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"O comunismo é a ideia da

emancipação de toda
humanidade"
Por Eduardo Febbro - Direto de Paris
 
05/02/2012 00:00

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CADASTRE-SE
Paris - Alain Badiou não tem fronteiras. Este filósofo original é o pensador francês mais
conhecido fora de seu país e autor de uma obra extensa e sem concessões. Filosofia,
matemática, política, literatura e até o amor circulam em seu catálogo de produções e
reflexões. Sua obra, de caráter multidisciplinar, traz uma crítica férrea ao que Alain Badiou
chama de “materialismo democrático”, ou seja, um sistema humano onde tudo tem um
valor mercantil.

Este filósofo insubmisso é também um homem de riscos: nunca renunciou a defender um


conceito que muitos acreditam ter sido queimado pela história: o comunismo. Em sua
pena, Badiou fala mais da “ideia comunista” ou da “hipótese comunista” do que do sistema
comunista em si. Segundo o filósofo francês, tudo o que estava na ideia comunista, sua
visão igualitária do ser humano e da sociedade, merece ser resgatado.

Defensor incondicional de Marx e da ideia de uma internacionalização positiva da revolta, o


horizonte de sua filosofia é polifônico: seus componente não são a exposição de um
sistema fechado, mas sim um sistema metafísico exigente que inclui as teorias
matemáticas modernas – Gödel – e quatro dimensões da existência: o amor, a arte, a
política e a ciência. Pensador crítico da modernidade numérica, Badiou definiu os
processos políticos atuais como uma “guerra das democracias contra os pobres”.

O filósofo francês é um teórico dos processos de ruptura e não um mero panfletário. Ele
convoca com método a repensar o mundo, a redefinir o papel do Estado, traça os limites
da “perfeição democrática”, reinterpreta a ideia de República, reatualiza as formas
possíveis e não aceitas de oposição e coloca no centro da evolução social a relegitimação
das lutas sociais.

Alain Badiou propõe um princípio de ação sem o qual, sugere, nenhuma vida tem sentido: a
ideia. Sem ela toda existência é vazia. Com mais de 70 anos, Badiou introduziu em sua
reflexão o tema do amor em um livro brilhante e comovedor, no qual o autor de “O ser e o
acontecimento” define o amor como uma categoria da verdade e o sentimento amoroso
como o pacto mais elevado que os indivíduos podem firmar para viver. Sua lucidez
analítica o conduz inclusive a dizer que o amor, porque grátis e total, está ameaçado pelo
mundo contemporâneo.

Revoluções árabes, movimento dos indignados, mobilização crescente dos grupos que
estão contra a globalização, a luta ou a oposição contra as modalidades do sistema atual
se multiplicaram e sofisticaram. Analisando o que ocorreu, o que você diria hoje a todos
esses rebeldes do mundo para que sua ação conduza a uma autêntica construção?

Eu diria a eles que, para mim, mais importante que a consigna da anti-globalização, a qual
parece sugerir que, por meio de várias medidas, pode-se re-humanizar a situação, incluindo
a re-humanização do capitalismo, é a globalização da vontade popular. Globalização quer
dizer vigor internacional. Mas essa globalização internacional necessita de uma ideia
positiva para uni-la e não só a ideia crítica ou a combinação de desacordos e protestos.
Trata-se de um ponto muito importante. Passar da revolta à ideia é passar da negação á
afirmação. Somente no plano afirmativo poderemos nos unir de forma duradoura.

Um dos princípios de sua filosofia consiste em dizer que uma vida que não está regida pelo
signo da ideia não é uma vida verdadeira. Agora, como defender hoje essa ideia sob a
ameaça do hiper-consumo, das falsidades e injustiças da democracia parlamentar e em um
mundo onde nossa relação com o outro passa pela relação com o objeto e não com as
ideias ou com os indivíduos? No mundo contemporâneo, a ideia é o produto e não a relação
humana.

