Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
SALVADOR,
2018
JOÃO RICARDO DE AZEVEDO
SALVADOR,
2019
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________
Prof. Dr. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Universidade Federal da Bahia
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Xxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Universidade xxxxxxxxxx
____________________________________________________________
Prof. Dr. Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Universidade xxxxxxxxxxxx
Agradecimentos
Figura 4: Rua Almirante Mourão de Sá, entre Paripe e Fazenda Coutos. Um dos pontos
de tensão por conta do tráfico..........................................................................................39
(Fonte: http://www.correio24horas.com.br. Foto: Victor Lahiri)
Sumário
Introdução
Construção do problema...................................................................................................9
Capítulo 1
Mundo vivido: campo de ações compartilhadas e interações.........................................19
Capitulo 2
2.1 Favelas e violência: preconceitos e estereótipos...................................................... 25
2.2 Vulnerabilidade: jovens e contextos de violência.................................................... 29
Capítulo 3
Metodologia....................................................................................................................35
Capítulo 4
Análise dos dados: Sob a perspectiva dos jovens selecionados......................................46
4.1 A situação biográfica.................................................................................................46
4.1.2 Jovens selecionados................................................................................................47
4.2 O sentido e a percepção da violência: a lente dos entrevistados...............................52
4.3 Preconceito e estigmatização.....................................................................................54
4.4 Medo: o risco de morte..............................................................................................57
4.5 O tráfico na favela: as regras e o proceder................................................................60
Considerações finais........................................................................................................63
Referências bibliográficas...............................................................................................64
Fonte da ilustração:
https://www.google.com.br/search?
q=desenhos+sobre+morte+de+jovens+em+periferia&newwindow=1&tbm=isch&tbo=u&source=univ&sa
=X&sqi=2&ved=0ahUKEwj31sm2__zUAhVFG5AKHQ9PBwAQsAQIIg&biw=1366&bih=662#imgdii
=ROUUEa6bvm5BAM:&imgrc=Fdj2k4YSPyNbeM:
(Sugerido por um jovem entrevistado.)
1) Metodologia
A investigação ora apresentada, cujo título é “Percepção da violência local por jovens
estudantes de Paripe”, caracteriza-se por uma pesquisa qualitativa e tem por escolha o
método fenomenológico. As bases da fenomenologia enquanto filosofia, foi lançada por
Edmund Husserl em 1900. Sua utilização nas ciências humanas se caracteriza pelo
estudo das estruturas da consciência. Se debruçando sobre a descrição do fenômeno
exatamente como ele se apresenta, se situando para além do empirismo, remetendo à
totalidade das experiencias vividas pelo indivíduo.O pesquisador deve observar rigor
em práticas descritivas minuciosas, em oposição a termos teóricos com constante
preocupação quanto a significação da experiência descrita.( ANDERSON & SPENCER,
2014; GIORGI, 2014).
ii) Qual(is) técnica(s) de produção e de análise de dados você pretende utilizar? Por
quê?
A técnica utilizada para análise dos dados consistiu na análise dos conteúdos
transcritos nas entrevistas dos participantes. Como descreveu Anderson & Spencer
(2014), todo o material foi lido exaustivamente de modo a se captar o sentido, a
assência da percepção do fenômeno. Deste processo expressões significativas foram
agrupadas em temas dos quais extraíram-se significados. A importância desta técnica de
tratamento dos dados permitiu construir unidades implicativas de um juízo particular
para entendimento do fenômeno segundo a perspectiva dos entrevistados. As entrevistas
foram dirigidas seguindo um guia de perguntas abertas com a menor intervenção
possível, privilegiando a liberdade na narrativa. Os fragmentos narrativos foram
classificados segundo eixos temáticos, e estes foram categorizados em três dimensões
que compõem as situações de percepção juvenil da violência local : ser pobre é ser
criminoso, a favela é pelo certo, enfrentamento e resistência ao preconceito.
b. Do ponto de vista da literatura sobre métodos, debatida em sala de aula, quais autores
a recomendam e por quê
iii) Acerca do instrumento elaborado, este será executado a partir de qual técnica?
11
b. Como você pretende sensibilizá-los para uma eventual colaboração com sua
pesquisa?
A sensibilização se deu durante o preparo das turmas onde abordei num tom
generalizante a questão da violência na cidade e deixei que todos fizessem sua
contribuição, até afunilar o tema na questão da percepção do jovem, enquanto o adulto
de amanhã num mundo onde a violencia estara presente de modo que a participação
individual na discussão trouxe vários aspectos relevantes sobre o assunto.
54 entrevistas e selecionadas 15. Boa parte, como se observou nas não selecionadas,
mostravam-se contendo repetições e saturações do assunto abordado.
OBS1: deve conter cabeçalho completo, além da apresentação da pesquisa e texto sobre
formas de uso dos dados, disponibilidade e acesso aos dados, consentimento etc.
OBS2: a quantidade de questões dependerá do problema de pesquisa, método e técnica
elegidos. A estrutura de formatação deve seguir normas da ABNT, preferencialmente.
12
Outra questão suscitada, foi relativa a quantos alunos seriam necessários para que
eu pudesse obter uma resposta à minha pergunta sobre percepção da violência
vivenciada no bairro. Optei por um processo seletivo que incluissem três turmas de
turnos diferentes. Cada turma era composta em média por 35 alunos, nos turnos da
manhã, tarde e noite. A faixa etária das turmas diurnas oscilavam entre 14 a 18 anos, a
noturna tinha maioria entre 17 a 21 anos. De modo que para conseguir material
suficiente, primeiro deveria partir das narrativas. Os pontos de corte escolhidos
deveriam ser: idade maior ou igual a dezoito anos (sugestão da escola), entrevistados
com relatos que apontassem evento considerado por mim como relevante à temática,
voluntariado para participação e um número de participantes que fosse de metade
meninos e meninas, cujos relatos se mostrassem suficientes para responder a pergunta
de partida e me trouxesse dados concernentes à diferença de percepção do fenômeno na
questão de gênero ( para efeito de amostras, é válido ressaltar que a pesquisa não tem
por objetivo analisar diferença nas percepções de gênero.).
entrevistas, que foram abertas sem perguntas que exigissem respostas objetivas e não
julgou conveniente a gravação dos relatos.
Estigma: Enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que ele
tem um atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria em
que pudesse ser incluído, sendo, até, de uma espécie menos desejável [...]. Assim
deixamos de considerá- la criatura comum e total, reduzindo-a a uma pessoa estragada e
diminuída. (GOFFMAN, 1975:12).
Violência: é o termo ser polifônico desde a sua própria etimologia. Violência vem do
latim violentia, que remete a vis (força, vigor, emprego de força física ou os recursos do
corpo em exercer a sua força vital). Esta força torna-se violência quando ultrapassa um
limite ou perturba acordos tácitos e regras que ordenam relações, adquirindo carga
15
Vida cotidiana: A vida cotidiana apresenta-se como uma realidade interpretada pelos
homens e subjetivamente dotada de sentido para eles na medida em que forma um
mundo coerente. (...) o mundo da vida cotidiana não somente é tomado como uma
realidade certa pelos membros ordinários da sociedade na conduta subjetivamente
dotada de sentido, que imprimem suas vidas, mas um mundo que se origina no
pensamento e na ação dos homens comuns, sendo afirmado como real por eles.”
(BERGER E LUCKMANN, 2004, p.35, 36)
Deixei claro que não utilizaria um conceito pré-estabelecido. A resposta seria algo livre e particular de
cada visão dos entrevistados.
1)Interpretação
2)Memória
2.1)Retriel longo: Alguns entrevistados relataram aspectos armazenados na memória de longo período
principalmente quando se referiam a perdas em execuções na favela.
2.2)Retriel curto: Eventos corriqueiros do dia a dia, de modo geral não pareciam ficar gravados na
memória, como situações de ameaças internas na favela, cobranças do tráfico, prisões de jovens
moradores.
