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Reitor
Ricardo Luiz Louro Berbara

Vice-Reitor
Luiz Carlos de Oliveira Lima

Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação


Alexandre Fortes

Pró-Reitora Adjunta de Pesquisa e Pós-Graduação


Lúcia Helena Cunha dos Anjos

Diretora do Instituto de Ciências Humanas e Sociais


Maria do Rosário Roxo

Vice-Diretor do Instituto de Ciências Humanas e Sociais


Edison Peixoto Filho

Chefe do Departamento de Letras e Comunicação


Rívia Silveira Fonseca

Vice-Chefe do Departamento de Letras e Comunicação


Gerson Rodrigues da Silva

2
SEDA - Revista de Letras da Rural/RJ

Editora
Tania Mikaela Garcia Roberto, UFRRJ

Organizadores do Número
Tania Mikaela Garcia Roberto, UFRRJ
Mario Newman, UFRRJ

Assistente Editorial
Ester Souza

Capa e Projeto Gráfico


Ester Souza

Conselho Editorial
Carmen Pimentel, UFRRJ
Cláudia Finger-Kratochvil, UFFS
Elisa Abrantes, UFRRJ
Gerson Rodrigues Silva, UFRRJ
Ida Alves, UFF
Leonardo Mendes, UERJ
Marcelo Amorim, UFRN
Maria do Rosário Roxo, UFRRJ
Maria Teresa Gonçalves Pereira, UERJ
Otavio Rios Portela, UEA
Otília Lizete Heinig, FURB
Ronald Taveira, UFPI
Roza Maria Palomanes Ribeiro, UFRRJ
Victoria Wilson, UERJ
Vinícius Carvalho Pereira, UFMT

Conselho Consultivo
Cristina Elgue-Martini, Universidad Nacional de Córdoba, Argentina
Désirée Motta-Roth, UFSM
Germana Maria Araújo Sales, UFPA
Hanna Jakubowicz Batoréo, Universidade Aberta, Portugal
José Cândido de Oliveira Martins, Universidade Católica de Braga, Portugal
José Sueli de Magalhães, UFU
Leonor Scliar-Cabral, UFSC
Leonor Werneck dos Santos, UFRJ, Brasil
Maria da Conceição Coelho Ferreira, Université Lumière Lyon 2, França
María Elena Jaime de Pablos, Universidad de Almería, Espanha
Maureen Murphy, Hofstra University, Estados Unidos da América do Norte
Pedro Schacht Pereira, The Ohio State University, Estados Unidos da América
do Norte
Vera Lúcia Menezes de Oliveira Paiva, UFMG

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DLC - Departamento de Letras e Comunicação
ICHS - Instituto de Ciências Humanas e Sociais - UFRRJ
BR-465, Km 7 Seropédica - Rio de Janeiro
CEP. 23.897-000

FICHA CATALOGRÁFICA
Seda - Revista de Letras da Rural/RJ – v. 2, n. 4, set./dez., 2016. Seropédica (RJ):
Departamento de Letras e Comunicação/ICHS, 2016: quadrimestral.

ISSN: 2525-5940

I. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

SEDA - Revista de Letras da Rural/RJ. Seropédica/RJ, v. 2, n. 4, mai./ago., 2017.


Sumário
Dossiê: Estudos em Transformação
9 Claudia Rebello dos Santos
O legado russo na pesquisa em linguística
Bruna Scheiner Gomes Pimenta
aplicada: a Teoria da Atividade
Lilia Aparecida Costa Gonçalves
A representação de imigrante e de
sua representação de educação linguística Andressa Beatriz Gotzinger
na imprensa catarinense: um estudo 28 José Marcelo Freitas de Luna
historiográfico
A Consolidação da Revolução Cognitiva e
a Linguística: uma breve análise das
contribuições de estudos empíricos com 55 Adriana Lessa
indivíduos acometidos por patologias da
linguagem
Teachers and students’ challenges in
English as a Second Language creative 72 Carlos Eduardo de Araujo Placido
writing classes
Língua Portuguesa e estratégias
de leitura: processos inferenciais na obra 85 Ricardo Santos David
de Fernando Sabino
Ensaios

Réquiem e utopia 101 Flávio Ricardo Vassoler

Vária
Escrevendo em Língua
117 João Carlos Lopes
Estrangeira: uma pesquisa-ação com
Adriane Fernandes Vieira
alunos de Letras
Um estudo da relação entre
127 Wagner Alexandre dos Santos Costa
referenciação e gênero textual
Resenha

Os desafios e as novas travessias da


Linguística Aplicada no contexto 142 Francisco Jeimes De Oliveira Paiva
brasileiro da Cultura Digital

Diretrizes para autores 148


Apresentação

A revolução soviética de outubro de 1917, completou 100 anos no último outubro.


Evento histórico de largas proporções e repleto de simbolismos, sobretudo sob o signo da
transformação. Longe de querermos propor uma avaliação daquele evento e suas
consequências, não podemos deixar de referi-lo como símbolo das profundas
transformações de paradigmas econômicos, políticos, sociais, epistemológicos, científicos,
conceituais, filosóficos, artísticos etc. que marcaram o século XX e moldaram o momento
presente. Desse modo, a proposta dos organizadores para este número da Revista SEDA é
apresentar reflexões que tragam a marca das transformações nas concepções sobre
linguagens e seus estudos.
Essa provocação foi respondida por caminhos distintos e instigantes. Claudia Rebello
dos Santos, Bruna Scheiner Gomes Pimenta e Lilia Aparecida Costa Gonçalves abrem esse
número com um artigo que valoriza o legado russo ao abordarem a Teoria da Atividade, seus
fundamentos e desenvolvimentos por campos diversos, da psicologia à etnologia e às teorias
do aprendizado. O artigo apresenta as gerações que desenvolveram a Teoria da Atividade e
diferentes aplicações que encontra hoje.
Andressa Beatriz Gotzinger e José Marcelo Freitas de Luna pesquisaram narrativas
jornalísticas da imprensa catarinense de 1900 a 2015 para desenvolver um estudo de
Historiografia Linguística sobre as representações do imigrante e da maneira como se buscou
sua inserção linguística no ambiente brasileiro. Apresentam, desse modo, uma trajetória de
transformação da percepção e aceitação do outro na sociedade catarinense que pode servir
de espelho para outras do país.
O artigo de Adriana Lessa retoma a importância do desviante, do doente, do
acometido de distúrbios de linguagem para as ciências do século XX até os dias atuais,
pensando a natureza da linguagem e de seu aprendizado. Acompanha os processos de
associação de diferentes campos de conhecimento para, a partir de distúrbios como o
Alzheimer, compreender a linguagem e outros processos cognitivos como inter-
relacionados. Aponta, assim, a positividade com que novos paradigmas repensam o doente
como caminho de entendimento do sadio, e até mais, dos processos inter-relacionados de
formação cerebral e aquisição/domínio da linguagem.
Pesquisar sobre as potencialidades da atitude criativa diante do aprendizado de uma
língua estrangeira é o que nos traz o texto de Carlos Eduardo de Araujo Plácido. Em uma

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área de ensino tão dominada ainda pela repetição, essa reflexão se mostra oportuna e propõe
transformações ao trazer resultados de uma experiência bem-sucedida, dentro de bases
conceituais bem articuladas, com a prática de Escrita Criativa para o aprendizado da Língua
Inglesa como língua estrangeira.
O ensaio de Flávio Ricardo Vassoler parte de uma obra de Svetlana Alexievitch,
prêmio Nobel de literatura de 2015, e de suas próprias vivências na Rússia para refletir sobre
o fim do homem soviético. Nesse fim se entrecruzam de modo comovente os sonhos, a
utopia que motivava os homens em nome da revolução socialista e o que de pior os homens
podem fazer e fizeram em nome daquela mesma revolução sonhada para construir uma
utopia. O homem dentro da história com Deus e o Diabo combatendo em seu coração.
O artigo de Ricardo Santos David traz a análise das inferências para pensarmos
formas de transformação de práticas educacionais de leitura. O conceito de inferência, assim
como o desenvolvimento da teoria da inferência em leitura são apresentados e demonstrados
em sua aplicação sobre o texto “A piscina”, de Fernando Sabino. Salienta ainda a importância
da discussão sobre as questões sociais no trabalho com textos literários, especialmente em
sala de aula.
João Carlos Lopes e Adriane Fernandes Vieira se debruçam sobre as dificuldades
relacionadas ao ensino da escrita acadêmica em Língua Inglesa para discentes de Letras. A
importância de se perceber o texto como um processo, uma construção por etapas que se
encadeiam visando formar um conjunto completo não é de imediato percebida pelos
discentes. De igual modo, a necessidade de se desenvolver no educando a noção da
contraparte autoral, a compreensão do leitor. O caminho dessa jornada de conscientização
sobre a construção textual é analisado pelos autores.
Indagar sobre o quanto se relacionam os “objetos de discurso” e as formas dos
gêneros textuais é a questão que move o artigo de Wagner Alexandre dos Santos Costa. O
autor, através da análise de poemas, paródias e memes, investiga as possibilidades de
aproximação dos estudos de referenciação numa abordagem cognitivista-discursiva com as
unidades e categorias textuais pensadas como objetos de discurso. Neste movimento de
reflexão, os processos de recategorização assumem papel central.
Dentro do espírito das transformações, Francisco Jeimes de Oliveira Paiva encerra
este número com uma resenha sobre livro que trata de cultura digital e linguística aplicada,
multiletramentos digitais e transformações sociais decorrentes desses novos meios e
processos de ciberconexões, cibercognições.

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Ao fim da leitura deste número de SEDA podemos perceber que, a partir de proposta
ampla, certa unidade se realizou. A constância em torno do tema da transformação, e
também, certas matrizes russas de pensamento se mostram com certa regularidade. Diálogos
são estabelecidos entre artigos em torno do ensino da escrita, da leitura, da aquisição da
linguagem, das novas tecnologias digitais. Fechada a revista pelos organizadores, tudo que
esperamos agora é que ela se abra para o leitor e se realize. Uma ótima leitura!

Mário César Newman de Queiroz


Tania Mikaela Garcia Roberto

SEDA - Revista de Letras da Rural/RJ. Seropédica/RJ, v. 2, n. 5, mai./set., 2017, p. 6-8.


O legado russo na pesquisa em Linguística Aplicada: a Teoria da Atividade

Claudia Rebello dos Santos Santos


Bruna Scheiner Gomes Pimenta
Lilia Aparecida Costa Gonçalves

RESUMO
O presente artigo tem por objetivo realçar as contribuições dos russos Vygotsky, Leontiev e Davydov
para os estudos da linguagem, em especial, para a Teoria da Atividade (TA). Para isso, traçamos um
panorama histórico, apresentando as origens e as gerações da TA. Em seguida, indicamos pesquisas
recentes desenvolvidas em contextos mediados por tecnologias digitais de informação e comunicação
(TDIC) que utilizaram a Teoria da Atividade como arcabouço metodológico para análise de dados.

Palavras-chaves: Teoria da Atividade. Aprendizagem de línguas. TDICs. História da TA. Metodologia


de pesquisa.

Russian legacy in Applied Linguistics: Activity Theory

ABSTRACT
This paper aims at highlighting contributions to Language Studies from the Russians: Vygostky’s,
Leontiev's, and Davydov's, specially Activity Theory (AT). Thus, we present a brief historical overview
of AT, focusing on its origins and generations. Next, we present recent researches carried out in
contexts mediated by digital technology of information and communication (DTIC) which used
Activity Theory as method for data analysis.

Keywords: Activity Theory. Language Learning. DTICs. TA history. Methodology.

1 INTRODUÇÃO

A iniciativa de fazer nesta revista um dossiê para ressaltar o legado de pesquisadores,


autores e poetas russos na área de Letras e seus campos de pesquisa é extremamente louvável,
dada a grande variedade, relevância e abrangência de suas contribuições. São os diálogos entre
russos e brasileiros que vêm trazendo mais foco no social e contribuindo para o surgimento de
novos olhares para linguagem e contexto. Numa coletânea como esta, não poderia faltar um
destaque a uma teoria que surgiu na Psicologia e vem marcando presença em pesquisas de
cunho etnográfico em Linguística Aplicada e Educação: a Teoria da Atividade (TA).

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A Teoria da Atividade é uma abordagem de pesquisa desenvolvida por pesquisadores
na Rússia que busca a relação sócio-histórico-cultural de sujeitos e seus objetos e instrumentos
em seus contextos e grupos de atuação. A TA foi desenvolvida a partir de estudos de
Vygotsky, Leontiev, Davydov, entre outros pesquisadores nas áreas de Psicologia e Educação.
Mais recentemente, com visões de Engeström, a TA tem se difundido ainda mais no campo da
aprendizagem.
O objetivo central do presente artigo é destacar a contribuição dos russos citados na
transformação da concepção de linguagem e no desenvolvimento de desdobramentos de seus
estudos, dando destaque especial à TA. Inicialmente, traçamos um breve panorama histórico
da Teoria da Atividade, apresentando suas bases e seus precursores. Em seguida, abordamos o
papel que a teoria vem exercendo em pesquisas em Linguística Aplicada, com ênfase em
estudos sobre uso de Tecnologias Digitais de Interação e Comunicação (TDICs). Em um
terceiro momento, apresentamos uma breve descrição de pesquisas em Linguística Aplicada
que usam a TA para investigar o uso de TDICs em contextos educacionais e para buscar a
transformação desses contextos e a prática das comunidades onde estão inseridas.
Dessa forma, pretendemos dar nossa contribuição na reflexão sobre a importância do
legado de pesquisadores russos na compreensão mais ampla dos nossos contextos de pesquisa
em Linguística Aplicada e Educação, principalmente quanto ao uso de novos instrumentos
tecnológicos e seus impactos para uma prática realmente crítica, abrangente e transformadora.

2 BREVE HISTÓRICO DA TEORIA DA ATIVIDADE (TA)

Para compreender a Teoria da Atividade e sua relevância para pesquisas de cunho


etnográfico para descrever contextos e participantes e suas relações entre si, os instrumentos e
comunidade, é importante conhecer como a teoria teve seu início com pesquisadores russos e
as contribuições que outros pesquisadores vêm trazendo para a teoria nos últimos anos. A
seguir apresentamos as origens da TA e suas gerações.

2.1 Origens da Teoria da Atividade

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A Teoria da Atividade (TA), baseada no trabalho de Vygotsky e na filosofia de Marx e
Engels, surgiu nas décadas de 20 e 30, fundada por um grupo de psicólogos russos, dentre eles
Vygotsky, Leontiev e Luria. Tais estudiosos não estavam satisfeitos com a psicologia soviética
que estava sendo desenvolvida, postulada em conceitos behavioristas. Vygotsky expande a
teoria behaviorista ao cunhar o conceito de instrumento de mediação. O autor estava
preocupado em entender a relação entre consciência e atividade. (RUSSEL, 2002).
A base filosófica de Vygotsky estava em Marx. A filosofia marxista foi importante para
Vygotsky, pois permitiu que ele teorizasse acerca dos processos mentais e do uso de
instrumentos e do trabalho. Considerando o materialismo histórico dialético de Marx,
Vygotsky entendeu que, mesmo que individual, a consciência é construída nas relações sociais
mediadas por artefatos. (SCHETTINI, 2009).
A ideia de existência de artefatos mediando a atividade quebra a oposição entre estrutura
social e indivíduo. Vygotsky interpreta a linha de pensamento marxista relacionando-a às
questões psicológicas. Tal linha de pensamento é construída com base nos modos de produção
da vida material, os quais condicionariam a vida do homem nas esferas social, espiritual e
política, respectivamente. Para Marx, a história não é separada do homem em sua concepção,
ao contrário, as relações e interações com o mundo social o constituem. Essas relações estão
“em constante processo de mudança, e a sociedade humana, que é uma totalidade desse
processo do homem, está, igualmente, em constante transformação”. (SCHETTINI, 2009,
p. 11).
O conceito marxista de trabalho deu embasamento à TA. Para Marx, a condição da
existência humana está atrelada à atividade de trabalho. Para esse filósofo, o trabalho
transforma a sociedade e os indivíduos e vice-versa. Assim, os indivíduos buscam a construção
e a transformação de sua condição na sociedade. (SCHETTINI, 2009).
Segundo Marx, o trabalho é caracterizado

através de dois elementos essenciais: o instrumento e a atividade coletiva. O homem


entra em contato com outros homens através dessas atividades, que são mediadas
por instrumentos. O trabalho humano é uma atividade social cooperativa, com
funções divididas entre os indivíduos e com relações mantidas através da
comunicação entre os sujeitos da atividade. (SCHETTINI, 2009, p. 221).

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A visão materialista dialética de Marx entende que a atividade é orientada para um fim e
acontece no contexto social. Para a TA, a atividade humana não acontece de forma isolada,
mas em uma rede de atividades marcadas pelas relações sócio-histórico-culturais.
Essa perspectiva sobre atividade e consciência, adotada pela TA, apresenta outro ponto
de vista para as visões idealista e mentalista do conhecimento humano, que postulam que a
aprendizagem deve preceder a atividade. Para a TA, a aprendizagem consciente surge da e na
atividade e não antes dessa. (TAVARES, 2004).
Para os teóricos da atividade, a consciência está além de atos cognitivos isolados. A
consciência está localizada na prática do dia a dia: você é o que você faz, envolvido na matriz
social (incluindo pessoas e artefatos), da qual você é uma parte orgânica. (TAVARES, 2004).
Diante do exposto, conclui-se que a fonte científica para as pesquisas de Vygotsky estava
na filosofia marxista, que influenciou o surgimento e desenvolvimento da TA ao explicitar
conceitos como o social e a divisão do trabalho.

2.2 As gerações da Teoria da Atividade

Na época em que viveu Vygotsky, tentava-se explicar os processos mentais por meio de
testes e teorias empíricas e o funcionamento da mente com explicações fisiológicas. Assim
caracterizava-se a Psicologia Behaviorista, que reduzia as atividades humanas ao binômio
estímulo-resposta. Em oposição a tal linha da psicologia, Vygotsky atribui ao contexto social
uma grande importância para o entendimento de fenômenos psicológicos humanos. (HAWI,
2005).
O aprendizado, para Vygotsky, é um processo de apropriação de habilidades e
conhecimentos que acontece na interação com o contexto e outros indivíduos. Segundo esse
autor, a mediação das atividades acontece não somente por ferramentas materiais, mas
simbólicas também. Nesse último grupo, encontra-se a linguagem. Vygotsky

baseia a teoria dos fenômenos psíquicos na importância da linguagem e seu papel


constituidor do sujeito, dando-lhe uma função social e comunicativa na qual o
sujeito entra em contato com conhecimentos e adquire novos conceitos sobre o
mundo. (SCHETTINI, 2009, p. 224).

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Apresentando o conceito de mediação, Vygotsky (1978) expande a teoria behaviorista.
Para ele, o ser humano não reage de forma direta ao ambiente, mas de maneira mediada por
artefatos culturais. A ideia de mediação está baseada na teoria marxista de produção, na qual o
trabalho resulta no desenvolvimento humano. A atividade do trabalho ocorre na relação
homem-natureza. O homem age sobre a natureza transformando-a e, para que isso ocorra, o
homem cria instrumentos para realizar a atividade. Assim, as ferramentas mediadoras
modificam o objeto e, ao mesmo tempo, modificam quem as usa. Logo, o homem transforma
o objeto e é também transformado nessa relação. (HAWI, 2005).
A relação sujeito e objeto, que antes era representada de maneira direta, passa a
apresentar em sua representação a mediação de artefatos culturais conforme a figura a seguir:

Figura 1 - Mudança do processo simples de estímulo-resposta para a mediação proposta por Vygotsky.

Com o desenvolvimento da TA, a proposta de modelo inicial de Vygotsky é modificada.


Os termos estímulo e resposta são substituídos por sujeito (S) e objeto (O), respectivamente.
(RUSSEL, 2002). Tem-se, então a seguinte representação:

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Figura 2 - Reformulação do modelo de mediação de Vygotsky pela teoria da atividade.

O conceito de mediação, até hoje um dos conceitos da TA, representa a contribuição da


primeira geração de TA. A limitação dessa geração foi o foco no indivíduo. A segunda geração
foi inspirada no trabalho de Leontiev e buscou superar a limitação da primeira geração ao
destacar a importância de entender as ações inseridas no contexto de atividade coletiva.
(TAVARES, 2004).
Leontiev considerou incompleto o triângulo apresentado por Vygotsky, já que não
considerava a atividade coletiva e a natureza social e colaborativa das ações. Assim sendo, para
ele, o motivo intrínseco à ação também não era considerado. Segundo Engeström (1987), é
possível existir “atividade de um indivíduo”, mas não “atividade individual”, pois a atividade é
coletiva, enquanto a operação e a ação são individuais.
Leontiev faz distinção entre esses três conceitos – atividade coletiva, atividade individual
e operação – e propõe três níveis de estruturas hierárquicas da atividade, sendo elas: atividade,
ação e operação. A atividade está relacionada às necessidades humanas e é orientada para um
objeto. O objeto, segundo Leontiev, refere-se ao motivo da atividade e é o que diferencia uma
atividade da outra. Sendo assim, o objeto não é fixo, podendo mudar durante a atividade. De
acordo com Engeström (1987), em geral, os indivíduos participam da atividade sem saber seu
objeto e motivo.
As ações – segundo nível na hierarquia – são as formas pelas quais a atividade acontece.
É possível realizar uma atividade por meio de diferentes ações. Essas, por sua vez, são ligadas a
metas conscientes. Por outro lado, as operações – nível inferior das hierarquias – não exigem o
mesmo nível de consciência. Elas são comportamentos rotineiros automáticos; não há esforço
consciente para realizá-las. Para ilustrar esses conceitos, basta imaginar a seguinte situação: um
indivíduo quer aprender a dirigir. Aprender a dirigir é uma atividade que se realiza por meio de

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ações, sendo uma delas a mudança de marcha. Contudo, com o passar do tempo e com a
experiência adquirida pelo condutor, essa mudança de marcha se torna um comportamento
mecânico, automático, transformando-se em uma ação.
É importante destacar que Leontiev não expandiu graficamente o triângulo de mediação
de Vygotsky, mas ofereceu fundamento para Engeström (1987) fazê-lo, acrescentando os
seguintes elementos: comunidade, regras e divisão do trabalho, conforme mostra a figura a
seguir.

Figura 3 - Modelo da teoria de atividade da segunda geração por Engeström (1987).

Fonte: Engeström (1987).

De acordo com Russel (2002), o sujeito é um indivíduo ou um grupo engajado na


atividade. O autor lembra, ainda, que cada sujeito participa de outros sistemas de atividades. É
preciso definir a atividade primeiro para depois pensar nos sujeitos.
O objeto pode ser o objeto de estudo de alguma disciplina ou o objeto do processo de
produção. O motivo é o propósito da atividade. Já que os sujeitos trazem motivos diferentes
para a atividade, aqueles podem ser contestados. Já as ferramentas são os instrumentos
utilizados para se chegar a um resultado, que pode ser previsto ou não, mediando as relações
humanas. O uso das ferramentas pode ser mudado com o tempo, conforme os participantes
criam outros modos de trabalharem juntos. Segundo Tavares (2004, p. 61),

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ferramentas normalmente refletem as experiências de outras pessoas que tentaram
resolver problemas similares anteriormente e criaram ou modificaram a ferramenta
para torná-la mais eficiente. Esta experiência se reflete tanto nas características
estruturais das ferramentas (formato, material etc.) quanto no conhecimento sobre
como usá-las. (TAVARES, 2004, p. 61).

A capacidade distintiva do homem está em criar novas ferramentas e, assim, modificar a


atividade da qual participa e a si mesmo. No que diz respeito à comunidade, ela representa as
pessoas que compartilham o mesmo objeto.
A divisão do trabalho define como os sujeitos agirão sobre o objeto, incluindo a divisão
de tarefas entre os membros da comunidade. Por fim, as regras são medidas em padrões que
regulam a comunidade, garantindo a estabilidade temporária do sistema. (RUSSEL, 2002). Em
suma, a segunda geração contribui com a TA na medida em que desloca o olhar para as inter-
relações sujeito-comunidade, expandindo a unidade de análise para a prática coletiva.
A terceira geração de TA, conforme a figura 4 evidencia, concentra-se em redes de
sistema de atividades. Engeström (1999) acredita que os sistemas de atividades interagem,
sendo preciso, para entender tal interação, o desenvolvimento de ferramentas conceituais que
permitam o entendimento das diversas vozes e visões dentro de cada sistema e entre eles. Os
sistemas não precisam estar obrigatoriamente em harmonia, podendo exibir contradições e
tensões.
Figura 4 - Modelo da teoria de atividade da terceira geração.

Fonte: Engeström (1999).

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Os triângulos que representam as gerações de TA devem ser entendidos à luz da
multidimensionalidade e multitemporalidade e não como figuras estáticas, já que são tentativas
de representar a mediação e as relações possíveis no sistema de atividades. (MATEUS, 2005).
Antes de tratar dos princípios básicos da TA, faz-se necessário entender as três
características da atividade. De acordo com Engeström (1999), três características determinam
a atividade. A primeira delas é a compreensão histórica da prática dos sujeitos e objetos, bem
como da comunidade, no que diz respeito à organização social. Em seguida, o autor apresenta
o pensamento e o conhecimento como processos dialéticos. Por fim, a terceira característica
refere-se a mudanças nas práticas humanas. Tais características justificam a escolha de alguns
grupos de pesquisa (LIBERALLI, 2006) por referir-se à TA como Teoria da Atividade sócio-
histórico-cultural. (TASHC).
Para o conceito de atividade, Engeström (1999) oferece cinco princípios básicos. No
primeiro deles, apresenta-se o sistema de atividades coletivo, que é mediado e orientado pelos
objetos. As relações de rede entre sistemas são consideradas pela TA unidades de análise. Vale
pontuar que, para que essas relações sejam entendidas, deve-se considerar o sistema e suas
eventuais mudanças como um todo.
O segundo princípio é a multivocalidade, que representa a importância das diversas
vozes trazidas ao sistema. Há diversas visões, valores, histórias e interesses dentro do sistema.
Além disso, o sistema de atividades carrega sua própria história, que é revelada por meio das
regras e instrumentos. O potencial da multivocalidade é expandido quando a rede de sistemas
de atividade é considerada. (ENGESTRÖM, 1999).
Historicidade é o terceiro princípio. Com a transformação ocasionada pelo transcorrer
do tempo, os sistemas de atividade só podem ser entendidos a partir de sua história. Tanto o
objeto quanto a comunidade, por exemplo, contribuem com suas histórias para moldar a
atividade. Esse princípio, assim como quarto e o quinto, está ligado à capacidade de mudança e
transformação dos sistemas de atividade.
O penúltimo princípio trata das contradições como fontes geradoras de mudança. As
tensões e os conflitos são importantes por gerarem uma modificação na atividade. Os
conceitos de conflito e contradições serão mais bem detalhados na próxima seção, já que a
presente pesquisa se interessa por eles.

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O quinto princípio se pauta na possibilidade de transformações expansivas no sistema de
atividade com a reelaboração do objeto ou motivo e a consequente expansão da atividade em
si. De acordo com esse princípio, com o agravamento de algumas contradições, “participantes
individuais começam a questionar e se afastar de suas normas estabelecidas, podendo evoluir,
em certos casos, para um deliberado esforço coletivo de mudança”. (TAVARES, 2004, p. 69).
A base filosófica da Teoria da Atividade é marcada pela contribuição histórica dos russos
nos estudos nas áreas de Psicologia e de Linguagem. Os conceitos de trabalho, aprendizagem,
mediação e atividade, problematizados por Marx, Vygotsky e Leontiev, foram fundamentais
para o desenvolvimento de uma teoria que serve de lente conceitual de análise para pesquisas
em diversas áreas. A seguir, a partir das ideias trazidas por Kaptelinin e Nardi (2016),
apresentaremos um desdobramento da Teoria da Atividade: a possibilidade de seu uso para
compreender contextos mediados pela tecnologia.

3 TEORIA DA ATIVIDADE E ESTUDOS DE TECNOLOGIAS DIGITAIS DE


INTERAÇÃO E COMUNICAÇÃO

Em seu livro Acting with Technology, Activity Theory and Interaction Design, Kaptelinin e
Nardi (2006) estabelecem a importância da Teoria da Atividade como sistema conceitual de
análise para o uso de tecnologia de informação em seu contexto de prática humana. Os autores
ressaltam a importância da TA, apresentando três pontos principais:

1. O impacto que a TA tem sobre design de interação;


2. O diálogo entre a TA e outras abordagens teóricas no campo de estudo de tecnologia;
3. O significado de TA.

Vale, primeiramente, lembrar que esses autores compreendem “Desenho de Interação”


em uma forma mais ampla que envolve interação entre humanos e computador e trabalho
colaborativo em comunidades mediado por computador. A interação ocorre de “formas
diferentes em comunidades diferentes”. (KAPTELININ; NARDI, 2006, p. 5). Os autores
justificam a importância do uso de TA para investigar e entender essas diferenças e o papel da
tecnologia na atividade humana. Isso se dá pelo fato de que a TA busca entender a “unidade de
consciência e atividade”.
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E a teoria social da consciência humana, construindo consciência como o produto
de interações de indivíduos com pessoas e artefactos no contexto da atividade
cotidiana. Consciência é construída como a promulgação da nossa capacidade de
atenção, intenção, memória, aprendizagem, raciocínio, discurso, reflexão e
imaginação. É através do exercício dessas capacidades nas atividades diárias que nós
desenvolvemos; na verdade essa é a base de nossa própria existência.
(KAPTELININ; NARDI, 2006, p. 8).

Tomemos alguns exemplos: primeiro, como uma criança aprende a jogar futebol. Em
algumas culturas e grupos sociais, essas crianças que despertam a curiosidade para aprender a
jogar futebol, podem aprender de um professor numa escolinha especializada, com professores
de Educação Física na escola ou com colegas, vizinhos ou conhecidos. Em todos os casos,
isoladas ou em conjunto, existem pessoas que mantêm as crianças motivadas para dominar as
técnicas para jogar bem o esporte escolhido. As crianças usam a bola como artefato,
obviamente; podem, porém, usar outros artefatos para dominarem o jogo. Podem usar cones
para treinos, observar outros jogadores e, ainda, ler ou ouvir comentários técnicos sobre como
jogam.
Talvez o exemplo de aprender a jogar futebol seja um pouco simplório; tomemos,
então, um segundo exemplo, mais pertinente à nossa área de estudo: o de crianças aprendendo
uma língua estrangeira. Vamos imaginar uma criança que tem contato com uma língua
estrangeira no ensino fundamental de uma escola pública. No seu processo de aprendizagem,
ela pode receber informação sobre a nova língua em sala, pelo seu professor, colegas de turma
e outras pessoas. Pode fazer uso de material didático, dicionários ou até de outros recursos,
como um aplicativo de tradução, como forma de facilitar sua aprendizagem.
Se usássemos a TA para investigar o processo de aprendizagem dessas crianças para
jogar futebol ou aprender uma língua estrangeira cada vez melhor, levaríamos em conta todos
os fatores que envolveram o processo como um todo. Teríamos o foco no ambiente onde
essas crianças, instrutores e professores estão inseridos, que artefatos e processos foram
usados, considerando todo o universo das crianças como sendo essencial para a sua
aprendizagem. Muitas abordagens teriam uma visão parcial, focando no professor, na forma de
treinamento ou nos problemas que as crianças enfrentam. Já com a TA como lente para
investigação, o foco se amplia para pessoas e artefatos em seu meio social como base de
análise.

19
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Kaptelinin e Nardi (2006) destacam alguns princípios da TA que a tornam tão relevante
para o estudo da atividade humana no uso de tecnologias. 1) a ênfase que a teoria dá à
intencionalidade humana: as pessoas agem deliberadamente de formas diferentes com certas
tecnologias, tornando-as agentes de suas ações; 2) assimetria entre pessoas e artefatos (ou de
humanos e coisas, ou sujeitos e objetos): é importante teorizar a intenção, imaginação e
reflexão como cerne do processo cognitivo humano; pessoas e artefatos não são a mesma
coisa, pessoas agem com tecnologia, tecnologias são criadas e usadas no contexto de pessoas
com intenções e desejos: essa relação é uma mediação; 3) a importância do desenvolvimento
humano: a TA prioriza o desenvolvimento do indivíduo como um processo sociocultural a
longo prazo para seu crescimento e mudança com tecnologia; e 4) a noção de cultura e
sociedade como formadores da atividade humana: tal mudança ocorre num processo de
internalização e externalização constante que torna indivíduos capazes de transformar cultura
através de sua atividade. (KAPTELININ; NARDI, 2006, p. 11).
Resumindo em poucas palavras, os autores enfocam nos princípios de
intencionalidade, assimetria e da TA como grande vantagem do uso da teoria como base tanto
para estudo sobre a prática humana com tecnologia como no planejamento da interação
mediada por ferramentas tecnológicas. Um estudo que segue a TA investiga um contexto de
uso de tecnologia, por exemplo, focando nos seus sujeitos, a comunidade onde estão inseridos,
objetos, instrumentos, regras, divisão de trabalho, assim como os conflitos e contradições
sentidas e enfrentadas pelos sujeitos, indo além e investigando como reagiram para transformar
essa situação.
A TA pode e tem sido usada como lente na investigação da prática humana em vários
contextos profissionais e educacionais, e (por que não?) em contextos onde há uso de
tecnologia, principalmente para aprendizagem; e sendo mais específico em aprendizagem de
línguas estrangeiras também. Pesquisadores têm aplicado esse sistema conceitual de análise,
seja para entender como se dá mediação de ferramentas, como o computador ou celular em
contextos digitais, seja para entender o impacto do uso de tecnologia na formação de
professores, por exemplo. Os contextos variam, assim como as formas de utilização desses
instrumentos pelos sujeitos para buscar uma transformação pelo uso e para suas comunidades.
Na próxima seção apresentaremos exemplos de pesquisas que usam a TA para
investigar e entender a ação humana e o uso de tecnologias, com destaque para Tecnologias
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SEDA - Revista de Letras da Rural/RJ. Seropédica/RJ, v. 2, n. 5, abr./ago., 2017, p. 9-27.
Digitais de Interação e Comunicação (TDIC). Cada pesquisa é apresentada com um pequeno
resumo. Pretendemos, assim, ilustrar e enfatizar como a TA vem conquistando seu espaço na
pesquisa acadêmica em Linguística Aplicada, já que nosso foco são pesquisas na área.

4 COLETÂNEA DE PESQUISAS QUE USARAM A TA EM CONTEXTO DE USO


OU MEDIADOS POR TECNOLOGIA

Embora a TA tenha sua base na Psicologia, apresenta-se hoje como uma teoria de
caráter multidisciplinar, sendo apreciada nas áreas de Antropologia, Educação, Filosofia,
Linguística, Linguística Aplicada e Sociologia. De Acordo com Daniels (2003), a TA vem
sendo utilizada com a finalidade de analisar o desenvolvimento da mente humana em
diferentes atividades sociais, evidenciando conflitos e contradições decorrentes de tais
atividades.
As possibilidades de análise dos sistemas sociais produzidos em e por uma atividade
nos despertam o interesse por investigar como essa metodologia vem sendo utilizada no Brasil.
Assim, objetivou-se fazer um levantamento de estudos que utilizam a TA para observar
contextos mediados pelas tecnologias da informação e comunicação.
O levantamento da produção acadêmica foi realizado em teses e dissertações
defendidas no período de 2006 a 2015. Buscaram-se trabalhos cujos textos completos estavam
disponíveis na Internet e apresentassem como descritores os termos “Teoria da Atividade”,
“tecnologias”, “TDICs”, “educação a distância”. A busca foi realizada em bibliotecas digitais
de teses e dissertações das seguintes universidades: Banco de Teses LAEL/PUC-SP 1;
Programa de Pós-Graduação em Letras – Linguística Aplicada da UCPel2; Banco de teses e
dissertações do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da
UFRJ3. Um total de oito pesquisas foi encontrado, sendo três teses e cinco dissertações.
A pesquisa desenvolvida por Lima (2015), intitulada “Parcerias digitais e a formação do
professor de Língua Portuguesa: um estudo à luz da Teoria da Atividade”, buscou
compreender como uma professora de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental aprende a
usar a tecnologia em seu contexto de ensino, ao mesmo tempo em que participa do

1 http://www.pucsp.br/pos/lael/laelinf/def_teses.html.
2 http://pos.ucpel.edu.br/dissertacoes-ppgl/.
3 http://www.letras.ufrj.br/linguisticaaplicada.