A verdadeira vida é uma vida que aceita estar sob o signo da ideia. Dito de outro modo,
uma vida que aceita ser outra coisa do que uma vida animal. Alguns dirão que há valores
transcendentes, religiosos, e que é preciso submeter o animal; outros dirão, ao contrário,
que devemos nos libertar desses valores transcendentes, que Deus está morto, que viva os
apetites selvagens. Mas, entre ambas, há uma solução intermediária, dialética, que
consiste em dizer que, na vida, através de encontros e metamorfoses, pode haver um
trajeto que nos liga à universalidade. Isso é o que eu chamo “uma vida verdadeira”, ou seja,
uma vida que encontrou ao menos algumas verdades.

Chamo "ideia" esse intermediário entre as verdades universais, digamos eternas para
provocar um pouco os contemporâneos, e o indivíduo. Que é então uma vida sob o signo
da ideia em um mundo como este? Faz falta uma distância com a circulação geral. Mas
essa distância não pode ser criada só com a vontade, faz falta algo que nos ocorra, um
acontecimento que nos leve a tomar posição frente ao que se passou. Pode ser um amor,
um levante político, uma decepção, enfim, muitas coisas. Aí se põe em jogo a vontade para
criar um mundo novo que não estará baseado na ordem do mundo tal como é, com sua lei
de circulação mercantil, mas sim em um elemento novo de minha experiência.

O mundo moderno se caracteriza pela soberania das opiniões. E a opinião é algo contrário
à ideia. A opinião não pretende ser universal, é minha opinião e vale tanto quanto a opinião
de qualquer outra pessoa. A opinião se relaciona com a distribuição de objetos e a
satisfação pessoal. Há um mercado das opiniões assim como há um mercado das ações
financeiras. Há momentos em que uma opinião vale mais do que outra; mais tarde essa
opinião quebra como um país. Estamos no regime geral do comércio da comunicação no
qual a ideia não existe. Inclusive se suspeita da ideia e se dirá que ela é opressiva,
totalitária, que se trata de uma alienação. E por que isso ocorre? Simplesmente porque a
ideia é grátis. Ao contrário da opinião, a ideia não entra em nenhum mercado. Se
defendemos nossa convicção, o fazemos com a ideia de que é universal. Essa ideia é,
então, uma proposta compartilhada, não se pode colocá-la à venda no mercado. Mas
como tudo o que é grátis, a ideia está sob suspeita.

Pergunta-se: qual é o valor do que é grátis? Justamente, o valor do grátis é que não tem
valor no sentido das trocas. Seu valor é intrínseco. E como não se pode distinguir a ideia
do preço do objeto a única existência da ideia está em um tipo de fidelidade existencial e
vital para a ideia. A melhor metáfora para isso é encontrada no amor. Se queremos
profundamente a alguém, esse amor não tem preço. É preciso aceitar os sofrimentos, as
dificuldades, o fato de que sempre há uma tensão entre o que desejamos imediatamente e
a resposta do outro. É preciso atravessar tudo isso.

Quando estamos enamorados, trata-se de uma ideia e isso é o que garante a continuidade
desse amor. Para se opor ao mundo contemporâneo pode-se atuar na política, mas estar
cativado completamente por uma obra de arte ou estar profundamente enamorado é como
uma rebelião secreta e pessoal contra o mundo contemporâneo. Esse é o principal
problema da vida contemporânea. Estabeleceu-se um regime de existência no qual tudo
deve ser transformado em produto, em mercadoria, inclusive os textos, as ideias, os
pensamentos. Marx havia antecipado isso muito bem: tudo pode ser medido segundo seu
valor monetário.

Você é um dos poucos filósofos que defende o que você mesmo chama “a ideia
comunista”. Como é possível defender a ideia comunista quando seu conteúdo histórico foi
desastroso.

Penso que o conteúdo histórico das ideias sempre pode ser declarado desastroso. Os
democratas nos falam da democracia, mas se olhamos de perto a história das
democracias, ela está cheia de desastres. Para tomar o exemplo mais elementar, se
tomamos a Primeira Guerra Mundial, ela foi lançada por democratas, democratas alemães,
ingleses e franceses. Foi um massacre inimaginável, o qual já se demonstrou esteve ligado
a apetites financeiros nas colônias africanas, apetites que não diziam respeito aqueles que
seriam massacrados mais tarde. Houve milhões de mortos e de sacrificados em
condições espantosas e, aceite-se ou não, isso é parte da história das democracias. Se
interrogamos o conjunto das experiências históricas veremos que todo o mundo tem
sangue até as orelhas.

