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Universidade Estadual de Maringá – UEM

Discente: Igor Marconi


Docente: Daniel Lvovich
Disciplina: Tópicos Especiais em História Política IV

Memória, Identidade e o EZLN: o zapatismo chiapaneco e a herança


revolucionária

INTRODUÇÃO

Em primeiro de janeiro de 1994 o mundo passa a conhecer o Exército Zapatista


de Libertação Nacional (EZLN), um movimento social formado por indígenas da região
de Chiapas, no sul do México e em fronteira com a Guatemala, de etnia Tzeltal, Tzotzil,
Tolojobal e Chol, principalmente. A tomada de sete cabeceiras municipais1 em San
Cristóbal de Las Casas, Las Margaritas, Ocosingo, Altamirano, Chanal, Oxchuc e
Huixtán foi o primeiro passo de uma insurreição que está presente até os dias atuais na
região chiapaneca.
O levante armado, a promulgação das ​Leys Revolucionarias2 e da Primeira
Declaração da Selva Lacandona3 foram impactantes para a política nacional mexicana,
levando o Partido Revolucionário Institucional (PRI) a uma crise jamais vista4. Neste
contexto o Partido perde seu longo período de permanência no poder a partir da eleição
de Vicente Fox do Partido da Ação Nacional (PAN) ao posto de presidente no ano 2000.
Mais que apenas um episódio que marcou a vida política nacional, o levante se
organizou como um movimento que, até doze de janeiro de 1994, reafirmou a luta
armada como única via para alteração da ordem estabelecida, estando em conflito direto
com o Estado Mexicano e o Exército Nacional. Doze dias que marcaram baixas de
ambos os lados e também o cessar-fogo e a busca por um diálogo de paz, pautado

1
Locais onde se encontram as sedes administrativas de um município (prefeituras).
2
Conjunto de regulações com a intenção de serem colocadas em prática nos territórios controlados pelos
(neo)zapatistas.
3
Documentos oficiais expedidos pela cúpula do Exército Zapatista de Libertação Nacional, o Comando
Clandestino Revolucionário Indígena (CCRI). São divididas em seis declarações: janeiro de 1994, junho
de 1994, 1995, 1996, 1998 e 2005.
4
Partido que ficou no poder mais de 70 anos no México. Criado em 1929 com o nome Partido Nacional
Revolucionário, passando para, em 1938, Partido da Revolução Mexicana e, por fim, Partido
Revolucionário Institucional em 1946.
expressivamente por manifestações por todo o país, a notável diferença bélica entre os
combatentes e a imagem internacional do México5.
Entretanto, além de um marco político na história nacional do México
contemporâneo, o surgimento e expressão do EZLN enquanto ator presente no sul do
país, na região da Selva Lacandona, Estado de Chiapas, representa também uma parcela
importante da significação histórica dada ao presente pela apresentação, por mais
paradoxal que pareça ser, da nacionalidade ou ​mexicanidade da parcela indígena da
população, isto é, apesar de mais de 25 milhões de pessoas se reconhecerem como
indígenas6, as taxas de marginalização dessa população eram (e de certa forma ainda o
são) constantemente altas7.
Dessa forma, neste trabalho, quer-se explorar as condições da formação de uma
identidade e representação dos grupos envolvidos na formação do EZLN através de sua
memória expressa, neste caso, por meio de uma coletividade do movimento quanto à
história nacional, ao vínculo étnico de exclusão8 e sua relação presente no processo
histórico. Para isso, propõe-se uma discussão teórica sobre os aspectos de memória e
história, identidades e etnicidade, passando ainda pelas políticas públicas do Estado
Mexicano.
Como fonte será analisada a Primeira Declaração da Selva Lacandona,
documento oficial redigido pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena -
Comando Geral (CCRI-CG) em 1994 que traz por si a carga do movimento quanto aos
processos históricos nacionais e uma representação étnica importante, já que os
membros desse comitê são indígenas. Na medida do possível, também, objetiva-se
estabelecer leitura de relatos de membros do movimento, através do porta-voz do
EZLN, Subcomandante Marcos, levado pela expressão midiática a ícone9.

