
Arábios que não lendo uso de peças de campanha, de pedreiros,
d r ò s M i . são incapazes do tomar cidades muradas, morjuen e
mído cilas tem artilheria ; mas por outra parte a guarmç^o uo
deve sair a campo, porque os iM/auros c Arábios, grandes cavatlei-
1 0 3 , e muito numerosos, são destros em emboscadas, e cm cortar

" Aciuude .Mtv.agão a i ú o, H » d a i ü l a , pequeno porto


ou Mvios meãosTeten b ua entrada nn penedr que a torna diKi-
Gil Nlo hd a!li mnis que umi fortaleza , e a l i e a .
Não estive em tida cua costa desle o Estreito ate ao
dc llouladUla; e o que d-elU dige é tiado no q-ie ouvi em conver..
d k s c r ip c a o

e'rivT "cm SaHiif' ' m i í Í c ' “ ‘’T • O^anJ«


•sm
SCI' a1 Safini.
Sal ’ ® « dalli pas-
c iniia cidadc situada n’ um alto, bcni niurada c nrnvidi»
; e m nlliena, Imula.Ia cm IÖM pcios Por ug,,e e r s e g u : . d o o S
do le i-ciro Muecsta iia lon-e maio!-do eastello^le ein a '’S 10 ^ 0 -
to n.ayomentc uma enseada, boa de verão, e má de inlimo
iloqadot e inn poito pequeno abrigado por um ilheo c ondenodem
eiilrar navios de duzenlas ou trezentas lonelladas. ^
i,u '' ■ "" / " ‘Í " ou enseada solfrivel • a for­
taleza e n unia ponia de terra imii alta, e a povoaeäo tèm läo
d a f o r u d ä 'r ‘' "S'"'"® ‘1"« oo Pö
J / m a e uma cnFcada que nada vale, c aonde só se vai quando
A„aues e Melipa estani de guerra: fóra disso todo o negocio se faz
na enseada de Santa Cjuz ou Agades. ^
Sendo voltado a Saíim perguntei algurras vezes a velhos mio In
y.ain entrado na batalha dos ties Reis, de que falle a
.iniguvam que fora feito de El-Rei Dom Sebastião de P o r t l à l £ -
jserinmme que nao tendo sido acl.ado entre os moitos futeava se
i ! ! i " d ? ' e n l r o os c o p t i v o s l no an-
O (ie 101J coiieo rumor de que o dito Dom Sebastião depois dc
iiiiilos annos de captiveiro se havia salvado para as partes de Argel
e liincs; mas os mercadores lies|tanhces diziam que era um impos­
tor que tomara o nome de Dom Sebastião, mas que o não era^ e
que (.cmo (al havia sido tratado; o que dava assumpto a grande de­
late entre os mercadores de diversas nações que estavam em Saíím
(pie não^ ’ querendo uns que fosse Dom Sebastião , e outros

deste paiz , ó quasi semellianle desde Tetuão


ate . anta Ci iiz e Alessa , salvo ser o trafico maior n’ uns logares que
ein outros. O que alU se leva de fora é ferro, pannos, toda a s Ü
tc de roupas, pi])el, quinquelharias, fazendas de ca lellista especLias
c iliogas de linla., ; e 0 qnc ,,e extraho é ouro . ctra, c o n i ' !
d( a\ est. uz, e amêndoas, gommas, alcaparras, e outras fazendas.
Resta dizer algunm cou.^a da Religião dos Aíouros, e de sua ma­
neira de lazer oraçao São, como todos sabem, Mahometanos; mas
tem [)C.o menos uma duzia de Santos que invocam; acima de todos
poem Mahamet, que assim chamam ao seu prophcta, e não Mahomet.
Quando querem fazcT o seu Sala, ou oração lavam os pése as pernas
ate ao joelho, e as mãos e bra.os até aos cotovellos, deoois asseiitam-
se em ten a, com 0 rosto para o oriente, tendo umas contas na mão de­
pois mvocam 0 seu ( idv Mahaniet, supplicando-lhe (pie interceda por
elles. depois ( idy Rcllabecli, que dies dizi m serSanto Agostinho - e
a-^sirn outros muitos; e a cada um se prostram por terra, tocando com
a cabeça no cbao taiUas vezes ((uantos são os Santos que invocam
103 ’
Ir