21
SEDA - Revista de Letras da Rural/RJ. Seropédica/RJ, v. 2, n. 5, abr./ago., 2017, p. 9-27.
planejamento, implementação e avaliação de projetos de natureza interdisciplinar com o uso de
recursos tecnológicos.
A TA foi utilizada para compreender a atuação e a formação docente para uso das
TDICs. Segundo a pesquisadora, a TA permite focalizar aspectos sociais, culturais e históricos
desses processos, e não somente ações individuais da professora.
Lopes (2014) investigou a utilização de tablets por professores como instrumento de
trabalho em suas aulas. No âmbito da pesquisa, a TA foi utilizada para dar subsídio à
fundamentação teórica do estudo. Segundo o autor, a finalidade de se trabalhar com o conceito
de atividade é a de que, por meio do desenvolvimento coletivo, exista um efeito antialienante
que se desenvolva pela práxis em um sentido criativo.
Pimenta (2013), em sua dissertação intitulada “Reconstrução da prática pedagógica em
uma disciplina semipresencial: uma pesquisa-ação à luz da Teoria da Atividade”, investigou o
desenvolvimento de uma disciplina semipresencial à luz da Teoria da Atividade. A pesquisa
buscou identificar conflitos ou contradições que pudessem representar oportunidades de
mudança e reconstrução na prática pedagógica da professora-pesquisadora. Segundo a autora, a
TA foi utilizada como sistema conceitual de análise de dados que possibilitou o
reconhecimento de conflitos ou contradições e a reflexão sobre eles aponta para a importância
da pesquisa sobre o próprio fazer docente, a fim de trazer contribuições sobre a atuação do
professor em sala de aula.
Viter (2013), em sua pesquisa de mestrado, teve como foco investigar os diferentes
tipos de interação (aluno-aluno, aluno-professor e aluno-conteúdo) ocorridos no ambiente on-
line integrante de uma disciplina de graduação. A pesquisadora também analisou o
engajamento dos alunos nessas interações.
A autora apresenta o conceito de engajamento sob a perspectiva da Teoria da
Atividade. Segundo ela, citando Spence-Brown (2007), a TA reconhece o engajamento como
sendo socialmente construído e, ao mesmo tempo, determinado pela história pessoal do
indivíduo, aspectos que podem manter-se estáveis ou mostrar-se bastante suscetíveis a
mudança ao longo do processo da atividade. Com a finalidade de identificar contradições
relacionadas ao engajamento dos estudantes nas interações on-line investigadas, Viter (2013)
também utilizou a TA para descrever o contexto da pesquisa, relacionando-o aos componentes
de um sistema de atividade.
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SEDA - Revista de Letras da Rural/RJ. Seropédica/RJ, v. 2, n. 5, abr./ago., 2017, p. 9-27.
Em sua pesquisa, Garcia (2011) elaborou um objeto de aprendizagem (OAs) para ser
utilizado em sua sala de aula com uma turma de ensino fundamental da modalidade de ensino
Educação de Jovens e Adultos (EJA), a fim de analisar o processo de ensino e aprendizagem
mediado por OAs. De acordo com a pesquisadora, o uso da Teoria da Atividade possibilitou
uma visão mais ampla de aspectos relacionados a cenários de atividade social prática. Além
disso, ainda segundo Garcia (2011), com a TA é possível analisar a atividade de aprendizagem,
delimitar a estrutura de seus componentes principais e as relações funcionais estabelecidas
entre eles, assim como mudanças ocorridas na zona de desenvolvimento proximal (ZDP).
Heemann (2010) investigou o processo de formação de uma comunidade virtual de
aprendizagem a fim de identificar fatores que contribuem, por meio das interações, ou limitam,
por meio das contradições, a constituição dessa comunidade em um contexto educacional on-
line. O contexto utilizado para a pesquisa foi a disciplina de Português Redacional Básico
(PRB), oferecida na modalidade semipresencial pela Universidade Católica de Pelotas (RS).
Segundo a autora, na pesquisa realizada a produção textual é vista como parte
integrante de um sistema cuja atividade é a Produção de Texto Acadêmico On-line na
disciplina de Português Redacional Básico, sendo analisado com os alunos e professores que
fazem parte dessa prática social, observando como as ferramentas nesse sistema são usadas
para mediar o objeto/motivo da atividade e como as interações e as contradições podem
contribuir ou dificultar a formação de uma comunidade virtual de aprendizagem.
Para Heemann (2010), a Teoria da Atividade, como ferramenta descritiva, possibilita
compreender a tecnologia como parte de um objetivo maior das atividades humanas, afastando
a visão tecnocêntrica de ter o computador como foco de interesse. Com isso, a TA auxilia na
descrição das relações entre os sujeitos e entre as ferramentas que eles utilizam para interagir,
evidenciando fatores que contribuem ou restringem a formação de uma comunidade virtual de
aprendizagem.
Santos (2009), por sua vez, em sua pesquisa “As novas tecnologias em projetos
interdisciplinares na escola pública - um estudo à luz da Teoria da Atividade”, investigou como
professores conduzem projetos interdisciplinares com o uso de tecnologias da informação e da
comunicação. Na visão da pesquisadora, o olhar holístico da TA possibilita considerar o
contexto de investigação como uma rede de sistemas de atividade que têm como elemento
comum o uso de tecnologias. Assim, cada projeto interdisciplinar é entendido como um
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SEDA - Revista de Letras da Rural/RJ. Seropédica/RJ, v. 2, n. 5, abr./ago., 2017, p. 9-27.
sistema de atividade que funciona como instrumento mediador de um sistema mais amplo – o
processo educacional.
Costa (2006) apresenta pesquisa sobre o processo de aprendizado de duas professoras
de língua estrangeira para utilizar a internet como complemento de seus cursos presenciais.
Neste estudo, a TA foi utilizada na análise de dados por possibilitar a análise da atividade
coletiva e suas relações com outros sistemas de atividades.
O uso da TA na análise dos componentes do sistema de atividade central possibilitou
compreender de que forma ocorreu o processo de aprendizagem das professoras e as
mudanças ocorridas ao longo da atividade, o que as professoras aprenderam sobre o trabalho
desenvolvido por elas e como esse aprendizado ocorreu. Além disso, a pesquisa também
investigou os principais conflitos e mudanças envolvidos na aprendizagem da integração de
tecnologia na aula de língua estrangeira.
O quadro a seguir apresenta algumas das pesquisas que usam a TA para analisar
investigações sobre uso de tecnologia e ensino-aprendizagem de línguas.

Quadro 1 – Pesquisas que usam a TA.

Autor Título da Pesquisa Programa e Instituição Nível Ano


Parcerias digitais e a formação
Programa Interdisciplinar de Pós -
Simone da Costa do professor de Língua
graduação em Linguística Aplicada Tese 2015
Lima Portuguesa: um estudo à luz
– UFRJ
da Teoria da Atividade

A Gestão da formação do
Programa de Pós-Graduação em
Henrique Bovo professor para o trabalho com
Linguística Aplicada e Estudos da Dissertação 2014
Lopes as Tecnologias Digitais
Linguagem –PUC-SP
Móveis
Interação e engajamento em
Programa Interdisciplinar de Pós -
Luciana Nunes ambiente virtual de
graduação em Linguística Aplicada Dissertação 2013
Viter aprendizagem: um estudo de
– UFRJ
caso
Reconstrução da prática
pedagógica em uma disciplina Programa Interdisciplinar de Pós -
Bruna Scheiner
semipresencial: uma pesquisa- graduação em Linguística Aplicada Dissertação 2013
Gomes Pimenta
ação à luz da Teoria da – UFRJ
Atividade

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SEDA - Revista de Letras da Rural/RJ. Seropédica/RJ, v. 2, n. 5, abr./ago., 2017, p. 9-27.
Objetos de aprendizagem
como artefatos mediadores da
Programa de Pós-Graduação em
Simone Carboni construção do conhecimento:
Letras - Tese 2011
Garcia um estudo com base na
UCPEL
epistemologia histórico-
cultural
A formação de uma
Christiane comunidade virtual de Programa de Pós-Graduação em
Heemann aprendizagem sob a Letras - Tese 2010
perspectiva da teoria da UCPEL
atividade

As novas tecnologias em
Programa Interdisciplinar de Pós -
Margarida Maria projetos interdisciplinares na
graduação em Linguística Aplicada Dissertação 2009
Calafate dos Santos escola pública: um estudo à
– UFRJ
luz da Teoria da Atividade

Aprender a usar a Internet no


Programa Interdisciplinar de Pós -
Ana Paula ensino presencial de Inglês e
graduação em Linguística Aplicada Dissertação 2006
Martinho da Costa de Espanhol – um estudo à
– UFRJ
luz da Teoria da Atividade

Fonte: Elaborado para a pesquisa.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A TA, que teve sua base em pesquisadores russos, vem se difundindo em contextos de
pesquisas variados, tanto profissionais quanto educacionais; entre eles, destacamos a área de
Linguística Aplicada com ênfase em compreender a linguagem e a ação humana em contextos
de uso de tecnologia. A TA é utilizada por pesquisadores como uma lente teórica e abordagem
filosófica que, ao considerar os elementos históricos e culturais da atividade, permite entender
que diferentes formas de ação humana são mediadas por instrumentos. Com uma visão sócio-
histórico-cultural que abrange todos os aspectos da atividade humana em um contexto, em
uma comunidade, linguistas aplicados abordam questões importantes para uma maior
compreensão desse uso e de seus impactos.
Neste artigo de revisão, apresentamos um breve histórico e abordamos as principais
características desse sistema conceitual de análise que o faz relevante para entendermos a
prática humana, tão cheia de complexidade em contextos de uso de tecnologia. Muitas
pesquisas dessa área e com esse foco buscam investigar e entender como os sujeitos de uma
dada comunidade podem se transformar e transformar suas comunidades com o uso de
tecnologia, como ilustramos aqui.
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O presente artigo está inserido no contexto de celebração do centenário da Revolução
Socialista Soviética. Espera-se com ele destacar a contribuição dos pensadores russos para a
transformação de paradigmas epistemológicos, conceituais e filosóficos que marcaram as áreas
da Educação e Psicologia desde o século XX até o presente, dando ênfase à Teoria da
Atividade.

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Dissertação de Mestrado. Pós-Graduação em Linguística Aplicada. Universidade Federal do
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SEDA - Revista de Letras da Rural/RJ. Seropédica/RJ, v. 2, n. 5, abr./ago., 2017, p. 9-27.
A representação de imigrante e de sua representação de educação
linguística na imprensa catarinense: um estudo historiográfico
Andressa Beatriz Gotzinger1
José Marcelo Freitas de Luna2

RESUMO
O presente artigo teve como objetivo explicar a representação de educação linguística de imigrantes
no Brasil. A base teórica do estudo é a Historiografia Linguística (HL), cujas pesquisas visam à
reconstrução do conhecimento sobre as línguas e linguagem humana em diferentes recortes
temporais. Do tipo documental, o estudo tem como corpus as narrativas jornalísticas veiculadas
durante o período de 1900 a 2015 na imprensa catarinense. Os jornais escolhidos como fontes para
a obtenção dos dados foram: O Estado e Diário Catarinense. Adotou-se, para o tratamento dos dados,
a técnica de análise de conteúdo. Os resultados foram analisados em três seções distintas. A primeira
seção referiu-se ao período da Primeira Campanha de Nacionalização, na qual discutiu-se a
representação do imigrante, como trabalhador útil e como elemento indesejável, e a representação de
educação linguística: escolas nacionalizadoras para assimilação do imigrante. A segunda seção referiu-
se ao período da Segunda Campanha de Nacionalização, as categorias discutidas são a da
representação de imigrante: o elemento indesejável e a representação de educação linguística: as
práticas monoculturais e monolíngues nas escolas nacionalizadoras. A terceira seção referiu-se ao
período posterior a duas grandes guerras e intitulou-se como da ditadura à redemocratização. As
categorias discutidas são a de representação de imigrante: como trabalhador útil e imigrante de países
pobres, e, ainda, a representação de educação linguística: bilinguismo na escola e bilinguismo fora da
escola. Os resultados indicam a superação de um passado em que se silenciava, por meio de medidas
coercitivas, para dar lugar a um contexto em que se presenciava certa tolerância e proteção da
diversidade linguístico-cultural existente no país.

Palavras-chave: Representação de Educação Linguística. Representação de Imigrante. Política


Linguística.

The representation of immigrants and their representation of linguistic education in


the press from Santa Catarina: a historiographic study

ABSTRACT
This article explains the representation of linguistic education of immigrants in Brazil. The theoretical
framework of the study is based on Linguistic Historiography (LH), which addresses the

1 Professora de Língua Portuguesa com experiência no Ensino Fundamental II (6º ao 9º), Ensino Médio (1º e 2º) e Ensino
Técnico subsequente. Possui Mestrado em Educação pela Universidade do vale do Itajaí (2014 - 2016), na qual foi bolsista de
iniciação científica com pesquisa em Representação de Educação Linguística de Imigrantes no período de 1900 - 2016, uma
historiografia linguística. E Graduação em Licenciatura Letras/Inglês pela Universidade Regional de Blumenau (2008 - 2012).
2
Possui graduação em Letras pela Universidade Federal da Paraíba (1985); mestrado em Letras (Inglês e Literatura
Correspondente) pela Universidade Federal de Santa Catarina (1990), com estágio sanduíche na Universidade de Birmingham
(Inglaterra); doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1999); e pós-doutorado, entre 2010 e 2011, na
Universidade do Texas em Austin (Estados Unidos). Atualmente, é professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação
(Mestrado e Doutorado) em Educação da Universidade do Vale do Itajaí, professor visitante da Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra e Investigador do Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais da Universidade
Aberta de Portugal.

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SEDA - Revista de Letras da Rural/RJ. Seropédica/RJ, v. 2, n. 5, abr./ago., 2017, p. 28-54.
reconstruction of knowledge about languages and human language in different periods of time. This
is a documentary type study, with a corpus consisting of journalistic narratives published between
1900 to 2015, in the Santa Catarina press. The newspapers chosen as sources for the document corpus
were: O Estado and Diário Catarinense. For the data processing, the technique of content analysis. The
results were analyzed in three distinct sections. The first section focuses on the First Nationalization
Campaign period, in which we discuss the representation of immigrants: useful worker or undesirable
element, and the representation of linguistic education: nationalizing schools for the assimilation of
immigrants. The second section focuses on the Second Nationalization Campaign. The categories
discussed in this section are the representation of immigrants: the undesirable element and the
representation of linguistic education; and monocultural and monolingual practices in nationalizing
schools. The third section refers to the period after the two world wars, characterized as the period
from dictatorship to redemocratization. The categories addressed in this section are immigrant
representation; as useful worker and immigrant from poor countries, and also the representation of
linguistic education: bilingualism in school and out of school. The results indicate the legislative
policies of recent years have overcome a past that was silenced through coercive policies, replacing it
with a context marked by a certain tolerance and protection of the linguistic and cultural diversity
that exist in the country.

Keywords: Representation of Linguistic Education. Representation of the Immigrant. Linguistic


Policy.

1 INTRODUÇÃO

No dia 22 de abril de 1500, chegavam aqueles que viriam a ser os primeiros imigrantes
colonizadores no Brasil. Tomando a descrição na carta escrita por Pero Vaz de Caminha, o
primeiro contato entre portugueses e indígenas do litoral ocorreu por trocas de presentes e
gentilezas – “tudo se passa como eles querem – para os bem amansarmos”. (SILVA, 2004,
p. 73). A carta também revela a primeira política linguística implantada logo no início da nova
colônia “seria mais fácil nós (portugueses) aprendermos a língua deles (os índios) do que eles
a nossa”. (SILVA, 2004, p. 73). Não se julgue, porém, que os jesuítas aqui chegados em 1549
desenvolvessem uma política linguística aberta e respeitosa a todos os idiomas indígenas, essa
política tinha a finalidade doutrinária, a língua da/para a catequese – se os degredados que
aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, “[...] se
farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé [...] imprimir-se-á facilmente neles qualquer
cunho que lhe quiserem dar [...]”. (SILVA, 2004, p. 74). Tais palavras do conteúdo da carta
demonstravam que a política a se desenvolver seria a de impor a língua e a fé dos
conquistadores sobre os povos conquistados.
Em meados do século XVI, a produção de açúcar crescia e multiplicavam-se os
engenhos, a chamada economia açucareira. Frente ao abandono da tentativa de fazer dos

29
SEDA - Revista de Letras da Rural/RJ. Seropédica/RJ, v. 2, n. 5, abr./ago., 2017, p. 28-54.
índios a principal fonte de mão de obra e o aumento crescente da produção de açúcar, fez-
se necessário trazer mão de obra africana e contingente europeu para a administração colonial
como para o trabalho de artesãos e implementação da agricultura, indústria e comércio
açucareiro (SILVA, 2004). Os portugueses e sua língua foram estimulados a vir por todo o
período colonial, já a migração forçada de africanos destinou-se para a mão de obra escrava
nos engenhos e minas (SILVA, 2004). Por meio das migrações, desenvolveu-se
economicamente a colônia brasileira, bem como a diversidade linguístico-cultural.
Com as imigrações, o território brasileiro do período colonial, apresentou como
característica marcante a heterogeneidade linguístico-cultural que foi freada pelas leis
pombalinas a partir do século XVIII. Marquês de Pombal instaura medidas linguística e
cultural de caráter homogeneizador e obrigou o uso do português como língua oficial na
colônia brasileira (SILVA, 2004).
O contexto brasileiro do final do século XIX teve novos interesses com a imigração.
As justificativas variavam entre a substituição da mão de obra escrava, o branqueamento da
população brasileira e a ocupação estratégica das terras pouco povoadas do Brasil que
estavam vulneráveis à invasão paraguaia, bem como o desenvolvimento da produção agrícola
no País. O Governo Imperial, para atrair o potencial de imigrantes europeus para o Brasil,
legislou no sentido de doações de terras devolutas e por vezes isenção de impostos (LUNA,
2000). Esses imigrantes provinham de diversas nações: os alemães formaram a primeira
corrente migratória a partir de 1824, os italianos vieram a partir de 1870, formando o maior
contingente e também vieram portugueses, espanhóis, japoneses, russos, poloneses e
diversas nacionalidades. (SILVA, 2004).
Contudo, o clima de opinião trazido pelas duas Grandes Guerras e fatores políticos
específicos do período chamado Estado-Novo tiveram como alvo a escola de populações
estrangeiras, sobretudo alemães e italianos (LUNA, 2000). O governo nacionalista criou
decretos que atingiram fortemente os imigrantes. “A justificativa usada para a intervenção
autoritária do Estado baseou-se na suposição [...] de que as crianças não recebiam o ensino
da língua portuguesa” (LUNA, 2000, p. 20) e, por isso, essas escolas passaram a ser vistas
como desnacionalizadoras, tendo sido a maioria impedida de funcionamento. Além disso,
outros decretos proibiam a publicação de quaisquer revistas, jornais, livros, sendo que, nas
escolas, o idioma português era de uso obrigatório, inclusive no que se refere ao material
didático em vernáculo. (LUNA, 2000). Resumidamente, foi um período marcado fortemente
por ações homogeneizadoras de culturas e línguas.

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Na imprensa brasileira, boa parte das publicações jornalísticas passou a explorar as
brutalidades cometidas pelos alemães contra as populações civis por eles atacadas durante a
Segunda Guerra (LUNA, 2004). A partir disso, começou-se a criar uma imagem negativa
dessa população, incluindo os alemães do todo Brasil que passaram a ser vistos como o
“perigo alemão”. As matérias veiculavam informações de que a Alemanha teria interesse em
expandir seu imperialismo na América, através do contingente de imigrantes espalhados em
vários países, entre esses o Brasil (LUNA, 2004). O volume de publicações de conteúdo
negativo, que circulou nos jornais, gerou a antipatia da sociedade luso-brasileira, a maioria,
contra os imigrantes do sul brasileiro e contra as suas instituições escolares, vistas como
desnacionalizadoras, uma vez que não ensinavam a língua nacional.
Recentemente, o Brasil ganhou novos imigrantes internacionais. A crise vivida por
países europeus e pelos Estados Unidos a partir de 2006 marcou o início de um novo fluxo
de imigrantes que normalmente rumavam para a Europa e América do Norte. Nesse período,
o Brasil vivia uma nova configuração econômica e de crescimento, o que provavelmente
atraiu novos imigrantes estrangeiros, que antes à crise rumavam aos Estados Unidos e
Europa.
Nesse fluxo que viveu o país, a imprensa apresentou as migrações laborais formadas
por dois grupos, em resumo. O primeiro é formado por profissionais estrangeiros
trabalhando no país, os chamados expatriados. Esse grupo de profissionais vieram
transferidos por empresas multinacionais, ou ainda, para suprir uma área específica com mão
de obra, como por exemplo, os médicos do Programa Mais Médicos do Governo Federal. Já o
segundo grupo é formado frequentemente por imigrantes oriundos de países com
dificuldades econômicas; vieram em busca de oportunidades de emprego ou de estudo e
melhores condições de vida. Como exemplo desse grupo, frequentemente divulgados pela
imprensa catarinense, estão os haitianos.
Esse cenário de imigração lança novos desafios para a sociedade, especialmente no
que concerne ao ensino de línguas e à consciência pluricultural de todos os membros sociais.
As experiências com as imigrações no século XIX demonstraram o Brasil como um país que
se empenhou em homogeneizar cultural e linguisticamente suas minorias. (LUNA, 2000).
Evidente que, de lá para cá, são notórios avanços, por exemplo, adoção da educação indígena
sob uma perspectiva bilíngue e intercultural, a regulamentação da LIBRAS e escolas bilíngues
para surdos e alguns projetos como em Pomerode (SC) o ensino de Português e Alemão, em
Serafim Correa (RS) o ensino de Português e Talian e entre outros munícipios.

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(ALTENHOFEN, 2013). Por outro lado, porém, ainda se tem negligenciado as necessidades
linguísticas dos recém-chegados imigrantes, principalmente com relação à educação de seus
filhos. (MAHER, 2013). Desse modo, o desafio brasileiro consiste em pensar políticas
educacionais que favoreçam a uma consciência pluricultural e promovam atitudes de respeito
e valorização da diversidade linguístico-cultural existente no país.
O artigo aqui apresentado objetiva descrever e explicar a relação entre a
representação de imigrante e a educação linguística durante as duas Campanhas de
Nacionalização até o período recente, no qual se presenciou a vinda de novos imigrantes. A
base teórica do estudo é a Historiografia Linguística (HL), que visa à reconstrução do
conhecimento sobre as línguas humanas através do tempo, descrevendo, analisando e
interpretando o que foi dito sobre elas. Os materiais utilizados para a realização da pesquisa
são documentos escritos, tendo como fontes secundárias: livros, artigos, teses, dissertações
sobre o período e as políticas linguísticas e as fontes primárias que foram narrativas
jornalísticas retiradas de dois jornais de grande circulação do estado catarinense, nos quais se
encontram registradas as ideias linguísticas nos mais variados aspectos de uma época,
registrando a vida em sociedade.
Adotou-se, para tratamento do corpus documental, a análise de conteúdo. A técnica
procura reduzir o volume de informações contidas nos documentos em elementos
pormenores, seja decompondo-a em unidades temáticas, classificando-a em categorias ou
outras formas de decodificação que permitam passar dos elementos descritivos à
interpretação. (CHIZZOTTI, 2013). Para esta pesquisa, as categorias foram construídas
posteriores à leitura, envolvendo idas e voltas ao material de análise e ao referencial teórico.
Nesse momento, tentou-se reunir as partes: elementos do referencial teórico e a interpretação
coerente do material de coleta para, então, chegar à discussão das categorias.
Além da introdução, este artigo encontra-se organizado em cinco seções: a referente
à Primeira Campanha de Nacionalização, na qual se discute a categoria de representação do
imigrante e a educação linguística, bem como a relação entre essas representações. Na seção
seguinte, as representações referentes à Segunda Campanha são discutidas, bem como a
relação entre elas e o mesmo se mantém para a última seção, na qual as representações são
discutidas a partir do período de redemocratização do país. Nas considerações finais, aponta-
se a importância de pesquisas de cunho intercultural no ensino de línguas.

2 Representação de imigrante durante a primeira campanha de nacionalização

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2.1 O imigrante como trabalhador útil

Entre as representações veiculadas nos textos jornalísticos, é possível perceber a


representação do imigrante como “trabalhador”. As matérias desse período apresentam o
imigrante, especialmente o alemão e o italiano, como um “elemento útil” e “indispensável”
para o progresso, reconhecendo a capacidade de trabalho do imigrante, bem como a sua
capacidade de prosperar nos diversos setores econômicos, conforme evidencia uma amostra
das reportagens publicadas pelo jornal O Estado:

[...] Todos quantos se interessam pelo desenvolvimento econômico do Brasil


reconhecem que um dos problemas, cuja solução depende de um maior culto ao
nosso progresso, é a immigração, attrahir o emigrante, localizá-lo em centros onde
seja possível empregar, com maior proveito para a nossa terra, as energias do seu
trabalho e as lucubrações da sua intteligencia [...] O grau de adiantamento em que
se encontram os Estados do Sul, com a agricultura prospera, a indústria
florescente e o comércio em nível de franca prosperidade, é devido tão somente
ao elemento immigratorio [...]. (O ESTADO, 1923).

[...] progresso dessas felizes localidades, pela capacidade de trabalho estrangeira


[...] nas localidades originárias de colonização alemã ou italiana e onde
predominam esses elementos que se observa a febre de trabalho e de progresso
[...] De facto [...] em Santa Catharina e no Rio Grande do Sul [...] são justamente
as localidades que tiveram sua origem na colonização estrangeira [...] notaremos
que os Brasileiros ali domiciliado é [...] um homem dotado de grande iniciativa e
de uma capacidade empreendedora admirável [...] viajando pelo município de
Blumenau [...] uma fábrica como a [...] Hering, por exemplo, não dirá que aquelle
colosso [...] começou por dois ou três teares [...]. (O ESTADO, 1927).

Representações com estas características (trabalhador útil para o progresso) tiveram


início em meados do século XIX, quando o governo Imperial demonstrava os primeiros
interesses em atrair imigrantes, especialmente os europeus. No que concerne aos interesses
do Brasil com a imigração, conforme Luna (2000), entre as justificativas estavam a ocupação
estratégica das terras pouco povoadas do Sul, aliada ao desenvolvimento da agricultura e,
nesse quesito, a população europeia podia contribuir com o conhecimento das técnicas para
a agricultura. Assim, para atraí-los, em especial os imigrantes alemães, o governo imperial
realizou doações de terras devolutas aos imigrantes dispostos a vir; em alguns casos, deu-se
também a isenção de impostos e de prestação de serviço militar. (LUNA, 2000). Além disso,
havia interesses de substituir a mão de obra escrava e de branquear população brasileira.
(LUNA, 2000). Esses motivos fizeram com que os governantes do Império que legislassem
no sentido de atrair, principalmente, italianos e alemães como trabalhadores nas terras
cedidas.

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Os imigrantes europeus tiveram destaque nos debates do século XIX para XX. Por
um lado, segundo Fáveri (2004, p. 40), “como a solução para a regeneração da raça”, pensou-
se a partir de um pressuposto de superioridade dos genes brancos, que, com o tempo, o povo
brasileiro tornar-se-ia hegemônico. Outro aspecto do protagonismo do imigrante europeu
está representado pela capacidade de trabalho e pelos “dotes empresariais”, prosperando nos
estados do Sul, conforme evidenciou as amostras anteriores. Por outro lado, nem sempre
representados de forma positiva, a aproximação dos conflitos bélicos faz eclodir hostilidades
contra os imigrantes e, na imprensa, circulou alerta de riscos contra o Brasil, conforme
discutiremos na seção seguinte.

2.2 O imigrante como elemento indesejável

Os imigrantes e descendentes passam a ser representados como elementos


indesejáveis pela imprensa. A representação de indesejáveis está em torno do que se
conheceu como “perigo”, porque, supostamente, alemães e italianos estariam ligados às
atividades do nazi-fascismo e os “núcleos estrangeiros” vistos, assim, como um “problema”
para a unidade nacional, porque formavam um grupo étnico que não se desprendiam de seus
usos e costumes. Estas denominações aparecem no jornal O Estado, que publicou diversas
matérias incitando uma representação negativa do imigrante e descendente, conforme
veremos a seguir.
A representação de perigo alemão adquiriu intensidade com a aproximação do
primeiro conflito bélico. Corrobora com essa afirmação Luna (2000), ao afirmar que o clima
de opinião trazido pela Primeira Guerra fez eclodir os sentimentos nativistas e crescer
disputas calorosas e hostis contra ao que passou a ser percebido por “perigo alemão”. Os
relatos divulgados pela imprensa catarinense baseavam-se em denúncias de que imigrantes
alemães e italianos estivessem envolvidos em atividades do nazi-fascismo e produziram uma
propaganda de alerta contra os “perigosos” que poderiam a qualquer momento causar a
“desintegração nacional”. O tom dessa propaganda pode ser sentido nos excertos do jornal
O Estado:

O perigo allemão está no que parece afastado [...] O governo não deve, porém,
descuidar dos perigos novos que por lá se preparam [...]. (O ESTADO, 1917).

[...] Blumenau, aonde a ambição e a ganancia germanica vêm há annos


laboriosamente preparando um plano tenebroso de desintegralisação e de
conquista [...] nacionalizar de vez as terras allemãs [...]. (O ESTADO, 1918).

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Há muita gente que julga a Alemanha vencida [...] enganam-se redondamente [...]
O allemão já está trabalhando para refaser a sua pátria: os seus filhos, os seus
netos, todos os seus descendentes [...] Ninguém pode negar [...] a maquina
formidável que aqui estava montada para a nossa completa germanisação [...]
precisamos acabar com o estrangeirismo na nossa terra. (O ESTADO, 1919).

Outra categoria que aparece nesse primeiro confronto bélico são “núcleos
estrangeiros” como um “problema”. Os “núcleos de colonização estrangeira” referem-se à
presença de grupos étnicos formados no processo de imigração, concentrados e vivendo em
enclaves étnicos. O resultado desse agrupamento foi a manutenção de hábitos, usos e
costumes nos moldes mais próximos possíveis da região de origem. (SEYFERTH, 1981).
Contudo, a divulgação realizada pela imprensa catarinense acerca das manutenções culturais
e linguísticas dos imigrantes foi representada na forma de um “problema” a ser revolvido
pelas autoridades brasileiras. A divulgação voltava-se, ainda, contra os imigrantes e
descendentes que queriam que instituições escolares ensinassem em língua alemã. Nesse
item, o excerto menciona, até mesmo, a necessidade de punição diante dessa “afronta”. Essas
representações circulavam no Estado, em tempos de guerra, caracterizando negativamente
os imigrantes e descendentes por terem uma cultura e por falarem uma língua que não
correspondiam ao ideal de nação unificada tido no período, conforme evidenciam as
amostras do jornal O Estado:

[...] povoado contendo fortes núcleos estrangeiros, a quem deveriamos levar a


nossa cultura [...] Há colonias que não têm escolas alguma e onde dia a dia tão
crescendo muitos brazileiros que não conhecem a lingua do seu paiz. (O Estado,
1915).

[...] está sendo insuflada uma viva agitação entre colonos allemães contra as
escolas públicas, porque não ensinam em língua alemã [...]. A gravidade dos factos
[...] está a exigir do governo [...] a maxima energia para a punição severa [...]. (O
ESTADO, 1919).

[...] o problema allemão [...] Os allmães respeitam as leis e as autoridades


municipaes, mas ainda se não desprenderam de todo dos seus usos, costumes e
tradições [...]. (O ESTADO, 1921).

O primeiro conflito bélico contribuiu com a mudança de percepção do imigrante útil


para “indesejável”, “perigo”, veiculada pela imprensa catarinense. Corrobora com essa
afirmação Luna (2000) ao apontar, em seu texto, que a entrada do Brasil na Guerra, nos dois
períodos, fez eclodir o sentimento de medo e revolta. O texto de Luna (2000) corrobora,
ainda, com a informação de que a imprensa, principalmente a de língua portuguesa, tornou-
se um veículo de propaganda das atrocidades germânicas, em especial. A partir das notícias
veiculadas, extremamente negativas em relação ao “perigo”, desencadearam-se os

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sentimentos de patriotismo da nação, que, frente à forte propaganda, tomou os relatos
jornalísticos como verdadeiros. (LUNA, 2000). Esse cenário negativo ao imigrante traduziu-
se em exigências de assimilação cultural levadas a efeito pelas Campanhas de Nacionalização
de Ensino, como discutidas a seguir.

2.2 Representação da educação linguística durante a primeira campanha de


nacionalização

2.2.1 Escolas Nacionalizadoras para assimilação do imigrante

A República inicia-se sob influências do positivismo nos líderes republicanos que


tinham uma visão de unidade brasileira. (LUNA, 2000). Essa prerrogativa e a entrada do país
no conflito bélico levaram a sociedade a reagir de forma intolerante quanto às expressões
culturais mantidas pelo grupo imigrante, tais como: falar a sua língua materna dentro do
Brasil, os hábitos alimentares, as práticas religiosas e o fato de frequentar escolas próprias.
Essas ações passaram ser vistas como indesejáveis. (LUNA, 2000). As tensões sociais
geradas, portanto, traduziram-se em exigências de assimilação através do incremento do
ensino público (ou escolas nacionalizadoras) e da língua vernacular aos núcleos de
colonização, conforme evidencia os excertos:

[...] solicitar a preciosa atenção [...] a necessidade de desenvolver o ensino publico


nos nucleos coloniaes [...] devido à completa incuria, em materia de instrução
primaria, por parte dos poderes publicos [...] surgia como consequencia [...] o
crescimento de gerações [...] que desconhecem a lingua nacional, o que é evidente
um grande mal para os interesses da nossa nacionalidade [...]. (O ESTADO, 1915).

[...] municipios de origem estrangeira [...] a necessidade da União impulsionar a


instrucção primaria nacional [...] Para evitar males [...] é indipensavel [...] que se
leve a instrucção primaria na lingua nacional do paiz aos ultimos recantos de
municipios coloniaes e são muitas [...] as escolas de que tem necessidade aquellas
populações que bem comprehendem as vantagens de saber ler e escrever em
vernáculo [...]. (O ESTADO, 1915).

Os textos apresentam o imigrante como um elemento que precisa ser assimilado


através do ensino. Evidencia-se essa afirmação no excerto que diz “[...] solicitar a preciosa
atenção [...] a necessidade de desenvolver o ensino publico nos nucleos coloniaes”. (O
ESTADO, 1915). Luna (2000) registra a preocupação do governo com a assimilação do
imigrante através do ensino do português compulsório, ainda no período imperial. Na
ocasião, o projeto não foi levado adiante, contudo, a aproximação da Primeira Guerra, as
medidas governamentais voltadas à educação dos imigrantes foram levadas a efeito pelo que

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se conheceu como Primeira Campanha de Nacionalização do Ensino. (LUNA, 2000). A
nacionalização do ensino visou à assimilação coercitiva do imigrante e seu descendente pela
educação, atribuindo à escola o papel central da formação de uma identidade nacional com
ênfase no paradigma da homogeneização cultural.
O projeto de escola nacionalizadora, assim vista nesse período, dava ênfase à unidade
nacional e ao uso exclusivo da língua portuguesa. Como visto nos excertos jornalísticos
anteriores, a imprensa, assim como toda a sociedade luso-brasileira, reclamava mais atenção
aos núcleos de imigração sobre o quesito escola; contudo, conforme Luna (2000), merece
destaque o fato de que se reclamavam escolas onde o ensino de português fosse desenvolvido
de forma a promover a assimilação dos imigrantes. De modo geral, a escola nacionalizadora
foi um projeto de caráter homogeneizador de culturas e línguas; a escola nacionalizadora,
posta em ação por campanhas de nacionalização, ocupou-se em levar, unicamente, a cultura
brasileira, o civismo e patriotismo aos filhos dos imigrantes, provavelmente, vistos como
“desnacionalizados”, bem como ocupou-se exclusivamente do ensino de português e em
português não admitindo manifestações de fala, livros didáticos ou cartazes em outro idioma
que não o nacional. Nesse cenário nacionalizador, foi atribuído à língua nacional o papel
primordial de articuladora da unidade nacional. Essa ideia ancorou-se na premissa geral de
uma língua, uma só nação. Assim, pensou-se em homogeneizar as minorias através da
imposição da língua oficial.

2.3 A Relação entre as representações

Nesta subseção, dedicamo-nos a explicar a relação empreendida entre as


representações de imigrante e de educação linguística. Na Primeira Campanha, vimos as
representações do imigrante como “trabalhador útil” para o progresso, bem como a mudança
dessa percepção para “indesejável”, tratando-se do “perigo” que representava ao país, este
último ligado às questões político-sociais traçadas pela iminência da Primeira Guerra.

2.3.1 O imigrante como elemento a ser assimilado

A relação empreendida acerca das representações de imigrantes e a educação voltada


para eles e seus descendentes relacionaram-se com o desejo da sociedade luso-brasileira de
assimilação. Como vimos anteriormente, a assimilação dos imigrantes e descendentes foi
reclamada por uma massa social, ou seja, a maior parte da sociedade luso-brasileira a isso

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almejava. Assim, conforme Luna (2000), as medidas governamentais voltadas à educação
assimilacionista dos imigrantes e descendentes, nesse período, podem ser abordadas em
torno do que se conheceu por Campanhas de Nacionalização do Ensino. De modo geral, as
medidas impostas pelo processo de nacionalização visaram ao forte controle da educação
destinada aos imigrantes e descendentes, bem como a censura sobre a cultura e a língua de
imigrantes, podendo ser entendida, ainda, como uma manifestação explícita de intolerância
ao Outro. (FÁVERI, 2004).
Naquele período, questões político-sociais traçadas pela iminência da Primeira
Guerra motivaram o governo a adotar medidas coercitivas para assimilação da população
imigrante. Conforme Luna (2000), a aproximação do conflito bélico despertou os
sentimentos de patriotismo e fez crescer as hostilidades contra os imigrantes e descendentes
representados como “perigo”, também evidenciado nas amostras. Para boa parte da
sociedade luso-brasileira, as manifestações culturais mantidas pelos imigrantes, como usos e
hábitos alimentares próprios, falar a própria língua dentro Brasil e frequentar escolas próprias
e tidas como melhores, passaram a ser representadas como indesejáveis e traduziram-se em
exigências de assimilação. (LUNA, 2000). A assimilação estava ligada às medidas coercitivas
que foram impostas aos imigrantes e descendentes, em especial às suas instituições escolares
que foram fechadas pouco a pouco, ou ainda, tomadas pelo governo. (LUNA, 2000). Assim,
através de uma educação assimilacionista, ou ainda, nacionalizadora, o governo brasileiro
pretendia a um ideal de unidade nacional.
Em seus estudos, Luna (2000) e Leitão (2011) demostram que o português foi
historicamente apresentado como a única língua para a sua população plurilíngue. As ações
de ambos os períodos estudados podem ser caracterizadas como autoritárias, tendo causado
a diminuição da funcionalidade das línguas trazidas pelos imigrantes ao longo dos séculos,
como também das línguas indígenas. Assim, a imposição da língua portuguesa, nos períodos
citados, atendeu aos ideais de uma sociedade monolíngue e monocultural. Pensou-se, ainda,
que através do ensino e uso da língua portuguesa se alcançaria a uniformização social.

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3 REPRESENTAÇÃO DE IMIGRANTE DURANTE A SEGUNDA CAMPANHA
DE NACIONALIZAÇÃO

3.1 O imigrante como elemento indesejável

Como na primeira fase do conflito, os jornais exploraram a representação do


imigrante como “elemento indesejável” através de matérias que se intensificaram com a
deflagração da Segunda Guerra. O “elemento indesejável”, nessa segunda fase, aparece
relacionado com as categorias de palavras “alienígenas”, “núcleos estrangeiros constituindo
um problema”, “perigo” e “quistos inassimiláveis de elementos estrangeiros”, conforme
evidencia a amostra de reportagens publicadas no jornal o Estado:

[...] minorias alienígenas (...) seriam incorporadas gradativamente à nação [...]


grupos de colonos, fragmentos de nacionalidades européas, transportadas ao
nosso país [...] o Estado Novo já não precisa dos sullfraggios dos Allemães,
Italianos, Poloneses e Israelitos obstinados no seu proposito de alheiamento aos
destinos do brasil [...]. (O ESTADO, 1938).

[...] núcleos de estrangeiros do sul constituem, de há muito, sério problema para


a integridade moral do país [...] para nacionalizar essas zonas, povoadas por
estrangeiros não identificados com o nosso país [...] o governo recorreu ao
patriotismo [...] do Exército. A simples presença [...] junto as populações locais
actuará como uma affirmação da nossa soberania [...]. (O ESTADO, 1939).

[...] guerra de 1914 que nos abriu os olhos [...] quistos inassimilaveis de elementos
estrangeiros [...] De todas as correntes imigratórias a mais recente é a japonesa
para a qual já se poderia ter agido de modo mais providente [...] Nosso ideal é que
esses elementos [...] se assimilem o mais rapidamente possível. (O ESTADO,
1942).

Entre os anos de 1937 a 1945, em particular, uma parcela significativa da população


imigrante e descendente sofreu interferências significativas na vida, produzidas pela Segunda
Campanha de Nacionalização, que, como na primeira, buscava, em nome da unidade
nacional, assimilação de “alienígenas”. “Alienígenas” eram os imigrantes e seus descendentes
que portassem uma cultura e uma língua diferente da nacional, tida, portanto, como
incompatível com os princípios de brasilidade. (SEYFERTH, 1997). A Segunda Campanha
foi implementada durante o Estado-Novo para atingir a todos os “alienígenas”, ou ainda, “os
núcleos estrangeiros”, regiões onde a maioria da população imigrante e seus descendentes
residiam. (SEYFERTH, 1997). O primeiro ato de nacionalização atingiu as instituições
escolares étnicas que foram obrigadas a realizar uma série de adequações, depois outras
instituições sociais, como recreativas, esportivas e imprensa dos grupos imigrantes, sendo
proibida de circular e, a partir de 1939, a intervenção direta do exército nas colônias
estrangeiras. (SEYFERTH, 1997).