16
3)Teórica
4)Comportamental
4.2)Constrangimento: Foram poucos os casos. Os desinteressados na maior parte dos casos deixavam
transparecer o contrangimento em tratar do tema por razões não conhecidas.
5) Outras
Tive o cuidado de inicialmente questionar qual terminologia podíamos utilizar para tratar das
periferias. Como ‘eles’ tratavam o bairro onde moravam? A maioria utilizou o termo ‘favela’, alguns
aludiam ao fato de ser ‘favela’, de modo que externei minha fala no sentido de querer compreender
afavela pela ótica deles.
1)Interpretação
2)Memória
2.1)Retriel longo: muitos relatos apontavam para o lado desconhecido e mal compreendido da favela. A
vida do trabalhador, as pessoas de bem.
3)Teórica
3.1)Pertinência: Tema considerado muito importante em função do rompimento com o preconceito que
vivem por ser favelados.
17
3.2)Terminologia: Favelados para a sociedade é o mesmo que ladrão, traficante, usuário de drogas.(SIC)
4)Comportamental
5) Outras
Não estabeleci conexões entre juventude e violência, tratei de colocar as duas palavras num quadro e
pedi que discorressem sobre .
1)Interpretação
2)Memória
2.1)Retriel longo: vários relatos tratavam de jovens considerados ’normais’ ou ‘não envolvidos’ e
adentravam eventos de homicídios, prisões e eventos que na visão dos jovens entrevistados poderiam ser
evitados.
2.2)Retriel curto: A sociedade, a mídia foram tratadas como entidades cuja memória é curta quando o
assunto é fazer justiça aos injustiçados da favela.
3)Teórica
4)Comportamental
5) Outras
Meu contato com Dan se deu semanas após, em um culto na igreja onde o
mesmo congregava, situado na parte alta da favela. Uma construção inacabada, com
acesso por ruas estreitas e algumas vielas pouco iluminadas. Dan era um jovem negro,
robusto e muito falante. Neste primeiro contato fui apresentado pelo aluno, que também
era membro da igreja e que já havia falado sobre meu interesse em conhecê-lo e
conhecer sua história. Neste dia, uma quarta-feira à noite o culto terminou às 22 horas.
Estar neste horário dentro da favela somente acompanhado, primeiro porque não era
conhecido, segundo porque era exatamente na parte mais alta, próximo ao “campo” (um
espaço aberto no alto que servia para prática de futebol) e onde se situava em um beco
muito movimentado, principalmente à noite, a biqueira, “boca” ou “lojinha” como era
chamado.
Esta primeira apresentação não rendeu muito tempo para um diálogo no qual
pudesse expor minhas intenções de pesquisa, de forma que fui apresentado e marcamos
minha volta para o próximo culto no domingo pela manhã. Para sair da favela neste dia,
fui levado pelo aluno e familiares até sua residência e de lá me conduziram de carro até
a minha, que ficava há uns três km dali. Penso que como meu rosto não era familiar, fui
visto como membro novo, ou coisa parecida. Desde o inicio tive o cuidado de tratar
desta questão com o aluno que me apresentou a Dan. Como chegaria no centro da
favela, como sairia, e os riscos de ser um completo desconhecido às 22h transitando
naquele local, tão próximo ao “coração do tráfico” na favela. No entanto, fui
tranqüilizado pelo jovem que me conduziu, por estar amparado por seus familiares em
função de estar com pessoas conhecidas e pelo local que estava visitando: uma igreja.
Neste local onde se situava a igreja, pude observar vielas ainda não asfaltadas,
algumas sem iluminação, de onde se via somente a luz de dentro das casas e algumas
poucas pessoas sentadas nas portas. As casas em sua maioria geminadas, com frentes
pequenas, se muito tinham de dois a três metros de frente, com blocos de tijolos não
rebocados, muitas pichações do tipo siglas de nomes ( esse entendimento meu). A
biqueira ou “boca” se situava há aproximadamente uns 300 metros da igreja, o poste de
iluminação ao que parecia tinha a lâmpada quebrada de modo que se viam jovens se
movimentando nas sombras para dentro do beco. A saída das pessoas da igreja, segundo
me informavam os familiares do jovem estudante, não era nada que chamasse a atenção
dos indivíduos que se encontravam no “movimento”( um entra e sai na biqueira)
naquele horário, em virtude de que eram comuns cultos de libertação e oração ao longo
20
de toda semana e estudos bíblicos tanto a noite quanto durante o dia, de modo que nossa
mobilização na igreja não constituía algo estranho àquele contexto. Exceção a essa
regra, explicaram, se dava quando haviam batidas policiais e tentativas de tomada da
boca por grupos que rivalizavam o tráfico de drogas. Igreja fechava cedo ou não abria,
bares, também ficavam com portas à meio. Mas mesmo assim, esses eventos, quase
sempre corriam a favela de “boca em boca” por moradores do alto, de forma que
dificilmente aconteciam pegando outros moradores de surpresa. As informações de tudo
o que ocorria fosse a noite, ou durante o dia eram sempre repassadas por informantes
do tráfico através de celulares sobre eventos suspeitos ocorridos na pista ( parte baixa da
favela), da chegada da polícia, da possibilidade de ações movidas por ameaças de
grupos rivais informadas por algum usuário descuidado que tenha transitado em áreas
proibidas e conseguido chegar vivo à favela ou por familiares de moradores destas
mesmas áreas (como a que me encontrava).
Meu segundo encontro com Dan se deu em outro evento na mesma igreja, desta
vez pudemos conversar sobre minhas intenções de pesquisa de maneira breve, mas
alcançando o entendimento do mesmo.
Introdução
A construção do problema
Atualmente, muito têm-se dito sobre violência. A insegurança e o medo
espreitam a vida do cidadão comum nos grandes centros urbanos. O indivíduo sai sem a
certeza de um retorno. No meio rural, regiões afastadas das grandes metrópoles, os
crimes geralmente envolviam aspectos afetivos, morais. Hoje, é substituído pelo tráfico
e por lutas pelo controle territorial. A sociedade deste século se vê mergulhada num
contexto belingerante crescente, onde não existem garantias, onde o Estado parece
incapaz de contê-la e a sensação de caos iminente é a única certeza.
A violência parece ter sido legitimada. Ganhando espaço no que se entende por
“vida cotidiana” tanto nas grandes cidades como em seu entorno. Havendo um
entendimento de que o recrudescimento das ações do Estado sobre os supostos autores
dos crimes, pode ser uma estratégia de superação e enfrentamento da questão deste
fenômeno em sociedade. Forjando-se nas cidades áreas de isolamento, de segregação e
um espaço público visto como zona de perigo. O poder público caminha numa direção
em que considera os crimes contra o patrimônio algo prioritário. Discriminam faixas
específicas da população, focando numa criminalidade presente em comunidades
populares, resultando em altos indicadores de mortes violentas e encarceramento
(BARATTA, 1999; YOUNG, 2002; SILVA SANCHEZ, 2002; SHECAIRA, 2009;
WACQUANT, 2005).
partir das normas e dos diferentes contextos sociais e das pessoas que as vivenciam. Na
realidade, na tentativa de diminuir os índices de violência, o que ocorre é um
movimento de estigmatização de áreas de pobreza, por parte da sociedade geral,
segregando e vinculando-as à periculosidade e violência, entendido como modelo de
estigmatização territorial (WACQUANT, 2008; ZALUAR, 1985; 2004). Comunidades,
invasões e favelas, designações territoriais carregadas de estigma e preconceito, que
expõem seus moradores a um duplo mecanismo de dominação: na ordem social
predominante, são extratos dotados de inferioridade e no cotidiano de suas relações de
vizinhança, vivem uma “Sociabilidade Violenta” (padrão específico de sociabilidade
reconhecido na representação da violência urbana). Onde moradores destas áreas
submetem-se a traficantes e milícias ou a própria truculência policial (MACHADO DA
SILVA, 2008, p.22). Diferenças sociais, econômicas, culturais se espacializam e
constituem o território, ao mesmo tempo em que gestam processos sociais de interação
dotados de particularismos e mecanismos de justiça privada. Goffman em Estigma:
notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (1975), trata a questão da vida
em territórios como um elemento criador de identidades, apontando para condições
compartilhadas de sociabilidades que se institucionalizam e constituem padrões de
condutas que se legitimam.
atenção da literatura acadêmica. Segundo Zilli (2015) o foco dessas pesquisas ora tem
se concentrado na atuação desse grupos de jovens em redes de comércio de drogas nas
favelas, ora em suas representações e modos de se organizar-se dentro das comunidades
quando envolvidos com práticas ilícitas. Ora criando vínculos de dependência com
moradores locais, ora atuando em situações conflitivas seja como mediadores ou como
justiceiros. Em alguns casos podem funcionar como grave ameaça a moradores locais,
causando medo e insegurança.
