Você está na página 1de 14

QUEM PINTA UM QUADRO

ESCREVE UM CONTO

Autor Anónimo
2013
O filme “A rapariga do brinco de pérola” foi baseado no livro de Tracy Chevalier com o mesmo
nome e ambos inventam a história de quem seria a rapariga que Vermeer pintou.
“Quem conta um conto acrescenta um ponto” diz o popolaço e eu dei o título genérico a esta
coletânea de "Quem pinta um quadro escreve um conto" e comecei a escrever sobre um
quadro de cada pintor, normalmente um quadro menos conhecido. O primeiro “Quando te
casarás” de Paul Gaugin.
1 Quando te casarás Paul Gaugin
2 A minha cabana Georgia O’Keff
3 Auto retrato com orelha cortada e cachimbo Van Gogh
4 A ceia em Emaús Caravaggio
5 Autorretrato período azul Pablo Picasso
1 - QUANDO TE CASARÁS?
PAUL GAUGIN
Andavam as duas raparigas a apanhar lenha para as fogueiras das casas, sem mais
preocupações que o trabalho que lhes tinha sido destinado naquele dia. Porquê a
elas e logo as duas na mesma ocupação? Não eram irmãs; via-se pelo rosto, pelos
olhos, pelos gestos. Talvez primas que numa ilha todos são familiares de todos ou
por via directa ou por antepassado mais longínquo que aportou naquelas
paragens de águas calmas e clima tépido, a gozar o sol, a água, as belezas
naturais.

Sentaram-se à sombra de uma árvore de fruto em campo de erva verde pouco


crescida, que o gado não deixa desenvolver, poisando os feixes ao lado e
descansando. Ficaram em silêncio, uma ligeiramente atrás da outra, sem se
olharem. Porque não se sentaram frente a frente que é o modo de todo o ser
humano encarar outro ser humano. Mesmo que não troque palavra, os olhos e os
rostos dizem por vezes de mais uns aos outros. Falam das alegrias e das tristezas,
dos pequenos contentamentos, das raivas, das dúvidas das pequenas coisas.

Uma pedra ali perto, onde se podiam ter encostado, mas não que nestas ilhas do
sul respeita-se a natureza como não se faz noutros lados. Ao longe as serras roxas
do início de tarde, já com um pouco de neblina que se começa a libertar do prado
e das palmeiras que se acolhem no pé da serra onde bebem toda a água possível
e, das folhas que se vão juntando fazem o seu alimento que em breve também
elas o serão dos outros seres.

Entre as palmeiras de ao pé da serra e estas duas mulheres, estão dois homens de


alguma idade, um pouco indefinida, talvez um pouco mais para lá que para cá,
sem se saber ao certo que idade eles têm. O que andam eles a congeminar?
Talvez sobre tanto terreno que poderia ser cultivado. Plantar palmeiras que
crescem depressa e dão coco para mantimento e folhas que servem para tudo,
desde entrançado em cestos, em roupas, como telhado das cabanas que a chuva
sempre estraga. Talvez sobre o capim que dava pelos joelhos e apresentava cor
de aloirado pronto para ser colhido. Talvez as duas raparigas sejam suas filhas e
estão precisamente a falar sobre elas. Talvez falando sobre os seus problemas. Os
nadas desta vida que todos dão preocupação. Talvez problemas maiores da aldeia
que tudo precisa de ser resolvido a contento de uns e outros, mas numa aldeia
convém que se ponderem prós e contras, nem sempre se tendo razão, ou tendo-
a, fazer o que se achar por melhor. Depois, verem que há muitas maneiras de
fazer as coisas mal e muito poucas de se fazer pelo simples e prático e dar o
melhor proveito.

Destes sujeitos não nos preocupemos que estão na paisagem naquele instante
sem ninguém saber porquê. Apenas ali estão.

Quanto às raparigas, e porque não mulheres, de pele escura que não preta; mais
para o castanho, fortes e largas como é típico destas paragens e é vergonha ser só
pele e osso, envergam vestido de cor laranja comprido uma, que por onde entra o
vento refresca, a outra uma saia vermelha com motivos também laranja e blusa
branca a dar para o largo com decote avantajado sem se ver mais do que se deve,
ambas com flores brancas, talvez magnólias, nos cabelos negros, e compridos e
lisos como é comum, e penteados de risco ao meio, bem desenhado com metade
do cabelo para cada lado. Os pés descalços que dão a liberdade ao pé e a
segurança no andar, que nunca gostaram de se sentir prisioneiros.

