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Encontro PROJETOS DE GERAÇÃO DE

Revista de Psicologia
TRABALHO E RENDA
Vol. 14, Nº. 20, Ano 2011

Espaços para a transformação do


indivíduo e do coletivo

Renata Mendes
Associação Mundaréu RESUMO
renata.m@mundareu.org.br
Esse artigo pretende ser um panorama de elementos que compõem a
realização de alguns projetos de impacto social, pontuado pelo relato
de experiências de trabalho no terceiro setor. O recorte é o fomento à
formação de negócios de produção artesanal ou manufatureira como
alternativa à exclusão do mercado formal de trabalho. A efetivação
dessa alternativa depende, a primeira vista, da boa qualificação dos
produtores ou prestadores de serviços para entregarem o que o
mercado necessita e deseja. Com um olhar na superfície da questão, o
ciclo começa com a qualificação técnica e se fecha com a venda do que
se produz, resultando na geração de renda para os produtores. Mas o
negócio não se sustenta somente pela renda gerada, muitas vezes esse
elemento nem é o mais importante. Indo mais a fundo, as
transformações pessoais decorrentes de todos os processos vividos em
projetos sociais são impulsionadoras das transformações coletivas e
essas, por fim, são responsáveis maiores pela maturação e continuidade
do empreendimento. Desta maneira os apontamentos sugerem que a
formação manufatureira pode proporcionar desenvolvimento de renda
bem como maior inserção destes indivíduos na sociedade, favorecendo
a melhoria de sua qualidade de vida.

Palavras-Chave: terceiro setor; multidisciplinaridade; intervenção


Psicossocial; Psicologia social.

ABSTRACT

This article is intended to be an overview of elements that make up the


realization of some projects of social impact, punctuated by reported
experiences of working in the third sector. The clipping is promoting
the formation of business or manufacturing handicraft production as an
alternative to exclusion from the formal labor market. The effectiveness
of this alternative depends, at first sight, good qualification of
producers or service providers to deliver what the market needs and
desires. With a look on the surface of the matter, the cycle begins with
the technical skills and closes with the sale of what is produced,
resulting in the generation of income for producers. But the deal cannot
be sustained solely by the income generated, often this element is even
more important. Going further, the personal transformations due to all
Anhanguera Educacional Ltda. the processes experienced in social projects are driving the
Correspondência/Contato transformation and these collective ultimately are responsible for the
Alameda Maria Tereza, 4266
Valinhos, São Paulo
maturation and greater continuity of the enterprise. Thus the notes
CEP 13.278-181 suggest that training can provide manufacturing development of
rc.ipade@aesapar.com income and greater inclusion of individuals in society, encouraging the
Coordenação improvement of their quality of life.
Instituto de Pesquisas Aplicadas e
Desenvolvimento Educacional - IPADE
Keywords: Third sector; multidisciplinary; psychosocial intervention; social
Informe Técnico psychology.
Recebido em: 31/01/2012
Avaliado em: 30/04/2012
Publicação: 04 de maio de 2012 135
136 Projetos de geração de trabalho e renda: espaços para a transformação do indivíduo e do coletivo

1. INTRODUÇÃO

Segundo os apontamentos de Richard Sennett (2009) sociólogo, pesquisador, escritor e


professor “Fazer é pensar”. Tendo como base tais apontamentos, três palavras resumem
com precisão o trabalho que vem sendo feito, principalmente por organizações do terceiro
setor e empresas sociais, para promover a geração de trabalho e renda, a inserção
econômica e social de pessoas excluídas do mercado formal de trabalho.

Há diversas maneiras de se promover essa inclusão. O caminho mais óbvio e com


maiores investidas é a formação técnica, principalmente para as áreas demandadas pelo
mercado, ofertadas pelas instituições e pelo governo. Sem querer aqui diminuir a
importância da educação formal técnica, mas intencionando ir mais fundo, colocando
holofote nos detalhes, essa formação não é, nem de longe, suficiente para diminuir a
situação de pobreza e desigualdade social. O gap é também educacional, econômico e
cultural. Olhando a situação mais de perto, há questões particulares, resultantes da
diversidade que somos enquanto seres humanos, decisivas para que as ações de fomento
à educação profissional deem ou não certo. A lógica da demanda / oferta não é linear.
Assim, se cresce o mercado de construção civil e há um significativo aumento da
necessidade por mão-de-obra de pedreiros, mestres de obra, pintores, eletricistas etc., há a
oferta de cursos gratuitos para essas áreas.

