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Representacoes Sociais Da Comida No Meio Urbano
Representacoes Sociais Da Comida No Meio Urbano
Introdução
1 Estamos apresentando aqui a introdução, com algumas modificações adaptadas para esta publicação, da dissertação
de mestrado: Representações sociais da comida no meio urbano: um estudo no centro da cidade de São Paulo, a qual
foi defendida no Departamento de Psicologia Social da USP em março de 1994.
2 Departamento de Nutrição da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, São Paulo.
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em instância que veicula e reproduz também a realidade. A comida é "grande
fonte de prazer, um mundo complexo de satisfação, tanto fisiológica quanto
emocional, que guarda grande parte das lembranças de nossa infância".
(ACKERMAN, 1992) Meio de prazer e de desejo, no primeiro caso atende ao
corpo e, no segundo, à memória; através da alimentação mergulhamos nos
recônditos da subjetividade como ilustra o episódio clássico da literatura, "o
episódio das madalenas", do romance Em busca do tempo perdido - No
caminho de Swann, de PROUST (1981). Esse episódio descreve como uma
experiência do paladar pode ser encharcada pela memória.
"Muitos anos fazia que, de Combray, tudo quanto não fosse o teatro e o drama
do meu deitar não mais existia para mim, quando por um dia de inverno, ao
voltar para casa, vendo minha mãe que eu tinha frio, ofereceu-me chá, coisa que
era contra meus hábitos. A princípio recusei, mas, não sei porque, terminei
aceitando. Ela mandou buscar um desses bolinhos pequenos e cheios chamados
madalenas e que parecem moldados na valva estriada da concha de São Tiago.
Em breve, maquinalmente, acabrunhado com aquele triste dia, e a perspectiva
de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de
chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no instante em que
aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar,
estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um
prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa. Esse prazer logo me tornara
indiferentes as vissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória sua
brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou
antes, essa essência não estava em mim; era eu mesmo. Cessava de me sentir
medíocre, contingente, mortal. De onde me teria vindo aquela poderosa alegria?
Senti que estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava
infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que
significava? Onde apreendê-la? Bebo um segundo gole em que não encontro
nada de mais que no primeiro, um terceiro que me traz um pouco menos que o
segundo. É tempo de parar, parece que está diminuindo a virtude da bebida".
(pp. 45-46)
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a vida de seus comensais. Devem ser preparados por cozinheiros especializados
que retiram o veneno, e conseguem deixar no prato resquícios desse veneno em
quantidade apenas suficiente para que, ao sentirem os lábios adormecidos,
sintoma da presença do veneno, seus degustadores entrem em contato com a
possibilidade da morte (pp. 208-209).
Ambígua, a palavra comer é revestida de duplo sentido, de
satisfação de dois instintos: alimentação e sexo, estendendo assim o simbolismo
a outras esferas (QUEIROZ, 1988).
A comida da lembrança, do trabalho, da sobrevivência, são outros
exemplos dos envolvimentos simbólicos da vida social. Através dela são
experimentadas e expostas as condições sociais, conforme ilustra a citação de
ZALUAR, que diz ser a comida "um dos principais veículos, através do qual os
pobres urbanos pensam sua condição" (1985, p. 105).
Na intersecção entre a natureza e a cultura, "o comer não satisfaz
apenas as necessidades biológicas, mas preenche também funções simbólicas e
sociais" ( WOORTMANN, 1978, p. 4).
Com relação a essa intersecção entre a natureza e a cultura,
traçaremos, no decorrer deste capítulo, algumas observações que permitirão
reforçar e esclarecer o motivo pelo qual optamos pelo uso do conceito de
representação social neste estudo, bem como apontaremos as possíveis limitações
que iremos encontrar.
Na definição de LÉVI-STRAUSS (1981, p. 41) "O homem é um
ser biológico ao mesmo tempo que um indivíduo social". Sendo assim, responde
ou essencialmente pela sua natureza, ou pela sua condição de ser social. No
entanto, nessa sobreposição ou justaposição, a natureza e a cultura podem estar
de tal forma interligadas que comprometem, na prática, a análise do princípio:
onde acaba a natureza e onde começa a cultura. Apesar do fracasso em
estabelecer o ponto de passagem entre os fatos da natureza e os fatos da cultura,
LÉVI-STRAUSS (1981) indica elementos que permitem chegar aos mecanismos
de articulação entre essas duas ordens.
Em nosso objeto de estudo: a comida no centro urbano,
consideramos como pressuposto encontrarmo-nos diante deste imbricamento,
que acreditamos, poderá ser delineado através das representações sociais.
O estudo da alimentação perpassa várias áreas de conhecimento que
podem delineá-la sob vários aspectos. Os próprios motivos que despertaram
nosso interesse para esta pesquisa foram as fronteiras da ciência da nutrição,
onde o objeto de estudo, a nutrição humana, detêm-se essencialmente nos
3
aspectos biológicos da alimentação no organismo humano, suas necessidades de
nutrientes, seus efeitos no corpo humano e a relação de certos padrões
alimentares com doenças. Encontrar a alimentação mais adequada para permitir
ao homem maior tempo de sobrevivência com a melhor qualidade possível de
vida, isto é, a melhor alimentação para a espécie humana, é o objetivo dessa área
de conhecimento. Nesse enfoque, a natureza humana é a referência central,
natureza essa idealizada num padrão normativo tido por ideal. Mas entre as
necessidade biológicas e a alimentação há a intermediação do homem que, em
condições disponíveis, exerce seu arbítrio na escolha alimentar.
Por outro lado, outras áreas de conhecimento abordam a
alimentação por prismas diferentes. Justificamos este trabalho por entendermos
que a interdisciplinaridade poderá indicar-nos caminhos mais elucidativos para a
compreensão do comportamento alimentar. Esta compreensão requer uma
melhor análise da relação entre o homem e o alimento.
MARX (1983) estabelece a relação entre o homem e a natureza
através do trabalho, o qual é definido como: "...atividade deliberada... para
adaptação das substâncias naturais aos desejos humanos; é a condição geral
necessária para que se efetue um intercâmbio entre o homem e a natureza; é a
condição permanente imposta pela natureza à vida humana e, por
conseguinte...comum a todas as formas sociais" (p.149-150). Da mesma forma, é
necessário buscarmos um melhor entendimento de como se dá a intermediação
entre o homem e o alimento. ACKERMAN (1990) diferencia a respiração da
alimentação pelo involuntarismo da primeira ação e o voluntarismo da segunda,
"exigindo planejamento e energia que nos faz abandonar nosso torpor natural em
busca da dieta" (p.163).
