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Saúde e Pesquisa, Maringá (PR)

DOI: 10.17765/2176-9206.2019v12n3p463-470

POLÍTICA NACIONAL DE SAÚDE INTEGRAL LGBT: O QUE OCORRE NA PRÁTICA SOB O


PRISMA DE USUÁRIOS (AS) E PROFISSIONAIS DE SAÚDE

Francisco Jander de Sousa Nogueira RESUMO: Com o intuito de reparar a desassistência, promover saúde
Docente Adjunto do Curso de Medicina da Univer- integral, equidade e atender à população LGBT de forma efetiva, a
sidade Federal do Piauí - Campus Parnaíba. Membro Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – CEBES. Travestis e Transexuais (PNSILGBT) foi sancionada em 2011. Apesar de
Brasil. sua existência, o acesso desse público à saúde ainda hoje é restrito. Logo,
o presente estudo se caracteriza como uma pesquisa qualitativa que
tem por objetivo analisar os desafios atuais no tocante ao atendimento
Thalia Ariadne Peña Aragão e acesso da população LGBT aos serviços de saúde. Os dados foram
Acadêmica do Curso de Psicologia da Universidade coletados a partir de entrevistas semiestruturadas com profissionais de
Federal do Piauí - UFPI, Campus Ministro Reis Veloso saúde de uma instituição hospitalar da cidade de Parnaíba-PI e travestis/
– CMRV. Brasil transexuais usuárias que buscaram esse e outros dispositivos de saúde.
Para análise do material coletado, foi utilizada a Análise de Discurso.
Pretende-se, a partir da identificação e compreensão das restrições da
PNSILGBT neste contexto, auxiliar na busca de práticas alternativas
para a ampliação do acesso dessa população à saúde.

PALAVRAS-CHAVE: Determinação social; Estigma; Saúde; Minorias


sexuais e de gênero.

BRAZILIAN POLICY OF LGBT INTEGRAL HEALTH:


WHAT ACTUALLY HAPPENS FROM THE POINT OF VIEW
OF AGENTS AND HEALTH PROFESSIONALS
ABSTRACT: The Brazilian Policy for the Integral Health of Lesbians,
Gays, Bisexuals, Travesties and Transsexuals (PNSILGBT) was published
in 2011 to repair the lack of assistance and to promote integral health
and equality, and attend to the LGBT population effectively. However,
the population´s access to health is still very limited. Current study
is a qualitative research to analyze current challenges with regard to
attendance and access to LBGT populations to health services. Data
were retrieved by half-structured interviews with health professionals
of a hospital in Parnaiba PI Brazil and by travesties and transsexual
people who required health schemes. Collected material was analyzed
by Discourse Analysis. Through the identification and comprehension
of PNSILBGT restrictions, one may seek alternative practices to amplify
health access of the population concerned.

KEY WORDS: Social Determination; Stigma; Health; Sexual and


Gender Minorities.

INTRODUÇÃO
Autor correspondente:
Thalia Ariadne Peña Aragão
thaliariadne.pena@gmail.com
A década de 90 é marcada pela criação da lei nº 8.080, que
regulamenta o Sistema Único de Saúde (SUS), reafirma a saúde como
direito e dispõe, dentre outros, sobre as condições para a sua promoção,
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proteção e recuperação. Atualmente, o conceito de saúde METODOLOGIA