Essa oferta se justifica pela demanda de um lado e por um contingente de


pessoas sem emprego, com baixa escolaridade e até com alguma (ou muita) experiência
em construção civil. A conclusão da situação é que essas pessoas se interessarão pela
capacitação técnica que lhes garantirá a colocação profissional, certo? Errado. Há vagas
sobrando nesse tipo de formação, porque, em grande parte do público alvo, quem é
pedreiro não está interessado em melhorar sua condição de pedreiro, está interessado em
ser outra coisa (Flusser, 2007). E com seus filhos se dá o mesmo, sem emprego e com
poucas perspectivas de inserção imediata no mercado, ainda assim os jovens não desejam
a profissão dos pais. Por trás desse exemplo há alguma coisa além da necessidade de
ganhar dinheiro, há o significado particular do trabalho como meio para a dignidade, a
inserção social e a concretização dos sonhos.

A reflexão aqui apresentada se dá num recorte específico do universo do


trabalho, que é a produção artesanal. Ela é processo de quase dez anos de experiência em
uma organização sem fins lucrativos que tem como missão a geração de renda e realiza
isso através da formação de empreendimentos coletivos. A organização começou
comercializando produtos artesanais, dentro dos princípios do comércio justo (Fair Trade),

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para ampliar as oportunidades de vendas aos produtores que, em sua maioria, estavam
distantes dos centros comerciais. Além disso, tinham seus ganhos achatados pelo
intermédio de comerciantes atravessadores, que recebiam a maior parcela do lucro sobre a
venda dos produtos, já que faziam a ponte entre o produtor e o mercado consumidor
(Nóbrega, 2005). A World Fair Trade Organization (WFTO), instituição responsável por
monitorar e legitimar a ação de organizações que seguem o comércio justo, prescreve 10
normas a serem seguidas. São elas:

š Criação de oportunidades para produtores economicamente


desfavorecidos.
š Transparência e responsabilidade nas relações comerciais.
š Qualificação de produtores.
š Promoção do comércio justo.
š Pagamento de um preço justo no contexto regional ou local aos
produtores.
š Equidade de gênero.
š Ambiente de trabalho seguro e saudável.
š Não ao trabalho infantil, para garantia do bem-estar, da segurança, dos
requisitos educacionais e da necessidade de brincar.
š Práticas de preservação do meio ambiente e produção responsável.
š Relações comerciais baseadas na solidariedade, no respeito mútuo, na
confiança que contribuam para o crescimento do comércio equitativo.

Logo pode ser percebido que abrir oportunidades de comercialização com


ganhos justos para o produtor não era suficiente para resolver a sobrevivência do
artesanato como meio de gerar renda aos artesãos. Para que a oferta seja consumida pelo
mercado (a venda dos produtos é que gera o ganho do produtor), ela deve ter certas
adequações a esse mercado, além dos valores agregados (culturais, afetivos) que contém
uma peça artesanal. Havia problemas com prazos de entrega, padronização de produtos,
qualidade dos materiais e compatibilidade de gostos (o que o produtor faz, que acha
bonito e útil, não é necessariamente o que o comprador deseja). Passou-se então a
trabalhar o desenvolvimento de produtos, tentando fazer a ponte entre o universo
artesanal e o consumo. Desde o início as mãos e da cabeça do artesão foram o ponto de
partida: sua experiência de vida era fundamental para a criação de novas peças e de
adequações técnicas.

Foi realizado um trabalho conjunto entre designers e artesãos onde cada um


contribuía com seu conhecimento para o desenvolvimento e melhoria dos objetos, do
sistema de produção, da transformação da matéria-prima. O designer, nesse contexto, não
é autor do produto que criou, é facilitador de um processo, onde o artesão reconhece seus

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próprios saberes, aprende a potencializá-los e à combiná-los com outros saberes.