No que se refere à palavra “comunista” em si, da mesma maneira que ocorre com a
palavra “democracia”, sempre se pode argumentar que ambas tem sangue até as orelhas.
Mas, por acaso, é preciso sempre inventar outra palavra? Tomemos, por exemplo, o
cristianismo. O cristianismo é São Francisco de Assis, a santidade verdadeira, o advento
da ideia de uma verdadeira generosidade para com os pobres, a caridade, etc.,etc. Mas, do
outro lado, também é a inquisição, o terror, a tortura e o suplício. Por acaso vamos dizer
que é um crime alguém se chamar de cristão? Ninguém diz isso. Eu defendo uma espécie
de absolvição dos vocábulos. Eles têm o sentido dado pela sequência histórica da qual
falamos.

De fato, o comunismo conheceu duas sequências histórias. A sequência histórica do


século XIX, quando a palavra foi inventada e propagada para designar uma esperança
histórica humana fundamental, a esperança da igualdade, da emancipação das classes
oprimidas, de uma organização social igualitária e coletiva. Depois há outra sequência
muito diferente onde se experimentou o comunismo, ou seja, se construiu uma forma de
poder particular que buscou coletivizar a indústria e essas coisas, mas que, no final, se
tornou uma forma de Estado despótico.

Eu proponho que não se sacrifique a palavra “comunismo” por causa desta segunda
sequência, mas sim que ela seja resgatada com base na primeira sequência, possibilitando
assim a abertura de uma terceira sequência.

Nesta terceira sequência, a palavra “comunismo” significaria o que sempre significou: a


ideia de uma organização social totalmente distinta da que conhecemos e que já sabemos
que está dominada por uma oligarquia financeira e econômica absolutamente feroz e
indiferente aos interesses gerais da humanidade. Eu proponho então voltar ao comunismo
sob a forma da ideia comunista: a ideia comunista é a ideia da emancipação de toda a
humanidade, é a ideia do internacionalismo, de uma organização econômica mobilizando
diretamente os produtores e não as potências exteriores; é a ideia da igualdade entre os
distintos componentes da humanidade, do fim do racismo e da segregação e também é a
ideia do fim das fronteiras.

Não esqueçamos que as fronteiras são uma grande característica do mundo


contemporâneo. O comunismo é tudo isso. Se alguém inventar uma palavra formidável
para designar tudo isso, que não seja a palavra comunismo, eu aceito. Mas a história da
política não é a história das palavras, mas sim a história dos novos significados que
podem ter as palavras. Em geral se opõe a palavra “democracia” à palavra “comunismo”.
Eu digo que uma palavra não é mais inocente do que a outra. Não lutemos pela inocência
das palavras. Discutamos sobre o que significam e o que significa aquilo que eu digo.

Agora chegamos a Marx, ou melhor dizendo, aos dois Marx: o Marx marxista e o Marx de
antes do marxismo. Qual dos dois você reivindica?

Marx e marxismo têm significados muito distintos. Marx pode significar a tentativa de uma
análise científica da história humana com base nos conceitos fundamentais de classe e de
luta de classe, e também a ideia de que a base das diferentes formas que a organização da
humanidade adquiriu no curso da história é a organização da economia. Nesta parte da
obra de Marx há coisas muito interessantes como, por exemplo, a crítica da economia
política. Mas também há outro Marx que é um Marx filósofo, que vem depois de Engels e
que tenta mostrar que a lei das coisas deve ser buscada nas contradições principais que
podem ser percebidas dentro das coisas. É o pensamento dialético, o materialismo
dialético. No concreto, há uma base material de todo pensamento e este se desenvolve
através de sistemas de contradição, de negação. Este é o segundo Marx. Mas também há
um terceiro Marx que é o militante político. É um Marx que, em nome da ideia comunista,
indica o que fazer: é o Marx fundador da Primeira Internacional, é o Marx que escreve
textos admiráveis sobre a Comuna de Paris ou sobre a luta de classes na França.

