Você está na página 1de 202

Diversas faces de Itabaiana:

análises de imagens discursivas


da Cidade dos Caminhoneiros
Título Original: Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas
da Cidade dos Caminhoneiros

© Copyright 2016 by ArtNer Comunicação e autores


Todos os direitos desta edição estão reservados aos autores. Proibida a reprodução
total ou parcial, por qualquer meio ou processo, com finalidade de comercialização ou
aproveitamento de lucro ou vantagens, com observância da Lei de regência. Poderá ser
reproduzido texto, entre aspas, desde que haja clara menção do nome do autor, título
da obra, edição e paginação. A violação dos direitos do autor (Lei nº 9.610/98) é crime
estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.

Capa Foto de capa


Christina Ramalho Robério Santos
Joselito Miranda
Diagramação Impressão
Joselito Miranda Infographics Gráfica e Editora

Printed in Brazil / Impresso no Brasil

Editora ArtNer Comunicação


CNPJ 13.844.466/0001-15
Tel.: (79) 99131-7653
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

Diversas faces de Itabaiana:


análises de imagens discursivas
da Cidade dos Caminhoneiros

Autores
Márcia Regina Pereira Curado Mariano
Flávio Passos Santana
Luciana Almeida Santos
Michelle Lima
Jussany de Jesus Oliveira

Organização
Márcia Regina Curado Pereira Mariano
Flávio Passos Santana

Série Acadêmica
Co Estudos Linguístico

s e Literários
Nº 1

Aracaju

2016
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

Série Acadêmica
Coleção Estudos Línguísticos e Literários nº 4
Direção
Profa. Dra. Christina Ramalho (UFS)
Conselho Editorial
Profa. Dra. Ana Maria Leal Cardoso (UFS)
Prof. Dr. Anazildo Vasconcelos da Silva (UFRJ)
Profa. Dra. Anélia Montechiari Pietrani (UFRJ)
Prof. Dr. Beto Vianna (UFS)
Profa. Dra. Carlinda Fragale Pate Nuñez (UERJ)
Prof. Dr. Carlos Magno Santos Gomes (UFS)
Profa. Dra. Conceição Flores (UnP)
Profa. Dra. Ildney de Fátima Souza Cavalcanti (UFAL)
Profa. Dra. Márcia Regina Curado Pereira Mariano (UFS)
Profa. Dra. Leilane Ramos da Silva (UFS)
Profa. Dra. Sylvia Helena Cyntrão (UnB)

4
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .............................................................................. 7

CAPÍTULO 1
COMO ITABAIANA SE MOSTRA (OU É MOSTRADA) NA MÍDIA .... 15

A QUESTÃO DO AUDITÓRIO EM PERELMAN:


O QUE AS CAPAS DE REVISTA DIZEM SOBRE OS LEITORES
Márcia Regina Pereira Curado Mariano ........................................ 17

A CONSTRUÇÃO DO ETHOS DE UMA CIDADE E


DE SEUS HABITANTES EM UMA REVISTA LOCAL
Flávio Passos Santana
Márcia Regina Pereira Curado Mariano ........................................ 55

ANÁLISE DISCURSIVA DE ITABAIANA E DOS ITABAIANENSES


EM TEXTOS QUE FOCALIZAM A VIOLÊNCIA NA CIDADE
Luciana Almeida Santos ................................................................ 73

CAPÍTULO 2
LITERATURA ITABAIANENSE E CONSTRUÇÃO
DE IMAGENS DISCURSIVAS .......................................................... 95

A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DISCURSIVA DE


UMA CIDADE E DE UM POVO NA LITERATURA DE CORDEL
Márcia Regina Pereira Curado Mariano ........................................ 97

5
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

ARGUMENTAÇÃO E RETÓRICA: A CONSTRUÇÃO DAS


IMAGENS DISCURSIVAS DA CIDADE DE ITABAIANA EM
OS TABARÉUS DO SÍTIO SARACURA
Flávio Passos Santana .................................................................. 117

CAPÍTULO 3
TRADIÇÕES E IDENTIDADE DISCURSIVA ...................................... 139

VALORES E IDENTIDADE DE UM POVO REVELADOS


PELA LINGUAGEM NÃO VERBAL
Michelle Lima .............................................................................. 141

VALORES DE UM POVO REVELADOS PELA LINGUAGEM


VERBAL DOS CARTAZES DA FESTA DOS CAMINHONEIROS
DE ITABAIANA
Michelle Lima .............................................................................. 163

DIVERSIDADE E TRADIÇÃO NA PROPAGANDA


DO COMÉRCIO ITABAIANENSE
Jussany de Jesus Oliveira ............................................................. 185

Sobre os autores ......................................................................... 199

6
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

APRESENTAÇÃO

O objetivo principal deste livro é um só: divulgar algumas pesquisas


desenvolvidas por alunos do curso de Letras do Campus Prof.
Alberto Carvalho, da Universidade Federal de Sergipe, localizado em
Itabaiana. Mais especificamente, aquelas realizadas entre os anos
de 2012 e 2014 por bolsistas e voluntários dos projetos de iniciação
científica (PIBIC) e iniciação à extensão (PIBIX) por mim coordenados,
respectivamente: “Desvendando Itabaiana: análise das imagens
discursivas da Cidade dos Caminhoneiros”, partes I e II, e “Análise de
textos persuasivos”, também I e II.
Embora embasados, em grande parte, pelas mesmas linhas
teóricas – retórica aristotélica e estudos da argumentação de base
aristotélica -, por sua natureza, os projetos tinham objetivos bem
distintos. Os projetos de iniciação científica tinham como objetivo
observar as diferentes imagens que se constrói de Itabaiana e de
seu povo em diversos textos que circulam na cidade ou nos seus
arredores. Assim, privilegiamos textos escritos por itabaianenses
ou moradores da cidade ou, de acordo com o ano da pesquisa,
textos que falavam sobre os itabaianenses e sobre Itabaiana. Afinal,
como Itabaiana é dita e se diz nos textos? Como os itabaianenses
se mostram por meio da linguagem, ou seja, qual a imagem ou as
imagens que fazem de si mesmos (o ethos) naquilo que produzem
verbalmente? Quais os valores e as crenças que deixam indiciar nos
textos?
Já os projetos de iniciação à extensão tinham como objetivo
principal munir os alunos de arcabouço teórico para a elaboração
e a ministração de cursos de extensão e levá-los a atividades fora

7
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

da universidade para a divulgação dos trabalhos e para o diálogo,


como realmente aconteceu nas participações na Bienal do Livro de
Itabaiana, nos minicursos e nas ações de extensão na universidade
com a participação de escritores, poetas, professores e historiadores
itabaianenses. A pesquisa? Bem, a pesquisa não era obrigatória,
era só uma complementação, fruto das leituras necessárias para
as atividades de extensão. Mas quem não quer conhecer melhor o
lugar em que nasceu, em que vive ou onde trabalha, estuda? E assim
nasceram alguns artigos de participantes do PIBIX, como também
alguns artigos meus, que também não resisti aos encantos da cidade
que abriga nosso campus. Além disso, como delegar aos alunos uma
tarefa se eu mesma não me empenhasse também nela?
Nem todos os alunos que participaram dos projetos nesses anos
estão aqui, no livro, mas faço questão de citar o nome de todos e
de agradecer pelas discussões, pela troca de ideias que, sem dúvida,
colaboraram para a elaboração dos textos aqui apresentados. O
PIBIC 2012-2013 começou com três participantes, um bolsista e dois
voluntários. Estes últimos logo desistiram por razões diversas, mas
Flávio Passos Santana cumpriu bem sua tarefa até o fim do projeto e
participou também do PIBIC 2013-2014, que contou com Jussany de
Jesus Oliveira e Luciana Almeida Santos. O PIBIX 2013 desenvolveu-se
com a bolsista Márcia Ferreira Fernandes e com os voluntários Danilo
de Melo Mercado e Michelle Lima. Em 2014, Márcia Ferreira e Danilo
continuaram e contamos com a participação de Márcia Cristina do
Nascimento Santos Oliveira. Desses participantes, dois estão hoje no
mestrado da UFS de São Cristóvão, Flávio e Michelle, alguns estão no
final do curso da graduação, outros lecionando nas salas de aula do
ensino básico da região e outros tomaram novos rumos. O orgulho é
o mesmo, de todos.
Nosso objetivo, de simples divulgação, por sua vez, justifica-se
pela escassez de revistas especializadas abertas para a produção de
graduandos. Não há aqui a presunção de ver os trabalhos dos alunos
como referência teórica para outras pesquisas. Eles estão aqui para
mostrar o que são: pesquisas iniciais feitas por alunos que estão

8
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

(estavam) no início da vida de pesquisador e que assumiram essa


tarefa com seriedade e competência.
Se nosso objetivo é único, os resultados esperados a partir desta
publicação, no entanto, são vários. Esperamos uma valorização maior
da pesquisa feita na graduação e incentivo aos alunos participantes
de projetos; uma popularização das pesquisas científicas, com maior
acesso a elas pela comunidade não-acadêmica, principalmente
quando os temas estudados exploram problemas e culturas locais;
no nosso caso especifico, esperamos também colaborar para a
divulgação e a valorização da cultura itabaianense, bem como desvelar
para os moradores da cidade algumas das imagens discursivas
possíveis que são construídas de Itabaiana. Teoricamente, também
esperamos evidenciar a presença da argumentação no dia a dia e a
persuasão como o principal objetivo no uso da(s) linguagem(ns) na
comunicação.
A fim de mostrarmos esses trabalhos desenvolvidos, organizamos
nosso livro em três capítulos. Cabe observar que os artigos neles
presentes são independentes e utilizam, na maioria das vezes, uma
mesma base teórica e mesmos conceitos. Quando você, leitor, cansar
de ler a definição de ethos, por exemplo, sugiro que vá direto para
as análises, onde os conceitos são aplicados em objetos diferentes.
O Capítulo I, “Como Itabaiana se mostra (ou é mostrada) na mídia”,
apresenta três trabalhos que analisam a construção da imagem de
Itabaiana e dos itabaianenses na mídia impressa, seja por meio da
observação da identidade discursiva daquele que fala no texto, o
orador, seja daquele a quem o texto se dirige, o auditório.
O primeiro, de minha autoria, intitulado “A questão do auditório
em Perelman: o que as capas de revista dizem sobre os leitores”, foi
apresentado no “Colóquio: 55 anos do Tratado da Argumentação:
A Nova Retórica – Repercussões nos estudos do discurso e ciências
afins”, ocorrido no dia 24/05/2013 na FFLCH-USP e organizado pelo
GERAR, Grupo de Estudos em Retórica e Argumentação, que integro
e que é coordenado pela Profa. Dra. Lineide do Lago Salvador Mosca.
Nesse trabalho, analisamos sete capas da revista OMNIA, publicadas

9
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

no período entre agosto de 2012 e fevereiro de 2013, em Itabaiana-


SE, a fim de buscarmos indícios da imagem que esse orador faz de
seus leitores. Com esse intuito, exploramos, principalmente a partir
do Tratado da Argumentação, de Perelman e Tyteca, publicado
originalmente em 1958, os conceitos de auditório particular e
auditório universal, orador e persuasão, dentre outros, evidenciando
o itabaianense culto, que se orgulha da sua cidade e valoriza,
principalmente, a cultura local.
O segundo trabalho, de autoria de Flávio Santana em coautoria
comigo, chamado “A construção do ethos de uma cidade e de seus
habitantes em uma revista local”, observa como as estratégias
argumentativas podem ser utilizadas para definir o ethos ou os ethé
de uma cidade e de um povo, isto é, suas imagens discursivas, assim
como para tentar persuadir um auditório acerca de um determinado
fato. Para isso, analisamos a reportagem “Lampião arrudiano
Itabaiana: Ele nunca esteve aqui, mas saiba os fatos relacionado (sic)
a Itabaiana”, publicada na revista OMNIA em maio de 2011, em que o
orador tenta convencer o público leitor de que Lampião não invadiu
o município de Itabaiana por nele existirem heróis mais perigosos do
que o Rei do Cangaço. A partir da análise dos argumentos utilizados
no texto, desvelamos as imagens discursivas de uma cidade valente
e de um povo corajoso e orgulhoso de sua história e de sua cultura.
Para tanto, utilizamos como pressupostos teóricos e metodológicos
os estudos da Argumentação e da Retórica, da Semiótica Discursiva e
da Análise do Discurso francesa. Esse artigo foi publicado na Revista
EID&A, Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e
Argumentação, em 2013.
O terceiro trabalho que compõe o primeiro capítulo é inédito e
denomina-se “Análise discursiva de Itabaiana e dos itabaianenses
em textos que focalizam a violência na cidade”, de autoria da aluna
Luciana Almeida Santos. Nesse artigo, a autora explora a imagem
estereotipada de Itabaiana como uma cidade violenta, fama que se
estende pelo estado, e analisa notícias de jornais virtuais da cidade
e de cidades vizinhas sobre crimes que ocorreram em Itabaiana.

10
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

Partindo também de estudos retóricos e discursivos, Luciana explora


principalmente o conceito de ethos prévio e ethos pré-discursivo,
de Ruth Amossy e Dominique Maingueneau, respectivamente, mas
analisa também as figuras de argumentação e retórica presentes nas
notícias ou reportagens e ainda fala sobre o conceito de figurativização
da semiótica francesa. O que se observa, a partir de sua análise, é uma
afirmação dessa imagem prévia sobre o município e uma exploração
das paixões do leitor, do pathos, evidenciando o papel da mídia na
manutenção de discursos, nem sempre verdadeiros ou únicos.
O segundo capítulo, chamado “Literatura itabaianense e
construção da imagem discursiva da cidade e de seus munícipes”,
composto por dois artigos, apresenta, inicialmente, mais um trabalho
de minha autoria, com o nome “A construção da imagem discursiva
de uma cidade e de um povo na literatura de cordel”. Esse trabalho
foi apresentado em duas ocasiões, com algumas adaptações,
de acordo com os eventos: no 60 º Seminário do GEL, Grupo de
Estudos Linguísticos, na USP, em São Paulo, no ano de 2012, com o
mesmo nome apresentado nesta coletânea, e no III ENILL, Encontro
Interdisciplinar em Língua e Literatura, ocorrido em agosto de 2012,
na UFS de Itabaiana. Na ocasião, o trabalho teve como título “As
imagens discursivas de Itabaiana e dos itabaianenses no livro Na
feira de Itabaiana tem?, de Carlos Mendonça”. Esta última versão
foi publicada nos Anais do evento e a versão apresentada no GEL foi
publicada na revista Estudos Linguísticos, número 42, em 2013. Nesse
trabalho observamos, à luz dos estudos da Argumentação e Retórica,
da Semiótica discursiva e da Análise do Discurso francesa, no livro
Na feira de Itabaiana tem?, de Carlos Mendonça, as estratégias
persuasivas utilizadas para construir ou reforçar imagens discursivas
da cidade de Itabaiana e do povo itabaianense. Por meio da literatura
de cordel, o autor fala não só da feira de Itabaiana, símbolo cultural
e comercial da cidade, mas também da sua gente, trazendo para
seus versos personagens e situações que revelam um município ativo
economicamente e um povo trabalhador, criativo, galanteador e
divertido. Eu diria que esse foi o trabalho que deu o pontapé inicial

11
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

para todos os outros aqui apresentados, na medida em que foi o


primeiro em que dirigi meu olhar para a identidade discursiva de
Itabaiana e foi o que deu origem aos projetos citados.
O segundo trabalho desse capítulo é chamado “Argumentação
e Retórica: a construção das imagens discursivas da cidade de
Itabaiana-SE em Os tabaréus do Sítio Saracura”, de autoria de Flávio
Santana. O autor analisa o livro Os tabaréus do Sítio Saracura, escrito
pelo itabaianense Antônio Francisco de Jesus, também conhecido
como Antônio Saracura, que é um romance memorialista em que
o escritor retrata fatos ocorridos na sua infância no município de
Itabaiana. O artigo busca analisar o ethos da cidade e a imagem
discursiva feminina que são construídos nesse romance, revelando
aspectos da cultura itabaianense e o papel submisso da mulher no
nordeste ainda no século XX e, ao mesmo, sem ser contraditório, sua
força para mudar a sua realidade e a de seus filhos. Esse trabalho
foi apresentado na 25ª Jornada Nacional do Grupo de Estudos
Linguísticos e Literários do Nordeste (GELNE), que ocorreu em Natal,
no ano de 2013, e publicado nos anais do evento.
O terceiro capítulo, “Tradição e identidade discursiva”, é composto
por três artigos inéditos e um já publicado. Os dois primeiros,
de autoria de Michelle Lima, exploram os cartazes da tradicional
Festa dos Caminhoneiros, realizada no município durante o mês
de junho, e são resultantes de uma pesquisa iniciada durante sua
participação no PIBIX “Análise de textos discursivos” e finalizada no
seu Trabalho de Conclusão de Curso, defendido em 2015. O primeiro
artigo, intitulado “Valores e identidade de um povo revelados
pela linguagem não-verbal”, privilegia a linguagem não verbal dos
cartazes que é analisada, sobretudo, a partir da Semiótica Visual de
base greimasiana, no intuito de refletir sobre a imagem discursiva
de Itabaiana construída a partir desses textos. O segundo artigo,
“Valores de um povo revelados pela linguagem verbal dos cartazes
da Festa dos Caminhoneiros de Itabaiana”, analisa semanticamente
os nomes das bandas que se apresentaram nas festas e revela como
eles são persuasivos e como podem apontar para a identidade

12
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

discursiva dos habitantes da cidade e/ou do público participante da


festa, bem como para os valores que compartilham.
O terceiro trabalho, de autoria de Jussany Oliveira, intitulado
“Diversidade e tradição no comércio itabaianense”, apresenta uma
forma tradicional de se fazer propaganda na cidade de Itabaiana: as
propagandas móveis/volantes divulgadas nos carros de som. A partir
de um trabalho de escuta e transcrição de propagandas do comércio
da cidade, a autora evidencia um movimento comercial diversificado,
mas que mantém a fidelidade aos comércios das famílias tradicionais
da cidade. Aponta, ainda, para um ethos criativo - revelado, dentre
outras estratégias, pela intertextualidade e pela repetição - e
trabalhador do itabaianense.
Termino esta apresentação com a alegria de saber que nada está
finalizado e que há muito ainda a se descobrir sobre Itabaiana. E é
essa a alegria do pesquisador: ter sempre mais e mais a pesquisar.
Espero que esse sentimento contagie vocês. Feliz leitura a todos!

Márcia Regina Curado Pereira Mariano

13
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

CAPÍTULO 1

COMO ITABAIANA SE MOSTRA


(OU É MOSTRADA) NA MÍDIA

15
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

A QUESTÃO DO AUDITÓRIO EM PERELMAN:


O QUE AS CAPAS DE REVISTA DIZEM SOBRE OS LEITORES

Márcia Regina Curado Pereira Mariano

Introdução

Os estudos da Argumentação mostram-nos que argumentamos


o tempo todo, nas mais diversas situações, e que argumentamos
sempre para alguém, seja para um indivíduo separadamente ou
para um grupo de pessoas, por meio da oralidade ou da escrita.
Nos estudos da Retórica e da Argumentação, utilizam-se os termos
orador e auditório para se referir a esses sujeitos que se constroem
discursivamente pelo e no próprio discurso, e que variam de acordo
com “[…] critérios sociais, culturais ou políticos.” (MOSCA, 2002, p.
09). Deste modo, para que um discurso seja efetivamente persuasivo,
orador e auditório devem partilhar, no momento do ato comunicativo,
os mesmos valores, as mesmas crenças, o mesmo ponto de vista sobre
o mundo. Mas como tornar parecidos sujeitos sempre tão diferentes,
tendo em vista a grande diversidade de informações e formações a
que estamos expostos durante uma vida e os diferentes papéis e
funções sociais dos interlocutores? Como aproximar competências
linguísticas, textuais, discursivas e retóricas tão particulares?
Os estudos discursivos e argumentativos evidenciam que é pelo
discurso que a aproximação entre os sujeitos é possível e que não se
trata de uma aproximação entre sujeitos de carne e osso, mas entre
os sujeitos que se constroem no discurso. Não se trata, portanto, da
aproximação física, mas de uma aproximação de ideias, de pontos
de vista, que só pode ser medida na análise dos discursos, por meio
da observação dos modos de dizer. Deste modo, tais estudos tratam
da aproximação possível entre os sujeitos da enunciação (orador/

17
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

enunciador e auditório/enunciatário), aqueles a que temos acesso


pelos textos. É, pois, pela maneira como os discursos são organizados,
pelos argumentos utilizados, pelos temas abordados, pelas escolhas
linguísticas, que a aproximação se faz possível.
Os estudos da argumentação, particularmente, tratam de
esclarecer os modos de dizer que originam os efeitos de sentido que
podem levar à persuasão. A persuasão, por sua vez, é aqui sinônimo
de adesão, de modificação do outro, mas também de negociação,
de acordo e de consideração do interlocutor como alguém capaz
de argumentar. É pela linguagem - mas não uma linguagem pronta
para consumo, e sim uma linguagem plástica, moldável, maleável
– que é possível persuadir, aproximar ou distanciar o auditório de
acordo com nossos objetivos; que é possível adequar nosso discurso
às competências do enunciatário; tornarmo-nos competentes e/ou
torná-lo competente. Assim, a beleza e a importância da linguagem,
tomada semioticamente como algo geral, que inclui não só as línguas
naturais, não está nas palavras ou nos morfemas, nos traços de um
desenho ou nos gestos, mas no que conseguimos alcançar a partir
de suas combinações, numa instância de uso efetivo da linguagem.
Conhecer suas partes e suas regras, no entanto, é imprescindível
para analisar o discurso.
Os sujeitos argumentativos são os que não buscam mais a
verdade ou a falsidade da lógica, da razão, mas que, sem abandoná-
la, apostam na construção de verdades, na verossimilhança, no
plausível, no provável, na relação intersubjetiva, dialógica. Nesse
sentido, orador e auditório, como construção discursiva, são sujeitos
ativos, conscientemente ou não, que não produzem nunca discursos
neutros ou imparciais; que possuem opiniões; que determinam
escolhas; que constroem imagens de si e do outro; que provocam
efeitos de sentido e paixões e que podem mudar a direção dos
acontecimentos por meio da linguagem.
Visitando os estudos retóricos, vemos que orador, auditório e
discurso relacionam-se aos três meios de persuasão “supridos pela
palavra falada” de acordo com Aristóteles (2011, p. 45), ou ainda,

18
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

num sentido geral, a “instrumentos de persuadir” (REBOUL, 2000, p.


47). De acordo com o estagirita, são argumentos “dependentes da
arte”, na medida em que são construídos retoricamente.
O primeiro meio de persuasão é aquele que depende do caráter
que o orador mostra no seu discurso, da imagem confiável, “digna
de crédito”, que ele constrói, e que é conhecido como ethos. Para
Barthes (1975, p. 203), ao mesmo tempo em que enuncia, o orador
diz: “sou isso e não aquilo”. E é por meio do discurso que esse orador,
então, mostra para o auditório determinados “traços de caráter”
ou “atributos” (os ethé), reveste-se de “aparências”, de “tons” para
“causar boa impressão”. Essas aparências podem privilegiar o bom-
senso, a sabedoria (phronesis); a franqueza, a lealdade (arete) e/ou
a simpatia, a cumplicidade com o auditório (eunoia). Vemos, ainda,
que o modo como esse orador se mostra “[...] depende do próprio
auditório, cujas expectativas variam segundo a idade, a competência,
o nível social, etc.” (REBOUL, 2000, p. 48)
Fiorin (2008) vai mostrar como os estudos enunciativos colaboram
nessas reflexões. Segundo o autor, “[...] o ethos não se explicita no
enunciado, mas na enunciação.”(p. 139). Deste modo, a imagem
que um enunciador deixa evidente no seu discurso não constrói o
seu ethos, já que essa construção se dá a partir do modo como ele
organiza seus textos, como fala sobre determinados assuntos, como
age discursivamente. Da mesma forma pensam Amossy (2005) e
Maingueneau (2005), para quem o que realmente vale (ou o que é mais
importante) é a imagem discursiva do enunciador que é mostrada,
evidenciada pelo modo de dizer, e não aquilo que o enunciador
diz que é, nem o que se pensa ou se sabe dele antes que tome a
palavra. O autoelogio por exemplo, pode parecer até “deslocado e
ridículo” (PERELMAN e TYTECA, 2005, p. 364) e prejudicar a imagem
do orador, assim como uma argumentação incoerente ou fraca; já
uma argumentação clara e vigorosa constrói uma imagem favorável
desse orador.
Assim, tomando o ethos como uma construção discursiva, sua
análise

19
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

...nada tem do psicologismo que, muitas vezes,


pretende infiltrar-se nos estudos discursivos. Trata-se
de apreender um sujeito construído pelo discurso e não
uma subjetividade que seria a fonte de onde emanaria o
enunciado, de um psiquismo responsável pelo discurso.
O éthos é uma imagem do autor, não é o autor real; é
um autor discursivo, um autor implícito. (FIORIN, 2008,
p. 139).

O segundo meio de persuasão é aquele que diz respeito a “[...] levar


o auditório a uma certa disposição de espírito [...]” (ARISTÓTELES,
2011, p. 45), ou seja, aquele ligado à imagem discursiva que o orador
faz do seu interlocutor, que faz de sua disposição para ouvir/ler
sobre isto ou aquilo, para ser deste ou daquele jeito, e que direciona
a elaboração do discurso persuasivo. A este meio denomina-se
pathos, que, segundo Reboul, “[...] é o conjunto de emoções, paixões
e sentimentos que o orador deve suscitar no auditório com seu
discurso.” (2000, p. 48).
Vemos em Barthes (1975) que ao lado dos atributos do orador
caminham os sentimentos ou afetos do ouvinte (os pathe, as
paixões, conforme estudadas por Aristóteles. Segundo este filósofo,
“As paixões são todos aqueles sentimentos que, causando mudança
nas pessoas, fazem variar seus julgamentos […]” (ARISTÓTELES,
2000, p. 05). Conseguir despertar uma ou outra paixão no
auditório (cólera; calma; temor; segurança...), de acordo com seus
objetivos, depende do quanto o orador conhece seu interlocutor.
Deste modo, a eficácia no uso de argumentos e o consequente
alcance da persuasão dependem desse conhecimento. Segundo
Perelman e Tyteca (2005, p. 52), para aqueles que querem levar
o interlocutor a uma ação precisa, é importante “[…] excitar as
paixões, emocionar seus ouvintes, de modo que se determine uma
adesão suficientemente intensa, capaz de vencer ao mesmo tempo
a inevitável inércia e as forças que atuam num sentido diferente do
desejado pelo orador.”

20
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

Voltando aos estudos da enunciação, e evidenciando sua


importância em outras abordagens, como na Semiótica francesa1
e nos estudos da retórica e da argumentação, estas últimas aqui
privilegiadas por nós, reforça-se o fato de que um eu sempre se dirige
a um tu, assim, “[...] ensina Greimas que enunciador e enunciatário
constituem o sujeito da enunciação […]” (FIORIN, 2008, p. 153),
ou seja, o enunciatário (que corresponde à noção de auditório nos
estudos retóricos), também como uma construção discursiva, um tu
implícito, é um coenunciador. Deste modo, aquele a quem se destina
o discurso é uma “imagem concreta” e não um ser ideal e abstrato,
mas alguém que tem grande influência na construção discursiva, visto
que tanto é responsável pela construção do discurso, como também o
“[...] interpreta, avalia, compartilha ou rejeita significações.” (FIORIN,
2008, p. 154).
Finalmente, constituindo o terceiro meio de persuasão construído
pela palavra, segundo Aristóteles, aparece o próprio discurso,
naquilo que ele “demonstra ou parece demonstrar” (ARISTÓTELES,
2011, p. 45). Conhecido como logos, esse instrumento de persuadir
diz respeito à escolha dos temas, dos argumentos. Para compreender
o discurso, é necessário concebê-lo como uma construção que
passa pelo jogo de imagens entre orador e auditório; é preciso vê-
lo como o “ponto de partida das representações” dos sujeitos que
compõe o ato comunicativo (MOSCA, 2004, p. 130). Assim sendo, um
mesmo tema não interessará a todos, nem os mesmos argumentos
serão válidos para todos os auditórios. O discurso reflete, pois, as
escolhas do orador tendo em vista um auditório determinado.
Orador e auditório, por sua vez, como construções discursivas, não
existem fora do discurso. Os sujeitos da enunciação dependem
tanto do discurso quanto este último depende dos primeiros; assim
como os sujeitos da enunciação não existem fora de uma relação de
complementaridade entre o eu e o tu.

1 Com quem estabelecemos aqui um diálogo, principalmente com a sintaxe e a semântica


do nível discursivo do texto, a partir de autores como José Luiz Fiorin e Diana Luz Pessoa de
Barros.

21
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

O Tratado da Argumentação: A Nova Retórica, de Chaïm Perelman


e Lucie Olbrechts-Tyteca, publicado originalmente em 1958, não
vai apresentar diretamente os termos ethos, pathos e logos2, mas
retoma essas concepções e busca revelar a importância da relação
entre o orador e o auditório na construção do discurso persuasivo,
destacando o auditório como um coenunciador, também responsável
por esse discurso, e o orador como um sujeito capaz de, a partir
da imagem que faz do seu auditório, adaptar-se e adequar seus
textos em busca da adesão dos espíritos. Sobre essa relação de
interdependência entre esses elementos do discurso persuasivo,
Perelman (1997, p. 74) diz que: “Embora o caráter do auditório
seja primordial […] É impossível à argumentação retórica escapar à
interação entre a opinião que o auditório tem da pessoa do orador e
aquela que tem dos juízos e argumentos deste.”
Mesmo reconhecendo a importância desses três elementos
na argumentação, este nosso trabalho vai privilegiar o estudo do
auditório. É na busca da captação da imagem discursiva de um
interlocutor, construída por um orador determinado e mostrada em
um determinado discurso, que nos propomos a analisar sete capas da
revista OMNIA, publicada na cidade de Itabaiana, em Sergipe. Nosso
objetivo é, pois, buscar indícios da imagem que esse orador faz de
seus leitores. Com esse intuito, observaremos os temas anunciados
nas capas, as escolhas linguísticas, a relação entre a linguagem verbal
e a visual na construção dos sentidos, etc.
Desde o início dos nossos trabalhos como docente e pesquisadora
no Campus de Itabaiana, da Universidade Federal de Sergipe, a
revista OMNIA tem chamado nossa atenção por sua proposta de
falar sobre tudo (“PARA QUEM DESEJA SABER TUDO”, é o seu slogan),
principalmente no que concerne à cultura itabaianense e sergipana.
Desde então, seus textos têm servido como objeto de análise para
nossos alunos de programas de iniciação à pesquisa e à extensão,

2 Na p. 363, da edição por nós consultada, de 2005, os autores fazem referência ao etos
oratório.

22
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

sobretudo no estudo do ethos de Itabaiana e dos itabaianenses. A


partir desse contato surgiu o desafio de pensar sobre o auditório
imaginado pela revista.
O Tratado da Argumentação é nossa referência básica, haja
vista seu aprofundamento na questão do auditório e a proposta do
Colóquio ao qual este trabalho se destina3, no entanto, recorremos
também a autores como Pietroforte (2008), Fiorin (2008) e Reboul
(1998), dentre outros, a fim de enriquecer nossas reflexões.
Nosso trabalho divide-se em duas partes. Na primeira fazemos
uma rápida reflexão sobre o gênero capa de revista e na segunda
parte, que une a teoria e a análise, focalizamos a questão do auditório,
traçando um caminho de hipóteses e questionamentos, em conjunto
com o leitor, para a definição do pathos da revista OMNIA, por
meio da observação dos indícios que o autor deixa desse leitor nas
capas das edições de número 18 a 24. As Considerações finais e as
Referências fecham este trabalho.

1. O que e quem as capas envolvem? Características e funções do


gênero capa de revista

Apresento aqui, propositadamente, uma ambiguidade na primeira


frase acima, ocasionada pela polissemia dos lexemas capa e envolver,
com o objetivo de estabelecer uma relação semântica entre essas
palavras e, a partir disso, refletir sobre as características e funções
das capas de revista.
O lexema capa nos remete aos sentidos de cobrir, revestir, proteger
algo, geralmente valioso. Encapamos aquilo que não pode ou não
deve ser molhado, estragado, danificado. Capa ainda nos lembra o
que está na superfície, por cima de alguma coisa, o que é visto mais
imediatamente, e que pode nos esconder surpresas ou decepções.

3 Trabalho apresentado no “Colóquio: 55 anos do Tratado da Argumentação: A Nova Retórica


– Repercussões nos estudos do discurso e ciências afins”, organizado pelo GERAR, Grupo de
Estudos em Retórica e Argumentação, coordenado pela Profa. Dra. Lineide do Lago Salvador
Mosca, ocorrido no dia 24/05/2013 na FFLCH-USP.

23
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

De acordo com Pietroforte (2008, p. 26): “A capa de um LP ou de


um CD, como qualquer capa de revista e de DVD ou VHS, estabelece
uma relação com o conteúdo daquilo que ela apresenta.”. A partir
dessa afirmação, outros semas parecem somar-se a capa: apresentar,
introduzir, figurativizar, envolver, servir como um “invólucro” para o
conteúdo da revista. Assim, conhecer a capa deve ser conhecer um
texto completo, capaz de persuadir por si só, mas deve ser também
conhecer os outros textos que compõem a totalidade da revista,
utilizando-se da intertextualidade, e fazer parte dessa própria
totalidade. Nessa direção, a capa, na sua relação com a revista como
um todo de sentido, empresta funções do prelúdio, na medida em
que anuncia previamente o que será visto na revista; do prólogo,
quando usa elementos (como lead e legendas) para explicar uma foto
ou uma manchete que serão aprofundadas no interior da revista;
do exórdio, “[…] parte do discurso que visa mais especificamente
atuar sobre as disposições do auditório [...]” e cujo objetivo é “[...]
conquistar o auditório, captar a benevolência, a atenção, o interesse.
[...]” (PERELMAN e TYTECA, 2005, p. 561).
Essa busca pela captação do interesse do leitor faz da capa uma
“propaganda” da própria revista e é preciso chamar a atenção do
possível auditório, já que “[…] quem é alvo da propaganda não tem
necessariamente o desejo de escutar.” (PERELMAN, 1997, p. 71.).
Segundo esse autor, ter a atenção do auditório é uma premissa básica
para que a argumentação possa se desenvolver, e para conseguir essa
atenção já é necessário lançar mão de estratégias argumentativas
desde o início, o que consiste em um grande esforço por parte do
orador e o que já caracteriza essa atividade, de construção da capa
de revista, como uma atividade retórica: é preciso convencer o outro
de que vale a pena sermos lidos.
Assim como todo texto, a capa de revista só se caracteriza como
tal “[...] na junção do plano do conteúdo com um plano de expressão
[…], visto que, segundo Fiorin (2008, p. 57), “[…] o conteúdo só
pode manifestar-se por meio de um plano de expressão.” Portanto,
apresentar um conteúdo envolve trabalhar as linguagens como um

24
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

todo. No caso de uma capa de revista, que é um convite para a leitura,


o plano da expressão parece ter uma importância até maior do que
em outros gêneros jornalísticos, já que abre as portas para o conteúdo,
sendo ela também conteúdo. Ainda de acordo com o autor:

Do ponto de vista entre conteúdo e expressão, há dois


tipos de texto, aqueles que têm função utilitária (informar,
convencer, explicar, documentar, etc.) e os que têm função
estética. Se alguém ouve ou lê um texto com função
utilitária, não se importa com o plano de expressão. Ao
contrário, atravessa-o e vai diretamente ao conteúdo, para
entender a informação. No texto com função estética, a
expressão ganha relevância, pois o escritor procura não
apenas dizer o mundo, mas recriá-lo nas palavras, de tal
sorte que importa não apenas o que se diz, mas o modo
como se diz. (FIORIN, 2008, p. 57).

À primeira vista, a função da capa de revista parece apenas


utilitária: informar ao leitor o que encontrará ao folhear suas páginas.
Se assim fosse, a capa de revista em nada diferiria da página de rosto
de um jornal: “[...] um pálido espelho do que ocorre em seu interior,
sendo mesmo a redundância a sua função essencial.” (MOSCA, 2002,
p. 18). Mas a apresentação física da revista parece-nos diferente,
assemelhando esse suporte material mais a um livro. E, aproveitando
um provérbio popular, será que não julgamos um livro pela capa?
Ou melhor, no nosso caso, será que não julgamos e compramos uma
revista pela capa? Se a resposta for sim ou talvez, podemos delegar
à capa de revista também a função estética, vê-la como um objeto
estético; semi simbólico, em que não existe uma conformidade total
entre os planos do conteúdo e da expressão (FIORIN, 2008, p. 58);
mimético e, por que não, poético. Se for tomada como um objeto
estético, pode ela tanto privilegiar imitar a “realidade” quanto
privilegiar as construções discursivas, pois “Pode-se, portanto, dizer
que o objeto estético se constitui entre os polos da mímese e da
poiese.” (FIORIN, 2008, p. 42)

25
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

Vemos, deste modo, que a capa recria, com um número pequeno de


elementos, o conteúdo da revista, numa relação de intertextualidade,
“[…] como um processo de incorporação de um texto em outro […]4
(GUIMARÃES, 2013, p. 134), e recria também as expectativas dos
leitores. O orador “imita” esses leitores, seus interesses, crenças e
valores, a partir da imagem que constrói deles. E é a partir dessa
imagem que ele constrói seu discurso, adapta-o, adequa-o, escolhe
os elementos linguísticos e não-linguísticos, textuais, figurativos, etc.
O orador da capa de revista cria, ou busca criar, uma identificação
com seu leitor imaginado, por meio de experiências sensoriais,
de forma que ele seja envolvido pela razão e pela emoção. A capa
revela, portanto, a relação entre o sensível e o inteligível, presentes
na relação entre expressão e conteúdo, apontando, ainda, para sua
função retórica, argumentativa.
Já o lexema envolver, dentre outros significados possíveis,
remete-nos a cobrir, estabelecendo uma relação de sentido com
capa, mas também nos leva aos sentidos de comprometer(-se), atrair
e cativar5. Se pensarmos no adjetivo dele derivado, envolvente,
podemos relacioná-lo ainda à sedução e até ao mistério. Reflitamos,
inicialmente, sobre o sema comprometer(-se) e sua relação com
as capas de revista, nosso objeto de análise. Perguntamo-nos,
inicialmente, pois: que tipo de trabalho e quais profissionais são
comprometidos na confecção de uma capa? Que linguagens ela
envolve?
As capas de revista constituem um gênero discursivo caracterizado
pelo sincretismo no uso da linguagem verbal (à qual daremos uma
maior ênfase neste trabalho, por razões teóricas e metodológicas)
e da linguagem visual, como a fotografia ou o desenho. No uso da
linguagem verbal, de um modo geral, a revista traz em destaque
a manchete da reportagem principal que será apresentada em
cada edição, conhecida como reportagem de capa, que pode

4 Grifos da autora.
5 Conforme o Dicionário Caldas Aulete da Língua Portuguesa (2012, p. 415).

26
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

ser acompanhada de um subtítulo e/ou de um lead; títulos de


reportagens secundárias e legendas de fotos ou outros tipos de
figuras também podem ser utilizadas. A diagramação, com o trabalho
de disposição desses elementos verbais e não verbais, a escolha
do tipo e tamanho das fontes, por exemplo, também contribuem
na construção de sentido desse texto que, como todo texto, deve
ter unidade de sentido, completude, coerência, clareza... Como
também constitui parte de um texto maior, a revista como um todo,
a capa de revista ainda tem a obrigação de relacionar-se de forma
coerente com aquilo que apresenta, que introduz, comprometendo-
se (ou comprometendo o orador), num acordo tácito com o leitor,
a apresentar no miolo da revista aquilo que projeta. Em resumo,
de forma leiga e pouco aprofundada, a elaboração de uma capa de
revista envolve, profissionalmente, no mínimo, jornalistas, fotógrafos
e diagramadores.
Voltando aos significados do verbo envolver, vemos que um outro
sentido possível para esse lexema é atrair, cativar. As capas das
revistas precisam ser capazes de envolver os possíveis leitores, de
cativá-los, ou seja, de persuadi-los. Para persuadir, modificar o leitor,
é preciso convencê-lo apresentando fatos, verdades e presunções
(a razão), mas é preciso também atraí-lo pelo anúncio de um tema
que lhe interesse ou por uma foto que lhe impressione, isto é, usar
estratégias argumentativas que o provoquem, que o emocionem
(a emoção). Essa adesão não acontece de forma pacífica, mas
numa arena que prevê confrontos de subjetividades, conflitos e
controvérsias, próprios do universo da doxa, e em que o possível, o
plausível e as paixões podem levar ao acordo.
Segundo Aristóteles (2011, p. 122-123), “As paixões (emoções)
são as causas das mudanças nos nossos julgamentos e são
acompanhadas por dor ou prazer”. Assim, uma capa de revista deve
ser capaz de levar o possível leitor a comprar a revista, mesmo que
inicialmente ele não queira; ler as reportagens, mesmo que não
necessariamente lhe interessem; aderir a um ponto de vista, mesmo
que tenha uma visão prévia diferente. Ela é o “cartão de visita” do

27
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

restante da revista; abre portas, impressiona, envolve, seduz, guarda


mistérios. E sim, nós julgamos uma revista pela capa. Cabe ao orador
surpreender o leitor, dar-lhe prazer, persuadi-lo. Para alcançar essa
eficácia é necessário conhecer bem o auditório, e é sobre ele que nos
debruçaremos a seguir.

2. Qual o auditório da revista OMNIA? Reflexões sobre o conceito


de auditório em Perelman e análise dos dados.