(Thackara, 2008). Resultado: produtos de qualidade, diferenciados, com uma história por
trás e ainda assim, o problema da sustentação dos grupos não se resolveu.

Na proximidade com a produção artesanal, surgiram novas questões mais


profundas e estruturais do que resolver o produto para se tornar comercializável. Os
grupos tinham problemas de gestão, de formação de custo e preço, de distribuição de
ganhos, de reserva de caixa e, no centro de tudo isso, tinham problemas de
relacionamento, de diferenças de condutas, valores, personalidades, que, embora
parecessem questões domésticas (e que, portanto, não deveriam surgir no âmbito do
trabalho), ruíam os empreendimentos. A partir dessa percepção os projetos se ampliaram
para serem programas de qualificação de empreendedores, conduzidos por profissionais
multidisciplinares, que realizam atividades nas áreas de desenvolvimento técnico e de
produto, gestão administrativo-financeira, organização da produção, comunicação,
comercialização e organização de grupos, área que costura todas as outras. Desse
momento em diante passaram a serem fundamentais nos projetos as ferramentas da
psicologia social, capazes de transformar um agrupamento de pessoas em um coletivo
organizado e voltado para o mesmo objetivo.

Por meio de atividades específicas, como dramatizações e rodas de conversas,


realizadas nos grupos com a finalidade de investigar o histórico familiar dos
componentes, expor suas experiências de vida dentro e fora do mundo do trabalho,
resolver conflitos, reconhecer valores e auxiliar na tomada de decisões, se obtém
informações essenciais acerca da origem, formação e mudança das atitudes. Nas áreas
técnicas, como design de produtos e gestão administrativo financeira, bem como em todas
as outras áreas que compõem o programa de qualificação, o resultado da ação de
aprendizagem tem se mostrado enriquecido, mais verdadeiro e mais efetivo, se misturado
aos fenômenos da facilitação social (aumento de um comportamento devido à presença de
outros indivíduos; por exemplo, os trabalhadores em grupo produzem mais do que se
estiverem isolados) e da imitação (esta favorece consideravelmente a aprendizagem de
comportamentos que, espontaneamente, teriam uma fraca probabilidade de serem
apreendidos) (Infopédia, 2003-2012; Manzini, 2002).

O uso intencional do que as pessoas já sabem, já têm experiência é ponto de


partida. Assim, o desenvolvimento de produtos é primeiro baseado nos produtos já feitos
antes do projeto e a gestão administrativo-financeira é baseada no controle de entradas de
dinheiro e despesas que as pessoas fazem em suas casas. Dessas coisas já sabidas, com
resultados previstos, propõe-se a experimentação de novos modos de fazer. Experimentar

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o novo implica na possibilidade do erro (Rodrigues, 2005). O medo de se produzir algo


que é feio, que saiu errado é barreira para a aprendizagem do novo, que desaparece
quando o artesão observa o resultado da experimentação do outro. A satisfação de se
alcançar um resultado diferente dos modelos conhecidos já é em si fortalecedora da
ousadia, em substituição ao medo de errar. O êxito de uma pessoa desencadeia nas
demais a vontade de experimentar a mesma sensação. Aí se dá o espaço para a inovação,
para a transformação coletiva.

2. A PRÁTICA DA INOVAÇÃO SOCIAL

Os profissionais que atuam nesse segmento são multiplicadores do conhecimento, são


sociólogos, psicólogos, pedagogos, designers, estilistas, administradores, todos
qualificados, como seria necessário em outro tipo de trabalho, mas também eles são o que
não aprenderam em sua formação escolar: são sensíveis, são atentos, são flexíveis para
lidar com situações em constante mudança, com os altos e baixos do relacionamento dos
integrantes de um grupo, com os sucessos e insucessos do empreendimento encubado,
com a aprendizagem em cima de acertos e erros. São pessoas interessadas no
desenvolvimento humano, em sintonia com a manutenção do planeta. Eles qualificam,
descobrem oportunidades, criam inovação, revelam talentos, capacitam as pessoas para
direcionarem o seu próprio destino e o destino de um grupo (Thackara, 2008). É
necessário certo otimismo pragmático, com cuidado para não se tornar paternalista das
situações e resolver os obstáculos no lugar dos grupos. Esse otimismo não se confunde
com ingenuidade: racionalizar a experiência nos auxilia a tomar atitudes corretas diante
da responsabilidade que temos quando oferecemos às pessoas instrumentalizá-las para a
realização de seus sonhos.