Há pelo menos três Marx e o que mais me interessa, reconhecendo o mérito imenso de
todos eles, é o Marx que tenta ligar a ideia comunista em sua pureza ideológica e filosófica
às circunstâncias concretas. É o Marx que se pergunta pelo caminho para organizar as
pessoas politicamente na direção da ideia comunista. Há ideias fundamentais que foram
experimentadas e que ainda permanecem e, em cujo centro, encontramos a convicção
segundo a qual nada ocorrerá enquanto uma fração significativa dos intelectuais não
aceite estar organicamente ligada às grandes massas populares. Esse ponto está
totalmente ausente hoje em várias regiões do mundo. Em maio de 68 e nos anos 70, este
ponto foi abandonado. Hoje pagamos o preço desse abandono que significou a vitória
completa e provisória do capitalismo mais brutal.

A vida concreta de Marx e Engels consistiu em participar nas manifestações na Alemanha


e em tentar criar uma Internacional. E o que era a Internacional? A aliança dos intelectuais
com os operários. É sempre por aí que se começa. Eu chamo então a que comecemos de
novo: por um lado com a ideia comunista e, por outro, com um processo de organização
sob esta ideia que, evidentemente, levará em conta o conjunto do balanço histórico, mas
que, em certo sentido, terá que começar de novo.

Caído, derrotado no abismo ou simplesmente ferido? Na sua avaliação, em que fase se


encontra o capitalismo: em seu ocaso, como acreditam alguns, ou somente vivendo um
recesso devido a suas enormes contradições internas?

O capitalismo é um sistema de roubo planetário exacerbado. Pode-se dizer que o


capitalismo é uma ordem democrática e pacífica, mas é um regime de depredadores, é um
regime de banditismo universal. E digo banditismo de maneira objetiva: chamo bandido a
qualquer um que considere que a única lei de sua atividade é seu próprio proveito. Mas um
sistema como este que, por um lado, tem a capacidade de se estender e, por outro, de
deslocar seu centro de gravidade é um sistema que está longe de estar moribundo.

Não é o caso de acreditar que, pelo fato de estarmos em uma crise sistêmica, nos
encontramos à beira do colapso do capitalismo mundializado. Acreditar nisso seria ver as
coisas através da pequena janela da Europa. Creio que há dois fenômenos que estão
entrelaçados. O primeiro é a derrocada da segunda etapa da experiência comunista, a
falência dos Estados socialistas. Essa falência abriu uma enorme brecha para o outro
termo da contradição planetária que é o capitalismo mundializado. Mas também abriu
novos espaços de tensões materiais. O desenvolvimento capitalista de países do porte da
China e da Índica, assim como a recapitalização da ex-União Soviética tem o mesmo papel
que o colonialismo no século XIX. Abriu espaços gigantes de manobra, de clientela de
novos mercados.

Estamos vivendo agora esse fenômeno: a mundialização do capitalismo que se fez


potente e se multiplicou pelo enfraquecimento de seu adversário histórico do período
precedente. Esse fenômeno faz com que, pela primeira vez na história da humanidade, se
possa falar realmente de um mercado mundial. Esse é um primeiro fenômeno. O segundo
é o deslocamento do centro de gravidade. Estou convencido de que as antigas figuras
imperiais, a velha Europa, por exemplo, a qual apesar de sua arrogância tem uma
quantidade considerável de crimes que ainda aguardam perdão, e os Estados Unidos,
apesar do fato de ainda ocupar um lugar muito importante, são na verdade entidades
capitalistas progressivamente decadentes e até um pouco crepusculares. Na Ásia, na
América Latina, com a dinâmica brasileira, e inclusive em algumas regiões do Oriente
Médio, vemos aparecer novas potências. O sistema da expansão capitalista chegou a uma
escala mundial, mas o sistema das contradições internas do capitalismo modifica sua
geopolítica. As crises sistêmicas do capitalismo – hoje estamos em uma grave crise
sistêmica – não têm o mesmo impacto segundo a região. Temos assim um sistema
expansivo com dificuldades internas.

Mas esses novos polos se desenvolvem segundo o mesmo modelo.


Sim, e não creio que esses novos polos introduzam uma diferenciação qualitativa. É um
deslocamento interno ao sistema que dá a ele margem de manobra.

Há duas versões de um de seus livros mais importantes: trata-se do Manifesto para a


Filosofia. O primeiro Manifesto foi publicado há vinte anos, o segundo há dois. Se levamos
em conta as revoluções árabes e as crises do sistema financeiro internacional, o que
mudou fundamentalmente no mundo e no ser humano entre os dois manifestos?