Uma olha para a direita, a da frente, a que está mais atrás olha para a esquerda,
um pouco na direcção da amiga, mas muito mais para lá longe, no infinito ou mais
além, sítio donde veem os pensamentos. A da frente apoiada num braço e uma
perna cruzada, a de trás sentada de pernas cruzadas vendo-se a mão direita de
dedos encolhidos e agrupados com o indicador cumprindo a sua missão de indicar
para o lado de lá, exactamente no sentido contrário ao dos olhos.

Uma, de mangas compridas, a outra, de mangas à cava, sinal de calor e bom


tempo. Talvez verão que a maior parte das ervas estão amarelas e castanhas mais
que verdes. Também não é difícil de adivinhar que no sul mesmo com chuva
todos os dias são de verão. O frio não se compara com outros frios e o calor é
sempre ameno.

Quando se irão olhar? Encarar-se frente a frente?

Eram as mais velhas da casa das mulheres. As solteiras a partir de certa idade já
não viviam com os pais. Tinham poiso próprio onde se cuidarem, daí terem sido
elas a ir à lenha desta vez. Outras foram à horta, aos frutos, à água e tudo o mais
que faz sempre falta numa casa onde vive gente. Por mais diligentes que sejam, o
trabalho, mesmo dividido por muitos, parece que se multiplica e nunca finda. A
toda a hora há mais que fazer. Nasce como cogumelos em tronco podre.

Levantando-se e cada uma pegando no seu carrego, ajudaram-se a por à cabeça


cada uma o molho da outra, que não se vê mas adivinha-se pesado.
Começaram a andar, pé à frente de pé, pensamento com pensamento, uma
adiante da outra quando o caminho era mais estreito, as duas lado a lado quando
o caminho se alargava e o permitia.

Falar não falavam, que toda a conversa, sobre isto e aquilo, serviria apenas para
disfarçar uma única preocupação. E eu?

Já perto da cabana comunitária, com as companheiras convergindo também no


mesmo ponto, rindo e conversando, cantando e bailando, porque mais novas e
portanto com outras preocupações vinham em alegre reboliço, fazendo a festa da
juventude.

Elas continuaram caladas, até que se viraram e dando vazão a um pensamento


preso que nem água em açude prestes a rebentar perguntaram-se em voz baixa,
quase sumida, mais para si que para a amiga: “ E tu quando te casarás?”
2 - A MINHA CABANA

GEORGIA O’KEEFFE
Pintar, dar expressão ao sentir e ao pensar ou apenas deixar correr. Como forma
de cura, de terapia. Talvez nem se lhe possa chamar tal, apenas espalhar tinta
numa tela, num suporte, com alguma lógica, meio abstracto meio concreto.

Em telas pequenas? Não. Para me libertar preciso de espaço… de correr. Uma


linha é sempre condicionada pelo tamanho do suporte e a vontade de se
espreguiçar é que a faz linha. Encolhida, enrolada em novelo não passava de um
ponto. Quanto mais se estica mais a linha é linha.

Vou pintar flores. Apetece-me pintar flores. Vou deixar as paisagens por agora.
Chega das securas do México e dos arranha-céus de Nova Iorque. Já os pintei
como exercício para compreender a perspectiva. Um ponto de fuga, dois pontos
de fuga, estão perfeitamente representados em Nova Iorque no edifício do hotel
Shelton. Basta colocar-me numa esquina, olhar para a esquerda e para a direita e
tenho os dois pontos de fuga. Depois a parte de trás dos prédios compõe as
paredes do rectângulo. Olhando para cima e temos o rectângulo afunilando até lá
longe, se chegasse ao céu teríamos uma pirâmide.

Flores. Várias flores. Transpor para a tela jarros mostrando o que não se vê por
banal de se olhar, ou porque são flores de segunda ou terceira categoria. Não têm
perfume, de cor uma espátula branca ou por cruzamento de vários, do amarelo
até ao vermelho, plantas artificiais fruto dos caprichos. O jarro sério e honesto é
uma planta de beira de água, de charco, de terra inundada, alto com mais de
metro de verga quando adulto, flores de palmo, brancas como leite e enroladas
que nem cartuxo para as pevides. É este o retrato de tal planta, mas se forem
pintados em grupos em que se mostram apenas partes e partes de partes, talvez
as pessoas comecem a olhar para estas e outras flores no geral e a vê-las de
forma diferente.

E se além de jarros pintar rosas, brancas como a neve, grandes como nuvens, com
grande aproximação, como se fotografasse com uma macro, em que não se sabe
se é rosa ou uma pintura abstracta que talvez lembre um sonho, branco e fofo.