Tudo é investimento. O resultado esperado não é garantido. O conjunto de


profissionais e beneficiários tem a oportunidade de traduzir os insights sobre a realidade
atual em oportunidades para o futuro. Esse futuro depende do bom desempenho do
grupo e de outras variáveis, nem sempre possíveis de se ter controle, como o mercado
consumidor, o direcionamento de investidores e até problemas na família, que podem e
vão afetar o andamento do negócio, ainda em sua formação. Embora seja um cenário de
incertezas, com especificidades para cada projeto, a criação de empreendimentos com
grupos de artesãos tem uma coluna vertebral: a invenção ou adequação de metodologias
para que o que é desejável se torne praticável e viável. Por ser um processo extremamente
prático, é preciso pensar mecanismos (desenvolver tecnologias sociais) além dos
conteúdos.

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Neste sentido é adotado como pressupostos a formulação “quatro aprendizagens


fundamentais” de Jaques Delors, conforme Relatório da Comissão Internacional sobre
educação para o século XXI, que se constituem nos eixos orientadores do processo de
ensino e aprendizagem (Delors, 1988). São eles:

š “Aprender a conhecer”- adquirir os instrumentos da compreensão;


š “Aprender a fazer” – para poder agir sobre o meio envolvente;
š “Aprender a viver junto” – a fim de participar e cooperar com os outros
em todas as atividades da humanidade;
š “Aprender a ser”- via essencial que integra os três precedentes.

Essas quatro dimensões dizem respeito a um conjunto de necessidades e desafios


dos cidadãos do mundo contemporâneo. Propõem orientar os processos educativos, de
forma a preparar os indivíduos na busca da realização pessoal e coletiva. A ênfase no
processo de aprendizagem torna o educando sujeito de seu próprio processo, de forma
que sem sua adesão, o processo não ocorre. No cenário em que trabalhamos, assim como a
teoria da aprendizagem não se descola da experiência, as relações pessoais (o ambiente
doméstico) está intimamente mesclado às relações de trabalho e fazem parte dos desafios
para a constituição dos empreendimentos. Cabe aqui esclarecer as razões de se investir na
formação de negócios como alternativa para a exclusão de pessoas do mercado de
trabalho.

O público beneficiário de nossos projetos tem um perfil característico: são, em


sua maioria, mulheres, mães de família, com baixa escolaridade ou analfabetismo
funcional, que fazem “bicos” para ajudar na renda familiar. Essas mulheres não são
artesãs por excelência, não têm o histórico tradicional de aprendizagem da arte que é
passada de geração em geração. Elas fazem parte de populações urbanas, geralmente de
zonas periféricas, que utilizam o que aprenderam a fazer em sua formação doméstica para
tentar ganhar dinheiro.

É comum encontrarmos em mulheres maduras brasileiras, habilidades manuais


executadas com extrema qualidade, como bordado, crochê, tricô, pintura, entre tantas
outras, mas que, aplicadas na tarefa de gerar renda, se concretizam em produtos muito
comuns, muitas vezes copiados de receitas de revistas de trabalhos manuais, que não
apresentam diferencial, nenhuma conexão com as identidades dos grupos e que, portanto,
têm pouca viabilidade comercial. O pressuposto é que a formação de empreendimentos
com essas pessoas seja uma alternativa à exclusão do mercado formal de trabalho,
considerando que as chances desse público conseguir emprego são quase nulas.