O que mudou mais profundamente é a divisão subjetiva. As escolhas fundamentais às


quais estiveram confrontados os indivíduos durante o primeiro período estavam ainda
dominadas pela ideia da alternativa entre orientação revolucionária e democracia e
economia de mercado. Dito de outro modo, estávamos na constituição do debate entre
totalitarismo e democracia. Isso exige dizer quer todo o mundo estava sob o influxo do
balanço da experiência histórica do século XX. O primeiro Manifesto foi publicado em
1989, quase ao final do século XX. Em escala mundial, esta discussão, que adquiriu formas
distintas segundo os lugares, se focalizou em qual poderia ser o balanço deste século XX.
Por acaso, temos que condenar definitivamente as experiências revolucionárias? É preciso
abandoná-las porque foram despóticas, violentas? Neste sentido, a pergunta era: devemos
ou não nos unir à corrente democrática e entrar na aceitação do capitalismo como um mal
menor?

A eficácia do sistema não consistiu em dizer que o capitalismo era magnífico, mas sim que
era o mal menor. Na verdade, tirando um punhado de pessoas ninguém pensa que o
capitalismo é magnífico. Mas o que se disse nesse período foi que a alternativa era
desastrosa. Há 20 anos estávamos neste contexto, ou seja, a reativação da filosofia
inspirada pela moral de Kant. Ou seja, não é o caso de ter grandes ideias de transformação
política voluntaristas porque isso conduz ao terror e ao crime, mas sim velar por uma
democracia pacificada dentro da qual os direitos humanos estarão protegidos. Hoje esta
discussão está terminada e está terminada porque todo mundo vê que o preço pago por
essa democracia pacificada é muito elevado. Todo mundo toma consciência que se trata
de um mundo violento, com outras violências, que a guerra segue rondando todo o tempo,
que as catástrofes ecológicas e econômicas estão na ordem do dia e que, além disso,
ninguém sabe para onde vamos.
Podemos imaginar que esta ferocidade da concorrência e esta constante submissão à
economia de mercado durem ainda vários séculos? Todo mundo sente que não, que se
trata de um sistema patrológico. Foi revelado que este sistema, que nos foi apresentado
como um sistema moderado, sem dúvida em nada formidável, mas melhor que todos os
demais, é um sistema patológico e extremamente perigoso. Essa é a novidade. Não
podemos mais ter confiança no futuro desta visão das coisas. Estamos em uma fase de
transição e incerteza. Introduziu-se a hipótese de uma espécie de humanismo renovado
que poderíamos chamar de humanismo de mercado, o mercado, mas humano. Creio que
essa figura, que segue vigente graças aos políticos e aos meios de comunicação, está
morta. É como a União Soviética: estava morta antes de morrer. Creio que, em condições
diferentes e em um universo de guerra, de catástrofes, de competição e de crise, esta ideia
do capitalismo com rosto humano e da democracia moderada está morta. Agora será
preciso não mais escolher entre duas visões constituídas, mas sim inventar uma.

Dessa ambivalência provém talvez a sensação de que as jovens gerações estão perdidas,
sem confiança em nada?

Isso é o que sinto na juventude de hoje. Sinto que a juventude está completamente imersa
no mundo tal como é, não tem ideia de outra alternativa, mas, ao mesmo tempo, está
perdendo confiança neste mundo, está vendo que, na verdade, este mundo não tem futuro,
carece de toda significação para o futuro. Creio que estamos em um período onde as
propostas de ideias novas estão na ordem do dia, mesmo que uma boa parte da opinião
não saiba disso. E não sabe porque ainda não chegamos ao final deste esgotamento
interno da promessa democrática. É o que eu chamo de período intervalo: sabemos que as
velhas escolhas estão acabadas, mas não sabemos ainda muito bem quais são as novas
escolhas.

Vários filósofos apontam o fato de que os valores capitalistas destruíram a dimensão


humana. Você acredita, ao contrário, que ainda persiste uma potência altruísta no ser
humano.

