Você está na página 1de 33

See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.

net/publication/343112616

O LUGAR NA LINGUÍSTICA PERCURSOS DE UMA (R)EVOLUÇÃO, Maria da


Penha Pereira Lins, Rivaldo Capistrano Júnior, Rosani Muniz Marlow (Org.)

Chapter · July 2020

CITATIONS READS

0 1,596

2 authors:

Rivaldo Capistrano Júnior Vanda Elias


Universidade Federal do Espírito Santo Universidade Federal de São Paulo
12 PUBLICATIONS   2 CITATIONS    24 PUBLICATIONS   65 CITATIONS   

SEE PROFILE SEE PROFILE

Some of the authors of this publication are also working on these related projects:

Linguística Textual em interfaces View project

All content following this page was uploaded by Rivaldo Capistrano Júnior on 21 July 2020.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


Maria da Penha Pereira Lins
Rivaldo Capistrano Júnior
Rosani Muniz Marlow(Orgs.)

O LUGAR NA LINGUÍSTICA
PERCURSOS DE UMA (R)EVOLUÇÃO
Maria da Penha Pereira Lins
Rivaldo Capistrano Júnior
Rosani Muniz Marlow(Orgs.)

O LUGAR NA LINGUÍSTICA
PERCURSOS DE UMA (R)EVOLUÇÃO

PPGEL-UFES
Vitória
2019
Editora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos
Universidade Federal do Espírito Santo
Reitor: Reinaldo Centoducate
Vice-Reitora: Ethel Leonor Noia Maciel
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Neyval Costa Reis Júnior
Diretor do Centro de Ciências Humanas e Naturais: Renato Rodrigues Neto
Coordenador do PPGEL: Luciano Novaes Vidon
Coordenador Adjunto: Gesieny Laurett Neves Damasceno

Ficha técnica Projeto gráfico e editoração:


Revisão: Dean Guilherme Gonçalves Lima
CTP, impressão e acabamento: GM Gráfica e Editora Ltda

Todos os direitos reservados e protegidos. Proibida a duplicação ou reprodução desta obra


ou partes da mesma, sob quaisquer meios, sem autorização expressa dos autores.

Os textos que compõem esse livro são de responsabilidade dos seus respectivos autores.

Conselho Editorial: Alexsandro Rodrigues Meireles, Ana Cristina Carmelino, Ana Paula
Duboc, Anahy Samara Zamblano de Oliveira, Cibele Brandão de Oliveira Borges, Daniel
de Mello Ferraz, Edenize Ponzo Peres, Fernanda Mussalim, Gregory Riordan Guy, Isabel
Roboredo Seara, Janayna Bertollo Cozer Casotti, Janice Helena Chaves Marinho, José
Olímpio Magalhães, Jussara Abraçado de Almeida, Lúcia Helena Peyroton da Rocha,
Luciano Novaes Vidon, Lilian Coutinho Yacovenco, Luiz Antonio Ferreira, Maria Flávia de
Figueiredo, Maria das Graças Soares Rodrigues, Maria da Penha Pereira Lins, Maria Silva
Cintra Martins, Marina Célia Mendonça, Maria Marta Scherre, Micheline Mattedi Tomazi,
Rivaldo Capistrano Júnior, Vanda Maria da Silva Elias, Vanice Sargentim.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO..........................................................................................................................7

A FILOSOFIA DA LINGUAGEM E A LINGUÍSTICA.....................................................................9


Arthur Araújo
Elaine Cristina Borges de Souza

O LUGAR DOS ESTUDOS BAKHTINIANOS NA LINGUÍSTICA CONTEMPORÂNEA:


DESAFIOS E CONTRIBUIÇÕES PARA UMA PRÁTICA RESPONSIVA/RESPONSÁVEL
COM A LINGUAGEM ................................................................................................................27
Guilherme Brambila
Luciano Novaes Vidon
Patrick Rezende

A SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA NA LINGUÍSTICA....................................................53


Juliana Rangel Scardua
Aline Berbet Tomaz F. Lauar

O LUGAR DA SEMIOLINGUÍSTICA NA LINGUÍSTICA...........................................................79


Araceli Covre da Silva

A LINGUÍSTICA TEXTUAL E OS ESTUDOS LINGUÍSTICOS.....................................................97


Rivaldo Capistrano Júnior
Vanda Maria Elias

TERRITÓRIOS DA PRAGMÁTICA NA LINGUÍSTICA...............................................................121


Rosani Muniz Marlow

A ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO NA LINGUÍSTICA.........................................................149


Ariel Sessa
Marta Aguiar da Silva
A ESTILÍSTICA NA LINGUÍSTICA ............................................................................................169
Elaine Cristina Borges de Souza
Karina Bersan Rocha

A SEMIÓTICA SOCIAL NA LINGUÍSTICA................................................................................185


Renata Barreto da Fonseca

A ANÁLISE DO HUMOR NO INTERIOR DA LINGUÍSTICA...................................................205


Maria da Penha Pereira Lins
Mônica Lopes Smiderle de Oliveira

A LINGUÍSTICA APLICADA PARA ALÉM DE SEU LUGAR NA LINGUÍSTICA.......................221


Marianna Cardoso Reis Merlo
Janayna Bertolo Cozer Casotti

AS TECNOLOGIAS DIGITAIS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO


(TDIC) NO ESCOPO DOS ESTUDOS LINGUÍSTICOS............................................................241
Isabel Cristina Gomes Basoni

AS CONTRIBUIÇÕES DA LINGUÍSTICA COGNITIVA E O USO FUNCIONAL DE


LÍNGUAS INTERPRETANTES....................................................................................................263
Flávia Medeiros Álvaro Machado

OS AUTORES............................................................................................................................295
APRESENTAÇÃO