A revista OMNIA foi lançada em março de 2010, em


Itabaiana, Sergipe, e está em sua 26ª edição. Tem uma circulação
predominantemente local, mas atende também a assinantes de
outras localidades, principalmente de outros municípios do estado.
Por mês, são impressos 1000 exemplares da revista, que tem,
atualmente, 130 assinantes. De acordo com seu diretor, “ela é 100%
produzida em Itabaiana, desde as ideias até a impressão”, e “é
mantida basicamente por propaganda”6. Robério Santos, jornalista,
escritor, professor e fotógrafo, é o diretor e diagramador da revista,
que conta ainda com colaboradores variados em cada edição. Neste
trabalho, selecionamos para análise as capas das edições de número
18, de agosto de 2012, a 24, de fevereiro de 2013. Essa escolha deu-
se pelo fato de essas edições terem sido lançadas mensalmente em
sequência, visto que a edição 17 fora lançada em novembro de 2011,
evidenciando um período de 9 meses sem publicação da revista, e
a edição de número 25, de março de 2013, consiste em uma edição
especial de aniversário de 3 anos da revista e traz apenas um conto,
modificando suas características recorrentes.
As edições selecionadas apresentam-se sempre com o mesmo
projeto gráfico, com pequenas variações que não chegam a
comprometer sua identidade visual. De acordo com a Assessoria
de Comunicação da Universidade Federal de Lavras, a identidade

6 Essas informações foram passadas pelo diretor da revista, Robério Santos, via e-mail, no dia
14/05/2013.

28
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

visual é a “[...] ...unificação do conjunto de imagens, cores, símbolos,


logotipos, fontes e padrões visuais que irão apresentar uma
determinada instituição.”7. Além de estabelecer uma referência, de
permitir a identificação da marca pelo leitor, transmite a ideia de
organização, de ordem. Segundo Perelman e Tyteca (2005, p. 567),
“[…] a ordem é objeto de uma escolha cuja única regra é a melhor
adaptação possível aos estados do auditório, tais como os imagina
o orador [...]”. Não simplesmente no texto da capa de revista,
mas em todos os textos, a ordem aparece como uma estratégia
argumentativa, que facilita a persuasão. No caso específico da capa,
a rápida visualização da manchete da reportagem principal, por
exemplo, facilita a vida do leitor, que pode mais rapidamente decidir
se compra ou não a revista, se o tema tratado lhe interessa, etc.
A OMNIA é impressa em papel couchet 75 no miolo e 115 na
capa, no formato 21,0 cm de largura por 29,5 cm de altura. A capa
apresenta duas faixas pretas horizontais nas extremidades, com
2,5 cm de altura cada uma. Na faixa localizada na parte de cima da
folha veem-se as seguintes inscrições em letras brancas, maiúsculas:
MÚSICA/ LIVROS/ CINEMA/ TEATRO/NET/FOTOGRAFIA, seguidas do
slogan: CONHEÇA O QUE HÁ DE MELHOR NA CULTURA DO SÉCULO
XXI, nos mesmos tamanho, fonte e cor8. Na faixa localizada na parte
de baixo da folha, com a mesma altura, aparecem duas manchetes
de matérias secundárias, com fonte em tamanho menor do que a
utilizada na manchete principal e na faixa de cima, acompanhadas
de um código de barra estilizado, colocado no canto direito, que
muda a cada edição. Sobra um espaço de 24,5 cm para a foto ou
desenho principal, que se sobrepõe ou é sobreposto ao/pelo logo
da revista e ao/pelo slogan que o acompanha. O nome da revista é
colocado na parte de cima da foto, com um pequeno deslocamento

7 http://www.ufla.br/ascom/index.php/identidade-visual/ - Acesso em 14/05/2013, às 20h30.


8 Tendo em vista que nossa análise se centrará, principalmente, na linguagem verbal, não
nos deteremos aqui em detalhes como o nome das fontes utilizadas e o tamanho específico,
mesmo reconhecendo a sua importância na significação dos textos.

29
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

à esquerda ou à direita, de acordo com a edição. Utiliza-se, para o


nome da revista, fonte e tamanho que se destacam, comparando-se
às outras letras utilizadas na capa. O nome aparece sempre em preto
ou branco, de acordo com o fundo da foto que ilustra a manchete
principal. Em alguns casos, a fonte utilizada no nome da revista ganha
profundidade para aumentar o destaque. Abaixo do nome OMNIA lê-
se o slogan “PARA QUEM DESEJA SABER TUDO”, e abaixo deste, em
letras bem menores, o número da edição, mês, ano, local e preço
(R$ 2,00). Sobrepõe-se ainda à foto ou ao desenho uma manchete
relacionada à foto, um subtítulo e, em alguns casos, uma legenda.
Em algumas edições (três das aqui selecionadas) nota-se a inscrição
“100% ITABAIANENSE”. A capa, assim como toda a revista, é em
preto e branco. Cada edição selecionada tem 7 ou 8 folhas (14 ou 16
páginas), contando com capa e contracapa, e as folhas são impressas
em frente e verso. Geralmente, a folha da contracapa é ocupada
na frente e no verso com propagandas locais, que podem aparecer
ainda em uma ou mais páginas do miolo da revista, de acordo com
a edição.
Vemos abaixo as duas primeiras edições selecionadas, a edição 18,
de agosto de 2012, e a edição 19, de setembro de 2012. Elas ilustram
a descrição geral feita acima, bem como as variações possíveis que
foram identificadas, e introduzem a nossa análise:

30
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

Figura 1 - Edição 18; agosto de 2012.

Figura 2 - Edição 19; setembro de 2012.

31
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

De acordo com Perelman e Tyteca, no Tratado da Argumentação


(2005, p.06), “[…] é em função de um auditório que qualquer
argumentação se desenvolve.”9, ou seja, “[...] como a argumentação
visa obter a adesão daqueles a quem se dirige, ela é, por inteiro,
relativa ao auditório que procura influenciar.” (p. 21) e deve ser
desenvolvida não a partir da verdade ou da paixão do orador, mas
a partir do “[…] parecer daqueles a quem ela se dirige.” (p.26-27).
Partindo dessa premissa básica da argumentação perelmaniana,
iniciamos nossa análise em busca de indícios da imagem que a revista
OMNIA faz dos seus leitores.
Começamos pela análise da palavra que dá nome à revista:
omnia, palavra latina que significa, de acordo com o Dicionário Latino
Português, de Torrinha (1942, p. 585), “Todas as coisas; tudo”. Sabe-se
que o latim invadiu a Idade Média como uma grande força linguística
e que se tornou uma língua de cultura, sendo adotada, sobretudo,
pela Igreja como uma forma de manutenção do poder, mas também
pelas ciências humanas. Conforme Paiva (1988, p. 09), “O latim,
na época, funcionava como uma língua internacional, servindo de
veículo de comunicação da filosofia, da ciência e das letras; por
consequência, foi um dos elementos mais relevantes da educação
e da cultura.” Na atualidade, apesar de ser considerada uma língua
morta, muitas expressões latinas são utilizadas no dia a dia sem que
nos demos conta, isso sem falar na sua importância no jargão jurídico,
dentre outras áreas, e na Igreja Católica. O latim é ainda ensinado e
pesquisado na academia, tendo em vista sua importância histórica
e linguística, por ter originado as línguas românicas. Em todos esses
casos, portanto, a língua latina continua ligada à ideia de cultura, na
maioria das vezes, a uma cultura da classe dominante.
O uso de uma palavra do latim privilegia o plano da expressão,
mas tem em vista o plano do conteúdo, já que o uso expressivo
da língua latina impõe respeito e autoridade, mostra tradição e

9 Grifo dos autores.

32
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

seriedade. O orador imagina que seu auditório reconheça a origem


da palavra, independente de saber, logo de início, qual o significado.
Essa tradição, figurativizada pela utilização do latim, é reforçada pela
linguagem visual. No uso dessa linguagem, no plano da expressão, a
categoria cromática nos mostra uma oposição entre monocromático
vs colorido (PIETROFORTE, 2008, p. 28). A apresentação da revista em
preto e branco se opõem ao colorido do mundo, tornando a OMNIA
não só um destaque em meio ao cotidiano, mas evidenciando traços
de conteúdo de seriedade, com a sobriedade nas cores, e de tradição
e antiguidade, na encarnação da fotografia em preto e branco10.
Tradição, por sua vez, lembra requinte, o que justifica a impressão em
papel couchet. O plano do conteúdo vai destacar, assim, as oposições
semânticas tradição vs inovação; antigo vs moderno; passado vs
presente que devem ser trabalhadas nos temas da revista e que o
orador considera importantes e interessantes para o seu auditório.
Tendo em vista esse início da análise a que nos propomos, os planos
da expressão e do conteúdo das linguagens verbal e visual vão nos
apontando até aqui para o seguinte enunciatário (nossa primeira
hipótese): o homem culto, erudito.
Falar em cultura e em homem culto exige uma pequena digressão
para pensarmos um pouco sobre a concepção de cultura e como a
consideramos aqui. De acordo com a definição de Rosental e Iudin
(1950, p. 104; apud SODRÉ, 1989, p. 03), cultura é o

Conjunto dos valores materiais e espirituais criados pela


humanidade, no curso de sua história. A cultura é um
fenômeno social que representa o nível alcançado pela
sociedade em determinada etapa histórica: progresso,
técnica, experiência de produção e de trabalho, instrução,
educação, ciência, literatura, arte e instituições que lhes

10 Fotos antigas, em preto e branco, são frequentemente utilizadas nas edições da OMNIA.
Publicá-las em colorido poderia descaracterizá-las. Preto e branco ainda são as cores
predominantes nos jornais impressos, que buscam a objetividade.

33
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

correspondem. Em um sentido mais restrito, compreende-


se, sob o termo de cultura, o conjunto de formas da vida
espiritual da sociedade, que nascem e se desenvolvem
à base do modo de produção dos bens materiais11
historicamente determinado.

Nesse sentido, o homem culto a que nos referimos não se opõe


a um homem inculto, já que não existe homem sem cultura e vice-
versa, mas se opõe àquele homem distante dessa cultura ligada a
determinadas áreas do conhecimento, muitas vezes construídas
academicamente, outras vezes permitidas ou incentivadas pelo
próprio ambiente em que o sujeito social se desenvolve. O homem
culto de quem falamos é aquele que “é”, e essa nossa concepção pode
ser relacionada ao conceito de “capital cultural”, do sociólogo Pierre
Bordieu (1998, p. 74-75), que, dentre outras formas, apresenta-se
“[...] sob a forma de bens culturais – quadros, livros, dicionários
[...]” e que “Sendo pessoal, o trabalho de aquisição é um trabalho
do “sujeito” sobre si mesmo (fala-se em “cultivar-se”). O capital
cultural é um ter que se tornou ser, uma propriedade que se fez
corpo e tornou-se parte integrante da “pessoa”, um habitus.” Como
o acesso a esses bens culturais no Brasil, muitas vezes, restringe-se a
uma pequena parcela da população, e geralmente àquela que detém
o poder econômico, muitas vezes o homem culto é também o que
integra a classe dominante.
A partir dessa reflexão, e voltando à análise do nome da revista,
surge uma nova hipótese com relação à definição desse auditório:
se omnia significa “tudo”, o que é reforçado pelo slogan “PARA
QUEM DESEJA SABER TUDO”, será que se dirigiria a um auditório
universal? A própria condição da língua latina nos levaria a pensar
nessa universalidade, por sua importância na história mundial.
Por outro lado, a repetição da mesma substância do conteúdo em
formas diferentes, em português e latim, reforça a ideia de que a

11 Grifo do autor.

34
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

revista falaria sobre “todas as coisas”, de modo geral. Ainda no


slogan, o uso de mais um pronome indefinido, o quem, não incluiria
no leitor imaginado por esse orador qualquer pessoa e, assim, não
colaboraria nessa construção de um auditório universal? De acordo
com Perelman e Tyteca (2005, p. 189), os slogans têm a função de
incentivar à ação. Neste caso, o orador busca, inicialmente, conquistar
todas as pessoas, afinal, quem é que não quer saber sobre tudo?
Se pensarmos em tudo e quem como elementos linguísticos que
podem ser preenchidos, a princípio, por todas as coisas e por todas
as pessoas, nossa hipótese inicial levantada acima estaria derrubada,
já que, quando delimitamos o auditório dos homens cultos, eruditos,
falamos de um auditório particular.
A fim de resolver esse nosso impasse na definição do auditório
da revista OMNIA, cumpre-nos ver como Perelman e Tyteca
conceituam esse elemento do discurso argumentativo. No Tratado
da Argumentação, o auditório é definido como “[...] o conjunto
daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação.”12
e apresentado como uma “construção do orador”, na medida em
que “Cada orador pensa, de uma forma mais ou menos consciente,
naqueles que procura persuadir e que constituem o auditório ao qual
se dirigem seus discursos.”, “[...] Por isso a cultura própria de cada
auditório transparece através dos discursos que lhe são destinados
[...]” (PERELMAN e TYTECA, 2005, p. 22-23).
Os autores do Tratado afirmam que existe uma variedade quase
infinita de auditórios e que eles são sempre heterogêneos; deste modo,
a tarefa do orador, de adaptar seu discurso a eles, é uma tarefa bastante
complexa, principalmente no caso do escritor, já que é difícil determinar
com exatidão quem serão seus leitores (PERELMAN e TYTECA, 2005, p.
22). Para refletir sobre os tipos de auditório, Perelman e Tyteca valem-
se da linha tênue entre convencer e persuadir, afirmando que persuadir
vai além da convicção para quem se preocupa com o resultado, com
a ação, e que convencer vai além da persuasão para aqueles que se

12 Grifo dos autores.

35
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

preocupam apenas com a razão. No entanto, é possível separar razão


e emoção? Os autores mostram que isso é deveras complexo e que
essa separação, na prática, “dentro de um pensamento vivo”, é muito
difícil. Mesmo recusando a separação, tendo em vista que o que é
ou não racional pode variar de acordo com o orador, os estudiosos
reconhecem a distinção entre essas duas noções e relacionam a
argumentação persuasiva ao auditório particular e a convincente ao
auditório universal. (PERELMAN e TYTECA, 2005, p. 30-31)
O auditório universal é caracterizado pelo conjunto de todos
os homens, de todos os seres racionais, assim “[…] tudo o que se
presume versar sobre o real se caracteriza por uma pretensão
de validade para o auditório universal.” (PERELMAN e TYTECA,
2005, p. 74). Mesmo Perelman e Tyteca refletem se não será “uma
pretensão exorbitante” pensar em tal auditório (p. 31). Em Retóricas,
Perelman (1997, p. 73) afirma que o auditório universal “[…] tem a
característica de nunca ser real [...] de ser antes, ideal, um produto da
imaginação do autor […]”. Reboul (2000, p. 93), retomando os estudos
perelmanianos, pergunta: “Será um auditório não especializado? […]
Será um auditório não particular, sem paixões, sem preconceitos, a
humanidade racional, em suma?”. E continua: “Mas invocar esse
auditório, fingindo que ele existe, poderia não passar de artifício.”
Assim, o auditório universal seria um “ideal argumentativo”, um
“truque retórico” (REBOUL, 2000, p. 93-94):

O orador sabe bem que está tratando com um auditório


particular, mas faz um discurso que tenta superá-lo,
dirigido a outros auditórios possíveis que estão além dele,
considerando implicitamente todas as suas expectativas e
todas as suas objeções. Então, o auditório universal não é
um engodo, mas um princípio de superação, e por ele se
pode julgar da qualidade de uma argumentação.

Retornando ao plano do conteúdo a que se refere o nome da revista,


vemos no Dicionário Caldas Aulete da Língua Portuguesa (2012) que
o pronome indefinido tudo possui os seguintes sememas: “pr. indef.

36
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

1 O conjunto de todas as coisas, ou fatos, ou sentimentos etc […] 2


A totalidade daquilo a que se está referindo em certo contexto […] 3
O essencial [...]” (p. 982). Já quem pode significar: “pr. indef. 1 Que
pessoa […] pr. rel. 2 Aquele que [...]” (p.830). A partir dessas definições
possíveis, vemos que o slogan “PARA QUEM DESEJA SABER TUDO”
pode significar “Para aqueles que desejam saber tudo sobre assuntos
que consideram essenciais”. Assim, volta-se a particularizar os leitores,
visto que a noção do que é essencial é muito variável.
Essa particularização torna-se mais direta ao analisarmos os
elementos presentes no espaço localizado no topo da folha das capas
da revista e encontrados em todas as edições selecionadas, como
podemos observar em mais um número, colocado abaixo:

Figura 3 - Edição 20; outubro de 2012

Nesse espaço, encontramos a definição do universo privilegiado na


revista e dos temas considerados “essenciais” para o auditório: MÚSICA –
LIVROS – CINEMA – TEATRO – NET – FOTOGRAFIA. Essas áreas pertencem
todas ao campo discursivo de uma cultura que pode ser caracterizada

37
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

como mais erudita, como especifica mais um slogan, colocado logo


abaixo: CONHEÇA O QUE HÁ DE MELHOR NA CULTURA DO SÉCULO
XXI. Enquanto os temas abordados e este segundo slogan mostram um
homem moderno (tanto orador, quanto auditório), relacionando-se à
inovação, à modernidade e ao presente, o monocromatismo do preto
e branco e o arcaísmo dos sons de uma língua morta (o latim) remetem
à tradição, àquilo que é antigo, ao passado, como já vimos. Entre o
dito (o moderno) nesta parte do texto e o evidenciado (o antigo) por
outros elementos já analisados, temos a imagem de um auditório que se
interessa pelo passado e pelo presente, o que reforça a erudição.
Ainda nesse segundo slogan apresentado, vemos uma interação
mais direta com o auditório que agora é tratado, informalmente, por
você: “Conheça o que há de melhor...”. A utilização do imperativo
convida o leitor à ação. Como acontece com o slogan “PARA QUEM
DESEJA SABER TUDO”, em “CONHEÇA O QUE HÁ DE MELHOR NA
CULTURA DO SÉCULO XXI” observamos uma provocação a um
auditório: quem não quer saber sobre tudo, conhecer o melhor do seu
tempo, estar atualizado? No entanto, nos usos de omnia tudo e quem
o que temos é um artifício retórico, um “truque” argumentativo, pois o
orador sabe bem quem é o seu auditório: aquele que sabe reconhecer
uma palavra em latim, que se interessa por (e tem acesso a) artes e
tecnologia, pelo passado e pelo presente, pelo antigo e pelo moderno.
As características desse leitor presumido nos levam a pensar em um
outro tipo de auditório apresentado por Perelman e Tyteca: o auditório
de elite, que pode encarnar, para uns, o auditório universal, e para
outros, o auditório particular. É como se o orador não tomasse apenas
para si a tarefa de definir o auditório, mas transferisse para o próprio
auditório um pouco dessa responsabilidade. O orador apresenta as
escolhas de acordo com o que ele considera próprio para um auditório
universal, para todos os homens, mas se nem todos se identificarem
com essas escolhas (se não souberem o significado de omnia, por
exemplo...), o problema não é unicamente dele, mas também da falta
de qualificação do próprio auditório. Aqueles que não são qualificados
são, portanto, excluídos, e/ou se excluem. Assim, o auditório de elite

38
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

é definido como aquele “[…] dotado de meios de conhecimento


excepcionais ou infalíveis.” (PERELMAN e TYTECA, 2005, p. 37).
De acordo com Perelman e Tyteca, pode ser que esse auditório
queira ser diferente do homem comum, e,

[...] nesse caso, a elite é caracterizada por sua posição


hierárquica. Muitas vezes, porém, o auditório de elite
é considerado o modelo ao qual devem amoldar-se os
homens para serem dignos desse nome […] O auditório de
elite só encarna o auditório universal para aqueles que lhe
reconhecem o papel de vanguarda e de modelo. Para os
outros, ao contrário, ele constituirá apenas um auditório
particular. O estatuto de um auditório varia conforme
as concepções que se têm. (PERELMAN e TYTECA, 2005,
p. 37-38)

Assim levantamos nossa terceira hipótese: será que ao definirmos


o auditório da OMNIA como o dos homens cultos, interessados
por artes e tecnologia, estamos falando em um auditório de elite?
Vemos ainda no Tratado da Argumentação que diante de um
auditório heterogêneo o orador pode escolher um ouvinte único que
represente um grupo. Essa escolha é determinada pelos objetivos
do orador e pela imagem de auditório que ele constrói (PERELMAN
e TYTECA, 2005, p.44). Assim, se o orador da revista escolhe como
representante do seu auditório o leitor mais informado, é a partir
dele que a argumentação será desenvolvida desta ou daquela forma.
Neste caso, o interlocutor é considerado um auditório particular, já
que se conhece suas características. Estaríamos em um caminho de
volta para a primeira hipótese levantada?
De acordo com o Tratado da Argumentação (PERELMAN e TYTECA,
2005, p. 34) o auditório particular é aquele “[...] cujas reações
conhecemos e cujas características somos ao menos capazes de
estudar.”, deste modo, “[…] o que versa sobre o preferível, o que nos
determina as escolhas e não é conforme a uma realidade preexistente,
será ligado a um ponto de vista determinado que só podemos identificar

39
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

como o de um auditório particular, por mais amplo que seja.” (p. 74).
Assim, “Ao lado dos fatos, das verdades e das presunções,
caracterizados pelo acordo do auditório universal, cumpre incluir,
em nosso inventário, alguns objetos de acordo acerca dos quais se
pretende apenas a adesão de grupos particulares: os valores, as
hierarquias e os lugares do preferível.” (PERELMAN e TYTECA, 2005,
p. 83). No caso de uma publicação cujo alcance é basicamente local
e que é produzida na região em que circula, essa tarefa pode ser um
pouco menos complicada, tendo em vista a possibilidade de uma
maior proximidade entre as pessoas, o que facilitaria a adesão de um
auditório particular. Conforme os mesmos autores, “Fazer parte de
um mesmo meio, conviver, manter relações sociais, tudo isso facilita a
realização das condições prévias para o contato dos espíritos.” (p. 19).
Munidos da definição dos três tipos de auditório para Perelman e
de hipóteses sobre o auditório da revista OMNIA, voltamos às capas
selecionadas para a busca de mais indícios desse leitor presumido.
Passamos agora para os elementos que aparecem na faixa localizada
no final da folha de capa de cada edição, como visualizamos abaixo:

Figura 4 - Edição 21; novembro de 2012.

40
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

Esse espaço traz em cada edição duas manchetes de assuntos


que são tratados no miolo da revista, acompanhados de foto
ilustrativa, de subtítulo e/ou lead. Analisando-se a linguagem verbal
dessas manchetes secundárias, observamos que a interrogação e as
reticências aparecem nos títulos, nos subtítulos ou nos leads e têm
como objetivo estabelecer a comunhão com o auditório. A partir do
momento em que o orador deixa para seu leitor a resposta a uma
determinada pergunta, desafia seus conhecimentos, aguça sua
curiosidade ou lhe permite completar um pensamento. Deixando
uma lacuna a ser preenchida, o autor evidencia a imagem de um
interlocutor competente e interessado, como vemos nos exemplos
a seguir: “LITERATOS – Itabaiana tem muitos escritores?” (edição
18)13; “CADEIA – Onde ficava a cadeia de Itabaiana?” (edição 19);
“ONDE ESTÁ NOSSA CIDADE? - Estruturas Antigas se foram” (edição
20); “CINEMA E TEATRO – Já tivemos aqui em Itabaiana?” (edição
20); “AEROPORTO – Calma, estamos longe de ter um...” (edição 21);
“MAPA DE ITABAIANA – Década de 70... “ (edição 22).
O uso de pontos de exclamação e da linguagem informal tem o
mesmo objetivo e evidencia um auditório próximo do orador, com
quem ele pode dialogar: “BRINDE SURPRESA. Se eu dissesse aqui não
seria surpresa!” (edição 24); “FOTO COLORIDA. Bem que esta rosa
ficaria legal” (edição 22). Essa mesma subjetividade, que se mostra
numa relação simétrica, é vista no uso de adjetivos: “A arte mais
pura” (edição 19); “Uma coleção extraordinária” (edição 23); “Mais
um artista iluminado” (edição 24).
A ausência de informações (o que, pragmaticamente, pode
caracterizar uma violação às máximas da quantidade e do modo)
evidencia também esse auditório próximo, conhecido do orador
e com quem partilha conhecimentos e valores culturais. Se ele
(auditório imaginado) sabe onde é, quem é, quando foi, por que é

13 Manteremos na análise o modo como as manchetes são colocadas nas capas das revistas
(título em caixa alta e subtítulo ou lead apenas com as iniciais em caixa alta), a fim de especificar
o que é título e o que é subtítulo ou lead.

41
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

necessário informar? Essa ausência de informações nas manchetes


secundárias se dá tanto na linguagem escrita quanto na linguagem
visual. As fotos e ilustrações que acompanham essas manchetes, até
por uma questão de espaço, vêm desacompanhadas de legenda. Em
alguns casos, é possível recuperar a referência da foto pela manchete,
outras vezes não, e o sentido do texto só será plenamente possível
para aqueles que conhecem os lugares e as pessoas ali retratadas.
Analisando-se a linguagem escrita dessas manchetes secundárias,
vemos na edição 18, por exemplo, a manchete: “AVIÃO NA SERRA.
Caso ainda repercute”. Se o leitor não sabe onde é publicada a revista
e/ou que a cidade onde é publicada a revista possui uma serra, tal
manchete não será persuasiva. Já na edição 20, a manchete “ONDE
ESTÁ NOSSA CIDADE? Estruturas antigas se foram” mostra um
dêitico (o pronome possessivo “nossa”) cuja referência pode não ser
facilmente recuperada por um leitor que desconheça de que cidade se
fala. Na edição 21, o problema também está na definição de uma das
categorias da enunciação. Ao não especificar a categoria de pessoa
na manchete (“AEROPORTO. Calma, estamos longe de ter um...), a
revista deixa em aberto a quem se refere o pronome reto “nós”: aos
itabaianenses? Aos sergipanos? Aos brasileiros? Essa referência só
pode ser estabelecida através de uma análise de outros elementos
da capa ou do conhecimento do local onde a revista é publicada.
Na edição 24 a questão é o conhecimento prévio que um auditório
universal dificilmente terá. A manchete é “SAULO SOUZA. Mais um
artista iluminado”. Se ele é “mais um”, quem são os outros? Esses
exemplos mostram que o auditório imaginado é, principalmente, o
dos leitores da própria cidade, ou seja, um auditório particular.
Isso se confirma na reiteração do nome “Itabaiana” nessas
manchetes secundárias. Das catorze analisadas, quatro trazem
“Itabaiana” em seus títulos, subtítulos ou leads. Todas trazem figuras
para esse mesmo tema, como “serra”, “nossa cidade”, “ceboleiro”,
além de fotos da cidade e de moradores, o que configura uma
isotopia temática e figurativa (BARROS, 2003, p. 74). Nas manchetes
principais, o nome Itabaiana ou outra expressão para o mesmo

42
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

referente aparecem mais cinco vezes, Em três dessas vezes, temos


a inscrição “100% Itabaianense” sobreposta às fotos ou interagindo
com a ilustração, como é o caso da edição 22.

Figura 5 - Edição 22; dezembro de 2012

Mais do que evidenciar uma totalidade quantitativa, este


argumento revela um ponto de vista sobre o mundo e constitui
mais um argumento do lugar da qualidade do que da quantidade:
se a revista é 100% itabaianense, é boa. Começa-se a definir qual o
principal valor compartilhado entre orador e auditório: a cidade de
Itabaiana. Coloca-se esse valor concreto como o principal, o essencial
para os interlocutores da revista, por isso o destaque para fatos e
figuras ilustres do município. Essa grandeza mostra uma hierarquia
de valores, já que algo só é melhor ou mais importante na sua
relação com outras coisas de uma mesma natureza. Nessa hierarquia
podemos, por exemplo, colocar a origem de um cidadão numa escala
que vai de sua cidade, para seu estado e seu país. A superioridade, em
importância, da cidade, comprovada pelos assuntos e pela linguagem
predominante nas capas de revista analisadas, evidencia um certo

43
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

regionalismo, até mais do que isso, um “itabaianismo”, caracterizado


por um sentimento de orgulho de ser itabaianense e pela valorização
daquilo que é da cidade.
De acordo com Perelman e Tyteca (2005, p. 198) a repetição pode
desempenhar o papel de figura de presença, que tem como função
discursiva manter presente na mente do auditório o tema sobre
o qual se fala, ou mesmo uma ideia. Tomando como referência a
totalidade das capas selecionadas, vemos que a repetição, neste caso,
pode sim funcionar como uma figura de argumentação e retórica,
caracterizada como um argumento inesperado, que causa a sensação
de surpresa, ou, simplesmente, vem evidenciar o valor essencial para
este auditório: sua cidade. Deste modo, mesmo quando os termos
Itabaiana e itabaianense não aparecem, quase todas as manchetes
evidenciam que os textos da revista tratarão desse mesmo tema,
recuperando sua história (por meio da História, de estórias e de
fotos); lembrando seus personagens ilustres, do presente e do
passado; mostrando novos talentos ou projetando possibilidades
para o futuro do município.
Voltando às manchetes secundárias vistas nas capas, uma
outra estratégia vem confirmar o auditório particular da OMNIA:
a referência a personagens que são, provavelmente, conhecidos
apenas na cidade ou no estado, ou que têm uma projeção maior, mas
que não são facilmente identificados por todos os leitores de outras
localidades. Assim, apresentam-se escritores e artistas, por exemplo.
De todas as manchetes secundárias vistas, acreditamos que apenas
o nome de Euclides Paes Mendonça remeta um auditório mais amplo
a algum sentido, já que esse sobrenome é conhecido nacionalmente.
Ainda nesse espaço reservado para as manchetes secundárias
encontramos os códigos de barra estilizados, manipulados. Na edição
18, as barras esticam-se e viram fios de macarrão enrolados num garfo.
Na edição 19, são galhos que abrigam um tucano. Na 20, simulam a
evolução do homem: do macaco ao código de barras. Na edição 21,
o código de barras sustenta flores e se origina de uma frigideira. Nas
capas das edições 22 e a 23, empresta seus traços para a imagem

44
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

de um tigre branco e, finamente, na edição 24, os códigos de barra


preenchem a tela de uma TV. Podemos dizer que essa subversão de
um símbolo do capitalismo, do consumo automatizado, revela um
auditório que não se prende aos bens de consumo rápidos e muitas
vezes desnecessários. Mostra que os valores culturais partilhados
por orador e auditório são mais importantes para esses sujeitos da
enunciação do que os valores materiais, geralmente mais valorizados
pela sociedade em geral, levando-nos a pensar em uma classe que
é dominante não necessariamente pelo poder econômico, mas pelo
poder cultural ou intelectual. A graça causada pela subversão, ainda
evidencia um leitor bem-humorado, que prima pela ludicidade.
Para finalizar nossa análise, voltamos a atenção para as manchetes
principais e as fotos de capa, que ocupam a maior parte da folha.
Para isso, apresentamos as duas últimas capas selecionadas:

Figura 6 - Edição 23; janeiro de 2013

45
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

Figura 7 – Edição 24; fevereiro de 2013

De acordo com Perelman e Tyteca (2005, p. 163), é necessário


levarmos em conta as limitações impostas a um discurso pelo
espaço disponível num jornal ou revista, por exemplo. O modo como
serão escolhidos e apresentados aos leitores os elementos iniciais
necessita de um estudo desse espaço e de uma decisão, tendo em
vista o auditório presumido, do que é mais importante e que deve
ocupar um lugar de destaque. Essa tarefa do orador é nítida nas
capas de revista, em que as manchetes tidas como principais ocupam
um maior espaço na folha.
Na análise da linguagem visual dessas manchetes de capa, juntamos
duas categorias plásticas no plano da expressão (PIETROFORTE, 2008,
p. 28) que nos parecem ligadas a um mesmo conteúdo. A categoria
eidética, que nos fala da forma da imagem, estabelece uma oposição
entre o homogêneo, da diagramação da revista, que mantém a
mesma disposição dos elementos, mesmas fontes e tamanhos em
todas as capas analisadas, e o heterogêneo, das fotos e ilustrações,
que mostram cenários, formas e poses distintas. Já a categoria
topológica nos revela uma relação de oposição entre o horizontal,

46
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

da escrita da linguagem verbal, e o vertical, das fotos e ilustrações de


pessoas no formato retrato (linguagem não-verbal). Essas oposições
relacionam-se, no plano do conteúdo, às categorias semânticas
tradição vs inovação, e reafirmam um auditório que valoriza tanto o
passado, quanto o presente, tanto o tradicional, quanto o inovador.
Evidenciam um auditório que quer saber sobre a história de sua
cidade, mas também quer estar a par das novidades culturais que
nela acontecem.
Essa relação entre o presente e o passado pode ser observada
no equilíbrio entre a figurativização daquilo que é antigo/tradicional
e o que é moderno/inovador. Para recuperar o antigo/tradicional/
passado, encontramos a homenagem a Luiz Antônio Barreto,
historiador sergipano de grande importância no cenário político e
cultural estadual e nacional, falecido em dezembro de 2012, que
aparece na capa da edição 23 em uma ilustração assinada por Gladston
Barroso; a entrevista com um antigo morador da cidade de Itabaiana,
Hênio Araújo, figura que estampa a edição 19 e fala sobre o comércio
de Itabaiana de 1938, e uma matéria sobre a história (entre fatos e
lendas) da fundação de Itabaiana e do primeiro Itabaianense, Simão
Dias, que numa montagem aparece representado em escultura na
capa da edição 22.
As capas das edições 18, 20 e 24 apresentam o moderno, o
inovador, o presente, e trazem artistas e educadores contemporâneos
de Itabaiana, respectivamente, os escritores Vladimir Souza e Robério
Santos, na edição 18; a professora de dança, Dulce Olga, na edição
20, e os atuais integrantes da Academia Itabaianense de Letras, na
edição 24. A edição 21 fica entre o antigo e o moderno. Traz na capa
o radialista e roqueiro Adelardinho Júnior, morto há alguns anos,
mas que encarna a modernidade nas características descritas e na
irreverência figurativizada na foto, em que aparece fumando.
As fotos e ilustrações, que são, como vimos acima, inscritas em
um determinado tempo e espaço, marcadas social e historicamente,
ocupam a maior parte da área central das capas e são acompanhadas
pela manchete do assunto/tema destacado naquela edição e, em

47
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

alguns casos, por uma legenda explicativa, que traz o nome da


pessoa retratada e/ou uma descrição sua. Linguagem verbal e visual,
nas manchetes principais, semantizam um mesmo conteúdo com a
utilização de linguagens diferentes. De acordo com Pietroforte (2008,
p. 31), “Embora transcrições de semiótica verbal, as letras, quando
escritas, pertencem também à semiótica plástica [...]”. Desse modo,
e levando em consideração o destaque que a foto ganha na capa da
revista, podemos dizer que a função estética é uma das principais
funções desse gênero.
Como produto de uma enunciação e da construção de um discurso
por um orador que se baseia na imagem discursiva de seu auditório
para direcionar sua argumentação, a capa de revista deve representar
esse leitor imaginado. Podemos, metaforicamente e com graça, dizer
que o leitor deve olhar para a capa da revista e achar que ela é “a
sua cara”. E quando realmente o rosto estampado na capa é o seu?
Quando falamos de uma publicação de circulação principalmente
regional, como é o caso da OMNIA, o fato de a capa da revista poder
estampar um rosto conhecido é extremamente persuasivo. Ao
deparar-se com a revista na banca ou no comércio, o habitante da
cidade pode ser seduzido pelo rosto do seu vizinho, do seu professor,
do seu parente, ou mesmo pelo seu próprio retrato. É um argumento
que busca a comunhão com um possível auditório.
Das sete capas analisadas, cinco delas trazem fotos e matérias
principais sobre itabaianenses ou (ex-) moradores de Itabaiana, isso
sem contar a representação de Simão Dias, o “primeiro itabaianense”.
O monocromatismo e o destaque para as figuras humanas num
primeiro plano visual, em oposição a um fundo de menor expressão,
remete-nos quase que a fotos familiares. A expressão serena e o
sorriso de algumas pessoas que estampam a capa da revista (e o
sorriso de Dulce Olga na edição 20 é o que mais representa essa
simpatia), são capazes de provocar paixões positivas no auditório.
O efeito de sentido conseguido pelo orador com essas estratégias é
o de aproximação do auditório presumido, de comunhão com ele, e
até de familiaridade. Assim como acontece com as manchetes e fotos

48
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

secundárias, os temas e personagens apresentados nas manchetes


principais dizem respeito sobretudo à cidade de Itabaiana ou a
Sergipe, o que vai confirmando a hipótese de um auditório particular.
A análise das manchetes principais e de seus subtítulos (“Academia
Itabaianense de Letras. Um marco para nossa cultura” (edição 24);
“Dulce Olga. A dança corre por suas veias” (edição 20)) e a análise
das legendas das fotos (“Dulce Olga- Professora de Dança” (edição
20); “Vladimir e Robério – Escritores” (edição 18)) vão mostrar que
a cultura relacionada às artes, à literatura, ao ensino, é a privilegiada
pela OMNIA, reforçando o auditório do homem culto, erudito.
Assim, estampam as capas, principalmente, os escritores, artistas
e professores da região que, enunciativamente, (con)fundem-se
com o leitor, ocupando o mesmo espaço (aqui – Itabaiana) e um
mesmo tempo (agora). A valorização dessas pessoas pelo orador
é a valorização da imagem do leitor itabaianense, e talvez até do
itabaianense como um todo, já que “Do elogio de uma personalidade
de renome, pode-se promover a identidade de toda uma nação.”
(MOSCA, 2004, p. 131). As fotos e figuras dessas pessoas ilustres para
a cidade ainda apontam para argumentos do lugar da pessoa, ligados
ao seu valor, “[...] à sua dignidade, ao seu mérito, à sua autonomia.”
(PERELMAN e TYTECA, 2005, p. 107).
Focalizando a linguagem verbal, observamos que os títulos e
subtítulos das reportagens constroem-se particularmente com frases
nominais: “Academia Itabaianense de Letras. Um marco para nossa
cultura” (edição 24); “Vladimir Souza Carvalho e Robério Santos. Em
busca da fotografia perfeita” (edição 18); “Hênio Araújo. O comércio
de Itabaiana de 1938 pela sua ótica” (edição 19). Quando os verbos
aparecem, vêm no presente do indicativo: “Dulce Olga. A dança corre
por suas veias” (edição 20), ou no pretérito perfeito, que embora
evidencie um momento de acontecimento anterior à enunciação,
é instaurado a partir de um momento de referência presente:
“Adelardinho Júnior. Até na morte pregou peça.” (edição 21). Essas
estratégias (uso de frases nominais e de tempos do presente) também
aparecem nas manchetes secundárias, mas nas principais adquirem

49
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

um estatuto de maior importância, devido ao destaque que recebem


essas manchetes nas capas de revista.
As frases nominais têm a característica de se mostrarem
atemporais e de simularem o presente. Sua utilização e a dos
tempos verbais do presente nas manchetes indiciam uma relação
deste gênero do discurso (a capa de revista) com o gênero epidítico,
um dos gêneros estudados pela retórica. O gênero epidítico está
relacionado ao elogio à censura; ao belo ou ao feio; e é (era)
utilizado em discursos de cerimônias ou cortejos fúnebres. Nele, ao
auditório não cumpre o papel de julgar nem de deliberar decisões
para o futuro, mas apenas de “aplaudir ou ir-se embora”. O objeto
do discurso epidítico pode ser o elogio a uma cidade “diante de
seus habitantes”(PERELMAN e TYTECA, 2005, p. 53-54), a exaltação
das virtudes de alguém ou da importância de um fato. Vê-se, pois,
que nos textos epidíticos a delimitação temporal não é necessária,
no caso das capas aqui analisadas, aquele personagem ou fato é
importante para a cidade, independente do tempo. Tendo em vista
essas características e as escolhas temporais feitas pelo orador,
podemos dizer que as manchetes da OMNIA, encontradas nas
capas analisadas, caracterizam-se, principalmente, como textos de
apresentação e elogio (epidíticos).
Com a tarefa de construir o belo, o orador do discurso epidítico
não pode ser qualquer um, desprovido de crédito perante uma
comunidade e de qualificações oratórias, por isso está ligado, por
exemplo, aos discursos pedagógicos ou que tem o ensino como
objetivo. O auditório imaginado por ele também não é composto por
qualquer um, já que é considerado capaz de julgar a beleza de um
discurso.
A utilização de metáforas cristalizadas ou regionais nas manchetes,
subtítulos ou legendas nas capas analisadas mostram o trabalho
do orador no plano da expressão (“Até na morte pregou peça”
(edição 21); “A dança corre por suas veias” (edição 20); “O primeiro
Ceboleiro tão esquecido” (edição 22); Hênio Araújo - Cabra bom”
(edição 19)) e apontam para a função estética das capas de revista

50
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

e para sua relação com o gênero epidítico, tendo a função também


de aproximar o leitor, de estabelecer uma comunhão com ele. Os
argumentos do senso comum, encontrados na doxa, utilizados em
expressões como “Um marco para a nossa cultura” (edição 24) e “O
patrono da cultura sergipana”, beirando os clichês, têm também como
objetivo a comunhão com o auditório, despertando o sentimento de
familiaridade.
A função estética, no entanto, não é a principal função do gênero
epidítico. Sobre ele refletem Perelman e Tyteca:

[...] a argumentação do discurso epidítico se propõe


aumentar a intensidade da adesão a certos valores
sobre os quais não pairam dúvidas quando considerados
isoladamente, mas que, não obstante, poderiam não
prevalecer contra outros valores que viessem a entrar em
conflito com eles. O orador procura criar uma comunhão
em torno de certos valores reconhecidos pelo auditório,
valendo-se do conjunto de meios de que a retórica dispõe
para amplificar e valorizar. (2005, p. 56-57).

Deste modo, o auditório do gênero epidítico não é apenas aquele


capaz de julgar a beleza de um discurso, mas é também aquele capaz
de argumentar e com quem o orador compartilha determinados
valores concretos. Os valores concretos são aqueles que se vinculam
“[…] a um ente vivo, a um grupo determinado, a um objeto particular
[…]” ( PERELMAN e TYTECA, 2005, p. 87) e que “[...] intervêm como
base de argumentação ao longo de todo o desenvolvimento.” (p. 84).
No caso das capas selecionadas, o principal valor partilhado por orador
e auditório é a própria cidade de Itabaiana, que merece o destaque na
linguagem verbal e na linguagem visual apresentada na OMNIA.

Considerações finais

A análise das capas da revista OMNIA, mais especificamente das


edições 18 a 24, evidencia não só um auditório formado principalmente

51
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

por itabaianenses e munícipes, mas um pathos do itabaianense culto,


que se orgulha da cidade e valoriza, principalmente, a cultura local.
A recorrência de temas e figuras referentes à história e à cultura de
Itabaiana aponta para esse auditório particular, já que não transcende
“[...] as particularidades históricas ou locais [...]”, como deve acontecer
numa argumentação dirigida a um auditório universal (PERELMAN
e TYTECA, 2005, p. 29). No entanto, a ausência de manchetes de
reportagens sobre outras manifestações populares14, que parecem
não entrar no conjunto daquilo é intelectualmente valorizado por
esse orador e por esse auditório, revela um silenciamento daqueles
que não compartilham desses mesmos valores culturais. Para esses
itabaianenses que não se encaixam dentro do auditório dos homens
cultos e eruditos, o auditório da OMNIA será um auditório de elite, já
que se pode dizer “[…] que os auditórios julgam-se uns aos outros.”
(p. 29). Neste caso, estaríamos falando não necessariamente de uma
elite econômica de Itabaiana (embora o acesso aos bens culturais
esteja, muitas vezes, ligado ao poder econômico), mas de uma elite
intelectual, representada nas capas analisadas por moradores que
figurativizam a cultura erudita: professores, escritores, artistas...
Ao delimitar seu auditório, a revista segue uma tendência
do mercado editorial de especializar-se em temas e públicos
específicos, que, embora menores, tendem a ser mais fiéis. No
caso da revista OMNIA, estamos diante de uma publicação com
circulação tímida (1000 exemplares/mês para uma cidade com quase
100.000 habitantes, isso sem contarmos que alguns assinantes são
de fora do município) e de um orador institucional composto por
um profissional conhecido na cidade e por colaboradores também
conhecidos, em razão de suas funções sociais, o que nos revela que
a revista é porta-voz de discursos autorizados. Essas informações nos
revelam não só um orador que pode conhecer melhor seu auditório,

14 Por exemplo, durante a tradicional Festa do Caminhoneiro, realizada em junho, há a


apresentação de várias bandas de “arrocha”, um ritmo que enfatiza a sensualidade, o que
mobiliza milhares de pessoas na cidade.