Neste âmbito, onde a mescla das necessidades biológicas, culturais
e sociais está contida, interessa-nos explorar as representações sociais
relacionadas com o universo do comer e da comida, particularmente no centro da
cidade de São Paulo. Esta temática faz parte do interesse maior que são os
aspectos simbólicos relacionados com a alimentação.
Em suma, na organização teórica do presente estudo considerou-se
relevante os seguintes aspectos:
- A interdisciplinaridade que o tema alimentação sugere.
Neste sentido, foram levantados trabalhos de várias áreas
onde encontramos referências ao tema em abordagens que
julgamos pertinentes. Acreditamos que tais pesquisas
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possam contribuir para elucidação e compreensão
psicossocial do objeto de estudo em questão;
- Como o nosso objetivo é explorar a dimensão da comida no
meio urbano, este estudo foi desenvolvido no centro da
cidade de São Paulo. Levamos em conta o modo de vida
urbano propriamente dito, ou seja, características e
aspectos da vida urbana que nos alertaram para algumas
observações que interferem nas práticas alimentares, quer
sejam: o ritmo da cidade, as relações com o tempo e o
espaço, a associação tempo/espaço com lazer/trabalho, a
diversidade incluindo tendências a homogeneidade e
heterogeneidade que convivem nos centros urbanos;
- A vinculação da alimentação com a saúde difundida em
nossa sociedade e, os reflexos desta preocupação atual nos
valores relacionados ao corpo e na busca de vida regrada,
como tentativa de escapar às doenças tidas como
ocidentais, repercutem na relação com a comida3. Esta
vinculação faz com que o aspecto nutricional prepondere
no âmbito da alimentação, substituindo pela regra um
espaço que antes era ocupado pelo prazer. Nos interessa
entender melhor, como esses novos valores vão permear o
cotidiano e imprimir um novo modelo;
- Buscamos o conceito de representação social como
referência teórica para análise, por entendermos que ele
considera o imbricamento entre natureza e cultura.
Utilizamos MOSCOVICI (1978 e 1988), como o autor
principal, já que é ele quem resgata o conceito de
representação coletiva de DURKHEIM (1970) e constrói
a teoria das representações sociais. Outros autores que
utilizam este conceito também nos ajudaram a esboçar a
fundamentação teórica do estudo pretendido.
Interdisciplinaridade
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Principalmente para situar o estudo da alimentação no âmbito da
interdisciplinaridade, defendendo este modelo como a possibilidade explicativa
mais coerente para exploração deste objeto de estudo, a título ilustrativo,
apresentamos em seguida alguns trabalhos que, direta ou indiretamente, referem-
se à alimentação e que contribuem para elucidar a amplitude em que estão
mergulhadas as práticas alimentares.
ELIAS (1990), em sua obra sobre costumes, estuda as mudanças na
estrutura do comportamento e da constituição psíquica, demonstrando o quão
doloroso foi e é o processo "civilizador" e que, portanto, os costumes não são
expressões puramente da natureza humana. Como ocorreu e quais as causas que
motivaram o processo "civilizador" do Ocidente são as principais questões desse
estudo. O autor aborda uma série de costumes, entre os quais as mudanças do
comportamento à mesa, dos hábitos alimentares e das atitudes em relação às
funções corporais, apontando para as modificações do sentimento e do
comportamento que ocorreram lentamente após a Idade Média. A leitura dessa
obra nos foi muito útil e recorreremos a ela no decorrer deste trabalho,
principalmente na discussão dos rituais relacionados à alimentação e das práticas
relacionadas ao consumo de carne.
A partir da constatação de que a família contemporânea enfrenta
hoje um impasse que a coloca numa posição fragilizada de incapacidade para
resolver seus problemas, por ter perdido suas funções e valores estando à mercê
de todos os tipos de terapias para reabilitação familiar, COSTA (1983) busca a
origem dessa mudança de comportamento no movimento higienista. Iniciado no
século XIX com a intenção de impor os preceitos sanitários da época, resultou na
imposição da educação física, moral, intelectual e sexual. Hoje, sob o invólucro
do "cientificismo", perpetuam-se valores e normas em nome da saúde física e
mental, mascarando o caráter político e sócioeconômico imposto pela ação da
norma educativo- terapêutica, através da normalização de condutas e sentimentos
que despolitiza o cotidiano com preocupações que giram em torno do corpo, do
sexo e do intimismo psicológico. É dentro dessa perspectiva que o estudo faz
referências ao corpo, à doença, à alimentação, entre outras. Envoltas em preceitos
higiênicos, nas prescrições alimentares feitas à família colonial, as concepções
médicas sobre alimentação tinham a intenção de demonstrar a ignorância dos
pais, de impor valores morais, garantindo também a penetração dos costumes
europeus no Brasil. Essa imposição colocava os costumes europeus como
superiores aos brasileiros. Muitos dos exemplos utilizados pelo autor,
encontramos hoje, com um outro verniz de linguagem, mesclados no discurso
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técnico e difundidos nas representações sociais sobre assuntos relacionados à
saúde.
Uma das citações utilizadas pelo autor diz ser a alimentação
equilibrada capaz de tornar os homens mais "dóceis e saudáveis" (COSTA, 1983,
p. 177). Hoje recorremos a outros adjetivos, mas a alimentação equilibrada é tida
como requisito de salvação contra as principais doenças ocidentais, como
garantia de longevidade e juventude. Guardadas as devidas proporções, aquele
que não adere às práticas saudáveis é visto atualmente como um herege o era
pela Inquisição.
Sob o ângulo da Sociologia e da Antropologia, em seu estudo das
transformações na organização social decorrentes dos ajustes aos meios de
subsistência na passagem de uma economia de auto-suficiência para uma
economia capitalista, numa comunidade de parceiros do interior paulista (Rio
Bonito), CANDIDO (1987) detêm-se na alimentação para ilustrar o íntimo
vínculo das relações do grupo com o meio. Da necessidade da alimentação
emerge a organização social e cultural para obtenção dos recursos alimentares.
Nesta direção, o autor combina a estatística para o estudo do nível de vida, o
ponto de vista biológico, através da qualidade nutritiva da dieta, para analisar a
forma de exploração do meio, a economia e os aspectos sócio- culturais neste
estudo sociológico que trata da alimentação.
Estudos antropológicos sobre alimentação focalizam
principalmente aspectos culturais: os hábitos, os tabus alimentares, a
organização de sociedades em torno do ciclo de produção alimentar, entre outros.