410 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD

e c n qiiaiilo passam taiis as caatas. Miltena até eatrc os seus


a Nosso Saiilior, soboQoma <lo Gtdy ISayssa, que
ser um grande Santo. E qiiaodonos lies perguntavamos bequem eie
nascera, respondiam que da M a r i e m , Virgem Mana; e q^anjo nos mais
Dies perguntava nos como eile fora concebido
respondiam que do sopro de Deos; ao que replicando-lic 1
pelo sopro de Deos se devia entender o Espirito de Dos, e qi e p
coase {uencia Nosso Senior sen lo nascido da Virgem, ^ .
Espirito Santo, era certo que era com o Padre e com
Deos e urn só Deos eternameiite bemaveuturado; nao o podiam,
iiemqueriam comprebender; e nos refutavam com injurias.

FÍM
INDICE
O A SEGtJIViîA P A R ' î ' e .

Pag
P R E Â M B U L O ...................................................................................... j
C A d iU L O 1. C h e g a d a a O oa. U escripçào de seu
h o s p i t a l , e p' ri soe' ^. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
CAPITU LO I I . D e s c r i p ç à o d a li ha de G o a , e d e s e ­
u s h a b i t a n t e s , e d o m i n a d o r e s .................. . 23
CAPITU LO III. D a C id a d e de G o a, suas praças,
i g r e j a s , p a l a c i o s , e o u t r o s e d i f í c i o s ....... . . 33
CAPITU LO IV. D os m ercados, escravos, m oedas, a-
g u a s , e o u t r a s c o u s a s n o t á v e i s d e G o a ........... 5 [
CAPITU LO V. D o governo de G o a, do vice-R ei,
s u a co rte, e m a g n i f i c ê n c i a ..................... 03
CAPITU LO VI. ü o A rcebisp o de G o a, Inquisição,
E c c le s ia s tic o s , e c e r im ô n i a s , q u e alli se
o b s e r v a m ....................................................
CAPITU LO VII. Dos exercícios e jogos dos P o r-
tu g u s z e s , M estiço s, e outros C hristaos e m
G o a ; e de seus usos e m o d o d e v i d a , e de
s u a s m u l h e r e s ............................... 94
CAPITU LO V III. D o s soldados portuguezes em
G oa; de seu m odo de vida , e em barques;
de suas diversas exp ed ições; e ordem que
guardam n a g u e r r a ................ lOo
C A PIIU LO IX . D o Reino de Dealcão, Decan, ou
B a l l a g a t e n a v i s i n h a n ç a d e G o a . ... .......... 114
CAPITU LO X. V i a g e m do auctor á ilha do Ceilào,
6 d e s c r i p ç à o d e l i a ......... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124
CAPITU LO X I. De M alaca, sua descripçào, e do
m e m o r á v e l c e r c o , q u e os H o U a n d e z e s l h e
p o z e r a m ....................................................... 131
CAPITU LO XII. D a s ilhas d a S o n d a , S u m a t r a , e
J a v a ; d as c i d a d e s d e B a n t a m e T u b a m ; i-
Ihas d e M a d u r a , B a l l i , d e M a l u c o , e B a n ­
d a ....... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13G
CAPITU LO XIII. D a s c o u s a s s i n g u l a r e s , q u e se
ex tra h e m das ilhas de S u m atra , J a v a , Bor*
néo, e das P h ilip p in a s e M a n ilh a . D a C n i -
Pag.
n ■ ). e ilo J a p i T o , e d o t r a f i c o , q u e d e s t a s
p a r t e s s e i ' a z e i n G o à t ........................................... ^ i iîi
C A lM rG L () X IV. Da í’o f > m a e f e i t i o d o s n a v i o s
p o r l u g u e z e s d a c a r r e i r a d a I n d i a : e (ia o r ­
d em , e polícia q u e a b o r d o d e ü e s se
g u a r d a , assina n a i d a c o m o na torna
v i a g e m .......................................................
C \P I 11'íiO XV, D o t r a f i c o d o s P o r t u g u e z e s p o r to)-
(ia a í n d i a e m g e r a l , e d a o r d e m q u e n i s s o
g n a r d a m .........................................
( A! Í I L Í X ) X V I . Do trafico no Brazil, Rio da Pra­
ta. Angola, (' ongo, S . Th o mé , Alina, e dos
escravos d ’ A f r i c a ..................................... j 90
C A P IlU L O X VÍÍ. D o t r a f i c o ern M o ç a m b i q u e , S o -
íala, C u a m a , A lelind e, iMornbaça, S o c o to rá ,
e outros logares. D o cerco de à ío c a m b iq u e ,
e 0 q u e d e l i e r e s u l t o u .................1 q c
CAPITU LO x y ill. D o r o i n o d e O r m u z , snâ d e s ’-
c r i p ç a o , e d o c a s t i g o d e urn P r i n c i p e d e
O r m u z e m G o a ........... . -
C A I'IÏU I.O X IX . D,, ., , e i n o s d e C a m b ; ; ; ; ' S u ' r l ®
rate, d o G r ã o M o g o r , D i u , e d o resto d a
costa da ín d ia e M alabar; do R e i de
CAPITÍTT p e r f í d i a ................................ 914
u t i l l . JAr A X . iMuitas p resa s de n a v io p o r t u g u e -
?es, e outras c o u z a s s u c c e d i d a s na L u l i a
í" l í M T r i J ^Icteve ein G o a . . 229
(. R m b arq n e do auctor em G o a .
R atad o das ín d ia s n a q u elle tem po. Prisão,
d o auctor, e seu livram en to . C h e g a d a de
í ’A Pi:rirr ® outras cousas a este intento. 2 :U
^ X X íí Partida de G o a; m odo dos e m ­
barques; ração a bordo; tr a ta m e n to do auc*
tor; b i c h o s d a í n d i a ................. 9 i0
CAÍ IIU í/) X X íIÍ. Torna- viagem doaucior; avista-
se a Ilh a de D io g o R o d r ig u e s : to rm en ta
horrivel: p ied o so s a c c id e n te s ; T e r r a de N a ­
tal; C a b o d a B o a E s p e r a n ç a ; t e m p e s t a d e s ,
e c a l m a s .............. 9 .0
CA IT T U L O X X IV . ] l h a d e ” “s a n t V * H i d e n a ’ ;' ‘ .^uk
descripçuo o e que alli
nos succedeo___ 255
Gã i IIULO XXV. Parlida de Sania H elena; acci.
I e n te s u c c e d i d o ao navio; m e r g u lh id o r
^^ancez; c h e g a d a a o B r a z i l ; p e r d a d o na*
C Arpj[’U L o XX VI *
* « * * * r ............... *................
Brazil, e suas sin gu larid a-
aconteceo em quanto
a u c t o r la e s t e v e . . . . . . . . . . . 0^7
G AM ILLO X X V ir, S a ld a do B razil;'V ern am bü co;
i lh a s dos A ço r e s; B e r ie n g a s em Porlii-
p i ; grande tormenta; Ilhas de B ayon a;
jo r n a d a a S. T t n a g o ; regresso do auctor,