52
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

mas um orador que tem consciência de que esse “tudo” que se


propõe tratar na revista possui não só um auditório delimitado, mas
talvez até limitado, e é a esse auditório que ele se dirige. Mas será
essa a intenção de um orador que fala sobre cultura: falar aos cultos?
Ou será que o sonho é exatamente repartir o conhecimento e chegar
àquele que é o seu diferente, a quem ele gostaria de modificar?
Infelizmente, ou felizmente, o discurso não nos permite responder
a essas questões, e isso não nos compete, mas desde que os textos
continuem a ser produzidos, seremos capazes de tentar encontrar o
que realmente eles dizem.

Referências bibliográficas

AMOSSY, Ruth. Da noção retórica de ethos à análise do discurso. In: ______


(Org.) Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Editora
Contexto, 2005. p. 09-28.
ARISTÓTELES (384-322 a.C.). Retórica. Trad. de Edson Bini. São Paulo: Edipro,
2011.
_____ (384-322 a.C.) Retórica das paixões. Prefácio de M. Meyer. Introdução,
notas e tradução de Ísis B. B. da Fonseca. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Ascom Assessoria de Comunicação. Identidade visual. Universidade Federal
de Lavras. Disponível em: < http://www.ufla.br/ascom/index.php/id>.
Acesso em 15 mai. 2013.
BARROS, Diana L.P. de. Teoria Semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2003.
BARTHES, Roland. A Retórica Antiga. In: COHEN, J. et alii. Pesquisas de
Retórica. Tradução de Leda P.M. Iruzin. Petrópolis: Vozes, 1975. p.147-221.
BORDIEU, Pierre. Escritos de Educação. Sel., org., introd. e notas de M. A.
Nogueira e A. Catani. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.
DICIONÁRIO Caldas Aulete da Língua Portuguesa: ed. de bolso. Rio de
Janeiro: Lexikon, 2008.
FIORIN, José L. Em busca do sentido: estudos discursivos. São Paulo: Editora
Contexto, 2008.

53
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

_____ (org.) Introdução à Linguística II. Princípios de análise. São Paulo:


Editora Contexto, 2003.
_____ (org.) Introdução à Linguística I. Objetos teóricos. São Paulo: Editora
Contexto, 2002.
GUIMARÃES, Elisa. Texto, discurso e ensino. São Paulo: Editora Contexto,
2013.
MAINGUENEAU, Dominique. ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY,
R. (Org.) Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo:
Editora Contexto, 2005. p. 69-92.
MOSCA, Lineide do L.S. A teoria perelmaniana e a questão da afetividade. In:
OLIVEIRA, E.C. Chaïm Perelman: direito, retórica e teoria da argumentação.
Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana/Núcleo
Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Filosofia, 2004. p. 129-140.
_____ Subjetividade e formação de opinião na mídia impressa. In: GUILARDI,
M. I. e BARZOTTO e V. H. (orgs.). Nas telas da mídia. Campinas/SP: Alínea
Editora, 2002, p. 09-22.
OMNIA. Para quem deseja saber tudo. Itabaiana/SE: Formal Gráfica Rápida,
ed. 18 - 24 ago. 2012-fev 2013.
PAIVA, Dulce de F. História da Língua Portuguesa II: século XV e meados do
século XVI. São Paulo: Ática, 1988.
PERELMAN, Chaïm. Retóricas. Trad. de Maria E. G. G. Pereira. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.
PERELMAN, Chaïm e TYTECA, Lucie O. Tratado da Argumentação: A nova
retórica. Trad. de Maria E. de A.P. Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
[1958]
PIETROFORTE, Antonio V. Análise do texto visual – a construção da imagem.
São Paulo: Editora Contexto, 2008.
REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. Trad. de I. C. Benedetti. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
SODRÉ, Nelson W. Síntese de História da Cultura Brasileira. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1989.
TORRINHA, Francisco. Dicionário Latino Português. Porto: Gráficos
Reunidos, Ltda. 1942.

54
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

A CONSTRUÇÃO DO ETHOS DE UMA CIDADE E


DE SEUS HABITANTES EM UMA REVISTA LOCAL

Flávio Passos Santana


Márcia Regina Curado Pereira Mariano

Introdução

Este artigo vincula-se ao projeto de pesquisa do Programa


Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC-UFS) intitulado
“Desvendando Itabaiana: análise das imagens discursivas da Cidade
dos Caminhoneiros”, coordenado pela Dra. Márcia Regina Curado
Pereira Mariano; mais especificamente ao plano de trabalho
“Itabaiana Cultural”, desenvolvido no período de 01/08/2012 a
31/07/2013, que teve como objetivo principal revelar possíveis ethé
construídos em textos que retomam e valorizam a cultura local.
Itabaiana localiza-se no agreste sergipano e abriga o campus Professor
Alberto Carvalho, da Universidade Federal de Sergipe, desde agosto de
2006. A UFS-ITA integra o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação
e Expansão das Universidades Federais (REUNI), instituído pelo governo
em 2007. Tendo em vista essa história recente, consideramos necessário
conhecer melhor a cidade e seus habitantes, o que pode facilitar a
interação entre a academia e a comunidade geral e direcionar pesquisas
e ações docentes. No nosso caso, como analistas do discurso, conhecer
melhor Itabaiana e os itabaianenses é conhecer o modo como se
inscrevem nos textos, como se mostram pelos modos de dizer, já que os
textos nos oferecem um conjunto de imagens, de representações, que
simulam a situação de enunciação e que, sem remeter aos indivíduos
empíricos, dão indícios do lugar que os enunciadores ocupam na
sociedade, dentro de um contexto sócio-histórico-cultural, e revelam os
pontos de vista desses sujeitos discursivos.

55
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

Neste trabalho, analisaremos a primeira parte de uma reportagem


da revista OMNIA intitulada “Lampião arrudiano Itabaiana: Ele
nunca esteve aqui, mas saiba os fatos relacionado (sic) a Itabaiana”
assinada pelo jornalista e escritor Robério Santos. Detemo-nos na
parte 1 de 3 que integra a 13º edição, publicada em Maio/2011.
Nesse fragmento, o autor fala sobre o fato de Lampião e seu bando
não terem invadido as terras itabaianenses, apontando como motivo
para isso a existência, no local, de homens perigosos, como Mata
Escura. A referência a esses personagens, intencionalmente ou não,
vai evidenciar a construção das imagens de uma cidade temida e
de habitantes corajosos. Tendo como base teórica conceitos da
Argumentação e da Retórica, da Semiótica discursiva e da Análise
do Discurso francesa, mais especificamente estudos de Amossy
sobre o ethos, nosso objetivo será verificar como as estratégias
argumentativas foram utilizadas para construir esses ethé em busca
da persuasão.
A OMNIA foi lançada em março de 2010, em Itabaiana, Sergipe,
e está em sua 28ª edição (jul/2013). Por mês, são impressos 1000
exemplares, que tem uma circulação predominantemente local,
mas possui assinantes de outros municípios. De acordo com seu
diretor, “ela é 100% produzida em Itabaiana, desde as ideias até a
impressão”, e “é mantida basicamente por propaganda”15. O fato de a
revista privilegiar principalmente histórias, lendas e acontecimentos
ocorridos na cidade é o que justifica a escolha de nosso objeto de
análise, visto que as reportagens e matérias publicadas nas edições
da OMNIA revelam muito sobre a cultura do município.

1. Itabaiana, cidade de pistoleiros?

Itabaiana é considerada a cidade dos caminhoneiros, do ouro


e da cebola. São diversas as imagens construídas desse município,

15 Informações obtidas junto ao diretor da revista, Robério Santos, por meio de correio
eletrônico, no dia 14/05/2013.

56
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

no entanto uma delas se destaca negativamente, que é a de cidade


violenta. Segundo Menezes (2010), essa má fama não surgiu agora,
posto que, no decorrer de sua história, Itabaiana teve grandes
bandidos e assassinos perigosos. Entretanto, não foi esse o motivo
que acarretou essa reputação, já que em terras circunvizinhas
residiam também homens que ameaçavam a ordem social.
O que realmente criou essa imagem foram acontecimentos dos
anos 1960. Menezes conta que, nessa época, Euclides Paes Mendonça
e Francisco Teles (conhecido como Chico de Miguel) disputavam a
hegemonia política do município. O primeiro mandava e desmandava
na cidade, porém, no ano de 1963, Euclides Paes Mendonça e seu
filho deputado, Antônio de Oliveira Mendonça, foram metralhados
durante uma manifestação pública. Esse fato ganhou repercussão nos
principais jornais do país, a exemplo de O Estado de São Paulo e do
Correio Brasiliense. O resultado disso, politicamente, foi a ascensão
de Chico de Miguel.
No entanto, os fatos que contribuíram para a construção desse
conceito de cidade violenta não acabam por aí, já que, quatro anos
após o ocorrido, Manuel Teles (arquirrival de Chico de Miguel) foi
assassinado à queima-roupa na porta de casa pelo pistoleiro Antônio
Letreiro e a culpa do crime recaiu sobre Chico de Miguel, que foi
preso, mas logo em seguida absolvido pelo júri por seis votos a um.
Ainda segundo Menezes, no ano de 1978, surgiu a emissora de
rádio Princesa da Serra, na intenção de denunciar os abusos de Chico
de Miguel e de seus aliados. Através das ondas de rádio, pelo estado
de Sergipe e pelo sertão da Bahia, propagou-se a imagem de uma
terra sem lei, em que tudo é resolvido na pistola. Nos dias atuais,
essa má fama é sustentada pelo grande número de assassinatos
que acontecem na cidade e que são repercutidos diariamente na
imprensa local e regional.
Apesar de não ser sergipano, o nordestino Lampião é um símbolo
nacional da violência. As histórias envolvendo seu nome não são poucas
no estado e, particularmente, em Itabaiana, em que sua valentia pode
ser colocada em questionamento diante da fama da cidade.

57
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

2. Lampião, bandido ou herói?

Ao contrário do que muitos pensam, Virgolino Ferreira, vulgo


Lampião, não foi o primeiro cangaceiro da história, mas um dos
últimos. No entanto, com certeza, o que mais se destacou. Lampião
nasceu no ano de 1898, às margens do Riacho São Domingos, no
município de Vila Bela, atualmente Serra Talhada, no estado de
Pernambuco. Sua família vivia do criatório, da roça e da almocrevaria.
O sertão da região Nordeste sempre sofreu com a má qualidade
de vida e com a pobreza que o clima seco proporciona. Por conta
disso, naquela época, os habitantes não tinham oportunidades de
bons trabalhos e eram explorados. Aconteciam várias rebeliões
contra esse tipo de sobrevivência e pode-se dizer que essas foram
circunstâncias propícias para o surgimento dos grupos de cangaceiros.
Até o surgimento do bando organizado por Virgolino, o cangaço era
apenas um fenômeno regional, mas Lampião, com seu atrevimento e
destemor, tornou-se uma figura presente em noticiários diários por
todo o país. Por essa razão, as autoridades sentiram-se publicamente
desafiadas a executá-lo.
Sob constantes ameaças, Lampião saía com seu bando rodando
o sertão nordestino, fugindo da polícia e amedrontando as cidades
por onde passava. Sua crueldade, no entanto, parece muitas vezes
ter sido esquecida, e há, nessa região, de um modo geral, um
sentimento de orgulho por ter vindo do Nordeste uma figura histórica
tão conhecida. No imaginário local, para muitos, fixou-se a ideia de
um valente vingador justiceiro que, de forma semelhante ao bandido
Robin Hood, roubava dos ricos para dar aos pobres. Na literatura de
cordel, um dos gêneros em que esse personagem é uma constante,
parece sobrepor-se a imagem de herói à imagem de bandido, embora,
segundo Clemente (2009, p. 17), a crueldade dos cangaceiros seja
reprovada pelos poetas de folhetos de cordel, “[...] pela perversidade,
destruição de propriedades e mortes, inclusive de poderosos. (Os
autores) Desaprovam, ainda, a quebra de certos valores tradicionais
como o sacrifício de crianças, o ultraje de donzelas.”

58
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

Historicamente, a passagem de Lampião por terras itabaianenses


não é comprovada. No entanto, sua presença frequente nos discursos
locais, mesmo que não necessariamente nos leve a verdades,
revela-nos, num jogo de representações que pode ser explorado
pelos estudos retóricos e argumentativos, indícios das identidades
discursivas de uma cidade e de um povo que não querem ficar de
fora dessa história.

3. A Retórica: origem, evolução e diálogos

A Retórica surgiu no século V, em Siracusa, e viveu seu auge até


o século XIX. Sua origem está ligada ao conflito e à controvérsia,
já que serviu como ferramenta para proprietários poderem reaver
suas terras que haviam sido invadidas. Embora, desde o seu início,
esteja relacionada à argumentação, aos poucos foi se transformando
apenas na “arte de bem falar”, assim, quase tudo que era persuasivo
foi deixado de lado e restaram apenas os estudos das figuras, o
que colaborou com sua desvalorização. O fato de a Retórica, na
Antiguidade, estar voltada somente para a elaboração e a análise de
textos orais, bem como o descrédito nos sofistas e a aparente relação
da retórica com três gêneros específicos: o deliberativo, o judiciário e
o epidítico são outros aspectos que levaram à sua decadência. Porém,
Mosca (2001) nos diz que não podemos falar em morte da Retórica,
por causa da longevidade das ideias aristotélicas, como confirmam
estudos da argumentação publicados a partir da segunda metade do
século XX, a exemplo do Tratado da Argumentação: a Nova Retórica,
de Perelman e Olbrechts-Tyteca, de 1958, que retomou conceitos do
filósofo estagirita, adequou-os ao mundo moderno e abriu espaço
para o diálogo entre esses fundamentos retóricos e outros estudos
do texto e do discurso, bem como entre aqueles e outras áreas do
conhecimento, como a Educação.
Em sua essência, a Retórica não busca a verdade ou a falsidade
dos discursos, mas a construção da verossimilhança, ou seja, de
uma aparência da verdade, da representação feita nos textos

59
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

por sujeitos que fazem escolhas linguísticas e discursivas mesmo


sendo determinados sócio-histórica-culturalmente. Na Retórica, o
enunciador (chamado, nesses estudos, de orador) não é um sujeito
assujeitado, pois tem objetivos, pontos de vista, opiniões e consegue
modificar seu enunciatário (o auditório), embora seja influenciado
pela ideologia dominante; o orador é um sujeito de ação.
A eficácia de um discurso desse sujeito é medida pela escolha
de determinadas estratégias argumentativas cujo intuito é provocar
efeitos de sentido que possam levar à adesão do auditório,
envolvendo, pois, tanto um fazer persuasivo, quanto um fazer
interpretativo. Isso relaciona a argumentação ao nível narrativo
dos textos de acordo com o percurso gerativo de sentido proposto
pela Semiótica greimasiana, mais especificamente ao percurso da
manipulação, em que um destinador busca conduzir um destinatário
a uma mudança, a uma ação. Essa manipulação pode ocorrer de
diferentes formas, sendo que todas têm o objetivo de levar o outro
a entrar em conjunção ou disjunção com determinados objetos de
valor que representam algo importante para o destinador e/ou para
o destinatário.
De acordo com a Semiótica de Greimas, as manipulações podem
se dar por tentação, sedução, intimidação ou provocação. Segundo
Barros (2003), na intimidação e na tentação são oferecidos valores
que o destinador acredita, respectivamente, temidos ou desejados
pelo destinatário. Já na sedução e na provocação, o destinador
apresenta imagens positivas ou negativas do destinatário relativas
à sua competência, às suas habilidades ou qualidades. Partindo
dessas possibilidades, os argumentos oferecidos por um orador a
seu auditório podem caracterizar, geralmente, uma manipulação
por sedução ou por tentação, na medida em que o orador constrói
seu discurso tendo em vista o que ele considera ser desejado ou
agradável por/para seu auditório, conforme reflexões vistas em
Mariano (2007).
Em nossa análise, buscamos evidenciar esse diálogo possível, entre
Retórica e Semiótica, e retomamos estudos contemporâneos sobre o

60
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

ethos, um dos meios de persuasão apontados por Aristóteles, a partir


do diálogo entre Retórica e Análise do Discurso de linha francesa.

4. Análise das estratégias argumentativas em “Lampião arrudiano


Itabaiana”

Começamos a análise do texto selecionado observando a


utilização de figuras de argumentação e retórica, estratégias
argumentativas inesperadas que buscam persuadir o auditório pela
emoção. Mosca (2001, p. 37) diz que Perelman “considera as figuras
segundo o fim a que se prestam na argumentação e as classifica em
figuras de presença, figuras de seleção e figuras de comunhão”. As
figuras de presença são aqueles argumentos que vêm para manter
no texto a presença daquilo que está sendo falado, como acontece
no uso excessivo de repetição e nas paráfrases, que têm como
objetivo fazer com que o outro se convença pela exaustão. As figuras
de escolha dizem respeito à seleção de estratégias linguísticas e
discursivas; inclusive a opção pela abordagem de um determinado
tema ou por variantes de um dialeto específico podem ser figuras de
argumentação e retórica, caso provoquem a sensação de surpresa.
Nas figuras de comunhão, espera-se que o outro se identifique com
o argumento do sujeito enunciador; com essa finalidade, utilizam-
se, por exemplo, conhecimentos compartilhados entre orador e
auditório, o que parece ser um mecanismo muito empregado por
nosso autor desde o início do texto.

Nessa primeira parte da reportagem sobre Lampião, o orador vai


tentar explicar a não entrada do Rei do Cangaço em Itabaiana. Sua
primeira estratégia é ganhar a confiança do auditório, estabelecendo
a comunhão. Já no título e no subtítulo, é possível identificarmos
a busca pela interação com o enunciatário, chamando-o de você,

61
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

mesmo que de forma oculta no uso do imperativo “saiba (você)”, o que


indica tanto uma figura de comunhão quanto uma figura de escolha.
Deste modo, o autor instiga o leitor a querer saber como ocorreu a
passagem do cangaceiro por essas terras. Outra estratégia que pode
ser definida tanto como figura de escolha quanto de comunhão é a
utilização de arrudiano, ao invés de arrodeando, que apresenta o uso
de metaplasmos. Vê-se, nessa palavra, tanto uma síncope quanto o
alçamento das vogais médias, ocasionando uma harmonia vocálica.
Esse termo pode ter sido empregado para causar o efeito de sentido
de aproximação, por meio do uso da mesma variante linguística que
o orador acredita que seu auditório possui. Não só essa expressão,
mas outras como

são argumentos inesperados que têm o intuito de estabelecer


uma identificação entre os sujeitos da enunciação.
Relacionando essas estratégias argumentativas ao percurso da
manipulação da semiótica francesa, podemos dizer que o orador
utilizou essas variantes fonológicas e lexicais como argumentos, e
que esses, por sua vez, funcionam como objetos de valor positivos
oferecidos ao destinatário em busca da adesão, ou seja, para que o
auditório entre em conjunção com seu texto (tese/ideia). Também
podemos dizer que há a presença da manipulação por tentação no
título e subtítulo “Lampião arrudiano Itabaiana: Ele nunca esteve aqui,
mas saiba os fatos relacionado (sic) a Itabaiana”, pois o destinador
julga que o destinatário deseja “saber mais” sobre Itabaiana, já que
os leitores da revista OMNIA são habitantes do município. Uma
manipulação por provocação também não é descartada, na medida
em que, ao mesmo tempo em que oferece informações ao leitor, o

62
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

orador diz que este não conhece os fatos relacionados à sua cidade,
desqualificando-o e provocando-o para que queira saber mais ou
provar que já sabe. Observa-se, assim, nessa relação destinador-
destinatário, todo um trabalho de modalização do leitor.
Tendo em vista, particularmente, as figuras de comunhão,
podemos observar que o orador utiliza uma linguagem coloquial:

(1) “Começou basicamente quando o colonizador europeu


chegou por essas bandas no século XVI trazendo a corja de
malfeitores”;
(2) “Começou a montar suas barracas no litoral e
explorando o interior em busca de ouro, prata, terra para o
gado, lavoura e umas indiazinhas safadas para seu deleite”;
(3) “Assassino e ladrão profissional”;
(4) “Foi aí que fiquei encucado desde minha adolescência,
quando comecei a bisbilhotar as ideias históricas da terra
da cebola”.

e emprega parênteses para comentários mais ou menos


subjetivos: “(e também uns engraçadinhos que disseram que não
há relação)”; “(primeira vez que a forca foi usada em Itabaiana)”.
Tais fatos reforçam a busca de comunhão com o leitor, no intuito de
persuadi-lo a partir da aproximação.
As perguntas retóricas vistas ao longo do texto também instigam o
enunciatário a saber mais sobre o motivo da não entrada de Lampião
em Itabaiana, ao mesmo tempo em que estabelecem uma interação
orador-auditório e já introduzem novos argumentos, como se vê
nas seguintes perguntas: “Rômulo Remo ou Remo Dias?” (numa
intertextualidade entre a lenda de fundação de Roma por Rômulo e
Remo, que haviam sido amamentados por uma loba, e a história de
fundação de Itabaiana, que tem na sua gênese a presença de Simão
Dias, amamentado por uma cabra); “Por que o valente Lampião e seu
bando nunca invadiram Itabaiana, já que aqui tinha tanta riqueza na
década de 20 e 30?”; “Será que por medo do que podia encontrar aqui
ou por ter amigos coiteiros no local?”; “Será que aqui a concorrência

63
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

era grande por ter bandidos ou heróis demais?”, dentre outras.


Concomitantemente, ao valer-se de tais perguntas retóricas,
o autor constrói a imagem de um leitor leigo (o pathos), que não
conhece os fatos que serão expostos, mas interessado sobre o assunto
e sobre a cultura local, e uma autoimagem culta, mas, ao mesmo
tempo, humilde, já que nivela sua linguagem à de seu auditório.
Como o orador conhece seu público – habitantes de Itabaiana e de
cidades circunvizinhas – e a revista diz respeito à cultura e à história
local, é mais fácil para o autor construir uma imagem de seu leitor,
saber o que ele conhece, do que gosta, em que acredita.
Com a finalidade de defender a tese de que Lampião não entrou
em terras itabaianenses por medo, o orador usa como estratégia
argumentativa a intertextualidade, e traz para a reportagem uma música
composta por um dos integrantes do bando de Lampião, chamado Volta
Seca. De acordo com o texto, este era itabaianense e teria entrado no
bando com apenas onze anos de idade. Mais tarde, esse personagem
tornar-se-á muito temido e cruel. Na tentativa de salvar um amigo
ferido, Volta Seca será capturado por policiais e acabará sendo preso.

64
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

Essa música vai retratar as andanças de Lampião e suas


características valentes, mas, ao mesmo tempo, retoma a existência
de Mata Escura, itabaianense enforcado aos 25 anos, 50 anos antes
do nascimento de Lampião, levado à forca por ter assumido nove
assassinatos e outros crimes. No trecho da música que diz “Lampião
diz que é valente/ É mentira, é corredor/ Correu da Mata Escura/ que
a poeira levantou”, a imagem de Lampião se torna contraditória: é
valente ou medroso?
Quando o orador explica quem foi Mata Escura, que é supostamente
citado na música, faz uso novamente da intertextualidade, por meio
de uma citação entre parênteses:

Seu intuito foi comprovar a existência desse acontecimento em


Itabaiana. Podemos dizer que tal recurso se caracteriza como uma
figura de comunhão, já que o orador retoma um escritor sergipano
que deve ser conhecido por seu auditório com o objetivo de
corroborar o que disse com o peso de um argumento de autoridade.
O orador ainda tenta persuadir seu leitor por meio do uso das
falácias que, segundo Ferreira (2010, p. 120), é “[...] quando parece
que as razões apresentadas sustentam a conclusão, mas na realidade
não sustentam. As falácias, normalmente, são erros de raciocínio, mas
podem ser utilizadas, por oradores, como mecanismos persuasivos”.
Ao expor a música que Volta Seca compôs, o orador destaca em
negrito e com iniciais maiúsculas Mata Escura, ou seja, dá ênfase ao
nome do falecido itabaianense, conhecido como perigoso e temido,
para tentar persuadir o leitor de que a não entrada de Lampião por
Itabaiana tenha se dado pela má fama de Mata Escura. Essa ênfase,
segundo Ferreira (2010), é quando o orador destaca uma palavra na
intenção de levar o receptor ao erro por causa da aparente alteração
de significado.

65
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

Nesse trecho, encontramos ainda a ambiguidade que, junto à


ênfase, compõem o grupo das falácias, que são encontradas na
elocutio. De acordo com a Retórica, a elocutio é a parte do discurso
persuasivo em que as escolhas são feitas tendo em vista a adequação
ao auditório e a provocação de paixões. O verso Correu da Mata
Escura pode estar se referindo especificamente à mata, já que o
bando de Lampião andava a pé e vivia sempre assustado, fugindo da
polícia, ou ao personagem Mata Escura, que teria, mesmo depois de
morto, assustado o bando. Como Volta Seca era itabaianense, devia
conhecer a história desse personagem e o temor provocado pode ter
sido tão grande a ponto de Lampião e seu bando arrudiar Itabaiana,
mas não entrar na cidade.
A primeira hipótese pode ser baseada nos últimos versos da
música: “Lampião tava dormindo/Acordou muito assustado/Deu um
tiro numa braúna/Pensando que era um soldado”. Assim, o fato de ele
estar dormindo, viver caminhando na mata e estar sempre fugindo
da polícia culmina em acordar assustado e correr da/na mata escura
(numa relação de causa e consequência) e não do Mata Escura, como
sugere a reportagem. Podemos dizer que, dessa forma, o autor quer
construir (ou reforçar) a imagem de Itabaiana como uma terra de
homens valentes e perigosos, tanto que até mesmo Lampião não foi
capaz de invadir a cidade, pois ficou com medo.
Na reportagem, podemos encontrar também o uso da polidez
indireta que, segundo Ferreira (2010, p. 143), é

[...] um ato comunicativo em que o orador deixa uma


saída para si pela enumeração de interpretações
defensáveis. Com essa estratégia, preserva a face e evita
responsabilidades ao deixar uma interpretação por conta
do auditório. Pode-se verificar, então, se o orador fornece
pistas e sugestões indiretas, se explora as pressuposições,
se, conscientemente, minimiza a expressão para não dizer
tudo o que seria necessário [...] A impessoalização é a
estratégia mais usada [...].

66
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

Essa estratégia é observável após o orador expor a letra da música


e dizer que Volta Seca cita Mata Escura como alguém que desse
medo, capaz de colocar Lampião para correr.
Lógico, pode ter sido inconsciente, mas o terrorista itabaianense
do século XIX era algo que servia de inspiração para os pais dizerem
em tom de ameaça a seus filhos: “Vá pro mato não, Mata Escura
te pega”, da mesma forma que se fala de saci, caiporas e luzernas.
(OMNIA, 2011, p. 10)
Nesse trecho, a polidez indireta está presente, já que o orador
emprega a impessoalização e a modalização, preservando sua face
e deixando uma interpretação por conta dos leitores da revista
OMNIA ao dizer que Volta Seca pode ter utilizado a expressão
inconscientemente. Além disso, ele fornece pistas e sugestões
indiretas ao informar que os pais usavam essa expressão para
amedrontar os filhos para que estes não fossem para o mato,
comparando Mata Escura a seres fantásticos do folclore brasileiro,
criando um possível, provavelmente falso (devido à generalização),
silogismo: Várias pessoas tinham medo do Mata Escura, Lampião era
uma pessoa, Lampião tinha medo do Mata Escura.

5. A noção de ethos e a depreensão dos ethé de Itabaiana e dos


itabaianenses

De acordo com Aristóteles (2011), são três os meios de persuasão


“dependentes da arte”: o ethos, o pathos e o logos. O logos, segundo
Ferreira (2010), a partir dos estudos filosóficos de Heráclito de Éfeso,
passou a ter o conceito de razão. O estudioso nos diz que todo
discurso é construído em torno de um tema que é problematizado
e gera questões. Nesse sentido, o logos se encarrega do discurso
persuasivo, já que é a partir dele que evidenciamos o que parece
ser verdade levando em consideração o que se conhece sobre o
assunto. O pathos, por sua vez, vincula-se à afetividade e vai remeter
ao auditório, ao conjunto de emoções, às paixões e sentimentos que
o orador é capaz de despertar no ouvinte. Por fim, o ethos, que está

67
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

ligado à imagem que o enunciador constrói de si em seu discurso, à


sua postura; é o lugar da identidade assumida pelo orador. De acordo
com Ferreira (2010), modernamente, o termo sofreu ampliação no
seu significado e é considerado como a imagem que o orador constrói
de si e dos outros no seu discurso. Seguindo essa linha, podemos
dizer que, ao enunciar, o autor não está construindo apenas a sua
identidade discursiva, mas também a do povo itabaianense, por
ele representado, enquanto orador autorizado, já que a revista diz
respeito à cultura e à história da cidade e de seus habitantes.
Ferreira nos diz que o primeiro ponto a ser observado na definição
do ethos é a construção da imagem pública, ou seja, é importante
verificar se o discurso do orador cria condições para que o auditório
o julgue como digno de fé. Esse enunciador deve, ainda, ser capaz de
suscitar confiança e para isso precisa demonstrar conhecimento da
causa, honestidade e segurança. Aristóteles (2011) nos diz que

A confiança suscitada pela disposição do orador provém


de três causas, as quais nos induzem a crer em uma
coisa independentemente de qualquer demonstração: a
prudência, a virtude e a benevolência [...] Conclui-se que
todo aquele que é considerado detentor de todas essas
qualidades [que atuam como causa] suscitará confiança
em sua audiência. (p. 122)

Portanto, demonstrar sabedoria e domínio sobre o tema é


essencial, bem como apresentar opiniões fundamentadas. Nesse
sentido, o orador do texto analisado possui características que
alicerçam positivamente o ethos, visto que demonstra saber bem
sobre o que fala e expressa opiniões ao longo do texto, entre
parênteses, conforme já explicitamos.
Privilegiando o estudo do ethos, Amossy (2005) nos diz que para
construir a imagem de si o locutor não precisa falar dele mesmo, pois
ela é apreendida a partir de seu estilo, das suas crenças e das suas
competências linguísticas e enciclopédicas. Ao cunhar a noção de

68
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

ethos prévio, a autora chama a atenção para o fato de que temos uma
ideia antecipada do enunciador antes de ele proferir seu discurso, no
entanto, é só a partir do discurso efetivo que essa imagem pode ser
confirmada, destruída ou modificada.
O conceito de ethos prévio é relacionado por Amossy à noção
de estereótipo, já que, muitas vezes, basemo-nos em características
convencionalizadas socialmente na doxa para traçar o perfil discursivo
do orador. No texto analisado, vemos uma afirmação do estereótipo
do nordestino “cabra macho” e do itabaianense perigoso e valente,
imagens essas já estabelecidas discursivamente em outros textos,
como nos que descrevem os crimes ocorridos nos anos 60 em Itabaiana
e nos que relatam a saga de Lampião e seu bando. Observa-se, assim,
que na reportagem em foco o autor usou tanto fatos históricos de
Itabaiana, quanto outras histórias do imaginário local, para construir
imagens de uma cidade temida e de homens valentes e perigosos. É
por meio desses ethé que o orador justifica o fato de o famoso Rei do
Cangaço não ter tido coragem e audácia para invadir as terras serranas,
por saber que no município havia homens como Mata Escura, que era
tão ou mais valente quanto o próprio cangaceiro. Ao mesmo tempo,
a reafirmação desse estereótipo revela um povo orgulhoso de sua
história (ou de suas histórias), real e/ou fictícia, e de sua fama.

Considerações Finais

Partindo do pressuposto de que somos sujeitos sociais, podemos


afirmar que ao enunciar construímos, além do ethos individual, um
ethos coletivo que nos identifica como participantes de um grupo,
refletindo seus costumes, seus valores e sua ideologia (Mariano,
2013). Nesse sentido, o autor da reportagem, por meio da utilização
de figuras de argumentação e retórica e de intertextualidade, dentre
outros mecanismos, constrói os ethé dos itabaianenses e da própria
cidade, ethé caracterizados pela valentia, aqui “comprovados” em
uma revista que se propõe divulgar a cultura e a história de Itabaiana.
Assim, podemos dizer, de acordo com as imagens discursivas

69
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

evidenciadas, mostradas no modo de dizer, que o povo itabaianense


tem orgulho de ter tido na sua história homens valentes e corajosos
e de ser parte de um município cuja fama causa temor nas pessoas e
nos bandidos de fora, como foi no caso de Lampião.

Referências bibliográficas

AMOSSY, Ruth. Da noção retórica de ethos à análise do discurso. et al. In:


Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto,
2005. p. 09-28.
ARISTÓTELES (384-322 a.C). Retórica. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro,
2011.
BARROS, Diana. L. P. Estudos do discurso. In: FIORIN, José Luiz (org.)
Introdução à Linguística II: princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2003.
p.187-219.
CLEMENTE, Marcos Edilson de Araújo. Lampiões acesos: o cangaço na
memória coletiva. São Cristóvão: Editora UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo
Teixeira, 2009.
FERREIRA, L. A. Leitura e Persuasão: princípios de análise retórica. São
Paulo: Contexto, 2010.
INFONET. Lampião. Disponível em: <http://www.infonet.com.br/lampiao/>
Acesso em 16/02/2013.
MARIANO, M.R.C.P. A construção da imagem discursiva de uma cidade e de
um povo na literatura de cordel. Estudos Linguísticos, São Paulo, 42 (3), p.
1377-1388, set-dez 2013.
_____ As Figuras de Argumentação como estratégias discursivas. Um
estudo em avaliações no ensino superior. 2007. 231 f. Tese (Doutorado em
Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, São Paulo.
MENEZES, W. Crimes e mais crimes na construção da imagem de Itabaiana:
cidade violenta e terra de pistoleiros. Itabaiana, 26 de fevereiro de 2010.
In: Blog Cultura de Itabaiana/SE. Disponível em: <http://culturaitabaiana.
blogspot.com.br/2010/02/crimes-e-mais-crimes-na-construcao-da.html>.

70
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

Acesso em 20/03/2013.
MOSCA, L. do L. S. Velhas e Novas Retóricas: Convergências e Desdobramentos.
et al. In: Retóricas de ontem e de hoje. São Paulo: Humanitas, 2001. p. 17-54.
PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação:
a nova retórica. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo:
Martins Fontes, 2002. [original de 1958]
SANTOS, R. Lampião arrudiano Itabaiana: Ele nunca esteve aqui, mas saiba
os fatos relacionado (sic) a Itabaiana. OMNIA, Itabaiana, ed. 13, p. 10, mai.
2011.

71
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

ANÁLISE DISCURSIVA DE ITABAIANA E


DOS ITABAIANENSES EM TEXTOS QUE
FOCALIZAM A VIOLÊNCIA NA CIDADE

Luciana Almeida Santos

“(...) um texto é um jogo de estratégias mais ou


menos como pode ser a disposição de um exército
para uma batalha.”
(Umberto Eco)

Introdução

Numa dimensão ampla, a linguagem é, por essência,


argumentativa: apropriamo-nos da palavra para influenciar. Os
textos trazem implícitas ou explícitas posições ideológicas sobre os
assuntos abordados e tendem a ganhar vida própria nas mãos de
inúmeros interlocutores, os quais concordarão ou não com o ponto
de vista abordado. Assim, pretendemos enfocar, neste artigo, os
elementos que norteiam a construção de imagens discursivas do
município de Itabaiana e de seus habitantes no que se refere a
textos que enfatizam a violência na cidade, de cunho jornalístico e
veiculados pela internet. Tal análise é calcada à luz da Retórica e da
Argumentação. Para tanto, analisamos o conceito de ethos prévio e
de ethos discursivo, a partir de estudos de Dominique Maingueneau
(2005) e Ruth Amossy (2005), e o conceito de auditório sob a égide
de Chaïm Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002).
Importante salientar que este artigo é resultado de um dos planos
de trabalho do Projeto de Pesquisa de Iniciação Científica intitulado
“Desvendando Itabaiana: análise das imagens discursivas da Cidade

73
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

dos Caminhoneiros – parte II”, desenvolvido no período de agosto de


2013 a julho de 2014, e se desmembra na observação da imagem que
se constrói da cidade e de seus munícipes em textos que abordam a
violência em Itabaiana, sob a orientação da Profa. Dra. Márcia Regina
Curado Pereira Mariano. Analisar esse espaço geográfico, no tocante a
esse aspecto, não tem como intenção depreciá-lo, já que foi e é palco
de plurais manifestações culturais, mas sim de visualizar a imagem da
cidade e de seus habitantes que é construída nos textos aqui analisados.
Localizada no agreste sergipano, a “Capital do Caminhão”, no
cognome de “Celeiro de Sergipe”, “Cidade Serrana”, “Terra da
Cebola”, é circunscrita em variados modos de referência. Além disso,
é a cidade que detém a liderança comercial interestadual no Estado
de Sergipe. Assim como são plurais as expressões populares de cunho
temeroso e/ou depreciativo que podem caracterizá-lo: “cidade
violenta”, “lugar que possui mais homicídios que o Iraque”, “terra dos
pistoleiros”. Então, partimos destas últimas expressões, tomando-as
como um ethos prévio, ou seja, partimos da “fama” da cidade e de
seus habitantes para confirmar ou refutar essa imagem previamente
construída, buscando, nos textos, o ethos que realmente importa: o
discursivo, aquele que se inscreve nos textos.
A retórica é conhecida como a arte da persuasão e oferece uma
base teórica que permite tanto a análise e a compreensão quanto
a produção de textos argumentativos e persuasivos. Dentre outras
estratégias, o orador vale-se das figuras retóricas - a antítese, a
repetição, a metáfora, entre outras -, no intento de convencer o
outro, apropriando-se de um discurso planejado e bem arquitetado
que tem esse interlocutor como coautor. Os argumentos utilizados
em um texto são um meio de defesa de um determinado ponto de
vista. E assim como podem ser aceitos, podem ser contrariados com
uma tese que traça um caminho inverso.
A necessidade de convencer o outro se circunscreve num ângulo
remoto na história da humanidade. Com o passar dos tempos, o
homem foi aperfeiçoando sua capacidade de persuadir pondo em
destaque aspectos da linguagem que se tornaram objeto de estudos

74
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

aprofundados. Nesse sentido, é a capacidade de usar a linguagem


a viga-mestra que direciona o outro a uma arena de opiniões. No
universo do “eu” e do “outro”, é necessário compreender os artifícios
escolhidos pelo enunciador, como se emana sua posição no discurso
e em que pode ser fundamentada sua credibilidade a fim de que o
outro possa analisar os argumentos à luz de seus preceitos.
Na Antiguidade, Aristóteles destaca o poder do orador, junto as
suas escolhas do dizer, elevando o ethos a principal meio de persuasão.
Daí em diante, vários autores se dedicaram ao tema convergindo e,
muitas vezes, divergindo entre si. Para Perelman e Tyteca (2002),
que retomaram os estudos da retórica aristotélica nos anos 50 do
século XX, no Tratado da Argumentação, a argumentação, sem a qual
não existe a Retórica, está interligada à adesão, ou seja, ela permitiria
uma maior ou menor aproximação entre orador e auditório a partir
do discurso que se profere. Por seu turno, é perceptível que essa obra
foca o auditório, o pathos, mas que não se limita a ele, apresentando
um estudo aprofundado das estratégias argumentativas presentes
no discurso, o logos.
O estudo de Perelman e Tyteca é lógico, é retórico e volta os
olhos para o auditório numa relação de complementaridade. A Nova
Retórica de Chaïm Perelman foi a continuação da visão aristotélica
em muitos aspectos e a renovação em tantos outros. Enquanto
em Aristóteles a imagem discursiva do orador estava ligada ao seu
caráter, nos estudos perelmanianos ela é resultado de um jogo de
imagens construído na interação. Assim, do mesmo modo que ocorre
com os argumentos utilizados num texto, que devem ser escolhidos
de acordo com os valores, as crenças e expectativas do auditório,
o orador deve construir sua imagem discursiva de acordo com a
imagem que ele tem do auditório e de acordo com a imagem que ele
acha que o auditório tem dele, orador.
Retomando os estudos retóricos, especialmente no tocante ao
ethos, Dominique Maingueneau e Ruth Amossy destacam a imagem
prévia que o auditório tem do orador antes que ele tome a palavra,
e que pode ser modificada ou reforçada no discurso; seria um ethos

75
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

pré-discursivo ou ethos prévio, que complementa, e não contradiz, o


ethos aristotélico, discursivo.
No tocante à questão por nós foi delimitada, o que se pode
perceber diante da frequência de cenas e ocorrências em Itabaiana
é que a violência se tornou um valor agregado à sociedade e que
pode influenciar o indivíduo no exercício de direitos e garantias
constitucionais, a exemplo da dignidade da pessoa humana, um dos
principais corolários. Como valor de uma sociedade, essa violência
é explorada pela mídia e acaba por reforçar imagens discursivas
correntes, no caso, aqui, a de “cidade violenta”, dirigida à Itabaiana.
Tomando, pois, o discurso como uma construção social, a
problemática da imagem discursiva da cidade em textos midiáticos
reforça a necessidade de se observar como os enunciadores
trabalham retoricamente a linguagem, como os sujeitos discursivos
fazem escolhas a partir não só dos seus valores e crenças, mas
também dos seus interlocutores e da sociedade em que vivem.

1. O ethos na esteira midiática

“A retórica é a arte de dirigir mentes humanas”


(Platão)

Tendo em vista que o jornalista é um enunciador considerado por


muitos como imparcial, a verdade é que nenhuma imparcialidade
pode ser absoluta em meio a situações discursivas que envolvem
ideologias e sentimentos. É nessa linha que Amossy assinala que “o
enunciador não é um ponto de origem estável que se “expressaria”
dessa ou daquela maneira, mas é levado em conta em um quadro
profundamente interativo, em uma instituição discursiva inscrita em
uma certa configuração cultural” (2011, p. 75). Assim, acontecimentos
e situações discursivas são dinâmicos por essência e estão sempre
sujeitos a um estado de mutabilidade.
A notícia reproduzida abaixo e intitulada “Jovem é assassinado a
tiros de pistola 380 em Itabaiana” foi publicada em 06 de outubro de

76
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

2013, assinada pelo jornalista Aparecido Santana. O autor, no texto


abaixo, retirado do site “Itnet”, do próprio município, “possibilita a
eficácia do ethos, seu poder de despertar a crença, a adesão: o leitor
é levado a identificar-se com a fala do enunciador, a incorporar um
certo modo de ver o mundo; é levado a habitar o mesmo mundo
ético” (CAVALCANTI, 2008, p. 173).

