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Temores Apostólicos

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18º capítulo do livro “Nós desatados”, escrito por

J.C.Ryle

“O que receio, e quero evitar, é que assim como a serpente enganou Eva com astúcia, a mente de vocês
seja corrompida e se desvie da sua sincera e pura devoção a Cristo” (2Coríntios 11.3).

O texto acima contém parte da experiência de um famoso cristão. Talvez nenhum servo de Cristo tenha deixado
semelhante marca para o bem do mundo como o Apóstolo Paulo. Quando nasceu, todo o império romano, com
exceção de uma pequeníssima parte, estava submerso nas trevas do paganismo; quando morreu, o tremendo
conglomerado pagão havia sido sacudido em seu núcleo e já estava a caminho da ruína. E nenhum dos
instrumentos que Deus utilizou para produzir essa maravilhosa mudança fez mais do que Saulo de Tarso depois de
sua conversão. No entanto, mesmo em meio a tanto sucesso e utilidade para Deus, podemos ouvi-lo clamar:
“Receio!”.

Tal clamor possui uma melancolia que exige a nossa atenção. Quem pensa que Paulo teve uma vida cômoda por
ser um Apóstolo, por ter feito milagres, por ter fundado igrejas e por ter escrito epístolas inspiradas pelo Espírito
Santo, tem muito o que aprender. Nada mais longe da verdade! O capítulo 11 de 2 Coríntios conta uma história
muito diferente. Esse capítulo merece um estudo cuidadoso. Em parte devido à oposição dos pagãos, filósofos e
sacerdotes, cujo ofício estava em perigo, em parte devido à amarga inimizade de seus próprios compatriotas
descrentes, em parte devido aos irmãos falsos ou fracos, em parte devido ao seu próprio aguilhão na carne, o
grande Apóstolo dos gentios era como seu Senhor: “um homem de dores e experimentado no sofrimento ” (cf. Is
53.3).

Mas de todos os fardos que Paulo teve de suportar, nenhum parece ter pesado tanto quanto a preocupação por
todas as igrejas (2 Corintios 11.28). O conhecimento precário de muitos cristãos primitivos, sua fé débil, sua
inexperiência, sua esperança minguada, seu baixo nível de santidade, todas essas coisas os faziam
particularmente suscetíveis de perder-se por causa dos falsos mestres, e assim afastar-se da fé. Como crianças
pequenas, que com grande dificuldade começam a andar, necessitavam ser tratados com grande paciência. Como
plantas exóticas numa estufa, deveriam ser tratados continuamente. Pode-se duvidar que eles mantinham o
Apóstolo num estado de contínua ansiedade? Nos surpreende que ele diga aos colossenses: “Quero que vocês
saibam quanto estou lutando por vocês, pelos que estão em Laodiceia e por todos os que ainda não me conhecem
pessoalmente”; e aos gálatas: “Admiro-me de que vocês estejam abandonando tão rapidamente aquele que os
chamou pela graça de Cristo, para seguirem outro evangelho”. “Ó gálatas insensatos! Quem os enfeitiçou? Não foi
diante dos seus olhos que Jesus Cristo foi exposto como crucificado?” (Cl 2.1; Gl 1.6; 3.1). Nenhum leitor atento
pode estudar as epístolas sem perceber que essa questão surge uma e outra vez. E o texto que encabeça este
artigo é um exemplo do que quero dizer: “O que receio, e quero evitar, é que assim como a serpente enganou Eva
com astúcia, a mente de vocês seja corrompida e se desvie da sua sincera e pura devoção a Cristo” (2Co 11.3). O
texto contém três importantes lições, às quais desejo que meus leitores dirijam sua atenção. Creio que são lições
válidas para todas as épocas.

I. Em primeiro lugar, o texto nos revela uma doença espiritual a qual todos somos suscetíveis e a qual devemos
temer. Essa doença é o desvario da mente: “Receio… que a mente de vocês seja corrompida”.

II. Em segundo lugar, o texto nos revela um exemplo que devemos sempre lembrar: “A serpente enganou Eva com
astúcia”.

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III. Em terceiro lugar, o texto nos revela um ponto sobre o qual devemos manter vigilância. Esse ponto é o desvio
de nossa “sincera e pura devoção a Cristo”.

O texto é uma mina de ouro profunda, e não encontra-se isento de dificuldades. Mas desçamos corajosamente a
fim de encontrar nosso tesouro.