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O trabalho da Instituição é oferecer a alternativa, mapear onde se pode chegar e


ajudar a criar ferramentas e conhecimento necessários para se alcançar a autonomia e
manter o negócio girando. A escolha de fazer ou não o investimento pessoal nessa
empreitada é do artesão. Há, nas linhas tortas dessa decisão, o sonho com o emprego
registrado. É a imagem de segurança que se deseja, pois culturalmente trabalho é
diretamente relacionado à carteira assinada, à garantia de direitos e de cidadania (De
Masi, 2002). Não é possível lidar com projetos de geração de renda como substitutos do
emprego tentando seguir a mesma lógica que este último. Do lado das organizações
desenvolvedoras de projetos, não funciona reproduzir um sistema onde essas pessoas já
estão excluídas. Do lado dos participantes do projeto, não há como esperar que haja a
relação patrão-empregado, nem o salário no fim do mês.

O que o artesão tem de retirada é o que ele consegue se organizar para produzir e
vender. A suposição é que, em conjunto haja maior possibilidade de sucesso e de
estabilidade, visto que estar inserido em um grupo é potencialmente mais produtivo do
que batalhar sozinho (Manzini, 2002). A possibilidade de construir o próprio trabalho abre
espaço para a realização de um sonho: ter o próprio negócio, fazendo o que se tem talento
e o que se gosta de fazer. Observamos em boa parte das mulheres beneficiárias dos
projetos, que essa possibilidade interfere em seu desabrochar pessoal. Elas desenvolvem
autoestima, posturas mais firmes, voz mais projetada em discursos com mais conteúdo e
com mais clareza do que querem. Sentem o sabor da conquista, de que a partir de agora
podem.

É esse poder de realização, que parte do autoconhecimento e do reconhecimento


do outro como parceiro que mantêm elas firmes no propósito de construir um negócio.
Mesmo que a necessidade financeira seja imediata e que o empreendimento não dê o
retorno na mesma velocidade e constância da necessidade, essas mulheres continuam se
empenhando por seus sonhos (Flusser, 2007). Abaixo seguem exemplos:

Dona Renildes, 60 anos, era analfabeta. Quis aprender a escrever para poder ter
e-mail. Ela participa de uma rede de produção artesanal no Guarujá, formada por cinco
grupos de diferentes bairros. Eles resolveram sua comunicação via internet e ela não
queria ficar de fora.

Fernanda, 33 anos, dona de casa e artesã em Nortelândia, interior do Mato


Grosso. Destacou-se em seu grupo por ter facilidade com as contas e com a feitura de
planilhas. Além da produção artesanal, ela é responsável pelo gerenciamento
administrativo financeiro do grupo. Após o projeto decidiu voltar a estudar. Escolheu

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cursar faculdade de administração, para auxiliá-la nos negócios. Comprou um netbook e o


leva sempre à sede do grupo, para que todas as integrantes tenham acesso aos e-mails.

A constituição de um negócio próprio se mostra como uma boa opção para essas
mulheres que não escolhem deixar de cuidar da casa e da família em favorecimento da
atuação profissional. Em oposição a isso, elas normalmente vivem o dilema de se
estruturar profissionalmente e lidar com a falta de apoio e a cobrança de seus
companheiros. Aparece aqui mais um exemplo das sutilizas capazes de por abaixo um
projeto de geração de renda: as mulheres não querem só trabalho, querem compatibilizar
suas vidas doméstica e profissional, mesmo que isso signifique trabalhar menos que seu
potencial, ganhar menos do que poderiam e ser menos independentes do que desejam.

Da perspectiva dos desenvolvedores de projeto, às vezes parece inconcebível que


uma pessoa com raras oportunidades de ser empregada não invista toda a sua energia
num negócio próprio, que parte do crescimento do que ela já sabe ou do que sempre
desejou fazer. Não se percebe que não é só uma questão de oportunidade. Há a
necessidade da renda imediata, mas também há todas as outras razões, explícitas e
implícitas, cientes ou ainda desconhecidas, que regulam o grau de investimento pessoal
que as pessoas depositam nos projetos. Como ignorar na implementação de um projeto de
geração de trabalho e renda as relações comunitárias e familiares? Como não considerar
se essa mulher beneficiária tem filhos pequenos, ou jovens em situação de risco social?
Houve um caso no interior da Paraíba em que o crescimento profissional da artesã e sua
projeção como presidente da associação de artesãos incomodou o marido a ponto de
assassiná-la.