Devemos olhar o que ocorreu nas manifestações dos países árabes. Nunca acreditei que
essas manifestações iam inventar um novo mundo de um dia para o outro, nem pensei que
essas revoltas apresentavam soluções novas para os problemas planetários. Mas o que
me assombrou foi a reaparição da generosidade do movimento de passa, quer dizer, a
possibilidade de agir, de sair, de protestar, de pronunciar-se independentemente do limite
dos interesses imediatos e fazê-lo junto a pessoas que, sabemos, não compartilham
nossos interesses. Aí encontramos a generosidade da ação, a generosidade do movimento
de massa, temos a prova de que esse movimento ainda é capaz de reaparecer e
reconstituir-se. Com todos os seus limites, também temos um exemplo semelhante com o
movimento dos indignados.

O que fica evidente em tudo isso é que estão aí em nome de uma série de princípios, de
ideias, de representações. Esse processo, obviamente, será longo. O movimento da
primavera árabe me parece mais interessante que o dos indignados porque tem objetivos
precisos, ou seja, a desaparição de um regime autocrático e o tema fundamental que é o
horror diante da corrupção. A luta contra a corrupção é um problema capital do mundo
contemporâneo. Nos indignados vimos a nostalgia do velho Estado providência. Mas volto
a reiterar que o interessante em tudo isso é a capacidade de fazer algo em nome de uma
ideia, mesmo que essa ideia tenha acentos nostálgicos. O que me interessa saber é se
ainda temos a capacidade histórica de agir no regime da ideia e não simplesmente
segundo o regime da concorrência ou da conservação. Isso para mim é fundamental. A
reaparição de uma subjetividade dissidente, seja quais forem suas formas e suas
referências, isso me parece muito importante.

Você publicou um livro sobre o amor, que é de uma sabedoria comovedora. Para um
filósofo comprometido com a ação política e cujo pensamento integra as matemáticas, a
aparição do tema do amor é pouco comum.

O amor é um tema essencial, uma experiência total. O amor está ameaçado pela
sociedade contemporânea. O amor é um gesto muito forte porque significa que é preciso
aceitar que a existência de outra pessoa se converta em nossa preocupação. No amor, o
fundamental está em que nos aproximamos do outro com a condição de aceita-lo em
minha existência de forma completa, inteira. Isso é o que diferencia o amor do interesse
sexual. Este se fixa sobre o que os psicanalistas chamaram de “objetos parciais”, ou seja,
eu extraio do outro alguns emblemas fetiches que me interessam e que suscitam minha
excitação desejante. Não nego a sexualidade, pelo contrário. Ela é um componente do
amor. Mas o amor não é isso. O amor é quando estou em estado de amar, de estar
satisfeito e de sofrer e de esperar tudo o que vem do outro: a maneira como viaja, sua
ausência, sua chegada, sua presença, o calor de seu corpo, minhas conversas com ele, os
gostos compartilhados. Pouco a pouco, a totalidade do que o outro é torna-se um
componente de minha própria existência. Isso é muito mais radical que a vaga ideia de
preocupar-me com o outro. É o outro com a totalidade infinita que representa e com o qual
me relaciono em um movimento subjetivo extraordinariamente profundo.

Em que sentido o amor está ameaçado pelos valores contemporâneos?

Está ameaçado porque o amor é gratuito e, desde o ponto de vista do materialismo


democrático, injustificado. Por que deveria me expor ao sofrimento da aceitação da
totalidade do outro? O melhor seria extrair dele o que melhor corresponde aos meus
interesses imediatos e aos meus gostos e descartar o resto. O amor está ameaçado hoje
porque é distribuído em fatias. Observemos como se organizam as relações nestes portais
de internet onde as pessoas entram em contato: o outro já vem fatiado em fatias, um
pouco como a vaca nos açougues. Seus gostos, seus interesses, a cor dos olhos, o corte
dos cabelos, se é grande ou pequeno, loiro ou moreno. Vamos ter uns 40 critérios e, ao
final, vamos nos dizer: vou comprar este. É exatamente o contrário do amor. O amor é
justamente quando, em certo sentido, não tenho a menor ideia do que estou comprando.

E frente a essa modalidade competitiva das relações, você proclama que o amor deve ser
reinventado para nos defendermos, que o amor deve reafirmar seu valor de ruptura e de
loucura.