está relacionado ao bem-estar físico, social e mental.
Entretanto, apesar de passadas quase três décadas da A concepção deste estudo tem como referência
regulamentação do Sistema, o acesso universal, integral o método etnográfico, por identificar o vasto processo de
e igualitário à saúde, tal como consta em sua legislação, disseminação dos métodos qualitativos na área da saúde,
ainda tem sido um desafio para a gestão, trabalhadores e buscando assim novos referenciais teórico-metodológicos
população. que deem conta de seus objetos3.
A população de lésbicas, gays, bissexuais, Para coleta dos dados, foram utilizadas as técnicas
travestis e transexuais foi por muito tempo mais um da observação participante, produção sistemática de
grupo desassistido, excluído, alvo de discriminação, diários de campo e entrevistas. Após a construção dos
preconceito, associado ao HIV/AIDS e à prostituição. instrumentos de pesquisa, realizaram-se entrevistas
Ademais, atualmente se encontra um grande número de semiestruturadas direcionadas a dois públicos: usuárias
produções científicas reforçando tal associação. travestis/transexuais e profissionais de saúde. Para a análise
Após diversas lutas e movimentos travados ao dos dados coletados, realizou-se uma oficina dentro das
longo dos anos pelo universo LGBT, o enfrentamento de atividades do Grupo de Estudos em Antropologia, Saúde
tais mazelas, em consonância com o que é trazido por e Sexualidade da Universidade Federal do Piauí, Campus
Carrara1, deve ser um processo ativo, que ocorra a partir da ministro Reis Velloso. Nessa oficina, buscou-se, a partir
garantia de direitos dessas minorias sexuais, destacando da análise de discurso, extrair categorias analíticas para
a difusão de dispositivos que coíbem a discriminação e o processo de análise dos dados coletados e, em seguida,
favorecem a ampliação de direitos sociais e civis como discutir e analisar as entrevistas a partir das transcrições
possibilidade, rompendo assim com a exclusividade e percepções dos pesquisadores e da literatura estudada.
heterossexual dominante. Sendo assim, a amostra é composta por um
Na tentativa de reparar a desassistência, primeiro público, os profissionais do Hospital Estadual
promover saúde integral, equidade e ações para Dirceu Arcoverde (HEDA) da cidade de Parnaíba-PI
minimizar o preconceito e atender a essa população (trabalhadores do Pronto-Socorro, os quais estão em
que possui necessidades específicas, a política nacional contato direto com os(as) usuários(as) da população
de saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e LGBT que buscam os serviços de urgência e emergência
transexuais (Política Nacional de Saúde Integral LGBT)2 do hospital).
O hospital HEDA foi inaugurado em 1991 e
foi sancionada em 2011, com o intuito de que se voltassem
atualmente conta com 152 leitos divididos em nove
os olhares, especificamente no âmbito da saúde, para as
especialidades médicas (clínica médica, pediatria,
demandas desse universo.
obstetrícia, ortopedia, cirurgia geral, UTI, pronto-
Neste estudo, o foco é averiguar a efetivação da
socorro, unidade de terapia semi-intensiva neonatal,
Política Nacional de Saúde Integral LGBT e os possíveis
neonatologia), seis consultórios, cinco salas no centro
entraves para a incorporação dessa política no dia a dia
cirúrgico e obstétrico. A instituição atende à Planície
dos dispositivos de saúde, mais precisamente a partir Litorânea do Piauí, a qual é composta por 11 municípios,
da experiência de travestis e transexuais e do olhar além de municípios pertencentes a Estados vizinhos
de profissionais de um hospital estadual de urgência (Maranhão e Ceará).
e emergência. A análise desses fatores se dá a partir O segundo público é justamente a população
de relatos e experiências de profissionais e usuárias LGBT usuária, não só especificamente da atenção
no sistema de saúde da cidade de Parnaíba-PI. Para terciária, mas também do sistema de saúde como um
isso, atentou-se para a determinação social, estigma e todo. Neste estudo, contou-se com a participação de
preconceitos direcionados à população LGBT e possíveis quatro usuárias do sistema de saúde que se identificavam
impactos para o acesso à saúde. como transexuais e travestis residentes da cidade de
Parnaíba-PI. Com as usuárias, buscava-se conhecer as

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possíveis potenciais e dificuldades vivenciadas nos A análise de discurso admite a linguagem longe
dispositivos de saúde frequentados. A dupla composição de ser neutra, ou seja, a linguagem é um meio que