Por volta das 19h30mim deste domingo (6), o jovem Carlos


Antônio Teles da Mota, conhecido como Carlão, 19 anos, foi
executado a tiros de pistola calibre 380, na Rua Francisco
Bragança, em Itabaiana. A motivação do crime ainda é
desconhecida. Segundo informações, a vítima conduzia
um ciclomotor Shineray, que havia tomado emprestado de
um amigo, quando foi alvejado a tiros por dois indivíduos
em uma motocicleta.16

De antemão, convém destacar que o reconhecimento da


legitimidade do orador por parte dos interlocutores na veiculação
da notícia é um pressuposto para que cheguem à construção que
fazem de si mesmos ou de suas raízes. O dizer do enunciador reflete
o município em uma de suas facetas, posto que é destaque cultural,
como bem exemplifica o objeto de estudo de um dos planos de
trabalho da Profa. Dra. Márcia Regina Curado Pereira Mariano
juntamente com o aluno Flávio Passos Santana, no projeto intitulado
“Itabaiana cultural”, desenvolvido no período de 01/08/2012 a
31/07/2013.
O uso de um “calibre 380”, arma de fogo simples, pode conduzir
a uma interpretação voltada para a desídia política e/ou social no
sentido da facilidade de emponderamento desses instrumentos
que, por seu turno, estão ligados a uma noção de poder. No caso em
comento, a seleção de argumentos que façam valer a veracidade do
que está sendo dito é efetuada em vistas à recorrência àquilo que

16 Disponível em: http://itnet.com.br/materia-21852. Acessado em 08/05/2014 às 9:42.

77
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

pode entreter o leitor e com base em informações de teor impactante.


Tomando como eixo norteador o histórico de violência no referido
município, pode-se constatar que esse é um caso de “estereótipo que
permite designar os modos de raciocínio próprios a um grupo e os
conteúdos globais do setor da doxa na qual ele se situa” (AMOSY,
2005, p. 126). O estereótipo também tem a capacidade de construir
uma imagem real que se repete num determinado grupo. Visível
constância arquiteta, de certa forma, uma simbologia que pode
refletir a realidade do “eu”.
O histórico da cidade na década de 1970, 1980 já era de violência
conforme relata a manchete do Jornal Serrano que circulava na
cidade, reproduzida abaixo:

17

A baixa qualidade da imagem não permite uma melhor visualização


do texto, mas o título da notícia mostra o questionamento de um
caso de fuga ou rapto. Mais uma vez, vem à tona a falta de segurança

17 Excerto do Jornal Serrano, veiculado na década de 70 e 80, e fornecido pelo Prof. Robério
Santos, que dispõe de um grande acervo da cidade serrana e a quem agradecemos pela
colaboração.

78
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

pública, a ineficiência da atividade policial no município. O ethos


prévio, do qual partimos no início, se confirma na imagem pré-
constituída em décadas, tanto pelo que é real e efetivo, quanto pelos
estereótipos lançados e que acabam sendo confirmados. Todavia,
apesar destes possibilitarem uma tradução mais rápida de uma
sociedade, muitas vezes podem generalizar e ir além do verídico.
Através do mapeamento, foram encontrados mais quatro sites
que veiculam o mesmo texto, a saber- a descrição do assassinato
abaixo. Um deles, o site de Gilson de Oliveira, de Itabaiana, traz
outras informações relevantes que não são vistas no portal itnet. As
informações acrescidas são as seguintes:

Carlão” morava no bairro Bananeira, era natural de


Itabaiana, e se encontrava em um aniversário momento
antes do assassinato. A Polícia Militar foi acionada
para preservar a cena do crime até a chegada da Polícia
Técnica Científica do Instituto de Criminalística e rabecão
do Instituto Médico Legal Dr. Augusto Leite. Segundo
informações levantadas pela PM, o jovem não possuía
nenhuma passagem policial. Com a morte de Carlos
Antônio já são 33 homicídios registrados em 2013 no
município serrano do Agreste Sergipano e o primeiro do
mês de outubro.

Outros detalhes são abordados acerca da vítima - a Polícia Militar


atuou em conjunto com a Polícia Técnica Científica na realização da
perícia, a vítima não possuía nenhuma passagem policial -, detalhes
estes que fazem sua inocência ganhar um patamar maior, mas não
absoluto, e contribuem, de certo modo, para reforçar uma violência
de cunho arbitrário, e não vingativo. Mesmo diante de uma maior
quantidade de dados que evidenciam a preocupação e um possível
zelo da segurança em relação a outra notícia, esse enunciador,
diferentemente do anterior, direciona seu discurso numa ordem
inversa: o efeito da violência ao final não é neutralizado, pelo
contrário, reitera a fama de cidade violenta com dados estatísticos

79
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

sobre os registros dos homicídios, os quais revelam o equivalente a


aproximadamente quatro assassinatos por mês no ano de 2013.
A descrição detalhada e o uso de palavras do campo semântico
da lei (polícia, criminalística, vítima, rabecão) podem ser classificados
como figuras de escolha, que são reforçadas pela repetição (figura de
presença). As figuras de argumentação e retórica têm como função
convencer o auditório pela emoção. Figuras de comunhão também são
usadas buscando a identificação do leitor com a vítima, afinal, quem não
se identifica com a dor de um (possível) inocente morto que voltava de
uma inocente festa de aniversário? (PERELMAN E TYTECA, 2002, p. 156).
Perelman e Tyteca (2002) conceituam o auditório “como o conjunto
daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação. Cada
orador pensa, de uma forma mais ou menos consciente, naqueles
que procura persuadir e que constituem o auditório ao qual se
dirigem seus discursos” (p. 116). Ainda neste espeque, convém
perceber “que a construção do auditório passa necessariamente por
um processo de estereotipagem” (AMOSY, 2005. p. 126), que abarca
a questão de ser ou não um auditório universal, o que pressupõe o
fato de o orador conhecer previamente o público a que direciona seu
discurso, pautando-se nas convicções mais predispostas de serem
aceitas, antecipando assim, um juízo de valor.
Para Perelman e Tyteca, “o auditório universal tem a característica
de não ser jamais real, atualmente existente. Ele não é, então,
submetido às condições sociais ou psicológicas do meio. Ele é, antes
de tudo, ideal, um produto da imaginação do autor.” (2002, p. 127). O
auditório universal existiria, pelo menos em tese, na notícia veiculada
fora do município, uma vez que a área fronteiriça da ocorrência foi
alargada e ganhou outros espaços, outras vozes. Devemos pensar esse
auditório como uma construção ou uma pretensão do orador de que
sua voz caminhe por outras trilhas. Assim, se é uma intenção ou um
desejo, não se tem como comprovar empiricamente esse auditório,
pois este é uma projeção do enunciador, podendo existir ou não.
Trata-se, num primeiro momento, de um auditório particular, pois
a notícia é publicada de antemão no site virtual da cidade, o que não

80
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

impede que alcance um público maior dada a facilidade do acesso e,


num segundo momento, de um auditório universal, já que a notícia
se alarga por várias cidades no interior do estado (o que também o
particulariza). Dessa forma, diante da generalidade de pessoas a que
chega a notícia, estas são tidas por universais, pois toca num assunto
polêmico que envolve a todos. É imperioso pensar que, de alguma
forma, o público é delimitado, na medida em que o acesso a jornais
virtuais é feito muito mais por jovens ou pessoas até os 50 ou 60
anos do que idosos; a língua usada é o português, o que já delimita
também esse leitor; o acontecimento não ultrapassa os interesses
locais e a delimitação geográfica do ocorrido (rua, bairro) só pode ser
perfeitamente visualizada pelos moradores.
Publicada na data de 24/12/2012, num site do município de
Lagarto, outra notícia intitulada “Depois de morto, homem é
decapitado em Itabaiana”, chama a atenção pela maneira como o
orador a conduz.

Um homicídio com requintes de crueldade. Foi o que


aconteceu na madrugada de hoje (24) no município de
Itabaiana, na região agreste do estado. Além de a vítima
ter sido morta a tiros e golpes de facas, teve sua cabeça
separada do corpo e deixada num terreno baldio, junto
a um cercado, na Avenida Emília Vigência dos Santos. O
homem também teve seu dedo indicador decepado e um
ferimento profundo no tórax.

A guarnição do 3º Batalhão de Polícia Militar (3º BPM) ainda


não conseguiu identificar o corpo decapitado. Mas segundo a
polícia, que foi acionada ontem (23), por volta das 23h, para
receptar uma suspeita de troca de tiros nas proximidades da
avenida onde foi encontrada a cabeça, ainda não se sabe o
motivo ou relação do crime. O Instituo Médico Legal (IML)
também foi ao local para o atendimento da ocorrência.18

18 Disponível em: http://www.lagartense.com.br/13425/depois-de-morto-homem-e-decapi-


tado-em-itabaiana. Acessado em 06/01/2016 às 8:31.

81
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

A imagem descrita faz o auditório associar a carne humana a


aspectos grotescos. O que parece pertinente é que, nesses casos,
existirão conteúdos dentro do gênero tratado que podem causar uma
maior carga de racionalidade e sensibilidade simultaneamente. Ou
seja, a racionalidade reside na capacidade de enxergar o fato como
incompatível com a normalidade, donde emanaria a sensibilidade
diante da degradação do humano. E é justamente aí que reside o
poder da persuasão, na medida em que o discurso pode atrair a
adesão do outro.
No que tange ao ato de violência em si, poderíamos vinculá-lo a
uma manifestada cólera, sentimento de natureza penosa, de acordo
com Aristóteles, e “é sempre acompanhado de um certo prazer no
antegozo da expectativa da vingança” (ARISTÓTELES, 2011, p. 123). A
gama de informações que conduzem a um mesmo assunto, a violência,
é um discurso que sensibiliza o interlocutor, estabelecendo uma
relação sócio-interativa que congrega diferentes pontos que chamam
a atenção - lugar, polícia, objeto para realização do crime, partes do
corpo desmembradas e a análise pelo IML. A partir disso, uma análise
discursiva acuada busca encontrar a superfície das palavras e da
quantidade de informação exposta, o que envolve o interlocutor com
a situação, intervindo em seu contexto sócio-histórico e ideológico.
Nesse ínterim, os fatos de violência na cidade se referem a
diversos gêneros, desde os mais banalizados aos mais cruéis, que
fazem seus moradores reagirem, também, de diversas maneiras.
Dada a recorrência de certos acontecimentos, numa conversa
com munícipes, os mesmos reagem de maneira peculiar ao tomar
conhecimento de um caso violento na cidade, apesar de ser algo
consolidado, ou melhor, de certa frequência. De alguma forma, isso
pode revelar um sentimento de pertença, de identidade, que são
premissas para nos constituirmos como sujeitos. Um povo não é
determinado por sua genética, e sim por afinidades culturais e por
um sentimento de pertença, ligado muitas vezes pelo amor a sua
terra, características essas que, em diferentes graus, são encontradas
em todos os brasileiros de norte a sul.

82
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

Essas notícias podem levar a generalizações, consolidando


estereótipos, estes, por sua vez, muitas vezes inevitáveis, dada a
frequência com que se altera a normalidade da cidade. Tais fatos
equilibram ocorrências compostas por uma hierarquia de gravidade,
que vai de um simples furto a um homicídio doloso. A subjetividade
e o juízo de valor em “requintes de crueldade”, os detalhes do
destroçamento do corpo, numa mescla de “tiros”, “golpes de facas”,
“cabeça separada do corpo”, “dedo indicador decepado”, “ferimento
profundo no tórax” contribuem no alcance ao leitor, tendo em
vista ser uma representação intensa da degradação física do corpo
humano, ao mesmo tempo em que fogem das características do
gênero notícia, cuja pretensa objetividade dispensa o uso exagerado
dos adjetivos, colaborando, ainda, para a construção da imagem
discursiva do enunciador e da cidade em que ocorreu o crime.
A mesma notícia foi encontrada em outros meios virtuais19 - um
site do município sergipano de Pedrinhas, um de Lagarto e o outro
no R7, o qual tem uma maior abrangência. O jornal eletrônico do R7
disponibiliza mais informações sobre o crime:

O homem de cor negra estava vestido com uma camisa


verde e uma bermuda azul. Ele foi assassinado em um
quarto e possivelmente teria sido arrastado até os fundos
do prédio onde o corpo fora encontrado.20

O ressalto do enunciador sobre a etnia da vítima merece a atenção,


porque implicitamente está marcada uma “diferença”. Numa outra
notícia que apresentamos neste trabalho, pode-se perceber que a
vítima é da cor branca e, no entanto, esse aspecto não foi abordado no
relato. A ação de “arrastá-lo até os fundos do prédio” se assemelha a

19 Os sites são: 1- http://www.lagartense.com.br/13425/depois-de-morto-homem-e-


decapitado-em-itabaiana; 2 http://www.pedrinhas.se.gov.br/imprensa_3363_0_Depois-
de-morto,-homem-e-decapitado-em-Itabaiana; 3 http://www.jornalneopolitano.com.
br/2012/12/homem-e-decapitado-e-cabeca-e.html. Acessado em 06/01/2016 às 9:06.

20 Idem.

83
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

um tratamento escravocrata, uma vez que o verbo “arrastar” contém


um sentido depreciativo, de desdém; ao ser levado justamente para “os
fundos”, fica clara a posição com que um homem negro foi e é tratado:
na “periferia” de certas intermediações, onde o subjugo e o degradante
ainda estão presentes. O enunciador também ressalta antes do título
que “já são 62 pessoas assassinadas este ano em Itabaiana”, referindo-
se ao ano de 2013, o que corrobora para a solidificação do fato de que
Itabaiana é uma cidade violenta, confirmando assim, o ethos prévio,
mais uma vez, pelo uso do argumento da quantidade.
Tomando-se o termo “figura” não mais na acepção retórica, mas
dentro dos estudos semióticos, para Fiorin “podem-se revestir os
esquemas narrativos abstratos com temas e produzir um discurso não
figurativo ou podem-se, depois de recobrir os elementos narrativos com
temas, concretizá-los ainda mais, revestindo-os com figuras” (2001,
p. 64). Se a figura “é o termo que remete a algo do mundo natural”
esses termos apresentados pelo enunciador compõem um processo
de figurativização, na medida em que colaboram para a construção
de sentido, fazem parte de um acontecimento do mundo natural. Tal
texto se inclui na categoria de figurativos, representando a realidade e
detendo uma função descritiva. Os detalhes e minúcias sequenciadas
comprovam a verdade enunciada, daí a inserção do argumento por
ilustração, pois além da intensidade dos adjetivos e da escolha lexical,
a imagem21, argumento não-verbal, comprova, definitivamente, o
argumento visto na linguagem verbal, tornando-o irrefutável:

21 A imagem pode ser encontrada no seguinte endereço: http://www.lagartense.com.


br/Biblioteca/Imagens/Imagens2012/dezembro/cabeca-itabaiana/1.jpg. Acessado em
25/12/2013 às 09h32min.

84
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

Na leitura é possível extrair alguns temas que fornecem sentido


a essas figuras: o homicídio, a crueldade com a vida humana e a
atuação da polícia. Há uma organização na maneira de expor esses
elementos: um homem morre em uma ocorrência trágica e numa
situação deprimente, mas que com a chegada da polícia tais efeitos
são neutralizados em algum nível no leitor, invertendo-se a estratégia
argumentativa, constituindo assim, uma manobra discursiva. Assim,
os níveis temático e figurativo aparecem interdependentes. Enquanto
que o temático dá as coordenadas conteudísticas, o figurativo
aprofunda-as e reveste o enunciado de sentido. Poderíamos traduzir
esse primeiro momento em que o leitor se depara com tamanha
carga semântica como um momento de catarse, que seguirá até o
fim do texto.
Nesse segundo e último momento do texto, o orador deixa
a abordagem mais subjetiva de lado e promove uma espécie de
neutralização desse processo de catarse. Em um dos recursos do
gênero deliberativo, da “guerra e paz”, “o orador deve conhecer a
extensão do poder bélico de seu Estado, tanto real quanto potencial,
bem como a natureza desse poder real e potencial ‘’ (ARISTÓTELES,
2011, p.58). Na reprodução acima, o locutor fornece informações
sobre esse atributo versado por Aristóteles, numa atitude de
neutralizar chega ao ápice na expressão “guarnição do 3º Batalhão da
Polícia Militar”. O termo “guarnição” traduz um forte poderio, reforça
uma onipotência aparentemente implacável, mas que não consegue
obstar e/ou amenizar o acontecimento trágico. O ato de investigar,
defender, liga-se a outro recurso desse gênero - a defesa nacional.
Tal dicotomia, guerra e defesa, torna-se, então, interdependente e
estratégica no discurso: o orador promove um balanceamento da
ocorrência ao congregar um fato negativo a outro positivo ou de
prevenção.
Há uma significativa quantidade de notícias referentes a roubos
de motocicletas, o que mostra valores particulares dessa sociedade
e tendências capitalistas. Em uma dessas notícias a “Polícia Militar

85
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

prende ex-presidiários por furto a ciclomotor em Itabaiana”22 e é


“acionada a fim de verificar uma denúncia de furto de uma motoneta
Shineray Phoenix, cor preta, que estava estacionada em frente a
uma livraria”. A constância de roubos de motos indica o desejo de
pertencer a uma posição social privilegiada e é sinônimo de poder,
tão comum na mentalidade capitalista.
A polícia representa o heroísmo e provoca simpatia no espectador.
Maigueneau (1997) assinala que o ethos enunciativo liga-se também a
um caráter, que seria o “conjunto de traços psicológicos que o leitor-
ouvinte atribui espontaneamente à figura do enunciador, em função de
seu modo de dizer (p. 47). Aparentemente “figurante” da cena, até então
inoperante antes de ser acionada, faz valer o ofício a que se destina e
torna-se protagonista de uma ação bem sucedida. A comunhão entre o
orador e o auditório realiza-se, posto que o empenho daquele em passar
uma boa imagem de seu discurso, digna de confiança, pois o objetivo
de recuperar a motocicleta foi concretizado. Perelman e Tyteca, em seu
Tratado da Argumentação (2002), assinalam a relevância da sintonia
entre esses dois elementos dando especial status ao auditório, que
dará o veredicto do sucesso do discurso.
Em “Ciclomotor roubado é recuperado durante evento em
Itabaiana”, de 23/12/2013, policiais apreendem um jovem de 19
anos que havia roubado uma motocicleta e, após a prisão, detectam
que o mesmo já tinha sido autor de outros crimes na região serrana:

No início da noite de domingo, a equipe do Moto


Patrulhamento do 3.º Batalhão de Polícia Militar (3.º BPM)
formada pelos soldados Fagundes, Rezende e Rocha,
realizava rondas pela Avenida Dr. Luiz Magalhães, centro
de Itabaiana (SE), quando o condutor de um ciclomotor
Shineray, de cor Vermelha, praticava manobras perigosas
com o referido veículo. De imediato, o infrator foi abordado
e identificado como Jeferson Douglas Melo Espírito Santo, 19

22 Disponível em: http://itnet.com.br/pm-prende-ex-presidiarios-por-furto-a-ciclomotor-em-


itabaiana,21644.html. Acessado em 07/01/2016 às 21:32.

86
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

anos, morador à Rua Gumercindo de Oliveira. Em seguida,


os militares consultaram a procedência do ciclomotor e
constataram a existência de restrições de roubo e/ou furto. O
veículo de duas rodas havia sido roubado no último dia 03 de
dezembro do corrente ano. Após a prisão do suspeito a vítima
compareceu à unidade policial e reconheceu o indivíduo como
sendo o autor do delito. O jovem está sendo investigado por
agentes civis da Delegacia Regional de Itabaiana, uma vez que
ele é suspeito de participação em outras ações criminosas na
cidade serrana do Agreste Sergipano23

A atuação da polícia é tida como fundamental para a manutenção


da ordem pública e, para muitos, corrobora na construção de uma
sociedade civilizada. Ela, juntamente com o Estado, contribui, muitas
vezes, para afastar a barbárie e reprimir atividades que extrapolem
aquilo que está previsto em lei. A descrição da atuação na notícia
acima continua a mesma da retratada em outros momentos desse
texto (“realizava rondas”, “de imediato”). Mas, se a polícia é tão
operante e dotada de eficácia e efetividade, numa cidade de porte
médio, localizada no menor estado do Brasil, por que os números de
violência não cessam? Respondemos a pergunta, em partes, através
de outra notícia - “Setor de Roubos e furtos da Delegacia Regional de
Itabaiana tem novo delegado”24 datada de 21/10/2013, que relata:
“Essa será a segunda mudança em apenas dez meses”25. Quando,
finalmente, o índice de violência começa a se reduzir, o comando
policial é modificado e se retorna à estaca zero. Ainda na mesma
notícia, o delegado transferido diz que:

[...] as constantes mudanças em menos de um ano causam


prejuízos à sociedade local, porque, quando existe uma

23..http://itnet.com.br/identificado-corpo-de-jovem-encontrado-morto-na-zona-rural-de-
itabaiana,21807.html
24..http://itnet.com.br/setor-de-roubos-e-furtos-da-delegacia-regional-de-itabaiana-tem-
novo-delegado,21964.html
25 Ibidem.

87
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

atuação firme do delegado gera confiança por parte


da população, e com a alteração esse segurança fica
fragilizada, até que o novo agente consiga reverter esse
estado emocional. 26

A estrutura, quando modificada, pode desarticular e prejudicar


o que estava sendo erguido. De fato, mudanças na autoridade
contribuem para tal, pois há um novo período de adaptação ao
local, de conhecimento do funcionamento, etc. Isso faz com que
a população crie expectativas volúveis quanto à estabilidade da
segurança na cidade.
Existe um roteiro padrão na estrutura textual dos jornalistas,
independentemente de serem ligados a sites distintos. A estrutura
lembra uma narrativa: (i) exposição do problema e já sugerido
no título, (ii) apresentação dos “heróis”, a polícia, no caso; (iii)
caracterização dos envolvidos. Em algumas, a polícia já surge de
imediato como mediadora na resolução do conflito, como na exposta
anteriormente, e é aí que notamos a diferença em comparação com
a narrativa, pois nesta o ato heroico é ressaltado do meio para o fim.
Na notícia intitulada “Identificado corpo de jovem encontrado
morto na zona rural de Itabaiana”, datada de 01 de outubro de
2013, a vítima é do município de Malhador27, mas foi morto em
terras serranas. O homem que atende por Rivaldo “foi localizado
com o rosto completamente desfigurado e uma fratura no antebraço
direito, além de perfurações provocadas por disparos de arma de
fogo de uma pistola Ponto 40”. Segundo informações28 da Revista
Super Interessante, esse tipo de pistola tem um alto poder de fogo e,
consequentemente, de danos físicos. A mídia, então, não só influencia
nossas ações cotidianas no sentido de apresentar a realidade, mas

26 Ibidem.
27 Município localizado no centro do Estado de Sergipe, há 49 km da capital, Aracaju, e vizinho
do município itabaianense.
28 http://super.abril.com.br/cotidiano/pistola-40-634668.shtml

88
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

nos fornece informações que podem mudar, diretamente, o modo


como enxergamos a sociedade.

A máquina midiática é complexa, igualmente, pela tensão


permanente que existe entre as duas finalidades de
informação e de captação de seu contrato de comunicação.
Isso explica por que ela está marcada por um paradoxo: por
um lado, pretende transmitir informação da maneira mais
objetiva possível, e isso, em nome de valores cidadãos, por
outro, só pode atingir a massa se dramatizar a uma vida
política e social (CHARAUDEAU, 2012, p. 243).

A instância da imparcialidade tem um breve limite. O orador


decide como tratar determinada informação baseado no seu público,
sendo inevitáveis doses de subjetividade, o que torna o contato com
o espectador mais real. Os termos “completamente desfigurado”,
“perfurações provocadas por disparos”, objetivam interpelar o leitor
para uma noção mais ampla do que aconteceu. A resposta à leitura
pode ser de reação, indignação e a tomada de consciência cidadã.
O uso dos termos não deixa de ser uma estratégia argumentativa
para problematizar o homicídio e também revela um “alvo afetivo”
que se guiará por emoções, desembocando, provavelmente, num
estado catártico. Numa ação linguística os detalhes devem ser
observados, isso quer dizer que “o que é dito e o tom como é dito
são igualmente importantes e inseparáveis. Eles se impõem àquele
que, no seu interior, ocupa um lugar de enunciação, fazendo parte
integrante da formação discursiva, ao mesmo título que as outras
dimensões da discursividade” (MAINGUENEAU, 1997, p. 45). Inexiste
divisão em termos de posição entre o conteúdo e a maneira de
falar, pois o sucesso de um discurso compreendido como o poder de
despertar a adesão, a confiança, está pautado no ethos construído
dentro de todo um contexto.
Ao se falar em Maingueneau, sobrevém a importância de
apresentar outras peculiaridades do ethos, composto de um tom

89
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

que, por sua vez, está calcado em dois elementos: o caráter e a


corporalidade. Esta se refere a tudo aquilo que possibilita ao ouvinte
projetar a representação do enunciador. A cena da enunciação,
geralmente de tensão, o modo de proferir, os termos que revelam
e os adjetivos de cunho negativo, são alguns dos componentes
que constroem a ideia que o leitor faz do orador. Já se tomarmos o
conceito de ethos de um modo mais amplo e moderno, a partir de
Ferreira (2010, p. 90), podemos dizer que os leitores desses jornais
podem projetar, a partir dos textos, não só o ethos, ou o caráter e
a corporalidade do enunciador, bem como de outros no interior do
discurso, mais especificamente aqui, dos moradores de Itabaiana,
que podem assumir para munícipes de outras cidades um aspecto
violento e grotesco.
Analisando também o aspecto visual, um indivíduo que foi morto
remete a outros indivíduos na mesma situação, mas em contextos
diferentes. Assim, “toda imagem tem um poder de evocação variável
que depende daquele que a recebe, pois é interpretada em relação com
outras imagens e relatos mobilizados por cada um” (CHARAUDEAU,
2005, p. 246). O discurso midiático provoca um processo de reação
às notícias, por meio da linguagem verbal e não-verbal (visual),
ambas as formas indissociáveis, se enfocarmos a primazia da imagem
junto à primazia da linguagem. Se uma traduz todo o sentido, toda
a significação, a outra traduz a realidade empírica, sem idealismos,
na qual o sujeito desperta, devido a uma “imagem sintoma”,” que
remete a outras imagens, seja por analogia formal (uma imagem
de uma torre que desaba remete a outras imagens de torres que
desabam)” (CHARAUDEAU, 2005, p. 246).
Relembrando Bakhtin (1992), assim como um discurso não é
necessariamente novo, pois é atravessado por outros discursos, as
imagens representadas nas notícias estão interligadas com outras do
mesmo gênero, ou seja, que tratam do mesmo assunto. É conveniente
notar que imagens não-verbais criam projeções e conceitos em
nosso cérebro e, geralmente, são mais bem registradas que palavras.
Então, de fato, para o leitor que acompanha amiúde as notícias da

90
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

cidade serrana, as fotos ajudam a reafirmar a fama de violência, dada


a versão do real que é.
Perelman e Tyteca ainda versam que é viável “chamar de
persuasiva a uma argumentação que pretende valer só para o
auditório particular e chamar de convincente àquela que deveria
obter adesão de todo ser racional” (2002, p. 117). Auditório e orador
estão em conexão. O auditório orienta a forma de o orador conduzir
o discurso e o orador se molda aos atributos do auditório no intento
de conseguir bons resultados. Os textos informativos das notícias,
ditos objetivos, buscam a adesão de um auditório “universal”, “toda
a humanidade, ou, ao menos, todos aqueles que forem competentes
e racionais” (PERELMAN E TYTECA, 2002, p. 14), representado, aqui,
por moradores das regiões próximas, que têm contato direto ou
indireto com o município serrano, o que os particulariza.
Outro fator que incide na não generalização em abundância ou
totalidade/universalidade desse auditório é o acesso à internet,
que nem todos possuem. Na argumentação por convencimento,
diferentemente do discurso persuasivo, usam-se técnicas de
persuasão para ganhar a adesão de significativa audiência, o público
esperado é aquele que irá partir da racionalidade ou da razoabilidade,
premissas necessárias na leitura de textos como esses, que enfatizam
notícias de teor impactante e que atingem direta ou indiretamente
a todos, por ser um problema social. Outro tipo de auditório nessa
notícia abarca o próprio sujeito, quando reflete consigo as situações
existentes (PERELMAN E TYTECA, 2002, p. 34). É o caso do orador que,
além de jornalista, é residente do lugar em que ocorre o incidente.
Parte dos jornalistas responsáveis pelos textos aqui analisados são
de Itabaiana e são afetados também pela violência que noticiam. A
violência, por sua vez, não envolve apenas a razão, mas, sobretudo, a
emoção, e aqui envolve o ethos e o pathos.
O orador precisa descobrir quem são seus destinatários e se
adaptar a eles. Perelman reconhece que o auditório universal é algo
a ser alcançado e de conceito ainda impreciso, uma vez que cada
cultura ou indivíduo poderão ter sua própria concepção acerca do

91
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

auditório universal (PERELMAN E TYTECA, 2002, p. 37). Nos textos aqui


analisados, apesar da aura globalizante da internet, pretensamente
universal, os fatos, locais e valores tendem à particularização do
auditório. A concordância do auditório com relação ao orador acontece
porque o estereótipo de violência alastrado pela cidade já reforça a
tendência para a reafirmação das tragédias, quando ocorrem.

Considerações finais

A violência é um tema que interessa à sociedade, visto que a afeta


visceralmente. Apesar de várias legislações em vigor, o problema
persiste e a análise discursiva permite que se visualize as entrelinhas
dos fatos que nos são apresentados, ao favorecer um viés investigativo
minucioso e cabal para a emissão de um juízo valoroso. Os inúmeros
casos registrados em Itabaiana evidenciam a fragilidade da atuação
policial que permite, cada vez mais, a consolidação do problema e,
consequentemente, seu enraizamento na história da cidade, que
contribui para o estereótipo.
O itabaianense se constrói nesses discursos como um sujeito
que compreende os fatos violentos de forma inesperada. Há uma
quebra de expectativa quando o munícipe é informado da notícia e
sua divulgação faz com que se aguce o sentimento de desnorteio.
É perceptível que há uma relação identitária muito forte, que une
o local e seus nativos, dentro de um todo orgânico, sólido, atuando
como barreira para que se vislumbre o real.
A vinda de uma situação forte, a exemplo de um homicídio,
desestabiliza o itabaianense, gera crise de identidade no tocante
à relação terra > nativo, que se encontra ameaçada, e onde estão
consolidados os laços culturais e familiares. Conveniente observar
que “o passado é um país estrangeiro”, ou seja, difícil de esclarecer,
então, se desconstrói o que ocorreu, que passa por um processo de
condensação.A proximidade entre a sociedade e o local em que se
estabelece fundamenta a coesão de elos e relações emocionais que
se manifestam dentro de uma relação cultural ampla.

92
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

O itabaianense é um sujeito social, como qualquer outro, mas


fortemente influenciado pela ideologia, pelo inconsciente do que se
quer olhar, e assim (re)produz seu discurso. Assim, o ethos prévio
de cidade violenta se confirma no ethos discursivo apresentado nos
veículos midiáticos. Nota-se, então, um ethos que dirige as atividades
humanas de acordo com o que mais convém para chamar a atenção
do interlocutor, seja no modo de apresentar os fatos, seja na relação
social e discursiva que estabelece com sua expressão.

Referências bibliográficas

AMOSSY, R. Da noção retórica de ethos à análise do discurso. In: AMOSSY,


R. (org.) Imagens de si no discurso – a construção do ethos. São Paulo:
Contexto, 2005. p. 09-28.
ARISTÓTELES (384-322 a.C). Retórica. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro,
2011.
BARROS, D. L. P. Estudos do discurso. In: FIORIN, J. L. (org.) Introdução à
Linguística II: princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2003. p. 187-219.
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. Tradução Ângela S.M. Corrêa.
São Paulo: Contexto, 2005.
FERREIRA, L .A. Leitura e persuasão: princípios de análise retórica. São
Paulo: Contexto, 2010.
FIORIN, J. L. Elementos para análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2001.
MAINGUENEAU, D. ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, R. (org.)
Imagens de si no discurso – a construção do ethos. São Paulo: Contexto,
2005. p. 69-92.
_________. Novas tendências em análise do discurso. Tradução Freda
Indursky. Campinas: Pontes, 1997.
MOSCA, L. do L.S. Velhas e Novas retóricas: Convergências e desdobramentos.
São Paulo: Humanitas, 2011.
PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da Argumentação: a nova
retórica. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins
Fontes, 2002. [original de 1958].

93
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

CAPÍTULO 2

LITERATURA ITABAIANENSE
E CONSTRUÇÃO DA IMAGEM
DISCURSIVA DA CIDADE E DE
SEUS MUNÍCIPES

95
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DISCURSIVA DE UMA


CIDADE E DE UM POVO NA LITERATURA DE CORDEL

Márcia Regina Curado Pereira Mariano

Introdução

O município de Itabaiana fica no agreste sergipano e está a 58 km


de Aracaju. É a quarta cidade mais importante do estado de Sergipe,
depois da capital e das cidades de São Cristóvão e Nossa Senhora
do Socorro, que fazem parte da grande Aracaju. Essa importância
vem de seu intenso movimento comercial, facilitado por sua
localização: entre o sertão e a capital. Como rota dos caminhões que
transportam mercadorias das mais diversas, Itabaiana é conhecida
em Sergipe pela variedade de produtos encontrada no comércio
varejista e atacadista local (frutas, verduras, cereais, carnes, peixes,
industrializados, manufaturados, etc.) e pelos preços acessíveis, que
atraem compradores de todo o estado e até de outros estados do
Brasil. Destacam-se o comércio de ouro e a feira livre, que acontece
às quartas-feiras e aos sábados no centro da cidade. De acordo com
a página oficial de Itabaiana na Internet, a feira acontece desde 1888,
fixando-se no Largo Santo Antônio em 1928, onde ocupa hoje uma
área de mais de vinte mil metros quadrados.29
A movimentação comercial e a fama do itabaianense de povo
trabalhador são responsáveis por algumas das alcunhas pelas quais
a cidade é conhecida, como Cidade do Ouro, Celeiro de Sergipe e
Terra dos Ceboleiros, esta última numa referência às plantações e
ao comércio de cebola, característicos na região no século XIX.30

29 http://www.itabaiana.se.gov.br/acidade_comercio.asp
30 http://culturaitabaiana.blogspot.com.br/2011/09/lendas-da-serra-de-itabaiana.html

97
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

Aproveitando-se da presença constante de caminhoneiros vindos de


vários locais do país, passou-se a investir também no comércio de
caminhões, carrocerias e peças em geral para esse tipo de veículo,
além de oferecer serviços especializados (como fretes e oficinas de
conserto, por exemplo), o que levou o município a ser conhecido
ainda como a Cidade dos Caminhoneiros.
É esta a cidade que abriga o campus Professor Alberto Carvalho,
da Universidade Federal de Sergipe, instalado em agosto de 2006.
O campus de Itabaiana integra o Programa de Apoio a Planos de
Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni),
instituído pelo governo federal em 2007. Levando em conta essa
história recente da UFS-ITA, consideramos necessário conhecer
melhor a cidade e seus habitantes, verificar como as imagens de
cidade próspera e povo trabalhador são construídas discursivamente
e quais são as outras imagens de Itabaiana e dos itabaianenses que
emergem de diferentes textos produzidos na região.
Nesta comunicação, analisamos o livro Na feira de Itabaiana
tem?, poema rimado composto por 88 estrofes e de autoria de
Carlos Mendonça, poeta e escritor local, que, por meio do gênero
literatura de cordel, fala não só da feira de Itabaiana, símbolo cultural
e comercial da cidade, mas também da sua gente, trazendo para
seus versos personagens e situações que revelam um município
ativo economicamente e um povo trabalhador, criativo, galanteador
e divertido. O tema sobre o qual se desenvolve o poema, de acordo
com a ficha do livro, é “Os aspectos econômicos, sociais e culturais
existentes nas feiras livres do Nordeste.” (MENDONÇA, 2011, p. 03).
À luz dos estudos da Argumentação e Retórica, da Semiótica
discursiva e da Análise do Discurso francesa, nossos objetivos são
observar, na obra já descrita, as estratégias argumentativas utilizadas
pelo autor para construir ou reforçar imagens discursivas da cidade
de Itabaiana e do povo itabaianense e continuar o diálogo teórico,
já estabelecido por nós em trabalhos anteriores, entre diferentes
abordagens do texto e do discurso. Com esse intuito, retomamos
do Tratado da Argumentação de Perelman e Tyteca os conceitos de

98
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

auditório, valores, lugares e figuras de Argumentação e Retórica.


Da Retórica aristotélica resgatamos as noções de ethos, pathos e
logos, sendo que o conceito de ethos também é visto nos estudos de
Maingueneau e Amossy. Finalmente, situamos, ao longo do trabalho,
a argumentação nos níveis narrativo e discursivo do texto, de acordo
com o percurso gerativo de sentido de Greimas.

1. O ethos como meio de persuasão

Definindo a Retórica “[...] como a faculdade de observar, em cada


caso, o que este encerra de próprio para criar a persuasão.[...].”
(2011, p. 44), Aristóteles apresenta os três meios pelos quais se
pode persuadir: aquele que depende do caráter pessoal do orador
(ethos), e que ele considera “o mais eficiente meio de persuasão de
que (o orador) dispõe”; o que estabelece a relação com o auditório,
levando-o “a uma certa disposição de espírito” (pathos); e o próprio
discurso (logos), naquilo que ele “demonstra ou parece demonstrar”,
ou seja, na escolha do tema e dos argumentos para elaborar um
discurso verossímil (2011, p. 45).
Construída no discurso, a persuasão não prescinde a ele. Assim, o
caráter do orador (o ethos) “[...] deve ser conseguido pelo que é dito
pelo orador, e não pelo que as pessoas pensam acerca de seu caráter
antes que ele inicie o discurso.” (ARISTÓTELES, 2011, p. 45). Ao discutir a
concepção de ethos a partir do ponto de vista da Análise do Discurso de
linha francesa, Maingueneau (2005) evidencia que é possível observar
“[...] sua incidência em textos escritos e em textos que não apresentam
nenhuma sequencialidade do tipo argumentativo, para retomar os
termos de Adam, e que também não se inscrevem necessariamente em
situações de argumentação.” (p. 67). Apesar de concordar com a noção
de ethos como construção discursiva do enunciador, para o autor, vê-la
apenas como “estatuto ou papel” (ou caráter) não é o suficiente, já que
esse ethos evidencia também uma “voz” e um “corpo enunciante” (p.
70). “Assim, a leitura faz emergir uma origem enunciativa, uma instância
subjetiva encarnada que exerce o papel de fiador.” (p. 72)

99
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

Relacionando o ethos ao enunciador, Maingueneau fala em ethos


discursivo e ethos pré-discursivo ou ethos prévio, para Amossy (2005).
Segundo o autor (2005, p. 71), só a primeira noção corresponde ao
modo como Aristóteles aborda a questão e não se pode desconhecer
o fato de que o leitor/ ouvinte (o público) possa construir imagens
do enunciador antes de ele tomar a palavra, seja por que já tenha
informações sobre esse enunciador ou por que cria expectativas
a partir do gênero do discurso ou de “um certo posicionamento
ideológico”.
Por sua vez, relacionando o ethos ao estilo, nos diz Discini: “Ao falar
em estilo, falamos em unidade e em totalidade; unidade, porque há
um sentido único, ou um efeito de individuação; totalidade, porque
há um conjunto de discursos, pressupostos à unidade.” (2003, p.
31). Partindo dessa concepção, podemos tanto incluir o enunciador
do livro Na feira de Itabaiana tem? no conjuntos dos itabaianenses
quanto podemos incluir esse texto no conjunto dos textos produzidos
em Itabaiana, o que nos remete a um projeto maior no qual se encaixa
este artigo, e que pretende observar, num conjunto representativo
de uma totalidade de textos produzidos na cidade e veiculados em
meios diversos, pontos em comum que convirjam para a definição dos
ethé de Itabaiana e dos itabaianenses. Por hora teremos, portanto,
um resultado parcial, que será complementado com outros trabalhos
que virão.

2. ethos dito e ethos mostrado, pathos e logos no livro Na feira de


Itabaiana tem?

Os ethé de um povo “hospitaleiro, honesto e trabalhador” e


de uma cidade “grande” são anunciados (ditos) logo no segundo
parágrafo do cordel:

(01) Itabaiana em Sergipe


No Nordeste brasileiro
É uma grande cidade

100
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

De um povo hospitaleiro
Honesto e trabalhador
É um exemplo agresteiro

Ainda com relação ao ethos dito dos itabaianenses, encontramos


ao longo do texto o adjetivo amigueiro (estrofe 61) e a representação
de um povo animado, como na afirmação de que “uns vão (à feira)
por animação”, de que ele (enunciador) vai à feira “encontrar com
os amigos” e de que “de adultos a crianças/ comportamento é
bacana”. Entretanto, para se depreender o ethos discursivo “[...]
não é necessário que o locutor faça seu auto-retrato, detalhe suas
qualidades nem mesmo que fale explicitamente de si.” (AMOSSY,
2005, p. 09), na verdade, o que vale é o ethos evidenciado, mostrado
pelo modo de dizer, e, eventualmente, o ethos dito (MAINGUENEAU,
2005, p. 70). E para identificarmos esse ethos é necessário analisarmos
o texto como um todo, já que é na relação com o pathos e o logos que
o ethos é construído. Assim, é o conjunto das estratégias persuasivas
que pode nos revelar as imagens discursivas que estamos buscando,
como nos indica Fiorin:

Onde se encontram, na materialidade discursiva da


totalidade, as marcas do éthos do enunciador? Dentro
desse todo, procuram-se recorrências em qualquer
elemento composicional do discurso ou do texto: na
escolha do assunto, na construção das personagens, nos
gêneros escolhidos, no nível de linguagem usado, no ritmo,
na figurativização, na escolha dos temas, nas isotopias,
etc. (FIORIN, 2008, p. 143)

Começamos, pois, buscando indícios do leitor imaginado, o


coenunciador do texto. Com esse intuito, estabelecemos um diálogo
com a Semiótica de linha francesa. De acordo com os estudos
de Greimas, no nível narrativo do texto, aquele que evidencia as
transformações narrativas a partir das relações entre sujeitos e entre
sujeitos e um objeto de valor, a ação dos sujeitos, o modo como se

101
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

comportam e agem no texto, pode ser modificada de acordo com


modalizações. A princípio, qualquer mudança de um estado inicial
que envolva relações entre sujeitos e entre sujeitos e objetos pode
ser estudada a partir do percurso gerativo de sentidos que inclui,
além do nível narrativo, já citado, um nível fundamental, de oposições
semânticas básicas em que os termos assumem forias e tensões
diferentes em cada texto, e um nível discursivo, mais concreto e ligado
à enunciação. Assim, tendo em vista a narrativa implícita na relação
autor-leitor em Na feira de Itabaiana tem?, ou seja, a mudança que
pode ser gerada nos sujeitos a partir da leitura do livro, e a fim de
analisar as estratégias argumentativas presentes no texto, podemos
imaginar que estamos diante da seguinte “historiazinha”31: um autor
que deseja levar o leitor a entrar em conjunção com seu livro, que
é porta de entrada para o desejo de conhecer a cidade de Itabaiana
e seu símbolo cultural e econômico: a feira. Como actantes no nível
narrativo temos, assim, o autor e o leitor (sempre como construções
discursivas), que cumprem o papel de destinador e destinatário, e o
livro, que aparece como o objeto de valor.
O livro aqui analisado apresenta como título uma pergunta: Na
feira de Itabaiana tem?. Por meio dessa questão, o enunciador
instaura explicitamente um enunciatário modalizado por um querer-
saber, ou seja, um leitor que estaria interessado em saber o que é
que se encontra na feira, e compromete-se, julgando-se competente
para isso, a responder à pergunta, firmando com esse leitor um
acordo tácito, sem o qual a argumentação não é possível. A partir do
trabalho argumentativo, esse enunciador quer levar o leitor a crer que
a feira de Itabaiana é sem igual, e a querer-fazer: ir à feira, conhecer a
cidade, comprar, etc., ou seja, quer transformar o enunciatário num
possível próximo visitante da feira de Itabaiana. A colocação desses

31 “A sintaxe narrativa deve ser pensada como um espetáculo que simula o fazer do homem
que transforma o mundo. Para entender a organização narrativa de um texto, é preciso,
portanto, descrever o espetáculo, determinar seus participantes e o papel que representam na
historiazinha simulada.” (BARROS, 2003, p. 16).