A tarefa de tornar uma pessoa agente econômico gerador de sua renda depende
do envolvimento de muitos protagonistas no processo: governo, comunidades, ONGs,
empresas, instituições de ensino, usuários da cadeia de valor, e, fundamentalmente, do
empreendedor (Borges, 2011). O empreendedorismo é o motor. Empreender não diz
respeito somente à construção de negócios. Antes disso e fundamental para isso
acontecer, é um conjunto de características comportamentais, que pode ser desenvolvido
através de exemplos, educação e treinamento. Tem a ver com a capacidade de inovar, a
perspectiva de futuro, a persistência, a coragem, a resiliência diante das dificuldades de se
implementar uma ideia.

O contexto e o histórico de vida do público atendido nesses projetos é maré


contra todas essas características. A própria urgência na melhoria da condição econômica
se constitui na primeira barreira para o investimento em uma visão de futuro não
imediato. A ausência de estímulo para se sentir capaz de realizar, a falta de escolaridade

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básica – fonte de desenvolvimento motor, cognitivo, sensorial e relacional – contribuem


para a falta de iniciativa e para o medo da autonomia que o negócio próprio prescinde.

Os projetos não pretendem suprir esses estímulos formadores das pessoas ao


longo de toda sua vida, mas se o objetivo fim é a formação do negócio autônomo, o
processo necessariamente envolve sensibilização para que com metodologia de trabalho
se desenvolva conhecimento e instrumentos de aprendizagem. A credibilidade se dá pela
observação do que se é capaz de realizar ou do que o outro, pessoa que tem uma história
parecida, também é capaz de fazer. “Fazer é pensar”. É pela prática que se concretizam as
habilidades que as pessoas já têm (e que muitas vezes não reconhecem que têm) e que se
estimula o aperfeiçoamento e o desenvolvimento de novas habilidades. É pela observação
do que é realizado que se reflete sobre os próprios valores e sobre as verdadeiras razões
para participar de um projeto de inclusão socioeconômica. Certa vez disse de uma artesã:
“o conhecimento é um caminho sem volta”.

3. RESULTADOS NEM SEMPRE APARENTES

Esse é um trabalho recheado de resultados qualitativos, medidos com a evolução


processual de cada indivíduo dentro do grupo. O desenvolvimento do indivíduo, aliás,
interfere e estimula o desenvolvimento coletivo. Por outro lado, grande parte dos
financiadores de projetos faz uma conta simples: o investimento X, deve gerar a renda Y
para N pessoas. Espera-se olhar para esses números e ver um grande volume de
rendimentos regulares para um grupo numeroso de artesãos. Nas palavras de Helena
Sampaio, que durante sete anos foi coordenadora nacional do Artesanato Solidário (A
Casa, 2010):
[...] às vezes temos parceiros que falam assim: Queremos o aumento da renda familiar
em 30%. Eu não posso ter isso como meta. Eu posso colocar melhoria nas condições de
vida, ou aumento da renda familiar, mas não posso dar margem quantitativa. (...) Seria
como se, num curso superior, no momento em que você se matricula, o reitor tivesse que
assinar um compromisso dizendo que, ao término dos seus quatro anos de faculdade,
você irá arrumar um emprego para ganhar R$ 5.000,00. Não! Ele pode apostar que você
aumentará sua cultura, será capaz de entender um texto do Max Weber, saberá quem é
Becker, saberá fazer a crítica ao neoliberalismo, qualquer coisa que seja. Você sairá com
uma autoestima melhor, será uma pessoa mais ilustrada, ampliará o seu relacionamento
social, intelectual, irá mais ao cinema, comprará mais livros, revistas, acessará mais sites
acadêmicos e científicos, etc. Ou seja, há muitos indicadores, mas não se pode garantir os
números.1