Este livro, O Lugar na Linguística: percursos de uma (r)evolução, reúne um


conjunto de textos resultante de seminários, nos quais foram feitas reflexões sobre
questões da Linguística. Os trabalhos foram elaborados por alunos e professores do
Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGEL) da UFES, mais precisamente
no transcorrer da disciplina Evolução do Pensamento Linguístico, ofertada em
2018. A opção por este título se fez na medida em que se pode levar à interpretação
de que a Linguística, em seu percurso de evolução, foi congregando em seu
interior noções de outras disciplinas e integrando-se a outras áreas de estudos. Da
preocupação com a frase, de início, ao diálogo com outras ciências, em interface,
a Linguística se revolucionou em seus domínios, expandindo-se e oferecendo um
vasto e ainda crescente campo de possibilidades na busca de explicação para
fenômenos do uso da língua.
Ao longo do ano de 2018, dentro da linha de pesquisa Texto e Discurso,
e como objeto de discussões do Núcleo de Estudos sobre Texto e Discurso
(NETED), trabalhos dos principais autores da Linguística foram debatidos, e ideias
foram avançando no sentido de refletirmos sobre como podemos ter uma visão
panorâmica da Linguística hoje. O que temos aqui é apenas um aperitivo. Não
abordamos todas as correntes linguísticas em foco, mas passeamos nosso olhar
por interfaces que se fazem com a Linguística, alargando as possibilidades de
análise dos sentidos da linguagem humana.
Nesta publicação, são apresentados treze trabalhos dos seguintes pesquisadores:
Aline Berbert, Araceli Covre, Ariel Sessa, Arthur Araújo, Elaine Cristina Souza,
Karina Bersan Rocha, Flávia Machado, Guilherme Brambila, Juliana Scardua, Isabel
Cristina Basoni, Janayna Casotti, Luciano Vidon, Marianna Merlo, Maria da Penha
Pereira Lins, Marta Aguiar da Silva, Mônica Smiderle de Oliveira, Patrick Rezende,
Renata Barreto, Rivaldo Capistrano Jr., Rosani Muniz Marlow e Vanda Elias.
Foram focalizadas interfaces entre a Linguística e a Filososfia da Linguagem,
os Estudos Bakhtinianos, a Sociolinguística Variacionista, a Semiolinguística,
a Linguística Textual, a Pragmática, a Análise Crítica do Discurso, a Semiótica
Social, as Teorias do Humor, a Linguística Aplicada, a Linguística Cognitiva, a
Estilística e as Tecnologias Digitais.
Com essa configuração, pode-se observar uma excursão por diferentes noções
teóricas que dialogam com a Linguística em apoio ao entendimento de situações
que o uso da língua proporciona.
A finalidade desta publicação é constituir-se num locus de interlocução,
apresentando-se como um espaço de discussões teóricas em que possam vir à
tona estudos e debates sobre questões da linguagem. Esperamos que a leitura
dos textos desta coletânea seja uma importante contribuição para a divulgação e
ampliação dos estudos linguísticos em suas diferentes abordagens.

Maria da Penha Pereira Lins


Rosani Muniz Marlow
o lugar na linguística - percursos de uma revolução

A LINGUÍSTICA TEXTUAL E OS
ESTUDOS LINGUÍSTICOS
Rivaldo Capistrano Júnior
Vanda Maria Elias

FASE 1: LT de perspectiva sintático semântica (anos 60)


FASE 2: LT de perspectiva pragmática (final dos anos 70)
FASE 3: LT de perspectiva cognitiva (Anos 80)
FASE 4: LT de perspectiva sociocognitiva interacional (atualidade)

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Neste capítulo, chamamos a atenção para a Linguística Textual (LT), um campo


de investigação que tem como objeto de estudo o texto, e objetivamos tecer
algumas considerações sobre o seu papel na descrição, explicação e compreensão
de fenômenos de natureza textual.

97
o lugar na linguística - percursos de uma revolução

Considerando esse objetivo, e no intuito de apontar para possibilidades de


ampliação das pesquisas nesse campo, trataremos do texto em contexto das
novas mídias digitais, que ganha novos contornos, constituindo desafios para os
estudos em LT. Especificamente, procedemos à focalização de comentários na
rede social Facebook e, dentro desses, à análise de gifs e de emojis, recursos
imagéticos digitais, e de suas funções textual-discursivas atinentes à referenciação,
à topicalidade e, consequentemente, à construção da coerência hipertextual.

2 A LINGUÍSTICA TEXTUAL

A LT desenvolve continuamente suas questões teórico-analíticas por meio do


diálogo com outras disciplinas não só da Linguística, mas também das Ciências
Humanas, com o intuito de compreender e explicar o texto, considerando toda a
complexidade que lhe é constitutiva.
Historicamente1, a LT começou a se desenvolver na segunda metade dos anos
de 1960, na Europa Central, especialmente na Alemanha, e já experimentou
mudanças importantes em sua relativa curta história.
Mas o que motivou o seu surgimento? A motivação se dá com a constatação de
que a língua existe apenas em textos e de que “a gramática de frase não dá conta
do texto” (MARCUSCHI, p. 7, 1983).
Considerando essa justificativa, inicialmente, num percurso que vai da frase
para o texto, a abordagem transfrástica surge a partir da observação de fenômenos
linguísticos que não eram bem explicados pela linguística oracional, tais como
a correferenciação, a seleção de artigos, a correlação de tempos verbais, o uso
de conectores interfrasais etc. A atenção, portanto, se volta para os elementos
linguísticos por meio dos quais as sentenças são combinadas em sequências
coerentes de enunciados.
Da percepção do texto como um todo, que tem uma função comunicativa,
estudiosos assumem uma perspectiva comunicativo-pragmática e entendem que
o texto não é uma mera sequência de sentenças bem formadas e muito menos

1 Para mais informações sobre o surgimento e a trajetória da Linguística Textual, sugerimos a leitura das obras Linguística
de texto: o que é e como se faz (MARCUSCHI, 1983); Linguística Textual: introdução (FÁVERO; KOCH, 1983);
Introdução à Linguística Textual: trajetória e grandes temas (KOCH, [2004] 2015).