Nesta pesquisa, o contexto social e juventudes serão elementos justapostos para
o entendimento do fenômeno da violência no qual adolescentes e jovens de 12 a 24 anos
responderiam pela autoria na maioria dos casos de homicídios principalmente por armas
de fogo, em bairros populares (ZILLI, 2015). Em Dayrell (2003), a categoria juventude
é pensada como parte de um processo totalizante, com contornos específicos dentro de
um escopo de experiências vivenciadas num contexto social. Sentido que permite ver
‘juventudes’ enquanto uma categoria plural em detrimento de uma visão fechada e de
enquadramento conceitual.
Machado de Oliveira (2008, p.268) alude à ‘juvenilização do crime’, enquanto
causa do aprofundamento das tensões e violência tanto entre os grupos que rivalizam o
comércio interno de drogas nas favelas, como os embates entre o tráfico e a polícia.
Onde a alta letalidade dos jovens envolvidos na linha de frente do tráfico pela
intervenção policial, resultaria numa permanente substituição destes elementos por
outros indivíduos jovens em sua maioria despreparados para o embate corpo a corpo
com a ação policial. No entanto, pouco tem sido discutido como os jovens tidos como
“normais”, ou seja, os que não são envolvidos em práticas ilícitas nessas favelas
pensam, vivem e sentem o fenômeno desta violência que faz parte do dia a dia das
favelas brasileiras, especialmente aqueles que vivenciaram de perto a perda de um
conhecido vitimado por homicídio ou quando esse mesmo jovem foi vítima de algum
ato desta natureza no seu cotidiano. Por isso, enquanto produção de natureza acadêmica,
foi interesse desta investigação entender o sentido e a percepção desta violência
supostamente gestada nas favela e bairros populares por estes jovens ‘não envolvidos’,
especificamente o jovem estudante do ensino médio, maior de 18 anos, morador de
Paripe, bairro popular do Subúrbio Ferroviário de Salvador, Bahia.
(Mapa da violência 2010, Tabela 3.2.3. Ordenamento das Capitais por Taxas de
Homicídio em 100.000 na População Total. Brasil, 1997/2007).
O Mapa de violência de 2015 apontava que na região Nordeste concentravam-se
as maiores taxas de mortes por armas de fogo de jovens, ou seja, era a região que mais
vitimava jovens por essa via. Para um número de 100 mil habitantes, estimava-se que a
Bahia contabilizava em 2012, uma vitimização juvenil por homicídio por armas de fogo
na faixa de 342,2%. Comparativamente, grandes capitais como Rio de Janeiro e São
Paulo, para este mesmo ano, os percentuais de vitimização juvenil eram
respectivamente 265,7% e 180,5% (Tabela 6.1. Óbitos, taxas - por 100 mil/hab. - e
vitimização Juvenil por AF nas UF. Brasil. 2012). Ainda em 2012, segundo o Mapa de
2015, na categoria raça / cor, as armas de fogo vitimaram 10.632 brancos e 28.946
negros, o que representa um percentual de 11,8% de óbitos para cada 100 mil brancos e
28,5% para cada 100 mil negros.
relações sociais em Schutz. Método que se caracteriza pela ênfase ao ‘mundo da vida
cotidiana’ – um retorno à totalidade do mundo vivido. Penetrando seu significado e
contexto com refinamento e precisão. Objetivando uma compreensão voltada para os
significados do perceber, expressos pelo sujeito que as percebe. Exaltando a interpretação
do mundo que surge intencionalmente à consciência, com ênfase na experiência do sujeito,
onde o objeto é percebido e transforma-se no tema que se põe à consciência quando volta ao
mesmo. Uma experiência intersubjetiva cuja base é a cooperação formadora da vida social.
(COLTRO, 2000)
O segundo capítulo, discorro sobre o processo de periferização do espaço social,
com ênfase à cidade de Salvador, e procuro desenvolver sequencialmente o passo-a-
passo de conceitos fundamentais à pesquisa no que concerne à associação perversa que
combina violência à pobreza. Objetivamente conceituo o fenômeno da violência em a
sua acepção mais genérica, sem me deter em tipificações, a despeito de sua importância.
Estratégia utilizada com vistas a orientar o leitor a perceber o diferencial observável no
sentido da violência segundo a perspectiva dos sujeitos entrevistados. Num Segundo
momento deste capítulo, o conceito de ‘juventudes’ surge com vistas a contextualizá-lo
no desenho explicativo que insere o jovem como sujeito entrevistado e aquele que
atribui um sentido particular ao fenômeno da violência Segundo sua experiência
cotidiana. Os conceitos de estigma, vulnerabilidade, juventudes e mundo vivido são
tratados como pilares de sustentação na tarefa de modelagem analítica dos dados.
Objetivo geral:
Objetivos específicos:
Justificativa
Sonoda (2016) citando Souza e Minayo ( 2005), argumenta que “ a violência é a
segunda principal causa de mortes no Brasil, e em algumas faixas etárias, a primeira. O
espaço urbano apresenta as maiores taxas de criminalidade violenta, taxas estas confirmadas
nas estatísticas oficiais e percebidas no cotidiano dos cidadãos, através do medo e da
sensação de insegurança.”
Por isso, as elevadas taxas de mortalidade juvenil por homicídio , em especial de
jovens negros, do sexo masculino e de bairros populares e favelas no Brasil, são
apontados pelos dados ora citados e rotineiramente difundidos pela mídia. O que por si
só, já garantiriam a relevância social do tema deste projeto de pesquisa.
De modo que, ao buscar conhecer as percepções do fenômeno da violência pela
própria juventude que é vulnerável a ela, e os modos concretos como é vivida e
experienciada no cotidiano de uma periferia da cidade de Salvador , se espera alcançar o
sentido atribuído a essa forma de violência.
O sentido e a percepção da violência vivida nas favelas por jovens de camadas
populares como uma realidade vivida em um contexto original, constituiria um salto
para a compreensão deste fenômeno, apartado de enquadramentos estatísticos para
compreendê-lo numa verdadeira conjuntura de vida social, experienciada e vivida nos
seus detalhes mais profundos. Explorando respostas de como estes processos complexos
de violência os afetam e quais os sentidos atribuídos por eles no dia a dia de suas vidas
na favela.
Diante da complexa dimensão do problema da mortalidade não-natural de jovens
pobres e negros por eventos de confronto violento, é esperado que os dados obtidos
sejam capazes de apontar vieses relevantes sobre o fenômeno, de forma que se possa
contribuir para o entendimento do efeito no mundo da vida de outros jovens que
convivem com essa realidade de modo contínuo e crescente, sem estar vinculado às
práticas ilícitas. Permitindo que dúvidas e inquietações, sejam feitas e postas ao
escrutínio da sociedade, como uma ponte que liga prenoções à realidade vivenciada.