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da amostra se justifica pela necessidade – do ponto de demonstra a construção social e cultural dos sujeitos5.
vista do pesquisador – de que a análise seja realizada a O sujeito é produzido; não é dono, muito menos a
partir de dados vindos de perspectivas diferentes e sejam origem daquilo que diz, mas tem a ilusão de sê-lo6. Dessa
comparados. forma, a análise teve o objetivo de investigar os sentidos
Esbarrou-se com a dificuldade na realização estabelecidos nos seus diferentes modos de exteriorizar-
das entrevistas: no contexto hospitalar, os profissionais se durante as entrevistas, os quais foram verbais e não
demonstravam receio de se expor e expor a instituição; verbais; bastou-se, para isso, que tais sentidos fossem
além do mais, relatavam falta de tempo, pois as entrevistas percebidos e captados para então serem interpretados.
eram realizadas em meio aos plantões. Quanto às Todo o método esteve de acordo com a literatura
usuárias entrevistadas (travestis e transexuais femininas), trabalhada ao longo do processo de trabalho, com o
por diversas vezes tivemos que remarcar e/ou desmarcar conteúdo discursivo trazido pelos sujeitos entrevistados
entrevistas, seja por indisponibilidade, seja por receio e com as vivências e observações do pesquisador durante
das mesmas em participar da pesquisa, constatando-se a imersão no âmbito da saúde.
ser reflexo do acúmulo de situações de preconceito e Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética
violência já experienciadas por esses sujeitos.
e Pesquisa da Universidade Federal do Piauí, Campus
A primeira amostra esteve composta por dois
ministro Petrônio Portella, com o número de registro
enfermeiros, uma técnica em enfermagem, uma assistente
2.527.830.
social e duas recepcionistas da instituição de saúde. As
perguntas direcionadas a eles eram abertas, de forma que
RESULTADOS
a entrevista era conduzida a partir do que estava sendo
trazido pelos entrevistados, a fim de que se explorasse
Após a análise e comparação das entrevistas,
mais o que interessasse à área temática da pesquisa.
percebeu-se em comum entre profissionais e usuárias o
Foram feitas perguntas sobre o conhecimento e a prática
desconhecimento da existência da Política Nacional de
da política LGBT, tipos de violências presenciadas ou
vividas – além da investigação da violência institucional Saúde Integral LGBT, assim como dos direitos garantidos
velada –, opiniões acerca da política e a prática da a esse público por meio dessa e de outras políticas no que
integralidade nos dispositivos da saúde. Exploraram- diz respeito à saúde. Apesar do SUS ser uma conquista da
se também na entrevista quais seriam as demandas população e depender da participação social para o seu
responsáveis por levar essa população ao hospital. planejamento e gestão, seus princípios ainda são pouco
Além disso, os questionamentos giravam em torno de conhecidos pelos brasileiros. Nesse sentido, a constante
possíveis situações de preconceito praticadas/ocorridas (re) construção e melhora desse sistema se dá também
na instituição. Analisaram-se as entrevistas para além do por meio da participação popular nas conferências e
que foi dito, com a Análise do Discurso (AD). conselhos de saúde7.
As usuárias relatam ter vivido situações de
[...] pode-se afirmar que o corpus da AD preconceito nos dispositivos de saúde em que buscaram
é constituído pela seguinte formulação:
assistência. Por exemplo, uma das entrevistadas que se
ideologia + história + linguagem. A ideologia
é entendida como o posicionamento do reconhece como mulher trans descreve uma dessas vezes:
sujeito quando se filia a um discurso, sendo
o processo de constituição do imaginário É porque dia da mulher é na quinta-
que está no inconsciente, ou seja, o sistema feira e dia do homem é na sexta. E se eu
de idéias que constitui a representação; quisesse ser atendida por ela eu tinha que
a história representa o contexto sócio- ir no dia do homem. Aí eu peguei e disse
histórico e a linguagem é a materialidade pra ela (trabalhadora do dispositivo de
do texto gerando ‘pistas’ do sentido que o saúde): mulher, pois eu não vou no dia do
sujeito pretende dar4:680-1. homem não, eu vou no dia da mulher. (A

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trabalhadora disse) que não era pra eu ir queixas são normais (questiona-se sobre
no dia da mulher não, que tinha muita a utilização de hormônios). Até hoje, não
mulher, não sei o que mais lá! Aí eu fui (na atendi ninguém por causa disso, é mais por
quinta). Ela negou atendimento. Eu tive que acidente ou então por uma gripe ou alguma
ir na sexta e ainda fui (atendida) depois de dor, algo assim. (Enfermeiro 2)
todos os homens. (Usuária 2)