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Outra categoria de palavra recorrente nos textos jornalísticos da época é o “quisto”.
Esse termo pode vir acompanhado de adjetivos como inassimiláveis, estrangeiros, raciais, ou
ainda, étnicos. Independente do acompanhamento, compreendamos que quisto é uma
terminologia própria da patologia médica, portanto uma anomalia no corpo da nação.
(SEYFERTH, 1997). Na visão da época, esse tipo de anomalia só poderia ser eliminado pela
ação do civismo e, por isso, o exército apareceu como encarregado de divulgar os valores
morais e virtudes cívicas para aqueles que representam “quistos”, contaminando o corpo da
nação, ou ainda, aos “alienígenas”, “estrangeiros” inassimiláveis que constituem um
problema nacional. (SEYFERTH, 1997).
Resumidamente, a imprensa, de modo geral, contribuiu com propagação e
construção do perigo e do medo. Nos dois conflitos bélicos, os sentimentos patrióticos e
nacionalistas provocaram tensões entre brasileiros e imigrantes, em especial os dos países do
eixo; os brasileiros os viam ligados ao país de guerra, portanto “inimigo”. (FÁVERI, 2004).
No ano de 1930 e 1940, com a ascensão do nazismo e com Hitler no poder (1933), o perigo
de uma invasão da Alemanha na América do Sul passou a ser considerado com real
(FÁVERI, 2004), o que favoreceu na representação coletiva de “perigosos”. Assim, para
barrar o “perigo ou inimigo”, ações coercitivas do governo voltaram-se contra o “perigo”
representado pelo imigrante estrangeiro e descendente, em especial os dos países do eixo.

3.2 Representação da educação linguística durante a segunda campanha de


nacionalização

3.2.1 Nacionalização do ensino e as práticas monoculturais e monolíngues

A nacionalização do ensino foi um projeto desencadeado através de duas Campanhas


Nacionalizadoras e teve como foco a promoção de uma educação assimilacionista. (LUNA,
2000). Essa assimilação se deu por meio de decretos que negaram o reconhecimento das
diferenças culturais e linguística das comunidades imigrantes, bem como impôs uma
educação voltada, de forma acentuada, para as práticas de valorização do monoculturalismo
e monolinguismo. Assim, a cultura, a língua e as escolas das comunidades de população
imigrante eram vistas como “desnacionalizadoras” pelo governo brasileiro, que por meio
desse argumento, justificou a necessidade da nacionalização do ensino nas escolas étnicas.
Merece destaque o fato de que imprensa catarinense divulgou e apoiou amplamente a

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nacionalização do ensino executada pelo governo, conforme evidencia os excertos das
reportagens publicadas no jornal o Estado:

[...] há colonias estrangeiras, espalham-se [...] escolas [...] que se ensinam pequenos
Brasileiros a não querer ao sólo em que nasceram [...] A hora é própria para se
reaffirmar que o Brasil é e será dos Brasileiros [...] todos os naturais deste sólo
privilegiado [...] qualquer que seja a sua descendencia. Mas, para essa declaração
ter expressão mais alta, necessario se torna a nacionalização rigorosa do ensino,
porque a desnacionalização [...] chegou ao ponto de trazer consequências. (O
ESTADO, 1938).

[...] um dos mais importantes problemas [...] a nacionalização do ensino [...]


assumpto [...] recebido com o maior interêsse [...] um decreto[...] regula
perfeitamente o papel das escolas estrangeiras existentes [...] 'só posso ter palavras
elogiosas para a medida que vem de adoptar nacionalizando o ensino'. (O
ESTADO, 1938).

A [...] questão das escolas estrangeiras no Brasil foi pelo Estado Novo posta no
cartaz [...] nosso governo não está medindo esforços na resolução de tão grave
assumpto [...]. (O ESTADO, 1939).

Durante o Estado-Novo, um governo caraterizado como autoritário e de exacerbado


nacionalismo, reafirmaram-se, fortemente, os ideais de uma única língua como legítima ao
território nacional. Isso porque a língua foi tomada como elemento fixador de uma
identidade nacional. Então, a imposição do português, por exemplo, foi relacionada como
uma forma de coesão social. Assim, as práticas de caráter monocultural e monolíngues, à luz
da época, foram fundamentais para obtenção de uma suposta identidade nacional. As
matérias não chegam a mencionar explicitamente palavras como monocultural e
monolinguismo, contudo podemos inferir a sua presença pela leitura da expressão “excessiva
tolerância dos governos”. O excerto sugere um tom de descontentamento quanto à
manutenção da cultura e da língua do Outro no Brasil:

[...] o que tornou esses núcleos um perigo dentro do nosso território [...] a
excessiva tolerancia dos governos federais e estaduais, permittindo o livre
desenvolvimento de suas actividades e iniciativas, de modo a conservarem o culto
da lingua [...], dos costumes e tradições [...]. (O ESTADO, 1939).

Assim, a Segunda Campanha de Nacionalização do Ensino foi um projeto


homogeneizador de culturas e línguas, através de decretos e ações coercitivas. Entre as
principais ações de coerção voltadas à educação de imigrante está a imposição do português
como língua de instrução, ou seja, não se podia mais ministrar aulas em nenhuma outra língua
que não fosse o português. (LUNA, 2000). Além do português, houve imposição, ainda, das
disciplinas de História e Geografia do Brasil, bem como Hinos e Cantos Patrióticos (LUNA,
2000) para se difundir o sentimento de nacionalidade e amor à pátria brasileira. Registra-se,

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ainda, nesse período, a proibição da circulação de material didático em língua estrangeira,
esse fato findou as experiências do português como segunda língua. (LUNA, 2000).
Resumidamente, as escolas, durante as campanhas nacionalizadoras, tiveram um
papel importante no que concerne à concretização do ideal monocultural e monolíngue do
projeto nacionalizador. Nesse contexto, a exposição exclusiva do português serviu para
subjugar a língua do Outro e para reduzir os intercâmbios culturais entre as pessoas da
mesma comunidade, o que significou renegar a cultura do Outro, que passou a ser impedido
de ler, de escrever, de comunicar e ouvir canções de sua cultura. (FÁVERI, 2004). Através
de uma educação assimilacionista, o governo caracterizou o pluralismo cultural de sua
população imigrante como indesejável e ameaçador da unidade nacional, sendo a população
imigrante vítima do silenciamento linguístico opressivo das duas campanhas. (LUNA, 2000).

3.3 A Relação entre as representações

Nesta subseção, dedicamo-nos a explicar a relação empreendida entre as


representações de imigrante e de educação linguística. Com a deflagração da Segunda Guerra,
vimos que os jornais exploraram a representação do imigrante como “indesejáveis” e
“ameaçadores” da unidade nacional, vindo a ser vítimas do silenciamento linguístico
opressivo das Campanhas de Nacionalização, em especial da Segunda Campanha
Nacionalizadora.

3.3.1 O silenciamento praticado contra populações imigrantes “indesejáveis”, “ameaçadoras”

A representação do imigrante como “indesejável” e “ameaçador” resultou em


práticas opressivas de silenciamento linguístico. Esse silenciamento imposto aos imigrantes
e descendentes pode ser percebido nas medidas proibitivas como, por exemplo, a não
permissão para usar a língua materna do imigrante na comunidade religiosa, escolar ou entre
as pessoas de uma mesma localidade. Fáveri (2004) aponta que a proibição da língua materna
significou privações de relações na medida em que é pela linguagem que as pessoas
organizam e dão forma às experiências. Junto à privação linguística imposta, surgiu, ainda, a
construção do medo de falar sua língua materna e ser preso ou castigado. Os encontros
religiosos também foram afetados com a proibição do idioma, levando a uma redução de
pessoas nas missas. (FÁVARI, 2004). A veiculação de livros e jornais no idioma materno do
imigrante foi igualmente proibida, as instituições escolares étnicas foram alvo de medidas

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coercitivas (LUNA, 2000) e, ao mesmo tempo, transformadas em agenciadoras do ensino
nacionalizador. Todas essas medidas foram formas de repressão linguística do Estado para
silenciar o Outro.
O silenciamento deu-se, ainda, pela redução da importância da língua materna do
Outro no dia a dia da escola. A língua materna do imigrante era vista como um problema e,
portanto, alvo de um ensino nacionalizador e monolíngue. Nesse contexto, a escola exerceu
a função de assimilação ancorada no paradigma da homogeneização linguística e cultural, que
silenciou vozes, saberes e culturas de grupos minoritários. Assim, as ações silenciadoras
voltadas para os grupos étnicos e seus descendentes também podem ser abordadas como
linguicídio da língua materna dessas comunidades e, ainda, nos dias de hoje, poderiam ser
reconhecidas como violação dos direitos humanos de determinados grupos. (LUNA, 2000).

4 REPRESENTAÇÃO DE IMIGRANTE A PARTIR DA REDEMOCRATIZAÇÃO


DO PAÍS

4.1 O imigrante como trabalhador útil

Entre as representações veiculadas nas narrativas jornalísticas a partir da


redemocratização, é possível perceber a representação de um tipo de imigrante como o
trabalhador que foi bastante útil ao progresso dos estados sulinos. As narrativas das quais
emergem essa categoria apresentam o imigrante europeu, em particular, e suas contribuições
ao enriquecimento e desenvolvimento econômico dos estados do Sul, bem como para a
modernização e a formação sociocultural da região3. Os enunciados referentes a essa
categoria podem ser evidenciados nas amostras publicadas no Diário Catarinense:

Em homenagem [...] ao Sesquicentenário da Imigração Alemã [...] os


colonizadores chegaram à terra [...] arregaçaram as mangas [...] o imigrante [...] foi
um bravo, [...] um herói que [...] não fora a persistência daqueles que [...] chegaram
no século passado [...] não estaríamos desfrutando da privilegiada situação de
município altamente industrializado, onde impera o trabalho [...]. (DIÁRIO
CATARINENSE, 1974).

[...] a imigração européia - alemã, italiana, francesa, belga ou de qualquer outra


nacionalidade - trouxe a contribuição à 'modernização' de Santa Catarina [...].
(DIÁRIO CATARINENSE, 1983).

[...] documentário [...] tem como objetivo resgatar dados históricos da colonização
do estado, destacando a importância dos estrangeiros [...] os imigrantes eram

3 Durante os dois conflitos bélicos os imigrantes europeus, em particular os alemães, foram vistos como
“perigo”, entretanto, passado os conflitos, os jornais tanto O Estado como o Diário Catarinense voltam a
apresentar o imigrante europeu como “trabalhador útil”.

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absorvidos como mão-de-obra na lavoura, em substituição aos escravos. Mas os
imigrantes traziam também tecnologia. Eles montaram uma infra-estrutura de
auto-suficiência. Uma dessas atividades [...] a indústria de tecelagem que é a mais
forte em Santa Catarina, entre outras como a cerâmica e a alimentícia [...].
(DIÁRIO CATARINENSE, 1990).

Há 120 anos chegavam [...] os primeiros imigrantes, com papel importante no


crescimento da região. Eles lutaram para manter [...] a história, a cultura e as
tradições desse povo que em muito contribuiu para o desenvolvimento dos
estados do Sul [...]. (DIÁRIO CATARINENSE, 1992).

Representações do europeu como um tipo de imigrante responsável pelo progresso


local ancoram-se numa perspectiva eurocêntrica. Essa perspectiva está assentada em culturas
de racionais, pensamento ocidental e europeu que se vale de fundamentos científicos e
tecnológicos para justificar uma superioridade. (FORNET-BETANCOURT, 2009). De
acordo com o autor, a cultura dominante argumenta que suas explicações manifestam
conteúdos de verdade, cujo resultado é alcançado por processos racionais e intencionais e,
somente assim, é possível produzir conhecimento verdadeiro. Para Fornet-Betancourt
(2009), a mesma cultura dominante privilegia o saber fazer “indústria” e nos instala em uma
relação instrumental com o conhecimento. Dito de outra forma, o conhecimento é percebido
como um instrumento, o qual pode ser usado e aplicado. Esse uso aplica-se,
preferencialmente, para a produção e consumo. Dessa forma, o conhecimento e as inovações
científico-tecnológicas das culturas dominantes voltam-se para o progresso e o
desenvolvimento econômico, tidos como importantes nessas sociedades. Cabe destacar,
ainda, que Fornet-Betancourt (2006) leva-nos para o conceito de violência epistemológica;
pratica-se essa violência através do modelo desenvolvimentista dos países hegemônicos que
consideram seu conhecimento como único e, assim, desvalorizam os saberes e conhecimento
do Outro, conforme discutiremos a seguir.

4.1.2 Imigrante de países pobres

A segunda representação encontrada nos textos jornalísticos é a de “imigrante de


países pobres”. Os textos narrativos, dos quais emergem essa categoria, trazem informações
sobre a vinda de imigrantes sírio-libaneses e os de origem africana como senegaleses, ganeses
e haitianos ao Brasil. Os textos noticiam questões relacionadas à pobreza, aos problemas
étnico-religiosos, os desastres naturais e à falta de trabalho e oportunidades em seus países
de origem, bem como as dificuldades na chegada dos haitianos, em particular, e a falta de

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planejamento na acolhida adequada a grupos recém-chegados de imigrantes. Esse quadro
geral pode ser evidenciado no conjunto de amostras publicadas no Diário Catarinense:

[...] pilar na ajuda dos refugiados Sírios que procuram acolhida brasileira é [...]
igreja Ortodoxa Síria [...] quando chegam ao Brasil os refugiados costumam dizer
que têm medo da morte. Um pesadelo como definem o conflito instalado no país
[...] para ganhar a vida [...] participam de feiras livres, carregando caixotes [...].
(DIÁRIO CATARINENSE, 2013).

Dois anos após o terremoto que transformou em escombros a capital do país


mais pobre das Américas, muitos haitianos têm vindo buscar no Brasil as
condições de vida que não existe dentro de suas fronteiras - onde 60% da
população está desempregada [...] e sofrem com a escassez de alimentos [...].
(DIÁRIO CATARINENSE, 2014).

[...] janeiro de 2010, quando um catastrófico terremoto devastou o Haiti e


multiplicou o cenário de pobreza. [...] O inferno dos imigrantes começa antes
mesmo da chegada [...] quando são roubados, extorquidos [...] a falta de dinheiro,
a fome, a sede [...] Já no abrigo [...] do Acre, encontraram uma morada em
condições desumanas [...] sofrem com a incapacidade de comunicação e a falta de
informação [...]. (DIÁRIO CATARINENSE, 2015).

Representações com essas características depreciativas ancoram-se em tradições de


história e conhecimentos de visão única. Essa visão única são os estereótipos que Adichie
(2009) classificou como histórias incompletas, porque são baseadas em formulações
apressadas e visões unilaterais, que ouvimos acerca de um determinado grupo e, portanto,
não configuram um significado profundo/denso da realidade e tampouco o valor de um
povo e uma cultura. (GEERTZ, 2014). Essa visão única marcou o colonialismo na América
Latina e na própria África. Isso pode ser percebido se refletirmos na forma como
determinados grupos étnico-raciais, especialmente os negros, foram subalternizados e
estigmatizados em função da cor de pele, do tipo de língua falada e dos hábitos culturais
tidos como inferiores. Assim, ao relacionar o imigrante às notícias de misérias e/ou
dificuldades diversas de sobrevivência, quando veiculadas de forma repetitiva, cria a
desvalorização do Outro e, consequentemente, a da sua cultura. Essa prática pode ser melhor
demonstrada pelo que Fornet-Betancourt (2006) denominou por violência epistemológica.
Na América Latina, e, em particular, no Brasil, o processo de colonização foi
marcado pela violência. Para Fornet-Betancourt (2006), uma das formas de desvalorizar e,
mesmo, desautorizar o Outro, deu-se pelo que o autor denominou por violência
epistemológica. Essa violência, como iniciada anteriormente, manifesta-se na hierarquização
dos saberes e conhecimentos entre os povos. Desse modo, determinados povos foram,
historicamente, submetidos à dominação de outros, configurando um cenário de
colonizadores e colonizados. Os colonizadores, ao chegarem às terras dos colonizados,

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foram impondo seu modelo de desenvolvimento econômico, sua língua, sua cultura e seus
conhecimentos científicos como únicos. Essa prática traduziu-se na homogeneização
cultural, que teve como função consolidar uma cultura dominante de base ocidental e
eurocêntrica. (CANDAU, 2012). Nesse sentido, não há como analisar a forma de representar
determinadas minorias sem levar em conta que essas minorias são percebidas a partir de
fatores relativos à classe social, etnia, linguagem e diferenças culturais vistas pela cultura
dominante como “inferioridade” e, assim, caracterizando numa desvalorização e, mesmo,
discriminação dessas minorias. Nessa forma de representar o Outro está implícita a violência
epistemológica (FORNET-BETANCOURT, 2006), ou ainda, as relações de poder desiguais.
(CANDAU, 2012).

4.2 Representação da educação linguística a partir da redemocratização do país

4.2.1 Bilinguismo na escola

A categoria “bilinguismo na escola” está sendo aplicada com sentido amplo. As


matérias que compõem essa categoria referem-se a uma situação de bilinguismo e à escola.
Essa ideia de escola está com o sentido ampliado, porque se refere tanto ao espaço de sala
de aula, currículo, ensino e a própria escola, como também refere a outros espaços formais,
podendo ser a empresa ou instituições como o Sesi e Universidades. Os enunciados
referentes a essa categoria podem ser evidenciados nas amostras publicadas no Diário
Catarinense:

[...] Pomerode, a cidade mais germânica do país [...] No interior da cidade é


comum encontrar comunidades que só sabem falar alemão, principalmente as
crianças, que só aprendem português quando começam a frequentar a escola [...].
(DIÁRIO CATARINENSE, 2001).

[...]Pomerode [...] A preocupação com a preservação cultural ganhou também as


salas de aula. Desde o início deste ano, o ensino da língua alemã é obrigatório a
partir do primeiro ano do ensino fundamental nas escolas básicas da rede
municipal. [...] ‘Muitas crianças vêm falando o alemão de casa’ – diz a diretora [...]
o objetivo é reforçar o incentivo à cultura dos antepassados, além de oferecer aos
estudantes uma outra língua [...]. (DIÁRIO CATARINENSE, 2006).

[...] Frantz [...] trabalha como tintureiro na fábrica de fios têxteis Círculo, em
Gaspar. [...] Os haitianos [...] receberam do Sesi cursos de português [...] Frantz
aprendeu português e hoje ensina o idioma para os colegas da Círculo uma vez
por semana. No país natal, ele era professor de línguas [...] ‘Eu ensinava literatura,
espanhol, francês e inglês básico’ [...]. (DIÁRIO CATARINENSE, 2014).

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O ponto de encontro e, principalmente, de integração entre brasileiros e haitianos
é a faculdade municipal de Palhoça, onde no primeiro semestre começaram a ser
oferecidos cursos de língua portuguesa - a primeira dificuldade para quem fala
crioulo. A adesão foi alta para pouca divulgação: 160 alunos [...] a instituição
deseja aos alunos imigrantes: integração [...]. (DIÁRIO CATARINENSE, 2015).

Ao longo da contextualização empreendida na introdução, discutimos que a


redemocratização do país favoreceu à adoção de leis que concederam o reconhecimento à
língua e à cultura de minorias no território brasileiro. Nesse período foi firmada a constituição
de 1988, que garantiu o exercício dos direitos culturais. Oliveira (2009) aponta o documento
constitucional como um avanço ao reconhecimento da diversidade pois, por exemplo, foi
concedido ao indígena o direito a escolas bilíngues e interculturais. Pode-se considerar como
avanço, ainda, os Parâmetros Curriculares Nacionais que oficializam a perspectiva
intercultural no sistema educacional brasileiro. Ao longo dos anos de 2000, a incorporação
das leis 10.436 e 10.639 que, respectivamente, reconhecem o direito ao uso da Língua
Brasileira de Sinais (ALTENHOFEN, 2013) e que torna obrigatório o ensino da História e
Cultura Africana e Afro-Brasileira com o objetivo de legitimar e valorizar as origens do país.
Ampliaram-se, ainda, nesse cenário, os debates acerca das comunidades de fala imigrante e
projetos como em Pomerode e Blumenau (SC), o ensino de português-alemão e entre outros
municípios. (ALTENHOFEN, 2013).
Nota-se nos excertos jornalísticos e pelas medidas legislativas dos últimos anos, que,
de certa forma, conseguimos superar um passado que se silenciava por meio de medidas
coercitivas para um contexto em que se presencia certa tolerância e proteção da diversidade
linguístico-cultural no país. Mas apesar dos avanços, os estudos de Schneider (2007) e Kersch
(2006) apontam que ainda não superamos estágios de indiferença, antipatia, discriminação e
desprestígio social que sofrem falantes bilíngues rurais de alemão-português e espanhol-
português, respectivos estudos no Rio Grande do Sul. Assim, ao que concerne às línguas de
imigração, tanto as leis como as políticas de promoção linguísticas, ainda requerem
acompanhamentos e ações efetivos. Quanto às leis, ainda não se tem os poucos e parcos
direitos reconhecidos às línguas de imigração, como às indígenas e à comunidade surda.
(OLIVEIRA, 2005). E no que se referem às políticas de promoção linguísticas, pensamos
haver um longo caminho para que falantes bilíngues de línguas minoritárias não vivenciem
práticas discriminatórias, seja nas instituições escolares ou em outros espaços públicos.

4.2.2 Bilinguismo fora da escola

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A categoria “bilinguismo fora da escola” está aplicada às matérias jornalísticas que
apresentam situações de bilinguismo em contextos informais e usos públicos. Os excertos
apresentam, de modo geral, o bilinguismo em três situações: em algumas a língua de
imigração sendo falada em casa, em outra faz menção à perda da funcionalidade da língua do
imigrante em casa e no uso social e, ainda, alguns contextos informais, cujo objetivo é resgatar
as tradições dos antepassados, conforme evidenciam as amostras publicadas no Diário
Catarinense:

[...] A maioria usa a língua árabe nas suas relações domésticas, enquanto a língua
portuguesa é utilizada nos atos estritamente necessários ao relacionamento
público [...]. (DIÁRIO CATARINENSE, 1987).

[...] Em casa, Masaaki, Michiko e os filhos falam a língua japonesa. A mulher [...]
domina melhor o português [...]. (DIÁRIO CATARINENSE, 1987).

Os primeiros palestinos chegaram em Santa Catarina em 1948 [...] Yoset Suliman


[...] ‘Hoje falamos a nossa língua apenas com os velhos amigos. Em casa, os filhos
já não compreendem nada [...] a maioria [...] casou-se com mulheres brasileiras’
[...]. (DIÁRIO CATARINENSE, 1987).

Preservar a cultura austríaca também é objetivo das comemorações de natal em


Treze Tílias em Treze Tílias [...] as encenações do nascimento de Jesus e os
cânticos são feitos em língua alemã, para relembrar os costumes do país que deu
origem às tradições no município [...] tudo é encenado e contado em alemão [...].
(DIÁRIO CATARINENSE, 2012).

[...] Quem chega na casa logo ouve [...] ´oui´ para cá e para lá, que significa ´sim´
em francês, língua oficial do Haiti. Eles são muito receptivos e convidam para
entrar [...]. (DIÁRIO CATARINENSE, 2014).

[...] entre cobertores, alguns escassos colchões [...]. Roupas espalhadas pelo chão,
uma tv sintonizada em português – idioma que não compreendem [...] falam inglês
ou algum dos 50 dialetos tribais ganeses [...]. (DIÁRIO CATARINENSE, 2014).

A leitura dos excertos apresenta a realidade plurilíngue do Brasil, apesar do


desconhecimento que ainda se tem sobre essa realidade. Oliveira (2009) afirma que a história
pode mostrar que não fomos apenas um país multicultural e plurilíngue, mas que ainda
somos, seja pelas variedades linguísticas do português faladas internamente, seja pela
diversidade de línguas, como as indígenas e as de imigração faladas por seus descendentes,
como também pelos novos bilinguismos, os quais, como vimos nos excertos, têm surgido
através dos novos fluxos migratórios. No entanto, a maioria dos brasileiros ainda entende o
país como um lugar onde todos falam o mesmo idioma e o próprio autor desenvolve a sua
reflexão afirmando que isso não é uma casualidade. Uma vez que conhecimentos e
desconhecimentos são produzidos para diferentes finalidades e, nesse caso específico, o
desconhecimento de que no país também são faladas outras línguas e variantes foi

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fundamental para que as políticas de repressão tivessem suas justificativas. (OLIVEIRA,
2009).
Assim, vimos ao longo do estudo, que experiências passadas com as imigrações têm
mostrado que o país se empenhou em homogeneizar cultural e linguisticamente suas
minorias. (LUNA, 2000). E as ações de períodos anteriores causaram a diminuição da
funcionalidade das línguas trazidas pelos imigrantes. Essas línguas, em cenários recentes,
foram alvo de promoção de medidas linguísticas, que através de ações e projetos diversos
nas escolas, tentam ampliar a valorização dessas línguas e proteger as minorias que ainda as
falam.
Entretanto, apesar dos avanços legislativos dos últimos anos, esses ainda têm se
mostrado insuficientes para o desenvolvimento de uma consciência pluricultural e atitudes
de respeito e de valorização da diversidade linguístico-cultural existente no país. Corrobora
com essa afirmação Oliveira (2005), ao colocar que, no país, a política linguística está ligada
apenas à educação formal, mas nada se fala sobre atendimento de saúde pública e em outras
instâncias públicas, em línguas minoritárias. Essa insuficiência manifesta-se, ainda, nas
práticas de estigmatização que sofrem alunos de variedades linguísticas populares e falantes
bilíngues cujas línguas não possuem seu valor reconhecido no mercado linguístico. Assim,
essa falta de equilíbrio entre as línguas, nesse mercado linguístico, pode resultar na perda das
funções sociais das línguas minoritárias presentes nesses novos fluxos migratórios, como
detalharemos na seção seguinte.

4.3 A Relação entre as representações

Nesta subseção dedicamo-nos a explicar a relação empreendida entre as


representações de imigrante e de educação linguística, refletindo acerca dos novos fluxos
migratórios no contexto escolar vigente.

4.3.1 Assimilação e os novos fluxos migratórios

Iniciamos reconhecendo avanços ao que concerne às reformas legislativas nas


práticas constitucionais na perspectiva de valorizar a diversidade cultural, entretanto, as ações
voltadas à promoção de práticas pedagógicas e atitudes de respeito e de valorização da
diversidade existente no país são, ainda, incipientes. Corroboram com essa afirmação Saviani

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(2013) e Santiago, Akkari e Marques (2013), que descrevem um sistema escolar focado nos
resultados, especialmente os dos estudantes. Dessa forma, os sistemas de ensino estão
voltados para determinados padrões de conteúdos e medidas avaliativas únicas, refletindo
uma concepção monocultural e bancária4. (SANTIAGO; AKKARI; MARQUES, 2013).
Para os autores supracitados, a educação está apoiada, fortemente, no positivismo e no
legado do Iluminismo, os quais influenciaram a difusão de uma cultura científica por meio
da escola.
Pela escola, essa perspectiva difundiu o pensamento da cultura dominante: no
passado, a escola passou a portar ideais dominantes como a consolidação do nacionalismo e
a formação do espírito patriótico dos futuros cidadãos, que, como vimos, foi eficaz na
assimilação de determinadas culturas imigrantes. De forma similar, a escola continua a refletir
o paradigma dominante, porém, desta vez, a educação vivencia novos rumos, como a
privatização do ensino, a prestação de contas e a obrigatoriedade dos resultados, que
contribuem para uma cultura escolar rígida e incentiva o desempenho de resultados, levando,
conforme Santiago, Akkari e Marques (2013), ao afastamento das abordagens culturais já
modestas no país, ou ainda, à uniformização dos alunos por meio da padronização
institucional. (SAVIANI, 2013).
O segundo ponto é o crescimento ou a manutenção do preconceito linguístico que
determinados grupos sofrem. Os resultados da pesquisa de Schneider (2007) e Kersch (2006),
evidenciam uma realidade de estigma linguístico de alunos bilíngues de comunidades rurais
e fronteiriça. Esses falantes são depreciados, frequentemente, pela sua pronúncia e/ou pelas
trocas fonêmicas. Segundo a pesquisa de Schneider (2007) as crianças iniciam monolíngues
em alemão, passando ao bilinguismo alemão-português que, por sua vez, parece caminhar
em direção ao monolinguismo em português. A própria autora explica que, esses resultados
parecem indicar que essas variedades podem, nas próximas décadas, desaparecer dessas
comunidades. De forma similar, pode ocorrer o mesmo processo com os novos fluxos
migratórios, em particular o imigrante em vulnerabilidade social, que pode vir a sofrer o
estigma linguístico frequentemente atrelado à condição social e cultural do imigrante, ou seja,
quanto menor é a condição socioeconômica do imigrante, menor valor também é atribuído
a sua cultura e sua língua; trata-se de uma relação assimétrica de poder que desfavorece a
manutenção de línguas minoritárias. Esse exemplo comprova o que Oliveira (2005) defende,

4Concepção ancorada em Paulo Freire, na qual o educador conduz os educandos à memorização do conteúdo
e não efetivamente exige a consciência na tomada de decisões.

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a planificação do Status da língua, no Brasil, ser insuficiente, pois uma política linguística
adequada versa sobre o equilíbrio entre as línguas dominantes e línguas minoritárias, quer
dizer, administra o status e as funções sociais das línguas presentes. (CALVET, 2007).
Assim, diante do exposto, pensamos ser o contexto escolar, ainda, pouco favorável
à promoção de uma consciência pluricultural e atitudes de respeito e de valorização da
diversidade linguística dos grupos minoritários, pois a escola continua a refletir o paradigma
dominante de perspectiva assimilacionista, centrado, principalmente, no foco por resultados,
impondo políticas específicas para avaliação, financiamento, formação de professores,
currículo e métodos de instrução (SANTIAGO; AKKARI; MARQUES, 2013), e deixando
a questão da inclusão e diversidade cultural como temas e abordagens esporádicas.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o objetivo de descrever e explicar a relação entre a representação de imigrante


e a educação linguística no Brasil entre o período de 1900 a 2015, destacando três períodos:
a primeira e segunda campanhas de nacionalização e o fluxo de imigração recente em que se
recebeu sobretudo haitianos. O presente artigo valeu-se de um corpus documental
constituído por narrativas jornalísticas veiculadas no período proposto e fontes secundárias
como teses, dissertações, artigos e livros, que contribuíram para a compreensão do contexto
histórico. Para o tratamento dos dados, adotou-se a técnica de análise de conteúdo, que
permitiu-nos obter as categorias de análises.
Sublinhamos a relevância para a presente pesquisa em que se baseia este artigo para
a definição de políticas educacionais que promovam a consciência pluricultural, bem como
atitudes de respeito mútuo e de valorização da diversidade linguístico-cultural que os novos
fluxos migratórios produzem, em particular nas escolas, pois, numa sociedade de crescente
diversidade étnica e linguístico-cultural, a escola não pode deixar de refletir acerca dessas
características multiculturais. Partindo do princípio de que a escola é multicultural, isto é,
engloba alunos de etnias, religiões, línguas e culturas diferentes, com as diversas situações
que isso pode acarretar, nomeadamente diferenças de mentalidades, choques entre culturas,
dificuldades de comunicação e, muitas vezes, comportamentos agressivos, racismo,
intolerância e de insucesso escolar, podem acometer grupos minoritários. Por esse motivo, a
escola precisa desenvolver ideias e práticas de educação intercultural, entendida como aquela
que enfatiza a relação entre sujeitos culturais diferentes, de maneira a promover atitudes

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abertas em relação ao Outro e conduza a processos integradores entre culturas. (COPPETE;
FLURI; STOLTZ, 2014).
Não é à toa que o relatório de Jacques Delors (1996) Educação: um tesouro a descobrir,
ao elencar os quatro pilares, destaca entre os desafios da educação do século XXI o de aprender
a conviver, justamente porque a história da humanidade está marcada por guerras e conflitos
decorrentes da dificuldade de convivência entre grupos diferentes. Assim, o documento
evidencia-nos o desafio de gerir a nossa diversidade étnica e linguístico-cultural.
Outro ponto a mencionar é a importância de promover pesquisas na área de ensino
de língua portuguesa (materna e estrangeira) e o viés intercultural ligado ao ensino de línguas.
Sob essa afirmação, assume-se a intrínseca relação entre língua e sociedade, já que a primeira
é que possibilita a interação entre os membros de uma comunidade através de diferentes
práticas sociais e históricas. Para Marcuschi (2003), a língua é uma atividade sociointerativa
que permite a transmissão de informações, a troca de experiências, a expressão de afetos e
opiniões. Já para Rajagopalan (2003), a língua pode ser também uma questão política, uma
vez que a escolha de seu uso, por exemplo, é feita de acordo com os interesses políticos do
momento. E finalmente, Fiorin (2012, p. 57) lembra-nos que a língua não é uma
nomenclatura pronta da realidade porque “nenhum ser do mundo pertence a uma
determinada categoria”, os homens é que, por meio de suas línguas, criam as categorias e
põem nelas os seres. Assim, as línguas são modos de perceber e interpretar realidades.
De modo geral, a língua é um sistema de comunicação intra/interpessoal, bem como
intra/intercultural. (MATOS, 2003). Esse sistema é compartilhado por homens de uma
mesma comunidade, através do domínio de uma variedade linguística ou de uma língua em
particular, constituindo a identidade linguística do grupo. Assim, o processo de produção de
língua é sempre um processo constitutivo de si próprio e de interação com o Outro.
(GERALDI, 2012). Por isso, a escola, ao exigir o uso de uma única língua ou uma única
variedade linguística, está, na verdade, silenciando os sujeitos e suas manifestações culturais.

REFERÊNCIAS
ALTENHOFEN, Cléo Vilson. Bases para uma Política Linguística das Línguas minoritárias no
Brasil. In: NICOLAIDES, Cristiane; SILVA, Kleber Aparecido da; TILIO, Rogério;
ROCHA, Claudia Hilsdorf. (Orgs). Política e Políticas linguísticas. Campinas, Editora Pontes
e alab, 2013.
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa, Edições 70 Lda, 1977.
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A Consolidação da Revolução Cognitiva e a Linguística: uma
breve análise das contribuições de estudos empíricos com indivíduos
acometidos por patologias da linguagem

Adriana Lessa1

RESUMO
Este artigo tem como objetivo apresentar uma reflexão sobre a transformação dos estudos da
linguagem e suas interfaces ocorrida a partir da consolidação da revolução cognitiva do século XX.
Especificamente, debate-se a contribuição da investigação de gramáticas desviantes, como a de
indivíduos acometidos pela Demência do Tipo Alzheimer, para o estudo da linguagem como sistema
mental. Para tanto, apresentam-se, em uma perspectiva histórica, as primeiras descobertas da
neurociência sobre casos de patologia da linguagem e seus desdobramentos para os estudos sobre a
linguagem e sua interface com outras funções cognitivas. Por fim, discutem-se a relação entre estudos
neurolinguísticos e propostas teóricas acerca da linguagem.

Palavras-chave: revolução cognitiva. Linguística. Patologia da linguagem.

The Consolidation of the Cognitive Revolution and the Linguistics: a brief analysis of
the contributions of empirical studies with individuals affected by pathologies of language

ABSTRACT
This paper aims at presenting a reflection on the transformation of language studies and its interfaces
since the consolidation of the cognitive revolution in the 20th century. Specifically, we debate the
contribution of investigating deviant grammars, such as the ones from individuals with Dementia of
the Alzheimer's Type, for the study of language as a mental system. To that end, we present, in a
historical perspective, the first discoveries of speech-language pathology cases in Neuroscience and
its unfolding for studies on language and its interface with other cognitive functions. Finally, we
discuss the relationship between neurolinguistic studies and theoretical proposals on language.

Keywords: cognitive revolution. Linguistics. Speech-language pathology.

1 INTRODUÇÃO

Os estudos da linguagem a partir de uma perspectiva naturalista e internalista podem


ser classificados como recentes na história da Linguística. O fortalecimento desses estudos
marcaram o início da chamada revolução cognitiva na metade do século XX (cf. CHOMSKY,
1959, 1997; GARDNER, 1986; MILLER, 2003), a partir do rompimento com a visão
empirista da linguagem, associada ao behaviorismo de Skinner.

1Professora adjunta de Língua Inglesa da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), doutora em
Linguística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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Tendo em vista o caráter mentalista dessa nova abordagem da linguagem, passou-se
a teorizar acerca das características universais da mente humana que se refletem nas línguas
naturais, em vez de apenas sistematizar as ocorrências que compõem, separadamente, tais
línguas. As questões que guiam o programa de investigação da Gramática Gerativa,
emergente nesse período, ilustram bem essa mudança, ao buscar compreender (i) qual é o
conteúdo do sistema de conhecimentos de um falante de determinada língua existente na
mente humana que o permite falar, compreender e ter intuições sobre sua língua, (ii) como
tal sistema se desenvolve, (iii) como é utilizado pelo falante e, finalmente, (iv) que sistemas
físicos no cérebro do falante servem de base ao sistema de conhecimentos linguísticos.
(CHOMSKY, 1988).
Assim, o comportamento linguístico deixa de ser tomado como objeto fim de
pesquisa para se tornar um dado em busca do entendimento da mente humana. Além disso,
a ciência cognitiva (ou “as ciências cognitivas”, como prefere George Miller) recebe(m)
cunho interdisciplinar, envolvendo, além da linguística - com papel central nesse
empreendimento -, a psicologia, a neurociência, a computação, a antropologia e a filosofia.
Essa inusitada interação entre diferentes áreas disciplinares permitiu avanços substanciais
para a ciência2. No entanto, pode-se dizer que não cumpriu as expectativas iniciais mais
radicais de transgressão dos limites entre os diferentes campos científicos, o que justifica a
defesa terminológica de Miller .
A despeito do aparente arrefecimento dos estudos interdisciplinares pós-revolução
cognitiva, por conta do estabelecimento de diferentes vertentes teóricas dentro de cada área
disciplinar, as marcas desse momento histórico da ciência moderna continuam presentes nos
estudos empíricos relativos ao entendimento da linguagem no nível da mente, tendo,
também, incutido o desafio acerca da harmonia entre representação mental e cerebral. Por
isso, neste artigo, apresentam-se determinados enlaces entre a linguística e a neurociência,
com o objetivo de demonstrar, principalmente, a estudantes de graduação em Letras - que já
tenham tido contato com a história do pensamento linguístico até o gerativismo -, a
consolidação da mudança de perspectiva oriunda da revolução cognitiva, a partir da
apresentação de diferentes tratamentos dos dados em estudos empíricos de diferentes
períodos.