5
LE BOT, 1997, p. 33.
6
Maior país de população indígena em termos absolutos. Encuesta Intercensal 2015, Instituto Nacional de
Estadística y Geografía (INEGI), 2018.
7
Em classificação dada pela Comisión Nacional para el Desarollo de los Pueblos Indígenas (CDI), antigo
Instituto Nacional Indígena (INI), em 2006 os municípios indígenas, os quais se determinam pela
presença de mais de 70% da população que fala uma língua local, 82,6% de tais regiões apresentam taxas
de ​alta marginalización ou ​muy alta marginalización. Essas taxas são uma constante para certas regiões
do México as quais a presença indígena é relevante. Como conclui o documento da comissão, “este
fenómeno tiende a persistir en el sur del país”. NIGRI, 2009, p. 28-40; INEGI, 2018, p. 73.
8
Ao menos como política pública presente nas propostas indigenistas das décadas de 1940-1980 das quais
algumas alterações só foram possíveis a partir do emblemático levante de Chiapas. Conforme afirma
Pablo Davalos (2005), o estopim de um força de questionamento em favor da “diferença na igualdade”
que toma boa parte da América Latina.
9
Há uma condição crítica do Subcomandante sobre essa espetacularização do processo e que leva, a partir
dos anos 1998, a formação das Juntas de Bom Governo e dos Caracóis Zapatistas em 2003. Algumas
pesquisas ressaltam, além disso, uma formulação messiânica na imagem de Marcos quanto ao papel de
Quer-se fazer uma interlocução entre as memórias e os contextos, estabelecendo
vínculos que permitem conceber a presente perspectiva coletiva do movimento sobre a
história, o passado, os fatos, interesses e objetivos inseridos na forma de se entender as
heranças culturais e sociais como fator de ação histórica10.

MEMÓRIA

Estabelecer condições socioculturais de compreensão das ações individuais e


coletivas são partes importantes do processo de construção da ação humana como base
da história. Dessa forma, contundentemente as formulações memoriais sobre os
processos passados, como representação da condição do presente, organizam
possibilidades que se imprimem sobre o atual, sobre o possível, aquilo que se pode ser
feito a partir das condições dadas aos humanos em um espaço e tempo. A condição
lógica desse processo é largamente teorizado em termos analíticos, mas passíveis de
empiricidade nos processos históricos. Tal compreensão do motor que envolve a
sociabilidade e as práticas dos sujeitos perpassa, de forma importante, os estudos sobre
as memórias, seus usos e métodos, que abrangem uma ampliação do campo de pesquisa
historiográfico do último meado do século XX, especialmente após o fim da Segunda
Guerra Mundial11.
Entretanto, como objeto e parte estruturante da disciplina História, as pesquisas
sobre a memória apresentam-se sobre algumas problemáticas de definição. O primeiro
aspecto relevante é a condição de ciência12 que diferencia a memória e a história.
Enquanto a história se aprimora pelo objetivo, pelas regulações de um ofício que, como
parte científica, elabora uma interpretação por meio de metodologia e lógica específica13
. Já a memória trata-se de uma parte e objeto da história enquanto relato, expressão e
parte da História Oral, que remete a uma subjetividade. É dado pela disciplina, assim,

