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Da Rússia para uma casa de Verão na Comporta - PÚBLICO 3/20/17 5:08 PM

Da Rússia para uma casa de Verão na


Comporta
Com a encenação de Veraneantes, de Maksim Gorki, Nuno Cardoso continua a
fazer a ponte entre os costumes e a vida social do passado e do presente. E, pelo
caminho, a “bater nos outros”, mas primeiro em si próprio. Para ver no Teatro
Nacional São João até 18 de Março.
MARIANA DUARTE
9 de Março de 2017, 14:35

! "

Piscina, música lounge, bebidas à disposição, vestuário informal mas de bom-tom,


entre pólos Lacoste, calça branca e sapatilha da moda.

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Da Rússia para uma casa de Verão na Comporta - PÚBLICO 3/20/17 5:08 PM

Era suposto estarmos nas casas de Verão (as datchas) da burguesia russa de inícios
do século XX, mas na verdade estamos entre lá e cá. Qualquer semelhança com a
actualidade não é pura coincidência: o encenador Nuno Cardoso quis trazer para
um certo Portugal do século XXI a sua própria montagem de Veraneantes, peça de
1904 do dramaturgo russo Maksim Gorki que dá corpo à nova produção do Ao Cabo
Teatro, chegada esta quinta-feira ao Teatro Nacional São João, no Porto, onde fica
até 18 de Março (entre as próximas paragens estão o Convento de S. Francisco em
Coimbra, o Theatro Circo em Braga e o Teatro Nacional D. Maria II em Lisboa).

Se Gorki, marxista assumido, rasgava com a classe média/ média-alta ociosa, fútil e
acomodada de uma Rússia na antecâmara da revolta de 1905, o aquecimento para a
Revolução Bolchevique de 1917, Nuno Cardoso quer, por sua vez, apontar o dedo a
“uma nova burguesia parvenu, arrivista e boçal que passa férias na Comporta e
frequenta as esplanadas da happy hour”, diz. Para o encenador, a ponte com o
presente é fácil de fazer, “sem desvirtuar o texto”. “A peça foca-se num conjunto de
pessoas que falam muito mas que fazem pouco. Não modificam o status quo,
ocupam-no. Fazem parte das classes dos profissionais liberais, dos engenheiros, dos
médicos, dos advogados… Achei que isso era muito actual e um ponto de reflexão
importante na sociedade civil e na democracia que temos”, considera. “São todos
muito morais, muito hashtag não-sei-quê, reclamam muito no Facebook, mas na
prática há uma enorme indiferença e vacuidade.”

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PAULO PIMENTA

Gorki é particularmente ágil e mortífero na forma como desconstrói a falsa


consciência da intelligentsia russa de então, aplicada a tantos outros casos de hoje.
Como satiriza as conversas sobre niilismo e engajamento político, muitas delas
entre golos de vinho, alguns ataques de lucidez e verborreia pestilenta, de quem fala
(e bebe) compulsivamente para atirar areia para os olhos. “Como gostaria você de
viver?”, pergunta-se a certo momento. “Bem, muito bem”, responde-se. Mas não se
faz “nada, absolutamente nada” por isso – e se antes era sobretudo o vinho que
ajudava a esquecer, hoje há toda uma colectânea de cocktails e de gins com flor de
hibisco e açaí para afundar a cabeça com estilo.

“O Gorki tem momentos de diálogo brilhantes, em que a sua admiração pelo


Tchékhov o fez aprender algumas coisas, mas por outro lado é duro. É muito seco na
forma como vê as coisas e muito cruel nos retratos que faz”, explica Nuno Cardoso.
Tchékhov é aqui um dado importante. Não só pela influência em Gorki (há inclusive
uma referência em Veraneantes “aos malefícios do tabaco”), mas também no
caminho que conduziu Nuno Cardoso a este texto, que volta a pôr o encenador
frente-a-frente com a dramaturgia russa depois da trilogia dedicada a Tchékhov
entre 2008 e 2011 (Platónov, A Gaivota e As Três Irmãs).