I. Primeiramente, pois, há uma doença espiritual que devemos temer: o desvario ou corrupção da mente.

Interpreto “corrupção da mente” como a lesão que nossa mente sofre ao admitir falsas doutrinas e ensinos
antibíblicos em nossa religião. E creio que o Apóstolo queria dizer o seguinte: “Receio que seus sentidos absorvam
ideias equivocadas e defeituosas a respeito do Cristianismo. Receio que vocês adotem como verdades alguns
princípios que não são a Verdade. Receio que vocês se afastem da fé que foi entregue uma vez por todas aos
santos e que abracem ideias que praticamente destroem o Evangelho de Cristo“.

O receio expressado pelo Apóstolo é dolorosamente instrutivo e à primeira vista pode até causar surpresa. Quem
poderia imaginar que, mesmo sob o olhar dos próprios discípulos escolhidos por Cristo, quando o sangue vertido
no Calvário mal havia secado, quando a era apostólica e a era dos milagres ainda não havia passado, já existiria o
perigo de que os cristãos se afastassem de sua fé? No entanto, é certo que o “mistério da iniquidade” já havia
começado a operar antes mesmo da morte dos Apóstolos (cf. 2Ts 2.7). “Já agora muitos anticristos têm surgido”
(1Jo 2.18). E não há nenhum fato na história da Igreja que esteja mais demonstrado que este: que a falsa doutrina
jamais deixou de ser uma praga na cristandade nos últimos dezoito séculos. Olhando para o futuro com olhos de
profeta, Paulo disse: “Receio… não somente a corrupção de sua moralidade, mas também de seus sentidos “.

A pura verdade é que a falsa doutrina tem sido o modo escolhido por Satanás para deter o avanço do progresso do
Evangelho de Cristo em todas as épocas. Ao ver-se incapaz de evitar que a fonte da vida fosse aberta, ele tem
trabalhado incansavelmente para poluir os mananciais que dela começam a fluir. Embora não tenha conseguido
estancá-la, eventualmente tem sido bem-sucedido ao neutralizá-la por meio de adição, substração ou substituição.
Em outras palavras, tem corrompido as mentes dos homens.

a) A falsa doutrina logo propagou-se pela igreja primitiva depois da morte dos Apóstolos , ainda que muitos gostem
de falar de uma suposta pureza inicial da Igreja. Em parte devido ao estranho ensino a respeito da Trindade e da
pessoa de Cristo, em parte devido a uma absurda multiplicação de ritos e cerimônias, em parte devido à introdução
do monasticismo e de um ascetismo de origem humana, a luz da Igreja logo foi enfraquecendo e sua utilidade foi
perdida. Mesmo nos tempos de Agostinho, como nos diz o prefácio do Livro de Oração Comum da Igreja da
Inglaterra: “O número de cerimônias cresceu de tal modo que o estado dos cristãos era pior do que o dos judeus
nesse aspecto“. Aqui estava a corrupção dos sentidos humanos.

b) Durante a Idade Média, a falsa doutrina havia se propagado de tal forma pela Igreja, que a Verdade de Cristo
Jesus esteve a ponto de ser enterrada ou sufocada. Durante os três séculos anteriores à Reforma, é provável que
somente uma minúscula parte dos cristãos teria conseguido responder à pergunta: “O que devo fazer para ser
salvo?”. Os papas e cardeais, os abades e priores, os arcebispos e bispos, os sacerdotes e diáconos, os monges
e as freiras, salvo raríssimas exceções, estavam profundamente imersos na ignorância e na superstição. Estavam
submersos num sono profundo, do qual foram parcialmente despertos pelo terremoto da Reforma. Neles estava a
“corrupção dos sentidos humanos”.

c) Desde os dias da Reforma a falsa doutrina tem voltado a surgir continuamente, uma e outra vez, estorvando a
obra começada pelos reformadores. O modernismo em algumas regiões da Europa, o unitarismo em outras, o
formalismo e a indiferença em outras, têm feito do protestantismo algo simplesmente estéril.

d) A falsa doutrina, mesmo na atualidade e diante de nossos próprios olhos, está devorando o coração da Igreja da
Inglaterra e colocando em perigo sua existência. Uma escola eclesiástica não hesita em expressar seu desagrado
diante dos princípios da Reforma e está buscando romanizar o sistema[1]. Outra escola, com o mesmo ímpeto, fala
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com desdém da inspiração bíblica, graceja da própria ideia de uma religião sobrenatural e tenta tenazmente lançar
fora os milagres como se fossem trastes inúteis.[2] Outra escola proclama a liberdade de opinião religiosa em
todas as suas variações e nos diz que todos os mestres merecem a nossa confiança sem importar quão
heterodoxas e contraditórias sejam suas opiniões, desde que sejam inteligentes, fervorosos e sinceros. Para todas
essas escolas é válida a mesma observação: são exemplo vivo da “corrupção da mente humana”.