estudante/professor de classe média que abandona a vida na cidade para lutar pelos oprimidos. Para mais
detalhes, ver: ASSIS, 2013.
10
BOURDIEU, 2002.
11
TRAVERSO, 2007.
12
É importante ressaltar que longe da busca da Escola Metódica do século XIX ou ainda da ficcionalidade
da pós-modernidade, a cientificidade das ciências humanas e especialmente da História ressalta sua lógica
própria de condição de pesquisa e, dessa forma, de existência enquanto área da ciência. Não há
exatamente um espaço, neste trabalho, para esta discussão mas se quer, como aspecto importante da
disciplina, estabelecer a noção que este autor possui sobre a pauta dada.
13
Apesar de ser uma discussão densa, referimo-nos aqui a conceitualização dada por Thompson, 1981, p.
47-61.
uma referenciação ​matricial,​ originária, da memória. Ambos se conformam sobre uma
leitura do passado através do presente, de uma narrativa, mas se diferenciam enquanto
processo constitutivo, enquanto objetividade e subjetividade (TRAVERSO, 2007, p.
73-75).
Assim também se percebe a diferença entre as temporalidades da história e da
memória. Enquanto a memória busca estabelecer uma temporalidade contínua, uma
linha de observação própria que constitui uma proximidade entre o passado, mesmo
longínquo, e o presente, numa espécie de ligação íntima e não mecânica dos espaços
temporais, a história se estabelece de forma linear, cronológica, científica, que dispõe de
uma distância entre a análise do passado e o presente, mesmo que a partir do olhar do
pesquisador e das problemáticas que o envolvem no presente (TRAVERSO, 2007, p.
81-83).
Por fim, a constituição da memória enquanto aspecto fundamental da vivência
dos sujeitos e da lógica que baseia a ação histórica, isto é, enquanto a interpretação do
passado na perspectiva do presente dá sentido político e ideológico que se expressa nas
marcas da história. Essa condição do ​habitus14 reforça o sentido expresso na memória
enquanto legitimação, estruturação das leituras de mundo, das percepções sobre a
identidade e o ser, seu coletivo, cultural e social.
Dessa forma, a memória movimenta os corpos e os sujeitos sobre aquilo que os
convém enquanto compreensão de seu presente para as perspectivas futuras por meio do
passado, por mais temporalmente fluído que pareça e politicamente estabelecido nos
entremeios. Ainda, todavia, é preciso estabelecer uma ligação entre a memória que se
inscreve com a identidade que a expressa a partir da pergunta: mas quem está a se
lembrar?

IDENTIDADE

Quando se fala em memória é importante pensar que mesmo que estabelecido


por certos ritos e processos sociais, é mantida por indivíduos e sujeitos, além de
monumentos, museus ou “lugares”, nem sempre materialmente estabelecidos15. Essa
condição de sujeitos quanto à memória é estabelecida, também, através das criações de

14
Expresso como conceito tanto na filosofia aristotélica, mas também na sociologia moderna como em
Elias (1994) e Bourdieu (2002).
15
Pensando nas problemáticas estabelecidas no artigo de NORA, 1993.
identidades e alteridades, isto é, na visão de um “nós” como grupo social e um “eles”
enquanto expressividade do exterior, diferente tanto em termos de classificação em
classe, nacionalidade ou diferenciação política, por exemplo que se exemplifica na
formação da modernidade enquanto proposta de encontros culturais.
Não é de se estranhar a fundamentação de séculos de encontros entre mundos
tão diferentes quanto o europeu e o indígena pré-colombiano na América desde 1492
que formalizam, ao menos para a leitura de Enrique Dussel (1994), a modernidade16.
Tratado este que se expressa de maneira muito proeminente no decorrer da colonização
e que vincula a cultura e a sociedade nativa a um grupo de tutorados, subdesenvolvidos
e inferiores enquanto seres humanos de uma ordem naturalmente imposta de
darwinismo social. Essa proposta da modernidade, que abarca todas as condições de
existência, trata de aprofundar-se através das políticas de Estado neoliberal, condição de
aplicação de uma vontade autoritária, impositiva e violenta de incorporação do
diferente, neste caso expresso pelos povos originários ou indígenas (DAVALOS, 2005,
p. 18).
Essa fundamentação identitária, para além da mera estruturação dos chamados
“novos” movimentos sociais, isto é, no tangenciamento de subgrupos que extrapolam a
compreensão puramente econômica de classe, também se dá como observação da
realidade e das leituras elaboradas pelos sujeitos nos processos políticos. Dessa forma, a
rebelião de parte dos indígenas chiapanecos em 1994 expressam, talvez de forma mais
radical que nos movimentos anteriores, a percepção de uma impossibilidade de
convivência com as política públicas mexicanas que estabelecem o “problema indígena”
ou as tentativas de incorporação em uma ​mexicanidade que exalta os povos
pré-colombianos mas ignora os descendentes desse povo (GONÇALVES, 2008, p. 30).
Assim, as lutas existentes e em continuidade do EZLN são formuladas a partir
de processos políticos que envolvem a significação de uma história de resistências para
com as perpetuações das violências de aculturação e inclusão sociais que buscavam, na
prática pública, homogeneizar os cidadãos através da condição do ser mexicano, grosso
modo, mestiço que fala espanhol. As memórias indígenas, assim, expressam uma
necessidade de resistência ante os avanços e construções discursivas que impelem um
sentido trágico ao viver comunitário/coletivo e não consumista/individual dos povos.