102
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

objetivos é explícita no texto, e na 1ª estrofe o enunciador projeta no


enunciatário mais uma modalização, a do dever-saber:

(2) […] Agora você vai ler


O que precisa saber
Da maior feira do agreste (1ª estrofe)
Esse cordel com certeza
É simples e popular
Seu maior objetivo
É nossa feira divulgar […] (86ª estrofe)

No entanto, antes de escolher os argumentos que comporão


o logos, é necessário definir quem é esse auditório, porém, como
afirmam Perelman e Tyteca, não é fácil determinar o auditório a quem
fala o orador, e “[...] essa dificuldade é muito maior ainda quando se
trata do auditório do escritor, pois, na maioria dos casos, os leitores
não podem ser determinados com exatidão.” (2005, p. 22). Dessa
maneira, “[…] em matéria de retórica, parece-nos preferível definir
o auditório como o conjunto daqueles que o orador quer influenciar
com sua argumentação.”32 (PERELMAN e TYTECA, 2005, p. 22)
Na diferenciação entre o tipo de argumentação capaz de persuadir
um auditório particular e um auditório universal, Perelman e Tyteca
(2005, p. 31) afirmam que a argumentação persuasiva “[…] pretende
valer só para um auditório particular [...]” e a convincente para “[...]
todo ser racional”. Os autores ainda colocam que para atingir todos os
auditórios (ou um auditório universal) busca-se a objetividade, com o
“[…] desejo de transcender as particularidades históricas ou locais de
modo que as teses defendidas possam ser aceitas por todos” (p. 29).
Analisando o livro de Carlos Mendonça, observamos que o pathos
imaginado pelo enunciador é, inicialmente, um auditório particular,
o dos moradores do nordeste brasileiro, com quem ele trava um
diálogo informal, já na primeira estrofe:

32 Grifo dos autores.

103
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

(3) Amigos de Itabaiana


De Sergipe e do Nordeste
Escute preste atenção
Seu moço cabra da peste […] (1ª estrofe)33

Ao longo do texto, contudo, esse auditório torna-se mais


abrangente e passa a incluir todos os brasileiros interessados pela
cultura e pelos aspectos sociais e econômicos nordestinos e, por que
não, o mundo, deixando claro que o enunciador também cumpre no
texto o papel de destinador que quer levar o destinatário-leitor a um
querer-fazer:

(4) Quem ainda não conhece


Por esse Brasil a fora
Quando vir a Itabaiana
Vão a feira sem demora
Aproveite a ocasião
E leve no coração
Sua impressão na hora (66ª estrofe)

A imprensa eu agradeço
Por essa divulgação
Que todo mundo conheça
Do litoral ao sertão
No Nordeste brasileiro
Por esse Brasil inteiro
Outra feira não tem (não) (87ª estrofe)

O que comprova que o auditório presumido, apesar da aparente


abrangência, é mesmo um auditório particular (o dos interessados

33 Como nosso objetivo não é realizar a correção gramatical nem ortográfica do texto analisado,
optamos por preservar o texto original.

104
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

pelo nordeste) é o uso de variações linguísticas em diferentes


níveis (cabra da peste, fulôr de agrião, xexelento); a referência à
cultura, como o coco e o reisado, instrumentos musicais (triângulo),
literatura de cordel, contador de história, comidas típicas (manuê,
saroio), frutas da região (pitomba, jaboti, cambucá) e uso de
“medicina natural”; a colocação de valores e crenças específicos
(o “preto veio benzedor”, o rezador); a retomada de aspectos
históricos da consolidação do comércio na região (“No começo não
tinha bancas/ Vendiam tudo no chão […] (5ª estrofe))”; a citação de
nomes de povoados e cidades de Sergipe (Pau quebrado, Cabeça
do Russo, Pé do Veado, Areia Branca, Campo do Brito, Carira...) e
de nomes e apelidos populares (Lipordina, Jinuária, João Mingau,
Marieta, Saduminga, Atolado, Chico Tampa, Zé Tramela, Zé Ruela,
Jatobá, Zefa, Mané... que acabam funcionando também como
argumentos de autoridade).
Ainda no nível narrativo do texto, essa linguagem regional
e informal, incluindo os nomes de produtos, personagens e
localidades, é oferecida como um objeto que o destinador
considera ser positivo para o destinatário, na tentativa de persuadi-
lo, de levá-lo a querer-fazer. Essa estratégia cumpre a função de
interagir com um auditório particular, numa referência a crenças,
valores e conhecimentos em comum, despertando emoções que
levam à identificação entre autor e leitor e ao sentimento de
orgulho de ser nordestino e brasileiro (no caso dos leitores que
usam as mesmas variantes e compartilham da mesma cultura)
ou de provocar o efeito discursivo de “novo”, de “surpresa” (no
caso de leitores de outras regiões do país e/ou daqueles que não
conhecem a literatura de cordel). Neste último caso, alguns usos
podem ser sentidos como figuras de argumentação e retórica
definidas, no Tratado da Argumentação de Perelman e Tyteca,
como “[...] certos modos de expressão que não se enquadram
no comum […]” e, ainda, como “[…] uma estrutura discernível,
independente do conteúdo, ou seja, uma forma […] e um emprego

105
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

que se afasta do modo normal de expressar-se e, com isso, chama


a atenção.” (2005, p. 189-190). 34
Ainda com vistas a levar o leitor a querer-fazer, o autor se baseia
no simulacro de uma boa feira livre: aquela que oferece quantidade
e qualidade. No Tratado da Argumentação, Perelman e Tyteca
definem como lugares da quantidade as “[...] premissas de ordem
geral […]” (2005, p. 94) “[...] que afirmam que alguma coisa é melhor
do que outras por razões quantitativas [...]” (p. 97). Já os lugares da
qualidade, “[…] aparecem na argumentação quando se contesta a
virtude do número [...]” (p. 100), valorizando o “único”, o “original”.
No poema analisado, o autor apresenta, até a 8ª estrofe, objetos
de acordo pertencentes ao real (PERELMAN e TYTECA, 2005, p.
75), mais especificamente, fatos e verdades: apresenta a cidade de
Itabaiana, fala da importância da feira para a economia sergipana
e faz uma breve história da feira, desde a época em que não havia
a parte coberta, até a sua reforma, argumentos que serviriam até
para um auditório universal (o que não tira a possibilidade de serem
questionados).
A comparação com um “Shopping popular” (7ª estrofe) vai
reforçar o argumento de que se encontra tudo na feira e vai também
dar-lhe a característica de modernidade. A comparação também vai
ser vista na 9ª estrofe, em que o autor questiona uma autoridade
nordestina: Luiz Gonzaga, e se propõe a demonstrar que o rei do
baião estava errado em dizer que a melhor feira que existe é a de
Caruaru. Começa aí uma longa lista de argumentos dos lugares da
quantidade e da qualidade, que tem como objetivo comprovar a tese
de que a feira de Itabaiana é a melhor. Estamos, efetivamente, no

34 Em nossa tese de doutorado (MARIANO, 2007) observamos que o que é esperado em um


determinado gênero pode não ser esperado em outro, assim, uma determinada estratégia
argumentativa pode funcionar como figura de argumentação e retórica em um texto e em
outro como um argumento esperado. Pensando especificamente, agora, sobre o livro Na feira
de Itabaiana tem?, percebemos que isso pode ocorrer de acordo com o auditório: para alguns
leitores, a linguagem utilizada pode causar surpresa e caracterizar uma figura de escolha e/ou
de comunhão, de acordo com a tipologia de Perelman e Tyteca (2005, p. 194-203), para outros,
é só um argumento esperado.

106
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

terreno da argumentação, da controvérsia, de diferentes pontos de


vista. Curiosamente, aquele que é questionado não pode se defender,
já que Luiz Gonzaga morreu em 1989 e o livro foi publicado em 2011.
No entanto, o autor desafia não mais o próprio artista, mas aqueles
que o tomam como autoridade no nordeste e aderiram à sua tese,
e é a esses que o enunciador tenta persuadir. O desafio é também a
base do repente ou da embolada, uma mistura de música e poesia
de improviso, muito comum no nordeste brasileiro, em que duplas
desfilam oralmente seus argumentos defendendo teses contrárias, o
que nos leva a perceber a estreita relação entre a literatura de cordel
e esse outro gênero.

(5) Luiz Gonzaga disse


Que a melhor feira que há
É a de Caruaru
Isso eu não vou duvidar
Porém eu vou descrever
Para o Brasil conhecer
Da nossa o seu lugar (9ª estrofe)

Não conheço um só produto


Para aqui não encontrar
Vendedor e comprador
Tem até para sobrar
É tudo bom e bacana
A feira de Itabaiana
Com certeza vai ganhar (10ª estrofe)

Impressiona a longa lista de produtos e serviços colocada da


estrofe 13 até a 60, o que evidencia uma valorização dos lugares da
quantidade: carnes, pratos típicos salgados e doces, peixes e frutos
do mar, frutas, verduras, cereais, utensílios para cozinha, apetrechos
para animais e para transporte animal, roupas, acessórios, temperos,
ervas medicinais, ferramentas, artesanato, armas, bebidas alcoólicas,

107
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

papelaria, literatura de cordel, joias e bijuterias, pássaros, médico,


rezador, benzedor, vendedor de loteria, cabeleireiro, engraxate,
desentupidor... No nível narrativo, serão também objetos positivos
oferecidos ao leitor, já no nível discursivo do texto, essa variedade
desperta os sentidos, tem um efeito sinestésico sobre o enunciatário,
principalmente os nomes de frutas e pratos que figurativizam o tema
principal, feira livre, e remetem a cheiros, gostos, cores e texturas, o
que evidencia uma manipulação por tentação.
Os lugares da quantidade também são os escolhidos para mostrar
que a feira é bem visitada.

(6) Pra feira de Itabaiana


Vem todo tipo de gente
Preto, branco e marrom
Meio assim, meio diferente
Gordo, magro e amarelo
De sapato ou de chinelo
Mas amigueiro e decente (61ª estrofe)

[…] Quem vem aqui recomenda


Por isso é bem divulgada
Gente do Rio de Janeiro
E até do estrangeiro
Êta feira boa danada (69ª estrofe)

O número de visitantes e a afirmação de que eles recomendam


a feira acabam por funcionar como argumentos de autoridade,
principalmente quando o visitante é de longe (do Sul ou do
estrangeiro...). Os vários povoados e cidades vizinhas são citados
em uma longa lista que vai da estrofe 76 até a 82, impressionando,
também, pela quantidade e caracterizando Itabaiana como uma
cidade acolhedora. O silogismo implícito (todos conhecem a feira
de Itabaiana e dizem que é realmente boa, eu gosto de coisas boas,
então, eu também preciso conhecer a feira de Itabaiana) reforça a

108
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

persuasão, fazendo crescer o desejo do leitor de conhecer a famosa


feira. Segundo Perelman e Tyteca (2005, p. 91), “Um dos princípios
hierarquizantes mais usuais é a quantidade maior ou menor de
alguma coisa.”. Assim, além das hierarquias baseadas nos valores,
existem aquelas “[...] baseadas na quantidade de um mesmo valor
[...]”. Vê-se, pois, que o autor afirma que a feira de Itabaiana é a
melhor baseado no número de produtos, serviços e visitantes.
Os valores, que constituem, segundo Perelman e Tyteca (2005,
p. 83), objetos de acordo que pretendem conseguir a adesão de
auditórios particulares, também podem nos auxiliar na depreensão
dos ethé que buscamos. Conforme os autores (PERELMAN e TYTECA,
2005, p. 86), mesmo os “[...] valores universais ou absolutos, tais
como o Verdadeiro, o Bem, o Belo, o Absoluto [...]”,35 quando
têm seus conteúdos especificados, servem apenas à adesão de um
auditório particular. Observamos que os valores presentes no texto
analisado pretendem atingir mesmo esse tipo de auditório, já que se
referem a códigos de conduta nas relações sociais no ambiente da
feira livre, o que vai caracterizá-los como valores concretos, sendo
que “O valor concreto é o que se vincula a um ente vivo, a um grupo
determinado, a um objeto particular […]” (PERELMAN e TYTECA,
2005, p. 87). Sendo fiel ao estilo da literatura de cordel, o bom humor
é constante na referência a essas relações.
O valor da “decência” (“Vem todo tipo de gente [...]/mas amigueiro
e decente” - 61ª estrofe) é privilegiado no texto, sendo também
presumido que o leitor compartilhe dele.

(7) Tem [...]Avó dizendo que é moça


E veio querendo casar (35ª estrofe)
De vez em quando aparece
Uns bocó meio gagá
Bode veio pai de chiqueiro
Se metendo a namorar […] (50ª estrofe)

35 Grifo dos autores.

109
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

Tem velho pulando cerca


E jovens enamorados
Tem velha usando renda
Prá ver o velho animado
Mas também tem gente que
Acha esse bem querer
A tentação do diabo (52ª estrofe)

Na feira de Itabaiana
Tem o galanteador
Todo cheio de lero-lero
Metido a namorador
Meio brabo, meio medroso
Sem vergonha e mentiroso
Xexelento e enganador (57ª estrofe)

Abestado que se entrega


Quando vê um rebolado
Cai por cima sem pensar
Que pode estar enganado
De repente às vezes pode
A cabra vir a ser bode
E alguém sair lascado (58ª estrofe)

Os comportamentos julgados como indecentes (pessoas mais


velhas querendo namorar, a bebedeira (“Porém se exagerar/
Você vai se embriagar/E cair no meio da feira” - 49ª estrofe), o
homossexualismo, a infidelidade) e a falta de bons modos (“Tem
comedor de farofa/ Que é muito mal alinhado/ Quando come se
lambuza/Fica todo engordurado – 51ª estrofe) são sancionados
negativamente, evidenciando o ethos de um povo tradicional, ligado
aos valores morais, familiares e cristãos. Embora em tom humorístico,
característico da literatura de cordel, o enunciador mostra-se
tomado pela cólera diante de alguns comportamentos, usando

110
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

termos que evidenciam essa paixão: bocó, gagá, xexelento, abestado.


Contraditoriamente, no entanto, o autor confirma o estereótipo do
nordestino no que tange à sexualidade (“cabra macho”, namorador),
deixando transparecer uma conduta semelhante àquela que ele
critica. Segundo Reboul (2000, p. 166), “[...] quem diz valores diz
hierarquia de valores [...]”, neste caso, no entanto, a contradição vista
neste texto dificulta a hierarquização dos valores: o itabaianense é
moralista ou namorador?

(8) [...] Todo mundo se diverte


Passa o tempo a conversar
Tomando uma bicada
Ou dando uma namorada
Aqui ou noutro lugar (65ª estrofe)

Tem muita moça bonita


Elegantes e charmosas
Que enfeitam a nossa feira
Com seu perfume de rosa
São lindas essas donzelas
Encantadoras tão belas
Cheirosas, quentes e gostosas (71ª estrofe)

O argumento do sacrifício reforça o ethos do nordestino


trabalhador. Sacrifício esse que o povo faz desde o início da história
da feira, como nos trechos abaixo:

(9) No início não tinha bancas


Vendiam tudo no chão
Chegava em carros de boi
De burro puxado a mão (5ª estrofe)
Tudo começa cedinho
Ainda de madrugada […] (8ª estrofe)

111
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

No entanto, o ethos mostrado vai desvendar uma certa


malandragem ou “jeitinho brasileiro” desse trabalhador, que faz de
tudo um pouco e se vira para conseguir dinheiro:

(10) […] Tem até embromador


Dizendo ser rezador
Da boca toda banguela (34ª estrofe)

Tem até cabeleireiro


Dando uma de pipoqueiro
Jardineiro e coisa e tal (45ª estrofe)

3. Além das palavras

Como leitores, somos levados a uma leitura rápida e ritmada que


evidencia, mais uma vez, a semelhança entre a literatura de cordel
e o repente, relação esta que só pode ser estabelecida por meio da
intertextualidade. O ritmo do poema é resultado da coordenação
sintática de termos e orações, da ausência (proposital?) de pontuação
entre os versos e estrofes e da rima (o 2º, o 4º e o 7º versos rimam
entre si. O 5º rima com o 6º, o 1º e o 3º não rimam com nenhum
outro. (MENDONÇA, 2011, p. 03)). A soma dessas estratégias (do
plano do conteúdo e do plano da expressão) causa uma sensação
de exaustão no leitor. Essa sensação, no entanto, não tem aqui um
caráter negativo, ao contrário, atende à questão que dá título ao livro
Na feira de Itabaiana tem? e aos objetivos do destinador: levar o
destinatário a saber que existe muita coisa na feira de Itabaiana e a
querer-fazer, ou seja, conhecê-la.
Ainda colabora na construção do sentido do texto a parte
gráfica, que traz uma capa em tons de preto e branco que remete
à xilogravura, arte muito difundida no nordeste, e que geralmente
estampa os livretos de cordel. A impressão em papel na cor cru
ressalta a rusticidade e a popularidade do tema feira livre. As figuras
da capa reforçam a intertextualidade com o repente e representam

112
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

personagens da feira que são citados no texto verbal: comerciantes,


visitantes e o repentista, sendo que estes últimos podem ser vistos,
até, como imagens do próprio enunciador e do enunciatário. Além
disso, vê-se a Serra de Itabaiana, que ilustra a “cidade serrana” citada
pelo autor, figurativizando o tema “cidade acolhedora”.

Considerações finais

Levando em consideração que somos sujeitos sociais, podemos


dizer que ao enunciar construímos não apenas um ethos individual,
mas também um ethos social ou coletivo, que nos identifica como
pertencentes a um grupo, refletindo sua ideologia, seus valores e
sua cultura. Assim, colocando-se como um enunciador que pertence
a um grupo (Nossa feira é importante (68ª estrofe), A feira é coisa
nossa (72ª estrofe), Nossa feira é tradição (84ª estrofe)), quando
o autor de Na feira de Itabaiana tem? diz “eu”, no logos, diz “nós”
(eu itabaianense + eles itabaianenses), e quando diz ele/eles (o
povo itabaianense/os itabaianenses), o autor também diz “nós”

113
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

(eu itabaianense + eles itabaianenses). E é como uma unidade da


totalidade de itabaianenses e como representante, filho ou morador
da cidade, que o autor, em sua obra, nos dá indícios dos ethé buscados
no início de nosso trabalho. Muito além da cidade grande e do povo
trabalhador, honesto e hospitaleiro, que são os ethé ditos no cordel,
chegamos, pelos ethé evidenciados, mostrados pelo modo de dizer, a
uma cidade farta, cultural e naturalmente; próspera; movimentada e
em vias de modernização, embora ainda provinciana, e acolhedora.
Seu povo, por sua vez, valoriza e é orgulhoso de sua cultura e de
sua cidade, é hospitaleiro, místico, simples, animado, moralista,
preconceituoso, namorador, trabalhador, esforçado, esperto.
Na seara da antropologia social, Caniello (2003, p. 31-33) relaciona
o ethos ao “estilo” ou “jeito de ser” de um povo e afirma que “[...] o
ethos guarda da estrutura que comporta a tradição de um povo [...]”,
tradição essa que pode resistir mais às mudanças sociais e de tempo
e história do que nas grandes cidades, embora as mudanças também
ocorram. Assim, podemos imaginar que em uma cidade pequena ou
média, como é o caso de Itabaiana (cerca de 85.000 habitantes em
2005), o “estilo” da cidade e do povo é mais facilmente preservado,
visto que a proximidade entre os sujeitos é maior, resultando num
efeito de “identidade grupal”.

Referências bibliográficas

AMOSSY, R. Da noção retórica de ethos à análise do discurso. In: ______


(Org.) Imagens de si no discurso – a construção do ethos. São Paulo:
Contexto, 2005. p. 09-28.
ARISTÓTELES (384-322 a.C.). Retórica. Trad. de Edson Bini. São Paulo: Edipro,
2011.
BARROS, D.L.P. de. Teoria Semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2003.
CANIELLO, M. O ethos sanjoanense: tradição e mudança em uma
cidade pequena. In: Revista Mana. Rio de Janeiro, v.09, abril de
2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-

114
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

93132003000100003&script=sci_arttext>. Acesso em 25 jun.2012.


CULTURA ITABAIANA (Blog). Disponível em: <http://culturaitabaiana.
blogspot.com.br/2011/09/lendas-da-serra-de-itabaiana.html>. Acesso em
25 jun. 2012.
DISCINI, Norma. O estilo nos textos. São Paulo, Contexto, 2003.
FIORIN, J.L. Em busca do sentido – estudos discursivos. São Paulo: Contexto,
2008.
MAINGUENEAU, D. ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, R. (Org.)
Imagens de si no discurso – a construção do ethos. São Paulo: Contexto,
2005. p. 69-92.
MENDONÇA, C. Na feira de Itabaiana tem? Itabaiana: InfoGraphics, 2011.
PERELMAN, C. e TYTECA, L.O. Tratado da Argumentação – A nova retórica.
Trad. de Maria Ermantina de A.P. Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
[original de 1958]
PREFEITURA DE ITABAIANA (site oficial). Disponível em: <http://www.
itabaiana.se.gov.br/>. Acesso em 25 jun. 2012.
REBOUL, Introdução à Retórica. Trad. de Ivone Castilho Benedetti. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.

115
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

ARGUMENTAÇÃO E RETÓRICA: A CONSTRUÇÃO DAS


IMAGENS DISCURSIVAS DA CIDADE DE ITABAIANA/SE
EM OS TABARÉUS DO SÍTIO SARACURA

Flávio Passos Santana

Introdução

O município de Itabaiana é o quarto maior do estado de Sergipe


e fica a 54 km de distância da capital, Aracaju. Nos jornais, revistas
e livros tanto locais quanto nacionais são criadas diversas imagens
discursivas desse município, a saber: Cidade dos Caminhoneiros, da
Cebola, do Ouro, além de Cidade Violenta, dentre outras. Por conta
desse grande número de imagens que Itabaiana recebe, pelo fato
da importância do estudo do ethos (imagens criadas no discurso)
na atualidade e também por fazermos parte do campus Professor
Alberto Carvalho, da Universidade Federal de Sergipe, situado na
cidade em questão, propomos, neste trabalho, observar quais as
verdadeiras imagens criadas deste local. E, para isso, utilizamos como
corpus o livro Os tabaréus do Sítio Saracura escrito pelo itabaianense
Antônio Francisco de Jesus. Em nossas análises, nos atentamos
a observar e a descrever as estratégias argumentativas utilizadas
para a construção do ethos desse local e a forma como o autor
persuade seu auditório a fim de que este entre em acordo com o seu
discurso. Nesta obra, que se assemelha ao romance memorialista,
o autor descreve fatos ocorridos durante a sua infância na zona
rural e urbana de Itabaiana, nas décadas de 40 e 50, e também a
fatos e personagens relacionados à história local. Além disso, nos
atentamos para a forma como a identidade feminina foi estabelecida
no romance por meio do discurso: como a mulher era vista na época;

117
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

seus princípios; suas responsabilidades; seus direitos e seus deveres;


e seu silenciamento diante de um sistema patriarcal. Justificamos a
relevância desta pesquisa por trazer à baila discussões a respeito de
questões sociais, históricas e ideológicas que, dessa forma, acarreta o
resgate e a valorização da cultura da cidade, bem como de seu povo,
tendo em vista a importância que isso possui para a constituição de
uma sociedade. Para tal fim, utilizamos os pressupostos teóricos e
metodológicos da retórica aristotélica, dos Estudos Argumentativos
alvitrados por Perelman e Tyteca (2005), questões relacionadas à
Análise do Discurso de linha francesa propostas por Amossy (2005)
e Maingueneau (2005), e também alguns conceitos da Semiótica
greimasiana de Barros (2003).

1. Os tabaréus do Sítio Saracura e Menino de Engenho

Essa obra, que tem as características do romance memorialista,


por tratar de questões do passado que o orador vivenciou durante
sua infância, nos remete à obra Menino de Engenho, de José Lins
do Rego, escritor memorialista que tratou, em seus romances,
do Ciclo da cana-de-açúcar, na Paraíba. A diferença é que, em Os
tabaréus do Sítio Saracura, o orador irá tratar de assuntos referentes
à Itabaiana, desde a colonização, os combates com os índios locais,
advindo pela construção da árvore genealógica de sua família, toda
a sua infância e finalizando com sua ida para um seminário na capital
sergipana, Aracaju. Portanto, acreditamos ser pertinente a alusão ao
romance de José Lins do Rego, por ambos estarem de acordo com as
características dos romances memorialistas e também por possuírem
uma continuação da história em outro livro, o qual se inicia, por seu
turno, quando os protagonistas saem do sítio/engenho e vão estudar
em áreas metropolitanas – Os tabaréus do Sítio Saracura com a
continuação em Meninos que não queriam ser padres; e Menino de
Engenho com Fogo morto.
Justificamos o grau de importância dos romances memorialistas,
na medida em que, além de utilizarem a arte da escrita para contar

118
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

uma história tida como “verdadeira”, tornam-se livros históricos, pelo


fato de o escritor buscar fontes históricas e utilizar suas memórias
para descrever como era a sociedade e a cultura da época. Sabemos
que a literatura possui esse poder, que é o de mostrar aquilo que
ocorreu no tempo em que a obra foi escrita, no entanto, o romance
memorialista conta as impressões vividas pelo autor, o que talvez
torne esse tipo de livro mais persuasivo pelo fato de haver uma
aproximação maior com o leitor.
Ainda seguindo a linha de raciocínio anterior, trazemos o que diz
Farias (2012), em seu ensaio, ao afirmar que há algo que deve ser
levado em consideração nas narrativas de gênero memorialista que é

[...] a impossibilidade de correspondência “fidedigna”, de


coincidência identitária, entre o “eu” que narra e aquele
que é objeto da narração. Mesmo considerando-se que
“modelo” e ‘redator’ perfazem nas autobiografias uma
única figura, a identidade pretendida é apenas efeito de
uma forma retórica, responsável pela dramatização do
sujeito em uma unidade indissolúvel (FARIAS, 2012, p. 67).

Levando em consideração esses apontamentos, podemos dizer


então que, no gênero memorialista, assim como em todo discurso,
o orador constrói seu discurso com o intuito de obter a adesão por
meio da persuasão de seu auditório. Ora, não é porque nesse tipo
de gênero sejam relatados fatos “reais” que sua composição não se
estrutura no verossímil, numa aparência da verdade, ou seja, em uma
representação da verdade que é alimentada por conhecimentos que
surgem quando não existem provas coerentes. No caso específico do
romance analisado, o orador deixa claro para o seu auditório que,
além de ele escrever fatos de que se recorda, também utiliza casos
contados pela sua mãe e que o livro mescla ficção e realidade e nomes
verdadeiros com casos imaginados e vice-versa. Isso também fica
comprovado quando o é proferido como as pessoas se comportam
ao ouvir as histórias que sua mãe conta.

119
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

Quando surge alguém que a escuta mais um pouco,


no momento seguinte esta pessoa não se lembra
mais dos detalhes do caso e, se vai recontá-lo, o faz de
maneira inadequada, eivando-o de fantasias, misturando
personagens e fatos. Florita incomoda-se com isso, mas
silencia encorajadora. Muito pior seria a morte definitiva
da história (JESUS, 2012, p. 11).

Ademais, além de essas histórias serem recontadas de forma


diferente da narrada por Dona Florita, devemos ressalvar que a
própria Florita acrescentava fatos às narrativas que havia escutado,
incorporando sua própria narrativa às histórias já reproduzidas e
assimiladas: “Tudo que pudesse, mamãe escutava com interesse
dobrado e, depois, na casa de pai Totonho, ou então na volta, em
nossa casa, recontava, floreando um pouquinho onde achava que
merecia, para tornar mais interessante o caso” (JESUS, 2012, p. 16).
Vemos, então, que o importante para a mãe do autor/personagem
é a propagação da história da família, independentemente da
veracidade, além de que o fato de haver “acréscimos” nas histórias
que a matriarca conta pode sugerir que o orador se utilize também
desse “aumento” ou “não fidelidade da história real”, o que evidencia
ainda mais que o romance memorialista não é apenas reprodução de
uma realidade, mas que é construído de acordo com a imagem que
o orador pretende criar sobre aquilo que deseja reproduzir e sobre si
mesmo na construção de um registro literário.
Segundo Farias (2012, p. 68), de acordo com as questões ocorridas
no modernismo brasileiro, a autobiografia pode ser entendida como
um “exercício narcísico de classe”, que tem como base a repetição
sobre si mesmo “via espelho retrovisor”. Isto é, o orador reproduz
aquilo que vivenciou baseando-se nas suas memórias, o que também
nos leva a nos atermos na importância que esse gênero oferece ao
contar a história do passado, numa perspectiva atual:

[...] a narrativa memorialista [contemporânea da pós-


moderna] é necessariamente histórica (e nesse sentido é

120
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

mais próxima das grandes conquistas da prosa modernista),


isto é, uma visão do passado no presente, procurando
camuflar o processo de descontinuidade geracional com
uma continuidade palavrosa e racional mais experiente.
A ficção pós-moderna, passando pela experiência do
narrador que se vê – a si ontem no jovem de hoje, é
primado do ‘agora’ (FARIAS apud SANTIAGO, 2012, p. 73).

Com isso, nota-se a remodelagem do passado narrativo por meio


de uma abordagem que parte do aqui/agora, na qual o narrador se
baseia e expõe suas experiências, fazendo, assim, literatura.

2. A Construção do Ethos

Segundo Aristóteles, o termo ethos é um dos componentes do


que ele chamou de triângulo retórico. Para o estagirita, esse triângulo
é composto pelo ethos, pelo pathos e pelo logos, sendo o ethos a
imagem que o orador constrói de si no momento que profere seu
discurso; o pathos, a imagem que o orador tem do seu auditório, a
qual utiliza para construir seu discurso; e o logos, que, por sua vez,
seria o próprio discurso do orador.
Amossy (2005, p. 09) nos diz que, para construir a imagem de
si, o locutor não precisa falar sobre ele mesmo, porque, a partir
do seu estilo, de suas crenças, de suas competências linguísticas e
enciclopédicas é possível obter essa imagem. Com base em Fiorin
(2008, p. 139), o ethos é explicitado na enunciação enunciada, que
seriam essas marcas deixadas no enunciado às quais Amossy se
referiu. Já Ferreira (2010, p. 90) fala que, atualmente, além de o
ethos ser a imagem que o orador constrói de si no texto, é também
a imagem que ele constrói de outros em seu texto. Por conseguinte,
algo que deve ser sempre enfatizado na análise da construção do
ethos é que essa imagem construída pelo orador não diz respeito ao
autor real, de carne e osso, mas sim a um autor discursivo, um autor
implícito.

121
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

Falar em análise do ethos do enunciador seria o mesmo que


dizer análise do ator da enunciação, porém, Fiorin (2008) vai nos
mostrar que há diferentes níveis enunciativos dentro de um texto,
que são o enunciador, o narrador, e o interlocutor. Passando ao nosso
objeto, podemos dizer que na obra literária que propomos analisar
poderemos encontrar, de forma mais completa e confiável, apenas
o ethos do narrador e do interlocutor, tendo em vista que, para se
encontrar a imagem do narrador, precisamos analisar uma obra
singular, nesse caso, o livro Os tabaréus do Sítio Saracura; e o ethos do
interlocutor é construído por um personagem dentro da obra, “com
todas suas características físicas e psíquicas”. Já a construção do ethos
do enunciador só seria possível de ser realizada se estudássemos
a obra inteira de um determinado autor, nesse nosso caso, seriam
as obras do escritor itabaianense Antônio Francisco de Jesus, cuja
autoria se estende aos livros Meninos que não queriam ser padres,
Tambores da Terra Vermelha, Minha querida Aracaju aflita, etc. Com
isso, quer-se dizer que, analisando só um dos romances, podemos ter
“indícios” do ethos do enunciador, mas a confirmação dessa imagem
só se daria com o estudo do conjunto de sua obra.
Cohen (1975, p. 156) expõe que Aristóteles conceitua a retórica
como “‘a arte de extrair de todo sujeito o grau de persuasão que
ele comporta [...] a faculdade de descobrir especulativamente o
que em cada caso é próprio para persuadir’”. Nesse caso, entramos
na questão dos meios persuasivos, a partir de argumentos, que o
orador deve possuir para que consiga a “adesão dos espíritos”, termo
utilizado por Perelman e Tyteca no Tratado da Argumentação.
Aristóteles, em seu livro Retórica, vai nos dizer que há três meios
de persuasão ocupados pela palavra:

O primeiro depende do caráter pessoal do orador; o


segundo, de levar o auditório a uma certa disposição
de espírito; e o terceiro, do próprio discurso no que diz
respeito ao que demonstra ou parece demonstrar. A
persuasão é obtida graças ao caráter pessoal do orador,

122
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

quando o discurso é proferido de tal maneira que nos


faz pensar que o orador é digno de crédito [...]. Esse tipo
de persuasão, semelhantemente aos outros, deve ser
conseguido pelo que é dito pelo orador, e não pelo que as
pessoas pensam acerca de seu caráter antes que ele inicie
seu discurso [...] pode-se considerar seu caráter; por assim
dizer, o mais eficiente meio de persuasão de que dispõe
(2011, p. 45).

Atentando-se ao caráter do orador que Aristóteles menciona,


Amossy (2005) nos apresenta o conceito de estereotipagem, que,
segundo a estudiosa, ocorre quando se pensa o real tendo como
base uma representação cultural que já existe, “um sistema coletivo
cristalizado”. Nesse caso, o auditório observa e avalia o orador de
acordo com um modelo pré-construído. Isso quer dizer que apenas
a partir de um determinado gênero discursivo, ou de questões
ideológicas produzidas, o auditório pode criar um ethos prévio do
orador. No entanto, esse ethos prévio pode ser confirmado, como
também pode ser modificado, já que a imagem do orador que é
construída no discurso se caracteriza a partir da interação verbal, e
ela é grande responsável pela capacidade de que o orador dispõe
para agir sobre seus alocutários.

3. As Figuras de Retórica e Argumentação

Perelman e Tyteca (2005, p. 189), no Tratado da Argumentação,


trazem informações a respeito dos estudos das Figuras de Retórica
e Argumentação, nos informando que “provavelmente desde que o
homem meditou sobre a linguagem, reconheceu-se a existência de
certos modos de expressão que não se enquadram no comum”. Nesse
sentido, podemos entender que as figuras sempre existiram nos
discursos e são termos e expressões que nos causam espanto ou que
são inesperados no gênero em que foram utilizados. Mariano (2007,
p. 137), em sua tese de doutorado, também adentra esses estudos,

123
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

apresentando que “Há que se tomar cuidado para compreender


que figura não é o desvio que chama a atenção, uma vez que ele é
neutralizado em sua captação, mas o inesperado que significa e que
contribui para a eficácia argumentativa do discurso”.
Os escritores do Tratado divIdem as figuras em três tipos, a saber:
figuras de presença – argumentos utilizados para manter no texto
a presença daquilo que está sendo proferido, tendo o intuito de
convencer o outro pela exaustão, ou seja, seleções feitas pelo orador
que o levam a usar este ou aquele termo, esta ou aquela construção
sintática, a observar este ou aquele tema, sempre tendo em vista a
imagem que ele faz do leitor e essa intenção de surpreender o outro
–; figuras de escolha – escolha de estratégias linguísticas e discursivas
–; e de comunhão – emprego de argumentos que façam com que o
outro se identifique com o seu discurso, para isso, pode ser utilizado,
por exemplo, conhecimentos compartilhados entre o orador e o
auditório.
As figuras se diferenciam dos argumentos esperados pelo fato
de estes, geralmente, persuadirem pela razão, enquanto as figuras
têm em vista a emoção do leitor e vão provocar estranhamento,
riso, choro, saudade de um tempo vivido, etc. Essa saudade, ou a
nostalgia, é uma das principais paixões que o romance memorialista
pretende provocar/conseguir do leitor, na medida em que fala de
um tempo já transcorrido. É importante ressaltar que os gêneros
literários são mais figurativos do que outros, como os acadêmicos,
por exemplo, já que provocar paixões é um dos seus principais
objetivos. Essa figurativização não se encaixa somente no sentido das
figuras de argumentação e retórica, como também na figurativização
da semiótica greimasiana: usam-se temas/termos/expressões que
provoquem paixões e se concretizam mais esses temas para que
gerem sensações sinestésicas (para que o leitor consiga enxergar/
perceber o que é descrito), como a partir da descrição do Sítio dos
Saracura poder visualizá-lo, sentir o aroma que o beiju exala no
momento em que é feito ou o cheiro do mato na roça, além do toque
da lâmina que decepou o dedo da irmã do protagonista.

124
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

Partindo desses conceitos das Figuras de Retórica e Argumentação,


podemos entender que, o título da obra Os tabaréus do Sítio Saracura,
apresenta figuras de escolha e de comunhão, tendo em vista que pode
ser considerado um título diferente, inesperado, por ser composto
por uma expressão dita “não culta” e estar estampada na capa de
um livro, intitulando-o. A figura de escolha aparece no uso do termo
linguístico “tabaréus”, termo este que é utilizado frequentemente no
interior da região, fato este que não torna o livro restrito a pessoas
de outras regiões ou até mesmo do país; além disso, esse termo não
deixará de ser considerado uma figura de escolha por esse motivo,
se pensarmos que pessoas de outros lugares (fora da cidade de
Itabaiana) conheçam ou não o termo, pois acreditamos que, mesmo
assim, causará a sensação de inesperado ao se deparar com o nome
“tabaréus”, por ser mais coloquial, corriqueiro, e até por fazer parte
do vocabulário dos indivíduos das áreas mais interioranas.
Podemos, ainda, apontar aí o uso de uma figura de comunhão,
visto que esse termo é mais restrito aos habitantes locais e pouco
conhecido do público geral, caracterizando um conhecimento
compartilhado com um auditório particular. No entanto, Perelman e
Tyteca (2005, p. 34-35) tratam da intenção de um orador de atingir
um auditório universal; com esse intuito ele “arrisca-se a apoiar-se
em teses que são estranhas, ou mesmo francamente opostas, ao que
admitem outras pessoas que não aquelas a que, naquele momento
ele se dirige”. Esses autores afirmam que uma argumentação que
tem em vista o auditório universal deve convencer o outro “do
caráter coercivo das razões fornecidas, de sua evidência, de sua
validade intemporal e absoluta, independente das contingências
locais ou históricas”. Nesse caso, esse termo pode ser considerado
como figura de comunhão também para o auditório universal, por
conta de possuir uma validade intemporal, ou seja, era e ainda
continua sendo usado na linguagem popular. Além do uso da palavra
“tabaréus” no título do livro e que é desconhecido por alguns, serão
utilizados outros no decorrer da narrativa, só que, desta vez, não se
encontram no dicionário, sendo esta a razão de o escritor indicar,

125
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

no primeiro capítulo, aos leitores, que os significados estarão


disponíveis no final do livro. Isso comprova que o orador utilizou-se
dessa estratégia conscientemente, já pensando em quem poderia
ser seu auditório, mostrando, com isso, um orador eficiente e
preocupado com seu público.

4. Tonho de Zé de Pepedo

A narrativa se constrói a partir da figura do narrador-personagem


Tonho de Zé de Pepedo, que, inicialmente, faz um levantamento
histórico de sua árvore genealógica desde a invasão dos estrangeiros
e das lutas com os índios na fundação de Itabaiana até a sua infância
no Sítio Saracura, localizado nesta mesma cidade, em Sergipe.
Tonho de Zé de Pepedo é o filho “macho” mais velho de Florita e Zé
de Pepedo Saracura. Sua mãe, conta o orador, no início do casamento
com seu pai, ia de quinze em quinze dias para a casa dos pais dela
e sempre levava um dos filhos. Quando ele (o protagonista) era o
escolhido para acompanhar a mãe na viagem se sentia maravilhado
e importante: “Ali me sentia o homem da família, o representante do
marido ausente, e tinha que proteger a fêmea de qualquer predador”
(JESUS, 2012, p. 15). Sempre que a mãe parava para conversar com
algum amigo na estrada “Olhava feio para o intruso e puxava o rabo
da saia da mamãe, insistindo para continuar logo a viagem [...] O
guardião do tamanho de nada, botando as unhas de fora! Acho que
mamãe nem percebia meu ciúme e brigava” (Idem, ibdem). De acordo
com as citações apresentadas, encontramos indícios de um ethos
machista e ciumento do orador, pois ele utiliza o sinônimo “fêmea”
para se referir à mãe, mostrando-se superior por acreditar estar
ocupando o lugar de marido, isto é, ele entende que, no patriarcado,
a figura masculina sobrepõe-se à feminina. Ademais, há o sentimento
de ciúme presente nesses trechos, o que também pode referir-se a
esse machismo explícito, pelo fato de estar ocupando o lugar do pai
e entender que é dono daquela “mercadoria”, se observarmos que
o orador refere-se à mãe como se fosse um animal ao fazer uso da

126
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

expressão fêmea, que, na maioria das vezes, serve para distinguir o


sexo de animais.
Percebe-se também que esse posicionamento está relacionado
ao momento histórico e social retratado, em que a mulher era vista
assim pela sociedade: dependente, inferior e com uma função bastante
limitada: a procriação, o que segue a mesma direção do vocábulo
“fêmea”, adotado pelo autor. É importante salientar que reminiscências
desse tipo de pensamento ainda persistem nos dias atuais, seja nos
salários menores recebidos pelas mulheres, seja pela exploração
do corpo feminino em propagandas e programas de TV ou pela
estereotipagem da imagem da mulher na mídia de um modo geral.
Nesse mesmo capítulo, alguém conta para a mãe de Tonho de
Zé de Pepedo que uma amiga de infância dela, Maria de Tunilo,
havia fugido com Romão e que o casal estava esperando o pau-de-
arara completar a lotação para irem para São Paulo, já que Romão
descobriu que sua recém-mulher casou sem ser virgem:

- Maria não era mais moça desde a última santa missa


dos capuchinhos, acontecida em Itabaiana. Um namorico
ligeiro com um boiadeiro que passou um dia na cidade,
enquanto João ficara no sítio [...]. Como não pegou barriga,
ficou de bico fechado e pediu às amigas que estavam com
ela que guardassem segredo (JESUS, 2012, p. 16).