Diante de fatos como esses, faríamos bem em tomar seriamente as palavras do Apóstolo no texto que encabeça o
presente artigo. Como ele, temos motivos de sobra para recear. Creio que os cristãos ingleses jamais precisaram
estar tão em guarda quanto hoje. Jamais foi tão necessário que os ministros fiéis clamem em alta voz e não se
calem. “Se a trombeta não emitir um som claro, quem se preparará para a batalha?” (1Co 14.8).

Peço a cada membro leal da Igreja da Inglaterra que abra seus olhos diante do perigo ao qual sua Igreja está
exposta e tenha cuidado para que ela não seja danificada por causa da apatia e de um desejo insano de paz. A
controvérsia é algo odioso; mas há tempos em que a mesma torna-se um dever imperioso. A Paz é algo excelente;
mas, assim como o ouro, pode custar muito caro. A Unidade é uma grande bênção; mas não vale nada se é
conquistada em troca da Verdade. Repito mais uma vez: abra seus olhos e mantenha-se em guarda.

A nação que se dá por satisfeita com sua prosperidade comercial e descuida suas defesas nacionais porque são
complicadas ou caras, provavelmente se transformará em presa do primeiro Alarico, Átila ou Napoleão que decida
atacá-la. A Igreja que seja “rica e próspera” pode pensar que “de nada tem necessidade” devido a sua antiguidade,
sua ordem e suas qualidades. Pode clamar “paz, paz” e se convencer de que não verá mal nenhum. Mas, se não
conservar a sã doutrina entre seus ministros e membros, não deverá surpreender-se de que lhe retirem seu
candelabro.

Desaprovo desde o fundo do meu coração a covardia ou o pessimismo diante desta crise. A única coisa que digo
é: Exercitemos um temor piedoso. Não vejo a menor necessidade de abandonar um barco velho e dá-lo por
perdido. Por ruins que pareçam as coisas dentro de nossa arca, certamente não são piores do que o dilúvio lá fora.
Mas protesto, sim, contra esse espírito despreocupado de sonolência que parece selar os olhos de muitos clérigos
e cegá-los diante do enorme perigo em que se encontram devido ao progresso das falsas doutrinas em nosso
tempo. Protesto contra a ideia generalizada que tão frequentemente proclamam os homens de altos cargos de que
a Unidade é mais importante do que a sã doutrina e que a Paz é mais valiosa do que a Verdade. E convoco todo
leitor deste artigo que ame verdadeiramente a Igreja da Inglaterra e que reconheça os perigos desta época e leve a
cabo seu dever de resistir energicamente a tais clérigos por meio da ação conjunta e da oração. Não é sem motivo
que o Senhor diz: “Se [alguém] não tem espada, venda a sua capa e compre uma” (cf. Lc 22.36). Não esqueçamos
as palavras de Paulo: “Estejam vigilantes, mantenham-se firmes na fé, sejam homens de coragem, sejam fortes ”
(1Co 16.13). Nossos nobres reformadores compraram a Verdade pagando com seu próprio sangue e a entregaram
a nós. Não a venderemos por um prato de lentilhas em nome da Unidade e da Paz.

II. Em segundo lugar, o texto nos revela um exemplo que faremos bem em lembrar: “A serpente enganou Eva com
astúcia“.

Quase não é necessário lembrar aos leitores que Paulo, aqui, faz referência à história da Queda no capítulo 3 de
Gênesis como um fato histórico. Não há aqui a menor indicação que propicie à crítica moderna a ideia de que o
livro de Gênesis não passa de uma agradável coleção de mitos e fábulas. Não dá a entender que não existe um ser
como o diabo, que não houve um fruto proibido e que não foi desse modo, literalmente, que o pecado entrou no
mundo. Ao contrário, menciona a história de Gênesis 3 como um fato histórico que ocorreu realmente.

