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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

EXAME ESCRITO / FREQUÊNCIA DA 1.ª ÉPOCA – 2.º SEMESTRE


DO ANO LECTIVO 2008/09
9 Junho de 2009
DIREITO PROCESSUAL PENAL
4.º ANO – TURNO DE DIA

Coordenação e regência: Prof. Doutor Paulo de Sousa Mendes


Colaboração: Mestres João Gouveia de Caires e António Araújo Sol e Lic.º Bruno
Neves de Sousa

Duração: 2 horas

Hipótese1

A 16 de Junho de 2008, cerca das 18 horas, A e B, agentes da PSP, dirigiram-se à Pensão do Desterro, na
Calçada do Socorro, em Lisboa, no âmbito de uma diligência que visava identificar o ocupante do quarto n.º 4,
por terem informações de que vários indivíduos se dirigiam ao mesmo transportando objectos possivelmente
furtados.
Chegados à recepção da tal pensão, aqueles agentes pediram à empregada que lhes indicasse o quarto n.º 4
e chamasse o seu ocupante, o que ela fez.
Ao chamamento da empregada, o ocupante, C, abriu na totalidade a porta do quarto, frente à qual se
encontravam os referidos agentes da PSP, trajando à civil.
O agente A identificou-se como polícia, exibindo a carteira profissional, e nessa altura apercebeu-se de que
em cima da mesa de cabeceira se encontravam uma pequena balança de pratos suspensos e um vidro contendo
pó de cor acastanhada, que logo suspeitou tratar-se de heroína.
De imediato, A e B, que entretanto se apercebera do mesmo facto, procederam à imobilização de C,
detendo-o, assim como detiveram outras duas pessoas que se encontravam no quarto, D e Sandra E., que
coabitava com C.
De seguida, os mesmos agentes da PSP revistaram C e procederam a uma busca no interior do quarto,
apreendendo vários objectos, entre os quais a balança e o vidro acima referidos e ainda um recipiente de
plástico vermelho com oito embalagens de papel estanhado que continham um pó acastanhado com o peso
bruto de 79 gramas2.

Considerando que:

- A venda de heroína é um crime punível com pena de prisão de 4 a 12 anos3, nos termos do art. 21.º, n.º 1
(tráfico)4, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro (Tráfico e Consumo de Estupefacientes e de Substâncias
Psicotrópicas)5;

1 Baseada em: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de Abril de 1992 (Processo n.º 42.565, Comarca de Lisboa).
2 O limite quantitativo máximo para cada dose média individual diária de heroína (diacetilmorfina) é de 0,1 gramas, nos termos
do mapa anexo à Portaria n.º 94/96, de 26 de Março.
3 Natureza processual do crime de tráfico: crime público.

1
- A compra ou venda de heroína para sustentar o próprio vício da toxicodependência com os lucros do
negócio é um crime punível com pena de prisão até 3 anos ou multa6, nos termos do art. 26.º, n.º 1 (traficante-
consumidor)7, do mesmo diploma legal;

- O consumo de heroína é uma contra-ordenação, nos termos do art. 2.º (consumo) da Lei n.º 30/2000, de
29 de Novembro (Regime Jurídico Aplicável ao Consumo de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas)8.

Responda agora às seguintes questões, fundamentando as suas respostas e fornecendo sempre o respectivo
enquadramento legal:

1. Aprecie a actuação dos agentes da PSP quer quanto às detenções a que procederam, quer quanto aos
demais actos praticados.

2. Os agentes da PSP deviam lavrar auto de notícia?

3. C, D e Sandra E. podiam ser julgados em processo sumário?

4. Imagine que o Ministério Público requeria a aplicação a C da medida de coacção de prisão preventiva e
que o Juiz efectivamente a aplicava. Posteriormente, o MP requeria a substituição daquela medida de
coacção pela obrigação de permanência na habitação. Poderia ainda assim o Juiz manter a medida de
coacção de prisão preventiva?

5. Suponha que D vinha acusado de comprar a heroína a C com a finalidade exclusiva de sustentar o seu
próprio vício de toxicodependência, mas que, durante a audiência de julgamento, o Tribunal verifica
que esse arguido era afinal o fornecedor habitual de heroína a C, que este vendia depois a terceiros
consumidores. Podia o Tribunal condenar D pela prática de um crime de tráfico de droga?

Para realizar o teste, pode usar: Código de Processo Penal (CPP), Leis de Organização e Funcionamento
dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), Código Penal (CP) e Constituição da República Portuguesa (CRP).

4 Texto integral do art. 21.º, n.º 1 (Tráfico e outras actividades ilícitas): «Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar,
produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber,
proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º
[consumo], plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III [anexas ao presente diploma] é punido com pena de
prisão de 4 a 12 anos».
5 Alterado pela última vez pela Lei n.º 18/2009, de 11 de Maio.
6 Natureza processual do crime de tráfico para sustentar o consumo pessoal: crime público.
7 Texto integral do art. 26.º, n.º 1 (Traficante-consumidor): «Quando, pela prática de algum dos factos referidos no artigo 21.º, o
agente tiver por finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal, a pena é de prisão até 3 anos ou
multa, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III [e.g., heroína], ou de prisão até 1 ano ou
multa até 120 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV».
8 Texto integral do art. 2.º (Consumo): «1. O consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou
preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contra-ordenação. 2. Para efeitos da presente lei, a
aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade
necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias».