HARRIS (1978), antropólogo americano, estuda a lógica subjacente
a estilos de vida aparentemente irracionais e inexplicáveis. Certos hábitos
alimentares, aparentemente incompreensíveis, são explorados na procura de uma
explicação científica que os justifique. Por que na Índia recusam-se a comer
carne de vaca?, ou qual o motivo do tabu judaico contra a carne de porco, são,
entre outros, alguns dos aspectos de estilo de vida abordados nesse estudo. Outra
publicação mais recente do mesmo autor (1989) e mais específica sobre hábitos
alimentares, pretende desmistificar as atuais concepções sobre o consumo de
carnes. Aprofundar-nos-emos nos argumentos do autor na análise das
representações sociais da carne encontradas nos resultados deste trabalho.
Outros estudos antropológicos, com diferentes enfoques, abordam
direta ou indiretamente a alimentação. Comendo como gente (VILAÇA, 1992),
tese que trata das formas de canibalismo entre os Wari', descreve e analisa como
essa sociedade traz, na experiência alimentar, esquemas conceituais fundamentais
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à sua organização, consolidando nessa prática uma essência metafísica. As
noções de wari' e karawa significam ao mesmo tempo predador e presa, humano
e não humano, sujeito e objeto, em posições mutantes, ou seja, o karawa presa,
alimento, pode ser um wari' quando passa a ser o predador. Wari' é o que come e
karawa o que é comido. O ato da devoração é atravessado pela idéia essencial a
essa prática: tornar-se gente. Através da devoração é construído o wari', isto é,
come-se para tornar-se gente. Nessa sociedade ameríndia, a predação representa
troca e luta, reversíveis e recíprocas, onde valores da humanidade e as relações
sociais estão intrinsecamente associados. Para este nosso trabalho, recolhemos
como exemplo a profundidade filosófica que atravessa os procedimentos
relacionados à alimentação entre os Wari'.
Não enfocando propriamente os costumes alimentares, mas através
do estudo das modificações que se deram nas classes proletárias inglesas nos
últimos quarenta anos, HOGGART (1973) chega a tratar também de aspectos dos
hábitos alimentares ligados ao cotidiano, ao lazer, aos valores associados, às
relações com a saúde e o corpo.
No estudo feito entre lavradores urbanizados de uma sociedade
rural de Mato Grosso, BRANDÃO (1981), dentro de uma perspectiva teórica de
antropologia cognitiva, focaliza, entre outros aspectos, as condições concretas da
relação do agricultor com a natureza e as relações sociais que permitem o acesso,
o uso e a definição dos valores dos alimentos, constituindo assim os hábitos
alimentares.
Propondo uma interpretação histórica, evolucionista, RITCHIE
(1988) situa a alimentação como protagonista da história social, percorrendo
desde a revolução da caça até o século XX. A preocupação do autor é discutir
como os investimentos da humanidade foram organizados também em função da
obtenção da comida.
Também com enfoque histórico, TOUSSAINT-SAMAT (1991)
mostra como, desde os primórdios da civilização, para saciar a fome,
desenvolveu-se o conhecimento, foram travadas guerras, criadas comunidades e,
no decorrer do tempo, transformações ocorreram nos produtos comestíveis.
Todas essas questões são tratadas pelo autor, associadas ao comportamento, aos
mitos e símbolos que acompanharam essas transformações.
DUARTE (1986) indica a história das mentalidades para
estabelecer o cruzamento entre história econômica, história social e história dos
sistemas culturais. Reconhece a importância da psicologia na explicação de
comportamentos alimentares que a demografia e a economia não conseguem
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esgotar. Por estar a alimentação ligada a valores, critérios de gosto, símbolos de
distinção social, enfim, envolta num sistema complexo de significação, os
hábitos alimentares adquirem relativa autonomia em relação aos fatores
econômicos e constituem traços essenciais da identidade cultural.
Do mesmo modo que as disposições culturais adotadas por uma
sociedade são influenciadas pelo ambiente físico (clima, topografia, etc), a
configuração do modo pelo qual as pessoas se alimentam no meio urbano
conjuga os valores existentes com as condições objetivas encontradas.
Alguns estudos sobre o impacto das mudanças sociais no padrão
alimentar exemplificam como as condições objetivas impõem novos hábitos
alimentares. A renda familiar, a migração rural-urbana, a terceirização e a
publicidade são apontadas por TAGLE (1988) como fatores responsáveis pelas
mudanças ocorridas na alimentação em estudos realizados na América Latina.
FIDANZA e FIDANZA (1983) pesquisaram as alterações ocorridas no padrão
alimentar italiano, que acompanharam a passagem de uma sociedade agrícola-
familiar para a industrializada.
As representações sociais
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Ao estudarmos a alimentação na perspectiva simbólica,
enfatizamos que além da sua natureza biológica, o corpo é também realidade
simbólica, tal como concebe BIRMAN (1991)4 .
No estudo das representações sociais ligadas à alimentação, para
além da relação do homem com suas necessidades enquanto ser biológico,
através das práticas alimentares é estabelecida relação com o universo psíquico e
cultural. É preciso esclarecer que um mapeamento delineando esses espaços
psíquicos e culturais ultrapassa os limites deste trabalho. Em nosso estudo que
trata das representações sociais ligadas à alimentação no meio urbano,
procuraremos apontar alguns indícios nesta direção.
As questões até aqui apontadas fazem parte da preocupação com os
envolvimentos simbólicos que circundam a alimentação e que pretendemos
aprofundar na dissertação a partir do conceito de representação social. Por ser
este um conceito em discussão, compartilhado, como já foi dito anteriormente,
por diversas áreas de conhecimento e, portanto, com interpretações diferenciadas,
acreditamos ser relevante explicitar as bases às quais estaremos recorrendo para
sua utilização.
Trataremos do assunto apoiando-nos principalmente em
MOSCOVICI (1978 e 1988), que foi quem teorizou o conceito de representação
social, e recorreremos também a outros autores que utilizam este conceito,
principalmente JODELET (1988), HERZLICH (1972), KAÉS (1968) e
BOURDIEU (1983).
Como o objeto social é apreendido, interpretado e reconstituído: eis
a questão sobre a qual se debruçam pesquisadores na intenção de desvendar
melhor o problema.
A partir do enunciado de DURKHEIM (1970) sobre
"representações coletivas", MOSCOVICI (1978), apontando a insuficiência desse
conceito para explicar a pluralidade dos modos de organização do pensamento,
elabora, sob a ótica da psicologia social, o conceito de "representação social".
Situado no ponto de intersecção entre o social e o psicológico, este
conceito faz parte do universo de preocupação de várias ciências: psicologia
social, antropologia, história, sociologia do conhecimento, filosofia, fugindo ao
domínio de uma única disciplina, pois trata de uma forma de conhecimento
social.