Devemos recordar, igualmente, que este não é um caso isolado. É fato que as várias histórias de milagres
extraordinários do Pentateuco são mencionadas no Novo Testamento sempre como fatos históricos. Caim e Abel, a
arca de Noé, a destruição de Sodoma e Gomorra, Esaú vendendo sua primogenitura, a morte dos primogênitos no
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Egito, a passagem pelo Mar Vermelho, a serpente de bronze, a água que fluiu da rocha, a jumenta de Balaão que
falou – os autores do Novo Testamento mencionam todas essas coisas como algo real, não como fábulas. Não
esqueçamos disso jamais. Aqueles que gostam de desprezar os milagres do Antigo Testamento e tirar a autoridade
do Pentateuco fariam bem em considerar se possuem mais conhecimento do que nosso Senhor Jesus Cristo e do
que os Apóstolos. Quanto a mim, falar de Gênesis como um conjunto de mitos e fábulas diante de uma passagem
das Escrituras como essa que temos diante de nós, parece soar como irracional e blasfemo. Paulo estava
enganado quando mencionou a história da tentação e da Queda? Se estava, era uma pessoa crédula e tola, e
talvez tenha se enganado em muitas outras coisas. Se assim fosse, desapareceria sua autoridade como escritor!
Podemos descartar semelhante conclusão monstruosa. Mas é bom lembrar que muita incredulidade começa com
um desprezo irreverente em relação ao Antigo Testamento.

De qualquer modo, o que o Apóstolo deseja que percebamos na história de Eva e da serpente é que a “astúcia” do
diabo a levou a pecar. Ele não disse a ela, simplesmente, que queria causar-lhe dano. Ao contrário, disse a ela que
aquilo que estava proibido era bom para comer, agradável aos olhos e desejável para obter sabedoria (Genêsis
3.6). Não teve escrúpulos ao afirmar que ela poderia comer o fruto proibido sem temer a morte. Cegou os olhos de
Eva para a pecaminosidade e a transgressão. A persuadiu para afastar-se do claro mandamento de Deus e crer
que isso lhe daria benefícios e não ruína. “Com sua astúcia enganou Eva”. Bem, é justamente essa “astúcia” que
Paulo nos diz que devemos temer na falsa doutrina.

Não devemos esperar que as doutrinas falsas se aproximem de nós com aparência de engano, mas sim travestidas
de verdade. A moeda falsa jamais entraria em circulação se não fosse semelhante à autêntica. O lobo raramente
conseguiria entrar no aprisco se não se disfarçasse de ovelha. O papismo e a incredulidade não causariam muitos
estragos se se apresentassem ao mundo com seus verdadeiros nomes. Satanás é um general inteligente demais
para dirigir uma campanha dessa forma. Utiliza palavras elegantes e frases de efeito como “catolicidade”,
“apostolicidade”, “unidade”, “ordem na Igreja”, “ideias corretas a respeito da Igreja”, “pensamento livre”,
“interpretação liberal das Escrituras” e outras semelhantes, e desse modo toma posse das mentes dos incautos. É
essa, precisamente, a “astúcia” à qual Paulo se refere no presente texto. Não devemos duvidar que ele havia lido
as palavras do Senhor no Sermão do Monte: “Cuidado com os falsos profetas. Eles vêm a vocês vestidos de peles
de ovelhas, mas por dentro são lobos devoradores” (Mt 7.15).

Peço sua atenção especial com respeito a este ponto. Tal é a característica simplória e ingênua de muitos
ministros da nossa época que de fato esperam que as doutrinas falsas pareçam falsas e não entendem que a
própria essência da falsidade é sua semelhança com a verdade de Deus. Um jovem clérigo, por exemplo, que
desde a sua infância foi educado para ouvir somente o ensino evangélico, recebe um dia o convite para ouvir um
sermão pregado por algum eminente mestre de opiniões semicatólicas ou liberais. Em sua ingenuidade, vai à igreja
esperando ouvir somente heresias do princípio ao fim. Para seu assombro, escuta um sermão inteligente e
eloquente que contém uma grande dose de verdade e tão-somente umas poucas gotas, homeopáticas, de erro.
Então surge uma violenta reação em sua mente ingênua. Começa a pensar que seus professores eram gente de
mente estreita, intolerantes e duros, e sua confiança neles fica danificada, talvez para sempre. Com frequência,
acaba pervertendo-se completamente e finalmente passa a fazer parte dos romanistas ou dos liberais! E por qual
motivo? Por um tolo esquecimento da lição do Apóstolo Paulo neste texto: a serpente enganou Eva “com astúcia”.
Assim Satanás engana as almas incautas do nosso tempo, aproximando-se delas sob o disfarce da Verdade.