a d d e n d u m . * " . . . . . . . . ..............
O B yE R V A C O E S G E O G R A 'p H 'l'c'A S so b r'e'a'via gm 'n V i;
P ran crsco Pyrard p or P. D «vai, G eo gra p h o
^ a E l . R e i d e F r a n ç a ....... ^ ^ 900
OISSERVAÇÜKS s o b r e a s e g u n d a o a r t e ..................... nno
T K iT iO O B O E SC R /M O

ZIZcT » ‘ ■• ■'«I- por


C A P i T i i t . 0 1 - D o s . E l e p h a n t e s e ' d o s ’ i V A r e ' s ....... "n'i’
G ap. tu lo I I . D o s C r o c o d i l o s e T a r l a r u o a s ' ■ ■ ■ ^57
C a p i i u l o I I I . D o s P e i x e s d o m ar iiidico, e e'speciai. ^
li!** ilh a s d e M a l d i v a ' o^q
G ap.tu lo I V . D o s P a p a g a io s , e d e um^Passa^rA
r' a d m ir a v e l q u e se cria n a C h i n a oo f ,
G ap. tu lo V D a P i m e n t a e d a G e n g i b r e - d a ' A f a V s k
f e d ’a C a n e l l a
C a p . tulo V I. D o A n il on Indigo, do 4 h“ '
-’ « 2

A m bar-gr.s, Benjoim , Sandalo. e p d o l ?