98
o lugar na linguística - percursos de uma revolução

se resume ao que se diz. O texto passa a ser estudado em relação às ações que
realiza.
Em uma visão voltada para a integração entre o texto e a sua função comunicativa,
reveladora das intenções dos sujeitos, a LT parte do pressuposto de que todo fazer é
acompanhado de processos de ordem cognitiva, uma vez que os sujeitos mobilizam
on-line diversos sistemas de conhecimento no processamento textual. O texto, em
perspectiva cognitiva, é resultado de ativação de processos mentais e se origina de
uma multiplicidade de operações cognitivas interligadas (KOCH, 2015).
No entanto, o entendimento de que a cognição é um fenômeno situado e
socialmente compartilhado abre nova perspectiva de estudo. Trata-se da abordagem
sociocognitiva e interacional segundo a qual “o texto é uma realização que envolve
sujeitos, seus objetivos e conhecimentos com propósito interacional” (KOCH; ELIAS,
2016, p. 32), e o sentido emerge com base na tríade linguagem-cognição-uso.
Sob o prisma da sociocognição, a LT assume o pressuposto teórico de que o
uso da linguagem não se presta ao espelhamento das coisas do mundo, mas a
uma construção negociada e situada do mundo, até porque não há uma relação
direta entre a linguagem e o mundo. Em outras palavras, é preciso considerar que
“a percepção é, em boa medida, guiada e ativada pelo nosso sistema sociocultural
internalizado ao longo da vida” (MARCUSCHI, 2008, p. 228). Esse entendimento
nos leva a considerar que a cognição, a interação e o social estão interligados
constitutivamente e integram as ações dos sujeitos.
Assim, os processos de construção e de interpretação de textos põem em
destaque:

i) a dimensão social e interacional, que considera os sujeitos, os grupos


sociais, os lugares e papéis sociais, os propósitos da interação, as funções
sociais dos textos, pressupondo que as interações são sempre situadas e
ancoradas em um contexto histórico e sociocultural;
ii) a dimensão cognitiva, que considera o que os sujeitos sabem (seus
conhecimentos, suas crenças, suas experiências), como dizem o que sabem
e como compartilham o conhecimento, pressupondo que a cognição se
constitui na interação e incorpora aspectos socioculturais.

É por isso que dizemos que texto e contexto estão imbricados. E o contexto
engloba uma infinidade de elementos acessíveis e relevantes para o processamento
textual. Ele vai sendo construído em função dos enunciados produzidos à medida

99
o lugar na linguística - percursos de uma revolução

que a interação acontece e daquilo que os sujeitos julgam ser pertinente à situação.
Em relação às funções do contexto, podemos destacar (i) o preenchimento das
lacunas do texto, (ii) a orientação ou alteração do que se diz e (iii) a explicação de
por que se disse isso e não aquilo. O texto 1 a seguir serve como exemplificação.
Texto 1

Loira endividada
Uma loira comenta sua situação desesperadora com um amigo,
frequentador da Igreja Universal:
- Estou numa maré de azar. Estou sem crédito na praça, devo para todo
mundo! Não vejo solução, não tenho como pagar. Estou desempregada,
sem dinheiro nenhum e cheia de carnês de várias lojas atrasados.
Aconselhada pelo amigo, a loira vai a um culto. Ela é, então, chamada
ao palco, onde fica com outros desesperados. De repente, um pastor
aproxima-se dela, coloca a mão direita em sua testa e começa a gritar:
- Saia deste corpo, demônio! Desaloja! Este corpo não te pertence!
Em nome de Jesus, afaste-se desta boa alma!
O pastor passa a gritar ainda mais alto: - Estou ordenando! Em nome
de Jesus, desaloja! Desaloja!
E a loira:
- Casas Bahia, Lojas Americanas, Ponto Frio Bonzão, C&A, Renner,
Magazine Luíza... 2

Em seu processamento, o Texto 1 requer a ativação do conhecimento de que:


• esse texto pertence ao gênero textual piada, cuja principal função social é
provocar o humor. Para isso, além da situação de interação imediata que
nos permite avaliar o momento em que contar uma piada é adequado ou
não, precisamos considerar que todo texto, da escolha de palavras à sua
organização em uma sequência narrativa com um desfecho inesperado,
revela um esforço por parte de quem o elaborou no sentido de assegurar
que o leitor realize inferências e associações e depreenda seu efeito
humorístico;

2 Fonte: FRANCHI, G. M. Os homens preferem as (piadas de) loiras: análise interdiscursiva de piadas de loira e de piadas
feministas. 2010. 164 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Programa de Pós-Graduação em Linguística,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010.

100
o lugar na linguística - percursos de uma revolução

• o humor é desencadeado por uma incongruência entre o que se espera e o


que ocorre na realidade. No caso da piada, a homofonia entre “desaloja” e
“diz a loja” é um importante elemento desencadeador do efeito humorístico:
para o pastor, desaloja se refere à ordem de expulsar o demônio do corpo
da fiel; para a loira, desaloja significa “dizer a loja”, consequentemente, ela
responde a ele enumerando as lojas onde tem dívidas;
• as piadas se baseiam em estereótipos partilhados entre culturas e grupos
sociais. Por isso, elas veiculam conceitos socialmente arraigados, como, na
piada em análise, a mulher loira, incapaz de reconhecer as intenções do
pastor;
• em algumas religiões, há práticas de se expulsar demônios, os causadores
dos problemas da vida.

Com base nessas considerações, podemos dizer que o sentido é construído com
base num sistema de conexões entre o texto e os sujeitos, seus conhecimentos, suas
intenções e expectativas, as relações intersubjetivas, os condicionamentos históricos-
sociais. É por essa razão que entendemos o texto como um objeto multifacetado
(KOCH, 2015; KOCH e ELIAS, 2016).
Mas, afinal, o que é texto? Para fazer jus ao texto em toda a sua complexidade
constitutiva, as definições precisam ser cautelosas. Sabemos, ainda, que o conceito de
texto pode variar de acordo com os objetivos de uma pesquisa e com a sua filiação
teórico-metodológica. Neste trabalho, vamos conceituar texto da seguinte maneira:

• o texto é uma realização humana, que assume uma dada configuração


organizada sobre um determinado suporte (papel, tela etc.) em interações
situadas e ancoradas socioculturalmente, constituindo-se num evento
comunicativo singular.