Aqui novamente a lógica de processos e resultados não é tão reta quanto se


espera. Primeiro porque o investimento num empreendimento coletivo é uma aposta na
sustentabilidade. Entendendo sustentabilidade como um sistema que permite a sua
permanência, investe-se na incubação de um grupo para que o financiamento acabe e o
grupo tenha continuidade, seguindo com suas próprias pernas e sendo capaz de articular

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outros apoios (Thackara, 2008; Manzini, 2002). Segundo porque um negócio próprio é
formado por sócios, que são capacitados para se autogerirem, para frequentemente
resolverem com suas próprias habilidades os desafios do dia-a-dia, que não se restringem
aos assuntos profissionais. Terceiro porque a capacidade de empreender não é
comumente desenvolvida na formação das pessoas que tiveram a oportunidade de
estudar, que dirá na vida das pessoas que são público dos projetos sociais.

4. TRANSFORMAÇÕES EM CADEIA: NOS PROFISSIONAIS DESENVOLVEDORES,


NO PÚBLICO BENEFICIÁRIO DOS PROJETOS E NOS APOIADORES

Para os profissionais que fazem parte da construção dessa alternativa, é preciso pedir
licença antes de entrar na casa do outro. É preciso ser expectador e aprendiz, antes de
pretender ensinar (Borges, 2011). Há que se desenvolver empatia, entender
profundamente a realidade das pessoas, o contexto cultural do lugar, fazer o que estiver
ao alcance para compreender suas experiências. “Entender o comportamento nos capacita
a identificar necessidades físicas, cognitivas, sociais e/ou culturais a que podemos atender
com produtos, serviços e experiências que criamos” (IDEO, 2009).

Dessa maneira os profissionais poderão verdadeiramente contribuir para a


melhoria de vida do público que trabalham. Aliás, trabalhar com o desenvolvimento
econômico-social é uma maneira de fazer o que sabemos para que sirva a algo maior que
nós. É por em prática a inovação sustentável, que significa pensar a melhoria do mundo a
partir daquilo que bem realizamos (Pink, 2009). Gabriel Milanez (2011), sociólogo, um dos
responsáveis pela pesquisa O Sonho Brasileiro, realizada pela empresa Box 1824, acredita
que vivemos em uma nova configuração de mundo não dual, repleto de hiperconexões e
micro revoluções. Há terreno fértil para fazer crescer as pequenas iniciativas sociais,
econômicas e culturais, aquelas caracterizadas mais pelos resultados qualitativos que
quantitativos, que por serem micro, aparentemente não se mostram na escala dos
resultados macro, mas que por serem muitas, se somam e causam impacto.

A mobilização aparece como ingrediente da transformação socioeconômica. Em


primeira instância a mobilização interna, a motivação intrínseca que faz agir para
determinado propósito todos os agentes envolvidos – de apoiadores à beneficiários. Em
segunda instância a mobilização das pessoas, a ação propriamente dita para benefício de
si e dos outros. A partir do entrelaçamento de objetivos dos diversos atores envolvidos em
projetos, da aplicação de metodologias desenhadas para esse fim e da experiência que os
processos proporcionam, cria-se uma inteligência colaborativa, mensurável e replicável.

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Replicável enquanto modelo norteador, visto que, quando extraímos um modelo de uma
experiência, não necessariamente a aplicação do modelo vai nos dar a experiência.

Há muitos financiadores de projetos interessados nesse impacto holístico que vai


além dos números. Há também empresas interessadas em repensar seus negócios, para
que sejam inclusivos e sociais. Não só do marketing pra fora. Ações pontuais de superfície
não convencem mais os consumidores. É estratégico para as empresas investirem em
ações verdadeiras, profundas e envolventes, que motivem inclusive seus colaboradores. É
saudável para as empresas se dedicarem às causas de dentro pra fora, praticarem em toda
sua estrutura organizacional o conceito na essência. Com uma análise de dentro para fora
é possível evidenciar expertises e, a partir delas, visualizar áreas de oportunidades para
investir recursos humanos e financeiros na promoção das relações de qualidade, com
atuação mais colaborativa, menos autoral. É tempo de oportunidade para o
desenvolvimento baseado no coletivo (De Masi, 2000, Thachara, 2008). “O ato de projetar
soluções inovadoras e relevantes, que atendam às necessidades das pessoas, começa com
o entendimento de suas necessidades, expectativas e aspirações para o futuro” (IDEO,
2009).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os investimentos feitos em formas alternativas de geração de trabalho e renda para