Nesse contexto, abordar a percepção juvenil sobre a violência vivenciada no
cotidiano das favelas, constitui um ‘olhar de dentro’ conforme Magnani (2002) em “De
perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana.” Técnica na pesquisa, que parte
dos arranjos dos próprios atores sociais no campo, capaz de recuperar experiências e
identificar visões de mundo e sociedade no âmbito dos complexos espaços sociais
30
Hipótese:
Capítulo 1
Giddens, reforça a ideia de uma sociologia que compreenda o sentido das ações e as
interprete como atores competentes dentro de contextos específicos. Do mesmo modo
o cientista social para captar a realidade social de um grupo específico precisa ir aos
objetos do pensamento construídos por estes no seu mundo social. Pela utilização do
escopo teórico de Bergman e Luckman (1998), se observa o vínculo teórico entre o
processo sociológico de construção da realidade vivida, onde o universo simbólico
dotado de conhecimento é compartilhado pelo grupo e abarca os valores constitutivos de
uma dada ordem em constante construção, em que a linguagem é um dos elementos que
marca coordenadas desta sociedade e a preenche de objetos dotados de significação.
Este mundo vivenciado, porta estigmas múltiplos, atores e ação, que consistem
no mundo cotidiano do sujeito. Constituindo cenário de vida e campo específico de
distintos processos de ações compartilhadas e interações. O mundo que age sobre o ator
e sobre seus semelhantes cuja realidade é vista como atitude natural. Nestes termos, um
motivo dito pragmático governa a atitude natural neste mundo, que tanto pode ser
modificado quanto pode modificar-se pelas nossas ações. Por vida cotidiana, Berger e
Luckmann a definem como:
CAPÍTULO 2
historicamente.”
configura como um dispositivo aberto e contínuo. Uma relação de excesso de poder que
impede o reconhecimento do outro, seja pessoa, classe, gênero ou raça. Invocando um
tipo de dano e opondo-se às possibilidades de uma sociedade democrática. Nesta
análise, o pesquisador percebe o tecido social numa perspectiva relacional onde classes,
categorias e grupos sociais são tomados como construções práticas e simbólicas de
agentes posicionados na estrutura da sociedade com inúmeras possibilidades de
trajetórias.
Para Zaluar (1994) o modelo de violência atribuído pelo imaginário social às
favelas ou invasões, pode ser considerada tipicamente como uma variante urbana,
considerando que se consolida em meio a esses espaços de heterogeneidade social, se
encontra nas ruas, nos noticiários e nas nossas preocupações do dia a dia. No entanto,
ao considerarmos nossas concepções acerca da violência, a forma pela qual somos
atingidos pode variar significativamente de individuo para individuo.
bairros ocupados por condomínios extremamente seguros e que contam com toda uma
infraestrutura de isolamento social preventivo contra as classes pobres. De onde as
ocorrências ditas violentas geralmente encontram nos discursos midiáticos e na ação
repressiva das polícias o tributo inquestionável das práticas delituosas que infestam a
sociedade. Sendo circunscritas em práticas de homicídios tributárias de um caráter
quase sempre endógeno quanto ao espaço territorial em que se dá a interação entre as
vítimas e autores. O novo cenário de violência que se desenvolveu nos centros urbanos
brasileiros se configuraram do aumento do acesso às armas, da juvenilização da
criminalidade, da extrema reação violenta policial, principalmente sobre jovens de
periferias; da ampliação do mercado de drogas e da cultura individualista e por
consumo. Dinâmicas que se misturaram, combinando sentimentos de morte e condutas
de risco entre jovens de bairros periféricos envolvidos com o narcotráfico.
(ABRAMOVAY et al, 2002, p.25-26).
Em Salvador, segundo apontam os dados oficiais (IBGE, SSP-BA, MS) os
atores envolvidos são majoritariamente compostos por jovens, negros, masculinos, de
baixa escolaridade e moradores destas áreas periféricas. E, ao que tudo indica, matam e
morrem em função de conflitos estabelecidos e resolvidos de forma violenta e privada
em seus territórios e também no entorno (ZILLI, 2015).
Nestes contextos específicos em que as práticas de violência fazem parte do
cotidiano, aprofundam-se a criminalização e a estigmatização dos setores mais
vulneráveis em um momento de transformações econômicas e políticas no Estado
brasileiro em processo crescente de “neoliberalização”. Nesta conjuntura, marcada pela
minimização da presença do Estado, por altas taxas de desemprego e pela formação de
grandes massas de excluídos, tem se dado a crescente substituição de um Estado dos
direitos sociais para um Estado punitivo. Estado este, que na maioria dos casos
destinaria um tratamento desigual e excludente às classes populares e menos
favorecidas, agora como sujeito criminalizado e responsável pelas crescentes ondas de
violência no espaço urbano.
Neste processo, a presença da juventude surge com características ora de
protagonismo, ora de vítimas potenciais.
proteção diante dos muitos riscos que se apresentam neste momento específico da vida.
A sociedade precisa estar atenta a todo este processo inicial de inserção social, para
proteger e dar suporte, assim como para referendar condutas na construção de seus
percursos. Para esse segmento geracional, sentimentos de indignidade pessoal em etapas
como estas, podem assumir proporções extremamente difíceis de compreender e se
tornar motivo de desistência. Afetando as oportunidades de forma negativa nos
diferentes círculos sociais em que se inserem, podendo funcionar como elementos
motivacionais para ações extremadas, tendo em alguns casos desfechos fatídicos.
Trazendo para esta discussão o caso dos muitos jovens das periferias dos grandes
centros metropolitanos do país, em sua maioria indivíduos portadores de baixa
escolaridade, negros, sem nenhum tipo de habilidade técnica e total desconhecedor dos
muitos processos burocráticos que constituem a etapa mais difícil à sua inserção mínima
na vida em sociedade, à obtenção da cidadania propriamente dita. É facilmente
dedutível que são ínfimas as possibilidades recrutamento destes elementos assim como
sua inserção no mercado de trabalho. Esse processo repleto de etapas e exigências o
encurrala, podendo para alguns, ser o estopim para se pensar em outras alternativas de
vida. Onde a presença de atalhos são sobremaneira mais atrativos. Como pontua Zaluar
(1994, p.10) “Os mais destemidos e, às vezes, os mais talentosos que viram frustradas
as suas possibilidades de sair daquela vida opressiva de pobres, são os candidatos mais
certos à última opção (bandidos), que lhes trará fama, poder, dinheiro fácil e morte
quase certa.”
_______________________________
6
RUOTTI et al. Em sua pesquisa “ A vulnerabilidade dos jovens à morte violenta: um estudo de caso no
contexto dos ‘Crimes de Maio’”. Este estudo aborda a história de um jovem morador de um bairro
periférico de São Paulo sumariamente executado no contexto dos “Crimes de Maio” ocorridos em 2006.
Utilizam-se do arcabouço conceitual da vulnerabilidade como forma de compreender os diferentes
elementos envolvidos neste modo de vitimização. Vulnerabilidade que segundo estes autores é um: “
Conceito que proporciona uma perspectiva ampla e dinâmica que considera a suscetibilidade a um
determinado evento enquanto dependente não só de aspectos individuais, mas também relacionais e con -
textuais(...).” Revista Saúde Soc. São Paulo, v.23, n.3, p.733-748, 2014.
Segundo estudos de Misse (2008; 2010), por conta destes processos mais gerais de
estigmatização social, a acumulação de desvantagens sociais e econômicas associados a
um movimento de incriminação preventiva de certos padrões sociais, fazem de crianças
e adolescentes de bairros periféricos, potenciais vítimas ao escrutínio das ações policiais
que incluem desde a incriminação delituosa ao seu extremo, que seria a eliminação
definitiva da sociedade numa lógica de suposição criminal. Não se distinguindo entre as
categorias trabalhador e bandido, considerando arbitrariamente contextos e sinais
diacríticos, como marcadores absolutos para categorias ‘marginais’ em uma esfera
identitária para contextos específicos. O conceito de sujeição criminal de acordo com
Misse (1999, p.67) é proposto com a finalidade de determinar três dimensões
incorporadas na representação social do bandido e de seus tipos sociais. A primeira
seleciona o agente segundo uma trajetória incriminável expectante em algum momento
de sua vida social; na segunda, este agente precisará de uma experiência social
especifica obtida nas relações com grupos que vivenciam aquela prática e na terceira diz
respeito à subjetividade e a uma dupla expectativa no que concerne à auto identidade,
de onde este agente não poderá mais justificar sensatamente seu curso de ação. Em
momentos de maior crise social, acredita-se que categorizações como esta se expandem
e a ação oficial de repressão, diga-se policial, apontando difusamente aos moradores
das áreas periféricas, especialmente contra indivíduos jovens sejam estes ligados ou não
a atividades ilícitas. O cerne da questão ora apontada refere-se a uma vinculação social
de periculosidade imputada seletivamente a estes jovens. (FELTRAN, 2007).