4 "...o corpo simbólico não é delineado apenas por características inerentes ao desenvolvimento neurofuncional da
espécie humana, mas principalmente construídos pelas modalidades de relações sociais que instituem os sujeitos
como individualidades e pelos códigos culturais que as comunidades sociais constituem como sujeito, na sua
história." (p.21).
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A representação social é a construção mental da realidade, que
possibilita a compreensão e organização do mundo, bem como orienta o
comportamento. Os elementos da realidade, os conceitos, as teorias e as práticas
são submetidos a uma reconstituição a partir das informações colhidas e da
bagagem histórica (social e pessoal) do sujeito, permitindo, dessa forma, que se
tornem compreensíveis e úteis. Nesse processo, as representações sociais tornam
um objeto significante, introduzindo-o num espaço comum, digerindo-o de forma
a permitir sua compreensão e sua incorporação como recurso peculiar ao sujeito.
O objeto, quer seja humano, social, material ou uma idéia, será
apreendido através da comunicação, a partir de uma lente impregnada de valores
e conceitos significantes já existentes; ou seja, ele é triado e integrado numa rede
que traduz algo significante para o sujeito. A aproximação da realidade externa,
de modo a torná-la próxima e perceptível, é uma facilidade proporcionada pelas
representações, trazendo o mundo externo para um convívio próximo.
Segundo MOSCOVICI, a representação "não é uma instância
intermediária, mas sim um processo que torna o conceito e a percepção
intercambiáveis, uma vez que se engendram reciprocamente." (1978, p. 57)
Assim, um conceito, uma abstração passam a ter uma existência real para o
sujeito através da apropriação destes pelas representações sociais.
As representações sociais são uma forma de conhecimento do senso
comum, elaborado e compartilhado socialmente. Na construção das
representações sociais estão presentes o conteúdo (informações, imagens,
opiniões, atitudes), o objeto (um trabalho, um acontecimento, uma pessoa) e o
sujeito (o indivíduo, a família e o grupo social).
O constante movimento pelo qual um objeto torna-se representação
supõe a reprodução estilizada do conteúdo representado, através de uma
"digestão" que possibilita a experiência sobre o objeto e sua reconstituição a
partir da atividade simbólica do sujeito. Para MOSCOVICI (1978), "o sujeito e o
objeto não são congenitamente distintos", há um movimento constante entre o
sujeito e o objeto, promovendo uma interação onde ambos se modificam
mutuamente.
Quando recorremos ao conceito de representações sociais
formulado por MOSCOVICI (1978), em seu estudo sobre representações sociais
da psicanálise, prevíamos algumas dificuldades.
Nesse estudo, o sujeito incorpora ao senso comum conceitos
psicanalíticos com recursos significantes próprios e, na prática, tais conceitos,
que foram constituídos enquanto representações sociais, são utilizados para
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interpretar a realidade. No caso do presente estudo, as representações sociais da
alimentação não são conformadas apenas pela informação científica, incorporada
às práticas através da transformação em senso comum. Adensam tais
representações também a propaganda de produtos alimentícios, as condições
concretas disponíveis, os costumes alimentares, a origem cultural, os aspectos
subjetivos veiculados através da alimentação e a experiência orgânica
propriamente dita, que irão compor a teia de significantes impressa nas
representações sociais sobre alimentação. Lembrando que a experiência física
vivida através do paladar e os demais envolvimentos simbólicos incluídos nessa
prática são um forte componente de tais representações.
A dificuldade de percebermos as fronteiras entre o imaginário e a
experiência física acarreta a oscilação, que observaremos no desenvolvimento
deste trabalho, entre representações ligadas à construção mais simbólica e as
representações dos hábitos alimentares. Na própria definição de ideologia
alimentar feita por WOORTMANN (1978), encontramos uma estreita relação
entre aspectos simbólicos e a experiência orgânica.5
A utilização das representações sociais para o estudo dos aspectos
simbólicos ligados à alimentação partiu da própria caracterização do conceito:
como uma idéia ou modelo abstrato passa a fazer parte da experiência direta, por
ser a representação um modo de pensamento sempre ligado à ação. Podemos
dizer que não existe nitidez nas fronteiras entre o simbólico e as práticas, mas um
engendramento dialético de ambas construindo significantes que passam a fazer
parte da gênese das práticas, bem como tais práticas orientam os significantes. É
essencialmente através das práticas que pretendemos observar o convívio com os
aspectos simbólicos. Talvez, comparando com o ponto de partida do estudo de
MOSCOVICI (1978), que toma como objeto a psicanálise, abstrações que
através das representações sociais tornam-se, utilizando as próprias palavras do
autor, "entidades quase tangíveis" (MOSCOVICI, 1978, p. 41), podemos destacar
que nosso ponto de partida são mais as práticas, não observadas, mais retratadas
pelo discurso, onde é impossível discernir com clareza as representações sociais
da comida no meio urbano, sem considerar o imbricamento da mesma com a
experiência da população estudada. Acreditamos ser portanto este conjunto de
substratos, formado por práticas construídas simbolicamente, a amálgama que
5 "...define-se por ideologias alimentares um sistema cognitivo simbólico que define qualidades e propriedades dos
alimentos e dos que se alimentam, qualidades e propriedades estas que tornam um alimento indicado ou contra-
indiciado em situações específicas, que definem seu valor como alimento, em função de um modelo pelo qual se
conceptualiza a relação entre o alimento e o organismo que o consome e que define simbolicamente a posição
social do indivíduo". (WOORTMANN, 1978, p. 4).
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intermedia a relação do homem com a alimentação. Ora um, ora outro
componente irá ter mais ou menos determinação sobre as representações sociais
da comida, mas, indubitavelmente, a alimentação é uma prática organicamente
experimentada e, nessa experiência orgânica, o convívio imbricado das questões
culturais e psicológicas tem ressonâncias no comportamento alimentar que
merecem ser aprofundadas.
As características fundamentais das representações sociais são:
- Sempre são a representação de um objeto, a partir da
construção simbólica e com alguns recursos informativos;
reproduzem criativamente com propriedades estilizadas,
têm portanto caráter simbólico e significante.
- Têm um caráter de imagem, isto é , recorrem à imagem
para mediar entre o conceito e a percepção, tornando
intercambiáveis a percepção e a idéia .
- Têm um caráter construtivo, autônomo e criativo, pois
reconstróem a partir da interpretação, com recursos
individuais e/ou coletivos, recorrendo a um repertório
disponível, através de várias combinações e
deslocamentos que permitirão integrar uma nova
representação numa rede de significados.