2É a esse período, de efervescência de estudos interdisciplinares sobre a relação entre sistema físico e mental,
marcando o início da consolidação da revolução cognitiva, nas décadas de 70-80, que este trabalho se refere,
sob a influência das ideias seminais sobre biolinguística, com a publicação de Biological Foundations of Language,
de Eric Lenneberg, em 1967.
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Tendo sido estabelecido o escopo deste trabalho, é importante esclarecer que não há
qualquer pretensão de se apresentar uma ampla revisão dos estudos neurolinguísticos, o que
seria irrealizável em um artigo e fugiria ao nosso propósito maior. Portanto, não são
abarcadas contribuições de reconhecida relevância na área, já que se optou por um recorte
que, apesar de abordar o início dos estudos com afasia, privilegia dedicar parte de seu espaço
à apresentação de estudos sobre linguagem na Demência do Tipo Alzheimer (doravante,
DTA), por sua emergência mais recente e sua ausência nos artigos que tratam de estudos da
neurolinguística disponíveis em língua portuguesa.
Assim sendo, a estrutura deste artigo é a seguinte. Na primeira seção, apresenta-se o
advento da neurociência da linguagem, a fim de demonstrar as diferentes visões sobre a
representação orgânica da linguagem até a emergência da visão localizacionista das funções
cognitivas no cérebro, defendida por Broca, a partir da análise de um indivíduo acometido
por afasia. Na segunda seção, focalizam-se as contribuições dos dados linguísticos desses
indivíduos para a validação de teorias linguísticas, no âmbito da gramática gerativa. Na
terceira seção, apresentam-se as contribuições para o entendimento da linguagem a partir dos
dados linguísticos de pacientes com DTA, no que diz respeito a dissociações tanto entre a
faculdade da linguagem e outras funções cognitivas - no caso, a memória - quanto entre
níveis linguísticos - no caso, sintaxe e semântica - afetados nos diferentes estágios da
doença. Por fim, nas considerações finais, discutem-se os desdobramentos da revolução
cognitiva e a consolidação da perspectiva biolinguística da linguagem.

2 O ADVENTO DA NEUROCIÊNCIA DA LINGUAGEM

Em uma análise sobre os estudos da Neurociência, pode-se dizer que a relação entre
o estudo do cérebro e da linguagem se estabelece desde muito cedo, uma vez que papiros de,
aproximadamente, 3.600 (três mil e seiscentos) anos já associavam ferimentos na cabeça à
perda da fala (cf. TIESLER, 2003). Assim, inúmeros sintomas relacionados à patologia da
linguagem foram descritos, sendo a perda da fala interpretada de diversas maneiras.
Durante o período greco-romano, acreditava-se que a língua, não o cérebro, era a
origem das desordens da linguagem. Com o Renascimento, a afasia passou a ser encarada
como uma perda de memória para palavras. Todavia, no século XVIII, Johann Augustin
Phillip Gesner (1738-1801) analisa a afasia sob um prisma inovador, caracterizando-a como
a inabilidade de associar imagens ou ideias abstratas a seus símbolos verbais expressivos

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devido a um desarranjo por doenças do cérebro. Por seu modelo associacionista, é saudado
como criador da primeira teoria moderna sobre afasia.
No início do século XIX, Franz Joseph Gall (1757-1828) se destacou ao levar à
comunidade científica ideias que deram origem à Frenologia, teoria segundo a qual o córtex
cerebral poderia ser subdividido em unidades funcionais. Ele propôs a existência de uma
unidade funcional para a memória verbal, tomando por base duas evidências. Primeiramente,
observou que um colega de classe com uma excepcional memória de palavras possuía
grandes olhos protuberantes. Depois, deparou-se com um caso de mutilação acidental, no
qual o paciente – Edouard de Rampan – apresentava características prototípicas de afasia:
paralisia no lado direito do corpo e perda de memória para palavras, mas não para imagens
e lugares. Gall concluiu que os olhos protuberantes do estudante se deviam à abundância de
tecido cerebral subjacente aos olhos, mesma região afetada no cérebro do paciente Edouard.
Portanto, defendeu a localização da memória verbal nos lobos frontais.
Inspirado na essência das ideias frenológicas de Gall, Jean-Baptiste Bouillaud
(1796-1881) reuniu uma coleção de mais de quinhentos casos que demonstravam como a
fala pode ser completamente perdida em indivíduos que não apresentam nenhum outro sinal
de paralisia, enquanto, ao contrário, outros pacientes possuem o livre uso da fala coincidente
com a paralisia dos membros. Haja vista a dissociação entre a perda da fala e a paralisia dos
membros, Bouillaud defendia que os movimentos dos órgãos da fala têm um centro especial
no cérebro, localizado nos lobos anteriores.
As ideias de Bouillaud viriam a ser confirmadas pelo cirurgião Pierre Paul Broca
(1824-1880), a partir da análise do paciente Leborgne, conhecido como “Tan”, pelo fato de
esse ser o único som emitido por ele (além de outras poucas obscenidades). Epiléptico,
Leborgne havia perdido a capacidade de falar em 1840 e, dez anos depois, perdera também
a habilidade de mover o braço direito, devido a um acidente vascular cerebral. Broca
defendeu, então, que o paciente possuía uma lesão cerebral progressiva que, inicialmente,
limitava-se a uma região muito bem circunscrita, afetando somente a linguagem. Após dez
anos, a lesão teria se estendido à área responsável por um ou mais órgãos de mobilidade e,
por fim, teria acometido os órgãos de sensibilidade juntamente com a visão do olho direito.
Com o exame post mortem do paciente, Broca constatou que a principal lesão cerebral
de Leborgne estaria no hemisfério esquerdo, o que o levou a concluir que “nós falamos com
o hemisfério esquerdo”. (BROCA, 1865). Mais precisamente, Broca observou que a terceira
circunvolução do lobo frontal do hemisfério esquerdo – o atual giro inferior posterior frontal

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– sofreu grande perda de substância, indicando que a doença teria começado a se desenvolver
ali. Depois disso, Broca analisou oito pacientes com os mesmos sintomas e constatou que
todos apresentavam lesão na mesma região identificada no estudo de Leborgne,
consolidando sua proposta. Por conta da relevância de sua descoberta, a região cerebral
afetada nesses casos, que impediria a produção de um discurso elaborado devido à "falta" de
sintaxe nas construções linguísticas, ficou conhecida como área de Broca.
Broca se tornou, portanto, um defensor da teoria da localização. Todavia, enfatizou
que a localização da fala de que tratava se distinguia daquela defendida pelos frenologistas.
Segundo o autor, somente no cérebro da maioria das pessoas destras que a fala se localizaria
no hemisfério esquerdo; nas pessoas canhotas, ela residiria no hemisfério direito. Além disso,
sugeriu que o hemisfério direito poderia assumir a função da fala, caso o hemisfério esquerdo
fosse prejudicado numa idade precoce.
Dentre muitas contribuições, os estudos de Broca trouxeram duas mudanças na
maneira de se investigar o cérebro que repercutem até os dias de hoje. A primeira delas pode
ser considerada a busca de uma relação entre função e área, uma vez que seu trabalho foi
inaugurador no sentido em que trouxe pela primeira vez evidências empíricas comprovando
tal relação. E a segunda diz respeito à localização de funções linguísticas em diferentes áreas,
partindo do pressuposto que a área de Broca seria responsável somente pela produção da
fala, com prejuízo mínimo da compreensão.

3 ESTUDOS LINGUÍSTICOS SOBRE A AFASIA DE BROCA

O desenvolvimento da neurociência da linguagem manteve-se como uma área


especializada da medicina desde Broca, como se apresentou na primeira seção, até o período
de renovação criadora pós-segunda guerra mundial, conforme destaca Lluís Barraquer-
Bordas, em seu prólogo à edição espanhola de “Fundamentos da Neurologüística”, de Luria
(1980). A revolução cognitiva marca essa ebulição de linhas de pensamento e trabalho
próprias e originais, como aquelas estabelecidas por Alexander Romanovitch Luria,
psicólogo russo considerado pai da Neuropsicologia, distinguindo-se do raciocínio
prototípico da neurologia.
Sendo assim, a primeira fase “localizacionista” teria sido sobreposta por uma nova
era “em busca dos fatores primariamente alterados como resultado das lesões focais,
buscando compreender os mecanismos básicos que sustentam a linguagem”. (LURIA, 1980,

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tradução nossa). Nesse período, as dissociações funcionais ganham destaque no
procedimento analítico para desvendar a mente humana. Além do uso recorrente de
dissociações simples, em que uma variável afetaria o resultado de determinada tarefa, as
duplas dissociações, que representam a constatação de que uma variável, embora afete o
resultado de determinada tarefa, não afeta o de outra, passam a ser assumidas como o Santo
Graal da Neuropsicologia. (cf. BADDELEY, 2003; TELES DA SILVEIRA et al., 2012 para
mais detalhes e críticas a respeito desse tipo de inferência). A adoção desses tipos de
procedimento analítico repercutem também nos estudos sobre os conhecimentos linguísticos
que seriam afetados em indivíduos afásicos, conforme se demonstra nesta seção.
Caramazza e Zurif (1976), por exemplo, estudaram a compreensaão de sentenças por
indivíduos acometidos pela afasia de Broca, a fim de colocar à prova a dissociação,
comumente referida em relatórios sobre a patologia, entre produção e compreensão
linguística. Para tanto, os autores se utilizaram de sentenças semanticamente reversíveis ou
irreversíveis, como os exemplos em (1), para investigar a compreensão sintática dos
pacientes.

(1) a. The ball that the boy is kicking is red.


A bola que o garoto está chutando é vermelha.
b. The girl that the boy is pushing is intelligent.
A garota que o garoto está empurrando é inteligente.

Na sentença (1a), apenas uma bola pode ser vermelha. Portanto, ela é considerada
semanticamente irreversível. Na sentença (1b), tanto a garota quanto o garoto podem ser
inteligentes. Por isso, ela é considerada semanticamente reversível. Para identificar a que
pessoa o adjetivo "inteligente" se refere, o paciente precisa recorrer a conhecimentos
especificamente sintáticos. Em sentenças semanticamente reversíveis, o desempenho dos
pacientes ficava no nível da chance. Portanto, a partir de sentenças como essas, evidenciou-
se que o desempenho dos pacientes acima do padrão da aleatoriedade em testes que
investigavam sua compreensão linguística, era devido à concatenação de informações
contextuais ou do conhecimento de mundo do paciente. Essa dificuldade com as sentenças
semanticamente reversíveis seria decorrente de problemas no processamento sintático.
Ao constatarem que o déficit linguístico dos pacientes também afetava a
compreensão, os autores concluíram que seus déficits teriam acometido o conhecimento

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linguístico e não somente uma modalidade de linguagem, como a produção ou a
compreensão. Essa proposta acarretou a realização de uma série de trabalhos que tinha como
objetivo mostrar quais conhecimentos linguísticos se manteriam preservados e quais seriam
perdidos na afasia de Broca.
Além da caracterização do acometimento da linguagem na doença, podem-se
destacar contribuições dos estudos sobre essa patologia para a Linguística, como as que se
referem à investigação da flexão verbal. Friedmann e Grodzinsky (1997), por exemplo,
denunciaram a dificuldade que os pacientes agramáticos hebraicos apresentavam com a
produção da morfologia flexional de tempo. Já era amplamente descrito na literatura o uso
demasiado das formas nominais dos verbos – infinitivo, gerúndio e particípio – por pacientes
agramáticos (cf. GRODZINSKY, 1990), que seria a única maneira de se construir sentenças
na ausência de nódulos flexionais na árvore sintática. Entretanto, os autores ressaltaram que
alguns pacientes não apresentavam problemas com a expressão linguística de concordância,
o que caracterizaria uma dissociação entre os conhecimentos ligados a Tempo e os
conhecimentos ligados a Concordância. Em outras palavras, a dissociação entre essas duas
categorias linguísticas evidenciaria a disposição desses conhecimentos linguísticos em
nódulos distintos dentro da árvore sintática3 e que um desses nódulos permaneceria
preservado: no caso, AgrP4. Assim, ocorreriam flexões de Tempo incorretas, erros
relacionados à ordem sentencial e omissões de verbos de ligação que se localizam em TP.
Considerando que TP dominaria AgrP (conforme a proposta de Pollock (1976)) e
TP estaria comprometido, haveria uma dificuldade relacionada aos nódulos mais altos da
árvore sintática. Por isso, criou-se a metáfora da poda na árvore sintática na posição
correspondente a esse nódulo. Em consequência, os nódulos situados acima de TP estariam
inacessíveis. Por isso, os pacientes não produziriam interrogativas nem sentenças encaixadas,
uma vez que o nódulo responsável por esses fenômenos seria CP, que, por dominar TP,
também se encontraria deteriorado.

3 Considere-se a estrutura sentencial arbórea, de acordo com a Teoria X’, no escopo da gramática gerativa, já
adequada a determinadas concepções minimalistas de Chomsky (1995). Sendo assim, os nódulos sintáticos
deveriam respeitar a relação unívoca entre nódulo e categoria sintática, ou seja, afasta-se da ideia de um único
nódulo sintático IP (Inflectional Phrase, significando Sintagma Flexional) para abarcar concordância, tempo e
aspecto. No entanto, ainda vigoraria o debate acerca da ordem hierárquica entre esses nódulos na estrutura
sintática. (para mais informações, cf. NOVAES, 2007).
4 A terminologia está sendo mantida em inglês, tendo em vista sua ampla utilização na literatura. Logo, AgrP

corresponde a Agreement Phrase, significando Sintagma de Concordância; TP corresponde a Tense Phrase,


significando Sintagma de Tempo e AspP corresponde a Aspect Phrase, significando Sintagma de Aspecto.
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Tomando como pressuposto essa hipótese da poda da árvore, Novaes e Braga (2005)
analisaram a produção da morfologia verbal dos aspectos gramaticais perfectivo e
imperfectivo em tempo passado de uma paciente agramática. Desse modo, observaram uma
dissociação, haja vista que a paciente apresentou problemas com a produção do imperfectivo
sem ter problemas com o pretérito perfeito. Por isso, propuseram a substituição do nódulo
de Concordância (AgrP) por Aspecto (AspP), contemplando a condição de legibilidade do
sistema conceptual, segundo a qual só poderiam ser projetados nódulos flexionais
conceptualmente motivados. (CHOMSKY, 1995).
Além disso, como os autores constataram que os problemas da paciente pareciam
estar mais relacionados a Aspecto do que a Tempo, defenderam uma diferente disposição
dos nódulos na árvore sintática. Levando em conta Friedmann e Grodzinsky (1997), os
nódulos superiores a um nódulo comprometido - no caso, Aspecto - estariam inacessíveis,
logo, assumiram que Aspecto dominaria Tempo.
Assim, nesta seção, demonstrou-se como os estudos da afasia contribuíram para a
nova era da Neurolinguística. Especificamente, ilustrou-se o uso de duplas dissociações no
procedimento analítico e esclareceu-se como esses estudos permitiram a testagem de
propostas teóricas, contribuindo para a evolução da teoria linguística.

4 ESTUDOS LINGUÍSTICOS SOBRE A DEMÊNCIA DO TIPO ALZHEIMER

Nas descrições dos sintomas da DTA realizadas pelo próprio Alzheimer, já há


menção a certa deterioração linguística e traços afásicos (cf. MILLER, 1989). Essa
comparação entre a DTA e a afasia de Broca, no que tange às alterações linguísticas, também
foi corroborada por Cummings et al. (1985). Logo, pode-se afirmar que há consenso antigo
na literatura no que tange ao acometimento da linguagem na DTA.
No entanto, conforme Ortiz e Bertolucci (2005) salientam, o uso da linguagem
depende de conhecimentos múltiplos. Para haver expressão linguística, o sistema linguístico
precisa interagir com sistemas de informação conceptual e perceptual não linguísticas, que
podem ou não estar relacionados ao comprometimento linguístico no caso da DTA.
Sendo assim, o empreendimento neurolinguístico de avaliação, caracterização e
análise dessa deterioração passaram a seguir um percurso bastante semelhante ao perseguido
nos estudos de lesões locais, como a afasia de Broca. Nesse empreendimento da DTA,
destaca-se o interesse em identificar (a) dissociações entre a faculdade da linguagem e outras

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funções cognitivas, como a memória, e (b) quais níveis linguísticos seriam afetados em quais
estágios da doença, que serão abordados neste artigo. Na seção 3.1, são apresentados
trabalhos acerca do primeiro interesse de pesquisa e, na seção 3.2, acerca do segundo
interesse.

4.1 A origem do comprometimento linguístico

No que tange ao interesse acerca da origem do comprometimento linguístico, há,


basicamente, dois posicionamentos divergentes: (1) o de que o comprometimento linguístico
seria genuinamente sintático e (2) o de que o comprometimento sintático seria imputado a
outros fatores, como o acometimento da memória de trabalho. Nesta seção, relatam-se
diferentes tipos de pesquisa realizadas para colocar à prova tais hipóteses.
O primeiro ponto de vista é defendido por Grober e Bang (1995). A fim de identificar
a natureza do déficit na compreensão sintática, as autoras elaboraram dois experimentos de
relacionamento figura-sentença. Nesses experimentos, manipularam-se as informações
semânticas e demandas da memória de trabalho, além da complexidade sintática. Para
manipular as informações semânticas, foram utilizadas sentenças semanticamente reversíveis
e irreversíveis. Para manipular as demandas da memória de trabalho, as figuras e as sentenças
foram apresentadas ora separada ora simultaneamente. E para manipular a complexidade
sintática, as sentenças eram apresentadas nas vozes ativa e passiva. Os dois experimentos
foram aplicados em 20 (vinte e dois) pacientes com DTA com comprometimento leve e
moderado.
Os resultados apontaram que, quando as demandas de armazenamento temporário
de informaçóes eram minimizadas, os pacientes se utilizavam das pistas semânticas para
compreender a sentença. No entanto, quando as informações semânticas não eram
disponibilizadas, a compreensão das sentenças era afetada, havendo ou não requisiçáo da
memória de trabalho. Uma vez que o problema com a compreensão de sentenças independia
da coexistência de deterioraçáo semântica ou disfunçáo da memória de trabalho,
defendeu-se a existência de um déficit genuinamente sintático. Entretanto, esse déficit estaria
relacionado ao grau de severidade da demência.
Assim como o estudo de Grober e Bang (1995), a maior parte da literatura acerca da
compreensão sintática investiga pacientes com DTA falantes de inglês. Tomando por base a
importante contribuiçáo fornecida por estudos de diferentes línguas, Bickel et al. (2000)

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defendem a realizaçáo de estudos em outras línguas. Tendo em vista o paradigma flexional
mais rico em comparaçáo ao inglês, os autores escolheram estudar a compreensão sintática
na DTA com falantes nativos do alemão.
Para tanto, utilizaram-se de um experimento off-line de relacionamento figura-
sentença. Todas as sentenças utilizadas nesse experimento eram semanticamente reversíveis.
Entretanto, variavam com relaçáo à complexidade sintática, de acordo com a qual foram
divididas em quatorze categorias. Durante a aplicaçáo, as sentenças eram apresentadas
simultaneamente às figuras, a fim de minimizar as demandas de memória de curto prazo. Os
pacientes também foram divididos em dois grupos: pacientes com comprometimento
cognitivo leve e com comprometimento cognitivo moderado/severo. Desse modo,
esperava-se investigar duas hipóteses: a de que (1) a compreensão seria uma funçáo de
complexidade sintática e a de que (2) a compreensão dependeria da severidade da doença.
Todos os pacientes com DTA obtiveram resultados inferiores aos dos indivíduos
saudáveis em todos os tipos de sentença. Porém, observou-se uma subdivisão entre
pacientes com comprometimento cognitivo leve e pacientes com comprometimento
cognitivo moderado/severo. Dos quatorze tipos de sentença avaliados, os pacientes com
comprometimento cognitivo leve apresentaram resultados significativamente diferentes dos
indivíduos saudáveis em apenas dois tipos de sentença. Em contraste, os pacientes com
maior comprometimento só apresentaram resultados significativamente acima do nível da
chance em quatro tipos de sentença.
Tendo em vista esses resultados, Bickel et al. (2000) concluíram que a habilidade de
processar sentenças sem contar com informaçóes semânticas e usar essa informaçáo
sintática para outros fins estaria reduzida em pacientes com DTA. No entanto, nos estágios
iniciais, essa habilidade ainda estaria, até certo ponto, acessível. Já nos estágios avançados, a
habilidade de processar sentenças sem se basear em informaçóes semânticas estaria
aparentemente perdida.
Além disso, não houve diferenças significativas entre o desempenho com as
sentenças de voz ativa e o desempenho com as de voz passiva em todos os grupos. Então, a
voz verbal não influenciaria no desempenho dos indivíduos. Todavia, numa comparaçáo
do grupo dos pacientes como um todo com o grupo dos indivíduos saudáveis, observou-se
uma discrepância entre os resultados relativos aos dois tipos de sentença. Desse modo, as
autoras afirmaram que o resultado observado vai ao encontro daquele descrito por Grober

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e Bang (2005), de que o grau de impedimento cognitivo se correlacionaria ao grau de
comprometimento linguístico.
Ainda assim, Bickel et al. (2000) afirmaram que essa dificuldade dos pacientes com
maior comprometimento cognitivo poderia ser decorrente de um distúrbio no desempenho,
de modo que a competência sintática permaneceria preservada. De qualquer forma, esses
resultados estariam de acordo com a assunçáo de que as áreas corticais – que seriam
responsáveis pelo processamento sintático – estáo apenas levemente afetadas nos estágios
iniciais da doença.
Em suma, esse estudo mostrou que pacientes com DTA apresentam dificuldades em
interpretar sentenças quando esse processo depende unicamente do processamento de
informaçóes sintáticas. No que tange às hipóteses, observou-se que a complexidade da
sentença parece ter exercido pouca influência sobre o desempenho dos pacientes, haja vista
que a dificuldade se apresentou em diferentes tipos de sentenças. Por outro lado, o
comprometimento cognitivo do paciente demonstrou ter forte influência sobre os
resultados, embora a idade não tenha.
Em contraste, o segundo ponto-de-vista, de que o comprometimento sintático seria
decorrente de um acometimento da memória de trabalho, é defendido em Grossman e
White-Devine (1998). Nesse estudo, adotou-se um experimento off-line, composto por cem
sentenças. Assim como Grober e Bang (2005), os autores manipularam variáveis como a
disponibilidade de informçóes sintáticas – por meio da voz passiva ou ativa – e semânticas
– por meio de sentenças semanticamente reversíveis ou irreversíveis – e a demanda de
recursos cognitivos – por meio de sentenças de estrutura simples ou perifrástica.
O resultado de vinte e dois pacientes – com comprometimento leve ou moderado –
que se submeteram a esse experimento apontou um desempenho significativamente pior que
o dos indivíduos saudáveis em todos os âmbitos. Comparando o resultado entre os pacientes,
o desempenho na tarefa de compreensão de sentenças semanticamente reversíveis foi
significativamente pior que o desempenho com sentenças irreversíveis.
A despeito da dificuldade com essas sentenças, não houve diferenças significativas
na compreensão de sentenças na voz ativa ou passiva. Já o desempenho com sentenças
perifrásticas evidenciou que a estrutura parece ter aumentado significativamente a
compreensão, mas apenas de sentenças com verbos lexicais causativos – que são mais
comumente associados a esse tipo de estrutura. Todavia, o desempenho com verbos

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transitivos simples em sentenças perifrásticas – que configura uma estrutura bastante
incomum – foi significativamente pior que em sentenças nas vozes ativa ou passiva.
Haja vista o fato de a alternância da voz verbal parecer náo ter acarretado
alteraçóes no desempenho dos pacientes, Grossman e White-Devine (1998) defenderam a
preservaçáo do conhecimento linguístico. Essa tese seria corroborada pelo melhor
desempenho dos pacientes com algumas sentenças perifrásticas, cuja estrutura seria
sintaticamente complexa. No entanto, a estrutura perifrástica parece ter prejudicado o
desempenho dos pacientes na compreensão de sentenças com verbos transitivos.
Por isso, os autores assumem que a dificuldade de compreensão sintática seria de
natureza multifatorial, resultante da dificuldade para processar informaçóes semânticas e
da limitaçáo dos recursos cognitivos necessários para o processamento de estruturas cujo
mapeamento sintático-temático seja excepcional. Todavia, essas não seriam as únicas
dificuldades dos pacientes. Limitaçóes da atençáo seletiva e da memória de trabalho
também seriam responsáveis pela impossibilidade de coordenar processos complexos.
Portanto, os autores defenderam que o comprometimento linguístico seria decorrente de um
impedimento cognitivo não linguístico, corroborando estudos anteriores, como o de
Rochon, Waters e Caplan (1994).
Para chegar a essa conclusão, Rochon, Waters e Caplan (1994) adotaram testes de
correlaçáo figura-sentença, em que os indivíduos identificavam qual figura melhor
representava uma sentença lida e apresentada pelo examinador. Antes da aplicaçáo dos
testes, houve uma preocupaçáo em avaliar se os substantivos e verbos utilizados nos
enunciados eram familiares aos indivíduos, a fim de minimizar a interferência de dificuldades
do paciente com o processamento semântico-lexical na compreensão de sentenças. Todas as
sentenças eram semanticamente reversíveis, de modo que uma figura representava a açáo
realmente expressa pela sentença e a outra, a açáo reversa. Essas sentenças se diferiam em
termos de sua complexidade sintática e número de proposiçóes. No que tange à
complexidade sintática, consideraram-se simples as sentenças que seguiam a ordem canônica
e complexas as sentenças passivas que seguiam a ordem não canônica. No que tange ao
número de proposiçóes, consideraram-se sentenças com mais proposiçóes aquelas que
continham mais verbos (dois) e papéis temáticos associados a eles.
Embora, de um modo geral, o desempenho dos pacientes tenha sido inferior ao dos
indivíduos saudáveis, o resultado alcançado foi bom, uma vez que apresentaram oitenta e
quatro por cento (84%) de acerto. Por isso, os autores consideraram que os pacientes

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analisados possuíam problemas leves com a compreensão de sentenças. Os resultados
também demonstraram que a complexidade sintática não teria prejudicado o desempenho
dos pacientes, apenas o aumento de proposiçóes teria influenciado a compreensão sintática
das sentenças. O mau desempenho nas sentenças com mais proposiçóes foi atribuído a um
problema de processamento pós-interpretativo, que estaria relacionado a questões não
linguísticas, ou seja, à memória de trabalho.
Como se viu nesta seção, a despeito das discordâncias acerca da origem do
comprometimento linguístico na DTA, é necessário investigar de forma mais precisa os
níveis linguísticos acometidos. Os estudos apresentados focalizaram, principalmente, a voz
verbal, seguindo o percurso dos estudos com afasia de Broca. Investigações de outros
fenômenos linguísticos podem contribuir para a caracterização desse comprometimento.

4.2 Comprometimento dos níveis linguísticos

No que tange ao comprometimento dos diferentes níveis linguísticos, conforme


Altmann et al. (2001) destacam, a produção linguística na DTA costumava ser descrita como
afetada por um comprometimento semântico que impactaria o uso da classe de palavras
abertas, mantendo preservadas a classe fechada de palavras, especialmente, a morfossintaxe.
No entanto, outros pesquisadores relataram distúrbios morfossintáticos, mesmo nos estágios
mais iniciais da doença. Por isso, a partir de um estudo empírico, os autores criticaram essa
divisão modular entre palavras de classe aberta ou fechada, sugerindo que o
comprometimento da produção linguística fosse caracterizado a partir de um modelo em que
todas as palavras fossem consideradas com base em seus traços sintáticos e semânticos.
Levando isso em consideração, Martins e Novaes (2008) realizaram um estudo de
caso com um paciente com DTA e um indivíduo saudável de mesmo perfil, a fim de estudar
a expressão linguística da noçáo de tempo na DTA. Ambos foram submetidos a dois testes:
um neuropsicológico e um linguístico. Para investigar a linguagem, aplicou-se um teste de
julgamento de gramaticalidade em que todas as sentenças continham um advérbio e um
verbo que ora possuíam, ora não, uma compatibilidade de traços temporais/aspectuais entre
si. Durante esse teste, os informantes deveriam julgar cada frase apresentada como “natural”
ou “estranha”.
O teste linguístico era composto por dois experimentos: um que investigava Tempo
e outro que investigava Aspecto. No experimento que investigava Tempo, as sentenças

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apresentavam compatibilidade entre os traços semânticos aspectuais do verbo e os do
advérbio, havendo variaçáo apenas quanto aos traços temporais, como em “Antigamente
Henrique pesca sardinhas.”. Ao passo que, no experimento que investigava Aspecto, as
sentenças apresentavam compatibilidade entre os traços temporais do verbo e do advérbio,
havendo variaçáo apenas quanto aos traços aspectuais, como em “Antigamente Luiz pintou
uma geladeira.”
Tendo em vista os resultados do teste neuropsicológico, o paciente demonstrou
impedimento cognitivo leve. Com relaçáo aos resultados do teste linguístico, os
experimentos apresentaram uma variaçáo. No experimento que investigava Tempo, o
paciente aceitou ligeiramente mais sentenças que o indivíduo saudável. No experimento de
Aspecto, o paciente teve um desempenho bastante similar ao do indivíduo saudável.
Segundo os autores, o déficit linguístico do paciente poderia ser interpretado como
decorrente de um comprometimento no módulo da linguagem ou em módulos não
linguísticos. Entretanto, se o problema do paciente fosse atribuído ao módulo da
linguagem, poderia ser sugerido um comprometimento na checagem entre os traços do
advérbio e do verbo.
Também com interesse em investigar as categorias de Tempo e Aspecto na DTA,
Lessa (2010) focalizou a produção linguística - com o intuito de minimizar a carga de
memória de trabalho envolvida na atividade - e a noção de tempo - a fim de verificar a
hipótese de o comprometimento linguístico ser decorrente de um problema conceptual, em
um estudo de caso duplo. Para tanto, elaborou um experimento linguístico de produção
semiespontânea, em que os pacientes deveriam descrever cenas de vídeo, e um experimento
neuropsicológico, complementar ao que é tradicionalmente adotado para estabelecer o grau
de comprometimento cognitivo, a fim de avaliar a conceptualização de tempo. Os pacientes
investigados apresentavam comprometimento cognitivo, em grau leve e moderado. E essa
distinção de grau de comprometimento se refletiu no teste linguístico, de modo que apenas
o paciente com maior comprometimento cognitivo apresentou comprometimento da
expressão linguística de Tempo e Aspecto. No entanto, no teste complementar, sobre a
conceptualização de tempo, ambos apresentaram bons resultados.
Apesar de o estudo não ter descartado a possibilidade de o comprometimento da
expressão linguística ser decorrente do comprometimento em módulos não linguísticos,
descartou a hipótese de ser decorrente de um problema conceptual relacionado à noção de
tempo. Além disso, destacou que o paciente com maior comprometimento cognitivo

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apresentava indícios compatíveis com um possível desenvolvimento de uma afasia
semântica, tendo em vista a perturbação das relações lógico-gramaticais, sua incapacidade de
sintetizar eventos isolados simultâneos em uma unidade significativa e sua desorientação
espacial.
Sendo assim, embora sejam necessários mais estudos acerca do comprometimento
dos níveis linguísticos na DTA, pode-se afirmar que há um distúrbio linguístico que afeta
relações sintático-semânticas, mas de forma diversa daquela observada no agramatismo da
afasia de Broca. Portanto, estudos sobre a produção e compreensão linguística de pacientes
acometidos pela DTA podem contribuir para o debate teórico acerca dessas instâncias -
sintaxe e semântica - e suas relações.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os estudos empíricos acerca da linguagem apresentados até aqui permitem um


entendimento mais claro sobre a mudança de tratamento dos dados linguísticos a partir da
consolidação da revolução cognitiva do século XX. Neste artigo, focalizaram-se,
especificamente, as contribuições dos estudos com indivíduos acometidos por patologias da
linguagem, abarcando a afasia de Broca e a DTA, por se acreditar que tal recorte evidencia a
transição de uma visão empirista para uma visão racionalista, ainda que a partir de dados
empíricos. Desse modo, demonstrou-se que o olhar sobre gramáticas desviantes passou a
buscar caracterizar de forma mais precisa a faculdade da linguagem em seu estado "normal",
considerando-se a mente do indivíduo adulto saudável falante nativo de determinada língua.
Dentre as pesquisas com as mencionadas gramáticas desviantes, que podem
contribuir para esse intento, destacam-se ainda os estudos sobre a aquisição da linguagem
em crianças e sobre a aprendizagem de uma língua estrangeira. Além dos estudos com
gramáticas desviantes, não se pode deixar de mencionar a emergência de estudos fazendo
uso de métodos não invasivos de avaliaçáo cerebral. (cf. FRANÇA, 2007 para uma visão
abrangente de seu uso). Essas escolhas metodológicas representam um amadurecimento da
perspectiva internalista da linguagem, que passa a deixar de recorrer, exaustivamente, a dados
de introspecção.
Portanto, essa aproximação da Linguística à Neurociência verte na emergência de
uma nova utilização dos dados linguísticos, com o fim de colocar à prova pressupostos da
teoria linguística, o que ocasiona uma evidente transição nos métodos de pesquisa adotados.

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Assim, estabelece-se com mais vigor o importante movimento de retroalimentação entre
adequação descritiva e explicativa da teoria, para se responder às questões fundamentais de
um programa de pesquisa que busca explicar a biologia da linguagem que, conforme afirma
Chomsky (2005), apesar de ter superado alguns problemas antigos, traz à luz novos
problemas antes irreconhecíveis, que precisam ser encarados.

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Teachers and students’ challenges in English as a Second Language
creative writing classes

Carlos Eduardo de Araujo Placido1

ABSTRACT
The challenges teachers and students may face in Creative Writing in English (CWE) as a Second
Language (ESL) courses have not been extensively researched in Brazil. Thus, the main objective of
this research was to identify and investigate the types of challenges teachers and students may face in
creative writing classes. (CHAMBERLAIN, 2005; CSIKSZENTMIHAYI, 1995; JOHN-STEINER,
2010; LUBART, 2007; MALEY, 2012; POPE, 2005; RAMET, 2007). The approach of this research
was the action research. (FERRANCE, 2000). The research location was the extracurricular
Fanfictional Creative Writing in English as a Second Language at a public university in São Paulo,
Brazil. The sample of this study consisted of five Languages and Literature undergraduate students,
plus their respective teacher. The research methods used were the questionnaire (BRADBURN,
2004), classroom transcriptions (MONDADA, 2007), unstructured interviews (PATTON, 2002) and
oral feedback sessions. (TARAS, 2013). The results indicated that CWE may help teachers and
students develop their creative and linguistic skills. In addition, the data investigated displayed that
the students voice should be considered more frequently. Teachers should be more flexible and
attentive to their students’ objectives and idiosyncrasies.

Keywords: ESL Teachers and students. Creative Writing in English. Challenges.

Os desafios dos professores e alunos de escrita criativa com inglês como segunda
língua

RESUMO
Os desafios que professores e alunos podem enfrentar nos cursos de Escrita Criativa em Inglês (ECI)
não vêm sendo amplamente pesquisados no Brasil. Sendo assim, o principal objetivo desta pesquisa
foi o de identificar e investigar os diferentes desafios os quais tanto os professores quanto os alunos
podem enfrentar nas aulas de Escrita Criativa. (CHAMBERLAIN, 2005; CSIKSZENTMIHAYI,
1995; JOHN-STEINER, 2010; LUBART, 2007; MALEY, 2012; POPE, 2005; RAMET, 2007). Com
inglês como língua estrangeira (ILE). Esta pesquisa foi embasada na pesquisa-ação (FERRANCE,
2000). A coleta de dados ocorreu no curso extracurricular Fanfictional Creative Writing in English em
uma universidade pública em São Paulo, Brasil. Os sujeitos de pesquisa deste estudo foram cinco
estudantes da graduação de Letras, juntamente com seu professor. As ferramentas de pesquisa
utilizadas foram: um questionário preliminar (BRADBURN, 2004), transcrições de sala de aula
(MONDADA, 2007), entrevistas não-estruturadas (PATTON, 2002) e sessões orais de feedback.
(TARAS, 2013). Os resultados indicaram que a ECI pode ajudar os professores e alunos a
desenvolver suas habilidades criativas e linguísticas. Além disso, os dados investigados mostraram
que a voz dos alunos deve ser considerada com mais frequência nas aulas de língua estrangeira. Por

1Doutorando em estudos linguísticos e literários em inglês pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em
Estudos Literários pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Bacharel e Licenciado em Português e
Inglês pela Universidade de São Paulo (USP). Bolsista Capes. E-mail: ceplacido@gmail.com.
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sua vez, os professores devem ser mais flexíveis e atentos aos objetivos e idiossincrasias de seus
alunos.

Palavras-chave: Professores e alunos de ILE. Escrita Criativa em inglês. Desafios.

1 INTRODUCTION

The studies about creativity have increased since 2000 in Brazil. Private companies
as well as a plethora of national Universities have highlighted the importance of its
development in todays’ world. The reinforcement of this development is also due to its
legalization by the Brazilian government as a fundamental cognitive skill in 1996. Although
creativity has been apprehended as an important skill since then, there is still little research
about the challenges undergraduate students may face in creative writing classes at the
university.
For ESL teachers to help their respective students develop their creative skills, they
should be properly prepared to do so while they are still learning to teach. This fact has been
proved by many international and national studies that demonstrate the importance of
developing and implementing tertiary programs for teachers to evolve adequately as
professionals of education. (CHAMBERLAIN, 2005; CSIKSZENTMIHAYI, 1995; JOHN-
STEINER, 2010; LUBART, 2007; MALEY, 2012; POPE, 2005; RAMET, 2007).
Hence, my main motivation for carrying out this research was the conspicuous lack
of formal teaching and learning of creativity at Brazilian language and literature university
courses. Many of them do not even provide their undergraduate students with specific classes
to develop creativity such as creative writing and acting classes. The goal of this study was to
identify the challenges teachers and students may face in creative writing classes in English
as a Second Language.
The primary beneficiaries of this research would probably be the Language and
Literature ESL teachers, creative writing teachers, public and private school coordinators,
and even already in-service teachers. They may directly benefit from this research due to the
fact that its findings can display their teaching and learning practices as reflective workers of
education. Consequently, they may improve their employability and future classes of English
as a Second Language.

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2 LITERATURE REVIEW

The current literature reviewed has indicated that there is little research about the
challenges English as a Second Language (ESL) teachers and students may face in creative
writing classes (CHAMBERLAIN, 2005; CSIKSZENTMIHAYI, 1995; JOHN-STEINER,
2010; LUBART, 2007; MALEY, 2012; POPE, 2005; RAMET, 2007) at the university. One
of the challenges is related to the conceptualization of creative writing.
Creative writing may be quite difficult to conceptualize as it is with any type of artistic
activity. However, creative writing today is not only art, it also entails more objective texts
such as journalistic and academic ones. Both Csikszentmihayi, (1995) and Chamberlain
(2005) believe that the adjective creative has been placed before the noun writing in many
writing courses at the universities worldwide to reassure students that they will not only learn
how to write, they will really write something.
For Chamberlain (2005, p. 47), this would explain why “[…] there are many more creative
writing classes than creative painting classes, creative acting classes, creative sculpturing classes, and so on”.
Furthermore, Pope (2005) attests that the adjective creative may also encompass a set of other
adjectives as complex as creative such as imaginative, original, expressive and inspirational.
These adjectives have had profound influence on how Language and Literature
undergraduate students may understand the process of writing fictionally to date. Besides,
this may also have stirred the deep complexification of the concept of creativity which has
changed since Ancient Greece. (POPE, 2005; LUBART, 2007). Although it is quite difficult
to conceptualize creative writing, some courageous scholars have tried with reasonable
success.
Adèle Ramet is one of these scholars. She (2007, p. 11) defines creative writing as
“[…] having the power to create an imaginative, original literary production or composition”. Ramet (2007)
even adds that it can be applied to a very broad spectrum of writing genres. As a matter of
fact, creative writing has been constantly apprehended as literary work or literary techniques
to developing literary work.
Lubart (2007, p. 34) calls creative writing “[…] the art of making things up fictionally”. In
the wake of Csikszentmihayi, (1995) and Chamberlain (2005), Lubart (2007) also believes
that the adjective creative placed before writing is to stress the importance of the act of writing,
because many creative writing teachers do not motivate their students to compose indeed
physical texts.