16
Que para o autor se expressa como um “mito” irracional de legitimação da violência. DUSSEL, 1994,
p. 8.
Uma memória que, invariavelmente, se vincula à identidade e à consideração do ser
mexicano também indígena, isto é, da quebra do paradigma moderno enquanto busca da
aceitação da igualdade na diversidade.

¡YA BASTA!

Durante a organização do EZLN, mostra-se claro o desenvolver de uma


unificação entre três grupos distintos: “un grupo político-militar, un grupo de indígenas
politizados y muy experimentados, y el movimiento indígena de la Selva” no qual o
primeiro grupo advinha de uma célula guerrilheira da Frente de Libertación Nacional
(FLN)17 em Chiapas que se estabelece na região da Selva Lacandona em 1983 e era
formado principalmente por membros da classe média, professores e universitários; o
segundo de um grupo organizado de indígenas chiapanecos com larga experiência nos
movimentos sociais de defesa dos ​ejidos18 e de questionamento das aplicações das
políticas neoliberais; e por fim, as comunidades indígenas (LE BOT, 1997, p. 52).
Essa constituição social seria responsável pela articulação de fatores chave para
o levante de 1994, no qual há, durante os onze anos de comunicação entre tais grupos
diversos, processos de aculturação, aprendizagens e formação de uma cultura política19
que se expandirá (e sofrerá alterações) no decorrer da década de 1990 a partir da atuação
do movimento organizado em Chiapas. Assim, a Primera Declaración de la Selva
Lacandona, o documento oficialmente publicado pelo EZLN em primeiro de janeiro de
1994 e que estabelece o conflito que se extenderá nos doze primeiros dias do ano, traz

17
Com características marxista-leninista e estratégia foquista, a FLN tinha como base fomentar a luta
armada como processo revolucionário. Inseridos no contexto de formação da década de 1960 e de atuação
até inícios de 1990, o movimento guerrilheiro chega a enviar a célula que será parte do EZLN. Todavia,
as relações que são estabelecidas pelos membros da guerrilha na Selva e em contato com as comunidades
acaba por desenvolver uma nova orientação e atuação política que se demonstra mais como braço armado
do movimento indígena que uma vanguarda, aos moldes de Lukács, que guiaria os proletários à liberdade.
ROJAS, 2017, cap. II; ALMEIDA, 2017, p. 90-98.
18
O tipo de propriedade ​ejidatária foi legalmente estabelecido a partir da Constituição de 1917 apesar de
a prática de cessão das terras do Estado para comunidades indígenas ser comum desde a colonização
espanhola. Estabelece, assim, uma formação territorial comunitária na qual a posse é coletiva e,
principalmente, indígena. Somente com a reforma do art. 27 da Constituição mexicana proposta pelo
então presidente Salinas de Gortari (1988-1994) em 1992 altera e transforma os ​ejidos em propriedades
passíveis de posse particular sendo, inclusive, um dos estopins do conflito em Chiapas. HARVEY, 1998,
p. 50-51.
19
Termo advindo da renovação da História Política e que perpassa a ideia de entender as influências do
cultural no âmbito político de diversas formas e como processo de longa duração. Para uma leitura mais
aprofundada ver: BERSTEIN, 1998, p. 349-363; SIRINELLI, 1997, p. 157-164.
indícios de uma compreensão memorial da coletividade indígena expressa pela
organização militar:
Somos producto de 500 años de luchas: primero contra la esclavitud, en la
guerra de Independencia contra España encabezada por los insurgentes,
después por evitar ser absorbidos por el expansionismo norteamericano, luego
por promulgar nuestra Constitución y expulsar al Imperio Francés de nuestro
suelo, después la dictadura porfirista nos negó la aplicación justa de leyes de
Reforma y el pueblo se rebeló formando sus propios líderes, surgieron Villa y
Zapata, hombres pobres como nosotros a los que se nos ha negado la
preparación más elemental para así poder utilizarnos como carne de cañón y
saquear las riquezas de nuestra patria sin importarles que estemos muriendo de
hambre y enfermedades curables, sin importarles que no tengamos nada,
absolutamente nada, ni un techo digno, ni tierra, ni trabajo, ni salud, ni
alimentación, ni educación, sin tener derecho a elegir libre y democráticamente
a nuestras autoridades, sin independencia de los extranjeros, sin paz ni justicia
para nosotros y nuestros hijos. (PRIMERA DECLARACIÓN DE LA SELVA
LACANDONA, 1994)