Veraneantes
Autoria:Maximo Gorki
Companhia:Ao Cabo Teatro
Encenação:Nuno Cardoso
Teatro Nacional São João, Porto, Quinta a Sábado, de 9 de Março de 2017 a 18 de Março de 2017 às

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21h
Teatro Nacional São João, Porto, Domingo, de 9 de Março de 2017 a 18 de Março de 2017 às 16h
Teatro Nacional São João, Porto, Quarta, de 9 de Março de 2017 a 18 de Março de 2017 às 19h

“Alguns autores dizem que esta peça podia passar-se depois de O Cerejal, que foi
vendido para a construção de datchas, mas eu comecei a lembrar-me deste texto
quando fiz A Gaivota. Acho que é um bocado o lado b do encontro no campo”,
aponta. Um lado b mais azedo e gangrenoso, de “uma crueza que seria sempre mais
melancólica e elegante no Tchékhov, o que não quer dizer que seja melhor ou pior”.

Certo é que a temperatura do texto vai crescendo de acto para acto (e são quatro),
até “ir por ali a baixo”. Ou seja, até saltar o palco. “Eles precisam de sair de cena
porque se não vão ao focinho uns dos outros”, diz o encenador. Os 15 veraneantes
desta história, interpretados aqui por um elenco exemplar, são uma autêntica
bomba-relógio. “Só a meio é que nos damos conta da monstruosidade que é gerada
ali. O Bássov [interpretado por Pedro Frias] é um boçal autêntico e a gente conhece-
o. São os senhores que acham que podem estacionar o seu carro onde quiserem
porque o carro é caro. Ou que acham que podem ter uma mulher brinquedo e tratá-
la mal, como é o caso do Suslov [Rodrigo Santos], o engenheiro… A Júlia
[Margarida Carvalho] está maluca – de dor, acho eu –, e a própria Maria Lvovna
[Cristina Carvalhal], que é muito certeira, vai tremer com o amor que se avizinha.”

Ajuste de contas
Outra ligação que se vai tornando clara ao longo do espectáculo é o território
partilhado com a encenação de O Misantropo, de Molière, que Nuno Cardoso levou
a palco no ano passado. Com as devidas diferenças e particularidades, também este
grupo de veraneantes desliza pela misantropia, pela hipocrisia e pelo individualismo
num salão social transposto para a contemporaneidade (n’O Misantropo foi da corte
para uma discoteca), com comportamentos rasteiros, machismo à flor da pele, uma
queda inevitável para o drama e maldizer e aquela afectação coquete (“não digas
vulgaridades”, ouve-se várias vezes).

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Qualquer semelhança entre O Misantropo e Veraneantes não é pura coincidência.


Aquele certo Portugal do século XXI era o alvo a criticar em 2016, e continua a sê-lo
em 2017. “Deve ser monótono porque passo a vida a falar disto, mas acho
importante perceber como há todo um conjunto de comportamentos de classe e de
costumes com os quais podemos fazer uma ponte agora”, observa Nuno Cardoso.
“Nesta ponte para o presente não é a classe analisada do ponto de vista marxista; é
mais uma classe de costumes, uma classe socio-económica-cultural mais
massificada que vive na sua bolha”, acrescenta.

E para o encenador, “de uma forma muito redutora e ácida”, admite, isso cristaliza-
se “na Comporta, no Facebook, no Instagram, nas esplanadas happy hour”. Mas
nem ele está a salvo de si próprio. Afinal, isto também é uma espécie de ajuste de
contas na primeira pessoa. “Antes de bater nos outros estou a bater em mim”, atira
Nuno Cardoso. “Eu também faço parte disto. Se uma pessoa não se consegue olhar
de frente no espelho e dizer o que é, então não consegue ter a força prática para
saber como e quando deve agir.” Independentemente dos pólos Lacoste, da
sapatilha da moda e das férias nas praias trendy.

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