A mãe de Tonho, curiosa para saber como foi que Romão descobriu
o ocorrido, pergunta para a amiga, que responde: “- Foi fácil! Ele
percebeu a cancela aberta. E ela nem para disfarçar, lavando a dita
antes com pedra-ume (sic). Depois... só foi apertar. Ela abriu o bico e,
em nome do amor, contou o acontecido” (JESUS, 2012, p. 16).
Logo, o motivo da ida do casal para São Paulo se deu por conta
de que, quando Romão foi “devolver” a mulher para seu pai, “este
não a quis receber e ainda fez um gesto de degolamento com a mão
apoiando no cabo da faca peixeira [...]. Todos sabiam que o velho
sangrara uma meia dúzia de cabras em Alagoas, de onde viera corrido
há alguns anos” (JESUS, 2012, p. 16).

127
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

Com base nesses fatos, reitera-se a imagem da mulher como ser


totalmente passivo na época e se vê que ela é tratada como uma
mercadoria, tendo em vista a passagem que João foi “devolver
a mulher” como se fosse um objeto que veio com defeito e exigia
devolução. No entanto, essa devolução não ocorreu por conta da
figura perigosa que era o senhor Tunilo, a partir disso, podemos
relacionar o itabaianense como homem perigoso e valente. Isso já foi
levantado em trabalhos anteriores36.
Ainda com base no casamento de Maria e João, podemos
evidenciar um povo que valoriza, dentro do tempo e do espaço
retratados, a virgindade acima do amor, já que Romão não aceita sua
mulher após descobrir que esta não é mais “moça”. Também vemos a
figura da mulher como “aventureira”, pelo fato de Maria ter perdido
sua virgindade com um boiadeiro enquanto João “ficara no sítio
empatado numa farinhada emendada”. Outra questão de relevante
valor é a valorização da crença popular, quando é dito que se fosse
utilizado a “pedra-ume” na primeira noite com o marido, este não
teria descoberto que Maria não era mais virgem.
Essa valorização da cultura popular tem grande destaque no
decorrer do livro, como, por exemplo, no capítulo 15, que diz
respeito à grande mortalidade infantil que havia na região naquela
época, e isso por conta da falta de conhecimento e de médicos. O
orador elenca alguns “remédios” e simpatias que eram indicados
pelos mais velhos:

Seriam os remédios malucos, como urina quente para


curar ouvido estourado de pus, ou chá de casca de baratas
para curar um monte de doenças? Ou rezas fortes para
espantar a rosa suja [...] Além das simpatias... Vinte talhos
no tronco do cajueiro entremeados com reza: “cobreiro

36 Pudemos evidenciar, em trabalhos anteriores, a imagem de itabaianenses que fazem uso


da valentia como forma de defesa e que se assemelham a homens perigosos, como o famoso
Lampião. Esse trabalho foi publicado na Revista Eletrônica EID&A (Estudos Integrados em
Discursos e Argumentação) da Universidade Estadual de Santa Cruz. Disponível em: http://
www.uesc.br/revistas/eidea/revistas/revista5/eidea5-05.pdf

128
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

brabo, cortei a cabeça e o rabo”, para secar as feridas


purulentas provocadas pelo mijo do “botó”. Para curar
verrugas, picotar uma maniba verde na intenção de cada
uma verruga e depois jogar a maniba no telhado [...] Os
dentes de leite arrancados devem ser jogados no telhado
enquanto o desdentado canta: “Mourão, mourão! Tome
seu dente podre e me dê um são!” [...] “Nervo torto,
carne quebrada e osso rendido! São Frutuoso é que
cura tudo! Com as palavras de Deus e da Santa Virgem
Maria, amém!” era o trecho de uma reza para curar o
que muitos médicos nem operando conseguiam fazê-lo”
(JESUS, 2012, p. 85-86).

Nessas últimas linhas, vê-se a força que a fé divina possuía diante


da medicina, disponível para poucos naquele tempo, já que se afirma
que essa reza cura o que muitos médicos não conseguem. Isso
mostra o tratamento de um povo que, além de acreditar nas crenças
populares, é muito religioso e dá muito valor à fé e à tradição.

5. Os Tabaréus

Segundo o Dicionário Magno de Língua Portuguesa, o conceito de


tabaréu diz respeito a “s.m. Soldado inexperiente. (Fig. Pessoa tímida.
(Bras.) Sertanejo, caipira. Fem. Tabaroa” (p. 837). De acordo com o
que é descrito no livro, podemos entender o tabaréu como sendo o
habitante de povoados mais retirados, aquele que é inexperiente, que
não conhece as coisas, que não sabe se vestir e falar “corretamente”,
que é “diferente” das pessoas que moram na cidade por ser mais
rústico. Para comprovar esses fatos, exemplificaremos com episódios
mostrados na obra.
Como dissemos, o tabaréu também é conceituado como aquele
que é inexperiente, e o episódio que selecionamos para exemplificar
isso se refere especificamente à tabaroa (feminino de tabaréu)
Francisca, que se casou com seu tio. Mas, antes de contarmos a
inexperiência de Francisca, explicaremos, de acordo com a obra,

129
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

como tudo aconteceu. Segundo o orador, naquela época era normal


o casamento entre membros da mesma família. Quando Francisco
(futuro esposo e tio de Francisca) ficou viúvo, tinha muitos filhos,
mas resolveu casar-se novamente e pediu a mão de Francisca
“muito pobre e tida como retardada”. Os pais da moça aceitaram o
casamento, visto que Francisco “tinha posses” e “viram no pedido de
casamento mais uma oportunidade de negócio” (JESUS, 2012, p. 68).
Já o padre dizia que só realizaria o casamento do tio com a sobrinha
com a autorização do Papa, o que desanima totalmente a mãe de
Francisca: “Como é que um papa, em Roma, vai perder tempo em
autorizar um casamento aqui em Itabaiana?” (JESUS, p. 69). Em vista
desse contratempo, Francisco promete ao padre recuperar as duas
torres da igreja e, alguns meses decorridos, “depois de muitas idas
do noivo à igreja, e o iminente risco de as torres da matriz ruírem
pelo adiamento contínuo do início das obras” (Idem, Ibdem) chega a
carta do Papa autorizando o casamento.
A figura da tabaroa Francisca é construída a partir de sua
inexperiência sobre questões relacionadas ao ato sexual. Pelo fato
de a personagem não ter engravidado ainda, quando seu tio-esposo
já havia tido quase vinte filhos, suas amigas lhe perguntam o motivo
da demora da chegada do primeiro filho do casal:

- Eu acho que o problema é meu. Nunca devia ter casado.


Toda noite, quando tio Francisco se levanta de manhã para
tirar o leite das vacas, eu deito no seu lado da cama, ainda
quentinho. Tiro toda a minha roupa e fico aconchegada ali
por mais de uma hora. Mas não fico prenha. Não sei mais
o que fazer (JESUS, 2012, p. 69).

Nesse caso, a inexperiência de Francisca a caracteriza como tabaroa,


mas essa imagem é logo desconstruída pelo fato de suas amigas a
ensinarem como deveria fazer para engravidar. Logo depois, Francisca
aprende as artimanhas e ainda acaba tendo cinco filhos com seu
tio-esposo. Para, além disso, é interessante repensar, a partir desse

130
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

episódio, a imagem da mulher novamente vista como um ser objetal.


Isso é reforçado, na narrativa, quando os pais de Francisca aceitam o
casamento da filha como uma forma de negociação de uma mercadoria,
já que eram pobres e o futuro marido possuía algumas posses, nesse
caso, o casamento traria benefício para eles. Sobre a imagem do
padre, por seu turno, podemos fazer uma alusão ao padre e ao bispo
presentes na obra de Ariano Suassuna Auto da compadecida, em que
o escritor faz uma denúncia, de maneira cômica, dos atos corruptos
cometidos pelos religiosos. De forma semelhante, na obra que compõe
o nosso corpus, vemos que o interesse do padre na reforma das torres
é mais importante do que sua palavra inicial, que era fazer o casamento
apenas com a autorização do Papa, pois o orador deixa indícios de que
essa autorização não chegou, mas que foi forjada, como uma troca de
favores que beneficiaria as partes envolvidas.
Segundo o escritor, ele não gostava de ser chamado de tabaréu.
Para ele, era uma ofensa e o irritava. No entanto, apesar de não
gostar, foi chamado assim diversas vezes, tanto pelas tiradeiras de
junco da lagoa quanto pelos meninos que moravam na cidade, visto
que tinha que passar pela casa deles sempre que ia para a cidade de
Itabaiana. Pela forma como o orador descreve essa negação do termo
quando criança, ele nos mostra que a expressão era tida como algo
horrendo e de baixo calão, já que, quando descreve as tiradeiras de
junco e os meninos da cidade, ele constrói uma imagem de pessoas
que, para ele, não deveriam chamá-lo de tabaréu por pertencerem
a uma classe socioeconomicamente tida como inferior a que ele
pertencia como se pode notar em: “Até as tiradeiras de junco da
lagoa, mulheres pobres que moravam em pequenos casebres na
periferia de Itabaiana” (JESUS, 2012, p. 162). “Era um bando de
moleques imundos, que brincava de bola ‘marraite’ no chão batido
em frente a um casebre” (Idem, p.165). Nesse caso, para ele, o que os
diferenciava era o lugar de onde vinham: Tonho, do Sítio; e os outros,
da cidade, e isso, por si só, demarcava a inferioridade que viam nele.
Outras expressões que ele considerava como ofensa eram “Papa-
terra” e “Amarelão”, pois, segundo ele, “Essas ofensas me feriam

131
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

profundamente. Não que os xingamentos fossem injustos. Mas


não aceitava ser apontado publicamente como tal” (JESUS, 2012,
p. 165). Como o orador evidencia, ele não gostava de ser chamado
de tal modo, apesar de saber que comia terra. Nessa perspectiva, o
capítulo 30 trata das crianças que comiam terra, inclusive Tonho (o
protagonista). O “lanche” acontecia, conforme conta o orador, por
ser um “vício incontrolável”, além de que o barro vermelho “cheiroso
[...] enchia a boca de água só de pensar” (Idem p. 167-168). Essa
comilança de terra também os torna tabaréus, visto que a ação
acontecia apenas com os meninos do sítio, talvez por serem muito
inocentes ou inexperientes e por não saberem o risco que corriam.
O fato de os meninos da cidade o chamarem de “Papa-terra” indica
que os meninos da rua não possuíam esse hábito, este que é apenas
mais um motivo que comprova e conceitua os tabaréus como sendo
os moradores do Sítio.
Mediante tais acontecimentos, fica evidenciado que, para o
perfil social da época, o mais importante para o status social era a
localização da moradia e não o poder econômico das famílias. Os
que residiam no campo até podiam ter mais posses do que alguns
moradores das cidades, mas estes últimos se sentiam superiores por
estarem inseridos na modernidade. Semioticamente, podemos ver
aqui uma oposição natureza X cultura, em que o primeiro termo é tido
como negativo, bem como a oposição moderno X ultrapassado, em
que aquele é visto como positivo. É mostrado que morar na cidade é
valorizado, além de ter hábitos citadinos, e que a vida e os costumes
dos moradores da roça são repudiados. Na verdade, isso perpassou a
história de muitas famílias nordestinas no século XX: não importava
se um parente ia para a capital de seu estado ou para a cidade de São
Paulo (tida como o “modelo de modernidade”) e não conseguia se
instalar de forma digna. O que importava é que ele estava na cidade
grande! Hoje, embora em escala menor, ainda há essa valorização, e
os termos tabaréu, caipira e Jeca são considerados pejorativos, sendo
utilizados para inferiorizar o indivíduo que está longe dos grandes
centros metropolitanos.

132
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

6. A mulher em Os tabaréus do Sítio Saracura

No capítulo 34, em que são descritos os procedimentos para o


feitio da farinha, o orador expõe qual a fonte de renda de sua mãe e
de todas as donas de casa, em todos os sítios:

A tapioca ficaria ali até o final da farinhada, sendo acrescida


com a que vinha de outras prensas, formando uma camada
branco-amarelada no fundo do cocho. Pertencia a mamãe!
Ela podia vender apenas a tapioca da prensa e os ovos das
galinhas [...]. Não adiantava pedir dinheiro a papai. Vez
por outra, lavando a roupa no tanque, mamãe encontrava
alguma moeda perdida ou uma nota solitária e amassada lá
no fundo do bolso da calça da feira. (JESUS, 2012, p. 193).

Nota-se, nessa passagem, como Dona Florita (mãe do orador),


além de trabalhar na sua própria casa e nas farinhadas, ainda tinha
que vender a tapioca e os ovos para obter algum dinheiro, já que,
como foi dito, seu marido não lhe ajudava financeiramente. Além
disso, a renda que essas mulheres conseguiam com a venda dos
produtos era destinada para comprar roupas para os filhos, linhas,
botões, “tudo que não fosse grande”. Isto é, a renda que conseguia
não era destinada a algo específico para elas, mas para os filhos e
utensílios para a casa.
Aqui, mais uma vez, vemos a força de vontade e o grande
desempenho da mulher que, pelo fato de o marido não deixar dinheiro
à sua disposição, vai em busca de outras fontes de renda, mesmo
tendo diversas obrigações com o sítio e com a família. Também vemos
a mulher sendo inferiorizada, já que devia se contentar com as sobras
e não tinha independência financeira. Nessa perspectiva, ocupa um
lugar secundário na família, não sendo responsável pelo sustento da
casa, mas por detalhes ou serviços e objetos menos valorizados.
D. Florita, apesar de passar por essa submissão que é retratada na
obra, mostra-se como uma mulher que consegue aquilo que deseja.

133
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

Vejamos a passagem em que ela sabe que o marido irá discordar em


colocar a filha no curso de corte e costura, mas não perde a esperança:

Sabia que papai não iria concordar, reagiria com raiva.


Mas, depois de tantas derrotas, já aprendera alguns
atalhos que poderiam levá-la a uma meia vitória. A sua
persistência e, algumas vezes mesmo, a intransigência a
fariam sofrer muito a vida inteira. Mas podem ter sido o
que nos transferiu para outro mundo, diferente do que o
destino inicialmente nos reservara [...]. – Mas que mulher
implicante é essa?! Não tá vendo que não dá certo?...
Para que Marinês aprendendo a costurar? [...]. Apesar
de discordar, uma semana depois, no sábado, ele mesmo
estava levando a filha na garupa do cavalo para a escola de
corte e costura (JESUS, 2012, p. 208-09).

Isso também se repete quando D. Florita anuncia que colocará


Tonho na escola por acreditar que já está na hora de ele começar a
estudar:

Mamãe achava que eu deveria ir para a escola, já fizera seis


anos. E tomou suas providências, anunciando enquanto
carregava os pratos de feijão para mais um almoço: - Na
semana que vem, Tonho vai para a escola. Já falei com
dona Zinha. Papai não gostou da ideia. Logo agora que
eu ficaria mais forte e começava a ajudá-lo, vinha essa de
escola. Mas ele sabia que não conseguiria escapar. Mais
cedo ou mais tarde, mamãe ia conseguir (JESUS, 2012, p.
224).

Dessa forma, D. Florita acaba sendo um exemplo de “rebeldia”


para as outras mulheres da região, tendo em vista que, mesmo sabendo
da aversão do marido por colocar os filhos na escola, acaba insistindo
e conseguindo aquilo que ela almeja para os filhos. Por conta disso, ela
acaba sendo a grande responsável pela mudança da família Saracura.
Observa-se que o próprio autor, que declara não ter nenhum jeito para

134
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

a lida, acaba sendo beneficiado por essa força feminina de D. Florita.


Portanto, o pai não determina o futuro dos meninos. A mãe não queria
que a vida de seus filhos se repetisse como a das pessoas da região,
por isso os encaminhara para os estudos.
Assim sendo, a próxima geração, sem dúvida, já seria diferente,
pois os meninos e as meninas estudaram, aprenderam um ofício,
alguns fizeram faculdade e um até se tornou escritor. E isso não será
apenas refletido na família Saracura, irá se estender por todos os
tabaréus, pois, dessa maneira,

[...] outros pequenos tabaréus começaram a achar que


o seu mundo não era mais tão pequeno. Muitos deles
pensaram até que lhes pertencia por inteiro e ocuparam
suas esquinas com pequenos comércios, suas estradas com
caminhões de carga e os primeiros lugares nos vestibulares
das faculdades da capital (JESUS, 2012, p. 237).

Enfim, em linhas gerais, a imagem de D. Florita é mostrada como


uma mulher guerreira e que luta pelos seus desejos e batalha por
melhorias para sua família, mesmo sabendo das dificuldades que
possa encontrar pela frente. Trata-se de uma mulher que, por não
ter tido a oportunidade de estudar como se deve, sabia de sua
importância e almejou isso para os filhos e acabou conseguindo,
mudando, com isso, não só o destino da família Saracura como
também possibilitando a mudança de postura de outros tabaréus.

Conclusões

A partir da análise realizada, podemos constatar que, mesmo


sendo um romance memorialista, no qual o narrador é um dos
personagens que vivenciou alguns fatos, estes não podem ser lidos
como plenamente realísticos, tendo em vista a passagem, no primeiro
capítulo, em que o orador fala que a obra mescla ficção e realidade,
além de haver “nomes verdadeiros em casos imaginados, e vice-

135
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

versa”. (JESUS, 2012, p. 11) Todavia, mesmo contendo esses causos


imaginados ou não, devemos levar em consideração o teor histórico
e cultural que apresenta, devendo ser considerado como uma obra
capaz até de ser igualada a livros canônicos da literatura nacional,
por tratar de ocorrências que revelam tanto aspectos da história e da
cultura da cidade de Itabaiana, quanto do estado de Sergipe.
Em relação ao ethos ou aos ethé evidenciados, podemos inferir
que o ethos do orador mostra-se o de um homem culto, que, apesar
de ter vivido no campo e ter sido um tabaréu, conseguiu se sobressair
e alcançar um status pouco alcançado por moradores daquela região.
Além disso, revela-se como uma pessoa preocupada com a história
e a cultura de sua cidade, visto que são retratados, na obra, crenças,
costumes e tradições do tempo e do espaço focalizados, mas que,
porventura, ainda podem vigorar na região.
Com relação ao termo tabaréu, vimos que ele caracteriza pessoas
desprovidas de experiência, pessoas inocentes, que seriam os
caipiras, e que possuíam/possuem hábitos diferentes das pessoas da
cidade. A imagem do tabaréu construída no texto não diz respeito
à classe socioeconomicamente que se situa, tendo em vista que o
orador retrata, na obra, os meninos da cidade e as tiradoras de junco
sendo mais pobres do que ele.
Além dessas imagens construídas, encontramos também a do
homem machista e a da mulher batalhadora mesmo diante das
dificuldades que a vida impôs a esta, bem como a representação da
passividade, da inferioridade e da animalização pelas quais a mulher
passava na época; notam-se ainda as imagens de um deus vingativo
ou maléfico; e a imagem das pessoas que colocam a religião acima
de tudo, que acreditam nas crenças e vivem de valores tradicionais,
próprios da cultura popular.
Também encontramos, na figura de D. Florita, a mulher guerreira,
que não desiste de seus ideais e que quer o melhor para os seus
filhos acima de qualquer coisa. E que, por conta disso, acabou
transformando o destino não só dos pequenos Saracuras como
também dos outros tabaréus da região.

136
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

É notório destacar o fim do romance, tendo em vista que ele


termina com a ida de Tonho para estudar na capital, e o orador nos
esclarece que a continuação da história estará presente no livro
Meninos que não queriam ser padres. Isso nos faz identificar um
dos mecanismos de manipulação, a tentação, posto que é proferida
previamente a continuação da história em outro livro, fazendo com
que o leitor fique curioso e compre sua continuação a fim de saber
como se desenrola essa história. Essa extensão da narrativa não nos
impede de explorarmos ainda mais, em trabalhos posteriores, a
análise da história do menino Tonho, agora fora do ambiente rural e
que, devido a isso, pode, talvez, vir a deixar de ser um tabaréu.
Destacamos, neste trabalho, a importância de estudarmos uma
obra de um escritor local, tendo em vista a riqueza histórico-cultural
que o livro possui, fazendo com que as nossas análises ajudem outros
pesquisadores, ou até mesmo professores e alunos tanto do Campus
quanto da cidade, a conhecerem fatos que desconheçam e também,
a partir das análises aqui apresentadas, tornem-se leitores mais
críticos e compreendam a importância dos estudos da argumentação
tanto na nossa vida acadêmica quanto na nossa vida pessoal.

Referências Bibliográficas

AMOSSY, R. Da noção retórica de ethos à análise do discurso. et all. In:


Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto,
2005. p. 09-28.
________. O ethos na intersecção das disciplinas: retórica, pragmática,
sociologia dos campos. et all. In: Imagens de si no discurso: a construção do
ethos. São Paulo: Contexto, 2005. p. 119-144.
ARAÚJO, N. Cultura. In: Diccionario de estudios culturales latinoamericanos.
SZURMUK, Mônica; IRWIN, Roberto MvKee (coords.). México: Siglo XXI:
Editores Instituto Mora, 2009, p. 71-74.
ARISTÓTELES (384-322 a.C). Retórica. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro,
2011.

137
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

BARROS, D. L. P. Estudos do discurso. In: FIORIN, José Luiz (org.) Introdução


à Linguística II: princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2003, p. 187-219.
COHEN, J. et all. In: Pesquisas de Retórica. Petrópolis: Vozes, 1975, p. 147-
221.
FARIAS, S. L. Ramalho de. Memorialismo, autobiografia e narrador pós
moderno: a prosa literária brasileira na literatura de Silvano Santiago. In:
Iris, Recife. v. 1/ nª 1/ p. 67-76, 2012.
FIORIN, J. L. Em busca do sentido: estudos discursivos. São Paulo: Contexto,
2008.
JESUS, A. F. Os tabaréus do Sítio Saracura. Aracaju: Info Grafics Gráfica e
Editora, 2012.
Magno dicionário brasileiro de língua portuguesa/coord. Raul Maia Jr.,
Nelson Pastor. – São Paulo: Difusão Cultural do livro, 1995.
MAINGUENEAU, D. ethos, cenografia, incorporação. et all. In: Imagens de
si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005. p. 69-92.
MARIANO, M. R. C. P. As Figuras de Argumentação como estratégias
discursivas. Um estudo em avaliações no ensino superior. 2007. 231 f.
Tese (Doutorado em Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo.
________. A construção da imagem discursiva de uma cidade e de um povo
na literatura de cordel. Estudos Linguísticos, São Paulo, 42 (3), p. 1377-
1388, set-dez 2013.
PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da Argumentação: a nova
retórica. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins
Fontes, 2002. [Original de 1958]
SANTANA, F. P.; MARIANO, M. R. C. A construção do ethos de uma cidade e
de seus habitantes em uma revista local. In: EID&A - Revista Eletrônica de
Estudos Integrados em Discurso e Argumentação (UESC). Ilhéus, n. 5, p.
74-88, dez. 2013.

138
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

CAPÍTULO 3

TRADIÇÕES E
IDENTIDADE DISCURSIVA

139
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

VALORES E IDENTIDADE DE UM POVO REVELADOS


PELA LINGUAGEM NÃO VERBAL37

Michelle Lima
Márcia Regina Curado Pereira Mariano

Introdução

Diferentemente da Linguística, que toma a frase como unidade


máxima de estudo da língua e da linguagem, a Semiótica preocupa-
se com o texto, defendendo que o sentido da frase depende do
seu todo. O texto, então, de acordo com Barros (2003), sempre diz
alguma coisa, e o objetivo da Semiótica é mostrar o que se diz e como
o texto faz para dizer o que foi dito.
Ainda de acordo com a referida autora, o estudo do texto deve
contemplar tanto seu aspecto interno – organização textual - quanto
o externo – os mecanismos de produção e recepção de texto.
Nesse sentido, texto não é apenas onde a linguagem verbal se faz
presente, mas toda manifestação que apresenta esses dois aspectos.
O importante é que toda realização textual, independente de sua
forma, procura convencer o enunciatário/auditório àquilo que se
objetiva, fazendo assim, uso da retórica.
Esse auditório, o pathos, é quem vai aprovar ou não o discurso,
o logos, que o enunciador/orador, o ethos, proferiu. Como o pathos
cumpre um papel decisivo, o orador vai adequar sua fala a fim de
estabelecer um acordo com o seu auditório. Para isso, como um dos

37 Este artigo é resultado de pesquisas realizadas ao longo do ano de 2013, durante o


desenvolvimento do projeto “Análise de textos persuasivos”, sob coordenação da Profa.
Dra. Márcia Regina Curado Pereira Mariano, do Departamento de Letras de Itabaiana, da
Universidade Federal de Sergipe.

141
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

recursos discursivos, basear-se-á nos valores que acredita serem os


dos seus ouvintes ou leitores. De acordo com Perelman e Tyteca, no
Tratado da Argumentação (2005, p. 06), “[…] é em função de um
auditório que qualquer argumentação se desenvolve”. Então, como
seria possível descobrir quais os valores de um auditório? Através de
outros textos que também lhe foram alcançados, porque “a cultura
própria de cada auditório transparece através dos discursos que lhe
são destinados” (PERELMAN e TYTECA, 2005, p. 23).
Partindo dessas considerações, este trabalho faz uma análise
discursiva dos cartazes que divulgaram a Festa dos Caminhoneiros
de Itabaiana de 2012, 2013 e 2014, com o objetivo de identificar
os valores desse povo e como esses valores estão hierarquizados,
colaborando, assim, para a depreensão de sua identidade discursiva.
Ainda estabelecemos uma relação entre essa festa e a Festa de Santo
Antônio, que acontece no município na mesma época. Tomamos
como ponto de partida o ethos prévio e o ethos dito dos itabaianenses,
conhecidos como um povo trabalhador e religioso, e observamos
se os valores evidenciados nos corpora selecionados reforçam essa
imagem inicial ou nos mostram, discursivamente, um novo ethos,
conceito este tomado aqui como identidade ou imagem discursiva
do enunciador. Para isso, buscamos o suporte teórico de conceitos
da Retórica, da Teoria da Argumentação de base aristotélica e da
Semiótica greimasiana, além de trazermos informações gerais com
o intuito de contextualizarmos sócio-histórica e culturalmente os
textos analisados.
Além desses aspectos, a fim de mostrarmos a importância dessas
festas para o município, bem como para conhecer um pouco da cultura
desse povo e dos valores que demonstram possuir, recuperamos
alguns conceitos de cultura e refletimos como, a partir das definições
apresentadas, podemos definir essas festividades.
Deste modo, na primeira parte do nosso artigo, trazemos
um levantamento do contexto histórico e social da Festa dos
Caminhoneiros e da Festa de Santo Antônio, que ocorrem no mês
de junho no município de Itabaiana e que, como se verá adiante,

142
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

estão intimamente relacionadas. Depois, com o auxílio de estudos


da Semiótica Visual de base greimasiana de Pietroforte (2008) e
Hernandes (2005), realizamos a análise da linguagem não-verbal
dos cartazes de 2012, 2013 e 2014 a partir da descrição das imagens
que neles estão representadas e refletimos sobre o que elas podem
nos revelar da identidade discursiva dos munícipes, retomando,
nesse ponto do trabalho, conceitos como o de ethos, de auditório
e de valores com base nos estudos da argumentação e nos estudos
retóricos. Em seguida, questionamos se essas festividades podem
ser tomadas como manifestações culturais. Por fim, as considerações
finais pontuam as principais reflexões desenvolvidas no trabalho.

1. Conhecendo as festas itabaianenses

De acordo com o site da prefeitura da cidade, Itabaiana é um


município do agreste sergipano, localizado a 51 km da capital,
Aracaju, e que tem, atualmente, cerca de 90 mil habitantes. Ocupa
uma área de 364 Km2 e encontra-se na parte central do estado. Além
de ser o município mais importante do agreste sergipano, também
possui o maior comércio do interior de Sergipe.
A Festa dos Caminhoneiros de Itabaiana é uma tradição que
já dura 47 anos. A cidade é conhecida como a capital nacional do
caminhão, pois possui o maior percentual de caminhão por pessoa
do país, numa média de 1 caminhão para cada 9 habitantes; criou-se,
assim, a imagem discursiva de um povo trabalhador. É importante
destacar que o senador sergipano Eduardo Amorim, natural de
Itabaiana, lançou um projeto de lei em favor de melhores condições
de saúde pública para os caminhoneiros, através da PLS 407/2012, e
outro pela nomeação oficial de Itabaiana como capital nacional do
caminhão na PLS 10/201338.

38 Toda a matéria sobre a atuação do senador Eduardo Amorim está disponível no site: http://
www12.senado.gov.br/noticias/materias/2013/06/11/amorim-registra-importancia-dos-
caminhoneiros-para-economia-de-itabaiana-se

143
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

Além da tradição dessa homenagem aos caminhoneiros, em todo


dia 12 de junho, no dia 13 é feriado municipal pelo dia de Santo
Antônio, que é padroeiro da cidade. Desse modo, nesse período
festivo, há uma fusão das duas festas, tanto que fica difícil separá-las.
Para muitos, o que parece é que, nesse período do ano, Itabaiana
tenha apenas “uma” grande festa.
A religiosidade do município não é muito diferente da que existe
na maior parte das cidades de pequeno e médio porte do país. A
colonização portuguesa e a transferência da religião lusitana para
nossas terras ainda garante uma maioria católica e, junto a isso, uma
continuidade de homenagens e festas direcionadas aos seus santos.
Em Itabaiana, o diferencial é a lenda do Santo Antônio fujão que,
conta-se, mudava (e na verdade era mudado) de lugar durante a
noite para debaixo de uma quixabeira, onde foi construída, já que
“assim ele queria”, a igreja da cidade. Pela tradição do próprio povo e
pela lenda que aumentou a popularidade do santo, Itabaiana ganhou
também a fama de cidade religiosa.
Na festa religiosa, que geralmente dura uma semana, há, dentre
outras atividades, o trezenário em homenagem ao santo. O trezenário
é um evento totalmente organizado pela igreja católica local, já
a organização da Festa dos Caminhoneiros é de responsabilidade
da prefeitura da cidade. No Trezenário acontecem exatamente
treze noites de procissão e missa (por isso o nome), sendo que em
cada dia uma categoria profissional é representada: estudantes,
comerciantes, motoqueiros, carroceiros, entre outras, sendo o dia 12
destinado à homenagem aos caminhoneiros. É importante lembrar
que o padroeiro dos caminhoneiros é o santo conhecido como São
Cristóvão, mas como estratégia, para se unir as festas como um único
evento, ganhando assim maior repercussão, todas as homenagens
são dadas ao Santo Antônio, o padroeiro da cidade.
Como já pode ser percebido, o Trezenário, que é a festa em
comemoração ao padroeiro da cidade, e a Festa dos Caminhoneiros
estão interligados de uma forma que é, até certo ponto, complicado
separá-los. Isso acontece porque os dias das festas se cruzam e na

144
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

Festa dos Caminhoneiros sempre há algumas homenagens prestadas


ao santo, como, por exemplo, a imagem do padroeiro que alguns
caminhões carregam na tradicional carreata. Essa carreata acontece
todos os anos na madrugada do dia 12 de junho, dia do caminhoneiro,
com muita zoada das buzinas dos caminhões para acordar os
moradores da cidade. Outro aspecto religioso que está presente na
Festa dos Caminhoneiros são os cantores da igreja que participam da
festa, seja na sua abertura ou no encerramento.
Todavia, a maioria das características dessas festas as separam
completamente. O Trezenário é uma festa exclusivamente religiosa,
então, os participantes e os envolvidos em geral são fiéis da igreja
católica. Enquanto na Festa dos Caminhoneiros os cantores e
o público são a população “mundana”, no sentido de que pode
englobar todo mundo, mais especificamente aquela que gosta do
tipo de música ofertada nesse evento. Em termos de quantidade, a
Festa dos Caminhoneiros sempre tem muito mais público do que o
Trezenário, sendo que quando a Festa dos Caminhoneiros está sendo
realizada, a cidade inteira para. Há um policiamento intensivo, as
escolas e universidades ficam sem condições de ofertarem aula pelo
barulho e agitação da população. Enquanto que nenhuma atividade
fica suspensa ou prejudicada pela realização do trezenário em
homenagem ao Santo Antônio.
A análise dos cartazes já anunciados nos mostrará, também, um
pouco mais sobre essa fusão entre as duas principais festas anuais
de Itabaiana.

2. Refletindo sobre os cartazes da festa dos caminhoneiros nos anos


de 2012, 2013 E 2014: o que as imagens revelam?

De um modo geral, os cartazes, assim como capas de CD, DVD,


etc., apresentam elementos de linguagem verbal e não-verbal,
sendo esta última a privilegiada neste nosso artigo. Como um texto,
a imagem é produto da articulação do plano do conteúdo com o
plano de expressão (AMOSSY, 2005, p. 26). No primeiro cartaz aqui

145
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

analisado, da Festa dos Caminhoneiros de 2012, vemos, no plano


do conteúdo, um resumo do que será a festa naquele ano (música,
religião, homenagens...), bem como a importância dada a cada
atração, o que é reforçado, no plano da expressão, pela disposição
proposital das figuras que compõem o texto analisado, bem como
pelas cores utilizadas pelo enunciador.

Figura 1: Cartaz oficial da festa dos caminhoneiros de 2012


Fonte: <http://www.galerasd.com/2012/05/programacao-da-46-feira-do-
caminhao-em.html>

No cartaz de divulgação da festa de 2012, as imagens dos cantores


da banda Aviões do Forró e do cantor Leonardo estão bem no centro.
Apenas essas duas atrações musicais são retratadas em forma de
imagem porque são as de destaque, as mais famosas e reconhecidas
nacionalmente. Há uma pista em formato de coração envolvendo-
os, além da imagem do santo num plano mais “atrás”, há também
uma criança com um caminhão de brinquedo sendo puxado, algumas
casas coloridas, e a serra de Itabaiana.

146
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

Focalizando-se a categoria topológica, nesse cartaz, identificamos


diferentes planos visuais e, como em toda a imagem, nosso olhar é
dirigido para o centro, onde vemos os cantores da banda Aviões do
Forró. Mais à esquerda, porém num mesmo plano que parece mais
próximo do enunciatário, identifica-se o cantor Leonardo. Com muito
colorido (categoria cromática) e em tamanho maior, comparando-
se às outras imagens do cartaz, a atenção do enunciatário vai
primeiramente para essas atrações musicais retratadas, observando-
se que apenas essas aparecem em forma de imagem, porque são as
de destaque, as mais famosas e reconhecidas nacionalmente. Além
disso, os cantores estão com roupas pretas e suas peles bronzeadas,
representando cores que são consideradas quentes, o que nos
remete à sensualidade.
Localizado “atrás” dos cantores, num plano secundário, à direita,
há a imagem do Santo Antônio, que, embora seja apresentada em
um tamanho também considerável, aparece apenas com traços em
preto e branco, como num esboço, sem colorido nem destaque como
foram mostrados os vocalistas da banda Aviões do Forró e o cantor
Leonardo.
Num terceiro plano, como um suporte ou pano de fundo, estão
algumas casas coloridas, simples, típicas de cidade de interior,
representando casas da própria cidade de Itabaiana e remetendo ao
aconchego. Também aparece a Serra de Itabaiana, o grande ponto
turístico do município, e a entrada do Parque Nacional da Serra de
Itabaiana39 que fica, na verdade, no município vizinho, Areia Branca.
Há também uma ave que lembra o Parque dos Falcões, um instituto
que protege aves de rapina, localizado aos pés da Serra, e uma criança
puxando um caminhão de brinquedo.
Esses elementos acima descritos são envolvidos por uma pista ou
estrada em formato de coração, como que representando as paixões
dos itabaianenses, embora tenhamos observado que mesmo esses

39 Mais informações sobre o Parque podem ser consultadas através da sua página oficial:
http://www.parquedosfalcoes.com.br/ ou pelo blog: http://serradeitabaiana.blogspot.com.br/

147
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

elementos são apresentados de modos diferenciados, de acordo com


uma hierarquia de importância para a festa ou para a cidade. Fora
do “coração”, do lado esquerdo do cartaz, vemos um caminhão que
começa a percorrer essa estrada, e do lado direito outro caminhão,
reforçando o objeto da festa: o caminhoneiro.
A imagem de um caminhão também aparece junto à de uma
criança, já descrita, e retrata o projeto Truck Kids, projeto esse que
visa a passar a tradição da profissão de caminhoneiro para as crianças
e em que elas confeccionam caminhões de brinquedo para exibirem
publicamente. A presença de três imagens de caminhões (repetição)
pode ser considerada, tomando-se por base os estudos de Perelman
e Tyteca (2005, p. 198), uma figura de presença, que tem como
objetivo não deixar o enunciatário esquecer do que trata o texto.
Como categorias do plano da expressão, podemos relacioná-las ao
plano do conteúdo. Assim, a forma variada dos elementos (categoria
eidética) pode nos remeter à variedade de atrações existentes na
festa, já a disposição das imagens no cartaz (categoria topológica)
deixa claro quais dessas atrações são as mais importantes para o
enunciador, finalmente, a categoria cromática aponta para uma
valorização maior das atrações musicais mais famosas (em colorido)
do que para a homenagem ao padroeiro. As cores destacam os
elementos, chamam a atenção do enunciatário, e o santo está em
branco, contornado com traços pretos que lembram um desenho
simples feito numa folha branca de papel.
Deste modo, a partir da diagramação do cartaz, fica claro que o
objetivo principal não é chamar a atenção do enunciatário para todas
as atrações convidadas para o evento, nem para o santo homenageado
nessa mesma época, e nem mesmo para a cidade, cujas imagens
apenas servem de pano de fundo para as atrações principais que
estão estrategicamente dispostas. Apesar de a imagem de Santo
Antônio aparecer no texto, evidenciando a correlação entre o evento
dos caminhoneiros e a religiosidade católica do município, ou ainda o
Trezenário, realizado nesse mesmo período pela igreja católica, notamos
que ela não está no primeiro plano, muito menos em destaque.

148
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

Nesse sentido, já que tomamos o cartaz como texto, equivale


dizer que ao utilizarmos a linguagem revelamos em quais valores
acreditamos e quais nos são mais importantes. Dessa maneira, é como
se uma escala fosse construída por cada enunciador para elencar
esses valores, hierarquizando-os de acordo com sua importância.
Outrossim, pode-se dizer que os níveis ou planos em que as
imagens foram colocadas no cartaz revelam os valores do enunciador,
da organização do evento, ou do próprio itabaianense, bem como os
valores que ele acredita serem os de seu enunciatário. Sendo assim,
como as atrações musicais estão no centro, no primeiro nível, em
colorido, podemos dizer que o valor mais importante, de acordo
com esse texto, é o show, a diversão, o profano, o mundano (numa
contradição com o religioso/sagrado, e não em termos pejorativos ou
de julgamento). Depois, viria o aspecto religioso representado pelo
santo, no segundo nível, que não chama atenção porque não está em
posição de destaque e aparece em preto e branco. A cidade é apenas
o pano de fundo para esse convívio entre o sagrado e o profano.
Já no cartaz de 2013, por sua vez, há uma certa “simplicidade”
porque o plano de fundo é uma tela azul, sem desenhos, cores, etc.
Diferindo completamente do cartaz do ano anterior, não aparecem
figuras para representar alguns elementos importantes da cidade.
No centro, está o desenho de um caminhão com o título da festa e
as datas da realização do evento. Certamente, o centro de qualquer
imagem é o que mais chama a atenção, e é fácil de memorizar, mesmo
sem querer. Por isso, a data está posicionada estrategicamente ao
centro para não ser esquecida, porém, as imagens colocadas ao
lado são tão enfatizadas que o centro passa despercebido. Ao fim do
cartaz são colocados, numa barra, os nomes de todos os artistas que
se apresentaram no evento.
As imagens parecem ocupar apenas dois planos, mas,
curiosamente, o plano que salta mais aos olhos do leitor não está
localizado no centro, em que se vê a figura de um caminhão e o
nome da festa, mas nas laterais. Nelas, algumas atrações musicais
são colocadas em forma de imagem (Bruno e Marrone, Aviões do

149
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

Forró, Dorgival Dantas, Garota Safada, César Menotti e Fabiano e


Galã do Brega) e, diferentemente do ano anterior, há mais cantores
representados, e essas diversas formas, aparências, mostram a
variedade de atrações musicais que compõem a festa do ano em
questão.

Figura 2: Cartaz oficial da festa dos caminhoneiros de 2013


Fonte: <http://www.maiscarira.com.br/47a-festa-do-caminhao-8-a-12-de-junho-
de-2013-itabaianase>

Contudo, apesar de haver seis atrações representadas em


imagem, elas não são a totalidade das bandas e cantores que se
apresentariam no evento; aquelas que foram visualizadas como
fotografias são as mais reconhecidas, de prestígio e mais esperadas
pelo público. Obviamente, o objetivo é chamar o enunciatário para
a festa, mostrar os artistas que mais possuem fama, para conquistar
público para a festa gratuita e comemorativa.
Como pode ser percebido e já comentamos, o cartaz de 2013 é
bem mais simples do que o de 2012. O plano de fundo é preenchido
completamente pela cor azul escura, o que favorece o destaque e a
atenção para as imagens dos cantores que vêm à frente. Pois, conforme

150
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

demonstra Pietroforte (2008), o plano da expressão, tudo aquilo


que não é figura, difere completamente do plano do conteúdo, as
figuras do discurso, para destacá-las. Já que esse cartaz é preenchido
monocromaticamente (categoria cromática) e homogeneamente
(categoria eidética) de azul e posicionado na horizontal (categoria
topológica) e as figuras dos cantores são heterogêneas, coloridas e
posicionadas na vertical.
Na categoria cromática, as cores que representam os artistas
convidados para a festa e o próprio caminhão são provocativas,
remetendo à sensualidade, pois estão numa tonalidade bronzeada,
dourada. Além disso, para reforçar esse aspecto sensual, o desenho
do caminhão, no centro do cartaz, aparece utilizando uns óculos de
sol do modelo aviador. Nesse caso, o desenho representa o próprio
caminhoneiro, por meio da personificação, já que o caminhão - meio
de transporte - não usa óculos, característica humana. Essa estratégia
faz apologia ao caminhoneiro “gostosão”, galanteador, conquistador.
A ausência de alusões à religiosidade e à própria cidade são
significativas, visto que essas imagens fazem parte da fusão coletiva
que se faz entre a Festa dos Caminhoneiros e a Festa de Santo
Antônio, as maiores da cidade, e que essas imagens continuam no
imaginário das pessoas. Conforme coloca Landowski (2002, p. 101):
“A evanescência das formas que passam” (como dizia Michel de
Certeau) não parece, de fato, afetar a identidade40 das unidades que
elas “informam” sucessivamente.” Desta maneira, a descontinuidade
no uso da imagem do santo, de paisagens típicas da cidade ou de suas
tradições (como o concurso Truck Kids) é significativa e corrobora a
hierarquia de valores evidenciada no primeiro cartaz analisado e que
coloca em primeiro lugar o show, a diversão, os cantores conhecidos,
e não a religiosidade, a cidade ou até mesmo a homenagem aos
caminhoneiros.
Cumpre observar que no dia 13 de junho, dia de encerramento da
Festa dos Caminhoneiros, só os cantores religiosos se apresentam.