Rogo a cada leitor deste artigo que lembre-se disso e mantenha-se alerta. Os falsos mestres têm multidões de
seguidores fanatizados que, incansavelmente, os elogiam a todos os que encontram pela frente, dizendo coisas
como: “Ele é tão bom, tão amável, tão humilde, tão esforçado, tão abnegado, tão caridoso, tão fervoroso, tão
inteligente, tão sincero, que não pode haver perigo nenhum em ouvi-lo. Além disso prega um evangelho agradável
e genuíno! Ninguém prega melhor do que ele! Não posso acreditar – e nunca acreditarei – que trata-se de um
enganador”. Quem não escuta constantemente esse tipo de discurso? Ora, os falsos mestres não se apresentam
como tais, mas como “anjos de luz”, e são inteligentes demais para dizer tudo o que pensam e planejam fazer.
Jamais foi tão necessário lembrar que “a serpente enganou Eva com astúcia”.
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Deixo esta parte do assunto com a triste sensação de que vivemos em tempos em que sentir receio em relação à
sã doutrina não somente é um dever, mas uma virtude. Não é ao fariseu ou ao saduceu declarados que devemos
temer, mas sim o fermento dos fariseus e dos saduceus. É a “reputação de sabedoria” que reveste o erro que o
torna tão perigoso para muitos (Colossenses 2.23). Parece tão bom, tão justo, tão zeloso, santo e reverente, tão
devoto e tão amável que arrasta muitas pessoas bem-intencionadas como uma tsunami. Quem quiser estar a salvo
deve cultivar um espírito de sentinela. Não deve se importar se zombam de si, por considerá-lo alguém que “vê
heresias em qualquer lugar”. Em tempos como estes, não deve se envergonhar de desconfiar do perigo. E se há
alguém que zombe dele por isso, bem pode responder: “A serpente enganou Eva com astúcia”.

III. A terceira e última lição deste texto nos mostra uma questão a respeito da qual devemos estar particularmente
precavidos. Essa questão é denominada “a sincera e pura devoção a Cristo”.

Essa expressão é extraordinária e única no Novo Testamento. Há algo claro aqui: a sincera e pura
devoção significa aquilo que é puro em contraste com o que foi misturado. Desenvolvendo essa ideia, alguns têm
sustentado que a expressão significa “afetos exclusivos para Cristo”, isto é, não devemos dividir o nosso afeto
entre Cristo e mais alguém. Sem dúvida, é boa teologia, mas não estou convencido de que esse seja o verdadeiro
sentido do texto. Prefiro a opinião de que ele refere-se a uma simples doutrina cristológica, sem adulterá-la nem
alterá-la, a simples “verdade como é em Jesus”, sem acréscimos, substrações nem substituições. Afastar-se do
simples e genuíno preceito do Evangelho, seja deixando de lado alguma parte ou acrescentando alguma outra
coisa, era o que Paulo queria que os coríntios temessem. A expressão está cheia de significado e parece escrita
especialmente para o nosso ensino nestes últimos tempos. Nosso zelo deve ser grande e devemos estar sempre
em guarda, para que não nos afastemos do simples Evangelho que Cristo entregou de uma vez por todas aos
santos.

A expressão que temos diante de nós é tremendamente instrutiva. O princípio nela contido é de inefável
importância. Se amamos nossas almas e queremos mantê-las saudáveis, devemos nos esforçar para jamais nos
afastarmos da singela doutrina de Cristo. Uma vez que algo seja acrescentado ou tirado dela, transforma-se o
remédio divino em veneno mortal. Que o princípio a guiá-lo seja: “Nenhuma outra doutrina salvo a doutrina de
Cristo, nada mais e nada menos!”. Aferre-se firmemente a esse princípio e não o solte. Escreva-o em seu coração
e não se esqueça dele jamais.

1) Tenhamos claro, por exemplo, que não há um caminho para a Paz exceto o caminho traçado por Cristo . A
verdadeira tranquilidade de consciência e a paz interior da alma não procedem jamais de alguma outra coisa que
não seja a fé inequívoca em Cristo e em Sua obra completa. A paz por meio da confissão, do ascetismo, da
frequência contínua aos cultos ou da participação constante da Ceia do Senhor é uma paz enganosa. As almas
somente alcançam descanso quando dirigem-se diretamente a Jesus Cristo, cansadas e sobrecarregadas,
descansando n’Ele por meio da fé, da confiança e da comunhão. Nesta questão devemos nos manter firmes na
“sincera e pura devoção a Cristo”.