Apesar do receio de se comprometer ao longo


Quanto aos profissionais, percebeu-se certo da entrevista, e de negar a existência de preconceito na
distanciamento entre eles e as usuárias do universo instituição, em dado momento, quando questionado
LGBT. Em todas as entrevistas realizadas, a polaridade de outra forma sobre preconceito, um dos enfermeiros
nós/eles estava presente nos discursos de forma enfática. descreve:
Nos relatos/falas de todos os trabalhadores entrevistados,
constatou-se a pouca importância dada às necessidades Eu sinto preconceito [...] como eu já
de saúde específicas do grupo quando esses prestadores observei [...] não foi nem preconceito, mas
foi a questão de nomes, né! A pessoa vai à
de assistência diziam tratar a todos os pacientes da recepção, e eles têm um nome social [...]
instituição sem qualquer distinção e entender que a muitas vezes, eu sinto que o preconceito
política fora criada com esse intuito. começa daí. Das críticas, até na forma
mesmo deles serem tratados do início,
da recepção até passar pelo atendimento
[...] eu não faço diferença no atendimento médico, eu sinto que eles são discriminados.
pra eles (população LGBT). Porque É diferente, eu já percebi isso. (Enfermeiro
quando eles chegam aqui no hospital, eles 1)
chegam uma queixa assim [...] geral. Os
sintomas que eles apresentam, as queixas
que eles apresentam é a mesma que a Outra usuária entrevistada descreve o preconceito
maioria das pessoas tem. Então, assim, associado às infecções sexualmente transmissíveis:
eu não faço distinção nenhuma. Não tem
nenhum tratamento específico, nenhum
encaminhamento específico. Pra mim, é “[...] eles (profissionais) não têm a mente
igual o tratamento. O atendimento é igual muito aberta, eu acho que eles não tão
pra todos, independentemente da classe. preparados pra trabalhar com o público
(Enfermeiro 1) em geral, porque, tipo, a maioria chega
lá, eles tratam com descaso, olham torto
pras ‘trava’, acham que a ‘trava’ tá indo lá
Albuquerque et al.8 apontam para a fragilidade da porque a ‘trava’ tá doente, tá com alguma
relação profissional/usuário no que tange à comunicação, coisa que vai pegar tendo muito contato, eu
acho que seja isso, eles não tão preparados
já que o fornecimento de algumas informações pra atender.” (Usuária 2)
importantes muitas vezes não ocorre por conta da
sexualidade e do estigma que a cerca, o que acarreta na Um dos trabalhadores corrobora o relato anterior
perda de oportunidades para a promoção da saúde. da usuária, ao reconhecer o posicionamento de alguns
A narrativa – de todos os entrevistados – de que colegas:
nunca receberam em seus plantões usuárias trans com
queixas relacionadas ao processo de mudança corpórea, [...] eu vejo dessa forma, não é que
faz surgir um questionamento para o pesquisador: se já é eles (população LGBT) são [...] não é
invisibilidade; é mais é preconceito mesmo!
constatado que esse processo ocorre com sujeitos dessa Preconceito de acreditar que são eles que
realidade e que, inclusive, é causa de sofrimento, por que podem transmitir doenças mais que os
essas usuárias não chegam ao serviço? E, se chegam, por outros, que são eles que podem receber
doenças mais que os outros [...] eu vejo
que não são percebidos? mais como preconceito. (Enfermeiro 1)

Eles vêm por queixas várias, não é


nada assim que acometa só a eles não, Os profissionais relatam ainda ter pouco tempo
mas atendemos muitos deles aqui. As para conhecer as políticas existentes e para produzir

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novos modos de cuidado. Percebe-se que a rotina e os Nogueira11 considera o corpo como uma linguagem,