Se, por um lado, as representações sociais contribuem para
orientação e formação de condutas e comunicações sociais, por outro, expressam
a interpretação da realidade social. São, ao mesmo tempo, instrumento e produto
dessa comunicação, ou seja, geram e simultaneamente são geradas. BOURDIEU
(1983), ao definir habitus de classe, considera esse movimento dialético de
interiorização da exterioridade e exteriorização da interioridade, pois, para ele, o
habitus é: "um sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas
predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio
gerador e estruturador das práticas e das representações..." (p. 61).
As representações sociais garantem coesão, controle e a
continuidade do grupo social. São utilizadas como meio de identificação do
grupo, na medida em que, através delas, o grupo encontra-se "sinalizado",
recorrendo às representações sociais para reconhecer e ser reconhecido.
MOSCOVICI (1988) ressalta que a representação social não pode ser confundida
com uma superestrutura ideológica que atravessa o sujeito, pois, neste caso,
pressupõe-se um receptor passivo. KAÉS (1968), em seu estudo sobre imagens
da cultura de operários franceses, afirma serem as representações operárias
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resultantes das representações dominantes da cultura, das tradições operárias ou
de outras classes sociais. As representações são produto ativo com influência da
cultura dominante.
O grupo, a classe social e a cultura permeiam indiscutivelmente as
representações sociais: história pessoal e situação econômica e social são
fundamentais enquanto contexto das mesmas.
Partindo-se da premissa de que a bagagem que subsidia a
construção da representação social leva em conta a classe social, o grupo, a
cultura e os padrões cognitivos, estéticos e éticos, a representação, enquanto
produto resultante de um processo criativo e autônomo, reproduz
metaforicamente padrões onde estão contemplados as condições de classe social.
Essa reprodução metafórica das condições de classe em instâncias da vida social
foram levadas em conta por ARANTES (1985) na definição de cultura popular.
Os modos como o social transforma um conhecimento em
representação e como uma representação transforma o social, compreendem dois
processos, o da objetivação e o da ancoragem.
A objetivação é o processo que transforma abstrações em imagens,
idéias em coisas palpáveis, ou seja, é um maneira de proximidade com o objeto
em questão, materializando o que metaforicamente poderíamos designar como
volátil.
Nesse processo de objetivação, temos uma seleção e uma
descontextualização que permitem deslocar as informações de sua origem
trazendo-as para um repertório familiar. Essa passagem da informação para um
contexto familiar é acompanhada por uma essência figurativa, que torna o
abstrato concreto, tornando palpável uma estrutura conceitual, de modo a
permitir que tal informação faça parte dos recursos disponíveis, tornando-se
então uma representação, que é o senso comum. A familiarização dessa
reconstituição de um conceito ou abstração é chamada de naturalização.
A objetivação é, portanto, a seleção de informações e sua
estilização para tornar-se instrumento próprio de categorização de pessoas,
comportamentos, enfim da realidade externa.
O segundo processo é o da ancoragem, que é o enraizamento da
representação, isto é, a integração cognitiva do objeto representado dentro do
sistema de pensamento pré-existente, onde há transformações na representação
derivadas deste sistema, bem como modificações que ocorrem no sistema pré-
existente pela representação social. É um processo de continuidade da
objetivação e ao mesmo tempo ocorre simultaneamente a ela. Já está formada a
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rede de significação que orienta a conduta e presta-se a organizar novas
informações e, com essas representações, estabelecer relações sociais.
Está constituído aqui um sistema de interpretações que permite ao
sujeito transitar num universo externo, antes desconhecido, tendo-o agora para si,
tornando assim os objetos "entidades quase tangíveis" (MOSCOVICI, 1978,
p.41).
A função da ancoragem é de integração da novidade num esquema
significante, que permite interpretar a realidade e orientar as condutas e relações
sociais.
As representações sociais não são estanques. O tempo e o grupo
social, entre outros, vão orientar as mudanças nas representações, incluindo nelas
marcos anteriores de pensamento, classificação, explicação, etc. A classificação
não é neutra, poderá ser positiva ou negativa, pressupondo inclusive uma
sinalização compartilhada coletivamente.
A causalidade é um outro aspecto importante da representação
social. A causalidade pode ser por atribuição, quando há uma relação de causa e
efeito. A causalidade por imputação ocorre quando um ato não concorda com a
representação do observador. Este último busca a causa nas intenções que podem
estar por trás dos atos, buscando uma ancoragem que defenderá sua
representação (JODELET, 1988).
O meio urbano
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escolas, sem nos determos nelas, com o exclusivo interesse de retratar, através
destas imagens, o que se define como meio urbano.
A cidade, por suas imagens, é definida por FERRARA (1990, p.3)
como uma "robusta realização humana, uma forma distinta de civilização", "um
cenário cultural caracterizado pelo movimento, pelos adensamentos humanos,
barulho, tráfego, verticalização das construções, vida fervilhante que assinalam
um certo modo de vida e certo tipo de relações sociais."
A imagem utilizada por RABAN (citado por HARVEY) é a de uma
"enciclopédia" ou "empório de estilos", tornando-se a cidade um "livro de
rabiscos de um maníaco, cheio de itens coloridos sem nenhuma relação entre si,
nenhum esquema determinante, racional ou econômico." (HARVEY, 1993, p.16)
"O segredo de uma metrópole é que a soma de problemas é
relativamente proporcional à soma de soluções". Assim, para LIMA (1990, p.41),
as cidades não se deterioram pela falta de esgoto, de asfalto, de arborização.
Deterioram-se quando deixam de responder ao desejo. Partindo da idéia de que
toda nação tem uma cidade que representa o desejo nacional, São Paulo é, para o
século XX, o que o Rio de Janeiro foi para o fim do século XIX e início do
século XX.
LÉVI-STRAUSS (1981, p. 92) em Tristes Trópicos, retrata a
cidade de São Paulo e o que ele define como o "famoso Triângulo", "tão vaidoso
quanto Chicago de seu Loop", a zona de comércio situada entre as ruas Direita,
São Bento e 15 de Novembro, como "vias congestionadas de placas em que se
espremia uma multidão de comerciantes e de empregados proclamando, nas suas
roupas escuras, a fidelidade aos valores europeus ou norte- americanos, ao
mesmo tempo em que seu orgulho dos 800 metros de altitude que os libertava
dos langores do trópico."
Outra descrição do espírito da cidade é apresentada por Edgar
BRASIL citado por KRUCHIN (1989, p. 42):
"Frenética seqüência de cenas num jorro
de closes e sinais. Música. Ruídos.
Buzinas. Arranha-céus. Arranha-céus.
Arranha-céus. Pare. Siga. Placas. Multidão.
Um acionar tenso de buzinas. Mãos.
O braço estendido de César, o monumento.