2) Tenhamos claro, igualmente, que não há outro sacerdote que possa mediar de alguma maneira entre Deus e
nós, além de Jesus Cristo. Ele mesmo disse, e Suas palavras não passarão: “ Eu sou o caminho, a verdade e a
vida. Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim” (Jo 14.6). Nenhum filho pecador de Adão, sem importar como tenha
sido ordenado nem qual seja seu título eclesiástico, pode ocupar o lugar de Cristo ou fazer o que somente Cristo foi
chamado para fazer. O sacerdócio é um cargo específico de Cristo e jamais Ele o delegou a outrem. Também
nesta questão, devemos nos manter firmes na “sincera e pura devoção a Cristo”.

3) Tenhamos claro também que não existe sacrifício pelo pecado exceto o sacrifício único de Cristo na cruz . Não
ouça nem por um momento aqueles que dizem que há algum tipo de sacrifício na Ceia do Senhor, alguma repetição
da oferta de Cristo na cruz ou alguma oferta de Seu corpo e de Seu sangue sob a forma do pão e do vinho
consagrados. O sacrifício pelos pecados que Jesus Cristo ofereceu foi único, perfeito e completo e não passa de
uma blasfêmia o querer repeti-lo, “porque, por meio de um único sacrifício, Ele aperfeiçoou para sempre os que

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estão sendo santificados” (Hb 10.14). Nesta questão, devemos nos manter firmes em nossa “sincera e pura
devoção a Cristo”.

4) Tenhamos claro que não existe outra regra de fé nem outro juiz nas controvérsias doutrinárias que aquele ao
qual Cristo sempre mencionou: a Palavra escrita de Deus. Não deixemos que nenhum homem perturbe nossas
almas com expressões vagas como “a voz da Igreja, a Antiguidade primitiva, o julgamento dos primeiros Pais” e
esse tipo de discurso grandiloquente. Que o nosso único padrão da Verdade seja a Bíblia, a Palavra escrita de
Deus. O que diz a Escritura? O que está escrito na Lei? Como você lê? À Lei e ao testemunho! Estudem
cuidadosamente as Escrituras! (Rm 4.3; Lc 10.26; Is 8.20; Jo 5.39). Nesta questão, devemos nos manter firmes na
“sincera e pura devoção a Cristo”.

5) Tenhamos claro que não há outros meios de graça na Igreja que tenham autoridade além dos meios conhecidos
que Cristo e os Apóstolos nos deixaram. Consideremos com o maior zelo as cerimônias e rituais de origem humano
quando se lhes outorga tão exagerada importância a ponto de as coisas de Deus ficarem relegadas a um segundo
plano. As ideias humanas tendem invariavelmente a suplantar os decretos de Deus. Vigiemos para que a Palavra
de Deus não seja substituída por vãs invenções humanas. Nesta questão, devemos nos manter firmes em nossa
“sincera e pura devoção a Cristo”.

6) Tenhamos claro que não pode ser verdadeiro nenhum ensino a respeito dos sacramentos que atribua aos
mesmos um poder que Cristo não menciona. Tenhamos cuidado para não admitir que o batismo e a Ceia do
Senhor possam conferir graça ex opere operato, isto é, por meio da mera ministração externa, independentemente
do estado do coração daqueles que os recebem. Precisamos lembrar que a única prova de que as pessoas
batizadas e os comungantes têm a graça de Deus é a demonstração dessa graça em suas vidas. O fruto do
Espírito é a única prova de que nascemos do Espírito e estamos unidos a Cristo, e não a mera recepção dos
sacramentos. Nesta questão, devemos nos manter firmes em nossa “sincera e pura devoção a Cristo”.

7) Tenhamos claro também que nenhum ensino a respeito do Espírito Santo é correto a menos que concorde com
o ensino de Jesus Cristo. Não devemos ouvir aqueles que asseveram que o Espírito Santo habita realmente em
todas as pessoas batizadas, sem exceção, em virtude unicamente de seu batismo, e que a única coisa que deve
ser feita é “fomentar” a graça nessas pessoas. O ensino simples e direto de nosso Senhor é que o Espírito Santo
habita unicamente naqueles que são Seus discípulos fiéis e que o mundo não conhece, não vê, nem pode receber
o Espírito Santo (cf. Jo 14.17). Sua presença interior é um privilégio dos cristãos, e somente deles. Nesta questão,
devemos manter firmes a nossa “sincera e pura devoção a Cristo”.