_________________________
46
7
Ranyella de Siqueira e Hélio Cardoso trabalham com o conceito de estigma como processo social. Em
seu artigo buscaram através de uma revisão bibliográfica discutir o conceito de estigma para Goffman e
para alguns entre tantos autores que desenvolveram suas ideias a partir dele. (Imagonautas 2 (1) / 2011)
CAPÍTULO 3
Metodologia
8 É válido ressaltar que a abordagem da violência gestada em favelas e o sentido e percepção atribuído
ao fenômeno por jovens constitui o tema de minha pesquisa no Mestrado. Momento em que a
investigação tende a aprofundar-se com maior número de informantes e desenvolvimento teórico
ampliado.
Figura 2: Paripe- Rua Escola de Menor, entrada principal para favela “Bate-
coração”, cruzamento com a rua da Bélgica.
Fonte: Foto: Henrique Mendes/G1 - Atualizado em 25/07/2016.
investigativa naquele espaço. Esse detalhe foi muito importante para o prosseguimento
do trabalho de pesquisa, gerando confiança e desejo de alguns a atuarem como
voluntários, aceitando ser entrevistados.
As entrevistas, reitero, foram livres e descontraídas, conduzidas com o máximo
de liberdade e respeito às limitações de cada um, considerando sobretudo a temática
abordada, possíveis implicações para o local de realização das entrevistas. E desta
forma, espontaneidade e até momentos de descontração deram estímulo para que as
realidades vivenciadas no cotidiano da vida daqueles jovens fosses partilhadas com
motivação em todo o seu curso4.
O trabalho foi lento, pois inicialmente tive o cuidado de observar o
comportamento de alunos em sala de aula, nos intervalos, nos processos interativos
dentro do espaço escolar, sempre acompanhado de um professor. Conversei com
professores e funcionários da escola sobre a percepção do que seria a dinâmica da
comunidade, sobre os detalhes mais sutis da realidade de vida trazida por aqueles alunos
para aquele espaço. Fiquei uns dois meses nessa observação e acompanhamento das
aulas até iniciar de fato as entrevistas. A direção em nenhum momento resistiu ao
propósito da pesquisa, não me permitindo apenas que as entrevistas fossem gravadas
por uma questão de segurança dos entrevistados. Este cuidado por parte da escola
residia exatamente no fato da mesma estar localizada numa comunidade dotada de
tráfico de drogas e também de que a temática abordada nas entrevistas pudessem vir a
comprometer a rotina de vida dos entrevistados, caso alguém equivocadamente
interpretasse o propósito do trabalho de pesquisa, entendendo que detalhes
comprometedores pudessem ser alvo de ações policiais na mesma.
_________________________________________
4
Em “Poder e ética na pesquisa social”, da Biodiversidade/Artigos, Guita Grin Debert, argumenta
segundo um trecho de Oracy Nogueira, que no presente a necessidade de se redefinir os procedimentos
éticos, haja vista que os sujeitos tradicionalmente estudados por suas diferentes disciplinas passam por
mudanças radicais, e em que novas agendas de pesquisa desafiam as fronteiras disciplinares.Devendo o
cientista social como alguém que ocupa não apenas uma posição de saber, mas é também detentor de
status, prestígio e poder, num mundo em que os setores estudados são desprivilegiados, vítimas de formas
de opressão e dominação, minorias em situação de vulnerabilidade. Cuidar para que os interesses dos
grupos pesquisados sejam precedentes aos interesses da pesquisa. Sendo temas centrais da discussão o
caráter do consentimento (formal ou informal), o tipo de informação que o pesquisado deve obter da
pesquisa de que participa, a capacidade legal e intelectual dos entrevistados de entender o trabalho
proposto e as formas de coerção que podem estar envolvidas nessa relação. Avaliam-se, também, os
riscos envolvidos na publicação dos resultados, porque as conclusões destes pesquisadores jamais
poderão constranger, humilhar ou trazer prejuízos para as populações estudadas. (Revista Cienc.
Cult. vol.55 no.3 São Paulo July/Sept. 2003).
(acessado em http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v55n3/a19v55n3.pdf)
56
CAPÍTULO 4
Neste capítulo tenho como objetivo analisar trechos selecionados dos relatos dos
dois jovens entrevistados motivados em explicitar o sentido e a percepção atribuídos ao
fenômeno da violência por estes construídos em seus espaços sociais. Neste intento,
procurei observar o modo como construíam suas narrativas na tentativa de dar conta do
fenômeno considerando o contexto social em que foram socializados, tornando-o
inteligível segundo um olhar sociológico. Outrossim, participo que nesta análise não
tenho a pretensão de conclusão objetiva do fenômeno da violência vivida e percebida
nas periferias da cidade de Salvador como um todo generalizável, mas sim o interesse
nesta questão encontra-se no fato de que a juventude pobre e de maioria negra das
favelas e bairros periféricos são rotulados de perigosos e protagonistas no processo de
delinquência. A centralidade dos discursos do mundo do crime, do processos de
criminalização da pobreza nos territórios, estigmatização e preconceito por parte da
sociedade como um todo, figuraram e estiveram amplamente nos discursos dos
entrevistados. Se tornando principal objeto de ações policiais e violência oficial com
apoio da sociedade e da mídia. Vistos como capazes de agir com frieza e extrema
crueldade, vinculados ao tráfico, a práticas de roubo e outras atividades criminosas.
Meu objetivo foi de capturar e analisar nas entrevistas o modo como estes jovens
elaboram a questão da violência vivenciada no dia a dia em seus contextos sociais.
favelados, os principais envolvidos nas práticas de violência que tornam a cidade insegura
e perigosa à sociedade.”
Dos dois jovens selecionados para servir de objeto da análise quanto a questão do
sentido e percepção de violência vivenciada em seus universos sociais de interação,
ambos falaram sobre o uso ostensivo da força por parte da polícia militar, desrespeito
para com os moradores, preconceito e principalmente violência. Quando tratam da
presença do tráfico na favela, admitem da mesma forma um excesso de força, no
entanto consideram-na com devido grau de legitimidade, pautando-se num agir que
denota algo de uma ‘dimensão moral’ que se consolidou apriori entre os moradores e a
vida na favela. De modo que um ‘suposto acordo é velado’, norteando as ações das
pessoas naquele espaço de interação, e o menor vacilo pode representar uma forma de
punição sobre o infrator, sem que se possa fazer nada para impedí-la. Visto constituir-se
no que Zilli descreve como a ‘lei da favela’. As regras são claras. A vida na favela, seja
no Bate-coração, Calombão, Tubarão ou Estrada da Cocisa, seguem as mesmas regras
de convívio. O tráfico existe, o individuo trabalhador também, a relação que se
estabelece tende na maioria das vezes ao equilíbrio, respeitando a lei do mais forte: no
caso, o tráfico. Não se permitem roubos na favela, o X-9 ( o indivíduo que funciona
como informante de polícia sobre atuação do tráfico), estupradores e etc...
A situação biográfica
Neste tópico será abordado em breves linhas os perfis dos entrevistados com
vistas a apresentar ao leitor pessoas reais em seus contextos sociais interativos: no caso,
sua vida na favela. Além de fatos vivenciados no cotidiano, falas e posições frente ao
que se entende por violência e vida em sociedade. Da socialização que se constrói pelas
experiências em seus campos subjetivos e particulares, dos sentidos que dão forma ao
seus ‘estoques de conhecimentos’ construídos em suas vidas diárias. Um mundo
compartilhado, intersubjetivo e de permanente deciframento das ações dos sujeitos.