Cada texto, independentemente do seu tamanho ou da sua configuração,


evidencia um projeto de dizer. Isso quer dizer que a seleção de seus elementos
(linguísticos e não linguísticos) e a organização de suas informações de uma
determinada maneira apontam para a intencionalidade dos sujeitos, uma vez que,
com a linguagem, age-se sobre o outro, influindo sobre sua maneira de pensar e
seu comportamento ou fazendo com que o outro compartilhe de nossas opiniões
(ELIAS, 2016). Nesses termos, todo texto assinala ou explicita uma direção
argumentativa (KOCH, 2002).

101
o lugar na linguística - percursos de uma revolução

Tendo em vista o conceito apresentado, qual é a tarefa da LT? Para


respondermos a essa pergunta, recorremos às palavras da Profª. Drª. Mônica
Magalhães Cavalcante, líder do Grupo de Pesquisa Protexto, proferidas em
palestra na ocasião da realização do II Workshop em Linguística Textual: diálogos
interdisciplinares, evento ocorrido em Vitória/ES, na Universidade Federal do
Espírito Santo, nos dias 29 e 30 de novembro de 2018:

A análise de um texto incide, concomitantemente, sobre o enunciado,


irrepetível, e sobre suas regularidades. Embora o texto seja um objeto
empírico, realizado a cada enunciação, para cercar as diversas trilhas
de sentido possíveis, convocam-se categorias abstratas de análise,
como modos de interação, modalidades argumentativas, gêneros,
sequências, intertextualidades, referenciação, organização tópica e
marcas de heterogeneidade enunciativa (CAVALCANTE, 2018).

Para dar conta dessa tarefa, a LT tem cada vez mais estabelecido uma interface
com outros estudos do texto e do discurso, o que tem caracterizado o fazer a LT
no Brasil, assunto da próxima seção.

2.1 A LT PRATICADA NO BRASIL


Os primeiros trabalhos dedicados ao estudo linguístico do texto surgem no Brasil,
no final dos anos 1970. Nos anos de 1980, vêm a público trabalhos que contribuíram
significativamente para a divulgação e implementação da LT no país. Podemos destacar
os trabalhos de Neis (Por uma gramática textual, 1981); de Marcuschi (Linguística de
texto: o que é e como se faz, 1983); de Fávero e Koch (Linguística Textual: introdução,
1983) e de Fávero e Paschoal (Linguística Textual: texto e leitura, 1986).
Segundo a Profª. Drª. Leonor Lopes Fávero3, uma das pioneiras neste campo
de estudo no Brasil, o objetivo desses trabalhos foi o de apresentar um panorama
dos primeiros momentos da LT na Europa e de pôr em evidência os inúmeros
problemas provenientes da conceituação de texto e do estabelecimento de suas
propriedades, bem como as causas do surgimento da LT e a descrição de alguns
modelos já propostos.

3 Palestra proferida na abertura do II Workshop em Linguística Textual: diálogos interdisciplinares, nos dias 29 e 30 de
novembro de 2018, na Universidade Federal do Espírito Santo.

102
o lugar na linguística - percursos de uma revolução

De lá para cá, no Brasil, as perspectivas de estudo foram se ampliando tão


consideravelmente que, na atualidade, podemos afirmar que os pesquisadores estão
menos presos aos modelos europeus, como defendem Blühdorn e Andrade (2009):

A linguística textual brasileira hoje em dia parece estar mais


independente de modelos europeus do que nas fases anteriores da
sua história. Desde os anos 90, ela tem se desenvolvido cada vez
mais seu próprio perfil, determinado por discursos especificamente
brasileiros (BLÜHDORN; ANDRADE, 2009, p. 37).

Hoje, parte significativa dos trabalhos em LT, no Brasil, se guiam pela visão
sociocognitiva e interacional da linguagem e são marcados pela interdisciplinaridade
e pelo estudo do texto nos mais variados suportes e em diferentes contextos de
produção, circulação e recepção.
Mais especificamente, no que se refere ao diálogo teórico interdisciplinar,
destacamos as obras “Linguística Textual: diálogos interdisciplinares” (2017),
organizada por Rivaldo Capistrano Júnior, Maria da Penha Pereira Lins e Vanda
Maria Elias, e “Linguística Textual: interfaces e delimitações: homenagem a
Ingedore Grünfeld Villaça Koch” (2017), organizada por Edson Rosa Francisco de
Souza, Eduardo Penhavel e Marcos Rogério Cintra.
Essas obras, muito mais do que uma amostra de pesquisas interdisciplinares,
contribuem para a ampliação do conhecimento, propiciando uma reflexão crítica
no que se refere a conceitos, à ampliação de seu quadro teórico-metodológico e
ao seu campo de ação. Nesse sentido, chama a nossa atenção

[...] o tratamento de fenômenos linguísticos e textuais que, constituídos


no contexto da cultura digital, requerem a (re)elaboração de conceitos
e a descoberta de procedimentos capazes de dar conta dos muitos
aspectos envolvidos nos processos de produção e compreensão dos
textos (KOCH; ELIAS, 2016, p. 44).

Em relação ao texto na cultura digital, a Web 2.0 interativa, colaborativa e


descentralizada trouxe novas características e especificidades às produções
hipertextuais, que, além (i) da quebra de linearidade, ou seja, a extensão e a
flexibilização de oportunidades de organização de fluxos informacionais (nós),
ligados por elementos de conexão (links); (ii) da convergência das linguagens
verbal, sonora e visual e (iii) do gerenciamento por meio do computador ou
dispositivos móveis, são marcadas pela fluidez, pela interação poligerida, pela

103
o lugar na linguística - percursos de uma revolução

constante atualização, pela variedade de temas e de gêneros textuais.


Os textos não só são (re)criados ou excluídos com rapidez, mas também são
revisados e alterados por um ou vários usuários e lançados novamente na rede pelo
compartilhamento de dados, marcado pelo uso de links, hashtags, curtidas etc.
Feitas essas considerações, vamos trazer ao centro das nossas reflexões a
questão da coerência hipertextual. De modo mais específico, vamos analisar,
em comentários da rede social digital Facebook, funções de emojis e de gifs na
atividade referencial e na (des)continuidade tópica e, consequentemente, na
construção da coerência textual.