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plantões cansativos engessam esses trabalhadores e que sendo a representação de identidades e grupos. Nesse
o processo de formação na saúde deixa a desejar quando sentido, a remodelagem do corpo é tomada como
não se preocupa em promover sensibilidade e senso de produção e produto de significados, além da constituição
corresponsabilização ao longo da graduação. e reconhecimento de si.
Abrahão e Merhy9 reconhecem que, quando a As situações mais recorrentes resultantes do
formação em saúde centra-se exclusivamente no saber processo transexualizador clandestino que chegam
científico, todo o universo que o usuário traz consigo é aos dispositivos vão desde o uso indiscriminado e sem
desconsiderado, reduzindo-o apenas à doença. Os autores orientação de hormônios e do silicone industrial, abuso
destacam como consequência dessa aprendizagem, dentre de drogas, violência, até as queixas também derivadas de
outros, justamente o que é percebido também neste ordem social e psicológica. Logo, o acesso universal e a
estudo: nos serviços, existência de barreiras ao acesso disponibilidade de serviços ofertados têm se mostrado
e distanciamento entre profissionais e usuárias. Dessa imprescindíveis, aliados ao preconizado pelo SUS:
prevenção, promoção e recuperação da saúde.
forma, a PNSILGBT não existe e não é efetiva na realidade
Para Carvalho12, o conceito de saúde se mostra
pesquisada, refletindo negativamente na qualidade da
como resultado de uma complexa produção social e
assistência destinada a esse público, distanciando-o dos
está imbricado nas decisões políticas incidentes sobre os
serviços de saúde.
seus determinantes sociais. Louro13 destaca que a atual
e progressiva aceitação dessa pluralidade por parte da
DISCUSSÃO
sociedade não pode deixar de esquecer os embates já
sofridos e ainda recorrentes. Alguns segmentos tradicionais
Em virtude da ciência de que o acesso integral desejam retomar valores convencionais da família,
à saúde ainda não faz parte da realidade do Sistema excluindo esses modos de vida destoantes, utilizando-
Único de Saúde brasileiro e da vida da população se desde campanhas até manifestações de agressão,
LGBT, são mobilizados estudos e pesquisas para que se discursos de ódio e violência física. Albuquerque et al.8
compreendam os entraves responsáveis por isso. Teixeira, sustentam que, mesmo que venham surgindo no Brasil
Morais e Teixeira10 enumeram algumas das principais buscas e conquistas no que tange ao direito de cidadania
demandas trazidas por essas usuárias aos dispositivos para a população homossexual, ainda há escassez de
de saúde, dentre elas, queixas com relação a conflitos conhecimento quanto às suas necessidades em saúde.
familiares, rejeição, dificuldade na garantia do trabalho e Logo, o conhecimento dessas necessidades é primordial
no acesso aos medicamentos necessários, falta de espaço para fomentar o desenvolvimento das políticas de saúde
de inserção escolar, restrita rede de apoio, estigmas e direcionadas à categoria. Tais políticas se mostram
preconceito social, que envolvem questões – a priori necessárias para o enfrentamento do preconceito cuja
– básicas hoje em dia com relação ao nome social e ao existência já fora reconhecida no âmbito da saúde.
nome de registro. Facchini14 presume que a resistência relacionada
Especificamente entre o público de transexuais e à procura dos serviços de saúde apresentada pela referida
travestis, os riscos são mais evidentes, visto que o processo população evidencia a discriminação que ocorre por
de mudança corpóreo se não recorrente, é desejado. conta do contexto heterossexual dominante, da falta de
Com o propósito de obter o corpo tão aspirado, nem qualificação e do preconceito dos trabalhadores da saúde
sempre esses sujeitos valem-se dos métodos seguros e diante dessas demandas. Desta forma, reconheceu-se
indicados. Apesar de almejado pela maioria, vale ressaltar que a violência e o estigma social sofrido pela orientação
que o processo transexualizador não é determinante sexual e pela identidade de gênero afetam o processo
para identificar a transexualidade, podendo um sujeito de adoecimento e sofrimento, assim como dificultam o
reconhecer-se trans sem que tenha se submetido a acesso à saúde, à educação, ao lazer, ao trabalho, dentre
qualquer procedimento de modificação corporal. outros.