Vou pintar a partir das flores. Vou-me rodear de um molho delas ou fotografo e
pinto a partir de fotografias? Estas não mudam. Pintar a partir das fotos de outros
não o faço, que na fotografia já está o olhar de quem a toma e a forma como vê o
que fotografa.
Levar as flores para casa, em vasos é um carrego sem fim que não dá para
transportar mais que dois ou três de cada vez. Onde encontrar a melhor luz?
Pintar uma de cada vez? Fazer ensaios, estudos? Se forem flores de corte, pôr em
jarras? Tenho que mudar a água todos os dias; mesmo assim vão murchando. O
que se pintou ontem, hoje já está diferente e amanhã ainda mais seco. Questões
que tenho que resolver.

Pensando bem o ideal é tirar uma série grande de fotos. Pegar nos materiais: uma
dúzia de telas, as tintas, paletas, produtos e vou-me fechar em casa sem atender
ninguém.

Nada de telefones nem conversas.

Apenas comer e pintar, pintar e comer.

Não! O melhor mesmo é ir para o lago George e não me preocupar com nada
disso. A natureza sempre me forneceu o material necessário para o meu trabalho.
Só tenho que transportar os materiais e pintar o que me aparecer pela frente.
Tenho lá as rosas, os jarros, os nabos selvagens, as anémonas. Está na altura das
túlipas estarem em flor, estão sempre em flor algumas helicónias e hibiscos.
Posso sempre descobrir outras ou compor ramalhetes e combinações de várias
destas plantas.

Algumas, nem preciso de olhar para elas. Os hibiscos as helicónias, os nabos


silvestres, esses sim, tenho que me colocar em frente deles para lhes tirar o
retrato, que são de pinta difícil e não os sei de cor.

Quando estiver farta das flores ainda pinto “A minha cabana”.


3 - AUTORETRATO COM ORELHA CORTADA E CACHIMBO

VICENT VAN GOGH


Está complicada esta minha vida. A minha prima não quis casar comigo. Não sei
porquê mas o meu pai também não ficou nada contente com a minha ideia.

Eu sei que como pregador tive momentos de inspiração mas eu tenho que ser o
médico das almas e nestes tempos o que o crente quer é uma receita para a
salvação. Quer acreditar que, se sofre nesta vida, tem direito a ser recompensado
na vida eterna. Sermos compensados quando passarmos para o lado negro, ou
branco, deste vale de pecados. E eu não tenho essa receita, nem para mim, que a
Bíblia não é um livro de boticário.

Como o meu irmão Theo começou a vender obras de pintores porque não
começar também a pintar? Tinha uma vida livre de horários e patrões e por outro
lado está na linha da família que todo o holandês tem de comerciante, ou não
tivessem cá sido acolhidos os judeus desde o século XVI.

Experimentei alguns temas em Nuenen mas os resultados não foram animadores.


Estudei os museus da Holanda. Já houve bons pintores mas eu Van Gogh tenho
que ser o Van Gogh e não o Rembrandt segundo ou o continuador do Van Dyck.
São bons. Foram bons mas nunca pintarei como eles. Eu estou no século XIX.
Pinto o século XIX.

Pintei os trabalhadores, afinal sou como eles, todos os dias sofro para produzir as
batatas do almoço e da ceia. Não ando de enxada mas muitas vezes os pincéis e
as paletas pesam muito mais. Esta incerteza de vida sem ninguém a quem explicar
o que faço, o que me apetece, o que quero. Dói-me como uma facada no peito.

O meu pai já se foi. Pouco me apoiou no que quer que fosse. Muitas vezes ao
quererem o melhor para nós, não nos perguntam o que queremos.

Os trabalhos do campo, na Holanda são trabalhos de penumbra, mesmo ao meio-


dia o Sol não se decide a brilhar e esta falta de luz põe-me aborrecido. Ando triste
com tudo e discuto com todos. De vez em quando escrevo a Theo, que dentro dos
vários tios, primos e irmãos ainda vai sendo o único que me atura. Talvez me
compreenda, mas não tenho a certeza. É um pouco como eu, mas relaciona-se
melhor com as pessoas do que eu. Como comerciante de arte tem que falar com
os pintores, ganhar-lhes a confiança. Convencê-los de que vale a pena vender os
seus quadros. Falar com os galeristas para exporem os novos pintores. Pintores
que todos os dias chegam a Paris. O meu irmão diz-me que alguns nunca pegaram
num pincel. Paris está a ser moda; é uma cidade com várias cidades. Montmartre,
o Quartier Latin, as hortas e os moinhos fora de portas. Apanha-se uma caleche e
estamos nestes antigos poisos agrícolas em menos de meia hora. O Moulin
Rouge, o Moulin Gallete. Bons sítios onde levar uma miúda a dançar, para beber
absinto, falar com pintores, uns melhores, outros que nunca serão reconhecidos.
Escritores. O que serei daqui a cinco ou dez anos?