2.2 A COERÊNCIA
A coerência é um dos conceitos centrais da LT e sua concepção tem se alargado
ao longo dos tempos. Em perspectiva sociocognitiva interacional, a coerência
textual é muito mais do que uma simples relação de pertinência lógico-semântica
entre os conteúdos do texto. Vejamos:

Texto 2

Fonte: 32º Anuário de Criação, CCSP, p. 127.

104
o lugar na linguística - percursos de uma revolução

O texto 2 pertence ao gênero textual anúncio publicitário e seu objetivo é


angariar doações para a campanha “APAE em ação”. Para facilitar as nossas
considerações acerca da construção da coerência textual, vamos dividir o texto
em três partes.
• a primeira é constituída por uma sequência de quatro enunciados escritos a
mão. Cada um contém diferentes valores para a doação com os respectivos
números de telefone. A variação no tipo de letra cursiva, numa dimensão
argumentativa, mostra não só o progresso na coordenação motora, mas
também sugere que, quanto maior for a contribuição, mais condições
a APAE terá de propiciar o progresso motor-intelectual do portador de
deficiência.

• a segunda parte é formada por duas sequências de enunciados e pelos


logotipos da APAE e da BAND. O processamento dessas informações solicita
a ativação do conhecimento de mundo sobre (i) a APAE (Associação dos
Pais e Amigos dos Excepcionais), entidade filantrópica sem fins lucrativos
e (ii) a BAND (Rede Bandeirantes), rede brasileira de televisão aberta.
O enunciado em negrito “Quanto mais você ajuda, mais progresso eles
fazem” ganha destaque visual e sinteza as ideias, os objetivos da campanha,
contribuindo argumentativamente no incentivo às doações. Além disso,
chama a atenção o pronome “eles”, que não retoma pontualmente nenhum
elemento da explicitude textual, mas, inferencialmente, está ancorado na
imagem de uma adolescente com síndrome de Down, no canto inferior
direito da peça publicitária.

105
o lugar na linguística - percursos de uma revolução

• a terceira é formada pela imagem da adolescente, que


muito contribui para o ancoramento das informações
presentes nas demais partes do texto.

Na construção da coerência, solicita-se do leitor não


só a identificação desses componentes textuais, mas também, num esforço
interpretativo, o reconhecimento da conexão entre eles.
Assumimos que a coerência é uma construção situada e interativa, fundada
em conhecimentos diversos, em pistas textuais, em atividades cognitivas e em
realidades sócio-históricas e culturais. Como nem tudo está no texto, “a coerência
não é algo que pode ser identificado ou apontado localmente no texto, como se ela
fosse uma propriedade textual, mas é o fruto de uma atividade de processamento
cognitivo altamente complexo e colaborativamente construído” (MARCUSCHI,
2007, p. 13).
Mas o que dissemos sobre a coerência também é válido para o texto em
ambiente digital? Em que medida a hipertextualização impõe novos olhares
sobre a coerência textual? Em se tratando de hipertexto, Storrer (2009) relaciona
três fatores que influenciam o planejamento e a construção da coerência: (i) a
recepção descontínua; (ii) a falta de limites do suporte midiático que imputa ao
texto a flexibilidade em sua extensão, que não pode ser prevista; (iii) a falta de uma
ordem previsível de leitura.
Para discorrermos sobre isso, vamos analisar as práticas textuais de usuários da
mídia social digital Facebook. Inicialmente, teceremos considerações sobre essa
rede social.

2.3 O FACEBOOK
A criação do Facebook se deu em 2004, por alunos da Universidade de Havard,
com o objetivo de facilitar a comunicação entre eles (BARTON; LEE, 2015).
Desde então, a rede social sofre constantes atualizações. Essa mídia social digital
promoveu mudanças significativas não só na propagação em rede de informações

106
o lugar na linguística - percursos de uma revolução

por seus usuários ou por programas de computador que automaticamente


criam e disparam mensagens, mas também nas relações sociais, marcadas
pela interatividade, pela integração de dados, pela confluência de mídias e de
linguagens, traços constitutivos da Web 2.0.
Com 127 milhões de usuários ativos no Brasil4, o Facebook mantém interfaces
para diversos dispositivos, promove uma organização de fluxos informacionais
em arquitetura hipertextual e dispõe de ferramentas que promovem uma gama
de ações, tais como postar mensagens, fazer comentários e compartilhar dados,
possibilitando, assim, a comunicação, a interação e a sociabilização entre as
pessoas, o que caracteriza e constitui uma rede social online (RECUERO, 2009).
Em relação às suas funcionalidades, “postar” é um recurso de atualização
de status, que (i) permite ao usuário realizar uma gama de funções discursivas,
como expressar opiniões, relatar estados de espíritos etc (BARTOON; LEE, 2015)
e (ii) abre espaços para a realização de comentários. Do ponto de vista textual-
discursivo, a postagem motivadora (ou post iniciador) focaliza o conteúdo a ser
tratado.
Abaixo da postagem motivadora, o plug-in (botão) “curtir” permite aos usuários
conectados aprovar (“dar um like”) o conteúdo, expressar reações e emoções
por meio de emojis. De acordo com Mittermayer e Santaella (2014), o recurso é
um mero dado numérico, que, se for elevado em relação às outras informações
publicadas, permite que o post iniciador se mova, ganhando posição de destaque
na linha do tempo (timeline).
O botão “compartilhar” possibilita a divulgação e a socialização da informação
publicada. A ação de compartilhar possibilita que o usuário, caso queira, acrescente
um comentário ao conteúdo compartilhado (MITTERMAYER; SANTAELLA, 2014).
Por sua vez, “comentar” permite agregar à postagem motivadora um comentário
(postagem reativa), cujos propósitos comunicativos vão da manutenção/
estabelecimento das relações sociais à manifestação de pontos de vistas e de
reações, agindo como minifóruns de discussão (BARTON; LEE, 2015).