Triunfo e poder.
Vapor. Multidão. Edifício. Edifícios.
Edifícios. "
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Entre o tilintar das caixas registradoras nos restaurantes, os camelôs
que dividem o espaço de percurso do pedestre, o amontoado de gente circulando
nos diversos sentidos e o agrupamento em torno de um sanfoneiro ou de um
cortador de legumes fazendo demonstrações exóticas, buscamos concentração
para observar o proposto por esta dissertação. Depois da terceira ou quarta vez
freqüentando os mesmos locais, engana-se quem pensar ser mais um para
engordar a multidão. Aos poucos, o jornaleiro é familiar, o garçom já o
reconhece e o porteiro do Edifício Martinelli oferece-lhe um bom-dia. Antes das
oito, o cenário da cidade está sendo armado e há familiaridade entre os
integrantes do centro da cidade. Ao meio-dia, auge do burburinho, são todos
menos íntimos e diluem-se os conhecidos entre desconhecidos. O concreto
imóvel das edificações imponentes daquela região aparentemente acompanha o
movimento, atenuando sua imobilidade.
O panorama citadino ilustra o recorte deste trabalho e buscamos as
categorias teóricas referentes ao meio urbano, entre os diversos autores que direta
ou indiretamente tratam da cidade.
Ao desenvolvermos o aspecto relativo ao meio urbano,
recorreremos a alguns autores da Escola de Chicago, principalmente WIRTH
(1987), não para tratar do tema utilizando como diretriz teórica a Ecologia
Humana, mas essencialmente porque esses autores estudaram a cidade em si
como um fenômeno capaz de gerar um modo de vida específico, o que permitirá
recorrer a algumas de suas categorias sobre o modo de vida urbano. Em seu
ensaio sobre A metrópole e a vida mental dentro desta mesma perspectiva de
estudar o fenômeno urbano em si, SIMMEL (1987) definiu o modelo pelo qual o
homem poderia responder psicológica e intelectualmente à diversidade e
acúmulo de estímulos peculiares ao meio urbano como uma atitude blasé, que
vem a ser a redução da sensibilidade pelo excesso de estímulo, levando a uma
falsa individualidade que se apresenta no cultivo de sinais de moda ou de
excentricidade.
A gramática espacial e temporal apresentada por DaMATTA
(1985) possibilitará reconhecer nas dimensões do comer e da comida a oposição
dos espaços da casa e da rua. Recorremos a SIMMEL (1987) e DaMATTA
(1985) para contrapor dois tempos: um como organizador externo da vida
metropolitana e o outro como tempo subjetivo organizado pela significação
interna. Ambos configurando os reflexos do ritmo da cidade no modo pelo qual
as pessoas se relacionam com a comida.
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HARVEY (1993), ao indicar as modificações sociológicas
subjacentes à passagem da modernidade à pós-modernidade, recorre à
experiência do espaço e do tempo enquanto categorias básicas da existência
humana mas não como concepções naturalizadas. As práticas humanas
modificam a qualidade objetiva e os significantes de tempo e espaço. Esse autor
nos indica caminhos para pensarmos as práticas alimentares no meio urbano,
pois, como expõe, no capitalismo as práticas e processos materiais de reprodução
social encontram-se em permanente mudança, acompanhadas pelo significado de
tempo e espaço. O avanço do conhecimento científico, administrativo,
burocrático e racional, vital para o progresso da produção e do consumo
capitalista, traz conseqüências materiais para a vida diária decorrentes das
mudanças conceituais, incluindo as representações de tempo e espaço.
Almoçar em casa é uma prática hoje impensável para quem vive e
trabalha numa cidade das dimensões de São Paulo, ao contrário do que ocorria
com as gerações passadas, quando tal prática era comumente restrita ao lar. Essa
passagem da alimentação marcadamente concentrada no reduto familiar ao
espaço público traz implicações na relação do sujeito com a alimentação.
O curto período de tempo que as pessoas têm para comer
transforma a pressa num dos traços visíveis da caracterização do modo de comer
no centro urbano, com o abreviamento do ritual alimentar em suas diferentes
fases, da preparação ao consumo. Nos fins de semana a alimentação representa
ainda uma ligação mais próxima com o ritual alimentar de uma refeição do
passado. A comemoração, a confraternização, a hospitalidade, a reunião familiar,
o lazer e a visita dos amigos marcam as refeições dos fins de semana.
HARVEY (1993) recomenda aprendermos com a teoria estética
sobre o modo como diferentes formas de espacialização inibem ou facilitam os
processos de mudança social e relacioná-lo com os modos pelos quais, segundo a
teoria social, as mudanças político-econômicas contribuem para as práticas
culturais.
São exemplos de mudança das práticas, no caso da alimentação, a
organização do espaço e o estilo imprimido por restaurantes e lanchonetes de
grandes redes, normalmente franquias que importam a concepção de sua marca.
Sutilmente montadas para o cliente tardar o menor tempo possível, essas
lanchonetes são arrojadas na construção, na mobília e no lay out interno e
externo, numa ambientação combinando em proximidade o nostálgico e o
moderno, como é o caso da rede de lanchonetes Mc Donald's, que tem se
dedicado a recuperar antigas mansões e tenta manter o estilo original apenas
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atualizando-o. Não com a mesma eficiência, as réplicas de restaurantes e
lanchonetes que tentam atualizar seu visual elegem apenas o que interpretam
esteticamente como "moderno", caracterizado por azulejos, cadeiras e mesas de
plástico e utensílios do mesmo material com preferência pelas cores berrantes.
Além do serviço, tudo colabora para que o comer tarde o menor tempo possível:
as cadeiras são desconfortáveis, as mesas ou balcões apertados, tudo feito na
medida para o freguês comer rápido: exigência de quem come e vantagem para o
proprietário.
É característica de quem trabalha no centro da cidade dispor de um
tempo certo para comer. Os próprios deslocamentos, do escritório ao restaurante,
mesmo sendo percursos métricos pequenos, o enfrentamento de aglomerados de
pessoas, de vitrines e camelôs, ocupam o percurso e o tempo. A tônica no tempo,
para quem come na cidade, é emergente e os proprietários de restaurantes e
lanchonetes têm como preocupação a rapidez do serviço, meta para a manutenção
da clientela de todo estabelecimento comercial que queira sobreviver naquele
local. Não é adequado restringir a definição de fast food apenas às grandes redes
de lanchonetes, pois observamos que a variação de tempo nos serviços prestados
por estes estabelecimentos é relativa.
A dinâmica da cidade, seu ritmo e sua ordenação estão diretamente
relacionados com o tempo. A pontualidade, a calculabilidade e a exatidão fazem
parte da complexidade e extensão da vida metropolitana (SIMMEL , 1987).