Será que Theo quererá ser meu agente? Organizará alguma vez uma exposição
dos meus trabalhos?

Tenho que pintar em força e com vontade. Nestes anos de oitenta e três a oitenta
e seis pintei várias obras, mais para o escuro, tristes como a minha alma. Caras
sofredoras, que como eu sofro todos os dias e não se avizinham tempos de
alegria.

Preciso de ir para o Sul. Para o Sol, para a Luz. Um lugar sossegado onde se
juntem os artistas para trabalhar e produzir. Mandam-se os quadros para Theo ou
outros marchand organizarem as exposições temáticas, ou por artista, em Paris.

Arles é um bom local. Temos os campos nas diversas fases da lavoura, o mar ali
por perto. Temos as pessoas da aldeia. Uma centena de habitantes podem ser
úteis para treinar a pintura de retratos. Há sempre um café que pode ser cenário
para diversos quadros, quer de dia quer à noite. Podem-se pintar as empregadas.
Se formássemos uma boa comunidade a viver em várias casas podíamos
comparar os nossos trabalhos, explicar os diferentes pontos de vista. É uma boa
ideia. Estou entusiasmado. Já falei a Theo e ele apoiou a ideia. Iria visitar-nos.
Seriam umas férias de Paris. Nós organizávamos as pinturas para ele ver. Até
podia lá ir com alguns galeristas. Toda uma comunidade produtiva a trabalhar no
belo, a criar a beleza que o mundo irá apreciar e admirar nos séculos vindouros.

Será notícia nas bocas do mundo. A produção da beleza concentrada num local.
Mais pintores virão para Arles. Talvez se juntem outros pintores em comunidades
por esse mundo fora. Esta ideia é extraordinária. Tirar os pintores dos seus
ateliers escuros, onde se preocupam a preencher mais um metro quadrado de
tela e não se visitam, não se encontram não trocam ideias.

Já ninguém sonha em aparecer no Salon.

Chega de pintar deuses e deusas. Cenas Bíblicas. Pintamos o povo, massa


anónima de gentes. Paisagens que não parecem mas são a realidade. Medas de
feno, ceifas, hortas. Campos de trigo com ou sem corvos. Ciprestes altos que
parecem rezar aos céus.

Vou pintar o meu auto-retrato, com barba, quando me apetecer não a desfazer;
com um olhar sonhador, com um olhar alucinado, com chapéu de palha quando
for Verão…

Quando me conseguir libertar desta vontade de fazer mas que não me deixa fazer
nada.

Se o Gaugin fosse comigo? Ele diz que vai. Mas não faz nada para ir. Penso que
nem sabe onde fica Arles. Se terá os seus temas favoritos, as suas cores. Se terá
de mudar de paleta?

Sentia-me bem se ele fosse. Animávamo-nos um ao outro. Ele também fala em


deixar Paris e ir para os mares do Sul. Será que confunde o Mediterrânio com as
ilhas francesas dos mares do sul?

Mais ninguém diz nada. Irei sozinho. A solidão sozinho não é a pior solidão. Esta
solidão de Paris com tantos amigos que nunca estão presentes quando são
precisos, e eu não me posso sentir sozinho, é que dá cabo de mim. Nem sei do
que sofro.

Se tivesse mais dinheiro, sem estar sempre a pedir a Theo, era mais feliz. Fazia o
que tinha vontade sem olhar para trás. Ainda mais Theo pensa casar com Johanna
e eu saio do círculo e nunca mais me ajudará. Não tenho obras que cheguem para
uma exposição. Nem em quantidade nem em qualidade. Theo não se empenha
em vender os meus quadros, ou tem vergonha de mostrar o que é meu. Santos da
casa nunca fizeram milagres, e no campo dos negócios, irmãos também não.

Mas se não fosse ele quem venderia os meus quadros?

Talvez o Durand-Ruel? Ele nega-se.

Então o teu irmão é comerciante de arte e tu queres que seja eu a vender os teus
quadros? Não o faço a teu irmão que ele é um bom homem e um comerciante
sério e honesto. Não penses em tal.

É mais fácil cortares uma orelha a eu trair teu irmão.

E se cortar a orelha e pintar o meu auto-retrato vendes-me o quadro?

Você também pode gostar