4 Folha de São Paulo: Facebook chega a 127 milhões de usuários mensais no Brasil - No país, rede social tem mais
usuários ativos do que WhatsApp. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/tec/2018/07/facebook-chega-a-
127-milhoes-de-usuarios-mensais-no-brasil.shtml>. Acesso em out. 2018.

107
o lugar na linguística - percursos de uma revolução

Os comentários têm como características gerais a informalidade, a constante


atualização, o que permite sua edição ou a sua exclusão, e a configuração textual
variada. Além disso, põem em evidência a dupla face da leitura/escrita em suporte
digital, visto que os usuários, além de leitores, são incitados a interagir com as
suas apreciações e opiniões, desencadeadas pela postagem do texto motivador ou
pelos comentários já elaborados (réplicas).
Do ponto de vista textual-discursivo, os comentários podem ou não desenvolver
ou ampliar aquilo que foi focalizado na postagem motivadora. Portanto, a (des)
continuidade do tópico instaurado vai depender muito da focalização, entendida
como a atenção direcionada para o tema em andamento (SCHNOTZ, 2009),
da ativação de conhecimentos prévios e da relevância que isso assume para os
usuários.

2.3.1 Comentários online: referenciação, continuidade tópica e coerência


Embora postagem motivadora e postagem reativa tenham espaços próprios
no Facebook, a informação adicionada nos comentários se vincula à postagem
motivadora, promovendo a ampliação/continuidade do tópico em andamento e
convergindo para um sentido global (coerência). Assim sendo, o texto motivador se
desdobra em comentários, os quais, por sua vez, podem gerar outros comentários,
já que um usuário pode seletivamente ler qualquer comentário e responder a ele,
no momento e ordem que lhe convier.
Trata-se de uma produção hipertextual que (i) se constitui em torno de tema(s)
proposto(s); (ii) envolve muitos usuários tantos quanto quiserem participar com
a publicação de comentários, sem a preocupação com fatores como espaço ou
tempo; (iii) se prolonga de acordo com a participação online de leitores na forma
de comentários; (iv) incorpora links que remetem a textos, fotos ou imagens (ELIAS,
2015).
Assim, defendemos que, na análise da progressão tópica e da coerência
hipertextual, a postagem motivadora e os comentários (postagem reativa) não
devem ser analisados como textos isolados, mesmo que sejam produzidos por
sujeitos sociais distintos e tenham seus próprios espaços. A postagem motivadora
e os comentários são complexos conglomerados de texto em cujo fluxo emergem
referentes, aquilo de que se vai tratar, em conformidade ou não com o tópico
discursivo instituído (CAPISTRANO JÚNIOR, ELIAS, 2018).
Isso porque o processo interacional no Facebook se assemelha a um conjunto

108
o lugar na linguística - percursos de uma revolução

de conversas múltiplas, um polílogo (MARCOCCIA, 2004). Além disso, a


recepção descontínua permite que, em algumas situações, os tópicos instaurados
nos comentários se afastem do post iniciador, ramificando-se em uma “conversa
paralela”. Vejamos:
Texto 3

Fonte: <https://www.facebook.com/UOL/>. Acesso em 31 de mar. 2019

O tópico que compõe a notícia é a estreia do filme Dumbo, da Disney. A


postagem, na ocasião da captura da tela em 31 de março de 2019, gerou 230
curtidas, 16 comentários e 9 compartilhamentos.
Na depreensão do tópico, atuam de modo relevante os referentes apresentados
por meio das expressões linguísticas “filme da Disney”, “Dumbo” e por meio da
imagem do elefante Dumbo.
Para nossas considerações, selecionamos três comentários relacionados à
postagem (Texto 3), agrupados de acordo com a (des)focalização do tópico em
andamento.

109
o lugar na linguística - percursos de uma revolução

Comentário 1 - foco no personagem do filme

O comentário 1 se configura na
forma de um gif5 de um menino cujos
lóbulos das orelhas se movimentam.
Mas o que isso tem a ver com o
personagem do filme?

O elefante Dumbo tem orelhas muito grandes, que ele usa para voar. Assim,
numa relação intertextual por alusão6, entendemos, por meio da mobilização

5 Segundo Lupinacci (2016), os GIFs (Graphics Interchange Format) são animações silenciosas e, frequentemente,
cíclicas. Amplamente inseridas em interações na Web, essas animações evidenciam emoções, reações, em resposta a
alguma postagem.
6 Segundo Cavalcante (2012), a alusão é uma referência indireta, uma pista para que o leitor encontre o referente não dito.

110
o lugar na linguística - percursos de uma revolução

de conhecimento partilhado, da percepção de intenção humorística, do


estabelecimento do intertexto entre o comentário e postagem motivadora, que o
gif alude ao principal personagem do filme. Vejamos mais detalhadamente:

• o referente que aparece no gif providencia pista sugestiva para a depreensão


do tópico em andamento e, consequentemente, para construção da
coerência, motor do processo de compreensão no qual o aproveitamento
dessas pistas e a cognição interagem dinamicamente (BLÜHDORN, 2008;
MARCUSCHI, 2007; ELIAS, 2015).
• a intertextualidade exerce função mediadora no processo de construção da
coerência entre os comentários e a postagem motivadora, o que permite
o estabelecimento de uma orientação temática entre eles, numa relação
de metatextualidade7. Além disso, a presença das relações intertextuais de
alusão e paródia contribui para o estabelecimento da conexão entre eles.

Comentário 2 - foco no filme

7 De acordo com Koch, Bentes e Cavalcante (2007), a metatextualidade corresponde a uma relação de “comentário” que
une um texto fonte ao outro que dele trata.

111
o lugar na linguística - percursos de uma revolução

112
o lugar na linguística - percursos de uma revolução

O comentário 2 assume a configuração de um gif, no qual aparecem dois


jogadores. Inicialmente um deles realiza uma dança coreografada, possivelmente
em comemoração a algum gol, uma prática muito comum entre os jogadores de
futebol. O gif utilizado sugere que o usuário comemora a estreia do filme Dumbo.

Comentário 3 - desfocalização dos tópicos em andamento

113
o lugar na linguística - percursos de uma revolução

O comentário 3 inaugura um novo tópico: pedido de curtida para a foto do colégio.