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All these authors have highlighted the complexity around the concept of creativity as
well as the many possible concepts creative writing may display, depending on which
approach we decide to take. They have also focused on the adjectivization of the concept of
creativity and stressed the importance of using it before the noun writing. Hence, it is still
important to apply the adjective creative before writing to reinforce the act of writing in creative
writing classes, which are sometimes subsided by their teachers.
In addition, Maley (2012, p. 26) attests in his studies that “[…] creativity is widely believed
to be a ‘good thing’, enriching the quality of life and learning”. The focus of his studies was on the
development of undergraduate students’ ESL creative writing at English Universities. One
of his main findings indicated that through the teaching of creative writing, students can
better understand textual genres and more properly organize their own texts. This may occur
because “[…] creativity is widely believed to be about letting the imagination loose in an orgy of totally free
self-expression”. (MALEY, 2012, p. 27).
Moreover, John-Steiner (2010)’s studies indicate that this enriching positiveness and
self-expression freedom may be recognized as a type of setback by the students. Based on
the Vygotskian sociocultural theory, the author states that “[…] creativity depends on development,
and development depends on creativity”. (JOHN-STEINER, 2010, p. 63).
If a student does not have an adequate environment to develop their creative skills,
the development of their higher mental functions may be limited and improper to deal with
today’s world. For her, if students do not find a receptive environment to develop their
creative writing, they may become introspect and unwilling to participate in the course.
Although Maley (2012) and John-Steiner (2010) have different perspectives about
creativity and creative writing classes, they both agree on the importance of teaching and
developing creativity in creative writing classes. For them, creative writing teachers should
develop their students’ creativity while learning a second language. And this may effectively
be accomplished through motivating the students to really write fictional and non-fictional
texts. This approach to teach ESL and arts may even boost the students’ artistic flair making
them more enthusiastic about learning the target language.

3 THE CONTEXT OF THIS RESEARCH

The research data collection took place in the second semester of 2016, at the Faculty
of Philosophy, Language and Literature, and Human Sciences (FFLCH), via the Department

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of Modern Languages (DLM), located in the University of São Paulo (USP), São Paulo,
Brazil. I, the teacher-researcher, collected the data from the extracurricular course entitled
Fanfictional Creative Writing in English (Escrita Criativa Fanficcional em inglês, in Portuguese).
This course was directly based on Vygotskian sociocultural theory. By and large, it
entailed a total of 30 hours, 10 presential classes of 3 hours each and, additionally, 2 formal
feedback sessions. In order to enroll in the course, all the students should present a TOEFL
(Test Of English as a Foreign Language) ibt score of at least 500 and present a fanfiction of
their own.

4 RESEARCH METHODOLOGY

This study was primarily qualitative in nature, and based on the action research
principles. For Ferrance (2000), action research is a type of research that is authentic and
significant to the teacher-researcher. This occurs because one of its advantage is that the
teacher plays not only the teacher role, but also the researcher in the classroom.
Thus, to achieve that, they try to “[…] pick up threads suggested in academic circles, and
weave them in their own classroom”. (FERRANCE, 2000, p. 13). Another advantage of action
research is that it opportunizes the teachers to be responsible for their own teaching,
changing it whenever and wherever possible. Furthermore, their subjects are motivated to
participate in the researching process which makes it more interactive.

5 THE PARTICIPANTS AND RESEARCH TOOLS

The subjects of this research were all female undergraduate students from Languages
and Literature courses of the University of São Paulo (USP), Brazil. They all participated in
the extracurricular course Fanfictional Creative Writing in English. For this course, there
were 12 enrolments of undergraduate students from different language and literature majors
in the Faculty of Philosophy, Languages and Literature, and Human Sciences (FFLCH). For
this study, the teacher-researcher only considered 5 out of the total of enrolled undergraduate
students. This occurred because 5 abandoned the course at the beginning and the other 2
did not complete all the required tasks.
The research tools used were a preliminary questionnaire (BRADBURN, 2004),
classroom transcriptions (MONDADA, 2007), unstructured interviews (PATTON, 2002)

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and oral feedback sessions. (TARAS, 2013). The preliminary questionnaire consisted of 27
questions to identify the participating students’ writing profile in English. It was also used to
apprehend their personal motivations to take the course.
The classroom transcriptions were written versions of everything they produced
during the course, ranging from class oral participation to parallel commentaries. The
unstructured interviews were applied, because they allow the interviewer to reformulate the
questions based on his/her interviewee’s responses. The oral feedback was used not only to
collect more data, but also to show students’ their own fanfictional creative writing
development. (VYGOTSKY, 2007).

5.1 Teachers and students’ challenges in English as a second language creative


writing classes

Throughout the Fanfictional Creative Writing in English course, the teacher and his
participating students faced many challenges outside, but specially inside the classroom.
Based on the preliminary questionnaire (BRADBURN, 2004), 4 out of 5 of the students
interviewed conceptualized creative writing as a very personal experience and a chance of
freedom as well as self-expression. I truly believe that one of the main functions of creative
writing classes is to have students’ voices heard, whatever they may be.
Both students and teacher-researcher’s opinions about creative writing exemplify
Maley (2012)’s observations about the mechanics of creative writing classes. Maley (2012, p.
112) highlights that “the kind of writing we ask students to do (and the way we ask them to do it) will
depend, as most other things do, on their age, level, learning styles, and interests”.
Nevertheless, the students and the teacher-researcher’s actions inside the classroom
sometimes did not match with their preliminary opinions. As a result, this caused several
conflicts, obstacles, modifications as well as reassessments about the Vygotskian
sociocultural theory. These have also influenced substantially the participating students’
writing processes. The results of this research are indicated in the following section.

5.2 Limited knowledge on literary genres

There are various branches or forms of literature which is called genre. Although
there are some repetitive characteristics that we can use to identify a specific type of genre,
Bakhtin (2000) attests that each reproduction of a text by a subject is a new performance,

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i.e., a brand-new textual production, a new experience. For this reason, for Bakhtin (2000),
reiteration of a textual genre is theoretically inconceivable.
Even though teachers may establish a very specific literary genre to be taught in
creative writing classes, the genre chosen is likely to suffer distinct types of mutations during
them. And this is what occurred in this course. The teacher-researcher failed to take into
consideration the textual genre mutability. I mistakenly believed that my students should
follow ipsis litteris my preliminary instructions.
In relation to other more objective writing classes such as academic or persuasive
writing, students’ text may be closer to a certain chosen textual model. However, fictional
creative writing classes tend to be the students’ opportunity to experiment a certain textual
genre. This did not happen very often in this course, which limited substantially the student’s
creativity as well as motivation to do the classroom tasks.
A possible explanation for my behavior may also be related to my own limited
knowledge of textual genres and their respective recurrent theories. Swales (1990, p. 24)
states that a “[…] genre is a type of writing which members of a discourse community would instantly
recognize for what it was.” This statement implies that a person to be able to classify a certain
text properly needs to understand what his/her discourse community perceive as a textual
genre. If he/she fails to achieve that, he/she probably has not comprehend clearly his/her
community yet.

6 OBJECTIVES AND IDIOSYNCRASIES

Another relevant aspect of creative writing classes is about students’ objectives and
idiosyncrasies. This research indicated that each participating student displayed unique
objectives for taking the Fanfictional Creative Writing in English course. Some of them, written
in the preliminary questionnaire (BRADBURN, 2004), were: improving writing skills,
practicing the four linguistic abilities (speaking, listening, reading and writing) and
understanding better the fanfictional literary genre.
Wright (2014) had similar findings in his book Creativity in the Classroom. He
demonstrated that different individuals may have different objectives to produce a text.
Furthermore, as fictional creative writing classes should motivate students to play with texts
(Ramet, 2007) due to their sense (VYGOTSKY, 2007) of writing freedom. This may have a
massive impact upon their own writing process. (KROLL, 2000). Accordingly, the research

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results showed that students’ idiosyncrasies and their sense of freedom in creative classes
impacted students’ writing productions.
In relation to the Fanfictional Creative Writing in English, the students freely digressed
from my chosen literary genre (short stories). Instead, most of them (4 out of 5) opted for
other literary genres (poems and flash stories). Along with it, they politely refused my main
objective (writing a fanfiction about superheroes). Rather, they chose their own inspirational
writing topics (songs, mangas, soap operas etc.).
According to Wright (2004), there is not only one ‘right’ literary genre that teachers
should recommend in creative writing classes. Teachers should suggest different genres and
then encourage their students to experiment as well as opt for one that is personally effective
for themselves. (WRIGHT, 2014).

6.1 Lack of motivation

In the classroom transcriptions (MONDADA, 2007), all the participating students


stated that a motivated student may develop him/herself faster than those unmotivated.
Student A summarizes effectively this point of view: “The more you motivate the students
the more students are motivated and get ready for creative writing so it helps the teachers to
teach creative writing more adequately”.
In the same vein, they all also agreed that motivation plays a significant role in
learning. Most of their statements may be summarized by student C’s following answer: “We
need to be motivated to write creatively, because this is one of the most personal types of
writing there is. I believe we can learn a lot here”.
However, the teacher-researcher did not know how to motivate his students. In fact,
by imposing the textual genre (short story) I wanted to work in class, my students felt their
voices silenced as student B’s spontaneous speech implies: “I think we could choose other
texts. What do you think? I believe we can have more chances if we do so”.
The teacher-researcher attempts to express concern: “I think we should”, but right
after it, I reinforces my main objective: “You can choose based on what I indicated in the
bibliography”. Student B then replies: “Yeah, but you have just given to us one option, short
stories”. This short dialogue between the teacher and his student exhibits the teacher’s
unwillingness to negotiate, which contrasts directly with his own discourse of promoting a

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safe environment for students to develop their own creative texts. (MALEY, 2012; RAMET,
2007).

6.2 Non-proficiency in English

The Common European Framework of Reference (CEFR) for languages was created
by the Council of Europe to define standards for language learning, teaching and assessment
related to all modern European languages. In addition, they also indicate what language
learners should learn to use their target language properly. This also involves the knowledge
and abilities they need to develop to use it adequately. According to CEFR, a person is
considered able to use a language effectively when he or she reaches C1 or C2 (proficient
user).
For the Fanfictional Creative Writing in English course, I required at least level B2.
Language proficiency is usually understood as a person’s ability to speak or perform in a
second language. (BAKER, 2006). Students’ incapacity to perform suitably in their target
language may cause limitations of many types and even embarrassment. (LITTLE, 2006). In
relation to the Fanfictional Creative Writing in English course, all the participating students
displayed basic difficulties in writing their fanfictions.
In the first oral feedback session (TARAS, 2013), 3 out of 5 claimed that their
difficulties were due to lack of proficiency in English. In general, they did not know how to
deal with nonroutine information (B1 level), express themselves in familiar contexts (A2
level) or exchange information in a simple way (A1 level).
However, the lack of proficiency was not only about English. In fact, none of
participating students could conceptualize properly the genre they claimed they have written
for at least 2 years in the preliminary questionnaire (Bradburn, 2004), classroom
transcriptions (MONDADA, 2007), unstructured interviews (PATTON, 2002) and first oral
feedback session. (TARAS, 2013).
In the preliminary questionnaire (BRADBURN, 2004), they all stated that fanfictions
are stories made by fans. This indicated that their beliefs (MOON, 2000) about this literary
genre are virtually based on its etymological construction (fan + fiction). This hypothesis was
reinforced when I asked them to differentiate fanfiction from fanzine. As a result, they did
not know how to do it. They all expressed surprise which student C summarized accurately
in words: “[…] I had never heard of fanzines in her life”.

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6.3 Overemphasis on lexicogrammatical errors

One of the most current questions made by the participating students during the
Fanfictional Creative Writing in English course were about lexicogrammatical errors. By and large,
most of the students’ spontaneous questions, recorded in the classroom transcriptions
(MONDADA, 2007), were to clarify their doubts about word order, collocations, active
verbs and inversion in English. Interestingly to notice, in the unstructured interviews
(PATTON, 2002) and first oral feedback session (TARAS, 2013), they all overemphasized
the importance of proper lexicogrammatical knowledge to compose better fanfictions.
The students’ lexicogrammatical overemphasis behavior toward the creative writing
classes may be explained by 3 factors: 1) 3 out of 5 of them were not proficient in English,
2) all of them had never participated in a creative writing class before and 3) most of the
teacher-researcher’s oral feedback was on the students’ lexicogrammatical errors.
They indeed produced several types of errors (HARMER, 2010) such as catachresis
(unfitting use of a word for another), hypercorrected (made due to low-level teaching
classroom resources or the teachers themselves) and overgeneralization (inadequate use of
L1 lexicogrammatical rules in L2). Nevertheless, some of their errors were overcorrections.
This attitude toward the target language may be very harmful (MAICUSI, 2000),
because one overemphasized pattern has great chances of being reproduced intermittently
by students as well as teachers in inappropriate contexts. Furthermore, Zhu (2010) adds that
the learning of a foreign language may be completely discouraged by the teacher who
overemphasizes lexicogrammatical errors, raising resultantly his/her students’ level of
anxiety.

6.4 Writing as a product

One of the first approaches to teaching writing in ESL for undergraduate students
was the writing as a product. Its basic role was to help these students to elaborate a textual
composition by correcting superficial linguistic errors. The writing as a product teacher’s
emphasis was on motivating their students to use the standard English and eliminate as many
errors as possible.

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According to Hairston (1982), this approach lost its influence rapidly, being replaced
by the writing as a process approach. Thus, the writer’s emphasis changed to content and
organization. Its basic role was more about opportunizing situations where the students
could understand more substantially and experiment more intensely the process of writing
than producing a finished piece of writing. (BROWN, 2001).
In relation to the course Fanfictional Creative Writing in English, one of the main teacher-
researcher’s findings was that all the participating students apprehended writing as a product.
Interestingly to notice, they all claimed that they understood writing as a process in the
preliminary questionnaire (BRADBURN, 2004) and in the first oral feedback session.
(TARAS, 2013).
However, they could not identify the 5 basic steps of writing as a process (prewriting,
writing, revision, editing and publish). Additionally, they all refused to rewrite their own texts,
“re-handing” me the same fanfictions from the beginning of the course as their first
fanfictional draft. They should produce at least 2 drafts throughout the course.
Due to these factors, I changed the classroom dynamics and required from them one
pre-writing draft, an edited draft and a final version of their fanfictional texts. Flower and
Hayes (1981) stress the importance of modifying writing teaching goals. This modification
may have been beneficial to the students as insofar they could compare their writing with
previous ones and others.

7 CONCLUSION

The main goal of this study was to identify the challenges teachers and students may
face in English as a Second Language creative writing classes. The participants were all
Languages and Literature undergraduate students from a public university in São Paulo,
Brazil. The results displayed significantly that both teacher and students had several
difficulties.
The students were more interested in developing their own writing than following
their teacher-researcher’s course instructions. This motivated the reorganization of the
course while being implemented. Moreover, most of the students’ responses toward these
creative writing classes indicated that the teacher-researcher should give them more
opportunities to experiment different literary genres such as poems and flash stories.

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Additionally, other substantial challenges were identified. Although all the students
claimed they had B1 level, they presented basic difficulties in writing fanfictional texts in
English. They all overemphasized lexicogrammatical errors and did not consider the
structure of the chosen literary genre.
Besides, they all exhibited a writing as a product approach, contradicting their writing
as a process indicated in the preliminary questionnaire (BRADBURN, 2004) and in the first
oral feedback session. (TARAS, 2013). This may have occurred, due to their lack of
experience, and even motivation, in creative writing classes. Creative writing can be a very
useful tool to help students develop their writing in English as well as their pedagogical skills.
However, I suggest that the creative writing teachers should be more flexible and attentive
toward their students.

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Língua Portuguesa e estratégias de leitura: processos inferenciais na obra
de Fernando Sabino

Ricardo Santos David1

RESUMO
Análise de inferências em textos com o objetivo de demonstrar que todo sentido, mesmo o literal,
inclui informações implícitas em diferentes graus de explicitude. O ato de compreensão desses
enunciados envolve vários processos inferenciais, o que significa dizer que o leitor crítico deve estar
atento não só às questões de ordem lógica como também às questões discursivas e ou retórico-
argumentativas que ocorrem nos diversos gêneros de textos e que são fundamentais para a construção
do sentido de um texto.

Palavras-chave: Inferência. Operações implícitas. Interpretação de texto.

Portuguese Language and and reading strategies: inferential processes in the work of
Fernando Sabino

ABSTRACT
Analysis of inferences in texts, with the objective of demonstrating that the sense, even the literal
one, is implicit in the discourse in different degrees. The comprehension of these texts indicates
inferencial operations, what it means that the reader must attent to the logical questions and to the
discursive or argumentative ones in different kinds of texts and that they are important to the
construction of the sense of a text.

Keywords: Inferences. Implicit operations. Text interpretation.

1 INTRODUÇÃO

Inferência é a conclusão de um processo cognitivo por meio do qual uma assertiva é


feita a respeito de algo desconhecido, tendo como base uma observação. No dia a dia, é
possível, por exemplo, inferir a riqueza de uma pessoa pela observação do seu modo de vida,
a gravidade de um acidente de trânsito pelo estado dos veículos envolvidos e o sabor de um
alimento pelo seu aroma. A inferência revela-se como uma conclusão de um raciocínio, uma
expectativa, fundamentada em um indício, uma circunstância ou uma pista. Assim,
fundamentando-se em uma observação ou em uma proposição são estabelecidas algumas
relações (evidentes ou prováveis) e chega-se a uma conclusão decorrente do que se captou
ou julgou.

1Pós-Doutorado em Educação: Formação de Professores e Psicologia Educacional: FCU - Florida Christian


University / EUA. Mestrado e Doutorado e Educação: Formação de Professores e Novas Tecnologias -
Uniatlántico - Espanha. Especialista em Docência do Ensino Superior, semiótica e orientação educacional.
Coordenador e Pesquisador do Centro de Estudos da Lingua(gem) pela Uniatlántico - América Latina e
Espanha. E-mail: ricardosdavid@hotmail.com.

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A concepção de que a inferência representa uma ligação entre duas ideias é assumida
desde a Antiguidade. Esse termo vem do latim medieval “inferre” e designa o fato de duas
proposições se interligarem, sendo que, nessa conexão, a antecedente implica a
consequente. Inferir é uma atividade associativa que pressupõe uma ordem, uma sequência
entre as proposições.
Na leitura de um texto, o resultado da compreensão depende da qualidade
das inferências geradas. Os textos possuem informações explícitas e implícitas; existem
sempre lacunas a serem preenchidas.
O leitor infere ao associar as informações explícitas aos seus conhecimentos prévios
e, a partir daí, gera sentido para o que está, de algum modo, informado pelo texto ou através
dele. A informação fornecida direta ou indiretamente é uma pista que ativa uma operação de
construção de sentido. Portanto, ao contrário do que muitos acreditam, a inferência não está
no texto, mas na leitura, e vai sendo construída à medida que leitores vão interagindo com a
escrita. Falar em leitura remete à questão da produção de sentidos constituídos no contexto
de interação recíproca entre autor e leitor via texto, os quais se expressam diferentemente,
de acordo com a subjetividade do leitor: seus conhecimentos, suas experiências e seus
valores. Nesse caso, pode-se dizer que o texto se constrói a cada leitura, não trazendo em si
um sentido preestabelecido pelo seu autor, mas uma demarcação para os sentidos possíveis.
Na produção de sentidos, o leitor desempenha um papel ativo, sendo as inferências
um processo cognitivo relevante para esse tipo de atividade. Isto ocorre porque elas
possibilitam a construção de novos conhecimentos a partir de dados previamente existentes
na memória do interlocutor, os quais são ativados e relacionados às informações veiculadas
pelo texto. Esse processo favorece a mudança e a transformação do leitor, que, por sua vez,
modifica o texto. O presente artigo pretende fazer uma reflexão teórica sobre o papel da
leitura. O que será, não obstante, que garante a organização desses sentidos por parte do
leitor? Que processo cognitivo permite ao leitor atribuir coerência ao texto, imprimindo nele
a sua interpretação? O processo inferencial! É este processo que vai permitir e garantir a
organização dos sentidos elaborados pelo indivíduo na sua relação com o texto. É a partir
dele que o estabelecimento da relação entre as partes do texto e entre estas e o contexto
torna-se possível, fazendo dele uma unidade aberta de sentido. Acredita-se que, além de
favorecer a organização das relações de significado dentro do texto, o processo inferencial
permite destacar a malha ou teia de significados que o leitor é capaz de estabelecer dentro do
horizonte de possibilidades que é o texto.

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SEDA - Revista de Letras da Rural/RJ. Seropédica/RJ, v. 2, n. 5, abr./ago., 2017, p. 85-100.
2 CONCEITO DE INFERÊNCIA
Em 1939, Hayakawa propunha a seguinte definição de inferência: “uma asserção sobre
o desconhecido, feita na base do conhecimento”. McLeod (1977, p. 6) avança e especifica a
noção de Hayakawa, descrevendo inferência como “uma informação cognitivamente gerada
com base em informações explícitas, linguísticas ou não linguísticas, desde que em um
contexto de discurso escrito contínuo, e que não tenha sido previamente estabelecido”.
Bridge (1977, p. 11) define inferência “como uma informação semântica não
explicitamente estabelecida no texto, mas gerada pelo leitor durante o processo inferencial
de especificação de proposições”. Frederiksen (1977, p. 7) combina muitos dos elementos
de cada uma dessas definições. Para ele,

Inferência ocorre sempre que uma pessoa opera uma informação semântica, isto
é, conceitos, estruturas proposicionais ou componentes de proposições, para
gerar uma nova informação semântica, isto é, novos conceitos de estrutura
proposicionais. Qualquer conhecimento semântico que é gerado desse modo é
inferido. (FREDERIKSEN, 1977, p. 7).

Em todos esses conceitos, pode-se observar um ponto em comum: as inferências


ocorrem na mente do leitor. Como afirma Flood (1981, p. 55): “o texto existe, o leitor infere”.
Uma primeira constatação é a que a inferência não está no texto. É uma operação que os
leitores desenvolvem enquanto estão lendo o texto ou após terem completado a sua leitura.
O texto serve como um estímulo para geração de inferências. Para ilustrar, Rickheit, Shnotz
& Strohner (1985) apresentam a seguinte fórmula:

Inferência = A B

Em que A é a informação antiga, B é a informação nova, C o contexto e a seta é o processo


de geração de inferência. O processo é distribuído em três partes:

(1) A representação psicológica das informações A e B;


(2) A operação de inferência de B extraída de A;
(3) A noção de contexto C e seu efeito sobre a inferência.

A inferência anterior (A) apresenta um conteúdo semântico já conhecido ou que está


sendo conhecido pelo leitor, enquanto a informação nova (B) é extraída a partir de (A) e sob

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a influência de um contexto (C). Dessa forma, A e B são representações psicológicas
individuais, mas mantêm relações passíveis de identificação.
Morrow (1990) entende inferência como o modo pelo qual os leitores, para
compreender uma narrativa, ativam e usam informações nela implícitas e não mencionadas.
Mckoon e Ratcliff (1992) definem inferência como qualquer informação não explícita em um
texto.
Dada à abrangência dessas definições, optou-se pela elaboração de um conceito que
sintetiza aspectos relevantes apontados pelos teóricos e necessários para que sua
manifestação seja identificada. O conceito de inferência aqui concebido é: “Inferência é um
processo cognitivo que gera uma informação semântica nova, a partir de uma informação
semântica anterior, em um determinado contexto”.
Inferência é, pois, uma operação mental em que o leitor constrói novas proposições a
partir de outras já dadas. Não ocorre apenas quando o leitor estabelece elos lexicais, organiza
redes conceituais no interior do texto, mas também quando o leitor busca extratexto,
informações e conhecimentos adquiridos pela experiência de vida, com os quais preenche os
“vazios” textuais. O leitor traz para o texto um universo individual que interfere na sua
leitura, uma vez que extrai inferências determinadas por contextos psicológico, social,
cultural, situacional, dentre outros.
Várias perguntas podem ser levantas a respeito do processo de inferir: Como as
inferências são geradas? Qual a atuação da memória durante o processo de inferir? Como as
inferências são mentalmente representadas? Quando uma inferência é produzida? Quais os
tipos de inferências existentes? Que influências contextuais agem sobre o processo? Em que
grau as inferências dependem do contexto?

3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: a geração de inferências

Uma infinidade de pesquisas sobre a geração de inferências tem-se desenvolvido sob


as perspectivas da Psicologia, da Semântica, da Inteligência Artificial, da Linguística e da
Cognição.
No campo da Psicologia Desenvolvimentista, têm-se focalizado as relações entre a
inferência e os aspectos temporais, espaciais, causais e lógicos. No campo da Semântica, o
estudo da geração de inferências tem sido um assunto central. Jackendoff (1975, p. 29), por
exemplo, propôs um sistema constituído de princípios organizacionais disponíveis ao usuário

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da língua, relacionados à sua habilidade de abstração “ao compreender novos modos de
interpretação e ao compreender novos modos de interpretação e ao ser capaz de generalizar
regras de inferência a um sistema de relações”.
Há estudos sobre inferência dentro dos limites da sentença (CLARK, 1975) e sobre
inferência conversacional em uma Teoria da Estrutura do Ato da Fala (GRICE, 1971).
Pesquisadores da Inteligência Artificial preocupam-se em construir modelos de
processos envolvidos na compreensão, conectados ao discurso e à geração de Inferências.
Schank & Abelson (1975), por exemplo, criaram a possibilidade de reconhecimento
inferencial através de perguntas e respostas. Teóricos da Inteligência Artificial sustentam que
a geração de inferências é um fenômeno que ocorre simultânea e sequencialmente durante o
processo inferencial dos textos. Vários modelos de processo inferencial têm sido por eles
testados.
Linguistas cognitivos tomam uma de duas posições quanto à compreensão de
sentenças e o processo de inferência: ou sugerem que o ouvinte extrai da estrutura profunda
relações do input da sentença, que se armazenam na memória por meio de traços binários,
ou sugerem que o ouvinte constrói ativamente uma representação interna para as sentenças.
Os que tomam a primeira posição são chamados de Teóricos da Linguística Objeto; os que
adotam a segunda postura são chamados Teóricos da Assimilação.
Entre os primeiros estudiosos que desenvolveram pesquisas sobre a geração de
inferências, destacam-se Bartett (1932), Kintsch (1974) e Bridge (1977). Bartlett explicou a
inferência do discurso em uma Teoria Construtiva de Esquema. Recentemente, noções
similares expressam que esquemas operam nos níveis da palavra/conceito, da proposição,
do trecho textual, e que os leitores constroem significado a partir do texto.

3.1 Análise inferencial

Partindo-se da hipótese de que o contexto sociocultural do indivíduo atuaria como um


fator condicionante da variedade de interpretações de texto, foi aplicado o teste “pausa
protocolada previamente marcada no texto”. Submeteram-se ao teste alunos representativos
da classe A e B. O texto “Piscina”, de Fernando Sabino, foi dividido em dez pausas. Após
cada pausa, os alunos responderam, oralmente ou por escrito, às perguntas feitas pelo
pesquisador.

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A cada intervalo de texto, segue-se um conjunto de perguntas. Recapitulando, os três
tipos de perguntas são: as objetivas, as inferenciais e as avaliativas. A entrevista foi apenas
parcialmente estruturada, pois, à medida que o aluno inferia, perguntas não previstas eram
elaboradas.
Uma resposta inferencial, muitas vezes, exige uma nova pergunta além das previamente
estabelecidas. Por isso, a série de perguntas sobre o texto serviu apenas de roteiro ao
pesquisador.
Veja-se a seguir a estrutura do teste aplicado.

TESTE
1º parte:
O título: “Piscina”

Pergunta objetiva:
- O que é uma piscina?

Perguntas inferenciais:
- Você já nadou em uma piscina? Onde?
- Você é sócio de algum clube? Você tem piscina em sua casa?
- Onde você já viu uma piscina?
- Sobre o que o texto vai falar? Invente uma possível história para esse título.

Pergunta avaliativa:
- Você gosta de nadar?

2º Parte:
O autor apresenta as circunstâncias:
“Era uma esplêndida residência, na Lagoa Rodrigo de Freitas, cercada de jardins e tendo ao
lado uma bela piscina”.

Perguntas objetivas:
- Onde se situava a residência?
- Como era a residência?
- E o que havia do lado de fora da residência?

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Perguntas inferenciais:

- Onde fica a Lagoa Rodrigo de Freitas?


- Como você imagina que seja a região onde está a residência?
- Como é uma esplêndida residência? Como são as pessoas que nela moram?
- Como é vizinhança?
- Invente uma continuação para história.

3º Parte:
“Pena que a favela, com seus barracos grotescos se alastrando pela encosta do morro,
comprometessem tanto a paisagem”.

Perguntas objetivas:
- O que havia perto da residência?
- O que, na opinião do autor, comprometia a paisagem?

Perguntas inferenciais:
- Como são “barracos grotescos”? Por que eles “se alastravam” pela encosta do morro?
- Por que é “pena” existir uma favela por perto?
- Descreva a Favela. Como você acha que devem ser as pessoas que moram na favela?

Perguntas avaliativas:
- Você concorda que uma favela compromete a paisagem? Por quê?

4º Parte:
Exposição de circunstâncias:
Diariamente desfilavam diante do portão aquelas mulheres silenciosas e magras, lata d’água
na cabeça. De vez em quando surgia sobre a grade a carinha de uma criança, olhos grandes
e atentos, espionando o jardim. Outras vezes eram as próprias mulheres que se detinham e
ficavam olhando

Perguntas objetivas:
- O que acontecia todos os dias?
- Quem são “aquelas mulheres”? Como elas eram? O que tinham sobre a cabeça?
- Quem dava uma espiada no jardim? Quem se detinha e ficava olhando.

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Perguntas inferenciais:
- Por que as mulheres e as crianças ficavam olhando em direção a casa?
- O que elas pensavam?
- Crie uma continuação para história.

5º Parte:
“Naquela manhã de sábado ele tomava seu gim tônico no terraço, e a mulher um banho de
sol, estirada de maiô à beira da piscina, quando perceberam que alguém os observava pelo
portão entreaberto”.

Pergunta objetiva:
- O que aconteceu naquela manhã de sábado?

Perguntas inferenciais:

- Naquela manhã de sábado quem tomava gim tônico no terraço?


- Quem era ele?
- Como estava a mulher?
- Quem os observava pelo portão entreaberto? Quem você acha que era? O que queria? Para
que estava ali?

6º Parte:
Complicação = conflito entre a protagonista e a antagonista.
“Era um ser encardido, cujos molambos em forma de saia não bastavam para defini-la como
mulher. Segurava uma lata na mão, e estava parada, à espreita, silenciosa como um bicho.
Por um instante as duas mulheres se olharam separadas pela piscina”.

Perguntas objetivas:
- Quem os observava pelo portão?
- Como ela estava vestida?
- O que ela parecia?

Perguntas inferenciais:

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- As duas mulheres se olharam separadas pela piscina. Evidencie as diferenças entre a dona
da casa e a mulher da favela quanto:
 À habitação
 Ao vestuário
 À postura física
 À ocupação na manhã de sábado
- O que vai acontecer agora?

7º Parte:
Início do clímax
“De súbito pareceu à dona da casa que a estranha criatura se esgueirava, portão adentro, sem
tirar os olhos dela. Ergueu-se um pouco, apoiando-se no cotovelo, e viu com terror que ela
se aproximava lentamente”:

Perguntas objetivas:
- A quem o autor chama de “estranha criatura”?
- O que a mulher da favela fez?
- Qual a reação da dona de casa?

Perguntas inferenciais:
- Por que a mulher dona da casa sentiu terror com a aproximação da outra mulher?
- O que a dona da casa pensou?
- Para que a mulher da favela entrou na residência? O que de fato ela queria entrando pelo
portão?

8º Parte:
Ponto de maior tensão na narrativa
“já transpusera o gramado, atingia a piscina, agachava-se junto à borda de azulejos, sempre a
olhá-la, em desafio, e agora colhia água com lata. Depois, sem uma palavra, iniciou uma
cautelosa retirada, meio de lado, equilibrando a lata na cabeça e em pouco sumia-se pelo
portão”.

Perguntas objetivas:
- Para que a mulher da favela entrou na residência?

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- Como ela saiu da residência?

Perguntas inferenciais:
- Por que a mulher da favela decidiu encher a lata na piscina, em vez de buscar água no
local de costume?
- De que forma a invasora colheu a água da piscina?
“Sempre a olhá-la em desafio”.
- Por que o olhar em desafio?
- Desafiar significa propor combate. Qual era o combate? O que se pretendia defender?
Qual é o objeto do combate?
- O que vai acontecer agora? O que os donos da casa vão fazer?

Pergunta avaliativa:
- Você acha que a mulher da favela fez bem ou mal ao tirar água da piscina? Por quê?

9º Parte:
Início do desfecho
“Lá no terraço o marido, fascinado, assistiu a toda a cena. Não durou mais de um ou dois
minutos, mas lhe pareceu sinistra como os instantes tensos de silêncio e de paz que
antecedem um combate”.

Perguntas objetivas:
- Quem assistiu à cena?
- Quanto tempo durou a cena?
- O que pareceu ao marido?

Perguntas inferenciais:
- Quem eram os combatentes?
- Qual era o objeto do combate?
- Que combate era esse?
- O que significa fascinado neste contexto?
- O que vai acontecer agora?

10º Parte:
Desfecho e solução do conflito

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“Não teve dúvida: na semana seguinte vendeu a casa”.

Pergunta objetiva:
- O que o dono da casa fez?

Perguntas inferenciais:
- Por que o dono vendeu a casa? Qual foi a causa de o marido ter vendido a casa?
- Se você fosse o dono da casa e esse fato tivesse acontecido com você, você venderia a casa?
Por quê?
- Qual seria sua reação?
- Que providências você tomaria?

Pergunta avaliativa:
- Você acha que ele fez bem ou mal? Justifique a sua resposta.

O mecanismo literário principal do texto, ou seja, o “não-dito” (ECO, 1979, p. 67)


no qual o leitor pode atuar para completar o sentido do texto, é a oposição entre a piscina e
a lata, entre o poder de possuir uma piscina, utilizando a água para lazer, e a falta de poder
que leva a utilização de uma lata como reservatório para a água necessária à sobrevivência. A
piscina separa, divide as mulheres: “Por um instante, as duas mulheres se olharam, separadas
pela piscina”. Muito mais do que separadas fisicamente pela piscina, as duas mulheres viviam
duas realidades distintas, quase opostas, e a piscina é símbolo desta distância.
A piscina aparece como um degrau, é ela que distancia as mulheres. Outra evidência
da distinção social é a forma como as mulheres são descritas. De um lado, “a mulher tomava
um banho de sol, sentada de maiô à beira da piscina”, e de outro “um ser encardido cujos
trapos em forma de saia não bastavam para defini-la como mulher”. A oposição entre
“mulher” e “ser” abre para o leitor um espaço no qual ele pode atuar com sua visão de
mundo, trazendo à tona um conjunto de significados capazes de preencher as lacunas do
texto, uma vez que todo texto é uma “estratégia de comunicação”. (ECO, 1979, p. 181). De
um lado, há uma mulher e, de outro, há um “ser”. Mulher traz consigo significados que vão
desde o sexo biologicamente definido até imposições sociais, como a busca pela beleza física
representada pelo banho de sol e pelo maiô. Já o ser é biologicamente vivo, está em busca
de sobrevivência, por isso precisa da água, mas está distante de mecanismos sociais que a
definam como mulher, como seriam as roupas, se fossem suficientes para tanto.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O texto “Piscina”, de Fernando Sabino, pode ser trabalhado no Ensino fundamental


e médio com o objetivo de levar o aluno a refletir sobre diversos aspectos, tais como:
desigualdade social, nutrição e saúde. É interessante destacar que a água da piscina recolhida
pela mulher da favela é utilizada como um nutriente, ou seja, algo necessário para a saúde do
ser humano. Em clara oposição, a água da piscina é utilizada apenas para lazer pelos donos
do casarão, em outras palavras, é um elemento de luxo. A questão da desigualdade social
pode ser trazida à tona, tanto pelo valor crítico que representa quanto pela sua capacidade
humanizadora.
A discussão sobre os problemas sociais constitui um ponto importante do trabalho
com literatura em sala de aulas, permite fazer perceber a multiplicidade de modos de vida
existentes na sociedade brasileira e permite questionar se esta multiplicidade é positiva ou
não, até que ponto trata-se apenas de multiplicidade e a partir de que ponto se torna uma
questão de desigualdade social. Assim, a literatura pode colocar os alunos em contato com o
outro em sua sociedade, sem que este contato seja negativo ou prejudicial. Outro ponto
importante é sobre questões ambientais. Uma piscina utiliza uma grande quantidade de água,
desse modo não seria um desperdício? A mídia sempre está em alerta para a economia do
consumo de água já que ela pode acabar daqui alguns anos, mas as piscinas continuam sendo
apresentadas como símbolo de poder.
Também pode ser explorada a questão de segurança, pois a mulher com a lata na mão
entrou tranquilamente no quintal alheio, recolheu a água e foi embora. Ela teve um fácil
acesso. Assim, pode-se questionar o quanto os poderes públicos investem ou deixam de
investir em segurança, e também se os investimentos que são feitos vão para o caminho
certo, pois não apenas falta segurança na casa de classe alta, mas falta cidadania para a mulher
com a lata. Pode-se trabalhar para que o estudante desenvolva sua consciência para tomada
de decisões enquanto cidadão ativo na resolução de questões relacionadas a medidas
econômicas. Podem-se abordar questões como: Uma piscina é uma obra que tem um custo
alto para construir e manter, será que vale a pena tal investimento? Qual a importância e a
real motivação para se ter uma?