DaMATTA (1985) associa a unidade de tempo a alguma atividade
social bem marcada. O tempo, bem como o espaço, ordena o conjunto de
vivências provadas socialmente e lembradas como parte (ou parcela) do
patrimônio cultural.
Mesmo com um sistema homogêneo e hegemônico, ordenado por
uma unidade oficial e universal, o tempo diferencia-se pela experiência a ele
associada.
O tempo do relógio, o tempo mecânico, externo põe ordem na vida
urbana; o tempo percebido, sentido, que pode dar maior ou menor extensão a um
acontecimento é estabelecido por uma ordem subjetiva. Provavelmente esses dois
tempos acompanham os diferentes ritmos da comida dos dias da semana e dos
finais de semana. Citado por DaMATTA (1985), o trabalho de HOLANDA
aborda a predominância de um tempo sobre o outro. Esses dois tempos, o interno
e o externo, são experimentados diversamente durante a semana e nos fins de
semana, sendo o tempo externo, essencialmente regulador dos dias de trabalho.
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A comida do dia-a-dia e a comida do lazer, dos finais de semana,
transcorrem em espaços distintos e marcam diferenças simbólicas importantes.
Como afirma ZALUAR (1985) em sua pesquisa realizada entre os moradores do
conjunto habitacional Cidade de Deus, na cidade do Rio de Janeiro, "a comida
'variada' passa a marcar, assim, o tempo de lazer, o tempo do 'não trabalho' que é
para eles o domingo . E esse também é o dia da reunião de família, quando todos
comem juntos e o pai deveria estar presente" (p.110). A comida da rua nunca
poderá substituir a comida de casa e os envolvimentos que nela transcorrem.
Na "gramática dos espaços", apresentada por DaMATTA (1985),
traduzem-se as implicações que os diversos espaços têm na forma de pensar e de
comportar-se das pessoas. Aos diversos espaços pertencem esferas de
significação que delineiam uma visão de mundo e éticas particulares que
constituem a própria realidade e que, portanto, normalizam e moralizam o
comportamento a partir de perspectiva própria. O espaço se confunde com a
própria ordem social, de modo que, sem entender a sociedade com suas redes de
relações sociais e valores, não se pode interpretar como o espaço é concebido. A
sociedade tem seus espaços organizados com valores e códigos que permitem o
discernimento entre a rua e a casa, enquanto espaços ocupados e vividos de
maneiras distintas, de modo que atitudes, papéis sociais, comportamentos e
gestos são adequados a esses espaços.
Dessa forma, um mesmo evento pode ser interpretado através do
código da casa e da família, pelo código da rua e pelo código do "outro mundo",
que pertence "à renúncia ritualizada deste mundo", utilizando as palavras do
autor. Ou seja, neste "outro mundo", cabem os sofrimentos, as ilusões, as
contradições, falsidades e injustiças. De algum modo o "outro mundo" sintetiza
os outros dois mundos. Esses códigos são diferenciados, mas nenhum deles é
exclusivo ou hegemônico, embora, na prática, um impere sobre o outro, de
acordo com o segmento ou categoria social a que pertence a pessoa. A
hegemonia de um código sobre o outro está atrelada à espacialidade, na medida
em que esta contém um ponto de vista ligado à sua rede de significação.
A casa/rua é apontada pelo autor como oposição, tanto quanto
como complementação. A rua pode ser um prolongamento da casa, quando, por
exemplo, as cadeiras são colocadas na calçada no fim da tarde, reunindo vizinhos
como numa sala de estar. A casa também pode ter seus espaços fazendo ponte
com o exterior, como é o caso de janelas, varandas, etc., que põem a casa em
contato próximo com a rua. Este sentido de complementação entre casa e rua é
mais característico na vida dos bairros e nas cidades do interior. No centro
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urbano, tal como se apresenta no centro de São Paulo, a oposição entre a casa e a
rua é marcadamente mais nítida. Na casa cabem as relações harmoniosas, a
familiaridade e a hospitalidade. A rua é o local da individualização, da luta, onde
convivem as contradições. No espaço público está o perigo, o negativo, o
autoritário, onde a regra é a lei a que todos estão subordinados.
A aproximação física dos homens nos centros urbanos traduz mais
o isolamento social do que propriamente maiores e melhores condições para
trocas (CHOMBART DE LOUWE, 1987). Nos espaços destinados à
alimentação, os aglomerados expressam mais um somatório de pessoas isoladas.
Por exemplo, a alimentação tem seu caráter de intimidade garantido quando as
refeições são feitas em casa. Já no período de trabalho, considerando que quem
trabalha no centro alimenta-se na rua ou no próprio local de trabalho, essa
intimidade deve ter outros meios para ser resguardada.
É grande o número de estabelecimentos comerciais que possuem
balcões para as refeições e, mesmo naqueles em que há as duas opções, ou seja,
mesas e balcões, os espaços destinados às mesas é menor. Em conversas com
pessoas que trabalham há muitos anos em restaurantes no centro da cidade, foram
comentadas as mudanças ocorridas nesse sentido. Muitos restaurantes reduziram
o espaço das mesas e aumentaram os serviços em balcões. Podemos supor que
essa organização espacial dos restaurantes comporta mais sujeitos isolados do
que grupos. Provavelmente nas mesas gasta-se mais tempo para comer. Nesse
sentido, a relação entre comida de casa e comida da rua certamente traduzirá
contrastes.
Para WIRTH (1987), o modo de vida urbano comporta a
heterogeneidade, decorrente do convívio das várias raças, povos e culturas num
mesmo espaço, e a homogeneidade, enquanto "tendência niveladora", necessária
para proporcionar facilidades, considerando primordialmente a necessidade
média das pessoas. Podemos observar a tendência a homogeneidade na expansão
de cadeias de restaurantes e lanchonetes, tais como Mc Donald's, Grupo Sérgio,
Pizza Hut, Almanara, Galeto's, etc. Se, por um lado, observamos aqui a
homogeneidade, por outro lado a heterogeneidade é apresentada pelas diferentes
culinárias que essas redes apresentam: comida árabe, americana, italiana.
Conseqüente à expansão capitalista, a multiplicação desse tipo de comércio nos
últimos anos, estabeleceu mudanças importantes nos hábitos alimentares e nos
padrões de consumo (TAGLE, 1988).
A diversidade cultural pode ser notada pelo tipo de padronização de
cardápios, comum nos restaurantes do centro da cidade, que funciona como uma
22
convenção social. Em observação realizada no centro da cidade de São Paulo,
encontramos, de um lado, as várias opções de cardápio, que não fogem a um
padrão denominado "cabeçário", que é o nome dado ao principal prato do dia.