Mas a mudança do quadro referencial e tópico ocasiona uma incoerência?

• se levarmos em conta o modelo de interação típico das redes sociais digitais


com muitos usuários, que buscam dar a sua contribuição, a relevância e a
focalização que as informações assumem para cada um, uma contribuição
imprevisível pode surgir, como a do comentário 3;
• se pensarmos na dimensão argumentativa dos textos, pode ter sido a
intenção do usuário postar o seu pedido na página do UOL do Facebook,
para ganhar mais curtidas para sua postagem, tendo em vista o número de
usuários da página.

Assim, a desfocalização do tópico em andamento e a instauração de um novo


tópico não impedem a construção de sentidos.
Em síntese, a coerência hipertextual resulta de um trabalho interpretativo
baseado em aspectos contextuais e em pistas textuais que orientam as múltiplas
conexões que podem ser feitas no interior de um texto, entre textos e contextos.
Desta forma,

diante de um texto em constante reconfiguração devido à colaboração


de usuários em interação on-line, se conseguimos estabelecer uma
relação entre os textos; se podemos identificar uma orientação
temática e referentes implicados; se conseguirmos conectar os
textos aos contextos humanos em que ocorrem, com toda a sorte de
conhecimentos envolvidos nesse empreendimento; se conseguimos
construir para o arranjo textual uma dada moldura que nos permite
encerrá-lo momentaneamente num quadro interpretativo, então
podemos estender a arranjos textuais produzidos na interação em redes
sociais digitais a noção de coerência, como concebida na LT (ELIAS;
CAVALCANTE, 2017, p. 332).

A seguir, trataremos dos emojis e de suas funções nas interações do Facebook.

114
o lugar na linguística - percursos de uma revolução

2.3.2 Comentários online, emojis e produção de sentidos


Segundo o site www.emojipedia.org, em junho de 2018, havia aproximadamente
2.823 emojis no UNICODE. Com base nos estudos de Paiva (2016) e de Herring e Dainas
(2017), os emojis8 são figuras, que simulam elementos multimodais da interação face
a face. Trata-se de imagens coloridas de rostos, pessoas, animais, comidas etc., que,
imageticamente, atuam como importantes pistas de contextualização (GUMPERZ,
1998).
Seu significado é contextualmente delineado, uma vez que um mesmo emoji
pode ter interpretações diferentes de acordo com a situação e com a cultura. É o
caso do emoji um montinho de fezes que, no Japão, é usado como desejo de boa
sorte, mas, no Brasil, seu uso pode ser ofensivo, como exemplifica Paiva (2016, p.
385). Isso porque usar a linguagem é atuar conjuntamente sobre ela, em contextos
sociais de interação, numa constante negociação de referências e de sentidos,
como afirmamos em seção anterior.
Os emojis assumem primordialmente função interacional, uma vez que atuam
no estabelecimento e/ou na manutenção de contatos. Essa função é um aspecto
crucial em rituais de vinculação entre as pessoas e na construção de uma face
social pretendida (GOFFMAN, 1980, 2007).
Além da função interacional, estes elementos desempenham função
metacomunicativa, pois são respostas emocionais a um comentário. Simulam
gestos, expressões faciais ou prosódicas, evidenciando uma resposta emocional
(raiva, tristeza, frustração, alegria etc.) a uma postagem motivadora ou a um
comentário.
Os emojis não desempenham função meramente lúdica ou estética, no sentido
de tornar o texto mais divertido ou atrativo visualmente. São pistas multimodais de
que se valem os usuários para construir sentidos em suas interações na rede.
Além das funções interacional (estabelecer e manter contato) e metacomunicativa
(expressar reação emocional), os emojis atuam na atividade referencial e na
progressão tópica, evidenciando aprovação/desaprovação ou avaliação de
mensagem. São altamente dependentes do contexto e atuam como importantes
pistas de contextualização, que orientam os usuários acerca do(s) assunto(s)
focalizado(s) nos comentários. Vejamos o exemplo a seguir:

8 Segundo Paiva (2016), o termo emoji também tem sido usado para designar os stickers.

115
o lugar na linguística - percursos de uma revolução

Texto 4

Fonte: <https://www.facebook.com/UOL/>. Acesso em 02 de abr. 2019

O conjunto de referentes apresentados linguística e imageticamente no texto


aponta para o tópico instaurado: a descoberta do “besouro escorpião” no interior
de São Paulo. Isso evidencia como referência e topicalidade são dois aspectos
centrais da produção de sentido no texto. O conjunto de referentes orienta e se
associa ao tópico e a seus desdobramentos, ou seja, sua subdivisão em tópicos
coconstituintes.
A postagem da figura gerou 84 comentários, no entanto, para efeito de análise,
consideramos aqueles comentários que assumem a configuração de um emoji.

116
o lugar na linguística - percursos de uma revolução

Comentário

Segundo a emojipedia, o rosto amarelo gritando de medo é representado por


grandes olhos brancos, boca longa e aberta, mãos segurando o maxilar e uma testa
azul pálida. No comentário, indica horror e medo.
No que diz respeito à referenciação, seu uso encapsula a reação emocional à
postagem, constituindo-se numa marca de posicionamento do usuário e mantendo
a focalização no conteúdo da notícia.
Consequentemente, em relação à topicalidade, o emoji propicia a continuidade
do tópico em andamento, apresentando ao leitor uma reação em relação à notícia.
Trata-se de uma importante estratégia de estado de ativação da informação na
memória dos usuários, uma vez que possibilita o reestabelecimento da conexão
com o tópico instaurado na postagem motivadora.
Como vimos, são muitas as funções dos emojis: estabelecer e manter relações
interpessoais (função interacional), manifestar emoções e sentimentos (função
metacomunicativa) e atuar como encapsuladores, indicando procedimentos de
manutenção/expansão tópica, evidenciando avaliações (função textual-discursiva)
e, consequentemente, contribuindo para a construção da coerência.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A LT se apresenta como uma abordagem integradora no estudo das


operações discursivas e sociocognitivas reguladoras da produção, da recepção
e do processamento de textos em variados suportes e em diferentes contextos
de interação. Nessa empreitada, diálogos interdisciplinares são estabelecidos,
contribuindo, assim, para a ampliação de conceitos e do quadro teórico-
metodológico da LT.
Neste capítulo, chamamos a atenção para as práticas textuais no espaço da
rede, configuradas de forma participativa e interativa como ocorre nos comentários.