O amor deve reafirmar o fato de que está em ruptura com o conjunto das leis ordinárias do
mundo contemporâneo. O amor deve ser reinventado como valor universal, como relação
em direção da alteridade, daquilo que não sou eu e onde a generosidade é obrigatória. Se
não aceito a generosidade, tampouco aceito o amor. Há uma generosidade amorosa que é
inevitável. Sou obrigado a ir na direção do outro para que a aceitação do outro em sua
totalidade possa funcionar. Essa é uma excelente escola para romper com o mundo tal
como é. Minha ideia sobre a reinvenção do amor quer dizer o seguinte: uma vez que o
amor se refere a essa parte da humanidade que não está entregue à competição, à
selvageria; uma vez que, em sua intimidade mais poderosa, o amor exige uma espécie de
confiança absoluta no outro; uma vez que vamos aceitar que este outro esteja totalmente
presente em nossa própria vida, que nossa vida esteja ligada de maneira interna a esse
outro, pois bem, já que tudo descrito acima é possível isso prova que não é verdade que a
competitividade, o ódio, a violência, a rivalidade e a separação sejam a lei do mundo.

A política não está muito afastada de tudo isso. Para você, há uma dimensão do amor na
ação política?

Sim, inclusive pode resultar perigoso. Se buscamos uma analogia política do amor eu diria
que, assim como no amor onde a relação com uma pessoa tem que constituir sua
totalidade existencial como um componente de minha própria existência, na política
autêntica é preciso que haja uma representação inteira da humanidade. Na política
verdadeira, que também é um componente da vida verdadeira, há necessariamente essa
preocupação, essa convicção segundo a qual estou ali enquanto representante e agente de
toda a humanidade. Do mesmo modo que ocorre no amor, onde minha preocupação,
minha proposta e minha atividade estão ligadas à existência do outro em sua totalidade.

O que pode fazer um casal jovem e enamorado neste mundo violento, competitivo, onde o
projeto do casal já está ameaçado pela própria dinâmica do consumo e da competição?

Creio que o projeto de um casal pode ser uma rama se não se dissolve, se não se
metamorfoseia em um projeto que acabe se transformando, no fundo, na acumulação de
interesses particulares. Na situação de crise e de desorientação atual o mais importante é
segurar as mãos no timão da experiência pela qual estamos passando, seja no amor, na
arte, na organização coletiva, no combate político. Hoje, o mais importante é a fidelidade:
em um ponto, ainda que seja em apenas um, é preciso não ceder. E para não ceder
devemos ser fieis ao que ocorreu, ao acontecimento. No amor, é preciso ser fiel ao
encontro com o outro porque vamos criar um mundo a partir desse encontro. Claro, o
mundo exerce uma pressão contrária e nos diz: “cuidado, defenda-se, não deixe que o
outro abuse de ti”. Com isso está dizendo: “voltem ao comércio ordinário”.

Então, como essa pressão é muito forte, o fato de manter o timão no rumo certo, de
manter vivo um elemento de exceção, já é extraordinário. É preciso lutar para conservar o
excepcional que ocorre em nossas vidas. Depois veremos. Dessa forma salvaremos a ideia
e saberemos o que é exatamente a felicidade. Não sou um asceta, não sou a favor do
sacrifício. Estou convencido de que se conseguimos organizar uma reunião com
trabalhadores e colocamos em marcha uma dinâmica, se conseguimos superar uma
dificuldade no amor e nos reencontramos com a pessoa que amamos, se fazemos uma
descoberta científica, então começamos a compreender o que é a felicidade. A felicidade é
uma ideia fundamental. A construção amorosa é a aceitação conjunta de um sistema de
riscos e de invenções.

Você também introduz uma ideia peculiar e maravilhosa: devemos fazer tudo para
preservar o que nos ocorre de excepcional.

Aí está o sentido completo da vida verdadeira. Uma vida verdadeira se configura quando
aceitamos os presentes perigosos que a vida nos oferece. A existência nos traz riscos,
mas, na maioria das vezes, estamos mais espantados que felizes por esses presentes.
Creio que aceitar isso que nos ocorre e que parece raro, estranho, imprevisível,
excepcional, que seja o encontro com uma mulher ou o maio de 68, aceitar isso e suas
consequências, isso é a vida, a verdadeira vida.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

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