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Diante do exposto, emerge uma questão ser pensado como um processo social ligado às relações
importante com relação à conduta dos profissionais de poder, dominação e controle. Logo, identificou-se
da saúde diante das diferenças, dentre as quais se que a reprodução do estigma reflete na valorização de
atenta aqui para a diversidade sexual. Para Abrahão e determinados grupos sobre outros, esses últimos, na
Merhy9, a formação dos trabalhadores da saúde deve maioria das vezes, são marginalizados. O Ministério
ser um trabalho vivo, capaz de estar constantemente da Saúde, através da Secretaria de Gestão Estratégica e
convocando novos métodos e técnicas de cuidado, que Participativa17, reforça que, para enfrentar tais estigmas,
acompanhem e reconheçam as mudanças decorrentes da é necessário se atentar para o estabelecimento da
contemporaneidade. democracia social e, com isso, buscar uma consciência
A existência da Política Nacional de Saúde Integral sanitária implicada com a defesa do direito à saúde e dos
LGBT vai muito além do que se propõe. Nesse sentido, direitos sexuais.
Santos et al.15:405 afirmam que “sua consequência mais Os princípios da Lei Orgânica da Saúde18 prezam
significativa está na transformação do imaginário social, pela igualdade em todos os locais e níveis de assistência.
na superação dos preconceitos que permeiam a vida e No entanto, esta pesquisa apontou que existe uma
as relações sociais e que se abatem marcadamente sobre ligação entre estigma e desigualdade social na realidade
esse público”. Assim, o trabalhador da saúde é um sujeito de travestis e transexuais. Em seu artigo 7º, essa lei
detentor de uma história, pertencente a determinado garante, dentre outros: “I - universalidade de acesso aos
contexto e cultura, e não está alheio ao imaginário serviços de saúde em todos os níveis de assistência; [...]
social que o constitui e o cerca. Sendo resultado dessa III - preservação da autonomia das pessoas na defesa
construção social, ele age de acordo com ela onde quer de sua integridade física e moral; IV - igualdade da
que esteja, inclusive no âmbito de trabalho. assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de
Consequentemente, o exercício das profissões qualquer espécie”. Para Ferreira, Pedrosa e Nascimento19,
está imbricado nos valores morais dos indivíduos, sendo é imprescindível que o SUS crie estratégias para ofertar e
que as atitudes e posturas tomadas variam de acordo com acolher esse público, pois a maior dificuldade no acesso
os valores que possuem. Entretanto, observa-se que tais aos serviços se dá pelo fato de que esses sujeitos não são
valores interferem na qualidade da relação profissional/ reconhecidos enquanto detentores de direitos, desejos,
usuário (vínculo), relação que se mostra de fundamental aspirações e contingências que lhes são próprios.
importância para a produção de saúde. Ademais,
percebe-se que tais juízos de valor prejudicam ou até CONCLUSÃO
mesmo provocam distanciamento, chegando a impedir
que o acolhimento e o processo de cuidado do usuário Tendo em vista todo o processo do presente
ocorram. Ainda em consonância com Santos et al.15:405 estudo, a priori, fazem-se necessários o preparo e o
“qualquer forma de discriminação é fator limitante da conhecimento da Política Nacional de Saúde LGBT por
saúde e promotor do adoecimento, inclusive a própria parte não só das usuárias e dos profissionais da saúde,
homofobia”. mas de toda a equipe que trabalha nos dispositivos. Além
disso, é preciso refletir a respeito da atual conjuntura em
Assim, o atendimento à comunidade LGBTT que se encontra a saúde desse grupo, a fim de que se
nos serviços de saúde está permeado pelos
dilemas socioculturais, visto que a relação identifique as dificuldades de implantação das políticas
entre profissional e usuário representa que atendam efetivamente às suas demandas.
o encontro de mundos distintos – fato A compreensão de que existem determinantes
que seria amenizado por uma atuação
profissional fundamentada nos princípios sociais e demandas específicas – a depender do usuário
éticos15:406. – tornariam os trabalhadores da saúde mais sensíveis
para perceber tais especificidades. Nesse sentido,
Parker16 afirma que o conceito de estigma deve pequenas atitudes como a preocupação com a utilização

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