Todos os restaurantes que servem essa modalidade seguem esse padrão, que
exemplificamos com o cardápio do Bar e Restaurante Guanabara, situado na rua
São Bento:
2a. feira - Virado à Paulista
3a. feira - Dobradinha
4a. feira - Feijoada
5a. feira - Nhoque
6a. feira - Bacalhau
Sábado - Feijoada
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As modalidades das preparações culinárias registram em parte a
história da colonização e as diferentes influências culturais. WEFFORT (1984),
em seu artigo sobre a construção de uma cultura nacional e popular a partir do
estudo dos nordestinos em São Paulo, refere-se à permanência de hábitos, e
particularmente os alimentares, como marca visível da presença cultural do
nordestino na cidade, tal como os italianos deixaram suas marcas em outra época.
À medida que a construção de características nacionais se faz no plano social e
cultural, pelo processo migratório do nordestino para São Paulo, no plano
econômico ocorre a tendência à desnacionalização. Como símbolo dessa
configuração econômica, o autor aponta a Avenida Paulista como representante,
no passado, das oligarquias locais e, hoje, das multinacionais.
Literalmente, no concreto vemos representado nesse exemplo o
poder econômico. Arriscamos extrapolar para o plano alimentar essas
contradições: a própria internacionalização do capital reflete a tendência de um
plano alimentar desnacionalizado, que vemos nos lanches e em refeições do tipo
fast-food de uma maneira geral, e convive no dia-a-dia com preparações mais
tradicionais, típicas da nossa alimentação.
Essa imposição de um modelo alimentar internacionalizado, que
vem sendo introduzido no Brasil pelas grandes redes principalmente de
lanchonetes, é acompanhada por medidas de grande impacto devido ao
marketing associado a esses produtos. Como afirma LIMA (1990, p.41) "tudo o
que se canoniza na metrópole torna-se moda e modelo" e, assim, sentimos os
efeitos dessa outra forma sutil de colonização, a dos costumes.
A atuação dos meios de comunicação de massa, justifica, segundo
TAGLE (1988) a redução da influência dos hábitos alimentares familiares em
crianças e adolescentes. Calcula-se que durante o período que vai da idade de 6 a
18 anos, eles assistam aproximadamente 20.000 horas entre TV, cinema, discos
e rádio.
Surpreendeu-nos encontrar nesta localidade do centro da cidade de
São Paulo, conhecida pela diversidade gastronômica, um padrão alimentar de
certa forma limitado, que vai dos já comentados pratos do dia e opcionais, do
serviço à la carte aos sanduíches e salgadinhos. A variedade culinária parece
estar organizada de modo a comportar, por um lado, uma certa homogeneização
do paladar, associada principalmente à comida do dia a dia e, por outro, a
diversidade gastronômica influenciada pelas diferentes colônias de imigrantes.
PARK (1987), ao referir-se à organização física da cidade, apresenta áreas
ocupadas por diferentes colônias de imigrantes e por segregação racial.
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A disposição geográfica dos restaurantes desta cidade é
caracterizada pela existência de restaurantes típicos situados geralmente em
bairros, segundo a predominância de nacionalidades de imigrantes que se fixaram
no local. Estes restaurantes estão mais voltados para o lazer. Os restaurante que
servem a chamada "cozinha internacional", situam-se no centro e espalhados pela
cidade para atender a população que utiliza restaurantes nos dias de trabalho.
Mas, apesar das variações do cardápio, a primeira seleção é
estabelecida pelo que se pode gastar, ou seja, o leque de opções fica ainda mais
restrito, pois a maioria da população esbarra nos limites financeiros.
"Aquela vontade" terá que adequar-se às condições objetivas.
"Fome psíquica" é o termo usado por CANDIDO (1987), em seu estudo entre os
caipiras paulistas, para designar o constante desejo frustrado dos alimentos mais
prezados: a carne, o pão , o leite, escassos naquele meio.
Ao estudarmos as representações sociais da alimentação estaremos
abordando também o que as pessoas comem no centro da cidade de São Paulo.
Mais precisamente, interessa-nos conhecer qual o padrão alimentar idealizado em
suas representações e quais os recursos explicativos utilizados para defini-lo.
Investigar quais são essas representações e como vem sendo, de fato, a
alimentação do comensal que trabalha no centro da cidade de São Paulo,
permitirá esclarecer o padrão alimentar eleito dentro de um leque de opções por
um lado restrito a uma faixa de possibilidade financeira e, por outro, envolto em
valores simbólicos.
Os apelos do consumo despertam desejos que deverão ser driblados
e substituídos por aqueles pratos que ficam ao alcance do salário ou atendidos
por réplicas baratas de preparações desejadas, que eventualmente podem ser de
qualidade questionável.
Em pesquisa realizada entre estudantes universitários americanos
sobre crenças a respeito dos fast-food restaurants, foram enfatizados como
vantagens, o aspecto econômico e o tempo (AXELSON, 1983).
Quando nos referimos a mudanças nos hábitos alimentares é difícil
não referir a estreita relação entre a adesão aos lanches e as vantagens
econômicas que representam.
A cidade comporta uma complexidade de ritmos, valores e práticas
refletidos em todas as modalidades e instâncias da vida metropolitana. A
tradução dessa diversidade no modo de comer e na comida é um tema vasto para
compreendermos melhor o modo de vida citadino.
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Por outro lado, as categorias expostas de análise do meio urbano
contribuíram para explorarmos as representações sociais da comida. Tais
categorias, destacadas por seus autores, nortearam a análise e discussão das
representações sociais das práticas alimentares urbanas encontradas que oscila
entre representações de hábitos e representação simbólica. Retomaremos essas
abordagens ao examinarmos o conteúdo das entrevistas nas quais, de forma
difusa ou referindo-se especificamente à cidade, a população estudada traz
representações sociais do meio urbano propriamente dito e da alimentação nesse
espaço. A continuidade deste trabalho encontra-se em três outros capítulos
(Repercussões do meio urbano na alimentação, O padrão alimentar e A
alimentação sob a égide da saúde) e consiste na análise das entrevistas de
funcionários da Secretaria da Habitação do Município de São Paulo, que
trabalham e fazem alguma refeição no centro da cidade. A proposta de
apresentarmos este capítulo introdutório é discutirmos esta outra possibilidade de
análise da alimentação, considerando seus aspectos simbólicos que agregam a
dimensão cultural e afetiva .
Referências Bibliográficas6
26
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29
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José J. (org.). Cultura do povo. 3a. ed., São Paulo: Cortez, 1984. p.13-24.
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