pequenos produtores tem se mostrado promissores em diversas iniciativas espalhadas
pelo Brasil. Por outro lado outras tantas se desintegram, vencidas pelos inúmeros desafios
de se constituir um empreendimento, onde, na maior parte dos casos, há o desejo de
retornos financeiros imediatos, atrelado à falta educação formal dos integrantes, falta de
características empreendedoras e apoios em prazos insuficientes para a decolagem
autônoma do negócio.

Nas bem sucedidas construções dessas iniciativas, há bases trabalhadas por


profissionais de áreas complementares que, para terem resultados que duram além do
tempo de execução dos projetos, buscam criar ambiente de experimentações, de
exploração dos conflitos, tão favoráveis ao amadurecimento dos participantes quanto
difíceis de serem previstos. Esse terreno da imprevisibilidade, inerente à formação do que
é novo, é fundamentalmente prático (Rodrigues, 2005; Nóbrega, 2005). São nas ações do
dia-a-dia organizadas por áreas temáticas que se acessa (e se valoriza) os saberes
adormecidos e que, a partir deles e do contato com a atuação das outras pessoas do ciclo,
se constrói conhecimento e se amplia o repertório. A prática na encubação de um

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empreendimento desse tipo antecede a formulação do pensamento coletivo, que,


amadurecido pela experiência, faz a escolha de ser negócio autônomo.

Se a formação de negócios é de fato uma alternativa para a inclusão econômica,


sua implementação implica em tempo (a maioria dos apoios se limita a um ano, mas as
organizações consideram ideal três anos) e equipe de profissionais preparada não só
tecnicamente, mas também capazes de ver, ouvir e ser sensível à cultura do outro e às
realidades diversas. Há nessa conjuntura espaço para ampliar o processo educativo nas
universidades, a fim de se preparar os alunos para atuação profissional e qualificada no
setor. Na mesma direção existe uma área de oportunidade (e de desafio) de mostrar aos
financiadores a melhor maneira de fazer seu investimento, em vistas à resultados reais,
que são quantificáveis, mas que ainda mais importante que isso, são sustentáveis após o
término dos recursos aportados.

Neste sentido sugere-se que novos diálogos se deem entre todos os agentes,
baseados em estudos e apontamentos recentes, de modo a favorecerem a solidez das
ações com essas populações. Além disso, cabe a criação de plataformas que apoiem,
influenciem e norteiem as políticas públicas voltadas para a inclusão social das
populações de baixa ou nenhuma renda.

REFERÊNCIAS
A Casa, museu do objeto brasileiro (2010). EntreVistas: design + artesanato.
IDEO, Global design consultancy (2009). Tool kit Human Centered Design, páginas 18 e 49. A empresa
se associou à outras três organizações para criação de um método que servisse como guia de
inovação e design para pessoas que vivem com menos de dois dólares por dia.
Borges, Adélia (2011). Design + artesanato: o caminho brasileiro.
De Masi, Domenico (2000). O ócio criativo.
Flusser, Vilém (2007). O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação.
Manzini, Ezio (2002). O Desenvolvimento de Produtos Sustentáveis.
Nóbrega, Christus (2005). Renda Renascença: uma memória de ofício da paraibana.
Pink, Daniel (2009). TED Global 2009 / Dan Pink e a surpreendente ciência da motivação.
Psicologia social. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2012. [Consult. 2012-01-25].
URL: http://www.infopedia.pt/$psicologia-social.
Rodrigues, Graziela Estela Fonseca (2005). Bailarino-pesquisador-intérprete: processo de formação.
Sennett, Richard (2009). O artífice.
Thackara, John (2008). Plano B: o design e as alternativas viáveis em um mundo complexo.

Renata Mendes
Designer – diretora adjunta da OSCIP Associação
Mundaréu.

Encontro: Revista de Psicologia š Vol. 14, Nº. 20, Ano 2011 š p. 135-146

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