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O texto “Piscina”, sem dúvida proporcionou certo incômodo íntimo nos leitores. Os
leitores, ao interpretá-lo, deixaram transparecer as suas posturas ideológicas determinadas
pela classe social e que cada um pertencia a representava.
As perguntas objetivas, de conhecimento informado pelo texto, foram elaboradas
com o objetivo de verificar a compreensão do leitor sobre aquilo que está no texto.
As perguntas inferenciais, baseadas nos conhecimentos experienciais, nas crenças,
ideologias e axiologias individuais, foram formuladas visando-se a verificar as expectativas e
as ideias do leitor referentes às ideias expressas no texto e ao conhecimento de mundo
relacionado com a camada sociocultural em que o aluno está inserido.
As perguntas avaliativas envolvem julgamentos pessoais de informações fornecidas
pelo texto. Através desse tipo de questão, verificaram-se as reações do leitor diante das ideias
apresentadas, confrontando o seu ponto de vista como o ponto de vista exposto no texto,
argumentando a favor de sua opinião e aprofundando a sua reflexão. Todas as palavras que
com maestria foram selecionadas pelo narrador do texto servem para mostrar o contraste
entre a riqueza de alguns e a miséria de outros. A mulher da favela é associada a um bicho, a
um ser indefinido, sem identidade. O narrador se refere a ela como um “ser encardido”,
“silenciosa como um bicho”, “estranha criatura”. À marginalização social corresponde a
desumanização da personagem. Enfim, o título “Piscina” é o grande divisor de águas, para a
mulher da mansão, a piscina significava o ócio, o luxo, a ostentação, para a outra, a
sobrevivência, um bem vital.
A piscina serve como o símbolo da desigualdade social, e é disto que trata o texto – o
sentido mais global.
Fica claro, assim, que o léxico cumpre grande importância na construção de sentidos.
Quanto maior for o conhecimento prévio do léxico melhor será a construção e reconstrução
de sentidos do texto.
Vimos, de forma geral, como o uso de estratégias concorre para a compreensão da
compreensão leitora que em consonância ao que postula Castro & Dionísio (2003) os textos
devem lidos autonomamente e não como estes vêm sido normalmente praticados nos
exercícios de compreensão leitora, que com seus enunciados interrogativos, declarativos e
imperativos apontam para uma compreensão predeterminada pelo autor do livro didático
atribuindo aos leitores papéis interpretativos determinados. A partir das repostas obtidas,
foram analisadas: as inferências que envolvem compreensão textual, as inferências que
envolvem percepção afetiva e avaliação como consequência de julgamentos sociais. O dever

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da escola e dos professores em geral é fazer com que o aluno aprenda o que não sabe. A
crônica “PISCINA” de Fernando Sabino faz uma crítica à desigualdade social, assunto
polêmico que se mantem atual há muitas décadas.
Certo dia, os moradores de uma casa luxuosa localizada em um morro próximo a
uma favela, observaram que os seus vizinhos, moradores desta favela, adentravam e
roubaram alguma coisa: a água da piscina! Fato inusitado? Não para o autor da crônica.
Com palavras simples e habilidade na escrita, Fernando Sabino perpassa por várias
esferas do problema da desigualdade social. Moradores que convivem em uma mesma cidade,
vizinhos, vivendo situações sociais tão diferentes. Aborda desde os problemas de
saneamento básico, passando pela cultura da ostentação, educação, chegando ao medo da
violência e a falta de segurança. Ler o mundo ele já sabe. O que precisa aprender ler é a
palavra, não a decodificação desta isoladamente, mas parafraseando Bakhtin (1997) a palavra
que constitui o produto da interação do locutor e do ouvinte.
Um dos objetivos deste artigo científico foi discutir a importância da compreensão
leitora e que para atingir tal habilidade, o professor pode lançar mão das estratégias de leitura
que de uso sistemático incorporarão ao ato de ler dos aprendizes e estes paulatinamente
transformar-se-ão em leitores proficientes. Um dos fatores que afetam a sociedade brasileira
é a questão da Desigualdade Social, onde os ricos ficam cada vez mais ricos e os pobres vão
entrando ainda mais na miséria.
E é isso que o autor procura repassar na sua crônica, a partir do momento que ele
descreve a bela e luxuosa casa de um casal e da vida pobre das pessoas que invadem a casa
para roubarem a água da piscina.
O autor está mostrando os contrastes sociais que nós já estamos acostumados a
vivenciar com notícias na televisão, jornais. Nessa crônica ele atinge, de certa forma, os
políticos que estão no poder e não fazem nada para melhorar a vida de quem os elegeu.

REFERÊNCIAS
ECO, Umberto. Leitura do texto literário: lector in fabula. Lisboa: Presença, 1979.
BAKHTIN, Mikhail (1997). Marxismo e filosofia da linguagem. 08ª ed. São Paulo: Hucitec.
CASTRO, Rui Vieira de; DIONÍSIO, Maria de Lourdes. A produção de sentido(s) na leitura
escolar: dispositivos pedagógicos e estratégias discursivas no "trabalho interpretativo". In: FELTES,
Heloísa Pedroso de Moraes. Produção de sentido: estudos transdisciplinares. São Paulo: Annablume;
Porto Alegre: Nova Prova; Caxias do Sul: Educs, 2003.
DELL’ISOLA, Regina Lúcia Péret. Leitura: Inferências e contexto sociocultural/Belo Horizonte.
Formato Editorial, 2001.

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SEDA - Revista de Letras da Rural/RJ. Seropédica/RJ, v. 2, n. 5, abr./ago., 2017, p. 85-100.
HAYAKAWA, S.J A linguagem dos comunicados. In: HAYAKAWA, S.J. A linguagem no
pensamento e na ação. São Paulo: Pioneira, 1963. Cap.03, p.29 - 42.
BRIDGE, C. The text based inferences generated by children in processing writing discourse. University
of Arizona, 1977.
FREDERIKSEN, J.R Semantic processing units in understanding text. In: FREEDLE, 0.
(org).Discourse production and comprehension. Ablex: Northwood, 1977.
SABINO, Fernando. “Piscina”, In: A mulher do vizinho. Rio: Nova Fronteira, 1976.
MCLEOD, J. Inference and cognitive synthesis. Universidade de Alberta. Dissertação de doutorado,
1977.
RICKHEIT, Gert; SCHNOTZ, Wolfgang; STROHNER, Hans. The concept of inference in
discourse comprehension. In: RICKHEIT, Gert; STROHNER, Hans (Eds.). Inferences in text
processing. Amsterdam: North Holland, 1985. p. 03 – 47.

ANEXO I

PISCINA

Fernando Sabino

Era uma esplêndida residência, na Lagoa Rodrigo de Freitas, cercada de jardins e tendo
ao lado uma bela piscina. Pena que a favela, com seus barracos grotescos se alastrando pela
encosta do morro, comprometessem tanto a paisagem.
Diariamente desfilavam diante do portão aquelas mulheres silenciosas e magras, lata
d´água na cabeça. De vez em quando, surgia sobre a grade a carinha de uma criança, olhos
grandes e atentos, espiando o jardim. Outras vezes eram as próprias mulheres que se
detinham e ficavam olhando.
Naquela manhã de sábado, ele tomava seu gim-tônica no terraço, e a mulher um banho
de sol, estirada de maiô à beira da piscina, quando perceberam que alguém os observava pelo
portão entreaberto.
Era um ser encardido, cujos molambos em forma de saia não bastavam para defini-la
como mulher. Segurava uma lata na mão, e estava parada, à espreita, silenciosa como um
bicho. Por um instante as duas se olharam, separadas pela piscina.
De súbito, pareceu à dona da casa que a estranha criatura se esgueirava, portão adentro,
sem tirar dela os olhos. Ergueu-se um pouco, apoiando-se no cotovelo, e viu com terror que
ela se aproximava lentamente: já transpusera o gramado, atingia a piscina, agachava-se junto

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à borda de azulejos, sempre a olhá-la em desafio, e agora colhia água com a lata. Depois, sem
uma palavra, iniciou uma cautelosa retirada, meio de lado, equilibrando a lata na cabeça – e
em pouco tempo sumia-se pelo portão. Lá no terraço, o marido, fascinado, assistiu a toda à
cena. Não durou mais de um ou dois minutos, mas lhe pareceu sinistra como os instantes
tensos de silêncio e de paz que antecedem um combate. Não teve dúvida: na semana seguinte
vendeu a casa.

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Réquiem e utopia

Flávio Ricardo Vassoler1

RESUMO
Em estreito diálogo com pessoas/personagens da obra O fim do homem soviético (2015), da escritora
bielorrussa Svetlana Alexievitch (1948 - ), este ensaio discorrerá sobre as trágicas afinidades eletivas
entre a utopia e a distopia.

Palavras-chave: Svetlana Alexievitch. Socialismo. União Soviética. Utopia. Distopia.

Requiem and Utopia

ABSTRACT
In a close dialogue with some people/characters of the novel Secondhand Time: The Last of the Soviets
(2015), by the Belarusian author Svetlana Alexievitch (1948 - ), this essay will talk about the tragic
and elective affinities between utopia and dystopia.

Keywords: Svetlana Alexievich. Socialism. Soviet Union. Utopia. Dystopia.

Se a água se incendiar, como é que se pode apagá-la? – dizem os abecásios. É


assim que eles falam da guerra... (Olga V., 24 anos, topógrafa, uma das interlocutoras
da escritora bielorrussa Svetlana Alexievitch em O fim do homem soviético)

Eu descrevo a tragédia metafísica da vida das pessoas, vida que foi apanhada
entre essas tragédias. Não julgo ninguém. Essa ideia utópica [da URSS] devorou
as melhores e as mais bonitas pessoas, que se lançaram na nova vida acreditando
que iam fazer a humanidade feliz, que construiriam essa vida corretamente,
como devia ser. Ainda encontrei pessoas assim. Embora nunca, já há milhares
de anos, se tenha conseguido nada de bom sobre as ruínas, e tenha sido sempre
necessário dispor-se a um trabalho lento, demorado. (Svetlana Alexievitch, O fim
do homem soviético2)

I “O meu tempo acabou antes da minha vida. Devemos morrer juntamente com o
nosso tempo. Como os meus camaradas...”

Conheçam Vassili Petróvitch N., 87 anos, membro do Partido Comunista da União


Soviética desde 1922 e uma das vozes a reverberar O fim do homem soviético. Imaginemos o

1 Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada)
pela FFLCH-USP, com estágio doutoral junto à Northwestern University (EUA). É autor das obras literárias
Tiro de Misericórdia (nVersos, 2014) e O Evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), além de ter organizado
o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: o niilismo da modernidade (Intermeios, 2012).
Página na internet: Portal Heráclito – www.portalheraclito.com.br.
2 Svetlana Alexievitch, O fim do homem soviético. Tradução de Antônio Pescada. Porto: Porto Editora, 2015, p.

231 (primeira epígrafe), p. 460 (segunda epígrafe). O título da primeira seção deste ensaio, por sua vez, é uma
frase de Vassili Petróvitch N. que consta da página 163.
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camarada Petróvitch sentado em sua velha poltrona de molas. O couro gasto e enrugado
do móvel parece se prolongar pelas mãos repletas de nódoas do contemporâneo de Stálin.
O camarada Petróvitch apoia os cotovelos sobre o parapeito da janela e observa a queda
malemolente e melancólica da neve em Moscou – é como se o outrora General Inverno,
despido de seus galões e condecorações, também estivesse a agonizar. (Se aprumarmos os
ouvidos, a sinfonia atonal da tuberculose de Vassili desvelará o réquiem da utopia.) O
camarada Petróvitch estreita os olhinhos azuis a ponto de eles se transformarem em duas
frestas sob as sobrancelhas espessas. Súbito, ele dispara:

Não sou um historiador, nem versado em ciências humanas. É verdade que


durante algum tempo trabalhei como diretor de um teatro, do nosso teatro
municipal. Para onde quer que o Partido me enviasse, era aí que eu servia. Era
devotado ao Partido. (ALEXIEVITCH, 2015, p. 165).

Ao deparar com a militância eclesiástica do camarada Petróvitch – “Para onde quer


que o Partido me enviasse, era aí que eu servia. Era devotado ao Partido” –, acabo me
lembrando de um episódio pitoresco (e sintomático) pelo qual passei na Praça Vermelha,
no coração de Moscou, junto à entrada do mausoléu de Lênin3. Era um domingo chuvoso
de outono. O vento gélido parecia conhecer cada uma das frestas do meu sobretudo. Ainda
assim, eu queria reverenciar o líder de Outubro de 1917. Tomei a longa fila ladeada pelas
muralhas ocres do Kremlin às 11h37. À minha frente havia um casal da finada República
Democrática Alemã. (Nossa conversa entrecortada mesclava o russo, o alemão e as
mímicas.) Quando o soldado russo reconheceu os broches com a foice e o martelo junto às
lapelas dos sobretudos do senhor e da senhora Liebknecht, os camaradas foram saudados
com a devida vênia:
– Здравствуйте, товaрищи! (Zdravstvuitiê, tovarischi!, Saudações, camaradas!)
Quando chega a minha vez, as sobrancelhas do soldado se arqueiam assim que ele
vê a minha chapka, um gorro felpudo e circular de inverno. Ele leva a mão esquerda ao
cocoruto e, com um gesto solene, ordena que eu retire a chapka antes de entrar no Santo
Sepulcro de Lênin. Faço menção de perguntar ao soldado se, com a mão direita, eu devo
fazer o Pelo Sinal da Santa Cruz. Mas como eu levo a versão de bolso de Assim falou
Zaratustra em meu sobretudo, não me faço de rogado e o interpelo:
– Ora, camarada, ainda não lhe avisaram que Deus morreu?

3 Vivi em Moscou entre os anos de 2008 e 2009 para dar sequência aos estudos de língua russa que me
levariam à leitura dos originais de Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski, o autor que eu então estudava em minha
pesquisa de mestrado.
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Como que a esboçar um sorriso de soslaio, assim falou o soldado:
– Ora, camarada, você foi devidamente avisado de que a ressurreição de Lênin
acontece todos os dias, das 11h às 13h. (Após verificar, pela enésima vez, que já estou sem
o gorro, o soldado arremata: Enjoy your visit.)
Após um forte acesso de tosse a expelir um catarro rubro-verde contra o lenço, o
camarada Petróvitch se recompõe:

Pouco me lembro da vida, só me lembro do trabalho. O país era uma zona de


ocupação, um alto-forno, uma forja! Agora já não se trabalha assim. Eu dormia
três horas por dia. Três horas... Estávamos atrasados cinquenta ou cem anos em
relação aos países mais desenvolvidos. Um século inteiro. O plano de Stálin era
alcançá-los em quinze ou vinte anos. O célebre salto em frente. E nós
acreditávamos que íamos alcançá-los! Agora as pessoas não acreditam em nada,
mas nesse tempo acreditavam. Acreditavam facilmente. As nossas palavras de
ordem: “Ataquemos com os nossos sonhos a desorganização industrial!” “Os
bolcheviques devem dominar a técnica!” “Igualemos o capitalismo!” Eu não
vivia em casa, vivia na fábrica, na construção. Sim, o telefone podia tocar às
duas, às três horas da madrugada. Stálin não dormia, deitava-se tarde, e por
conseguinte nós, os quadros dirigentes, não dormíamos. De cima a baixo.
Tenho duas condecorações e três enfartes. Fui diretor de uma fábrica de pneus,
chefiei um grupo de empresas de construção, daí passei a um grupo de
tratamento de carnes. Dirigi o arquivo do Partido. Depois do terceiro enfarte
deram-me o teatro. (ALEXIEVITCH, 2015).

O neto do camarada Petróvitch, um yuppie da novíssima geração pós-URSS, bem


poderia redarguir: Pouco me lembro da vida, só me lembro do trabalho. O país é uma zona de
investimentos, uma bolsa de valores, um cassino! Agora só se trabalha assim.
Ora, para além da ironia dos vencedores – Ao vencedor, as batatas – a revolver os
escombros da utopia, as memórias do camarada Petróvitch nos trazem o ethos (e,
sobretudo, o pathos) de uma época em que a fé no espírito do tempo era tão tangível quanto
a foice e o martelo que construíam o socialismo.
Se acusássemos o comunista Vassili Petróvitch N. de pregar a ética protestante e o
espírito do socialismo, o camarada Petróvitch bem poderia redarguir:
– Homens de pouca fé! Não trabalhávamos pelo trabalho, não trabalhávamos por
trabalhar e para acumular – nós realmente acreditávamos que, para pescar durante o dia e
fazer crítica literária à noite, como uma vez sonharam os jovens Marx e Engels, para que os
homens e mulheres fossem alçados às suas verdadeiras vocações, era preciso elevar a
riqueza social para partilhá-la com igualdade, liberdade e fraternidade. Um alto executivo de
uma multinacional, hoje, também já enfartou três vezes antes dos 50 anos, mas aí eu lhes
pergunto: pelo que ele adoeceu, pelo que ele luta? Resposta: por si próprio, pela

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multiplicação dos pães e dos peixes para si mesmo, ou pior, pela escassez dos pães e dos
peixes para os demais.
Quando o camarada Petróvitch nos diz que agora as pessoas não acreditam em nada, mas
nesse tempo acreditavam, me lembro dos artistas que, nos primórdios de Outubro, não
assinavam suas poesias, quadros e canções. Não somos nós os autores de nossas obras, a Revolução
é a parteira da arte, Outubro é o marco do novo mundo!
O otimismo histórico fazia com que os limites dos homens e mulheres fossem
continuamente transgredidos e transcendidos pela escatologia da imaginação. É nesse
contexto em que o além do homem parece forjar a nova humanidade que o revolucionário
Liev Davidovitch Bronstein, também conhecido como Trótski, chega a projetar que, na
sociedade comunista efetivamente emancipada, o nível médio dos cidadãos seria
equiparável a Aristóteles e a Marx. Zaratustra passaria a caminhar entre os homens.
Ataquemos com os nossos sonhos a desorganização industrial!: quando o niilismo cínico de
nossa época só faz reduzir os ideais à pecha de ingenuidade, já não conseguimos soerguer
sobre os ombros o sentimento do mundo.
Ataquemos com os nossos sonhos a desorganização industrial!: o camarada Petróvitch
ressuscita o Príncipe Míchkin, protagonista do romance dostoievskiano O idiota, para recitar
que a beleza salvará o mundo.
Ataquemos com os nossos sonhos a desorganização industrial!: de cada um, conforme sua
capacidade; a cada um, conforme sua necessidade – não é assim, Karl Heinrich Marx?
Vassili Petróvitch N. não é “apenas” testemunha de um tempo histórico outro.
Radicalmente outro. Vassili Petróvitch N. é também um pergaminho para as gerações
futuras, a pedra fundamental de Utópolis.
Assim falou o Evangelho segundo Tomás Morus:
– Tu és Petróvitch, e sobre esta pedra edificaremos a nossa Utopia.
Svetlana Alexievitch vê uma lágrima espessa transbordar do olho esquerdo de
Vassili. Ela escorre trôpega e sinuosa por entre os vincos e sulcos daquele rosto arado pela
história. A lágrima, Pandora liquefeita. A lágrima como barricada:

Chorei quando a União Soviética se desagregou. Fomos imediatamente


amaldiçoados, caluniados. O burguês venceu. O piolho. A minhoca.
A minha pátria é Outubro, Lênin, o socialismo. Eu amava a Revolução! O
Partido é para mim a coisa mais querida. Estive setenta anos no Partido. O
cartão do Partido é a minha Bíblia. (Declama.) “Pela base destruiremos o mundo
de antigamente / E o nosso mundo construiremos. / Quem não era nada será
gente”. Queríamos construir o Reino de Deus na Terra. Um sonho belo mas
quimérico, o homem ainda não está preparado para isso. É imperfeito. Pois é...

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Mas sem um ideal de justiça, a Rússia será outra e as pessoas também serão
outras. Será um país completamente diferente. Ainda não acabaram com o
comunismo. Não contem com isso. E o mundo ainda não o venceu. O homem
sonhará sempre com a Cidade do Sol. Ele ainda se vestia de peles, vivia nas
cavernas, mas já queria justiça. Lembrem-se das canções e dos filmes soviéticos.
Que belo sonho, que fé! Um Mercedes não é um sonho... (ALEXIEVITCH,
2015).

Não, um Mercedes não é um sonho. Mas é em função dele que o despertador nos
iça da cama às 6:00, logo às 6:05, depois às 6:10 e, definitivamente, às 6:15 – a liberdade
condicional ceifada a cada insônia de 5 minutos.
Audi; BMW; Chevrolet; Chrysler; Citroën; Fiat; Ford; GMC; Honda; Hyundai; Kia;
Mercedes-Benz; Mitsubishi; Nissan; Peugeot; Renault; Suzuki; Toyota; Volkswagen; Volvo: da utopia
à distopia, do camarada ao consumidor, da polifonia das múltiplas ideias à mesmidade das
diferentes marcas, a profecia do empreendedor Henry Ford, contemporânea de Outubro
de 1917, ainda nos mostra como o arco-íris do capitalismo contém (e retém) todas as cores:
Any customer can have a car painted any colour that he wants so long as it is black.
Mas se o homem sonhará sempre com a Cidade do Sol – sonho diurno, sonho de
olhos abertos, o sentido de toda e qualquer abnegação; se o homem ainda se vestia de peles
e vivia nas cavernas, mas já tinha sede de justiça (eis o eco imemorial do mito da caverna),
não é possível que, ao fim do arco-íris, haja apenas potes de ouro.
Aos 87 anos, Vassili Petróvitch N. não se conforma em ser um súdito do rei Midas.
O camarada Petróvitch viveu uma época em que o toque não nos reduzia a ouro – o toque
era a mão estendida para a abnegação e a solidariedade.
Vassili Petróvitch N., exilado de Utópolis.
Vassili Petróvitch N., náufrago de Atlântida.

II “Queríamos construir o Reino de Deus na Terra. Um sonho belo mas quimérico,


o homem ainda não está preparado para isso. É imperfeito. Pois é... Mas sem um
ideal de justiça, a Rússia será outra e as pessoas também serão outras. Será um país
completamente diferente”

O militante eclesiástico Vassili Petróvitch N. nos confessou sua devoção ao Partido.


Acompanhemos, a partir de agora, a genealogia de sua moral revolucionária:

[Foi no tempo da guerra civil, no tempo da grande fome no campo.] Eu tinha


quinze anos. Chegaram à nossa aldeia uns soldados do Exército Vermelho. A
cavalo, bêbados. Um destacamento de abastecimento. Dormiram até a tarde, e à
tarde reuniram todos os membros do Komsomol [a Juventude Comunista].
O comandante falou: “O Exército Vermelho passa fome. Lênin passa fome. E
os kulaks [proprietários rurais] escondem o trigo e o queimam”. Eu sabia que

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um irmão da minha mãe, o tio Simeon, tinha levado para a floresta sacos de
cereais e os havia enterrado. Eu era do Komsomol. Tinha feito um juramento. À
noite fui conversar com o destacamento e levei-os a esse lugar. Eles carregaram
uma carroça. O comandante apertou-me a mão: “Cresce depressa, irmão!” De
manhã acordei com os gritos da minha mãe: “A casa do Simeon está pegando
fogo!” Encontraram o tio Simeon na floresta... Os soldados tinham-no cortado
com os sabres. Eu tinha quinze anos. O Exército Vermelho passava fome...
Lênin... Fiquei com medo de sair à rua. Ficava em casa e chorava. A minha mãe
adivinhou tudo. De noite, me pôs nas mãos um gorro: “Vai embora, meu filho!
Que Deus te perdoe, infeliz!” (Ele tapa os olhos com a mão. Mas eu vejo que ele
está a chorar.)
“Quero morrer comunista. É o meu último desejo...”

Aos 15 anos, o adolescente Vassili Petróvitch N., ou melhor, o camarada


Petróvitch, membro do Komsomol, já “tinha feito um juramento”.
O juramento sentenciava que Die Partei hat immer Recht4.
Se o tio Simeon, irmão de minha mãe, se revela um inimigo da Revolução, um
inimigo de Lênin, um inimigo do Exército Vermelho, eu, camarada Petróvitch, membro do
Komsomol, devo denunciar o judeu Simeon, o kulak Simeon, o contrarrevolucionário
Simeon.
Se o fascismo de esquerda sentencia que Die Partei hat immer Recht, o fascismo de
direita decreta que Meine Ehre heißt Treue5.
As paradas político-militares na Praça Vermelha, em Moscou, e na Avenida Unter
den Linden, em Berlim, desfilavam blocos de homens/militantes/soldados uniformemente
variados. A marcha a passo-de-ganso fazia ribombar o asfalto. A cadência geométrica da
marcha subsumia todos e cada um dos partícipes em função de uma única resultante
vetorial: à esquerda, Ióssif Vissariónovitch Djugachvíli, o Guia Genial dos Povos, o
homem de aço, Stálin; à direita, Adolf Schicklgruber, o Führer Adolf Hitler.
A invocação do nome do Führer perfura o crânio dos partidários como uma broca:
“Hiiiiiitler!” A invocação do nome do Guia Genial dos Povos entorpece os tímpanos como
dois safanões contra as orelhas com as mãos abertas em palma: “Stáááááálin!” O eu só
existe como nó de um rede. O eu só existe como nós.
Quando os nazistas estendem o braço direito e abrem a mão em palma e em riste
para saudar o Führer, Hitler, por sua vez, flexiona o braço direito com um ângulo de 90º e
posiciona sua mão aberta em palma também com um ângulo reto em relação ao pulso. A
mão do Führer soergue as mãos de todos os seus partidários. A mão do Führer é a resultante

4 O Partido tem sempre razão: canção do Partido Comunista que ressoava pelos quatro cantos da finada
República Democrática Alemã.
5 Minha honra chama-se lealdade: lema da organização nazista Schutzstafel, a temível SS.

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vetorial, a clava, em função da qual Fritz, Georg e Joseph deixam de ser Fritz, Georg e
Joseph e passam a ser nacional-socialistas. O substantivo Führer provém do verbo führen,
que quer dizer “conduzir, levar, guiar; dirigir, liderar, estar à frente”. (KELLER, 2002, p.
117). O Führer e o Guia Genial dos Povos, gêmeos bivitelinos.
A união/subsunção dos partidários de Hitler e Stálin se dá tanto em função dos
lemas endogâmicos – Die Partei hat immer Recht e Meine Ehre heißt Treue – quanto em função
dos inimigos do Partido, da Nação ou da Internacional. Em Mein Kampf (Minha luta), Hitler
já dissera: Se não houvesse o judeu, seria necessário inventá-lo. Para os fascistas de direita, trata-se
do inimigo étnico, trata-se do inimigo político: o judeu, o judeu bolchevique – Simeon.
Para os fascistas de esquerda, trata-se do inimigo de classe, trata-se do inimigo político: o
burguês, o judeu burguês – Simeon.
Para que o leitor e a leitora apreendam, com mais concretude, o processo de
naufrágio do eu em função do Todo oceânico, permitam-me guiá-los até o filme A Onda
(2008), direção de Dennis Gansel.
Em uma escola secundária alemã, o anarco-professor Rainer Wenger, contra a
própria vontade, fica incumbido de ministrar aos alunos uma semana de projeto sobre o
tema autocracia. Neste momento, interessa-nos um experimento realizado por Wenger em
sala de aula. A onda começa a se encorpar quando os alunos elegem Wenger como o mais
novo Führer. A partir de então, só é possível se dirigir ao professor como Herr Wenger, isto
é, senhor Wenger. Só que, na escola pública alemã, conquista fundamental do Welfare State,
as mais variadas classes sociais, etnias e nacionalidades convivem – ou melhor, tentam
conviver. Para que a onda siga uma única e mesma direção, é preciso equalizar as diferenças
para que todos se sintam parte de um Todo, para que todos se irmanem. É quando os
alunos/membros da onda, por unanimidade, decidem envergar a camisa branca como
símbolo inequívoco de pertencimento e distinção. Após a incorporação dos uniformes vem
a saudação estilizada. Após a saudação uniformizada e estilizada vem a ação. Antes que eu
lhes narre o experimento realizado por Herr Wenger em sala de aula, observemos mais de
perto dois alunos daquela classe: o nerd Tim e a ruiva Karo.
Desde o princípio, temos a impressão de que Tim havia sido condenado ao
ostracismo. Solitário, ele tenta fazer parte dos mais variados grupos, sempre à custa de ser
achincalhado. (É assim que, no começo do filme, Tim oferece maconha para um trio de
alunos do qual pretende se aproximar. Quando os colegas perguntam a Tim quanto lhe
devem pagar pelos baseados, Tim lhes diz que “não é nada, não, faço isso pela amizade”).

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Logo sabemos que a família de Tim também o exila. Assim, para um lobo solitário como
Tim, para um jovem sequioso por afeto e solidariedade, o que significa pertencer à onda?
Significa não ter que lidar com a individualidade como sofrimento, significa pertencer pela
primeira vez a uma família, a uma irmandade, a uma Gemeinschaft – isto é, a uma comunidade,
àquilo que nos comunica, àquilo que nos faz comuns. (KELLER, 2002, p. 125).
Há uma cena emblemática que mostra o rito de passagem de Tim. Ele “pertence” a
uma família de excelente condição financeira. Ainda assim, a mansão bávara, os vários video
games e as roupas de marca não lhe dão afeto, atenção e reconhecimento. Quando Tim é
tragado pela onda, o jovem, já devidamente paramentado com sua camisa branca, reúne
todas as suas antigas camisas de marca: Adidas; Armani; Calvin Klein; Colcci; Diesel; Dolce &
Gabbana; Hugo Boss; Lacoste; Nike; Prada; Ralph Lauren; Tommy Hilfiger. Tim as joga em um
carrinho de mão e, após embebê-las em álcool, ateia fogo às identidades mercadológicas e
contingentes com que o capitalismo nos enreda. A solidão de Tim não se vê superada com
a vacuidade do corpo-outdoor, do indivíduo-propaganda. Tim clama por laços reais, por
laços verdadeiramente humanos. Assim, percebamos que há um forte teor de verdade na
ânsia de Tim por reconhecimento e pertencimento. Em contextos de fortes crises sociais –
contextos que chocam os ovos da serpente –, o canto de Circe da Gemeinschaft fascista tem
forte apelo entre o batalhão de solitários em seus mais diversos matizes: desempregados e
enjeitados, carentes e ressentidos, humilhados e ofendidos. A horda fascista estende a mão
a Tim – e a Vassili Petróvitch N. Tim e Vassili já não são Tim e Vassili. Tim passa a ser
uma gota da onda. Vassili, ou melhor, o camarada Petróvitch, é membro do Komsomol.
E quanto à ruiva Karo? Karo é a antípoda de Tim. Karo é inteligente, mas não é
nerd. Karo é bela, Karo é a atriz principal da peça, Karo é a líder. Karo não queria que a
onda se chamasse A onda. Karo queria que a onda, à sua imagem e semelhança, se
chamasse Os transformadores. A democracia de massas, no entanto, fez da vontade de Karo
voto vencido. Se Tim sente prazer – e arrefece sua dor – ao ser engolfado pela onda, Karo
jamais abrirá mão de sua individualidade. A adaptação de Tim à dinâmica endogâmica da
onda pressupõe sua inadaptação social. A inadaptação de Karo à dinâmica endogâmica da
onda pressupõe seu protagonismo social.
Vamos agora à sala de aula comandada pelo Führer Rainer Wenger. Todos estão
presentes à aula, à exceção de Karo – a ruiva está atrasada (afinal, todos precisam notar
quando ela chega). Todos trajam camisas brancas. Ao comando de Herr Wenger, todos se
levantam. Ao comando de Herr Wenger, todos começam a simular, em seus respectivos

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lugares, a marcha a passo-de-ganso. “Um, dois!” – exclama o Führer. “Três, quatro!” –
secundam os liderados. “Cinco, seis!” – exclama o Führer. “Sete, oito!” – secundam os
liderados. A câmera do diretor Dennis Gansel percorre os rostos dos alunos – ou melhor,
das gotas da onda –, uma mudança repetina começa a se consubstanciar, o ar fica espesso, a
cadência da marcha coletiva começa a gerar energia cinética, energia de coesão, os eus
subsumidos se reconhecem pelo chão que ribomba, pela lousa que treme, o Führer vocifera
que “assim nós vamos derrubar o piso, assim nós vamos derrubar uma ponte, assim nossa
onda vai virar um tsunâmi!”
Caro leitor e cara leitora, imaginem que, neste momento de êxtase coletivo, neste
clímax de subliminação libidinal compartilhada, a porta da sala se abra e a onda branca se
depare com um corpo estranho – o bacilo da ruiva Karo a vestir uma camisa vermelha.
Vocês conseguem imaginar o anticlímax da “invasão” de Karo como um coito
interrompido? Vocês se dão conta de que, a todo custo e contra todos os obstáculos, a
onda não quererá se dissipar? (Se não houvesse o judeu, seria necessário inventá-lo.) A onda, nesse
sentido, ejaculará sua energia – energia intumescida pela subsunção de todos e cada um de
seus membros em função da regência fálica do Führer – contra o invasor/inimigo, de modo
que ou o corpo estranho será fagocitado, ou então ele será aniquilado. Como só pode haver
um Führer, Karo precisa se resignar como Tim. Do contrário, Karo precisará liderar uma
nova onda.
Voltemos agora à juventude trágica de Vassili Petróvitch N. “Eu tinha feito um
juramento”: Die Partei hat immer Recht (o Partido tem sempre razão), já que Meine Ehre heißt
Treue (minha honra chama-se lealdade). O tio Simeon, ou melhor, o judeu Simeon, o kulak
Simeon, o contrarrevolucionário Simeon, é delatado aos soldados do Exército Vermelho
pelo sobrinho Vassili Petróvitch N., ou melhor, pelo camarada Petróvitch, 15 anos,
membro do Komsomol. Como reconhecimento dos soldados do Exército Vermelho pela
delação, ou melhor, pelo feito supraindividual, pela colocação da vontade do Todo acima
de quaisquer escrúpulos egoicos/burgueses, o comandante aperta a mão do jovem
bolchevique e lhe diz: “Cresce depressa, irmão!” Cresça depressa, camarada Petróvitch,
nosso socialismo precisa de bolcheviques implacáveis como você, nossa onda precisa de
sua energia, de sua abnegação – de sua subsunção. (O irmão como mais um náufrago da
Grande Família.)
A escritora Svetlana Alexievitch nos diz que o camarada Petróvitch tapa os olhos
com a mão e chora diante da lembrança de sua mãe – ela logo descobrira a delação do filho

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contra o tio, a delação do filho contra o irmão. À noite, com a imagem do irmão retalhado
na floresta pelos sabres do Exército Vermelho, a mãe dá um gorro ao filho e sentencia:
“Vai embora, meu filho! Que Deus te perdoe, infeliz!” Vassili Petróvitch N. chora. Ele
chora copiosamente sob as mãos – a culpa e a vergonha não lhe deixam urrar sem um
escudo. Vassili Petróvitch N., potencial personagem de Fiódor Dostoiévski, sente, em cada
uma das fímbrias de seu corpo trêmulo, que Deus e o diabo estão em luta, e o campo de batalha é o
coração do homem.
A mãe de Vassili é irmã do tio Simeon. A mãe de Judas é irmã do judeu
assassinado. Para oferecer a outra face ao filho e para fazer justiça ao irmão Simeon, a mãe
de Vassili roga “que Deus te perdoe, infeliz!” Para a personagem dostoievskiana Vassili
Petróvitch N., então, há um motivo sumamente trágico para que o Partido seja a
ressurreição de Deus: doar-se ao Todo, isto é, alienar a própria consciência, significa não
ter que lidar com a liberdade de sentir culpa, significa não ter que lidar com a humanidade
da própria falta. “Fiz aquilo porque era preciso, era preciso dar o exemplo, porque o
egoísmo burguês do judeu Simeon – meu tio, meu Deus, meu tio! – precisava ser extirpado
pela raiz. Não é assim que reza a minha Bíblia, o cartão do meu Partido? ‘Pela base
destruiremos o mundo de antigamente / E o nosso mundo construiremos’. Para que a
história soerga a utopia, quantos Simeons ainda não assentarão as pedras fundamentais?”
Não nos deve surpreender, então, que, entre a torrente de lágrimas de Vassili, o camarada
Petróvitch desponte vitorioso – Ao vencedor, as batatas – com o mantra que sempre o guiou
– mantra sob o qual ele sempre se escondeu: Die Partei hat immer Recht. Meine Ehre heißt Treue.
Por isso, “quero morrer comunista, é o meu último desejo”. Eis o arremate da estória (e da
história) de Vassili Petróvitch N. que Svetlana Alexievitch nos narra:

Nos anos noventa, publiquei apenas uma parte desta confissão. O meu herói
deu o seu relato para alguém ler, aconselhou-se e convenceram-no de que a
publicação integral “lança uma sombra sobre o Partido”. E isso era o que ele
mais receava. Depois da sua morte, encontraram o testamento: o seu grande
apartamento de três quartos no centro de Moscou deixava-o não aos netos, mas
“para as necessidades do querido Partido Comunista, a quem devo tudo”. Sobre
isso escreveram até no jornal da cidade. Semelhante procedimento já era
incompreensível. Todos se riram do velho louco. Ninguém mandou colocar
qualquer memorial na sua sepultura.
Agora decidi publicar o relato na íntegra. Tudo isto pertence agora mais a um
tempo do que a uma só pessoa. (ALEXIEVITCH, 2015, p. 181).

Devo discordar de Svetlana Alexievitch: o fato de o camarada Petróvitch ter


deixado seu grande apartamento de três quartos no centro de Moscou não para os netos,
mas “para as necessidades do querido Partido Comunista, a quem devo tudo”, já não nos é

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incompreensível. (Os netos, sobrinhos-bisnetos de Simeon.) Em meio ao esconde-esconde do
conhece-te a ti mesmo que se confunde com a vida de Vassili, a oblação do camarada
Petróvitch ao Partido procura amordaçar – ou pior, estrangular e emudecer, asfixiar e
silenciar – a dor daquele que foge de seu próprio eu, da delação contra o tio e do perdão de
sua mãe. À infelicidade de Vassili – “Que Deus te perdoe, infeliz!” – corresponde a
abnegação (vale dizer, a negação do ego) por parte do camarada Petróvitch. Devo, no
entanto e por consequência, concordar com Svetlana Alexievitch quando ela diz que “tudo
isso pertence agora mais a um tempo que a uma só pessoa”. Vassili Petróvitch N., exilado
de Utópolis (e de si mesmo). Vassili Petróvitch N., náufrago de Atlântida.

III “Eu sou eu e minhas circunstâncias”


“Atingimos o comunismo com as valas comuns”

Ouçamos o que a mãe da estudante Ksênia Zolotova, de 22 anos, tem a nos dizer:

Estudei pelos livros soviéticos, ensinavam-nos coisas totalmente diferentes. Só


para comparação: nesses livros escrevia-se sobre os primeiros terroristas russos
que eles eram heróis. Mártires. Sofia Peróvskaia, Kibaltchik. Morreram pelo
povo, por uma causa sagrada. Lançaram a bomba contra o czar. Esses jovens
eram, em muitos casos, de origem nobre, de boas famílias. Por que é que nos
surpreendemos que existam hoje pessoas assim? (Silêncio.) Nas aulas de
História, quando nos ensinavam a Grande Guerra Patriótica [(1941-1945),
maneira pela qual os russos chamam seu próprio envolvimento na Segunda
Guerra Mundial], o nosso professor falava da proeza da guerrilheira bielorrussa
Elena Mazanik, que matou o Kube, administrador nazista na Bielorrússia,
fixando uma bomba na cama onde ele dormia com a mulher grávida. E no
quarto vizinho, do outro lado da parede, estavam os filhos pequenos. Stálin
condecorou-a pessoalmente com a Estrela de Heroína. Até o fim da sua vida ela
percorria as escolas e, nas “aulas de coragem”, recordava a sua proeza. Nem o
professor… ninguém... ninguém nos dizia que do outro lado da parede
dormiam crianças pequenas... Nem que Mazanik era a ama dessas crianças...
(Silêncio.) Depois da guerra, as pessoas de consciência tinham vergonha de
recordar aquilo que fora necessário fazer durante a guerra. O meu pai sofria com
isso (ALEXIEVITCH, 2015, pp. 345-346).