8) Por último, tenhamos claro que nenhuma doutrina pode ser sã se não apresentar a Verdade de forma
equilibrada, como fizeram Cristo e os Apóstolos. Evitemos qualquer ensino que enfatize exageradamente a
exaltação à Igreja, ao ministério ou aos sacramentos, enquanto grandes verdades como o arrependimento, a fé, a
conversão e a santificação são colocadas em lugares inferiores e subordinadas a ritualismos estéreis. Compare tal
doutrina com aquela dos Evangelhos, de Atos dos Apóstolos e das Epístolas. Analise os textos, faça seus cálculos.
Perceba quão pouco é dito no Novo Testamento a respeito da Igreja, do batismo, da Ceia do Senhor e do
ministério, e então julgue você mesmo quais são as proporções na Verdade. Também nesta questão, repito mais
uma vez, devemos nos manter firmes em nossa “sincera e pura devoção a Cristo”.

A simples e pura doutrina de Cristo é, pois – sem acréscimos, subtrações ou substituições – a meta à qual
devemos almejar. Esse é o ponto do qual devemos evitar qualquer desvio. Podemos melhorar a doutrina de Cristo?
Somos mais sábios do que Ele? Podemos crer que Ele deixou de lado alguma coisa importante e que a mesma foi
trazida à tona pelas tradições humanas? Arrogamos a nós mesmos o direito de mudar ou corrigir algum decreto de
Cristo? Temos consciência de que não devemos declarar como necessária para a salvação coisa alguma que
Cristo não tenha ensinado? Precisamos nos precaver de tudo o que possa nos desviar de nossa “sincera e pura
devoção a Cristo”.

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A pura verdade é que nunca será excessivo exaltar o Senhor Jesus Cristo como o Cabeça da Igreja e Soberano
sobre todas as coisas, Senhor dos decretos e Salvador dos pecadores. Creio que todos falhamos aqui. Não
compreendemos que Rei tão excelso, grande e glorioso é o Filho de Deus e quanta lealdade – lealdade absoluta –
devemos a Aquele que não delegou nenhum de Seus ofícios nem deu Sua glória a nenhum outro. Vale a pena
lembrar as solenes palavras que John Owen dirigiu à Casa dos Comuns num sermão sobre a grandeza de Cristo.
Receio que a Casa dos Comuns ouça poucos sermões como esse na atualidade:

“Cristo é o caminho: os homens sem Cristo são como Caim, errantes pelo mundo. Cristo é a Verdade: sem Ele, os
homens são enganadores tal como o diabo, desde a antiguidade. Cristo é a vida: sem Ele, os homens estão
mortos em delitos e pecados. Cristo é a luz: sem Ele, os homens estão em trevas e não sabem para onde vão.
Cristo é a videira: os homens que não estão em Cristo são ramos cortados e preparados para o fogo. Cristo é a
rocha: os homens que não estão construídos sobre Ele serão arrastados pelas torrentes. Cristo é o Alfa e o
Ômega, o princípio e o fim, o Autor e o Consumador, Aquele que começa e Aquele que conclui a nossa salvação.
Quem não tem a Cristo, não possui o princípio do bem, e sua infelicidade não terá fim. Oh, bendito Jesus, seria
melhor não existir do que existir sem Ti! Melhor não nascer do que morrer sem Ti! Mil infernos não são piores do
que a eternidade sem Ti!”

E agora concluirei este artigo oferecendo alguns conselhos a meus leitores. Não os ofereço como alguém que tem
um pouco de autoridade, mas como alguém que deseja afetuosamente fazer o bem a meus irmãos. Os ofereço
como conselhos que considero úteis para a minha própria alma e que, por isso, aventuro-me a pensar que podem
ser úteis para todos.

1) Em primeiro lugar, se desejamos evitar cair na falsa doutrina, precisamos equipar nossas mentes com um
profundo conhecimento da Palavra de Deus. Devemos ler nossas Bíblias do princípio ao fim diariamente e com
diligência, esforçando-nos para nos familiarizar com seu conteúdo, em constante oração, pedindo ao Espírito Santo
que nos ensine. O desconhecimento da Bíblia é a raiz de todos os erros, e um conhecimento superficial da mesma
explica muitas das tristes perversões e deserções da atualidade. Numa época de pressa e correria, de estradas de
ferro e telégrafos, estou firmemente persuadido de que muitos cristãos não dedicam tempo suficiente à leitura
diária das Escrituras. Estou certo de que há 200 anos atrás os ingleses conheciam melhor a Bíblia do que hoje. A
consequência é que muitos são como crianças, levados daqui para lá por qualquer vento de doutrina, presas fáceis
de qualquer mestre inteligente do engano. Rogo a meus leitores que lembrem este conselho e atentem para o
rumo de suas vidas. É certíssimo que somente o bom estudante do texto bíblico será um bom teólogo e que a
familiaridade com os textos essenciais da Bíblia é, como nosso Senhor demonstrou na tentação, a melhor das
salvaguardas contra o erro. Procure equipar-se, portanto, com a espada do Espírito e treine suas mãos para utilizá-
la. Sou muito consciente de que não existe um caminho fácil para o conhecimento da Bíblia. Sem diligência e
esforço ninguém chega a ser “poderoso nas Escrituras”. “A justificação” – disse Charles Simeon[3] – “é pela fé, mas
o conhecimento da Bíblia vem pelas obras”. Mas de uma coisa estou certo: não há trabalho que seja melhor
recompensado do que um estudo diário e esforçado da Palavra de Deus.