As referências a uma identidade indígena e mexicana permeiam todo o decorrer


do início da declaração. Processos que se vinculam a colonização e a fatos históricos da
nação remetem a uma posição que sempre foi frente do movimento: estabelecer-se
enquanto mexicanos, o reconhecimento dos indígenas e de sua condição do presente
enquanto parte fundamental da nação, em uma ato de precaução, poderia-se dizer, da
narrativa prontamente criada pelo Estado mexicano de que o levante era influenciado
por estrangeiros20, inserido no contexto de fim das guerras revolucionárias da América
Central, e que tinha como objetivo a separação territorial de Chiapas do México21.
O uso dessa memória oficial, coletivamente estabelecida no territória mexicano,
estrutura questões de importante indagação quanto ao sentido prática da rebelião. É
interessante notar que as narrativas que envolvem a identificação dos povos originários
na criação da alteridade branca/estrangeira/do governo se estabelecem enquanto
legitimação da guerra e do conflito, aspectos presentes na história nacional. A
modernidade do pensamento liberal, homogeneizante, reflete as dificuldades e lutas
historicamente travadas pelos explorados e que, ainda assim, passam a dar força ao

20
O discurso oficial do governo tinha, inclusive, percepções clássicas quanto ao aspecto ​infantil dos
grupos indígenas que logo é rechaçado pelo EZLN e a expressividade do CCRI-CG, este formado
unicamente por indígenas. Essa reprodução do preconceito e violência étnica é, justamente, a base da luta
zapatista em Chiapas. NIGRI, 2009, cap. III.
21
Essa disputa quanto ao caráter nacional do movimento vai decorrer toda a década de 1990, na qual a
acusação de implantação de uma autonomia, partindo da resolução 169 da OIT, para o governo era visto
como um ataque à territorialidade nacional. Em diversos outros momentos o EZLN reafirma seu caráter
nacional e mexicano como retórica e prática, até mesmo no estabelecimento das autonomias ​de fato no
início da década de 2000. CRUZ, 2017, cap. IV.
explorador. O caso emblemático é a consideração em torno da Revolução Mexicana de
1910.
Até o ano 2000, o México foi liderado por um tipo de democracia que manteve
no poder o Partido Revolucionário Institucional desde 192922. Para este partido, a
vinculação do processo revolucionário de 1910 aos seus feitos foi essencial para a
manutenção do poder por mais de 70 anos. A consolidação do poder institucional, dessa
forma, se dá principalmente através das ações populistas de Lázaro Cárdenas durante
seu governo de 1934-1940, no que se estabeleceu de forma trivial23 como a finalização
do processo iniciado em 1910.
Todavia, a Primeira Declaração surge com uma contraproposta: os mais
populares atores da revolução são “hombres pobres como nosotros”, nascidos do povo e
que deram a vida pela dignidade da terra e pela liberdade. A aproximação entre as
realidades de 1910 e de 1994 são base da construção memorial do movimento, na qual a
exploração e a precariedade da vida, representada tanto no governo de Porfírio Díaz
quanto em Chiapas, destacam o sentido lógico da ação bélica, do conflito, da
organização da guerra contra o Estado, lutas que tem como motor o reconhecimento dos
direitos à vida, terra, saúde, eleições democráticas e trabalho.
A exploração a qual os chiapanecos se viam submetidos integram nas
mentalidades do movimento a aproximação, por um viés dicotômico, do governo
neoliberal de 1980-1990 às ações dos mexicanos que apoiaram a Espanha colonizadora,
os Estados Unidos expansionista e o porfiriato em contraste com os indígenas
chiapanecos do EZLN e os independentistas Hidalgo, Morelos e Guerrero24 e os
revolucionários Emiliano Zapata e Francisco “Pancho” Villa.