Neste sentido, alude-se à importância de compreender os indivíduos dentro de seu
59
Jovens selecionados:
1) Jamile
20 anos, estudante do 1º ano noturno, mora no Calombão, não tem filhos, mora
com a família e com namorado (disse namorado, pois segundo a mesma ‘marido é
quando casa’). Família vive do trabalho do pai que é porteiro em edifício no Campo
Grande, mãe do lar, namorado trabalha de cobrador de van Ilha de São João até Paripe.
Só tem mais um irmão de 17 anos. Segundo relato, namorado já usou maconha, mas
atualmente só fuma cigarro e bebem nas festas de largo nos finais de semana. A
entrevistada só estuda. Perguntada sobre sua visão de violência, responde que “tá tudo
violento”. Prossegue, “a gente mora em invasão, favela, esses nomes todos que as
pessoas gostam de dar porque aqui moram muitos pobres e tem tráfico; a gente sabe
disso. E as pessoas aqui não se tratam assim, mas quando a gente sai daqui a gente
vê a diferença nos olhos dos outros, principalmente quando os meninos usam bonés,
tatuagem, bermudas da Seaway, Mahalo. Geralmente a gente vai para praia da
Ribeira final de semana e eu já vi muitas vezes os policiais dando dura nos ônibus
quando a gente volta da praia e parece que eles escolhem os meninos para dar
baculejo (revista). A gente sabe que é por causa das roupas e porque são negros. Um
monte de coisa que a gente usa e que para polícia e para os barão é coisa de ladrão, e
nem sempre é. Até eu quando tinha 16 anos, eu já ia para ribeira, ficava no
Cantagalo e tomei vários baculejos de PEFEM e elas são tudo tiradas, trata a gente
como lixo. Uma quase me dá um tapa na cara porque achava que eu tinha alguma
coisa na bermuda, e não achou nada em ninguém e ficou de cara feia quando não
acharam. Minha mãe sempre fala para levar documento e não andar de bonde(em
grupos grandes), mas qual é a graça de ir sozinho pra praia? – a gente é favela, as
pessoas já olham atravessado. Não adianta. A gente não nasceu em outro lugar. Mas a
praia é publica e nada a ver achar que porque é favelado tem que ser ladrão. A maioria
dos nossos amigos aqui já tem filho, tem família; estudar não vou mentir, é chato, é
60
melhor botar uma guia (ponto de comercio informal) de qualquer coisa e ganhar o
nosso aqui mesmo onde a gente mora, melhor que ir para outro lugar e passar por isso.
A violência para mim vem das pessoas acharem que em favela só tem ladrão. Ladrão
tem em tudo que é lugar e nem sempre vem de favela, na política tá cheio - ri. Se o cara
não tem de onde tirar dinheiro, não tem emprego, não tem comida, tem filho, o que a
pessoa vai fazer? – em casa fica aquele aperto de mente, e ai? – olha vários amigos já
foram trabalhar na boca, outros vendem amendoim, queijo, salgado com suco, mas
às vezes dá muito pouco e o cara fica na bruxa(estressado) e acaba fazendo uma
besteira. Recente agora, um amigo nosso que vendia queijo na ribeira, ele tem um
filhinho com uma menina daqui mesmo, eu não sei dizer o que deu na cabeça dele,
ele era de boa, mas foi roubar no ônibus os policiais encurralaram, ele correu e
parou numa rua sem saída em Plataforma. Mataram ele na covardia, me diz como
um cara só e um monte de policia: precisava matar ele? – podia prender. Ele estava
só o outro que tava conseguiu fugir, ele ficou sozinho. Isso eu falo que é violência.
Ele estava errado, tava roubando, mas ele trabalhava, vendia queijo, você podia ver
ele todo sábado e domingo indo para São Joaquim comprar queijo. Acho que foi ver
o filho sem nada para dar, acho que voltou pra cá cheirou com os meninos e toparam
fazer uma “correria” (assim comentaram aqui), que fez ele tentar essa onda. Ele não
era um menino que vivia nisso, eu acho que na primeira ele não teve sorte. Agora ele
morreu e a menina e dele vai ter que se virar ou arrumar outro cara. E o filho vai ser
mais um criado aqui sem pai. A gente vê isso todo dia, e não é bom de ver. As vezes dá
um frio na barriga. Eu acho que a violência está ai. A favela tem o tráfico, eles tão
sempre em briga com os alemão, mas os moradores não entram em nada, agora a gente
vai tentar emprego, tem que ter cursinho, tem que ter um monte de coisa às vezes para
limpar chão. A maioria dos meus amigos já tem filho, o cara fica neurótico com tudo
isso. Eu acho que ninguém entende a vida aqui dentro da favela. A gente vive como
todo mundo, as casas não são bonitas, falta um monte de coisa, mas se você perguntar
quem gosta daqui, quase todo mundo vai dizer que gosta. A gente está acostumado, a
gente tem família, amigos, muita resenha. A violência é a causa da morte de um monte
de gente, a maioria muito novo, mas eu acho que o problema é que está difícil para
todo mundo, eu às vezes me pergunto, pra que estudar tanto? – minhas amigas pararam
de estudar e tão fazendo bico, eu to estudando e não achei nada, se meu namorado não
fizesse os serviços dele e eu não tivesse o apoio da minha família e tivesse que pagar
61
aluguel a gente tava muito enrolado. Existe violência sim, mas a gente daqui não
somos o motivo do mundo está como está, a gente é mal vista, e por isso a polícia
desce o pau e mata sem miséria. Mas no fundo eu acho, que a gente paga por ser o
que somos. Essa é minha opinião.”
2) Nescau
19 anos, negro, não tem religião, mora com a mãe e mais quatro irmãos. Dois são
maiores. Não conheceu o pai. Não trabalha, a mãe é doméstica na Barra, um irmão
trabalha de borracheiro na Escola de menor (ladeira que separa Paripe e Calombão) e
outro é barbeiro no local. O entrevistado só estuda e admite o uso de drogas ilícitas
desde os 14 anos, não tem filhos e namora uma ‘piveta’(menina segundo as palavras do
entrevistado) do Bate-coração.
Relata que numa ocasião tomou as dores de um amigo próximo numa briga
com outro menino do morro na mesma comunidade. O outro jovem envolvido no
embate foi até a boca e relatou que apanhou dos dois num ato de covardia. O pessoal
da “boca” puniu um dos dois ao ponto fraturar gravemente a mandíbula do outro
menor, que ficou um mês internado porque teve que colocar uma prótese metálica
para ligamento da fratura. A mãe não pode dar queixa, por saber que representaria
sua expulsão da favela, ou quiçá, coisa pior. Como relatou um vizinho à época
durante o ocorrido: “O problema da favela, se resolve na favela”. De modo que sua
mãe arcou com todas as despesas com antibióticos e idas e vindas ao Hospital Caribé. A
visão de violência relatada pelo jovem justifica como legítima a ação dos homens da
“boca”, que julgou covardia dois contra um, e espancaram o amigo do entrevistado para
que servisse de exemplo. Perguntei sobre essa percepção, o mesmo disse que a maioria
das pessoas na favela recorrem a boca para problemas de agressão, furtos, conflitos
domésticos. E nessa via de resolução de conflitos, tornou-se legítima a ação dos que
“trabalham” na boca sobre a questão da ordem na favela. O jovem agredido não ficou
com sequela visível, mas apresenta uma prótese metálica na mandíbula inferior. O
outro, hoje trabalha na “boca” e os antigos “soldados” da boca foram mortos em uma
incursão policial. É dito pelo entrevistado que os grupos que dominam os pontos de
venda de drogas são frequentemente substituídos, “tem sempre pivete novo”. Ou
porque alguns resolvem sair após testemunhar muitas mortes prematuras em
confronto seja com rivais do tráfico (menos frequente de acontecer) ou com a polícia,
62
outros morrem (maioria) e alguns são expulsos das comunidades por contrariar
algumas regras do tráfico. Como por exemplo nunca roubar na área, ou ser apontado
como estuprador, vender droga de outro grupo rival na mesma favela dentre outras
atitudes vistas como “infrações”. Do ponto de vista deste entrevistado, “a violência está
mais ligado ao fato de que as pessoas não entendem a favela. Ele se diz usuário de
maconha, a família é conhecedora, mais dois irmãos utilizam. O mesmo se vê como
exemplo quando diz que “sou usuário, mas não deixei de estudar, embora não goste.