40 Grifo do autor.

151
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

Isso vem acontecendo todos os anos, mas no ano de 2013 não só o


encerramento, como também a abertura, se deu com show religioso
católico, embora nada disso tenha sido colocado no cartaz, nem em
linguagem verbal, nem em não-verbal. Como no último dia de festa
é feriado, as apresentações sempre se encerram mais cedo, e não
há todo o destaque que os outros dias da Festa dos Caminhoneiros
recebem, além do público ser reduzido.
O cartaz de 2014, por sua vez, parece-se mais com o de 2013, pois
o enfoque está muito voltado para os cantores que se apresentaram
nessa edição da festa. A diferença é que este cartaz tem uma aparência
de maior sofisticação do que o anterior e traz outros elementos que
não haviam aparecido em nenhum dos outros dois antecedentes.
Diferentemente dos cartazes de 2012 e 2013, o cartaz de 2014, em
seu plano de expressão, pela categoria topológica, está na posição
vertical e não na horizontal. Assim como o cartaz de 2013, o pano
de fundo é preenchido homogeneamente pela cor azul, categoria
eidética. E, na categoria cromática, é majoritariamente colorido, já
que apenas o fundo azul é de caráter monocromático.
Com muito colorido (categoria cromática) e em tamanho maior,
comparando-se às outras imagens, a atenção do enunciatário vai
primeiramente para o lado direito inferior, onde estão as figuras dos
artistas mais renomados. Pois, assim como aconteceu nos cartazes
anteriores, apenas os cantores mais famosos são destacados em
forma de imagem e os outros são descritos apenas na forma verbal
em tamanho ínfimo.

152
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

Figura 3: Cartaz oficial da festa dos caminhoneiros de 2014

Num plano superior, em toda parte de cima, aparecem várias


figuras. No design de antigos filmes de máquina fotográfica, aparecem
várias fotos de outros eventos que são realizados concomitantes à
festa dos caminhoneiros, mas que nunca haviam sido retratados em
nenhum cartaz anterior. Pois pelo que os cartazes aparentam, parece
que a festa é apenas composta da realização dos shows, já que as
informações dizem respeito apenas aos artistas.
Além dessas imagens, aparece a imagem de um esboço do mapa
do Brasil com uma pista em formato de seta para indicar onde está
localizado o estado de Sergipe. Nesse caso, a seta indica a importância
da cidade de Itabaiana para o país já que ela foi eleita a capital nacional
do caminhão. Aparece também a figura de dois caminhões, nessa

153
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

parte superior do cartaz, com tamanho relevante, além daqueles


que aparecem no design de um filme de máquina fotográfica. Essa
repetição de imagens de caminhões pode ser considerada, tomando-
se por base os estudos de Perelman e Tyteca (2005, p. 198), uma
figura de presença, que tem como objetivo não deixar o enunciatário
esquecer do que trata o cartaz.
Além disso, é notável a predominância da cor azul nos três cartazes
aqui analisados. Porém, no cartaz de 2014, não só o azul como todas
as suas outras cores fazem uma referência clara à bandeira nacional.
Essa escolha de referenciar a bandeira do país não foi aleatória, pelo
contrário, o propósito é evidenciar ao enunciatário a importância do
município de Itabaiana para todo o Brasil, como indica uma frase no
centro do cartaz, que afirma: “capital nacional do caminhão”. Esse
objetivo esclarece a escolha das cores e a representação do mapa
brasileiro com a seta voltada para a cidade de Itabaiana. Ademais,
em 2014, a presidente Dilma Rouseff sancionou o projeto de lei do
senador Eduardo Amorim para tornar Itabaiana a capital nacional do
caminhão, como já mencionamos anteriormente. Nacionalmente, o
ano de 2014 ainda ficou marcado pela realização da Copa do Mundo
de Futebol no país, o que colaborou para o uso das cores da bandeira
em várias situações e em várias localidades.
Dando continuidade, passemos agora para uma reflexão sobre
o conceito de cultura e sobre o lugar dessas festividades nas
manifestações culturais.

3. Cultura de massa ou cultura popular? As festas de Itabaiana em


foco

Atualmente, tem-se falando muito em cultura, não apenas entre


os estudiosos da área, mas nos próprios meios de comunicação
de massa, através de propagandas e programas. Mesmo sem uma
definição concreta para o termo, as pessoas têm uma ideia do que se
trata quando ouve falar em cultura. Conforme o dicionário Houaiss
(2009), a definição de cultura é:

154
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

AGR ação, processo ou efeito de cultivar a terra; lavra,


cultivo 4 BIO cabedal de conhecimentos de uma pessoa
ou grupo social 5 ANTRPOL conjunto de padrões de
comportamento, crenças, conhecimentos, costumes, etc.
que distinguem um grupo social 6 forma ou etapa evolutiva
das tradições e valores intelectuais, morais, espirituais;
civilização 7 complexo de atividades, instituições, padrões
sociais ligados à criação e difusão das belas-artes, ciências
humanas e afins.

Para Botelho (2006, p. 49), “cultura é tudo que o ser humano


elabora e produz, simbólica e materialmente falando. Ele é também
essencialmente o espaço da qualidade de vida e do exercício da
cidadania.” Já Setton (2004), através de um breve apanhado da
história do conceito de cultura que faz em seu artigo, registra que
uma das primeiras utilizações da noção remetia à ideia de cultivo ou
cuidado de algum elemento, tal como grãos e animais (até 1500), e,
mais recentemente, o cultivo da mente humana (1500 em diante).
Por muito tempo o termo cultura carregou um sentido elitista e
restrito do conceito, em que fazia referência a desenvolvimento,
enriquecimento e evolução em relação a outras etapas anteriores de
civilização. Apenas recentemente o termo assumiu o sentido de um
processo ou produto de um esforço material e espiritual de indivíduos
ou de grupos. “A cultura seria então espaço de produção de sentidos
e valores que ajudariam na reprodução das relações entre os grupos,
ajudariam na transformação e na criação de novos e outros sentidos
e valores.” (SETTON, 2004, p. 14).
De acordo, ainda, com a autora, a cultura popular ganhou um
sentido negativo como se se opusesse ao sentido da palavra cultura na
sua acepção iluminista, aquela concebida sob o registro da cultura culta.
Dizer que uma cultura é popular seria como uma faca de dois gumes,
pois ao mesmo tempo pode indicar sucesso, por ser a mais volumosa,
mas também simplicidade e de pouca importância. Nesse sentido, tudo
pode ser popular (cultura, literatura, música, a cultura de massa) desde
que seja apropriada pelo grupo que denominamos popular.

155
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

Desse modo, fica claro que entender ou definir uma cultura como
popular não depende essencialmente do que ela é, mas da relação
que cada um possui com ela. Pois,

No Brasil a ideia de cultura (pelo menos a denominada


“cultura de verdade” ou a “alta cultura”) remete para
um conjunto de bens materiais ou imateriais possível
de ser apropriado e elaborado por uma minoria, uma
elite endinheirada. Acessíveis a poucos, a perspectiva
de universalizar esses bens somente os desvaloriza e
apequena. (SILVA, 2008, p. 07).

Para esclarecer melhor o que é cultura popular, Silva (2008) a


identifica como o cultivo de elementos e valores comuns ao povo,
diferentes dos valores dele próprio que são sofisticados, elaborados
e superiores; esse “povo” é diferente do autor posto que falam,
vestem-se e habitam lugares diferentes.
Dessa maneira, poderíamos definir a festa dos caminhoneiros
de Itabaiana como cultura popular? Não, porque na visão de alguns
autores, como Santos (2006), entende-se por cultura popular as
manifestações culturais das classes que estão fora do controle
das instituições culturais, são manifestações diferentes da cultura
dominante e que estão fora de suas instituições, que existem
independentemente delas, mesmo sendo suas contemporâneas. Em
outra visão:

A grande maioria das festas populares que celebramos pode


ser caracterizada como folclórica. São festas realizadas no
contexto das camadas mais pobres da sociedade brasileira
e que podem ser vistas como momentos privilegiados em
que as populações rurais, o povo das pequenas cidades e
os moradores das periferias dos grandes centros urbanos
interrompem a rotina do seu cotidiano, quer seja no
trabalho ou nas tarefas domésticas para “festar” com os
vizinhos, amigos ou correligionários das mesmas crenças e
tradições. (SILVA, 2008, p. 191).

156
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

Como a festa anual em homenagem aos caminhoneiros, além


de outros aspectos, não comporta apenas as camadas mais pobres
da região, faz-se mais lógico classificá-la como outro tipo de cultura
bastante analisada por teóricos, a cultura de massa. Pela definição do
dicionário Houaiss, cultura de massa é: “o universo de formas culturais
(p. ex., música, literatura, cinema) selecionadas, interpretadas e
popularizadas pela indústria cultural e meios de comunicação de
massa para disseminação junto ao maior público possível”.
De acordo com Coelho (1991), a cultura de massa não existe
sem os meios de comunicação de massa, mas estes não levam
necessariamente àquela. O surgimento dessa cultura se deu, ainda
conforme Teixeira, com o advento da revolução industrial, com uma
economia de mercado consumista, um capitalismo monopolista,
e principalmente pela era da eletrônica e da eletricidade. E,
principalmente, a cultura de massa não pode ser produzida pelos
que a consomem, ao contrário da cultura popular e a erudita41.
Temos, então, a Festa de Santo Antônio, que é o Trezenário, como
cultura popular, pois envolve a população em um festejo simples,
tradicional, que não abrange comércio, vendas, nem a cultura
dominante. E a Festa dos Caminhoneiros como cultura de massa, pois
existe um público que está interessado no consumo de um produto
que são as apresentações musicais.
Assim, ambas as culturas definem a identidade de Itabaiana. Haja
vista que existe público para as duas manifestações de culturas da
cidade. E aí, vemos, no contexto aqui analisado, a cultura popular
relacionada ao sagrado e a cultura de massa relacionada ao profano.
Como a existência de uma cultura não anula a existência da outra,
visto se originarem em esferas diferentes, tem-se que ambas se
complementam. No contexto analisado, então, duas palavras que

41 Durante os dias de festa dos caminhoneiros também acontecem apresentações folclóricas,


que são representantes da cultura popular, mas essas celebrações não recebem destaque nem
público, e geralmente são lembradas quando se fala na festa dos caminhoneiros e não como
uma festa independente.

157
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

podem ser concebidas como contrárias, perdem sua antonímia,


tornam-se grandezas únicas, diferentes, que não podem ser
comparadas entre si, mas que podem complementar-se na definição
da identidade de um município ou de um povo.
De acordo com Norma Discini (2003), ethos é sinônimo de estilo,
e ambos, como identidade discursiva, só podem ser afirmados por
meio da recorrência de determinados indícios nos textos de um
mesmo autor. Aqui, tratamos de festas que acontecem todos os
anos, e há muitos anos. A Festa do Caminhoneiro e a festa de Santo
Antônio, aqui representadas no recorte dos cartazes de 2012, 2013 e
2014, vão, pois, trazer essas recorrências que podem apontar para o
ethos/estilo/identidade de Itabaiana.
Noutra perspectiva, mas ainda falando da festa dos caminhoneiros
de Itabaiana, é importante questionar se esse evento pode
caracterizar-se como um patrimônio cultural. Sobre isso, Vianna
(2008, p. 119) estabelece que “Patrimônio cultural diz respeito aos
conjuntos de conhecimentos e realizações de uma sociedade, que
são acumulados ao longo de sua história e lhe conferem os traços de
sua singularidade em relação às outras sociedades”.
Sabemos que existem patrimônios material e imaterial. Sendo
que a festa não é um elemento material, poderia ser enquadrada,
então, dentro dos elementos imateriais. Pois,

Nos artigos 215 e 216 da Constituição promulgada em


1988, o conceito de Patrimônio Cultural abarca tanto
obras arquitetônicas, urbanísticas e artísticas de grande
valor o patrimônio material quanto manifestações de
natureza “imaterial”, relacionadas à cultura no sentido
antropológico: visões de mundo, memórias, relações
sociais e simbólicas, saberes e práticas; experiências
diferenciadas nos grupos humanos, chaves das identidades
sociais. Incluem-se aí as celebrações e saberes da cultura
popular as festas, a religiosidade, a musicalidade e as
danças, as comidas e bebidas, as artes e artesanatos,
os mistérios e mitos, a literatura oral e tantas, tantas

158
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

expressões diferentes que fazem nosso país culturalmente


tão diverso e rico. (VIANNA, 2008, p. 121).

De acordo com esse pensamento, a tradicional Festa dos


Caminhoneiros de Itabaiana é patrimônio cultural imaterial, por
definição, mesmo não sendo reconhecida oficialmente, uma vez
que é uma realização histórica de uma sociedade que lhe trouxe
uma singularidade com relação às outras. Tanto que Itabaiana já é
reconhecida como a capital nacional do caminhão.

Considerações finais

A análise não verbal dos cartazes, atrelada à retomada de


características culturais do município de Itabaiana-SE, nos revela que
não é apenas através da linguagem verbal que informações podem
nos ser passadas. A partir das imagens, podemos observar aqueles
valores que são mais importantes para um povo, no caso, para os
itabaianenses. Uma vez que,

Levando em consideração que somos sujeitos sociais,


podemos dizer que ao enunciar construímos não apenas
um ethos individual, mas também um ethos social ou
coletivo, que nos identifica como pertencentes a um
grupo, refletindo sua ideologia, seus valores e sua cultura.
(MARIANO, 2013, p. 1373).

Sabemos que nenhum discurso é neutro, mas é elaborado para


conseguir a adesão do seu enunciatário e, para isso, reflete suas
verdades (ou as constrói), seus valores e suas crenças, para que
um diálogo seja estabelecido. Por isso, a organização da Festa
dos Caminhoneiros, de responsabilidade da prefeitura da cidade,
conhece os valores da população e usa dessas informações para
elaborar cartazes que ela crê serem capazes de despertar o interesse
do público para participar do evento em questão.

159
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

A fim de verificar se o aspecto religioso tem mais relevância do que


o mundano, nos cartazes, observamos quais elementos figurativizam
os temas religioso e profano. Sobre isso, Barros (2002, p. 72) afirma
que: “pelo procedimento de figurativização, figuras do conteúdo
recobrem os percursos temáticos abstratos e atribuem-lhes traços
de revestimento sensorial”. O enunciador utiliza as figuras para levar
o enunciatário a reconhecer aspectos do mundo, do real.
A definição de sagrado no dicionário Houaiss é: “relativo ou
inerente a Deus, a uma divindade, à religião, ao culto ou aos ritos;
sacro, santo 2 que recebeu a consagração, que se sagrou 3 que não
se deve infringir, inviolável 4 que não se pode deixar de cumprir”.
Enquanto a de profano é: “que não pertence ao âmbito do sagrado
2 que é estranho, que não pertence à religião 3 que deturpa ou viola
a santidade de coisas sagradas”. Em outras palavras, o sagrado está
relacionado à religião e o profano ao que não pertence à religião.
Assim, não utilizamos o termo “profano”, nem “mundano”, em tom
de julgamento, mas simplesmente o diferenciando de termos que
estão ligados à religiosidade.
Deste modo, observamos por meio dos cartazes que apenas no de
2012 existe, representado pela linguagem não-verbal, uma imagem
que figurativiza o tema sagrado/religioso, a figura do Santo Antônio.
Todas as outras representam o profano, não lembram nenhum
aspecto da religiosidade. Já nos cartazes oficiais de 2013 e 2014, não
há nenhuma figura que representa o sagrado; a imagem do santo
desaparece e não é substituída por nenhuma outra que lembre o
santo ou a igreja católica (já que, levando em consideração a fusão
popular entre as duas festas, a religião aqui pressuposta é apenas a
católica).
A partir de escolhas do que retratar, da forma como essas imagens
são dispostas nos cartazes e das cores que são apresentadas, o ethos
discursivo, aquele que é mostrado, evidenciado pelo modo de dizer,
nos apresenta sim um povo trabalhador e religioso, reforçando o
ethos prévio e o ethos dito, mas nos revela, acima disso, um povo
que gosta de se divertir com as coisas do mundo.

160
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

Referências bibliográficas

AMOSSY, R. Da noção retórica de ethos à análise do discurso. In: AMOSSY,


R. (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo:
Contexto, 2005. p. 09-28.
BARROS, Diana L. P. de. Estudos do discurso. In: FIORIN, J. L. (Org.).
Introdução à Linguística II: princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2003.
p. 187-219.
BARROS, Diana L. P. de. Semântica discursiva. In: BARROS, Diana L. P. de.
(Org.) Teoria semiótica do texto. 4 ed. São Paulo: Ática, 2002. p. 68-79.
BOTELHO, I. Para uma discussão sobre política e gestão cultural. In: CALABRE,
L. (Org.). Oficinas do sistema nacional de cultura. Brasília: Ministério da
Cultura, 2006. p. 46-60.
COELHO, T. O que é indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1991. (Coleção
primeiros passos, v. 8).
DICIONÁRIO Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
DISCINI, Norma. O estilo nos textos. São Paulo: Contexto, 2003.
HERNANDES, Nilton. Duelo: a publicidade da tartaruga da Brahma na Copa
do Mundo. In: LOPES, I. C. e HERNANDES, N. (Orgs.). Semiótica: objetos e
práticas. São Paulo, Contexto, 2005. p. 227-244.
LANDOWSKI, E. Presenças do outro. São Paulo: Perspectiva, 2002.
MARIANO, Márcia R.C.P. A construção da imagem discursiva de uma cidade
e de um povo na literatura de cordel. Estudos Linguísticos, São Paulo, 42 (3),
p. 1377-1388, set-dez 2013.
PERELMAN, Chaïm e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação:
A nova retórica. Trad. de Maria E. de A.P. Galvão. São Paulo: Martins Fontes,
2005. [original de 1958].
PIETROFORTE, A. V. S. Análise do texto visual: a construção da imagem. São
Paulo: Contexto, 2008.
PREFEITURA DE ITABAIANA (site oficial). Disponível em: <http://www.
itabaiana.se.gov.br/>. Acesso em: 5 dez. de 2013.
SANTOS, J. L. dos. O que é Cultura. São Paulo: Brasiliense, 2006. (Coleção
primeiros passos, v. 110).

161
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

SETTON, M. da G. J. A educação popular no Brasil: a cultura de massa.


Revista USP, n. 61, p. 58-77, 2004.
SILVA, R. M. da C. Cultura Popular e Educação. Brasília: Salto para o futuro/
TV Escola/SEED/MEC, 2008.
VIANNA, L. Patrimônio imaterial: novas leis para preservar... O quê? In:
SILVA, R. M. da C. (Org.). Cultura Popular e Educação. Brasília: Salto para o
futuro/TV Escola/SEED/MEC, 2008. p. 119-123.

162
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

VALORES DE UM POVO REVELADOS PELA LINGUAGEM VERBAL


DOS CARTAZES DA FESTA DOS CAMINHONEIROS DE ITABAIANA

Michelle Lima

Introdução

A todo momento utilizamos diferentes linguagens para convencer


ou persuadir o outro, mesmo inconscientemente, como ao dar
uma simples informação. Do mesmo modo, somos atingidos e
influenciados por todos os meios que as veiculam. Tendo em vista
a importância do estudo da argumentação, este trabalho procura
mostrar como podemos compreender os valores dos munícipes de
Itabaiana através da linguagem verbal dos cartazes de 2012, 2013 e
2014 da Festa dos Caminhoneiros de Itabaiana-SE.
O Dia dos Caminhoneiros na cidade é celebrado desde 1966 em
todo dia 12 de junho. Nesse período festivo, que geralmente dura
uma semana, acontecem várias atividades, mas a atração principal
são os shows noturnos de vários artistas. Concomitante a essa festa,
há também o trezenário da igreja católica em homenagem a Santo
Antônio, que é o padroeiro do município, e que é festejado no dia
13 de junho. Deste modo, temos duas festas concomitantes na
cidade nessa época, que remetem a imagens prévias relacionadas
à Itabaiana e a seus moradores: a de cidade dos caminhoneiros, de
gente trabalhadora e cidade de forte religiosidade. Cumpre observar
que a valorização da profissão de caminhoneiro e do trabalho em
geral é vista também durante o trezenário, que dedica cada dia a
homenagear uma profissão.
Tendo em vista a concomitância desses festejos, presume-se que
os cartazes da prefeitura da cidade anunciem tanto as atividades
religiosas quanto as atividades gerais das festas. No entanto, por

163
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

meio da análise dos elementos verbais presentes, percebemos que


as últimas ganham um destaque maior, o que pode indiciar quais são
os valores dos munícipes de Itabaiana ou os valores que o orador
acredita que sejam os adotados por esses munícipes e/ou pelos
turistas das cidades vizinhas que vão até Itabaiana para aproveitar
os festejos.
A Retórica e os estudos da Argumentação consideram o trabalho
do orador em todos os níveis linguísticos tendo em vista a persuasão.
Neste trabalho, fazemos um recorte de um nível em particular,
o semântico, para analisarmos os nomes das bandas e o traço de
significado que as une. A Semântica é a área da Linguística que
estuda o significado das línguas naturais. De acordo com Müller e
Viotti (2003), uma definição precisa do que se trata esse estudo é
complexa porque a noção de significado possui diferentes visões
entre os estudiosos. Por isso, existem vários tipos de semântica:
textual, cognitiva, lexical, argumentativa, discursiva, entre outras.
O mais importante a destacar, nesse momento, é que todas elas
estudam o significado, mas cada uma por um ângulo diferente.
Isso porque “há várias formas de descrever o significado. Há várias
semânticas. Cada uma elege a sua noção particular de significado,
responde diferentemente à questão da relação linguagem e mundo”.
(OLIVEIRA, 2006, p. 18). E por isso, restringimos a análise dos nomes
das bandas às semânticas lexical e formal. A semântica formal será
discutida apenas no sentido em que relacionamos o nome próprio
das bandas a entidades que fazem parte do mundo externo ao da
linguagem. Pois:

a semântica formal considera como uma propriedade


central das línguas humanas o ser sobre algo, isto é,
o fato de que as línguas naturais são utilizadas para
estabelecermos uma referencialidade, para falarmos
sobre objetos, indivíduos, fatos, eventos, propriedades,
(...) descritos como externos à própria língua. (...) Por
essa razão, na semântica formal, o significado é entendido
como uma relação entre a linguagem por um lado, e por

164
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

outro, aquilo sobre o qual a linguagem fala. (MÜLLER E


VIOTTI, 2003, p. 139).

A semântica lexical, por sua vez, examina como é definido


um lexema. Para esta abordagem, “um lexema é uma entrada
de dicionário. Definindo semema como um conjunto de semas,
podemos afirmar que a cada lexema deve corresponder no mínimo
um semema, ou seja, uma acepção aceita culturalmente, no âmbito
da língua em apreço”. (PIETROFORTE e LOPES, 2003, p. 119). E assim
observamos no dicionário a definição dos lexemas que apresentam
semas diversificados, pois podem trazer um sentido diferente
daquele que aparenta num primeiro momento. Além disso, os
estudos da semântica lexical preconizam que outros sentidos podem
ser somados às palavras de um texto, o que eles denominam de
semas contextuais.
Fazendo uso de conceitos semânticos, discursivos e argumenta-
tivos, pretendemos observar como a escolha e o nome das bandas
que se apresentam nessas festas podem ser persuasivos e o quanto
eles revelam da imagem discursiva da cidade e de seus habitantes e
dos valores que compartilham.

1. Refletindo sobre a linguagem verbal dos cartazes

Partimos, portanto, do aspecto verbal dos cartazes. No cartaz de


2012, o título da festa está localizado na sua parte superior esquerda,
“Festa do Caminhoneiro”. Sobre isso, é perceptível a alteração que
o nome da festa sofreu, pois o cartaz de 2013 já aparece com o
novo título: “Feira do Caminhão”, e no ano de 2014, esse novo tema
reaparece, confirmando-o. Essa alteração ressalta a importância das
vendas, do comércio e do consumo para o próprio evento. Pois além
da alteração de festa para feira houve a troca do termo caminhoneiro
para caminhão, ou seja, a festa deixa de ter como principal objetivo a
comemoração pelo Dia do Caminhoneiro e passa a ressaltar o próprio
meio de transporte, as vendas, o comércio, etc.

165
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

42

Na parte inferior direita está descrito o nome das três atrações


mais esperadas: Leonardo, Aviões do Forró e Calcinha Preta. Há
também o nome de alguns colaboradores espalhados pelo cartaz
e principalmente numa barra que o finaliza. Nessa mesma barra
inferior, acima dos nomes dos patrocinadores, estão todos os nomes
das atrações que se apresentaram na festa, escritos com a fonte de
cor preta, sem chamar atenção, e com tamanho muito mais reduzido
do que aqueles três convidados destacados na lateral inferior direita:
Leonardo, Aviões do Forró e Calcinha Preta.
É importante mencionar que apenas no cartaz de 2012 aparecem
nomes de patrocinadores do evento. Pois no ano de 2013, há apenas
o símbolo da Skol, marca de cerveja, ou seja, uma linguagem não

42 FONTE: <http://www.galerasd.com/2012/05/programacao-da-46-feira-do-caminhao-em.
html>

166
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

verbal, em que ao invés do nome, aparece o símbolo da marca com


a palavra apresenta embaixo da logomarca. E já no ano de 2014, o
cartaz não traz nenhum patrocinador, nem por meio de linguagem
verbal ou não verbal.
Abaixo das imagens que aparecem no cartaz de 2012, uma barra
branca o finaliza, parecida com uma borda. E é nessa barra que
aparecem os nomes das atrações convidadas. São eles: Fera Bandida,
Cheiro Nordestino, João Neto e Cesinha, Mar Azul, Andréia Reis e
Vinícius, Paulinha Abelha e Marlus, Alma Gêmea e cantores de Deus.
Somando esses cantores com aqueles que aparecem em destaque
- Leonardo, Aviões do Forró e Calcinha Preta, totalizam-se dez
atrações, sem incluir os cantores de Deus. Não fazemos contagem
com os cantores de Deus porque como está escrito no cartaz
(cantores) no plural, não se sabe ao certo quantos artistas religiosos
se apresentaram no dia 13, dia de encerramento do evento. Já que
foi apenas no feriado do padroeiro da cidade, quando acaba a festa,
que eles se apresentaram.
Retirando os artistas que se apresentam por seus nomes pessoais
próprios, restam seis: Fera Bandida, Aviões do Forró, Calcinha
Preta, Alma Gêmea, Cheiro Nordestino e Mar Azul. De acordo com
a semântica lexical, os lexemas revelam coisas que passam muitas
vezes despercebidas por quem ouve/lê.
As bandas musicais Mar Azul, Cheiro Nordestino e Alma Gêmea
são locais, com formação e músicos em sua maioria da cidade de
Itabaiana. “Mar Azul” é um sintagma de duas palavras com um
substantivo, “mar”, e um adjetivo, “azul”. De modo óbvio, passa a
ideia de um mar de cor viva, o azul; mas também é nítido que não se
faz referência a nenhum aspecto da cidade, até porque em Itabaiana
não há mar, pois não é região litorânea e sim agreste. Uma evidência
desse significado é que nas capas dos CDs da banda está sempre em
destaque a cor azul.
“Cheiro Nordestino”, por sua vez, possui duas palavras em que
também a primeira é um substantivo e a segunda um adjetivo.
“Cheiro” é sempre aquilo que o nosso olfato identifica/reconhece,

167
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

ou ainda, aquilo que demonstra ou indica a ocorrência de algo. E


“nordestino” é aquele de origem ou pertencente à região nordeste
do país. Nesse sentido, a banda seria responsável por lembrar aos
ouvintes as tradições do povo do nordeste, mais especificamente as
músicas tradicionais dessa terra. O vocábulo “cheiro” também pode
estar se referindo a beijo, pois no nordeste o substantivo ganha esse
outro sentido quando nos referimos ao beijo fraterno, indicação de
carinho. Intertextualmente, o nome da banda retoma uma expressão
que é geralmente usada nas saudações entre familiares e amigos:
“um xêro!”. Tomando a segunda definição de “cheiro”, podemos dizer
que o nome da banda está indicando o carinho do povo nordestino,
esse jeito particular de tratar os amigos e familiares, cheio de carinho.
Alma Gêmea, outra banda anunciada no cartaz de 2012, possui,
por sua vez, uma referência metafórica. Isso porque a metáfora não
está inserida nos discursos de forma aleatória, já que “a natureza do
discurso condiciona, pois, o tipo de metáfora que lhe convém abrigar”.
(MOSCA, 1998, p. 96). A metáfora tem o poder de ressignificar as
coisas, pois vem para condicionar outro sentido, não implicando que
exista um sentido próprio (denotado) e outro figurado (conotado),
mas existindo um diálogo entre as possibilidades de interpretação.
Nesse sentido, “alma” é princípio de vida não corpóreo do ser
humano; e “gêmeo”, no sentido mais geral, é cada um dos filhos
nascidos de um mesmo parto. Por outro lado, a expressão “alma
gêmea”, no sentido mais popular, é atribuída àqueles indivíduos que
apresentam muita afinidade. Por exemplo, quando alguém diz que
encontrou sua alma gêmea está se referindo a um parceiro(a) sexual
e/ou amoroso que acredita ser a metade de si mesmo, como um
complemento perfeito. Vemos, mais uma vez, o intertexto do nome
da banda com uma expressão popular. Mas, no caso dessa banda,
o fundador, Valtemir Valença dos Santos, conhecido como Torcedor,
afirma que a escolha se deu por causa de uma novela da rede globo
chamada Alma Gêmea, exibida nos anos de 2005 e 2006, de base
espírita, que acredita que o amor verdadeiro ultrapassa várias vidas.
Por ser muito romântica e ter grande aceitação pública, a intenção foi

168
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

criar uma banda que traria o romântico como base em suas músicas.
Ou seja, o intertexto ocorre também entre o nome da banda e esse
outro texto relembrado pelo compositor.
Calcinha Preta é uma banda de 1996, originária da capital do
estado de Sergipe e conseguiu alcançar prestígio e fama em todo o
país. Nos shows da banda, calcinhas de cor preta são distribuídas ao
público pelos vocalistas durante a apresentação, como uma tradição.
O lexema “calcinha”, no dicionário Houaiss (2009), apresenta apenas
um significado, o de vestimenta íntima feminina. Por se tratar de
peça íntima feminina, já envolve uma alusão ao ato sexual, pois a
mulher sexy, pensando em propagandas publicitárias, por exemplo,
é aquela representada sempre por uma linda lingerie, na maioria das
vezes, preta. Reforçando a visão machista, ainda predominante em
nossa sociedade, da mulher como símbolo sexual.
Sobre isso, de acordo com Canassa (2007, p. 39), conta a mitologia
grega que a criação da mulher se deu pelos deuses do Olimpo, os
quais, sentindo-se ameaçados de perder seu poder, tiveram a ideia
de criar a mulher para levar os homens à perdição. Por esta razão,
foi criada, a partir de uma estátua de bronze, uma forma humana,
capaz de sensibilizar e encantar o homem e que recebeu de cada
deus um dom. Apolo lhe deu a voz macia, Mercúrio lhe deu a
língua, Atena lhe ofertou um vestido que permitia perceber suas
formas suaves, Vênus lhe deu a beleza infinita, e assim, recebendo
dons que a deixavam cada vez mais formosa, foi criada Pandora.
De Zeus, Pandora recebeu uma caixa que deveria entregar aos
homens. Com a missão de destruir a raça humana, Pandora desceu
à Terra, encontrando Epimeteu, o qual se apaixonou perdidamente
por ela, encantado com sua beleza e formosura. Epimeteu recebe
de Pandora a caixa, na qual foram colocados todos os males da
humanidade, mas, no fundo da caixa, havia um único bem capaz de
salvar a humanidade: a esperança. Mas, após saírem todos os males,
Pandora fecha a caixa impedindo que a esperança seja recebida
pelos homens. Assim, perdeu-se a raça humana, e de acordo com a
mitologia, por culpa da mulher.

169
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

Já sobre a cor preta, conforme Farina (1990), o preto é a cor


do mistério, do segredo e do poder, que evoca o caos, a noite, o
inconsciente, etc. Unindo as figuras de mulher + lingerie + preta,
fica ainda mais claro que o referente Calcinha Preta está indicando
a sexualidade.
Aviões do Forró, por sua vez, banda de forró eletrônico cearense,
também com reconhecimento nacional, retoma, implicitamente
e intertextualmente, a partir do lexema “avião”, a metáfora de
mulher como sinônimo de turbinada, siliconada, representante da
sexualidade. Na gíria, “avião” é uma mulher bonita e de corpo “bem-
feito”. Uma evidência desse significado conotativo é que em muitas
letras de músicas a mulher é chamada de avião, representando um
símbolo sexual. É o que falam as músicas de Amado Batista, “Um
avião de mulher”, e “Mulher avião”, da dupla sertaneja Brenno Reis
e Marco Viola. Obviamente, muitos outros exemplos de músicas
que falem de mulher avião poderiam ser citados, mas não se faz
necessário porque fica claro que em nenhuma delas a palavra “avião”
é sinônimo de aeronave, um meio de transporte.
Fera Bandida é uma banda do município de Frei Paulo, no estado
de Sergipe, e não possui fama nacional, caracterizando-se como uma
atração local. “Selvagem”, “feroz”, esses são alguns” semas de “fera”.
“Bandida”, a outra palavra que compõe o nome da banda, é um adjetivo
e está concordando em número e gênero com o substantivo fera. O
interessante é que “bandido”, no dicionário, refere-se a uma pessoa
que comete crimes, de má índole. Entretanto, “bandida” não é só o
feminino de bandido, mas tem também uma definição própria, a de
mulher que pratica a prostituição, reafirmando traços machistas não
só nos nomes das bandas analisados, mas na própria língua (outras
palavras no feminino corroboram nosso pensamento, como “galinha”,
cachorra”, “vaca”, por exemplo). Se tomarmos a definição de “bandida”,
o nome da banda está representando uma mulher com características
de uma fera (selvagem na cama?) e de vida sexual promíscua.
No cartaz de 2013, as informações verbais estão voltadas apenas
para o nome das atrações, o nome da festa e do responsável pelo

170
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

evento, ou seja, a prefeitura. Os elementos verbais aparecem no


centro, de maneira total, e na barra inferior do cartaz. O nome do
evento está localizado na parte superior central junto com o nome
da cidade; as datas em que foi realizada a festa estão em tamanho
maior do que todas as outras informações verbalizadas. Abaixo das
datas aparece, mais uma vez, o nome da cidade. Na barra inferior
que o finaliza, estão escritos todos os nomes dos artistas convidados.
O slogan da prefeitura e o seu escudo aparecem discretamente no
canto direito dessa barra inferior.

43

Fica claro que no aspecto verbal o que mais recebeu destaque


foi a data e o nome da cidade onde aconteceu a festa. Obviamente,
como o cartaz tem o propósito de fazer divulgação para que muitas
pessoas possam ir ao festejo, a informação mais importante é a data
e o local. Nem os nomes das atrações receberam todo esse destaque.

43 FONTE: <http://www.maiscarira.com.br/47a-festa-do-caminhao-8-a-12-de-junho-de-2013-
itabaianase>

171
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

No entanto, como se viu na análise não verbal deste cartaz44, o


destaque fica para as atrações que aparecem em formas de imagens
coloridas e com tamanho relevante, pois mesmo a data e o local
estando em posição central e com tamanho da fonte muito grande,
não conseguem chamar a atenção do leitor mais do que as figuras,
pois essas estão bem coloridas enquanto aquelas aparecem na cor
branca com um fundo azul.
Quanto aos músicos que se apresentaram na festa do ano de
2013, foram doze as atrações: Léo Wander, Dorgival Dantas, Coração
Xonado, Galã do Brega, Bruno e Marrone, Antônio o Clone, Garota
Safada, Cartas de Tarô, César Menotti e Fabiano, João Neto e Cesinha
e mais duas que participaram da festa no ano anterior, Alma gêmea
e Aviões do Forró. Retirando aqueles que possuem nomes próprios
de pessoas e as duas bandas que já tiveram seus nomes analisados
anteriormente, resta-nos cinco: Coração Xonado, Galã do Brega,
Antônio o Clone, Garota Safada e Cartas de Tarô.
Tarô é um jogo de cartas de caráter mítico, pois se acredita que
através dele o jogador pode descobrir o que vai lhe acontecer no
futuro. O nome da banda Cartas de Tarô faz referência a esse jogo,
mas não se sabe o porquê. Talvez o nome sirva para remeter também
à sensualidade, aqui, especificamente, do povo cigano, que faz uso
desse jogo e que, na memória popular, é lembrado pela beleza, pelas
danças e pela própria sensualidade. De gênero musical brega, a
banda é de Aracaju, a capital do estado de Sergipe.
Coração Xonado tem um sentido simples, aparentemente, pois
“xonado” é uma abreviação possível da palavra “apaixonado”,
resultante ainda de um fenômeno fonológico comum (aférese), em
que são suprimidos fonemas no início de um vocábulo. “Coração” é

44 Este artigo é um recorte de uma pesquisa maior que resultou no Trabalho de Conclusão de
Curso de Michelle Lima intitulado “Construção do ethos de um povo: o que revelam os cartazes
da Festa dos Caminhoneiros de Itabaiana”, defendido no Departamento de Letras da UFS de
Itabaiana em 16/01/2015, orientado pela Profa. Dra. Márcia Regina Curado Pereira Mariano,
em que são analisados tantos os elementos verbais quanto os não-verbais dos cartazes das
festas.

172
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

um substantivo, nome de um órgão que todo mamífero possui, mas


também ganha outros significados, remetendo-se, metaforicamente,
nos seres humanos, ao lugar onde são guardados todos os
sentimentos, bons ou ruins. Se a banda é apaixonada, então, o
repertório fala de paixão, amor, e de todos os outros temas que
remetem a esses sentimentos.
Antônio é o nome de um vocalista, que também é itabaianense.
Antônio o Clone ficou assim conhecido porque o slogan do cantor no
início da carreira era “o clone do sucesso”. Se clone é cópia, imitação,
então, seria o cantor, a cópia do sucesso.
Galã do Brega é uma banda de forró do estado de Alagoas.
“Galã”, de acordo com o dicionário, é o ator que faz o papel de
mancebo apaixonado ou ainda, no sentido figurado, o galanteador,
o namorador. Ainda remete à imagem de homem bonito. E a palavra
“brega” compõe o nome da banda porque é o estilo musical adotado.
É interessante que nos clipes e aparições da banda esse sentido de
galanteador é evidentemente enfatizado pelo comportamento e
pelas vestimentas do cantor.
Garota Safada, por sua vez, é uma banda de forró do Espírito
Santo conhecida em todo o país. Também é chamada de Wesley
Safadão e Banda Garota Safada, porque o vocalista ganhou bastante
destaque, em termos de reconhecimento. “Garota” é sinônimo de
menina, criança, etc., mas “safada” é o feminino de safado, que
possui como definição indivíduo vil, cínico, desprezível, que se
revela imoral, indecente, pornográfico. Nesse caminho, o sentido
do nome da banda remete a uma garota, mulher ou menina, que
é imoral, pornográfica, etc, explorando mais uma vez uma imagem
machista da mulher. Quanto a Wesley Safadão, o aumentativo
representa não apenas um ser que preza pelo indecente, mas um
pertencimento, uma origem, pois, de acordo com Alves (2011), o
sufixo -ão acrescido ao final de adjetivos tem sentido de origem,
pertença. Além disso, pode significar que Wesley possui uma
experiência, um saber na área da conquista, como um valor
positivo.

173
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

No ano de 2014, os elementos verbais foram bastante explorados.


Esse cartaz foi aparentemente dividido ao meio, mesmo não havendo
uma linha clara demarcando isso, mas se nota que a parte superior,
do meio para cima, abriga várias figuras que remetem ao evento
como um todo, e não apenas aos shows da noite. Enquanto na parte
inferior, do meio pra baixo, estão a programação e as imagens das
principais atrações da atual edição que se apresentaram nos shows
da noite.

45

45 FONTE: http://www.agendaju.com/noticias/itemlist/tag/itabaiana

174
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

Na sua parte superior, aparecem muitas figuras e cores vivas,


com algumas informações verbais, mas a maior parte da mensagem
verbal está na parte inferior. Nessa parte, do meio para baixo, há
outra divisão, do lado direito estão as imagens dos principais cantores
convidados, e do outro lado, está toda a descrição da programação.
Na programação estão inclusos os nomes das atrações, horários e
outras informações complementares. Essas outras informações se
referem às outras atividades que acontecem concomitantemente
à Festa dos Caminhoneiros todos os anos, mas que nunca eram
mencionadas nos cartazes dos anos anteriores, como atividades
religiosas que fazem parte da Festa de Santo Antônio, o que pode
indicar uma preocupação maior, nesse ano, com a participação do
público não só nos shows principais, mas nas outras atrações.
Durante os dias festivos, além dos shows noturnos que são a grande
atração da festa, também acontecem algumas atividades de grande
importância e tradição como: a eleição da rainha dos caminhoneiros,
a carreata mirim, a carreata dos caminhoneiros na madrugada do
dia 12 de junho, o café da manhã dos caminhoneiros, a procissão de
santo Antônio e as missas em homenagem aos caminhoneiros.
Além dessas informações, também aparece no cartaz de 2014,
na sua parte verbal, um slogan no meio do cartaz, com bastante
realce, que nos direciona não só ao evento, mas também a uma
forte característica da cidade, seu comércio. O slogan é: “Capital
Nacional do Caminhão e berço de grandes negócios”. Itabaiana foi
eleita em 2014 a capital nacional do caminhão justamente pela
importância do seu comércio que abriga muitos feirantes locais
e de regiões circunvizinhas. Como há uma grande variedade de
produtos na feira, que ocorre tradicionalmente todas as quartas e
sábados, os caminhoneiros são muito importantes para a realização
desse negócio. Além da feira, existem muitas lojas de diferentes
especialidades e que são essenciais para a população, pois a maioria
dos munícipes trabalha no comércio da cidade. O comércio de
Itabaiana é conhecido em todo o estado.

