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uma rede, uma saída, uma dissidênc ia, um abrigo, mas também um fora,

uma exteriori dade, lo nge de qualquer comunit arismo autorrefe rido. Signi Tentativ a
Daí todo o trabalho de urdir, com eles, o que Deligny chama de uma
fica que toda rede está virada para fora, para seu exterior - ela não é um
tentativa - não é um projeto, não é uma instituiç ão, não é um program
circuito fechado. Nem socialização, nem inclusão, nem cura, mas distâ a,
n não é uma doutrina , não é uma utopia - mas uma tentativa , diz ele, frágil
cia daquilo que sufoca, lugar e evasão. Sempre "que o espaço se torna con c
persisten te como um cogumelo no reino vegetal. .. Uma tentativa esquiva
centracio nário, a formação de uma rede cria uma espécie de exterior q as
ue ideologias, os imperati vos morais, as normas. Uma tentativa só sobreviv
permite ao humano sobreviv er"4• Mas justamen te, para que esse humano e
se não se fixar um objetivo, mesmo quando inevitave lmente é chamada
sobreviva, deve desprend er-se da imagem unitária que o impregn a, centrada a
realizá-lo. Pois há os fios, a teia, essa maneira de protegê- Ias, e ao mesmo
em torno do sujeito. Eis uma antropologia reversa, que talvez fosse capaz
de tempo as inúmera s táticas de esquiva, esquivar -se de tudo o que solicita,
ler nossa saturaçã o de sentido e de intençõe s, de subjetivi dade e de palavras,
tudo o que inclui, que obriga, que amarra, esquivar tudo aquilo que implica
de arrogânc ia humanis ta, em suma, a partir da dimensã o que Deligny cha
numa interação intersubj etiva, o que ele chama de um semblabiliser, "se-
maria de inata ou humana.
melhanc car", essa identific ação incessan te pela qual nos constituí mos, essa
macaqui ce, ainda mais quando ela é "amoros a" em excesso, isto é, aprisio-
Fios da alm a
nante como só o amor o consegu e ser. Portanto , nada de " reciproc ar", mas
O que importa afinal, para Deligny e para o autista que o acompan ha ou
outra coisa, diz ele, "o costume irar, o costume iro", o permitir . Costume irar
que ele acompan ha, esse ser que entra em pânico quando algo sai do lugar,
envolve o mais rés-do -chão, fazer pão, cortar lenha, lavar a louça, comer,
são as referênci as, animada s ou inanima das- uma rocha, um barbante , uma
vestir-se, isto que a existênci a exige, e que, no entanto, é algo distinto do
certa fonte ... Pois são os pontos a partir dos quais pode tecer-se uma teia, são
mero hábito, pois é no meio dessa repetição coleliva que cada instante pode
as referênci as que desperta m um apego extremo, onde a coisa e o lugar
da ser a ocasião para um desvio, uma irrupção , uma h1iciativa. Trata-se , pois,
coisa são o mesmo, e a partir das quais se pode estender fios, invisíveis para
não de uma repetição mecânic a, embora haja um compon ente de repetição
nós, mas que deveríam os consegu ir imaginar , ou supor, em todo o caso res
no costume irar, mas de permitir , para usar um léxico mais filosófico , que
peitar, pois é com esses fios invisíveis estendid os em meio a um espaço q
ue da repetição se extraia a mínima diferenç a, aquele desvio mínimo onde
se constitui u uma Leia, uma rede na qual a vida é possível e cuja destruiçã se
o dê um aconteci mento, o inadvertido.
pode desencad ear um desastre, mesmo e sobretud o quando alguém cruza
os Uma tentativa é compará vel à jangada. Pedaços de madeira ligados entre si
fios com seus tamanco s profissio nais... O que é mesmo que eles ligam, esses
de maneira bastante solta, para que quando venham as ondas do mar, a água
fios? Sim, referênci as, mas tais como detectad as pelos autistas, em meio
à atravesse os vãos entre os troncos e a jangada consiga continua r flutuand o.
errância, aos trajetos de errância ou aos trajetos costumeiros. Detectar esses É
apenas assim, com essa estrutu ra rudimen tar, que quem está sobre a jangada
pontos ou essas referênci as é algo como uma operação vital da espécie, é seu
pode flutuar e sustentar -se. Portanto , "quando as questões se abatem, nós não
"aparelh o psíquico " primário .
apertamo s as fileiras, não juntamo s os troncos - para constitui r uma plata-
Portanto, errar, detectar, urdir os fios. Esses fios estendid os entre as re
forma concerta da. Ao contrário . Não mantemo s senão aquilo que do projeto
ferências, diz Deligny, sao para o autista como que sua alma, que ele não
nos liga." Daí a importân cia primordi al dos liames e do modo de ligação,
quer perder, assim como nós não queremo s perder a consciên cia, mesmo e
Ja distância mesma que os troncos podem tomar entre eles. "É preciso q1,.1e
quando nos perdemo s... Agir, pois, nesse sentido estrito que lhe dá Deligny, o
liame seja suficient emente solto e que ele não se solte."5 Eu diria, abusand o
é também evitar a ruptura desses fios, ou cuidar para que eles estejam bem da
fórmula, que é preciso que o liame seja suficient emente solto para que ele não
tensiona dos.
:.c solte. A jangada, ainda diz Deligny, não é uma barricada . Mas: "Com o que
sobrou das barricada s, poderia se construi r jangadas ... "
4 Idem, p. 14.
l>ehgny, ()e,. vre>, ed Sandra Alvarez de Toledo, l' aris, J'Arachnéen , 2007, p. 11
28.

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VODOS DI IX STtN
I RRAIIC.A.S

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