2) Em segundo lugar, se desejamos manter um caminho reto como ministros do Evangelho nos tempos em que
vivemos, conheçamos profundamente os Trinta e Nove Artigos da Igreja da Inglaterra. Esses artigos são a
confissão autorizada de nossa igreja, e a verdadeira prova que todo aspirante a clérigo deveria submeter-se. Como
a Confissão de Fé de Westminster, nossos Trinta e Nove Artigos são uma barreira eficiente contra a tendência atual
de voltar ao catolicismo romano.

3) O terceiro e último conselho que desejo oferecer é o seguinte: precisamos nos familiarizar profundamente com a
História da Reforma. Nossa história tem sido injustamente esquecida e milhares de ministros do Evangelho têm,
hoje, uma noção muito pobre de tudo quanto devemos aos reformadores. Muitos pagaram com o martírio para que
hoje possamos ser uma igreja livre. É preciso ter um conceito claro sobre a situação de trevas e superstição na
qual viviam nossos antepassados e sobre a luz e a liberdade que foram introduzidas pela Reforma. Devido ao
desconhecimento da História, sofremos hoje com movimentos favoráveis ao catolicismo romano e ideias ingênuas
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e pueris sobre a verdadeira natureza do papado. É hora de mudar as coisas. A origem de grande parte da apatia
atual com respeito à romanização da Igreja pode ser encontrada na mais crassa ignorância tanto sobre a
verdadeira natureza do papismo quanto sobre a História da Reforma Protestante.

A ignorância, depois de tudo, é uma das melhores amigas das falsas doutrinas. O que qualquer época precisa é de
mais luz. Multidões são extraviadas pelo papismo ou caem na incredulidade por pura falta de leitura e informação.
Repito uma vez mais: se os homens estudassem com atenção a Bíblia, as confissões de fé e a História da
Reforma, não temeriam que suas mentes fossem corrompidas e se desviassem da sincera e pura devoção a
Cristo.

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ORE PARA QUE O ESPIRITO SANTO USE ESSE SERMÃO PARA EDIFICAÇÃO DE MUITOS E SALVAÇÃO DE
PECADORES.

FONTE

Traduzido de Advertencias a las Iglesias. Moral de Calatrava (Ciudad Real): Peregrino, 2003 pp. 114-131.
Traduzido do espanhol.

Original em Inglês: Apostólics Fears, 18º capítulo do livro “ Knots Untieds”

Tradução do blog “Calvinismo Hoje”,

por Fábio Vaz dos Santos

http://www.alegrem-se.blogspot.com.br/2012/05/temores-apostolicos.html

Divulgação e formatação

Projeto Ryle – Anunciando a verdade Evangélica.

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vedada a venda desse material.

[1] Ryle se refere aos Anglo-Católicos oriundos do Movimento de Oxoford, e alguns setores da conhecida “Alta
Igreja” que pregavam que a Igreja da Inglaterra deveria se aproximar as práticas litúrgicas da Igreja Católica
Romana, e negavam algumas doutrinas reformadas da Igreja da Inglaterra expressas nos 39 Artigos da Religião
(que é a Confissão de Fé da Igreja da Inglaterra) e no Livro de Oração Comum (Nota do revisor).
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[2] Possível referência aos Liberais que eram grandemente influenciados por racionalistas alemães.

[3] Charles Simeon (1759 – 1836) foi um clérigo inglês evangélico. Ele se tornou um líder entre os clérigos
evangélicos, foi um dos foi um dos fundadores da Sociedade Missionária da Igreja em 1799, a Sociedade de
Londres para promover o cristianismo entre os judeus; Publicou centenas de sermões e esboços de sermões

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