Vivo na favela, amo a favela e nunca roubei. Uso tatuagem, larguei várias no corpo,
mas não sou bandido. Entendeu?. Acho que é onda morar na favela para quem não é de
lá, para quem não tem nada a ver. A polícia tem um jeito que pra eles é o ladrão que eu
não acho que bate com todos os pivetes que eu conheço. Eu tenho muitos amigos como
eu que são de boa. Nunca se envolveram e não se envolvem. Já tive muitos que
morreram por que a polícia matou que eram de boa. A gente fica sem dormir com
medo, qualquer zoada já pensa que são os policia entrando. Eu não durmo com luz
apagada, e tem um monte aqui que é assim também. A gente nunca sabe. Policia
também cheira, vai que esses caras entram na onda e porque não vai com a cara do
pivete, mata. E ai? – tá feito. Eu e todo mundo já viu isso aqui. Dá ultima vez
queimamos pneu na estrada velha, durou ate a tarde. Os moradores da vila da
Marinha não puderam entrar, veio jornal, repórter. Morre muito envolvido, uns
pivete que são sinistro mesmo, que gosta de encurralar, que toca terror, mas tem
muito que não entra em nada e morre de graça. Como é que a polícia vai saber se não
mora aqui dentro? – isso é violência entendeu? . A gente é tudo preto mesmo, pobre,
não tem barão na favela, só o patrão, mas ele não vive aqui dentro, ele anda pelos
camarotes, nas baladas. Policia não sabe abordar favelado, eles já chegam tocando
terror. Revistar é normal, mas pra que dar murro, tapa na cara? – isso revolta, às
vezes o policial é preto igual a gente e parece que é melhor. Não adianta falar, eu acho
que isso nunca vai mudar nada, se for matar porque a gente é preto vai matar a favela
toda. Porque tem tatuagem, porque usa maconha? – vai a favela toda. Violência é
isso. É como se aqueles caras não entendessem nada daqui e tivesse que mostrar
serviço. Isso não vai acabar. Porque favelado não pode nunca estar feliz que tem alguma
coisa errada. Não to falando que roubar é certo. Quem me deu meu celular foi minha
mãe. Aqui aparece um monte para vender, eu to ligado que a maioria é roubado, mas
prende o cara. Agora os homem saem matando. Pra mim nada nunca vai mudar, tem um
63
monte de coisa que eu não entendo, que é sobre os barão da política, da justiça, mas pra
mim violência é assim e eu quero ficar na minha, no meu canto e se tivesse uma casa no
interior eu me saia.
Tabela-01 “Nescau”
Declaração significativa Significado formulado Tema
“A violência está mais ligado favela: lócus da violência. Estigmatização territorial
ao fato de que as pessoas não
entendem a favela.”
(...)”Eu tenho muitos amigos O medo de ser confundido com o Medo: o risco de morte
como eu que são de boa.
envolvido. A vida sobre os trilhos.
Nunca se envolveram e não se
envolvem. Já tive muitos que
morreram por que a polícia
matou que eram de boa. A
gente fica sem dormir com
medo, qualquer zoada já pensa
que são os policia entrando.
Eu não durmo com luz
apagada, e tem um monte aqui
que é assim também. A gente
nunca sabe.”
Tabela-02 “Jamile”
Declaração significativa Significado formulado Tema
“A gente mora em invasão, favela, Pobreza e favela, a encarnação Estigmatização territorial
esses nomes todos que as pessoas
do mal
gostam de dar porque aqui moram
muitos pobres e tem tráfico;
“Existe violência sim, mas a gente O ser pobre e favelado: o A sujeição criminal
daqui não somos o motivo do mundo
agente da violência no
está como está, a gente é mal vista, e
por isso a polícia desce o pau e mata determinismo social
sem miséria. Mas no fundo eu acho,
contemporâneo.
que a gente paga por ser o que somos.
Essa é minha opinião.”
A questão apontada pelos jovens entrevistados, sempre trazem nas suas falas um
sentimento de revolta e descontentamento com a polarização observada na sociedade
como um todo. As disparidades observadas e apontadas por estes são claramente
entendidas como falta de oportunidades que na ponta emergem como incapacidade
deles e o mundo parece que já está dado. É como se para alguém não houvesse a
mínima possibilidade de ser diferente ou quiçá de mudar o curso de suas vidas. A favela
é feia, é suja, as pessoas que ali sobrevivem não ostentam o que a vida fora da favela
oferece, no entanto a vida favelada não é o problema da violência na sociedade. Cada
indivíduo age de acordo com um processo distinto de socialização, de uma situação
biográfica específica que lhe atribui uma forma de pensar e achar, a seu modo, uma
forma de resolver os conflitos. A violência segundo os entrevistados existe, é fato. Mas
não pode ser tributado à favela. Favela e territórios não favelados vivem uma
polarização que se estabelece como regra de um jogo que aqueles que o vivenciam na
favela, conhecem bem. São fronteiras que indicam comunicação, como ‘vasos
comunicantes’(FELTRAN, 2008). Sem argumentar com precisão sobre os motivos pelo
qual a sociedade se encontra fragmentada, os jovens entrevistados apontam para uma
interpretação particular que denuncia preconceito e estigmatização da sociedade para a
vida na favela, que é reproduzido à revelia em reportagens jornalísticas e falas ouvidas
em rodas de amigos e em família. No entanto, insistem que a favela é incompreendida.
Na percepção de Jamile e Nescau:
“Existe violência sim, mas a gente daqui (da favela) não somos o motivo
do mundo está como está, a gente é mal vista, e por isso a polícia desce o
pau e mata sem miséria. Mas no fundo eu acho, que a gente paga por ser o
que somos. Essa é minha opinião.(...) A violência para mim vem das
65
pessoas acharem que em favela só tem ladrão. Ladrão tem em tudo que é
lugar e nem sempre vem de favela.”(Jamile)
Algumas vítimas podem ter suas mortes em parte justificadas ou em alguns casos
o encarceramento como forma de retirar da sociedade o elemento considerado perigoso
e nocivo. Este processo de seletividade é uma estratégia fundamental para se entender a
_______________________________
8
(Schillagi, 2009, citado por Ruotti et al, em seu estudo de caso sobre jovens, vulnerabilidade e morte
violenta durante os ‘crimes de maio em São Paulo) - O processo de seleção e diferenciação, constituem-
se no discurso público em dois tipos de vítimas: as “inocentes” e as “duvidosas” (Schillagi, 2009).
Qualidades estão relacionadas à visibilidade e à aceitação social daqueles que sofrem a agressão, sendo
fundamental para a atribuição do estatuto de vítima o pertencimento ou não a uma comunidade moral que
é identificada pelo bom proceder daqueles que a constituem.( SCHILLAGI, C. La disputa de las víctimas:
(in) seguridad, reclamos al Estado y actuación pública de organizaciones y familiares de víctimas de
delitos en la Argentina democrática. 2009. Trabalho apresentado ao Congress of the Latin American
Studies Association, Rio de Janeiro, 2009. Disponível em: . Acesso em: 1 fev. 2012.)
impunidade e violência que pesa sobre as classes populares, oriunda não só do sistema
de justiça criminal, mas principalmente pela sociedade como um todo.