somos los herederos de los verdaderos forjadores de nuestra nacionalidad, los


desposeídos somos millones y llamamos a todos nuestros hermanos a que se
sumen a este llamado como el único camino para no morir de hambre ante la
ambición insaciable de una dictadura de más de 70 años encabezada por una
camarilla de traidores que representan a los grupos más conservadores y
vendepatrias. Son los mismos que se opusieron a Hidalgo y a Morelos, los que
traicionaron a Vicente Guerrero, son los mismos que vendieron más de la
mitad de nuestro suelo al extranjero invasor, son los mismos que trajeron un
príncipe europeo a gobernarnos, son los mismos que formaron la dictadura de
los científicos porfiristas, son los mismos que se opusieron a la Expropiación
Petrolera, son los mismos que masacraron a los trabajadores ferrocarrileros en
1958 y a los estudiantes en 1968, son los mismos que hoy nos quitan todo,

22
Manteve-se no poder por aproximadamente 70 anos através de ações clientelistas e institucionalização,
como o nome sugere, da política partidária. BARBOSA, 2016, p. 138-139.
23
Apesar de ainda gerar discussões no âmbito historiográfico. BARBOSA, 2016, p. 101-102.
24
Não por acaso nomes de Estados mexicanos.
absolutamente todo. (PRIMERA DECLARACIÓN DE LA SELVA
LACANDONA, 1994)

A disputa da memória revolucionária dada no decorrer da década de 1990,


ainda, ressalta o renascimento, por parte dos chiapanecos, do mito da Revolução
Mexicana e da via armada como solução para os impasses sociais. A exploração da
herança de Emiliano Zapata e do exército do sul quanto à tomada de terras,
expropriação de latifúndios e defesa das propriedades coletivas indígenas são presentes
no momento em que o EZLN se prostrava como antagonista do Estado mexicano. A
Primera Declaración se conforma, ainda, como declaração de guerra.
O processo inicialmente dado em primeiro de janeiro de 1994 vai se alterar com
as particularidades que a história produz. Enquanto os zapatistas esperavam uma ação
violenta e de aniquilação vinda do governo, com esperança da participação popular
enquanto levante25, as respostas dadas pelo contexto de fim da Guerra Fria e dos conflito
na América Central logo mostraram uma ​sociedade civil26 que se pautava nos diálogos
de paz e, assim, trouxe mudanças da estratégia zapatista para a busca de formas
favoráveis de negociação e de legitimação política de ação, explorando, como se
mostrou já desde a Primera Declaración, a memória revolucionária e indígena mexicana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ASSIS, Frederico Souza de Queiroz. ​Para além do Cachimbo de Magritte:


Messianismo e Utopia na Construção da Figura do Subcomandante Marcos. 2013. 126

25
Próximo ao que teria acontecido na Nicarágua em 1979 quando a população apoiou de forma ativa a
ação das guerrilhas, levando à queda de Somoza. Esperava-se, dessa forma, que houvesse ou um apoio
forte ou total rechaço/ignorância quanto ao ocorrer de Chiapas. A resposta da sociedade civil, todavia, foi
diferente do esperado pelo comando militar do EZLN. CRUZ, 126-142.
26
Compreende-se o termo sociedade civil como uma representação da antinomia entre grupos sociais
diversos, permeados por classes e disputas de poder de um lado e o aparato estatal do outro. Não se
entende que a dicotomia em si seja excludente, já que os dois pólos apresentam diversas relações entre si.
Vale ressaltar, em todo caso, que sociedade civil não é uma estrutura unívoca, pautada pela
homogeneidade, mas arena de disputas políticas, de poder, econômicas, sociais e culturais. ALVAREZ;
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FONTE

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