C a p .-p u l oVII d A s ' T a 'm 'a ’r im lA s ,' 'ck'n'a'fi's'u’. i a ' '


e M irabolano« 'Anarisiula ,

' B ^ V 'e j" ■ j’ - ' t e , ' d ; - E b ; ; ; , ; - d o


netle, e d a a r v o r e d o alo-odao •. • ■ifir-'-
C a p . t ,; l o X . D a s B a n a n a s e A Í a n a z e s ' .. . . . . . . . . . . oml
C a pitu lo X - D o ^ .............
e .M a,;^gas
C .ipn iLo X! D e m m tas arvores e p l a i . t 'a V

C a p , t u .. o '" x I i "•-DL e' e:".’


^ c r i “p c! a 'o ' ' ’"
nun
p a rticu la r do
a tv o r e a d m , r a v e l ,„ .e dd o s ' cô e o s , a qm U
104
Pag-

por si p r o d u z to d a s as c o m m o d i d a d e S y
c cousas necessárias á vida do h o m e m . . 37I
A V I S O S aos q u e q u i z e r e m e m p r e h e n d e r a v i a g e m
das índias Orientaes. D a ordem e policia q u e
os F r a n c e z e s g u a r d a m e m s u a n a v e g a ç ã o . D o s
g r a n d e s e r r o s e d e s o r d e n s q u e e l l e s n i s s o oomet-
tern, c o m s e u s e x e m p l o s , e u m a a d v e r t ê n c i a p a r a
os evitar, por F r a n c is c o P y r a r d ................................. 38^1
D I S C U R S O S sobre as v ia g e n s ás regiões r e m o ta s , e
do a p e r c e b im e n to n ecessário p ara as e m p r e h e n ­
der utilm ente, e formar délias relações e x a c ta s ,
por M. N. N..................... ............... ........................ 392
DESCRirCAO EXACTA da costa d’
Africa............ 40<J
Pag. lin,
8 28 enroladas— lae-$e— enroladas com suas cintas,
10 32 admittim— lease— admiltem.
54 22 uerndy por— /m-sg— uemdy ha Senhora Maria Ro­
drigues, dona viuva, por
05 33 ioeut— lease— iouent.
120 6 e mbai xadores— /ea-se — embaidore s.
150 29 Macáo não é ilha— lease— Macáo propriamen­
te não é ilha, mas peninsula pretencente á ilfia
de Ançam.
17 5 29 baixos de Judas— lease— baixos da Judia,
309 1 prôa 0 por— /ea-se— prôa e por
317 1 fabricada— lease — fabricado.
339 36 Xioco — lease— Xicoco,
350 29 dizem— — dizer,
33 m ais—lease— mas.
351 1 mediteranio— lease— mediterrâneo,
20 quinhetos— lease— quinhentos,
44 lhes—lease
356 ult. 30 0 0 0 1— /^a-se-loOOOO.

• »• r , L

►i - 1 ’*-/ i »L f'
, á ■

Í ^ í : ' .*■

r ' r

:•- ■;: <; '. i i ' b i r

• t .

( ’ ■ r 4 / , '

• V '

t
> . *
V ; \ ?
- ' • V ^ i

..t , . - <•'■
^
- i . i'
J . ■/ ->

'J :ty> ; í - ' W

t •

/ii'-itir- . ó , í ; V b

. ‘ , f .
■ - v r o / “ • . r . ■',

• f í ■{ '
“ t

\ t

*'; ; " ,;

,<• -t-1.:^
V

;■ '
Î ,
'
J
f i
i
i Á
’ tí í
. - i ‘ *

r .y .
,

,:*M ;'A.— - -,
‘ ' f *
V Î *

íh
:^ v -
í ‘
■ ; ' í l ‘V v - f ■ i .

%^I■ í’l»f• f <•

Ci- ; >
■ - • . . n V
■.
— - . ' V f ' , í,< .i

< #■; . « » • • . ’ * . : , i i " h


.1 r<
f
^tr. : í *■ ' ^ ■ i

• r .V
•r.;‘ ; ‘ . " ■" .■ L > i 'J. i

r ■ .' ' ■ V ■■ t

ií--

Você também pode gostar