66
Preconceito e estigmatização
também nas de Jamile, se pode inferir e avançar mais sobre o trazido em Misse quando
dizem:
“Se for matar porque a gente é preto vai [ter que] matar a favela toda.”
“A gente sabe que é por causa das roupas e porque são negros.”(Jamile)
Esses dois trechos narrativos aqui trazidos apontam bem a consciência e visão que
estes jovens têm e como vivem e sentem nas suas peles o problema que Misse (2010)
denomina de Sujeição criminal. Zaluar (1994) trata a relação entre polícia e comunidade
como ‘Quadro de mentalidades’9, por onde expressa a realidade de construções
oriundas de experiências destes atores no cotidiano da vida na favela. Estas
experiências, segundo a autora, se estruturam segundo uma trama de experiências entre
a vida local, pelas informações veiculadas pela mídia e pelo próprio modelo de
formação das polícias. Estas práticas de ações policiais parecem apoiar-se em ideias que
enquadram os moradores das favelas ou periferias como se todo e qualquer favelado
fosse parte das ‘classes perigosas’. O quantitativo da população carcerária brasileira
comprova este aspecto, se nos atentarmos para apurar qual a origem social da maior
parte da população carcerária e de que muitos, como o tem provado diversas pesquisas,
nem comprovação de crime tem, e ficam aguardando em prisão, anos por julgamentos
não realizados.
_______________________________
9
Em ‘A polícia e a comunidade: paradoxos da (in)convivência’, In: Condomínio do diabo, Alba Zaluar
utiliza o conceito de “quadro de mentalidades” para aludir a imagens e ideias que ficam cristalizadas em
cada uma das partes, policia e comunidade. Seriam preconceitos, estereótipos, memórias ideologizadas,
que vão se montando a partir de vários mecanismos. Resultantes de experiências concretas de moradores,
das imagens dos meios de comunicação, dos cursos de formação e praticas policiais. Onde para o meio
policial, a pobreza ou favela seriam os fatores criminógenos por excelência. (1994; pp.88-95)
As explicações mais comuns, para que indivíduos se tornem, ou sejam vistos como
‘criminosos’ variam desde a culpabilização da sociedade, às explicações deterministas
que tratam desse conjunto de compleições físicas acima descritas. E este mecanismo de
culpabilizar o pobre é apontado por moradores do Subúrbio ferroviário de Salvador
como o de um modelo arraigado em preconceito e estigmatizacão do que buscam,
criticamente, se afastar e resistir, no sentido dado a suas falas. Assim como o modus
operandi tão naturalizado no modo de operar da ação policial em bairros de periferia,
tende a desconsiderar que seus atos são preconceituosos e se dão contra pessoas da
mesma cor e classe que eles mesmos, na maior parte das vezes, desconsiderando a
realidade cultural e socioeconômica de uma cidade de maioria negra e pobre. Outra vez
o ‘ser negro’ passa a ser usado como um dos principais critérios de suspeição. Em
contraste com outras partes da cidade, a vida favelada tende a ser mal entendida (e por
vezes vitimada por abusos policiais).
“A gente fica sem dormir com medo, qualquer zoada já pensa que são os
polícia entrando. Eu não durmo com luz apagada, e tem um monte aqui
que é assim também.”(Nescau)
69
O risco de morte que se materializa nas execuções, nas trocas de tiro com a
polícia, a morte dos ditos “não envolvidos”, “trabalhadores”, apontam para um processo
de não seletividade das vítimas. As incursões policiais, segundo as palavras dos jovens,
tem pouco de objetividade na abordagens dos verdadeiros envolvidos. Ao que gera
medo e insegurança para quem mora na favela e não faz parte de grupos ligados ao
tráfico.
“Se o cara não tem de onde tirar dinheiro, não tem emprego, não tem
comida, tem filho, o que a pessoa vai fazer? – em casa fica aquele aperto de
mente, e ai? – olha, vários amigos já foram trabalhar na boca, outros
vendem amendoim, queijo, salgado com suco, mas às vezes dá muito pouco
e o cara fica na bruxa (estressado) e acaba fazendo uma besteira.”
Nesta fala Jamile aponta que a pobreza pode ser um elemento motivador para o
ato delituoso. O ‘aperto de mente’, expressão que indica na linguagem utilizada na
favela, um tipo de cobrança exercida sobre a mente de uma pessoa em situações de
dificuldade que pode funcionar como o estopim para ações pouco racionais na
resolução de problemas. Neste caso específico a entrevistada trás um relato do jovem
que para alimentar o filho realizou um assalto em um ônibus, e foi morto por policiais.
Nas poucas oportunidades de trabalho de que fazem parte a juventude da favela, Jamile
cita os tipos de atividades informais utilizados pelos jovens para sustentar família e
adquirir bens de consumo. Vender amendoim, queijo coalho, salgado e suco... No
entanto, o lucro às vezes é baixo e concomitante às necessidades básicas, ao uso de
drogas, a vida mais difícil, acentuando as privações. E é neste contexto de necessidades
que surgem os convites para eventos isolados como pequenos furtos ou a venda de
drogas. Eventos esses que ganham uma maior aceitabilidade quando comparado com a
lucratividade incerta e o grau de dificuldade dos trabalhos informais citados acima.
Neste caso específico a entrevistada retoma o relato acerca do jovem que para
alimentar o filho realizou um assalto em um ônibus. Para Zaluar, a nova pobreza urbana
é fruto da rápida urbanização e das desiguais políticas salariais vigentes. Promovendo
distanciamentos estanques entre ricos e pobres. Num desenho social, onde a ausência
71
dos pais por períodos de longas jornadas de trabalho, passam parte de suas atribuições
socializadoras e de instrução, para instituições como a escola e centros de assistência
social.
em nada”, ou seja, não são objeto de atrito com estes grupos que controlam o comércio
de drogas, que vivem a margem. A questão pontuada por Jamile e corroborada por
Nescau, é que o tráfico para a favela não é o problema maior. Definindo as regras como
claras e conhecidas.
“A favela tem o tráfico, eles tão sempre em briga com os alemão, mas
os moradores não entram em nada.
____________________________
10
“Boca”, categoria empírica. Significa local onde se comercializa drogas nas favelas e são geralmente
ocupadas por ‘soldados’(jovens que garantem a comercialização e a segurança do negócio.)
como uma conversa considerada simples e corriqueira entre jovens numa manhã ou ao
anoitecer numa esquina, na frente de uma casa, que sempre envolvem aspectos como a
perda de um amigo de infância, de um parente, de um companheiro ou companheira.
No entanto, ações policiais na maioria das vezes, são vistas como covardes e causadoras
de grande indignação, até mais do que as imputadas pelo tráfico. Uma espécie de honra
74
Considerações finais
6. Referências bibliográficas
ABRAMOVAY, M., Castro, M. G., Pinheiro, L. C., Lima, F. S., & Martinelli, C. C.
(2002). Juventude, violência e vulnerabilidade social na América Latina: Desafios para
políticas públicas. Brasília, DF: Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura. Recuperado em unesdoc.unesco.org/
images/0012/001271/127138por.pdf
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal. 2ª. ed. Rio de
Janeiro: Freitas Bastos, 1999.
BOURDIEU, Pierre. Efeitos de lugar. In: Bourdieu, Pierre (Org.). A miséria do mundo.
Petrópolis: Vozes, 2008. p. 159-166.
BOURDIEU, Pierre. 1983. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero. P. 112-
121
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em
São Paulo. São Paulo: Ed. 34/Edusp, 2000.
MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio (org.). Vida sob cerco: violência e rotina nas
favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008
ZALUAR, A. O condomínio do diabo. Rio de Janeiro: Revan: Ed. UFRJ, 1994. 280 p.
____________. Mapa da violência 2015: juventude viva, mortes matadas por arma de
fogo. Rio de Janeiro. FLACSO BRASIL.
____________. Mapa da violência 2016: homicídios por arma de fogo no Brasil. Rio de
Janeiro. FLACSO BRASIL.