117
o lugar na linguística - percursos de uma revolução

Nossas análises foram orientadas no sentido de identificar o tópico que se


encontra em discussão em um conjunto de comentários, bem como os elementos
que contribuem para a sua identificação e continuidade; os conhecimentos
compartilhados entre os usuários revelados nos comentários que produzem; as
sinalizações verbais e não verbais, neste último caso, com atenção especial para
os gifs e para os emojis e suas funções na composição dos comentários e de seus
sentidos.
Retomando nossas considerações iniciais, podemos dizer que a LT vem
consolidando sua abordagem inter- e multidisciplinar no tratamento de fenômenos
textuais. Nesse quadro,

Novas questões de investigação estão à espera de definições; novos


procedimentos analíticos dependem da leitura de cada pesquisador
sobre este que é um rico quadro teórico indicativo de muitas
categorias de análise, nas diferentes abordagens que a Linguística
Textual possibilita (MARQUESI, 2018).9

REFERÊNCIAS

BARTON, D.; LEE, C. Linguagem online: textos e práticas digitais. São Paulo:
Parábola Editorial, 2015.
BLÜHDORN, H.; ANDRADE, M. L. C. V. O. Tendências recentes da linguística
textual na Alemanha e no Brasil. In: WIESER, H. P.; KOCH, I. G. V. (Org.). Linguística
textual: perspectivas alemãs. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, p. 17-46.
CAPISTRANO JÚNIOR, R.; ELIAS, V. M. Práticas de escrita no contexto digital:
elementos multimodais e coerência textual. In: SANTOS, Z. B.; PIMENTA, S.;
GUALBERTO, C. L. (Org.). Multimodalidade e ensino: múltiplas perspectivas. São
Paulo: Pimenta Cultural, 2018, p. 157-182.

9 Palestra proferida pela Profa. Dra. Sueli Cristina Maquesi (PUC-SP) na abertura do II Workshop em Linguística Textual:
diálogos interdisciplinares, nos dias 29 e 30 de novembro de 2018, na Universidade Federal do Espírito Santo.

118
o lugar na linguística - percursos de uma revolução

CAVALCANTE, M. M. Os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2012. (Coleção


Linguagem e Ensino).
ELIAS, V. M. Hipertexto e leitura: como o leitor constrói a coerência? In: CABRAL,
A. L.; MINEL, J. L.; MARQUESI, S. C. (Org.). Leitura, escrita e tecnologias da
informação. São Paulo: Terracota Editora, 2015, p. 53-74.
______. Estudos do texto, multimodalidade e argumentação. Revista Virtual de
Estudos da Linguagem, v. 14, p. 191-206, 2016.
______; CAVALCANTE, M. M. Linguística textual e estudos do hipertexto:
focalizando o contexto e a coerência. In: CAPISTRANO JÚNIOR; R.; LINS, M. P.
P; ELIAS, V, M. (Org.). Linguística textual: diálogos interdisciplinares. São Paulo:
Labrador/PPGEL-UFES, 2017, p. 317-338.
FÁVERO, L. L.; KOCH, I. G. V. Linguística textual: introdução. São Paulo: Cortez,
1983.
GOFFMAN, E. A elaboração da face. In: FIGUEIRA, S. A. (Org.). Psicanálise e
ciências sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1980, p. 76-114.
______. A representação do eu na vida cotidiana. 14ª ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
HERRING, S. C.; DAINAS, A. R. Nice Picture comment ! Graphicons in Facebook
comment threads. Proceeding of the Fiftieth Hawai’i International Conference
no System Sciences (HICSS-50). Los Alamitos, CA : IEEE, 2017. Disponível em:
<http://ella.slis.indiana.edu/~herring/hicss.graphicons.pdf>. Acesso em jun. 2018.
KOCH, I. G. V. Argumentação e linguagem. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2002.
______; BENTES, A. C.; CAVALCANTE, M. M. Intertextualidade: diálogos possíveis.
São Paulo: Cortez, 2007.
______. Introdução à linguística textual: trajetórias e grandes temas. 2. ed. São
Paulo: Contexto, 2015.
______; ELIAS, V. M. O texto na Linguística textual. In: BATISTA, R. O. (Org.). O
texto e seus conceitos. São Paulo: Parábola Editorial, 2016, p. 31-44.
LUPINACCI, L. Uma imagem (em movimento) vale mais do que mil palavras: GIF
animado como recurso expressivo. Revista Communicare. Vol. 2, No. 2, 2016.
MARCUSCHI, L. A. Linguística de Texto – o que é e como se faz. Recife:
Universidade Federal de Pernambuco, 1983 (Série Debates 1).

119
o lugar na linguística - percursos de uma revolução

______. Cognição, linguagem e práticas interacionais. Rio de Janeiro: Lucerna,


2007.
______. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola,
2008.
MARCOCCIA, M. Online polylogues: conversation structure and participation
framework in internet newsgroups. Journal of Pragmatics – an interdisciplinar
journal of language studies, v. 36, 2004, p. 115-145.
MITTERMAYER, T.; SANTAELLA, L. Dialogismo no facebook. In: SANTAELLA, L
(Org.). Sociotramas: estudos multitemáticos sobre redes digitais. São Paulo: Estação
das Letras e Cores, 2014, p. 91-100.
PAIVA, V. L. M. de O. A linguagem dos emojis. Trabalhos em Linguística Aplicada
[online]. 2016, vol. 55, n.2. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0103-18132016000200379>. Acesso em set. 2018.
RECUERO, R. Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2009.
STORRER, A. A coerência nos hipertextos. In: WIESER, P.; KOCH, I. G. V. (Org.).
Linguística textual: perspectivas alemãs. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, p.
98-120.

120

View publication stats

Você também pode gostar