Um requentado mantra histórico-político sentencia que não se faz uma omelete


sem quebrar ovos. Stálin só fazia recitá-lo – e executá-lo. Ademais, o Guia Genial dos
Povos também dizia que o único lugar em que se podem encontrar concórdia e paz
absolutas é no cemitério.
Atualmente, a despeito de alguns monarquistas après la lettre – prováveis bastardos
das famílias reais –, somos todos republicanos, não? Mas e se a má consciência da história
nos sussurrar que a guilhotina é a parteira da moderna res publica? Atualmente, a despeito de
muitos racistas recalcados – eis o retorno do reprimido sempre latente –, somos todos

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contrários ao preconceito étnico, não? Mas e se a má consciência da história nos sussurrar
que a guerra e o navio negreiro são os parteiros do contato pluriétnico, da miscigenação e,
consequentemente, da noção de alteridade?
Sofia Peróvskaia e Kibaltchik explodiram o czar. Alguém se lembra da miséria e da
inanição dos servos russos, contra cujas costas abauladas o chicote e o cetro do czar
desenhavam as fronteiras de seu império? (O leitor e a leitora bem podem inferir que,
segundo tal cadeia de raciocínio, os fins doutrinam os meios.)
Ora, voltemos às palavras da mãe da estudante Ksênia Zolotova. Na União
Soviética, a guerrilheira bielorrussa Elena Mazanik era tida como uma heroína. “Até o fim
da sua vida ela percorria as escolas e nas ‘aulas de coragem’ recordava a sua proeza”. Caso
o leitor e a leitora já tenham esquecido – ou pior, recalcado – a proeza da camarada
Mazanik, eis que este escritor faz as vezes da má consciência da história. Elena Mazanik era
ama, ou melhor, ama-de-leite dos filhos de Kube, administrador nazista da Bielorrússia.
“Invasor nazista da Bielorrússia!” – vocifera a má consciência da história. A boa
consciência da história faz questão de pular os escombros do pleonasmo para nos dizer que
a ama-de-leite amamenta, com o leite da vida, os bebês que estão sob o seu cuidado e
carinho. O leitor e a leitora diligentes jamais confiariam seus bebês a uma ama-de-leite
qualquer. Assim, é totalmente factível que Elena Mazanik tenha conquistado a confiança do
senhor e, sobretudo, da senhora Kube. A senhora Kube, vale frisar, estava grávida de seu
terceiro filho. É possível que a senhora Kube tenha contado o nome de seu novo filho para
a babá Elena Mazanik antes mesmo que o senhor Kube o soubesse. A senhora Kube e
Elena Mazanik, assim, bem podem ter se tornado confidentes. Se Elena Mazanik fixou uma
bomba junto à ou sob a cama onde o senhor e a senhora Kube dormiam, a ama-de-leite
tinha livre acesso a todas as dependências da casa. Agora, vamos aos louros e à coroa de
espinhos da vitória.
A ofensiva nazista sobre a União Soviética ficou conhecida como Operação
Barbarossa, em alusão a Frederico Barba-Ruiva, o imperador do Sacro Império Romano-
Germânico (1152-1190) que conseguiu impor sua autoridade sobre o papado e assegurou a
influência alemã sobre a Europa Ocidental, fato que lhe trouxe a aura de precursor da
unidade (e do espraiamento) do povo alemão. (O aríete de Barba-Ruiva contra os slaves
eslavos.) O leitor e a leitora que já se debruçaram sobre os relatos das atrocidades
cometidas pela Operação Barbarossa conhecem e sentem os motivos pelos quais a partisan
Elena Mazanik passou a pregar o Evangelho segundo Talião. Creio que o leitor e a leitora,

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nesse sentido, consentirão que Kube, como administrador nazista da Bielorrússia, é
responsável direto e/ou co-responsável por todas as barbaridades cometidas sob seu jugo,
não é mesmo? Assim, ainda que o leitor e a leitora, pacíficos cidadãos de bem de nosso
período democrático – a má consciência da história, devidamente calejada, nos aconselha a
chamar a nossa época de período entreguerras –, ainda que o leitor e a leitora não queiram sujar
as mãos de sangue, creio que vocês aceitariam, não sem muita relutância, que a camarada
Mazanik explodisse o nazista Kube, não é mesmo? Agora, que dizer sobre o assassinato da
mulher grávida de Kube? Que dizer sobre o assassinato dos filhos de Kube que dormiam
no quarto ao lado, pequeninos que haviam sido amamentados por Elena Mazanik? Quer
dizer que a mão estendida para a confiança e a amizade, camarada Elena, é a mesma mão
que empunha a granada? Quer dizer que os alunos soviéticos – alunos com a mesma idade
e inocência dos filhos de Kube –, nas “aulas de coragem”, aprendiam a ser (e a fazer) como
a camarada Mazanik? Que Stálin tenha condecorado Elena Mazanik com a Estrela de
Heroína, ora, trata-se de uma concessão do vício à verdade – e da verdade ao vício. Mas e
quanto aos inocentes? A guerra deve tratá-los como cúmplices? A guerra deve tratá-los
como moedas de troca? A guerra deve tratá-los como meras baixas? A guerra deve tratá-los
como collateral damage? A pedra fundamental de Utópolis deverá ser assentada pelos filhos
de Kube e pelo feto parido pela explosão? A tripulação do submarino nuclear de Elena
Mazanik será responsável por içar Atlântida de seu naufrágio?
Assim falou a mãe da estudante Ksênia Zolotova: “Depois da guerra, as pessoas de
consciência tinham vergonha de recordar aquilo que fora necessário fazer durante a guerra.
O meu pai sofria com isso”. Mas eis que, a reboque da má consciência da história, a partisan
Elena Mazanik, trêmula e indignada, toma a palavra: “Ora, ora, ‘depois da guerra, as
pessoas de consciência…’ Não me venham com balelas! Pois muito bem: onde estavam as
formidáveis pessoas de consciência durante a guerra? Vamos, me digam, onde elas estavam?
Será que elas estavam ovacionando o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores
Alemães quando Hitler ascendeu ao Reichstag, democraticamente, em 1933? Será que elas
estavam delatando seus vizinhos para a polícia política à esquerda e à direita para se
apoderar dos bens alheios? Ah, mas eu sei onde elas estavam – ah, se eu sei! Elas estavam
nas paradas militares, elas ovacionavam os tanques e as ogivas, elas mandavam seus filhos e
maridos para o front com flores e beijos, elas mandavam suas esposas para as fábricas de
mísseis. Em verdade, em verdade lhes digo: as pessoas de consciência são as primeiras a
transformar a venda sobre os olhos da Justiça em mordaça – sim, sim, sim, porque elas

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precisam de nós, elas precisam dos justiceiros, elas não querem sujar as mãos, ora!, o
serviço sujo cabe ao açougueiro, ele que se encarregue de suportar o choro e o ranger de
dentes, não é mesmo? Pois eu tenho uma novidade para vocês, meus caros, uma velha
novidade que a história ainda não conseguiu abortar: eu, Elena Mazanik, sou como vocês.
Sim, sim, sim, vocês me ouviram bem: eu sou como vocês! Ah, mas eu já ouço os fariseus a
me acusar: ‘Você matou, você matou inocentes, nós jamais fizemos algo assim’. Sim, é
claro, os burgueses e a boa vida nunca fazem nada, vocês nunca são responsáveis por nada,
esquadrões de extermínio e mendigos mortos são tão espontâneos quanto a fotossíntese ao
amanhecer. É claro, é claro! Mas saibam: as pessoas de consciência do pós-guerra, todos os
cidadãos altivos e educados que limpam a boca e a bunda com seda, todos vocês precisam
de nós, os justiceiros, os carrascos, os verdugos. E saibam: apenas o acaso cego nos
distingue – sim, a mera sorte. Eu vivi uma época – ou pior, eu sobrevivi a uma época – que
havia revogado o Não matarás. Vocês sabem o que é isso? Vocês lá sabem o que é isso?!
Então saibam: quando a vida rasteja entre os escombros, quando o campanário das igrejas
vira cidadela de snipers, quando já não sabemos por que e por quem os sinos dobram, vocês
descobrem que, em meio à guerra, não é possível dizer não vou matar. Não, não é possível…
No máximo, uma pessoa de consciência, durante a guerra, consegue dizer espero não matar. E
depois, depois da guerra, parece que um abismo cinde o teu passado – quem tenta içar
pontes sobre a terceira margem da memória (ou pior, do esquecimento) o faz por sua
própria conta e risco. Mas, bom, como é que vocês, degustadores de canapés e de foie gras,
vão lá saber de tudo isso? Ou se vive ou não se vive – e eu só fiz sobreviver. Vocês ainda
sabem rezar? Ah, é claro, vocês não precisam rezar – que mal lhes vai abater além de uma
gripe ou mais uma gonorreia desavisada? Pois, na guerra, eu reaprendi a rezar. Vocês já
assistiram ao filme O sétimo selo? Vocês se lembram da cena inicial? A câmera de Ingmar
Bergman encara o céu silencioso – e vazio. Onde está Deus? Por que Ele não fala conosco?
Ora, essas não são perguntas de tempos de paz. Quem assiste aO sétimo selo deitado no sofá
não sabe o que é entoar uma prece para que a paz do canto gregoriano cale a epilepsia
atonal das ogivas. Não, eu não estou me justificando – ora, quem são vocês para pensar
isso?! Vocês não têm o direito de ter sobrevivido – não é justo que vocês não tivessem
nascido! Mas eu, Elena Mazanik, partisan bielorrussa e heroína da União Soviética, pude me
conhecer profundamente. Eu desci aos meus próprios círculos infernais, eu tive a coragem
de, eriçada e ferida, sobreviver ao meu próprio eco. Hoje, eu sei o que devo evitar. Não foi
o espanhol Ortega y Gasset quem me ensinou que eu sou eu e minhas circunstâncias, não. E o

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que é que vocês sentem quando se deparam com uma obra como Guerra e paz? Aposto que
vocês acham muito belo o título antitético, não? Pois eu o acho corporalmente bélico – ele
me traz a vizinhança das sirenes e da bateria antiaérea, ele me traz o claro-e-escuro do
bunker, ele me traz os farrapos da bandeira branca, ele me traz a sobrevida e o fedor
subterrâneos, a amizade dos ratos, a onipresença das baratas, a sífilis após a trégua, a
putrefação dos cadáveres, as valas comuns, os olhos esbugalhados de todas as vidas
ceifadas pela morte abrupta. Chega! Chega! Eu quero a paz, sim, eu sempre a quis. E é por
isso que só entendem os romanos – sábios romanos! – aqueles que sofremos com as
invasões bárbaras. Se queres paz, prepara-te para a guerra. Mas, tudo bem, vocês querem um
culpado, vocês me querem culpada! Ecce domina, eis-me nua diante de vocês: Elena
Mazanik, partisan bielorrussa, heroína da União Soviética. Um bode expiatório a menos, um
bode expiatório a mais – quem se importa? Eu sou culpada, vocês não o são. Eis tudo –
não é mesmo? Ora, ora, cuidado: eu sou culpada, vocês ainda não o são. Lembrem-se:
Cristo não salva a adúltera do apedrejamento apenas pelas faltas pretéritas daqueles que
apontavam dedos em riste contra a suposta pecadora. Cristo já entrevia as faltas futuras. E,
sim, por vezes eu me envergonho de mim mesma. Sim, eu me envergonho. Mas não, não,
eu não me envergonho pelo que eu fiz – vocês um dia saberão se teriam feito algo pior…
Não, eu me envergonho por ter sobrevivido. Por que eu sobrevivi ao meu pai? Por que eu
sobrevivi à minha mãe? Por que eu sobrevivi aos meus irmãos? Sim, Cristo, deixa que os
mortos enterrem seus mortos. Na guerra, não há túmulos. Atingimos o comunismo com as
valas comuns. O sol é o réquiem da manhã que ainda não nos redimiu com a morte. Até
hoje, só se viu o reino da igualdade no cemitério – e não me refiro aos túmulos e às lápides,
já que eles continuam a ostentar a luta de classes. Me refiro à igualdade a sete palmos da
epiderme da vida. A igualdade putrefata. Mas chega, chega! Eu já vou terminar. Eu agora
vou ao cemitério. Se eu vou visitar alguém? Sim, eu vou. Vou visitar um justiceiro. Vou
visitar outro injustiçado. Ninguém mandou colocar qualquer memorial na sua sepultura. Eu
vou lá para narrar sua lápide. A quem eu me refiro? Ora, a quem mais senão ao camarada
Vassili Petróvitch N.?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXIEVITCH, Svetlana. O fim do homem soviético. Tradução de Antônio Pescada. Porto:
Porto Editora, 2015.
KELLER, Alfred Josef. Michaelis: Dicionário Escolar de Alemão. São Paulo: Melhoramentos,
2002.
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MARX, Karl. A ideologia alemã. Tradução de Luciano Cavini Martorano, Nélio Schneider e
Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2007.
MORUS, Tomás. A utopia. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 1997.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Tradução de Drik Sada. Porto Alegre:
L&PM, 2015.
ORTEGA Y GASSET, José. O homem e os outros. Tradução de Felipe Denardi. São Paulo:
Vide Editorial, 2017.

REFERÊNCIAS FÍLMICAS
BERGMAN, Ingmar. O sétimo selo. Suécia: 1957.
GANSEL, Dennis. A onda. Alemanha: 2008.

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Escrevendo em língua estrangeira: uma pesquisa-ação com alunos de
Letras

João Carlos Lopes1


Adriane Fernandes Vieira2

RESUMO
Tradicionalmente, o ato de escrever tem sido visto como um simples ato de transpor ideias para o
papel ou tela de computador na exata medida em que essas mesmas ideias vão surgindo. As
pedagogias para a escrita no ensino regular são inexistentes ou restringem-se apenas à discussão de
um assunto ou tema e a imediata atividade de escrever, em curto período de tempo, um texto
completo e acabado. Sabe-se nos dias de hoje que a redação não é uma atividade estanque, mas um
processo. Enquanto processo, a atividade criativa de redigir um texto requer etapas que se encadeiam
e se sobrepõem desde a geração de ideias até a fase de editoração do texto. Este artigo resulta de uma
experiência do ensino de escrita acadêmica em língua inglesa para alunos universitários. A
conscientização para o processo é discutida e as atitudes em relação às atividades por eles
experimentadas durante a abordagem pedagógica são analisadas.

Palavras-chave: escrita. Língua estrangeira. Pesquisa-ação.

Writing in a foreign language: action research with university students of languages

ABSTRACT
The act of writing has been seen, traditionally, as a single act of codifying ideas onto a piece of paper
or computer screen exactly according to the pace in which those same ideas appear. Pedagogies for
the teaching of writing in regular schools are non-existent or are restricted to the discussion of a topic
or theme and the consequent immediate writing activity, within a short period of time, a complete
and finished text. Nowadays, writing is not seen as a product oriented activity but a process. It is as
a process that creative writing of a text require stages that combine or even juxtapose since the
generation of ideas until the editing phase. This article is a result of an experiment with the teaching
of academic writing in English for university students. The awareness towards the process is discussed
and learners’ attitudes concerning the activities undertaken during the classes are analyzed.

Keywords: writing. Foreign language. Action research.

1 INTRODUÇÃO

1 Possui graduação em Letras - Inglês/Português (1992), mestrado em Letras (2000) e doutorado em Letras
pela Universidade Federal Fluminense (2009). Professor adjunto da Universidade Federal do Espírito Santo
entre 2007 e 2010. Atualmente, professor adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Tem
experiência na área de Linguística, com ênfase em Linguística aplicada, análise textual e de gênero e análise do
discurso. Linhas de pesquisa: Estudos Linguísticos
2 Adriane Fernandes Vieira é aluna do curso de graduação em Letras/Português-Inglês da Universidade Federal

Rural do Rio de Janeiro. Já atuou como professora de inglês em cursos livres de idiomas e escolas. Atualmente,
trabalha com tradução e revisão de textos técnicos da área de patentes e direitos autorais.

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O curso de Letras, no Brasil, em sua quase totalidade, visa preparar futuros
professores de Língua Portuguesa, Literaturas e Língua Estrangeira. O aluno recém-chegado
à universidade se depara com um leque de disciplinas que objetivam o ensino das línguas-
alvo, mas também se vê diante de desafios outrora não imaginados em seu ensino médio.
Este artigo aborda a composição escrita em língua inglesa, ou escrita acadêmica,
conforme alguns programas costumam nomear. A escrita acadêmica, como o termo sugere,
visa introduzir ao aluno noviço noções sobre como escrever de acordo com parâmetros
pouco definidos, porém já enraizados no inconsciente coletivo da comunidade acadêmica
como o chamado ‘bem escrever’ no meio universitário. Geralmente, o professor da disciplina
enfrenta o desafio de tentar reunir textos e atividades que possam congregar ao máximo uma
multiplicidade de características organizacionais e estruturais do texto comumente aceito para
fins de avaliação em seu curso e, quiçá, também dentro das expectativas sintonizadas com o
ensaio, o artigo, a resenha, o resumo, a monografia, entre outros.
Em geral, alunos de cursos de Letras, recém-admitidos, apresentam certo
estranhamento diante da disciplina “Escrita Acadêmica” devido a algumas razões. Primeiro,
eles estão acostumados a escrever seus textos em uma única ‘sentada’. A supremacia das
mensagens instantâneas veiculadas através das redes sociais e demais ambientes de interação
on-line tornou o ato de escrever uma prática centrada no produto final (a mensagem)
caracterizada pelo imediatismo e espontaneidade típicos da conversa. Dessa forma, aspectos
inerentes à escrita não podem ser contemplados.
Em segundo lugar, o ensino regular, com raras exceções, não privilegia o processo
de escrever. O aluno recebe um tema e deve escrever em sala um produto terminado dentro
do tempo limite estabelecido pelo professor. Além disso, o status dos testes e exames de
entrada à universidade ou outros cursos pós-ensino secundário tornaram as aulas de escrita
um treinamento para as particularidades dos exames. Quando a escrita é uma tarefa a ser
realizada em casa, o aluno não recebe instruções e treinamento sobre o processo de escrever.
Assim, ele vai para sua casa com um tema árido em mãos e não utiliza meios para pesquisa e
formulação de ideias, não organiza o conteúdo de sua redação, não pensa sobre estilo e
formato do texto e não incorre em processo de revisão de sua própria escrita.
Em terceiro lugar, a escrita em língua estrangeira apresenta, ainda, algumas
particularidades que desencorajam o aluno a engajar no processo de compor o texto. Além
da barreira natural do idioma estrangeiro, os cursos livres de idiomas privilegiam em sala de
aula a produção oral. No Brasil, saber uma língua estrangeira é sinônimo de falar uma língua

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estrangeira. A produção escrita é ignorada ou considerada com uma habilidade que deve ser
desenvolvida sem uma abordagem pedagógica. O aluno de Letras inicia seu curso
universitário sem qualquer noção sobre conceitos inerentes ao aprendizado da escrita como,
por exemplo, as semelhanças e diferenças entre discurso oral e discurso escrito e o papel do
contexto no planejamento e seleção de ideias para a elaboração de um texto.
Este artigo possui dois objetivos principais. O primeiro é avaliar as atitudes e
expectativas do aluno de Letras da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro em relação
ao aprendizado da escrita em língua inglesa. Segundo, avaliar o progresso e a conscientização
do referido aluno durante o curso de redação acadêmica em inglês, particularmente sua
compreensão do processo de escrever com suas fases típicas.

2 ESCREVER É LER E INTERPRETAR

2.1 O texto e a comunicação escrita

Um texto pode ser definido de diversas maneiras, visto por diversos ângulos e
compreendido através de diversas perspectivas, mas essencialmente podemos defini-lo como
uma forma de comunicação. Essa definição é mais explorada a partir da perspectiva semiótica
social que define o texto como qualquer aplicação de língua viva dentro de um contexto, ou
seja, um texto feito de significados e não de palavras ou frases. O texto é uma linguagem que
é funcional, com um propósito, podendo ser chamado assim, de uma entidade semântica.
(cf. HALLIDAY; HASAN, 1989).
Também a partir de uma perspectiva semiótica, podemos dividir texto em duas
definições: texto como produto e texto como processo. (HALLIDAY; HASAN, 1989). O
texto como produto se trata de um resultado final que pode ser representado em termos
sistemáticos. Já o texto como processo pode ser entendido como um processo contínuo de
escolhas semânticas, um movimento de significados potenciais com um conjunto de escolhas
que preparam um ambiente propício para um futuro conjunto de escolhas. Esse movimento
também se caracteriza como um evento de interação e troca social de significados.
Portanto, a Linguística tem como grande desafio combinar essas duas concepções de
texto para relacionar ambos com a noção de sistema linguístico. Analisar o texto como
processo permite-nos produzir comentários a respeito do produto que revela algo de sua
dinâmica de construção como um processo, além de suas palavras e estruturas, de forma que

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isso se relacione com a linguagem por completo. Já analisar o texto como objeto permite-
nos analisar uma produção à qual é atribuído determinado valor.

2.2 O discurso escrito e a conscientização do estudante

Para começar a entender algumas características do texto escrito, em geral, e do texto


acadêmico, em particular, é preciso primeiro refletir sobre semelhanças e diferenças
(principalmente as últimas) entre a linguagem oral e a linguagem escrita. Embora os
elementos distintivos abaixo possam ser considerados mais como senso comum do que
resultados de pesquisas empíricas com qualidade e quantidade de textos orais e escritos,
parece-nos que as informações são suficientes para nortear estudos sobre a escrita acadêmica.
Em geral, a linguagem oral é considerada como espontânea e dinâmica no sentido de
evoluir de acordo com as nuances da conversação em curso. Um simples franzir de testa do
interlocutor, por exemplo, pode provocar importantes modificações tanto no tom do
discurso quanto no próprio conteúdo transmitido pela elocução. A linguagem escrita é
percebida como planejada e organizada, uma vez que o redator dispõe de tempo para pensar
sobre o que escrever e sobre como ordenar suas ideias.
A tabela a seguir propõe breve resumo de diferenças entre discurso oral e discurso
escrito. Koch (2002, 2009) aponta alguns aspectos organizacionais e sintáticos considerados
como características distintivas entre o discurso oral e o discurso escrito.

Tabela 1 – Oposição fala x escrita


Fala Escrita
Contextualizada Descontextualizada
Implícita Explícita
Redundante Condensada
Não planejada Planejada
Predominância do “modus pragmático” Predominância do “modus sintático”
Fragmentada / Incompleta Não fragmentada / Completa
Pouca densidade informacional Densidade informacional
Predominância de frases curtas, simples ou Predominância de frases complexas com
coordenadas subordinação abundante
Pequena frequência de passivas Emprego frequente de passivas

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Poucas nominalizações Abundância de nominalizações
Menor densidade lexical Maior densidade lexical

Fonte: Adaptada de KOCH, Ingedore. A inter-ação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 2002.

No que se refere às características gerais dos dois tipos de discurso, as oposições


planejado x não planejado; contextualizada x descontextualizada; implícita x explícita revela
o aspecto dinâmico e aberto do discurso oral que evolui conforme a interação imediata com
o interlocutor evolui. Os falantes negociam seus significados e as formas através das quais
esses significados devem ser veiculados de acordo com o tipo de relação que vai se revelando
no exato momento em que a interação acontece.
Em relação à organização em geral, a sensação de completude salta aos olhos. A fala
não possui compromisso exclusivo com a informação. Muitas vezes, os interagentes entram
em conversação simplesmente para a socialização. No entanto, a escrita requer compromisso
maior em informar e apresentar organização típica do que ficou conhecido como começo, meio
e fim.
Finalmente, as diferenças entre as características inerentes à natureza da fala e da
escrita são realizadas, linguisticamente, no texto propriamente dito. Assim, a fala apresenta
frases curtas e frequentemente interrompidas pela hesitação e mudança de foco. Além disso,
o vocabulário é mais coloquial e característico do falar de determinado grupo social em que
os interagentes subsistem. A escrita apresenta orações combinadas entre si, com vocabulário
mais preciso para nomear os objetos e conceitos abordados pelo texto.
Por fim, o léxico merece discussão em separado. A chamada densidade lexical (cf.
BURNS; GOLLIN; JOYCE, 1996) é a razão entre as chamadas palavras de conteúdo ou que
carregam a significação (substantivos, verbos, adjetivos e advérbios) e o número de orações
de um texto. Quanto maior a densidade, mais independente do contexto será o enunciado e,
por fim, mais informativo – características atribuídas ao texto escrito.
Outro critério apontado pelas autoras (BURNS; GOLLIN; JOYCE, 1996) para
ajudar na distinção entre discurso oral e discurso escrito é o distanciamento entre o texto (ou
elocução) e o objeto (ou evento, ou fato) ao qual ele se refere. Quando há simultaneidade
entre texto e objeto, existe grande espontaneidade do discurso e pouco ou nenhum tempo
para reflexão sobre como ordenar as ideias – configurando discurso oral. Na medida em que
nos distanciamos na linha do tempo e também fisicamente do objeto que abordamos no

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texto, mais espaço há para que pensemos em como materializar nossas ideias. Dessa forma,
o texto adquire mais características do discurso escrito.
Tais diferenças atribuídas ao discurso escrito em contraste com o discurso oral devem
ser abordadas em um curso de redação acadêmica, por exemplo. Em geral, conforme a
discussão na seção 1 deste artigo, os alunos não são conscientizados sobre as características
distintivas do discurso escrito. Ao contrário, eles são chamados a produzirem textos escritos
de maneira instantânea, muitas vezes em sala de aula, com um tema proposto pelo professor
e sem qualquer atividade ou material disponível para consulta e discussão. Ao chegar à
universidade, mesmo no curso de Letras, os estudantes não compreendem que é preciso
engajar em um processo para escrever, que se inicia na delimitação do tema, pesquisa sobre
ideias a serem aproveitadas, planejamento de questões sobre o estilo e a organização de ideias,
redação, revisão e editoração. O desenvolvimento dessa consciência pode ser o primeiro
passo para a inserção do estudante na comunidade acadêmica.
O capítulo a seguir trata da investigação do processo de conscientização de alunos
iniciantes do curso de Letras da UFRRJ.

3 O PROCESSO EM ANÁLISE: a conscientização para o discurso escrito

Para fins de pesquisa, aulas do curso de Escrita em Língua Inglesa, correspondente


ao 2º período da grade curricular do curso de Letras foram acompanhadas. Um questionário
foi aplicado poucas semanas após o início das aulas (ver apêndice 1). O objetivo foi investigar
as atitudes de alunos do curso de Letras/Inglês em iniciação no processo de escrever. Os
resultados obtidos encontram-se resumidos nas tabelas a seguir.
Embora apenas 12 alunos tenham respondido o questionário, essa questão
possibilitava a assinalação de mais de uma resposta à mesma pergunta. Assim, vemos um
número superior no total de respostas. Os resultados indicam que para os alunos há técnicas
a serem aprendidas para que os gêneros acadêmicos sejam dominados. Os alunos esperam
conteúdos prontos em forma de receita que, se seguida à risca, garantirá o sucesso na escrita
acadêmica. Enfim, o aluno recém-chegado ao curso de Letras na UFRRJ parece não saber
que o curso envolve o processo de planejamento, redação, revisão e editoração.

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Tabela 1 – conhecimento prévio sobre a escrita
NÚMERO DE
RESULTADOS
RESPOSTAS
Aperfeiçoamento da escrita acadêmica (gêneros 6
acadêmicos)
Aperfeiçoamento da língua (gramática + vocabulário) 2
Técnicas de redação 7
Não respondidos (sem especificação) 3
Total 18

Tabela 2 – Confronto entre conhecimento prévio e o processo em andamento


NÚMERO DE
RESULTADOS
RESPOSTAS
A escrita é um processo e prática contínua 4
Técnicas novas de redação 4
Não respondidos (sem especificação) 4
Total 12

Em primeiro lugar, os alunos reconhecem que a escrita vai além do produto final
pronto e acabado. É através da prática consciente e orientada por observação e revisão do
próprio processo que o redator se aprimora. O que os respondentes chamam de técnicas
novas de redação se referem às atividades realizadas em sala de aula, particularmente o
planejamento e organização das ideias em forma de texto. Outros responderam sobre o que
achavam das aulas, i.e., se estavam gostando ou se achavam difícil e, portanto, foram
caracterizados com ‘sem especificação’ na tabela acima.

Tabela 3 – Relação com o professor

RESULTADOS NÚMERO DE RESPOSTAS


Interação positiva com o professor 12
Total 12

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Tabela 4 – Sensação de progresso na escrita

RESULTADOS NÚMERO DE RESPOSTAS


Progresso no próprio processo de escrever 5
Dificuldade no próprio processo de escrever 3
Não respondidos (sem especificação) 4
Total 12

As duas tabelas acima servem para analisar a ‘interação’ dos alunos com as
orientações do professor e se esta interfere no progresso do aprendizado da escrita. Apesar
de os respondentes serem unânimes em afirmar que as explicações, atitudes e correções do
professor correspondem às expectativas, os resultados obtidos na tabela 4 parecem indicar
um equilíbrio entre aqueles que se percebem progredindo e os outros que não conseguem
ou não percebem o próprio progresso. Os assinalados como não respondidos ou sem
especificação se referem a respostas pouco elucidativas como: “boa, mas preciso melhorar”;
“média”; “estão sendo bem ministrados”. Esses alunos parecem não compreender que a
pergunta exigia respostas mais elaboradas.

Tabela 5 – Relação das aulas com o progresso acadêmico

RESULTADOS NÚMERO DE RESPOSTAS


Planejamento e organização do texto 4
Clareza e concisão 2
Não respondidos (sem especificação) 6
Total 12

Novamente, a necessidade de aprender a ‘pensar’ o texto como um todo parece estar


aos poucos se incorporando à prática de alguns dos alunos. As respostas apontam para a
estrutura e organização como elementos nunca antes percebidos, uma vez que a escrita era
vista como um produto final e acabado. De maneira semelhante, poucos alunos
consideravam o texto bem escrito quando o mesmo estava claro para o próprio autor. Em
outras palavras, a questão do público-alvo era completamente desconsiderada. O grande
número de respostas sem especificação se refere àquelas respostas em tom vago como:
“podem me ajudar a aprimorar a escrita” ou “me ajudam tanto na escrita em inglês como em
português”.

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Em resumo, o aluno recém-chegado ao curso de Letras, Licenciatura em Língua
Inglesa, na UFRRJ demonstra ausência de conhecimento e práticas prévios sobre o processo
de composição escrita. A atividade da escrita nas escolas de ensino secundário parece ser
considerada como um produto, ao invés de um processo criativo e de ordenação e
organização da criatividade para a expressão em forma de texto.
A primeira consequência observada no início do trabalho com a escrita,
particularmente a escrita em língua inglesa, é o estranhamento por parte do estudante do
processo de geração de ideias, incluindo a pesquisa em diversas fontes, da interação com os
colegas para o crescimento mútuo, já que a escrita em nossas escolas é muitas vezes encarada
sob a forma de competição.
Além do processo de gerar ideias, os alunos pesquisados demonstraram
desconhecimento do processo e da necessidade de planejamento e ordenamento dessas ideias
a fim de adequação ao gênero, ao propósito comunicativo e ao efeito desejado no público-
alvo.
A próxima seção aborda a aplicabilidade deste estudo para o ensino de escrita
acadêmica em cursos universitários, particularmente, a língua inglesa.

4 CONCLUSÃO

Conforme a discussão no capítulo 2, as respostas ao questionário indicam o


desconhecimento de características inerentes ao discurso escrito e a adoção de características
da oralidade no texto escrito. Por ser considerado um produto final e não um processo, o
texto adquire a espontaneidade e a consequente ‘irregularidade’ da fala. O trabalho do
professor da disciplina ‘Escrita Acadêmica’ adquire características bem peculiares além da
proposição do tema, acompanhamento do processo de redação e correção do ‘produto’ final.
O primeiro aspecto dessa característica distintiva do trabalho do professor da
disciplina é o trabalho de conscientização. O professor necessita auxiliar o aluno a perceber
as principais diferenças entre o discurso oral e o discurso escrito, conforme discussão na
seção 2. O aluno tende a considerar o modo de entrega ou materialização do discurso como
o traço discursivo em si, i.e., o fato de o discurso estar sendo ‘falado’ garante a oralidade do
mesmo. A mesma ideia se aplica ao fato de o discurso ser entregue em formato de texto
escrito em uma folha de papel ou tela de algum aparelho eletrônico. O simples contraste
entre textos escritos, que foram transcrições de conversas gravadas, pode ajudar o aluno a

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perceber a ‘oralidade’ dentro de um texto que está sendo lido e não ouvido. Da mesma forma,
ouvir um texto, um trecho de um discurso político, por exemplo, que fora previamente
escrito antes de ser lido em voz alta para uma plateia poderá elucidar a característica de
discurso escrito e planejado antes de sua entrega através da fala.
Além da conscientização, o professor necessita empreender esforços para que os
alunos percebam a importância do planejamento e da revisão de ideias, conceitos e objetivos
antes, durante e após o processo de redação. Muitas vezes, a troca de rascunhos com o colega
e o professor serve para que o aluno compreenda seu texto sob o ponto de vista de uma
audiência, uma ou mais visões diferentes da sua e que, por conseguinte, pode contribuir com
opiniões e sugestões para que este mesmo aluno reflita e revise o seu texto mesmo antes de
o mesmo estar terminado.
Em resumo, os papéis de motivador e conselheiro do professor requerem uma
preparação bem específica do mesmo que, moldado pelos anos de pesquisa e pela experiência
em sala de aula, muito tem a contribuir para o professor e pesquisador iniciante em seu meio
acadêmico e profissional.

REFERÊNCIAS
BURNS, A.; GOLLIN, S.; JOYCE, H. I See What you Mean. Using Spoken Discourse in the
Classroom: a handbook for teachers. Macquaire University, 1996.
HALLIDAY, M.A.K. & HASAN, R. Language, context, and text: Aspects of language in a
social-semiotic perspective. Victoria: Deakin University Press, 1989.
KOCH, I. Ler e Escrever: estratégias de produção textual. São Paulo: Contexto, 2009.
______. A inter-ação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 2002.

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Um estudo da relação entre referenciação e gênero textual

Wagner Alexandre dos Santos Costa1

RESUMO
Nos estudos sobre Referenciação, o termo “objeto de discurso” remete a uma ocorrência textual do
enunciado que adquire significação no acontecer próprio da atividade discursiva. A aplicação dessa noção
vem sofrendo ajustes. Antes se limitava apenas a formas da língua (palavras, expressões), já atualmente
abarca semioses não verbais e se insere em uma perspectiva cognitivo-discursiva de referenciação,
segundo a qual esta atividade não se limita à superfície textual. O objetivo desta pesquisa é, pois,
problematizar os limites do termo “objeto de discurso”, discutindo a relação entre gênero textual e
referenciação. Nossa proposta é ampliar a sua abrangência formal, que deve recobrir unidades e categorias
esquemáticas dos gêneros textuais no processo de referenciação. O quadro epistemológico que oferece
suporte ao estudo reúne teorias nas quais a linguagem é contemplada como uma atividade sociocognitiva
e interacional, realizando os sujeitos procedimentos inferenciais e mutuamente colaborativos. A noção
de categorias textuais é pensada a partir das superestruturas esquemáticas (VAN DIJK, 1980, 1990, 1996)
e seu estudo é desenvolvido com base nas teorias sobre Referenciação. (MONDADA e DUBOIS,
2003[1995]).

Palavras-chave: Referenciação. Objetos de discurso. Categorias textuais.

A study of the relationship between referencing and textual genre

ABSTRACT
In the studies on Referencing, the term “object of discourse” refers to a textual occurrence of the
utterance that acquires meaning in the proper happening of the discursive activity. The application of this
notion has been undergoing adjustments. Before it was limited only to forms of language (words,
expressions), it already encompasses nonverbal semiosis and is inserted in a cognitive-discursive
perspective of reference, according to which this activity is not limited to the textual surface. The
objective of this research is, therefore, to problematize the limits of the term “object of discourse”,

1 É Doutor em Estudos da Linguagem (UFF/2013), mestre em Língua Portuguesa (UFF/2007), especialista em


Língua Portuguesa (UFF/2005) e graduado em Letras (UNESA/2003). Atualmente é professor efetivo do Instituto
de Ciências Humanas e Sociais/ Departamento de Letras e Comunicação (ICHS/DLC) da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), onde leciona nos cursos de graduação e no Mestrado profissional em Letras
(PROFLETRAS) e da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (PCRJ). Atua, ainda, como coordenador do subprojeto
Letras no Programa de Iniciação à Docência (CAPES-PIBID), acompanhando licenciandos da UFRRJ em escolas
do município de Seropédica-RJ. Seu interesse e sua experiência acadêmico-profissional concentram-se nos seguintes
temas: Língua Portuguesa e Ensino de língua portuguesa; Linguística Textual e Referenciação; e Análise do Discurso
(na vertente Semiolinguística). É autor do livro O contrato de comunicação no jornalismo popular: um foco na
categoria título e pesquisador dos seguintes grupos de pesquisa: INTEGRA (Interação, cognição e gramática), da
UFF, e ELMEP (Estudos Linguísticos, Multiletramentos e Ensino de português), da UFRRJ. Contato:
wagnercosta.prof@gmail.com.
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discussing the relation between textual genre and reference. Our proposal is to extend its formal scope,
which should cover schematic units and categories of textual genres in the referral process. The
epistemological framework that supports the study brings together theories in which language is
contemplated as a socio cognitive and interactional activity, the subjects performing inferential and
mutually collaborative procedures. The notion of textual categories is thought from the schematic
superstructures (VAN DIJK, 1980, 1990, 1996) and their study is developed based on the theories on
Referencing. (MONDADA and DUBOIS, 2003 [1995]).

Keywords: Referencing. Speech objects. Textual categories.

1 INTRODUÇÃO

Na base da atividade discursiva, relacionam-se dois processos que não se separam


rigorosamente: o de referenciação, que corresponde a colocar em cena no texto novas entidades
e referentes, e o de progressão referencial, relacionado ao processo de continuidade tópica do
texto, pois inclui a retomada de referentes já introduzidos ou que servem de base, por meio de
alguma associação, para introdução de novos referentes.
O termo “objeto de discurso”, nos estudos sobre Referenciação, remete a uma
ocorrência textual do enunciado que produz sentido no fio do discurso. A aplicação dessa noção
vem sofrendo ajustes. Antes se limitava apenas a formas da língua (palavras, expressões), já
atualmente abarca semioses não verbais e se insere em uma perspectiva, segundo a qual a
atividade de referenciação não se limita à superfície textual.
Neste estudo, objetiva-se empreender uma discussão que repense o estatuto dos objetos
de discurso e proponha a abrangência dessa noção sobre outros tipos de unidades/categorias
formais que compõem os gêneros textuais/discursivos.
A hipótese é a de que unidades textuais, como versos e estrofes de um poema e, ainda,
categorias esquemáticas, como títulos, entre outras, possam, no processo de referenciação, sofrer
recategorização e, assim, ser englobadas pelo termo “objeto de discurso”. Essa abordagem
teórico-metodológica permite, por exemplo, o tratamento de construções textuais não lineares
pela ótica da referenciação. Isto representa a ampliação das possibilidades analíticas de certos
fenômenos que até então requerem o uso de teorias auxiliares.