175
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

Quanto às atrações que se apresentaram na edição da festa


de 2014, somam-se quinze, sem incluir o padre Joãozinho, o qual
se apresentou na praça onde fica a igreja católica matriz, ou seja,
um local diferente de onde acontecem as outras apresentações. Os
quinze são estes: Xote Bom, Antônio o Clone, Léo Wander, Aviões do
Forró, Jânio Linhares e Forrozão Pimenta Ralada, Cheiro Nordestino,
Leonardo, Coração Xonado, Wesley Safadão e Banda Garota Safada,
Carlos Greg, Galã da Vaquejada, Zezé di Camargo e Luciano, Jailson
Lima, Rojão Diferente e Alma Gêmea.
Desses quinze cantores, aparecem quatro, na programação,
com seus nomes destacados, escritos em caixa alta e em negrito,
diferenciando-se claramente das outras atrações. Esses quatro nomes
que aparecem destacados na programação estão representados
em forma de imagem, no lado inferior direito do cartaz, são eles:
Leonardo, Aviões do Forró, Wesley Safadão e Zezé di Camargo e
Luciano.
Retirando as atrações que já tiveram seus nomes analisados
anteriormente porque se apresentaram nas outras edições da festa
e aquelas que se apresentam por seus nomes próprios, restam-nos
quatro: Xote Bom, Jânio Linhares e Forrozão Pimenta Ralada, Galã da
Vaquejada e Rojão Diferente.
“Xote bom” é constituído por um substantivo e um adjetivo, ou
seja, “bom” qualifica o substantivo “xote”. Essa é uma banda de forró
de estilo pé-de-serra do estado da Bahia. De acordo com o dicionário,
xote é o nome de um ritmo musical marcado pelo compasso binário e
que conta com a presença marcante da sanfona. Como não há outras
definições possíveis do nome no dicionário, parece claro que esse
nome se refere apenas ao nome do estilo da banda, muito comum
no nordeste brasileiro.
Jânio Linhares e Forrozão Pimenta Ralada é uma banda
itabaianense. Assim como acontece com a banda Wesley Safadão e
Banda Garota Safada, o nome do vocalista vem destacado da banda
pelo grande prestígio que possui. Como o próprio nome indica, é uma
banda de forró, como a grande maioria das convidadas para a festa.

176
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

De acordo com o dicionário, pimenta, além de ser um fruto


picante, e ser conhecido por suas propriedades afrodisíacas, também
pode significar um indivíduo que é malicioso, travesso e brigão, além
das associações que a palavra pode fazer com a ideia de sensualidade
e lascívia. O adjetivo “ralada” se refere ao substantivo “pimenta”, ou
seja, a pimenta não está em seu estado natural, sofreu um processo
de transformação, foi ralada. Conforme essas definições, tanto
o nome da banda pode indicar apenas o sentido do fruto ralado,
quanto pode significar a sensualidade, o desejo, de modo ainda mais
acentuado, já que esse fruto foi processado para ficar com teor ainda
mais concentrado.
Galã da Vaquejada é o nome que um artista adotou para se
apresentar. Pela definição do dicionário, “galã” é um indivíduo que
corteja mulheres. Como o sintagma da vaquejada acompanha o
substantivo “galã”, indica um pertencimento, qualificando esse
sujeito, ou seja, esse indivíduo não é comum, há um diferencial.
Nesse caso, da vaquejada indica o estilo da música, pois é aquele
forró comum nas festas dos vaqueiros, inclusive, o próprio artista se
veste como um vaqueiro.
A banda Rojão Diferente também é uma banda de forró. O
substantivo “rojão” tanto pode ser um foguete quanto um estilo de
tocar o instrumento viola. Neste contexto, o significado do nome da
banda parece não ter outra possibilidade de sentido além da maneira
ou estilo de tocar a viola de maneira diferente, já que o adjetivo
diferente vem para qualificar o substantivo rojão.
Comparando-se os três cartazes, vemos que as atrações mais
convidadas nessas três últimas edições da festa dos caminhoneiros
de Itabaiana são Aviões do Forró e Alma Gêmea, que participaram
desses três anos seguidos. Segundo Costa (2012, p. 132), as bandas
do forró pós-moderno, o que mistura elementos de outros gêneros
musicais - axé, sertanejo, pagode, etc. - surgiram com a maquiagem
do romantismo brega e o apelo sensual. Essa foi a primeira
transformação pela qual o forró tradicional passou.

177
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

Uma segunda mudança se deu na composição da vestimenta


dos músicos. Não mais a vestimenta do vaqueiro ou aquela
alusiva à figura do cangaceiro (...). Na nova fase as mulheres
aderem a um vestuário muito mais sensual e os homens a
estilos urbanizados, inclusive muitos com o cabelo longo
(...). As letras também passaram por mudanças expressivas.
Embora com Gonzagão a mudança já estivesse em marcha,
nos anos 90 do recente final de século XX algumas
transformações modificaram as temáticas dominantes do
forró, fundamentalmente explorando de forma acentuada
as relações íntimo-sexuais e as narrativas de farras e
diversão a todo custo. (COSTA, 2012, p. 133).

Nesse entender, o estilo do forró, as vestimentas e as letras das


canções dessas bandas reportam ao sensual e à sexualidade, o que
se observa no fato de “os shows da banda de forró serem espetáculos
de luzes, danças e músicas, que incluem dançarinas com pouca roupa
em coreografias sensuais”. (COSTA, 2012, p. 141).
Chega-se a entender, consoante com o que foi analisado
anteriormente, que as atrações mais esperadas, que são as
nacionalmente reconhecidas, aquelas chamadas por nomes
diferentes do nome próprio do vocalista, remetem grande parte
das vezes a aspectos sexuais, fazendo referência a temas que não
condizem com os lexemas pertencentes ao campo semântico do
sagrado ou do religioso46, uma parte da festa que parece esquecida.
Fica, portanto, o questionamento se a religião está em primeiro lugar
na hierarquia dos valores do povo itabaianense ou a festa, a diversão.

2. ethos, auditório e valores

De acordo com a ITNET47, a Festa dos Caminhoneiros de 2013

46 Relembramos que a análise não se deu sobre as letras das músicas pertencentes ao
repertório das bandas, apenas dos nomes dessas bandas; por isso, aqueles cantores que são
reconhecidos por seus próprios nomes não foram analisados.
47 Site de notícias da cidade. A matéria está disponível no site: http://itnet.com.br/
materia-21054

178
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

comportou mais de 60 mil pessoas, sendo que no último dia, a entrada


da festa teve que ser fechada porque não cabiam mais pessoas no
espaço, fato inédito na história do evento. Já no trezenário, a festa
religiosa, não existem informações concretas da quantidade de
público, apenas estimativas e fotos que apontam para um público
bem mais reduzido48.
A partir dessas considerações, comparamos o ethos prévio e dito
de povo trabalhador, tanto por valorizar o ofício do caminhoneiro,
quanto por trazer no Trezenário homenagens às diversas profissões
comuns na cidade, com o de povo religioso, e podemos dizer que os
dois combinam, pois apontam para uma mesma identidade.
O ethos prévio é aquela imagem do orador que o auditório constrói
antes do momento da enunciação, pois, “se o ethos está crucialmente
ligado ao ato de enunciação, não se pode ignorar, entretanto, que
o público constrói representações do ethos do enunciador antes
mesmo que ele fale.” (MAINGUENEAU, 2005, p. 71). Já o ethos dito é
aquilo que o orador fala de si próprio na enunciação, dizendo que é
deste ou daquele jeito, e não de outro.
Podemos identificar a construção desses ethé no Trezenário e
na Festa dos Caminhoneiros, que reforçam o ethos prévio e criam o
ethos dito de povo religioso e trabalhador. Afinal, ao mesmo tempo
em que a realização das festas reforça a “fama” de povo trabalhador
e religioso, o próprio itabaianense diz (ou tenta dizer) por meio das
festas e dos seus cartazes “eu sou religioso e sou trabalhador”, na
medida em que realiza um evento anual – o Trezenário/a Festa de
Santo Antônio - voltado exclusivamente para o católico, mas que,
mesmo sendo uma festa religiosa, não deixa de se associar ao
trabalho, e outro que, mesmo sendo uma festa popular, geral – a
Festa dos Caminhoneiros -, traz, como atração, apresentações de
cantores da igreja católica.

48 Algumas estimativas de público do Trezenário podem ser encontradas nessa matéria: http://
diariodoagreste.com.br/?pg=not%EDcia&id=6678

179
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

No entanto, é o ethos mostrado, evidenciado, que realmente


importa para os estudos discursivos. Quanto a isso, podemos
questionar se esse ethos prévio e dito de povo trabalhador pode
ser confirmado ao considerarmos que a Festa dos Caminhoneiros
possui duração de 4-5 dias. E o trabalho, é esquecido nessa época?
Mesmo sabendo que as apresentações artísticas acontecem à noite,
alguns órgãos ficam impossibilitados de funcionar, como as escolas e
universidades, pela buzinação dos caminhões, e de toda a agitação
local promovida até pela segurança policial.
E sobre o ethos prévio e dito de povo religioso, questionamos
até que ponto a religião é o valor mais importante se no evento
exclusivamente religioso o público é muito mais reduzido do
que naquele que não é? Qual é a hierarquia de valores do povo
itabaianense? Ademais, e o que é mais importante aqui, a análise
da linguagem verbal dos cartazes de 2012 a 2014 deixa claro que
os principais valores para esse enunciador (organização do evento
(um orador autorizado que, assim sendo, pode representar os
itabaianenses como um todo)) estão voltados para as atrações
musicais e não para a religiosidade ou para sua própria cidade.
Em cada um dos eventos, o Trezenário/Festa de Santo Antônio e
a Festa dos Caminhoneiros, temos um auditório particular, aquele
auditório cujas reações somos ao menos capazes de estudar,
conforme Perelman e Tyteca (2005, p. 21). Sabe-se que no Trezenário
o auditório é formado por católicos, enquanto no outro evento temos
fãs do(s) estilo(s) musical(is) ofertado(s). Os auditórios particulares
estão relacionados a valores concretos e os valores são aquilo que
seguimos, em que acreditamos, aquilo que é mais importante para
cada um, de acordo com Perelman e Tyteca (2005, p. 35). Dessa
forma, no Trezenário temos como valor concreto a igreja católica e na
Festa dos Caminhoneiros, as bandas. Os valores concretos, de acordo
com os teóricos, são aqueles que dizem respeito a comportamentos
e virtudes; e os abstratos, aqueles que envolvem a razão.
Levando em consideração que um auditório particular pode ser
englobado por outro, mais geral, acreditamos que, se na Festa dos

180
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

Caminhoneiros o público é maior é porque, na hierarquia de valores


dos itabaianenses (tomados de um modo geral e não em suas
identidades individuais), a religião pode estar em segundo plano
em relação à festa enquanto diversão. De acordo com Perelman e
Tyteca (2005), todo orador, quando planeja o seu discurso, busca
estabelecer um acordo com o seu auditório para conquistá-lo. Essa
conquista se dá, então, através dos valores que o locutor acredita
que seu público possui, pois para o orador, um logos que lhe conceda
confiança deve demonstrar que os valores dos seus ouvintes lhes são
bem conhecidos. Deste modo, tanto a escolha das atrações principais
quanto a escolha dos nomes pelas próprias bandas, e que vão figurar
nos cartazes, nos revelam argumentos que buscam a adesão de um
auditório que pode não só admirar os gêneros musicais como que se
sentir atraído pela sensualidade e a malícia dos nomes das bandas,
de suas músicas e apresentações, sem dizer que podem também
compartilhar de pensamentos machistas que desvalorizam a mulher
e que muitas vezes acompanham essas músicas e esses shows, mas
este já seria assunto para outro artigo.

Considerações finais

Sabe-se que nenhum discurso é neutro, pelo contrário, é elaborado


para conseguir a adesão do seu enunciatário e, para isso, reflete
suas verdades, seus valores e suas crenças, para que um diálogo
seja estabelecido. E foi a partir desse pensamento que este trabalho
foi desenvolvido, para demonstrar que onde houver discurso, seja
ele verbal ou não, há sempre a presença dos valores do orador e do
auditório.
A análise semântica dos nomes das bandas anunciadas nos cartazes
da Festa do Caminhoneiro de 2012, 2013 e 2014, concomitante ao
trezenário de Santo Antônio, nos permitiu perceber que a maior parte
das atrações não só não pertencem ao lado religioso das festividades
como aponta para a sensualidade, a malícia e a sexualidade, e isso
nos indica um ethos mostrado da cidade (de seus habitantes ou, pelo

181
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

menos, dos participantes da festa) diferente do ethos prévio e do


ethos dito, o de povo trabalhador - mas a cidade para uma semana
para os festejos... - e religioso: o ethos festeiro e sensual. Essa análise
do ethos está atrelada também ao estudos dos valores, evidenciando
que a diversão da festa e tudo aquilo que a ela está agregada é mais
importante nesses dias do que a religiosidade ou os costumes morais
que imperam no resto do ano.
Sem nenhuma pretensão de julgamento, e inclusive acreditando
que a diversão, a sexualidade e a religião fazem parte da vida das
pessoas, terminamos o artigo com a certeza também de que outras
considerações poderiam ser feitas e de que outros aspectos são
importantes para a significação desses textos. Quanto ao ethos
encontrado, provavelmente é este o esperado pela maioria das
pessoas para caracterizar o participante de uma festa nos dias de
hoje, conforme preconiza a mídia.

Referências bibliográficas

ALVES, Regina Simões. O Processo de formação de palavras com o sufixo


aumentativo –ão: uma análise cognitivista. Dissertação de mestrado em
Letras. Rio de Janeiro, RJ, 2011.
ARISTÓTELES (384-322 a.C.). Retórica. Trad. de Edson Bini. São Paulo: Edipro,
2011.
CANASSA, Rosângela Donizete. A caixa de Pandora: as deusas e o feminino
no cinema. Dissertação de mestrado em Artes. São Paulo, SP, 2007.
Disponível em: <http://www.ia.unesp.br/Home/Pos-graduacao/Stricto-
Artes/dissertacao_roscanassa.pdf>. Acesso em: 26/08/2013, às 15h13min.
COSTA, Jean Henrique. Indústria cultural e forró eletrônico no Rio Grande
do Norte. Tese de doutorado em Ciências Sociais. Natal, RN, 2012.
DICIONÁRIO Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
FARINA, Modesto. Psicodinâmica das cores em comunicação. São Paulo:
Edgard Blücher, 1990.

182
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

MAINGUENEAU, D. ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, R. (Org.)


Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto,
2005. p. 69-92.
MOSCA, L. do L. S. Metáfora e visão do mundo: a ruptura do estereótipo.
Intercâmbio, São Paulo, vol. VII, p. 95-102, 1998.
MÜLLER, A. L. de P. e VIOTTI, E. do C. Semântica Formal. In: FIORIN, J.L. (Org.).
Introdução à Linguística II - princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2003.
p. 137-159.
OLIVEIRA, Roberta Pires de. Semântica. In: MUSSALIM, F. e BENTES, A. C.
(Orgs.). Introdução à linguística: domínios e fronteiras. v. 2. São Paulo:
Cortez, 2006. p. 17-46.
PERELMAN, Chaïm e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação:
A nova retórica. Trad. de Maria E. de A.P. Galvão. São Paulo: Martins Fontes,
2005. [original de 1958].
PIETROFORTE, A. V. S. e LOPES, I. C. A semântica lexical. In: FIORIN, J.L. (Org.).
Introdução à Linguística II - princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2003.
p. 111-135.
PREFEITURA DE ITABAIANA (site oficial). Disponível em: <http://www.
itabaiana.se.gov.br/>. Acesso em: 5 dez. de 2013.

183
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

DIVERSIDADE E TRADIÇÃO NA PROPAGANDA


DO COMÉRCIO ITABAIANENSE

Jussany de Jesus Oliveira

Introdução

Neste artigo analisaremos as propagandas de carros de som que


circulam na cidade de Itabaiana anunciando o comércio da “Cidade
dos Ceboleiros”, como é conhecida. Temos como objetivo mostrar
do que tratam essas propagandas, como são linguisticamente
construídas e o que elas dizem, discursivamente, dos itabaianenses.
Trata-se de propagandas de Supermercado, Posto de Gasolina, Ótica,
Loja de móveis, Loja de Roupas, Lanchonete e Restaurante, todas
coletadas no dia a dia da cidade. Através delas mostraremos um
pouco da identidade do comerciante e do comprador itabaianense.
A agricultura é a base econômica do município. Grande produtor
de mandioca, tomate, batata-inglesa e cebola, sendo este último
produto o que justifica o nome dado aos seus moradores: “ceboleiros”.
Atualmente, Itabaiana é um dos centros mais dinâmicos do Estado de
Sergipe, destacando-se por suas atividades e produtos agrícolas. Em
Itabaiana existe um centro distribuidor de produtos agrícolas, que
hoje funciona no Mercado Hortifrutigranjeiro, criado em 1991, e que
exerce uma grande atuação em sua microrregião. Esse mercado foi
criado com o objetivo de melhor organizar a feira, já que é dela que
muitas pessoas tiram seu sustento.
O comércio de Itabaiana destaca-se por ser o principal do
interior sergipano. A cidade dispõe de um grande número de
estabelecimentos comerciais, com destaque para o comércio do
ouro, que é comercializado em grande escala e com variedade de

185
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

produtos. Essa grande variedade de produtos e os preços acessíveis


contribuíram para que Itabaiana ficasse conhecida também
como “Terra do Ouro”. A indústria se faz presente em pequenos
estabelecimentos industriais como: calçados, bebidas, cerâmicas,
móveis, algodão, alumínio e outros. A maior renda, porém, está
concentrada em fretes de caminhões.
Quando se fala em comércio, fala-se sobre propaganda, já que ela
é uma de suas grandes aliadas. A propaganda volante é que ganha
destaque em nosso trabalho. As aqui analisadas foram coletadas nos
próprios locais de circulação dos carros de som e posteriormente
transcritas para análise. Selecionamos as que estavam circulando
nas ruas de Itabaiana durante o período de coleta de material para
o corpus. Como nosso objetivo é analisar a linguagem verbal, não
focalizaremos os aspectos prosódicos e o ritmo, nem a aparência
dos suportes dessas propagandas ou de quem os transporta, mas
faremos alguma indicação quando isso fizer diferença na análise do
conteúdo verbal.
Para analisar esses textos começamos por uma revisão da
literatura referente à Retórica e à Argumentação e depois expomos
algumas das propagandas que foram analisadas, chegando assim a
considerações a respeito das características do comércio de Itabaiana
e mostrando um pouco dos comerciantes e compradores da cidade.

1. Em busca da propaganda perfeita (ou metodologia)

Não é muito difícil encontrar a propaganda volante (assim como


o anúncio volante, que não tem o objetivo de vender um produto)
na cidade de Itabaiana. Esses carros geralmente circulam pelo centro
da cidade. Durante nossa coleta, nos meses de agosto a outubro de
2014, eles passavam nos seguintes endereços: Praça João Pessoa,
Rua São Paulo, Rua 7 de setembro e Avenida Doutor Luiz Magalhães.
No momento da coleta e da transcrição, a pesquisadora estava no
trabalho, em um escritório de contabilidade, situado no centro
da cidade, ou simplesmente caminhando pelas ruas da cidade

186
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

onde as propagandas circulam quase todos os dias. Para quem


mora em Itabaiana, não é difícil ouvi-las, ou até mesmo gravá-las
e transcrevê-las. Foram transcritas em torno de 11 propagandas,
das quais selecionamos algumas, abaixo analisadas, por chamarem
mais atenção e por serem de “ramos” diferentes. As análises das
propagandas foram de acordo com os textos teóricos lidos e levaram
em consideração as características da cidade.

2. Retórica, argumentação e ethos – análise das propagandas

As propagandas volantes da cidade, assim como as propagandas


de um modo geral, têm como objetivo chamar a atenção do público
e levá-lo a adquirir os produtos anunciados. Aqui daremos ênfase
às propagandas orais, as quais se diferem das gráficas. Segundo
Maingueneau (2001), a diferença se dá em razão dos suportes físicos,
já que o oral é transmitido por ondas sonoras e o gráfico por signos
inscritos em um suporte sólido. O autor coloca ainda que a oralidade
está ligada à instabilidade e escrita à estabilidade, de um modo geral,
mas que dependendo do gênero e da função do texto, o oral pode
necessariamente não ser instável e vice-versa. Ele ainda fala que
o texto escrito pode circular longe da origem, encontrar diversos
públicos sem precisar de mudanças, já no texto oral, o co-enunciador
partilha do mesmo ambiente que o locutor, reage de imediato ao
texto etc.
Os anúncios e as propagandas volantes da cidade são veiculados
durante a semana e até nos fins de semana pelas ruas. São carros de
sons e até mesmo mini-trios-elétricos, que podemos comparar com
uma miniatura de caminhão, trazendo por trás disso a característica
muito forte de Itabaiana, a cidade do caminhoneiro.

187
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

Figura 1: Mini-trio-elétrico com propaganda de ótica da cidade.

Nessa área da propaganda, temos como anunciador mais


conhecido e mais antigo em Itabaiana Tonho Torto, como é conhecido.
Um senhor que ganha o sustento com a veiculação volante de
propagandas do comércio e até mesmo anúncios de falecimento de
pessoas da cidade, como o transcrito abaixo, divulgado em um carro
de som, pelo próprio Tonho Torto:

Nota de falecimento, comunicação e convite; Faleceu


nesta cidade, o Sr.(a) (Nome Completo), mais conhecido(a)
por (apelido), o corpo está sendo velado no velatório
de Santo Antônio e Almas de Itabaiana, o sepultamento
será às 16hs, no cemitério de Santo Antônio e Almas de
Itabaiana. Seus filhos(nomes/apelidos), netos, primos,
genros... agradecem a todos que comparecerem a esse ato
de fé e piedade cristã.

A propaganda comercial, especificamente, busca construir uma


verdade sobre determinado produto ou comércio para persuadir
possíveis compradores. Foi em Aristóteles que surgiu a noção
de aparência de verdade, o que chamamos de verossímil. Assim
mostramos a ligação da retórica com a persuasão, desvinculada da

188
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

noção de verdade. Sua concepção de discurso convicto é aquele que


faz o público sentir-se identificado com o orador e sua proposta.
Quem adota esse conceito também, segundo Mosca (2001), são
Perelman e Tyteca, no Tratado de Argumentação.
No Tratado da Argumentação, Perelman e Tyteca (2002) afirmam
que o século XX foi o século da publicidade e da propaganda, e que
vários trabalhos foram desenvolvidos para compreendê-las. Assim como
em outros estudos das Novas Retóricas, os autores chamam a atenção
para o fato de que todo texto tem em vista persuadir ou convencer o
auditório, o que Perelman e Tyteca chamam de “adesão dos espíritos”.
Nas propagandas que analisaremos, veremos que, ao exibir nos
textos características comuns ao ouvinte, o locutor se aproxima
dele e o persuade, fazendo-o assim consumir o produto. Deste
modo, é em função de um auditório, definido por Perelman e
Tyteca como “o conjunto daqueles que o orador quer influenciar
com sua argumentação” (2005, p. 22), que qualquer argumentação
se desenvolve (p. 06). Ou seja, para que um discurso seja eficaz, é
necessário analisar-se o público ao qual o texto se dirige e só a partir
daí constrói-se a argumentação, escolhe-se um linguajar adequado,
usa-se figuras de argumentação e retórica etc.
Ainda de acordo com os autores do Tratado, toda argumentação
envolve “discurso”, “orador” e “auditório”, ou seja, a argumentação
em si, aquele que a apresenta e aquele a quem ela se dirige (2005,
p. 07). Em outras palavras, o discurso é sobre o que se fala, o orador
é aquele que fala e tenta persuadir, e a quem se dirige é o público.
Toda propaganda, assim como qualquer texto, terá esses elementos.
Tanto para Aristóteles como para Perelman e Tyteca, a retórica
se identifica com a teoria do discurso persuasivo, como já citamos
anteriormente. Mosca (2001, p. 21-22) retoma Perelman que diz que
argumentação e retórica são ligadas; fazendo uma comparação, diz
que não há discurso sem auditório, como não há argumentação sem
retórica. O discurso persuasivo age sobre os outros através da razão,
da palavra (logos); envolve o arranjo que os ouvintes conferem aos
que falam (ethos) e a reação dos que ouvem (pathos). Sendo assim,

189
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

é visto que o conhecimento da retórica é compreender o instruir, o


comover e o agradar. E isso é muito notório nas propagandas.
Para que haja esse instruir, comover e agradar vê-se, no Tratado
da Argumentação, que algumas condições são necessárias para
formar uma “comunidade efetiva dos espíritos” (2005, p. 17-18): a
presença de uma linguagem em comum, que ajude na comunicação;
argumentos adequados, que podem influenciar o interlocutor;
preocupação com o auditório e seu estado de espírito. A partir dessas
estratégias, é possível, por exemplo, na propaganda, nosso objeto
de estudo, chamar a atenção do ouvinte e fazer com que adquira
o produto. Para isso, tem que haver uma aproximação com esse
auditório e mostrar a ele algo que lhe interesse.
Muitos oradores, a fim de persuadir a qualquer custo, como
faziam os sofistas, costumam pensar que só falar sobre certos fatos e
apresentar algumas verdades é o suficiente, no entanto, só isso não
basta. Perelman e Tyteca (2005, p. 20) alertam para o fato de que
nas propagandas, por exemplo, é preciso, principalmente, ganhar
a atenção do auditório, despertar um certo desejo no público.
Os autores ainda afirmam que a maior parte das publicidades e
propagandas se preocupam em atingir um público indiferente, mas
que a argumentação é melhor desenvolvida quando se dirige a um
auditório específico. Assim, quanto mais se conhece o público que
se quer atingir, mais eficaz será a propaganda. (p. 20-21). Vê-se,
pois, que o orador não faz “à toa” seus discursos, ele pensa em seu
auditório, independente de atingi-lo totalmente ou em partes.
Voltando à Retórica de Aristóteles, na qual se arrumam os primeiros
dados para a definição da retórica como faculdade de descobrir o que
há de persuasivo em cada caso, vemos a valorização dos textos orais,
por isso a visão da retórica como a arte de se falar em público de
forma convincente. Em nosso objeto de estudo a oralidade também
é valorizada. Escolhe-se argumentos de acordo com a imagem que
se tem do auditório e se utiliza a fala do cotidiano nordestino, mais
precisamente Itabaianense, bem próxima do nosso meio, obtendo
assim uma proximidade com o auditório e o seu apoio.

190
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

Portanto, ao se analisar tais propagandas, observamos a


construção discursiva, tanto daquele que fala (ethos) quanto daquele
a quem elas se dirigem (pathos). Fiorin (2008) diz que o ethos é uma
imagem do autor, não é o autor real; é um autor discursivo, um autor
implícito. Já o pathos não é a reação do auditório, mas a de uma
imagem que o enunciador tem do enunciatário.
O ethos, por meio da enunciação, como coloca Maingueneau
(2001), revela a personalidade do enunciador e não do autor
empírico. Falando sobre a publicidade, o autor revela que esta
tende a persuadir, integrando o produto que vende a um corpo em
movimento, a um estilo de vida, um modo de habitar o mundo. O
estudioso da Análise do Discurso francesa ainda diz que a publicidade,
assim como a literatura, procura “encarnar”, por meio da própria
enunciação, aquilo que é evocado, tornando-se também sensível.
Ruth Amossy (2005) retoma algumas visões de alguns autores
em relação ao ethos. De acordo com a autora, Adam defende que
o conceito de ethos difere nas diversas abordagens dos estudos
do discurso. Segundo a autora, o ethos ultrapassa o quadro da
argumentação, sendo estudado em textos escritos e em textos que
não apresentam nenhuma sequência de tipo argumentativo. Além de
persuadir por argumentos, a noção do ethos traz uma certa posição
discursiva. Isso fica claro na filosofia, na política e na publicidade, a
qual focalizamos. Sua maior obrigação é conquistar o público, que tem
o direito de aceitar ou recusar aquilo que lhe é oferecido nos textos
(as representações discursivas do enunciador e do enunciatário, as
representações sociais, a imagem dos produtos etc).
Tendo em vista esses conceitos e nosso objetivo de analisar as
estratégias persuasivas utilizadas nas propagandas do comércio de
Itabaiana, mais especificamente aquelas divulgadas por carros de
som, podemos observar abaixo o trabalho discursivo dos sujeitos
nos textos em busca da persuasão do auditório. Como já dito
antes, de acordo com Perelman e Tyteca é em função do auditório
que se desenvolve qualquer argumentação, para isso se leva em
consideração a cultura, a tradição e um passado comum entre o

191
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

emissor e o ouvinte. A propaganda das Lojas Guanabaras, abaixo,


por exemplo, faz uso desse conhecimento do auditório específico
para atrair os consumidores:

Lojas Guanabaras dos Arrojadinhos


O menor preço e a menor prestação do Brasil
E é pra lá que vou, é lá que vai rolar (trecho da música de
Bruno e Marrone)
É nas lojas Guanabaras que eu vou comprar
E é pra lá que vou, é lá que vai rolar
É nas lojas Guanabaras que tem sempre oferta de montão
É pra lá que vou
Lojas Guanabaras dos Arrojadinhos.

Conhecendo o seu público, os compradores de sua loja, e


caracterizando-os como pessoas populares e simples, o orador aposta
na utilização da intertextualidade com a música “Pra lá que eu vou”, da
dupla sertaneja Bruno e Marrone. Vê-se, ainda o uso do sobrenome
da família dona do comércio, os Arrojadinhos, estabelecendo
uma “familiaridade” ou “comunhão” com os compradores, e uma
linguagem também simples e/ou coloquial, com repetição de termos
e estruturas sintáticas.
Percebemos nitidamente a importância dos papéis sociais nesta
propaganda da loja dos Arrojadinhos. Esse nome, Arrojadinhos, tem
toda uma tradição e uma história na cidade, pois Arrojadinhos foram
os pioneiros a venderem móveis em Itabaiana há muitas décadas.
Durante um certo tempo, a loja foi extinta e, em 2011, voltou, sendo
reinaugurada pelos filhos dos primeiros donos. E hoje, mesmo
depois de tanto tempo, muitos procuram a loja por conta do nome,
um passado que se faz presente, por isso a repetição várias vezes do
nome Arrojadinhos.
O nome Arrojadinho vem do patriarca da família, que era
conhecido por Sr. Arrojado. Esse apelido, segundo alguns moradores
mais velhos, veio por ele ser um cara valente (valente por ter sido
batalhador e vencer na vida, ou seja, “arrojado”), aventureiro e ao

192
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

mesmo tempo muito respeitado na cidade. Segundo informações de


um morador da cidade, Sr. Antônio Oliveira, 70 anos, o Sr. Arrojado
era um dos mais respeitados da cidade e tinha um vasto poder
aquisitivo. Esse morador ainda complementou suas informações
dizendo que o primeiro prédio de mais de dois andares construído
na cidade de Itabaiana, que se situava próximo à maternidade São
José, em Itabaiana, pertencia ao Sr. Arrojado, comprovando assim
sua riqueza.
Nesse conceito de aproximação com o cliente também se encaixa
a propaganda do Supermercado Irmãos Peixoto:

Música com diálogo:


“Minha muié quer comprar tudo que vê, só fala em
dinheiro, cê não sabe”
“Como essa mixaria que você me dá eu tô fazendo milagre,
vou no supermercado Irmãos Peixotos e compro tudo de
primeira”
“Supermercado Irmãos Peixoto é a solução quando a muié
é gastadeira”
“Mão de vaca”
“Gastadeira”
“Mas numa coisa nós concorda, bom mesmo é os Irmãos
Peixoto”.

Utiliza-se na propaganda um linguajar muito coloquial e próximo


de um povo caipira, através de um diálogo entre um casal. A
intertextualidade também se faz presente aqui, com um fundo musical
de um toque sertanejo, caracterizando assim um povo, e o estereótipo
da mulher gastadeira pode revelar um povo machista e tradicional. Em
relação ao nome do supermercado, também vem de todo um histórico
do passado, os Peixotos constituem uma das famílias mais respeitadas
em Itabaiana atualmente. E pode-se dizer que é a família da cidade
que mais tem comerciantes na família, que vai de pai até netos.
O sobrenome Peixoto vem do patriarca da família, Sr. Bartolomeu
Peixoto, homem batalhador, que veio da roça e conseguiu “subir na

193
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

vida”; este faleceu há poucos anos. Nas lojas de Itabaiana encontramos


livros falando da vida desse batalhador, escrito por seu filho, atual
comerciante de Itabaiana, Josias Nunes Peixoto, irmão de Daniel
Peixoto, dono do supermercado divulgado na propaganda em análise.
A partir destes exemplos, voltamos a Perelman e Tyteca que
deixam claro que a argumentação também se utiliza da hierarquia
e não apenas de valores abstratos e concretos. Aqui a hierarquia é
relativa à superioridade de famílias que se perpetuam até hoje no
mercado. Os autores ainda afirmam que o grau de superioridade
pode ser caracterizado por uma maior quantidade de certo caráter
(2005, p. 91).
Marcuschi (2008, p. 130), diz que a “intertextualidade é uma
propriedade constitutiva de qualquer texto e o conjunto das
relações explícitas ou implícitas que um texto ou um grupo de textos
determinado mantém com outros textos”. O autor diz ainda que a
intertextualidade supõe a presença de um texto em outro e retoma
Koch (KOCH, 1991, p. 532, apud MARCUSCHI, 2008, p. 131), que afirma
que a intertextualidade seria “a relação de um texto com outros
textos previamente existentes, isto é, efetivamente produzidos”.
Percebemos essa estratégia nas propagandas das Lojas Guanabaras,
ao introduzirem a Música “Pra lá que eu vou” de Bruno e Marrone;
da Ótica Versatium, ao utilizarem a música de parabéns durante a
propaganda, por se tratar do mês de aniversário da cidade, e na
do Supermercado Irmãos Peixoto, ao introduzirem um diálogo com
um sotaque caipira e um fundo musical estilo música sertaneja. Ou
seja, nesses textos encontramos a presença de um texto já existente,
dentro de outro, com a função de chamar atenção e persuadir.
Ainda a respeito das propagandas, das argumentações e do
público, segundo Mosca (2011, p. 146), Perelman defende que a
argumentação é uma forma de persuasão, assim a linguagem não
é apenas um meio de comunicação, mas também uma forma de
convencer. Vemos isso na propaganda do Restaurante e Lanchonete
do Eduardo:

194
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

Restaurante e lanchonete do Eduardo


O segredo da comida caseira está no tempero.
Na lanchonete e restaurante do Eduardo você degusta
comida de qualidade, num ambiente climatizado e
aconchegante; cardápio variadíssimo, self-service, com a
melhor comida caseira.
Só na lanchonete e restaurante do Eduardo, sabor e preço
especial. Café da manhã nordestino completo, todas
quartas e sábado, lanchonete e restaurante do Eduardo,
aberto de segunda a sábado, Rua Campo do Brito, 252,
Centro de Itabaiana.

Ao argumentar que tem a melhor comida caseira, cardápio


variado, comidas nordestinas, etc. o locutor tenta persuadir o
ouvinte por meio de argumentos da qualidade (a melhor comida) e
da quantidade (variedade do cardápio).
Mosca (2001) vai nos mostrar que Austin e Benveniste falam que
a linguagem é um instrumento de interação social, ela atua sobre o
comportamento humano, levando o falante a partilhar seus juízos.
Assim ocorre nas propagandas, que visam a persuasão, atuando
sobre a vontade do povo, falando coisas do seu agrado e fazendo-o
consumir o que está sendo divulgado. Esse conceito concretiza o que
foi dito anteriormente por Perelman e Tyteca, que o orador pensa
antes em seu auditório. Percebemos isso em muitas propagandas,
principalmente na propaganda da Loja Ciamar:

Loja Ciamar, a loja das grifes. Revendedora autorizada e


exclusiva das marcas: Lacoste, Aleatory, Calvin Klein, Ellus,
Gucci, Dudalina, Carmen Stefani, Arezzo, Victor Hugo e
Melissa. Revendedor autorizado e exclusivo.
Ciamar, vista este conceito
Ciamar, Ciamar, Ciamar, Ciamar.

Nesta propaganda, o orador se utiliza de marcas de roupas para


chamar atenção de um público e tentar vender o produto. Ducrot,
segundo Mosca (2001, p. 147) fala que não existe discurso neutro,

195
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

sem intenção, pois haverá sempre uma ideia pronta. É isso que
ocorre nos noticiários, a ideia já vem pronta. Assim, o valor de
argumentatividade de uma frase não é somente uma consequência
das informações existentes nelas, mas a frase contém várias
expressões, interpretações, que além do conteúdo informativo
servem de orientação argumentativa, conduzindo o destinatário em
tal direção. No caso das propagandas, a direção é o consumo.
Partindo para a estratégia linguístico-discursiva mais explorada
pela propaganda, vemos que, segundo Mosca (2011, p. 156), as
repetições dos termos são chamadas de harmonia imitativa e levam
a um efeito argumentativo mais complexo do que o de somente
ressaltar a presença do objeto do discurso, caracterizando-se
como uma figura de presença dentro da tipologia de figuras de
argumentação e retórica de Perelman e Tyteca, presente no Tratado
da Argumentação. A repetição faz a pessoa fixar aquela propaganda
e até mesmo consumir o produto oferecido. Percebemos muito isso
na propaganda do Posto São José:

Abastecendo aqui seu carro anda mais, combustível de


qualidade é posto Petrobrás.
Abastecendo aqui seu carro anda mais, combustível de
qualidade é posto Petrobrás.
E diga aí: É é é eu vi dizendo que o melhor é posto São José
É é é eu vi dizendo que o melhor é posto São José
É é é eu vi dizendo que o melhor é posto São José
É isso aí, Itabaiana e região já sabe o melhor posto da
cidade é o posto São José.

Esta propaganda é constituída pela repetição de vários termos e


versos que são cantados, o que ajuda muito na fixação do conteúdo.
Algo muito fácil de ser decorado e cantado, tudo já propositalmente.
Um dos donos do posto, Alan Carlos de Lima Santos, relatou que
estava à procura de uma propaganda que se fixasse na mente do
consumidor e que sem perceber o consumidor começasse a cantar,
involuntariamente, e realmente a música foi muito bem empregada.

196
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

Quanto ao nome do posto, percebemos a religiosidade, característica


muito presente na região, e que é um dos valores culturais do
município.
A repetição também é muito notória na propaganda da Ótica
Versatium, já citada quando falamos sobre intertextualidade:

(Começa com a música de parabéns e ela fica como pano


de fundo, enquanto um rapaz fala a seguinte mensagem)
Agosto é mês dos pais e aniversário da ótica Versatium,
para tantas comemorações a ótica Versatium oferece
muitas vantagens para seus clientes. Na compra de seus
óculos nas óticas Versatium pelo menor preço, à vista ou
à prazo, você concorre a uma tv e brindes, e tem mais, na
ótica Versatium tem exame de vista grátis com o médico
de sua escolha, ótica Versatium a qualidade de uma visão
melhor. Praça João Pessoa, 226, centro de Itabaiana.
(Segue a música de Parabéns)

Nesta propaganda, o locutor repete várias vezes o nome da ótica


e faz uso também da intertextualidade, visto que a propaganda vem
acompanhada pela música de parabéns, pois essa propaganda foi
gravada no mês de aniversário da loja, ou seja, no mês que em que a
loja veio para a cidade.

Considerações Finais

Neste artigo observamos que, geralmente, as propagandas volantes


em Itabaiana têm um linguajar próximo do povo itabaianense, até
mesmo porque são criadas por pessoas da cidade para persuadir os
habitantes locais, ou seja, visam a um auditório particular, específico.
As principais estratégias utilizadas para conseguir a persuasão são
a repetição e a intertextualidade. Em relação ao ethos evidenciado
nesses textos, vemos em Amossy (2005) que o ethos prévio é a
imagem que existe antes do locutor tomar a palavra, e o ethos
discursivo é a imagem que ele constrói em seu discurso. Nos textos

197
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

analisados, confirma-se o ethos de povo trabalhador, ligado a valores


e costumes tradicionais.

Referências bibliográficas

AMOSSY, R. (org) Imagens do si no discurso: a construção do ethos. São


Paulo: Contexto, 2005.
FIORIN, J. L. Em busca do sentido: estudo discursivo. São Paulo: Contexto,
2008.
MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez,
2001.
MARCUSCHI, L.A. Produção Textual, análise de gêneros e compreensão.
São Paulo: Parábola Editorial, 2008, p. 129-132.
MOSCA, L. do L. S. (org.) Retórica de ontem e de hoje. São Paulo: Humanitas,
2001.
PERELMAN, Chaim; TYTECA, Lucie Olbrechts- Tratado da Argumentação: A
nova retórica. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2ª
Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
Itabaiana e sua história. Disponível em: http://www.guiadeitabaiana.com.
br/artigos/historico.pdf

198
Diversas faces de Itabaiana: análises de imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros

SOBRE OS AUTORES

Organizadores/autores

• FLÁVIO PASSOS SANTANA


Formado em Letras Português e mestrando em Estudos Linguísticos
pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Durante a graduação
participou de projetos de pesquisa na área de análise do discurso,
argumentação e retórica. No mestrado, desenvolve pesquisa
relacionada à argumentação, cinema e intertextualidade. Atualmente
é integrante dos seguintes grupos de pesquisa: CIMEEP, LED e GPARA.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7361549897670974

MÁRCIA REGINA CURADO PEREIRA MARIANO


• Mestre em Linguística e doutora em Língua Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP). Desde 2011 é Professora Adjunta
na Universidade Federal de Sergipe (UFS), no Departamento de
Letras do campus Prof. Alberto Carvalho, em Itabaiana. É também
professora do Mestrado Profissional em Letras, Profletras, na
mesma instituição, e desenvolve projetos relacionados ao ethos, à
argumentação e ao ensino de Língua Portuguesa. É integrante dos
grupos de pesquisa: GERAR (USP), LED e GPARA (UFS) e um dos
membros fundadores do CIMEEP.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4756140936182200

199
Organização: Márcia Regina Curado Pereira Mariano e Flávio Passos Santana

Autoras

• MICHELLE LIMA
Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de
Sergipe (UFS) e graduada em Letras – Português e suas Literaturas
pela mesma instituição. Atua principalmente em pesquisas na área
de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Participou também de
projetos nas áreas da Linguística cognitiva e da Análise do Discurso.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5634896804139376

• LUCIANA ALMEIDA SANTOS


Graduanda em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas
e servidora pública federal do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª
região. Possui graduação incompleta em Letras pela Universidade
Federal de Sergipe. Tem experiência como pesquisadora nas subáreas
da Literatura e da Análise de Discurso e atualmente desenvolve
estudos ligados ao Direito do Trabalho, especificamente ao trabalho
escravo e seus consequentes impactos na sociedade contemporânea.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5223360112790744

• JUSSANY DE JESUS OLIVEIRA


Graduanda no curso de Letras-Português pela Universidade Federal
de Sergipe, no campus de Itabaiana. Tem experiência em pesquisas
sobre o ethos e atualmente participa de um projeto sobre a poesia
épica brasileira. É bolsista no Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação à Docência (PIBID-CAPES).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9538817298182049

200
Joselito Miranda de Souza • DRT 01409/SP
Contatos: (79) 99131-7653 • 3043-1744
joselitomkt@hotmail.com

Font: calibri, 11
Tamanho: 15x21
Miolo: Polen 90g
Capa: Supremo 250g

Você também pode gostar