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O aporte teórico que embasa tal visão privilegia uma concepção cognitivo-discursiva de
referenciação, conforme defendem Mondada e Dubois (2003[1995]), Koch e Elias (2008),
Marcuschi (2004) e Cavalcante (2011).
Este texto apresenta inicialmente os pressupostos teóricos adotados, relacionando as
noções de referenciação (MONDADA, 2003[1995]) e categorias esquemáticas (VAN DIJK,
1980, 1990, 1996). Em seguida, são realizadas duas análises que visam sustentar a posição que
defendemos. Por fim, seguem-se a conclusão e as referências.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 Referenciação e progressão textual

Na Antiguidade, filósofos como Platão e Aristóteles já refletiam sobre linguagem e


referência distinguindo conceitos de “expressão”, “conteúdo” e “referente”. Segundo tal visão,
o referente correspondia especularmente à “coisa” extralinguística e a referência constituía a
relação entre linguagem e exterioridade. Ou seja, os registros desses primeiros pensamentos
diziam que o referente seria o próprio objeto da realidade, designado pelas expressões
linguísticas. Assim, a língua representaria perfeita e adequadamente o mundo, que estaria pronto,
de tal modo que ela (a língua) refletia o mundo, representava-o fidedignamente, independente
dos sujeitos.
Atualmente, não se entende mais esta relação de maneira estática, como se a língua fosse
um instrumento simplesmente acabado e pronto para representar o mundo de modo especular.
Essa alteração de enfoque é defendida por Marcuschi (2004, p. 263) quando propõe “mudar a
forma de contemplar a questão saindo da ideia de relação para a de ação”. (grifo do autor).
São, pois, conforme esta visão, muito mais complexas as relações entre língua e mundo.
De acordo com ela “os sujeitos constroem, através de práticas discursivas e cognitivas social e
culturalmente situadas, versões públicas do mundo”. (MONDADA; DUBOIS, 2003[1995], p.
17). Ou seja, afirma-se que as categorias e os objetos de discurso pelos quais os usuários
compreendem o mundo se desenvolvem e se modificam conforme o contexto. Tais objetos não
são preexistentes, nem são já dados, convencionais ou fixos.

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Mondada (2005, p. 11), ao tratar da questão, propõe que se adote o termo
“referenciação” em vez de “referência” e, em decorrência, propõe também a substituição do
termo “referente” pelo termo que melhor atende a tal proposta, “objeto de discurso”. Assim diz
a autora:

A questão da referência [...] foi historicamente posta como um problema de


representação do mundo [...]. A questão da referenciação opera um deslizamento em
relação a este primeiro quadro: ela não privilegia a relação entre as palavras e as coisas,
mas a relação intersubjetiva e social no seio da qual as versões do mundo são
publicamente elaboradas [...].
No interior dessas operações de referenciação, os interlocutores elaboram objetos de
discurso, i.e., entidades que não são concebidas como expressões referenciais em
relação especular com objetos do mundo ou com sua representação cognitiva, mas
entidades que são interativamente e discursivamente produzidas pelos participantes
no fio de sua enunciação. [...] Dito de outra forma, o objeto de discurso não remete a
uma verbalização de um objeto autônomo e externo às práticas linguageiras; ele não é
um referente que teria sido codificado linguisticamente. (MONDADA, 2005, p. 11,
grifo nosso).

A passagem da referência para a referenciação, como explicam Mondada & Dubois


(2003[1995], p. 17), tem como pressuposto não apenas a visão do sujeito como um ser
“encarnado” (em oposição a uma concepção abstrata e ideal de sujeito), mas também a de um
sujeito que interage sociocognitivamente com o mundo.
Os objetos de discurso, entidades dinâmicas situadas contextualmente (MARCUSCHI,
2007), são expressos por várias possibilidades estruturais, desde algumas mais simples, como os
pronomes, até outras mais elaboradas, como as expressões nominais. (Cf. KOCH, 2002).
Com base nessa concepção textual-discursiva de referenciação, Apothéloz e Reichler-
Béguelin (1995), definem o processo de recategorização como uma atividade de retomada de
uma expressão linguística já presente no texto, sobre a qual o falante opera uma reconstrução de
sentidos, de acordo com suas necessidades discursivas.
Posteriormente expandiu-se a visão sobre a recategorização. O entendimento de que os
processos de referenciação podem ocorrer com base em ativação mental de informações, sem
menção propriamente dita no texto, levou a uma concepção cognitivo-discursiva dessa atividade
e, por conseguinte, ampliou o leque de recursos analíticos. De acordo com essa visão, o objeto
de discurso pode emergir em uma interação, sem necessariamente se explicitar por uma
expressão referencial. (CAVALCANTE, 2011).

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Como nosso propósito neste estudo é estender a abrangência formal dos objetos de
discurso aos limites de unidades e categorias textuais, apresentamos, a seguir, o conceito de
superestrutura esquemática. (VAN DIJK, 1980, 1990, 1996).

2.2 As categorias/unidades textuais sob a ótica dos processos de referenciação

O significado global de um texto, como aponta Van Dijk (1990, p. 77), possui mais do
que sua organização semântica, pois evoca também uma relação com as (possíveis) formas
globais do texto nas quais o tema pode ser inserido e organizado. Tais esquemas, tratados
teoricamente como superestruturas (VAN DIJK, 1980; 1990, 1996), são formados por categorias
hierarquicamente ordenadas, mais ou menos fixas, que variam de acordo com o texto. São
também funcionais, pois desempenham “papéis” em função do contexto. Além disso, podem
especificar-se por serem convencionais, portanto variáveis conforme cada cultura, o que no
processo de interpretação os possibilita constituírem-se em importantes ferramentas de leitura,
agindo o leitor/ouvinte de modo consciente ou intuitivo.
Como destaca Van Dijk (1990, p. 83), tal estrutura é descrita em termos de “categoria”
e de “regras de formação”. Assim, entre as categorias de um conto figuram, por exemplo, a
introdução, a complicação, o desfecho etc. Já as regras determinam a ordem em que as categorias
aparecem. Ou seja, em um esquema linear de um conto, as categorias citadas aparecem na ordem
acima apresentadas. Já na notícia, o título invariavelmente precede o corpo do texto; em um
meme, gênero de leitura não necessariamente linear, essas relações, por outro lado, se
flexibilizam.
O que denominamos “categoria” textual compreende o limite do que Van Dijk (1990)
estabelece para as categorias de uma superestrutura esquemática, em uma notícia, por exemplo,
título, subtítulo (pré-textuais), lide, antecedentes, reações verbais etc. (textuais). No entanto, em
relação à organização básica do gênero poema, que pode comportar estrofes e versos, já não
podemos estabelecer tal correlação. Consideramos esses constituintes como “unidades”, não
categorias, tal como não consideraríamos um parágrafo ou uma linha em uma notícia também
uma categoria.

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Note-se que, se se trata de categoria ou unidade textual, para o propósito do estudo não
é o mais importante. O que pretendemos evidenciar é a possibilidade de um constituinte maior
do que o sintagma ser passível de recategorização.
Costa (2013 e 2016) empreendeu um estudo sobre títulos do jornalismo popular e
concluiu por uma abordagem em que a categoria título devesse ser pensada à luz dos processos
de referenciação. No estudo, o autor mostra que o título pode ser recategorizado na atividade
de leitura, sendo, dessa forma, também um objeto de discurso.
Já Cardoso (2015) estudou os processos de referenciação em paródias de Marcelo Adnet.
A Autora (p. 149), ao analisar o Rap do PM (MC Ratão), considera a unidade verso no processo
de recategorização na atividade de (re)construção de sentidos na paródia:

Texto-fonte
Paródia
 objeto de discurso a ser ativado pelo
 objeto de discurso recategorizado
leitor/ouvinte

Quer rodar, quer rodar, PM vai te Quer dançar, quer dançar, o tigrão vai te
ensinar ensinar
(Rap do PM - Mc Ratão - Marcelo Adnet) (Cerol na mão - Bonde do Tigrão)

(Adaptado de Cardoso, 2015, p. 149).

Na análise de Cardoso (p. 153), todo o enunciado acima é contornado de um tom irônico
em relação ao ato de “prender”, comumente referenciado por “rodar”. A recategorização do
verso é um recurso empregado por Adnet na construção do enunciador da paródia, o Ratão,
estereótipo de um tipo de policial militar notadamente corrupto.
Estabelecida a relação entre referenciação e unidade/categoria textual, procedemos, na
sequência, a duas análises que ilustram nossa proposta.

3 CATEGORIAS E UNIDADES TEXTUAIS COMO OBJETOS DE DISCURSO

3.1 As unidades estrofe e verso no gênero poema

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São diversos os fatores de coerência atrelados aos processos de referenciação. O recurso
da intertextualidade, pelo viés da paródia ou não, por exemplo, pode oferecer evidências de casos
de recategorização em que o processo de referenciação ultrapassa o nível da expressão nominal.
O poema seguinte, paródia da Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, foi criado por um
aluno da rede pública escolar da Cidade do Rio de Janeiro. Sua autoria não teve divulgação
permitida, mas o texto obteve muitos compartilhamentos pelas redes sociais.

Texto 1- Paródia da Canção do Exílio.

Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/minha-terra-tem-horrores-versao de-poema-feita-


por-alunos-do-rio-causa-comocao-nas-redes-sociais.ghtml. Acesso em: 28 de agosto de 2017.

Veja-se que o autor desconstrói a visão nacionalista de sua terra natal por meio da
recategorização da referência feita por Gonçalves Dias. Isto é feito tanto na unidade textual
estrofe, quanto na unidade verso.

(1)

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Minha terra é a Penha.
O medo mora aqui.
Todo dia chega a notícia.
Que morreu mais um ali.

Em (1), “terra”, em vez de ter palmeiras, “é a Penha”. Nela não mora o “sabiá”, mas o
“medo”. Tais procedimentos compõem a recategorização de terra, que não se dá localmente em
uma palavra ou expressão, mas se dilui no todo da unidade textual. A estrofe, então, é
recategorizada. O próprio verso “Minha terra é a Penha” constitui em si uma recategorização
operada no limite da unidade verso, como ocorre no primeiro verso da quarta estrofe:

(2) Minha terra tem horrores

Nela se dá uma recategorização que constrói, no conjunto com outras realizadas, o


sentido de crítica, decorrente da visão negativa da terra natal do autor. Opõe-se “primores” a
“horrores”.
Veja-se também, no poema, a opção pela não recategorização, outro recurso
expressivo empregado pelo autor para estabelecer um elo de significação mais nítido entre
o sentido do texto-fonte e o sentido reconstruído na paródia. Evidentemente, não há entre
os dois versos (o de Gonçalves Dias e o do Autor anônimo) correferenciação, ou referência
ao mesmo conteúdo, por pelo menos duas razões: o eu do poema na paródia não é mais o
mesmo do texto parodiado e a referência à morte na paródia é especificamente decorrente
da violência apresentada no seu contexto.
Por fim, atesta-se o mesmo recurso expressivo na opção pela não recategorização
no último verso do poema, no qual “Onde canta o sabiá” representa o local almejado nas
referências construídas pelos dois autores. Então as unidades estrofe e verso podem ser
submetidas ao processo da recategorização em que a referenciação não se aplique a um item
lexical ou a uma expressão nominal somente.

3.2 A não linearidade em rótulos e memes

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Cavalcante (2005, p. 132) admite a possibilidade de o processo de recategorização dar-se
de modo ainda mais cognitivamente situado:

A menor ou maior desestabilização da categoria em mudança é o próprio traço,


explícito ou implícito, que define a recategorização de um referente, quer tenha ele
sido já introduzido no discurso para ser transformado, quer não tenha sido e se
recategorize apenas mentalmente, no próprio momento em que o anafórico
remete indiretamente à sua âncora. (CAVALCANTE, 2005, p. 132, grifo nosso).

A autora certamente se referia a casos de anáfora indireta, em que o referente é


cognitivamente construído a partir de uma ancoragem textual. Analogamente, as “embalagens
sinceras”, do artista Fabrício Fajardo, são também assim elaboradas, sem menção explícita ao
referente, que pode ser ativado por meio de elementos verbo-visuais da imagem e ser
recategorizado apenas mentalmente:

Texto 2 - Embalagens sinceras de Fabrício Fajardo.

Disponível em: http://cargocollective.com/fabriciofajardo/Embalagens-sinceras. Acesso em: 20 de


setembro de 2017.

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Os referentes Coca-Cola, Fanta e Nescau não foram mencionados, mas, recuperáveis
pelas formas e cores, além do grafismo da letra, podem ser inferidos pelo interlocutor que
contempla a arte. Os objetos de discurso Corante, Açúcar e Açúcar 2.0 só produzem sentido no
processo de recategorização se ativado mentalmente o objeto de discurso anaforizado.
Memes também nos permitem refletir sobre a posição teórica que assumimos. Esse
gênero textual é formado basicamente por duas categorias textuais, às quais denomino réplica (o
elemento que se repete em um meme, o replicável, e que adquire diferentes sentidos, conforme
o seu contexto de ocorrência) e contextualizador (um texto verbal que se sobrepõe à imagem, ou
uma legenda acima dela, ou até mesmo outro elemento não verbal). O Meme é um gênero textual
que admite bastante variação nas semioses que formam as suas categorias textuais, podendo, por
exemplo, a categoria réplica ser constituída por vídeos, gifs, fotos etc.
Para citar um exemplo, o caso dos slides produzidos pelo Procurador da República
Deltan Dellagnol, que atua na operação Lava Jato, ilustra como a produção de memes acontece
e como os conteúdos são recategorizados.
Na imagem abaixo, temos a reprodução de um dos slides utilizados na defesa da tese do
procurador no curso do julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Não se trata de
um meme, mas de uma reprodução de imagem usada em uma sustentação oral.

Texto 3 – Slides de Deltan Dellagnol.

Imagem disponível em: http://veja.abril.com.br/brasil/site-permite-recriar-power-point-do-lula/.


Acesso em: 28 de agosto de 2017.

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Devido à grande repercussão negativa (para um grupo que se opunha à sua
argumentação) acerca da consistência dos argumentos desenvolvidos a partir do slide, vários
memes criados por internautas passaram a ironizar o fato, que se tornou a origem para as
produções que se deram na sequência daquele acontecimento discursivo.
Segue-se uma dessas ocorrências, criadas em um gerador de memes, em que um dos
possíveis sentidos, expresso pela repetição do nome Lula, pode ser o conteúdo implícito de que
toda a corrupção na política, na visão do procurador, estaria vinculada ao ex-presidente.

Texto 4 – Meme slides de Daltan Dellagnol.

Imagem disponível em: http://www.tnh1.com.br/noticias/noticias-detalhe/brasil/power-point-do-mpf-


contra-lula-vira-motivo-de-piadas-na internet/?cHash=ff50fa8802f6db4cfd3ffad4622e01dd. Acesso em: 30 de
agosto de 2017.

Nesse caso, temos, na categoria textual réplica, a imagem de Dellagnol em pé na


apresentação e a imagem do modelo de slide utilizado. Já a categoria textual contextualizador é
a alteração do conteúdo verbal. A recategorização, importante procedimento argumentativo, é
operada pelo contextualizador (Lula, Lula, Lula...), uma vez que é esta a categoria responsável
por reconstruir o sentido anterior.
Vejam-se, a seguir, memes que remetem ao episódio conhecido por Temer-Häagen-
Dazs. Sua origem foi a publicação de uma lista de compras para abastecimento do avião
presidencial em que eram solicitadas 500 unidades do caro sorvete da marca Häagen-Dazs.
O elemento réplica são duas imagens capturadas do vídeo da música Hotline Bling, do
cantor Drake, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uxpDa-c-4Mc. Este meme
137
SEDA - Revista de Letras da Rural/RJ. Seropédica/RJ, v. 2, n. 5, mai./set., 2017, p. 127-141.
é replicado em situações que opõem dois elementos, atribuindo valor negativo a um e positivo
a outro. Veja-se:

Texto 5 – Meme Drake.

Imagem disponível em: https://www.pinterest.pt/pin/399553798173908533/. Acesso em: 03 de


setembro de 2017.

Temos já aí exemplo de uma operação discursiva de referenciação em que não estamos


diante de mera expressão nominal, nem apenas de um signo não verbal tomado apenas como
uma unidade local de um enunciado. Trata-se de um caso em que a operação discursiva se
desdobra sobre uma categoria esquemática/ textual, no termo aqui adotado.
Os dois memes que se seguem apresentam a mesma configuração semiótica para a
categoria réplica, com uso inclusive do mesmo texto-base: uma montagem do corpo do cantor
Drake com o rosto do presidente Michel Temer. A categoria contextualizador, responsável pela
atualização do sentido, no texto 6, concentra a ideia da crítica no valor do sorvete preferido pelo
presidente, ao opor o popular picolé Chica Bom ao elitizado sorvete Häagen-Dazs:

Texto 6 – Meme Temer/Häagen-Dazs.

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SEDA - Revista de Letras da Rural/RJ. Seropédica/RJ, v. 2, n. 5, mai./set., 2017, p. 127-141.
Imagem disponíveis em http://www.museudememes.com.br/sermons/michel-temer-e-haagen-dazs/.
Acesso em 31 de agosto de 2017.

No texto 7, observa-se um meme em que a crítica se baseia na oposição entre saúde e


educação, por um lado, e o sorvete Häagen-Dazs, por outro, mobilizando sentidos que também
opõem, por exemplo, luxo a pobreza; honestidade a corrupção, e público a privado. A
(re)construção de sentidos, como se atesta, opera-se no fio do discurso, jamais é dada anterior
ao ato de comunicação.
Texto 7 – Meme Temer/Häagen-Dazs (b).

Imagem disponíveis em: http://www.museudememes.com.br/sermons/michel-temer-e-haagen-dazs/.


Acesso em 31 de agosto de 2017.

Nos memes, necessariamente, a categoria réplica requer um contextualizador, sem o qual


o processo de (re)construção de sentidos não se torna contingenciado, situado. A categoria
réplica pode, portanto, ser revisada pela ótica dos processos de referenciação, alçada ao status
de objeto de discurso. A referenciação passa a constituir, portanto, um fator de coerência a ser
mobilizado na leitura.
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SEDA - Revista de Letras da Rural/RJ. Seropédica/RJ, v. 2, n. 5, mai./set., 2017, p. 127-141.
4 CONCLUSÃO

Neste trabalho, defendemos que uma perspectiva cognitivo-discursiva de tratamento dos


processos de referenciação nos permite abordar unidades e categorias textuais como objetos de
discurso. De acordo com tal visão, o processo de recategorização, que instaura novo/s sentido/s
no texto, pode acontecer quando parodiamos um texto. Pode acontecer, ainda, quando
procedemos à leitura de um título, orientados por nossas hipóteses de leitura ou quando
reconstruímos sentidos propostos em gêneros textuais como o meme, por meio da ativação
mental de conteúdos que o texto reconstrói.
O benefício metodológico dessa abordagem consiste em se poder analisar operações
discursivas tendo-se como ancoragem textual indicadores de outra natureza semiótica, como
aqueles vinculados às funções esquemáticas textuais. Além disso, permite tratar ocorrências não
lineares de organização textual pela ótica da referenciação, o que amplia os recursos analíticos
para o tratamento de ocorrências textuais cada vez mais complexas.
Por essas razões, concebemos as relações referenciais estabelecidas também pelas
categorias/unidades textuais como não óbvias, não dadas aprioristicamente. Diferente disto,
consideramos serem construídas na relação entre autor, leitor, texto e contexto. Então, de acordo
com esse entendimento, rótulos de uma embalagem, categorias esquemáticas dos memes, títulos
de uma notícia e versos/estrofes de um poema podem, por exemplo, constituir-se como objetos
de discurso. Quer-se, com isso, chamar a atenção para as ligações entre referenciação, gênero e
as categorias/unidades textuais que os compõem.

REFERÊNCIAS
APOTHÉLOZ, D; REICHLER-BÉGUELIN, M. J. Construction de la référence et stratégies
de désignation. In: BERRENDONNER & REICHLER-BÉGUELIN, M-J. (eds.). Du sintagme
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CARDOSO, Gabriela de Lourdes Porfírio. Sátira na paródia e no pastiche: análise linguístico-
discursiva de textos humorísticos de autoria de Marcelo Adnet. 2015. 213f. Dissertação
(Mestrado em Estudos da Linguagem). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2015.

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COSTA, W. A. Do título ao texto. Do texto ao título: o processo de estabilização da referência em
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141
SEDA - Revista de Letras da Rural/RJ. Seropédica/RJ, v. 2, n. 5, mai./set., 2017, p. 127-141.
Os desafios e as novas travessias da Linguística Aplicada no contexto
brasileiro da Cultura Digital
The challenges and new crossings of Applied Linguistics in the brazilian context of
Digital Culture

Francisco Jeimes De Oliveira Paiva 1

BUZATO, Marcelo El Khouri. (Org.). Cultura Digital e Linguística Aplicada: Travessias em


linguagem, tecnologia e sociedade. Campinas/São Paulo: Pontes Editores, 2016. 207p.

As práticas (multi)letradas digitais na contemporaneidade vem se configurando a


partir de vários fenômenos de linguagem, informação e tecnologização, impulsionados por
uma série de relações entre a linguagem, as tecnologias e o ensino/aprendizagem construídos
por diversos sujeitos, sobretudo no contexto escolar, em que o trabalho professoral com a
leitura e a escrita requerem uma constante inclusão digital, tanto de alunos(as) quanto de
professores(as) no desenvolvimento dos letramentos digitais, cada vez mais necessárias à
educação linguística, à formação docente e aos processos de mediação tecnológica nas várias
instâncias sociais de interação, comunicação e informação humanas e não humanas.
Dessa forma, a obra Cultura Digital e Linguística Aplicada: Travessias em linguagem,
tecnologia e sociedade, organizada por Marcelo Buzato, que é Doutor em Linguística Aplicada
(Unicamp) e também professor da mesma Universidade, nos traz, numa perspectiva inter e
transdisciplinar, uma Linguística Aplicada (LA) engajada quanto aos “problemas trazidos
pelos processos de mundialização e hipertecnologização da vida quotidiana” (p. 8); uma
coletânea de textos escritos por jovens pesquisadores comprometidos por objetos de
pesquisa ligados à cultura digital, buscando perceber e compreender como funcionam as
tecnologias na sociedade atual; bem como permite visualizarmos quais são os impactos das
práticas digitais de linguagem ou letramentos digitais na vida desses sujeitos e/ou usuários
da língua.
A obra é estruturada em três partes, designadas aglomerados. No primeiro,
“Colaboração, Produtos, Processos”, abordam-se três textos que enfatizam a observação das
práticas digitais em contextos de enunciação bem específicos, a partir da produção
colaborativa em redes digitais que têm favorecido o surgimento de “novas” formas textuais

1Mestrando pelo Programa Interdisciplinar em História e Letras, da Universidade Estadual do Ceará. Mestre
em Teologia (2016). Especialista em Língua portuguesa e Gestão Escolar e Práticas Pedagógicas. Licenciado
em Letras pela Universidade Estadual do Ceará. Bacharelando em Administração Pública
Unilab/ICSA/UAB/CE. Professor efetivo de Língua Portuguesa e Literaturas da Seduc/CE.

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e/ou de aprendizagem”. (p. 11), culminando em inúmeras possibilidades de os indivíduos
aprenderem a educar-se tecnologicamente. No segundo, “Espaço, Identidade, Conexões”,
compõe-se de apenas dois textos que enaltecem os fenômenos e práticas de linguagem no
viés das tecnologias digitais, possibilitando uma melhor compreensão das novas
possibilidades de interações entre os sujeitos em ambientes digitais advindas da “globalização
digitalizada”. Por fim, no aglomerado “Estética, Ética, Cibernética”, são apresentados os dois
últimos estudos acerca de várias situações corriqueiras em que as relações e as atividades
discursivas entre o cultural e o computacional dos brasileiros tornaram-se produto social de
uma “computadorização da cultura” na era da globalização digital.
Os autores do primeiro aglomerado discutem, com muita destreza, aspectos
relacionados à mediação pedagógica, apropriação de tecnologias para a prática da
comunicação social, bem como a reflexão metodológica acerca de uma(s) concepção(ões) de
linguagem(ns) presente(s) nos textos digitais em interlocução com as práticas discursivas e
com o consumo de textos em diversas práticas e/ou atividades demandadas na era da cultura
digital. O texto de abertura “Mediação, interação, compreensão: fazendo a diferença entre
colaborar e cooperar”, da autora Débora Coser, salienta a comparação do funcionamento de
plataformas Busuu e Galanet na mediação tecnológica e pedagógica que objetivem numa
aprendizagem de línguas on-line em que os usuários trabalhem de forma colaborativa e
cooperativa, resultando na diversificação dos “modos de o aprendiz agir e aprender em
diferentes situações e/ou contextos de prática colaborativa online”. (p. 21).
Nesse contexto, a jovem pesquisadora demonstra como a participação colaborativa
é salutar, para que os sujeitos aprendam a lidar com interlocutores reais e conteúdos
significativos em línguas-alvo em determinadas comunidades virtuais mais estabilizadas. Por
isso, ela considera que

Nessas situações, cabe aos usuários/aprendizes não somente compreender a


língua-alvo ou desenvolver fluência nela, mas, mais concretamente, traçar
trajetórias individuais de aprendizagem por via do acionamento consciente de sua
capacidade agentiva (BUZATO, 2008; 2013), vinculado seus interesses
individuais aos objetivos coletivos”. (p. 19).

Alinhada a essa concepção de mediação, Coser ressalta que, nessas plataformas,


uma nova identidade dos aprendizes é constituída devido às conexões dos usuários com
novos elementos didáticos e institucionais, bem como pelo interesse em aprender a língua
do outro, além de percorrer caminhos da “translação gerenciados por coletivos híbridos,
sujeitos a movimentos de estabilização e desestabilização sucessivos”. (p. 25).

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A autora, por fim, enaltece a importância atual dessa mediação tecnológica na
cultura digital para o ensino de línguas, na tentativa de que os aprendizes possam estremar
as relações criadas entre pessoas com as mídias e seus conteúdos, fornecendo aos educadores
efetivas “pedagogias de aprendizagem colaborativa de línguas” para desenvolver atividades
cooperativas e participativas com “os usuários das novas mídias na cultura digital”. (p. 41).
Na esteira da prática de comunicação social, Nayara Barros, em “Curadoria Digital
como hibridização entre narrativa e banco de dados: apropriação pela mídia tradicional e
participação de outras vozes”, avalia a forma como um jornal O Estado de S. Paulo emprega a
curadora digital para abranger usuários de redes sociais na produção de um objeto digital,
denominado story, que é “um híbrido de notícia-repercussão apoiado na forma híbrida
narrativa-banco-de-dados”. (p. 12).
Dessa forma, surge no contexto da cultura digital um espaço de negociações em
que os papéis e as relações de poder entre jornalistas, leitores, anunciantes e concorrentes
devam possibilitar a apropriação tecnológica intermediada por operações curatoriais, dando
vozes a sujeitos antes excluídos dos ambientes digitais de produção e circulação de textos.
A despeito das inovações advindas da curadoria digital, a autora ressalta que
“estudar curadoria digital é estudar uma prática que integra o humano e não humano na
geração de uma memória que é, ao mesmo tempo, individual e coletiva”. (p. 46). Além do
mais, a story produzida na plataforma Storify pode ser considerada como “um agregado
multimodal em forma de texto, diagramado em coluna e publicado na plataforma”. (p. 46).
Nesse estudo, a perspectiva defendida pela autora nos faz entender a necessidade
de se apropriar dessas tecnologias que são produzidas e transformadas para fins específicos,
uma vez que são capazes de permitir o alastramento de diversos conhecimentos coletivos,
colaborativos e compartilhados com quem os produzem em relação a quem os manuseiam
em contextos reais de interação sociodiscursiva.
Enfim, é crucial as atividades de curadoria digital promovidas por jornalistas, ou
seja, por agências de letramentos que procuram, hoje, convergir com as mídias e com a
cultura digital na tentativa de produzir variados formatos textuais digitais estrategicamente
construídos pela hibridização de narrativas com propósitos de descentralizar cada vez mais
a produção e a distribuição de conteúdos multimidiáticos na internet.
Encerrando o primeiro aglomerado, Rafael Sachs propõe, metodologicamente,
propostas de análise acerca da concepção de linguagem que adota, sobretudo, diante de
textos multimodais digitais vistos como um processo de análise em escalas diferentes. Para

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isso, ao analisar mashups oriundos de páginas do Facebook durante as Jornadas de Junho, o
autor salienta que a “[...] multimodalidade amplia as possibilidades para esse tipo de análise”
do discurso digital não tido apenas como ferramenta para verificação em determinado
texto/evento, mas também como recurso “de olhar muito além dos eventos imediatos, quaisquer
que sejam, para realmente poder compreendê-los em sua complexidade”. (p. 70).
O pesquisador, embasado em alguns estudos, acentua que “[...] os textos
produzidos em mídias digitais, a partir de técnicas de sampleagem, montagem e colagem,
tendem a evidenciar mais claramente do que textos impressos o percurso semiótico de sua
construção”. (p. 70). Vale ressaltar que, para o autor, todo conteúdo digitalizado tem
apresentado diversas versões que embora se apresentem como iguais, são reconfigurados
diariamente em cada aparelho e em cada situação em que seja preciso requisitá-los. Tudo
isso, foi constatado por ele ao perceber que os mashups, ao mesmo tempo em que

[...] materializam pela linguagem tentativas de estabilização de definição do que


estava acontecendo na esfera pública, davam margem à discussão acerca dos
interesses agregados no movimento, porém não devidamente pactuados ou
negociados em torno de um ponto de passagem obrigatoriamente comum. (p. 80).

Finalmente, Sachs evidencia nesta pesquisa algumas reflexões entre o texto e o


contexto por meio da análise de diferentes códigos semióticos em atividades de produção e
consumo entre sujeitos intratextuais em relação aos textos multimodais digitais. Dessa forma,
insurge a necessidade de uma educação linguística que democratize esse percurso semiótico com
o manuseio de textos multimodais pelos jovens, fazendo-os pensar o texto digital de maneira
com que o ensino de língua materna se efetive, de fato, incorporando as novas tecnologias
digitais nas diversas instâncias de interação humana e tecnológicas.
O autor encerra esse aglomerado de trabalhos argumentando que existem, sim,
ganhos reais ao se empregar teorias que trabalhem a linguagem digital “como processo de
forma explícita e radical” (p. 98), tendo na análise de textos como o remix e o mashup, uma
empreitada de aprendizados, subsidiando o acesso à cultura digital no que se refere aos
processos de translação e ressemiotização com textos multimidiáticos.
Mais adiante, no segundo aglomerado, intitulado de “Espaço, Identidade, Conexões”
são desvendadas pesquisas que destacam os atuais fenômenos de língua(gem) na seara da
inserção das tecnologias digitais na contemporaneidade. É visível como essas tecnologias têm
trazido inúmeros subsídios e ferramentas de comunicação mediada por computador (CMC), criando
uma maior interação entre os usuários em contextos virtuais de construção da identidade e

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da aprendizagem na medida em que as pessoas se apropriam dessa cultura digital imposta
pela globalização digitalizada.
Nesse sentido, Bárbara Gallardo, em “Construções identitárias no facebook de
professoras brasileiras em formação” avalia como os “avanços tecnológicos, o surgimento
da cultura digital e a expansão dos fenômenos da globalização possibilitaram a formação de
novas subjetividades” tão necessárias num contexto espaciotemporal cada vez mais
dinâmico, multimodal e tecnológico que tem requerido uma reflexão constante no âmbito
escolar e social acerca da “relação entre as identidades construídas em um novo meio de
comunicação e a identidade do professor crítico de línguas”. (p. 106).
A autora evidencia, portanto, quais seriam as estratégias usadas para a construção
discursiva das identidades de professoras em formação no Facebook, tendo, na perspectiva
da Análise Crítica de Discurso, instrumentos de análise crítica para se compreender a
recorrência das escolhas dos elementos léxico-gramaticais, imagens e recursos tecnológicos
e semiótico-discursivos que foram utilizados pelas participantes nesses ambientes digitais na
consecução de uma aprendizagem tecnológica satisfatória e efetiva com as línguas
estrangeiras diante dessas novas práticas e desdobramentos da cultura digital.
Numa assertiva contrária às teorias de base sócio-histórica que, geralmente,
orientam pesquisas sobre aprendizagem escolar no Brasil a uma vertente socioespacial da
geografia pós-moderna, Camila Scheifer, em “Espaço-temporalidade e construção de
sentidos em uma rede de letramentos: uma análise de transposições semiótica-materiais”, traz
um profundo estudo, enfatizando que é preciso rever a maneira como os letramentos e a
aprendizagem com as tecnologias digitais têm sido tratadas como um “amálgama de espaço-
temporalidades sobrepostos e concorrentes”. (p. 127). Isso significa compreender que esse
espaço-temporalidade vai além de um “vácuo social preexistente às práticas de linguagem em
favor de uma concepção que assuma o espaço como dinâmico, contingente e performativo,
ou seja, como uma prática social”. (SCHEIFER, 2015).
Essa pesquisadora avalia, por fim, como se dão as travessias espaciais e semióticas
em diferentes espaços de construção, visando “mobilizar letramentos, textos, discursos,
atores, mídias e modalidades” (p. 131) na tentativa de melhorar o desempenho escolar de
alunos, possibilitando uma conexão social e integrada das relações semiótico-culturais entre
processos de significação, posicionamentos e redes de letramentos, consequência essa da
incorporação das tecnologias digitais comunicação e informação (TDICs) nas práticas de
linguagem corriqueiras da vida contemporânea.

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Enfim, no último aglomerado, “Estética, Ética, Cibernética”, Dáfnie Silva e Marcelo
Buzato buscam analisar os aspectos éticos e estéticos do convívio de brasileiros com a cultura
digital, bem como entender a que práticas discursivas esses sujeitos recorrem e usam na
denominada computadorização da cultura na era da informação e globalização.
A primeira pesquisadora enfatiza os processos de transmutação e transcodificação
cultural em gêneros digitais usados por jogadores em ambientes digitais, limitando-se ora na
camada computacional ora na camada cultural, no sentido de compreender a ação desses agentes
cibernéticos em uma plataforma textual de produção colaborativa. O segundo, Buzato,
destaca as transformações ocasionadas pelas tecnologias no contexto pós-social de encontros
pós-humanos, em que os cidadãos/consumidores e instituições públicas/privadas se
comportam e interagem diante da cultura digital em que todos estão, hoje, sendo mediados
por um sistema de atendimento computadorizado, no qual o biológico e o cibernético acoplam-se
a essa nova realidade aumentada.
A abordagem produtiva deste livro com as práticas letradas tecnológicas necessárias
nessa nova cultura digital na pós-modernidade, defendida pelos autores acima, coaduna com
a visão de Heinsfeld e Pischetola ao salientarem que

na perspectiva da cultura digital, educadores e aprendentes trabalhariam em


consonância com as tecnologias digitais, a escola assumindo o papel de orientar,
guiar e apoiar os esforços dos alunos frente aos novos significados e às estruturas
do mundo virtual, além de explorar suas potencialidades. (HEINSFELD;
PISCHETOLA, 2017, p. 1356).

Diante de tudo que foi exposto, retomando a necessidade de tecnologização dos


diversos sujeitos sociais, ficam claras as contribuições inter/transdisciplinares que esta obra
oferece, sobretudo aos jovens estudantes de letras e linguística, bem como a todos os
leitores/estudiosos que se interessam em estudar tecnologias digitais, gêneros, mídias,
recursos didáticos etc., visando se apropriarem de subsídios teórico-metodológicos tão
eficazes trazidos por esta edição, tendo em vista a atual conjuntura em que a cultura digital
tem requerido novas práticas discursivas com o trabalho e com a mediação de textos digitais
nesses diversos contextos de construção de saberes escolares, acadêmicos, científicos, entre
outros.

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SEDA - Revista de Letras da Rural/RJ. Seropédica/RJ, v. 2, n. 5, abr./ago., 2017, p. 142-148.
REFERÊNCIAS
HEINSFELD, Bruna Damiana; PISCHETOLA, Magda. Cultura digital e educação, uma
leitura dos Estudos Culturais sobre os desafios da contemporaneidade. Revista Ibero-Americana
de Estudos em Educação, Araraquara, v. 12, n. esp. 2, p. 1349-1371, ago./2017. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.21723/riaee.v12.n.esp.2.10301>. E-ISSN: 1982-5587.
SCHEIFER, Camila Lawson. Pela (Re)Afirmação do Espaço na e para além da Linguística Aplicada:
Apontamentos teóricos e empírico-metodológicos. DELTA. Documentação de Estudos em Linguística
Teórica e Aplicada (Online), v. 31, p. 223-252, 2015.

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SEDA - Revista de Letras da Rural/RJ. Seropédica/RJ, v. 2, n. 5, abr./ago., 2017, p. 142-148.
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8. As citações no texto deverão ser apresentadas de acordo com a NBR 10520 da ABNT, de
agosto de 2002. Exemplo:

 Nome do autor dentro da citação deverá ser com letras minúsculas: “De acordo Sá
(1995)...”; “... em relação aos dados de Miranda et al. (2006);
 Nome do autor fora da citação, mas dentro de parênteses, letras maiúsculas: “Apesar
das aparências ... (DERRIDA, 1967, p. 33)”, “... comportamento seguro (RIMAL et
al., 2001, p. 127)”;

OBSERVAÇÃO: citações longas, de mais de 3 linhas, devem ser destacadas do corpo do


parágrafo, formatadas com espaçamento simples, fonte tamanho 10, recuadas 4 cm da
margem esquerda.

9. A literatura citada deverá ser normalizada, no capitulo de REFERÊNCIAS, de acordo


com a NBR 6023, da ABNT, de agosto/2002, em ordem alfabética, sem recuo de parágrafo,
negritar onde for o caso (não será aceito título em itálico ou sublinhado). Exemplo:

 Artigos de periódicos:

SOBRENOME, Nome. Título do artigo, Nome do Periódico em negrito, Local de


publicação: nome da editora, volume, número do periódico, intervalo de páginas citado (p.
97-108), mês abreviado/ano de publicação.

 Livros, Dissertações e Teses:

SOBRENOME, Nome. Título do livro em negrito: subtítulo normal (se houver). Local da
publicação: nome da editora, ano de publicação.

 Capítulo de Livro:

SOBRENOME, Nome (do autor do capítulo). Título do capítulo normal. In:


SOBRENOME, Nome (do autor do livro). Título do livro em negrito. Local de
publicação: nome da editora, ano de publicação.

 Internet:

SOBRENOME, Nome. Título do trabalho em negrito: subtítulo normal (se houver).


Disponível em: endereço do trabalho na internet. Acesso em: data do acesso (19 jan. 2000).

10. Para caracteres alheios aos do alfabeto utilize fonte Symbol ou editores de equações
próprios do Microsoft® Word.

11. A simples submissão do artigo não implica em obrigação de publicação.

12. Os trabalhos que não cumprirem as orientações acima não serão submetidos à análise e
serão retirados do Portal Costa Lima (www.ufrrj.br/SEER).

150
SEDA - Revista de Letras da Rural/RJ. Seropédica/RJ, v. 2, n. 5, abr./ago., 2017, p. 149-150.

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