2
Cotações: 1. 5 valores; 2. 3 valores; 3. 3 valores; 4. 3 valores; 5. 4 valores e apreciação global
(sistematização, clareza, fundamentação e português): 2 valores.

3
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

4.º Ano – Turno de Dia


Direito Processual Penal
Tópicos para a correcção do Exame Escrito / Frequência
(1.ª Época, 2.º Semestre, Ano Lectivo de 2008/09, realizado a 9 Junho de 2009)

Coordenação e regência: Prof. Doutor Paulo de Sousa Mendes


Colaboração: Mestres João Gouveia de Caires e António Araújo Sol e Lic.º Bruno Neves de Sousa

Questão n.º 1

Deveriam ser discutidos os seguintes aspectos:

a) Detenção em flagrante delito

Seria admissível a detenção em flagrante delito (para os efeitos do art. 255.º, n.º 1, alínea a), do CPP, bem
como nos termos do art. 27.º, n.º 3, alínea a), da CRP) na medida em que estavam verificados os seus
pressupostos: i) tratava-se de uma situação de flagrante delito em sentido próprio (art. 256.º, n.º 1, 1.ª parte),
uma vez que estavam suficientemente indiciados os actos de execução (art. 22.º, n.º 2, do CP) do crime de
tráfico ou do crime de tráfico para consumo (a saber: “em cima da mesa de cabeceira se encontravam uma
pequena balança de pratos suspensos e um vidro contendo pó de cor acastanhada, que logo suspeitou tratar-
se de heroína”), existindo assim plena actualidade e visibilidade; ii) o crime era punível com pena de prisão
(ou melhor, qualquer um dos possíveis crimes era punível com pena de prisão: o de tráfico com pena até 12
anos e o de tráfico para consumo com pena até 3 anos); iii) a detenção foi realizada por uma entidade policial
(OPC, nos termos do art. 1.º, alínea c), do CPP); iv) e o crime era público (por não ser exigível qualquer
condição de procedibilidade em qualquer dos crimes, vigorando em pleno o princípio da oficiosidade nos
termos do art. 48.º do CPP), não se aplicando assim as restrições estabelecidas no art. 255.º, n.os 3 e 4, do CPP.

Apesar de o consumo não ser punível criminalmente, parece, contudo, que os indícios relatados (e.g., a
balança de pratos e o vidro contendo pó acastanhado), segundo as regras de experiência, não se coadunavam
com esta realidade, mas antes com a de tráfico, pois um mero acto de consumo não carece de uma balança de
pratos suspensos. Em todo o caso, seria valorizada a discussão deste aspecto.

4
De igual modo, também parece válida a detenção de todos os suspeitos, na medida em que, até se apurar o
exacto papel que cada interveniente desempenhara nos factos (nomeadamente saber se algum dos
intervenientes era mero consumidor, determinar o tipo de comparticipação de cada um ou afastar a hipótese de
algum deles ser um mero terceiro sem qualquer responsabilidade criminal ou contra-ordenacional), é de
admitir a existência de indícios de tráfico relativamente a todos. Naturalmente que também se admitiria que,
em momento posterior (nomeadamente em sede de interrogatório por parte do MP), resultasse(m) ilibado(s)
imediatamente um ou mais suspeitos.

b) Busca domiciliária, revista e apreensões

Deveria discutir-se a validade destas providências cautelares, mas parece haver fundamento para a resposta
positiva.

Relativamente às buscas no quarto, deveria considerar-se as mesmas como válidas, mesmo que
domiciliárias (supondo que o quarto de uma pensão ainda pode caber na esfera de protecção constitucional
que subjaz ao regime especialmente protector do art. 177.º do CPP), ainda que realizadas sem o consentimento
do titular ou sem despacho prévio da autoridade judiciária, porquanto foram: i) efectuadas por OPC (como se
demonstrou supra); ii) entre as 7 e as 21 horas (no caso, às 18 horas) e iii) aquando de detenção em flagrante
delito por crime a que correspondia pena de prisão (conforme se demonstrou supra), tudo nos termos e para
os efeitos do art. 177.º, n.º 3, alínea a), e do art. 174.º, n.º 5, alínea c), todos do CPP.

No que concerne à revista de suspeito detido em flagrante delito, a mesma seria igualmente admissível, nos
termos do art. 251.º, n.º 1, alínea a), bem como do art. 174.º, n.º 5, alínea c), todos do CPP.

Por último, quanto à apreensão de objectos, também seria válida, nos termos do art. 249.º, n.º 2, alínea c), e
art. 178.º, n.º 4, todos do CPP.

Contudo, tais providências cautelares careciam de posterior convalidação por parte do MP (art. 251.º, n.º
2, do CPP), devendo para o efeito os OPC elaborar os relatórios das acções tomadas, bem como dos seus
resultados (art. 253.º do CPP).

c) Constituição dos detidos como arguidos e demais obrigações

5
Seria obrigatória a constituição dos detidos como arguidos, com comunicação dos respectivos direitos e
deveres (nos termos dos arts. 58.º, n.º 1, alínea c), n.os 2 a 4, e 61.º do CPP). A omissão desse procedimento
por parte das entidades policiais seria sancionada processualmente (arts. 118.º, n.º 2, 58.º, n.os 3 e 5, e,
eventualmente, 126.º, n.os 1 e 2 , alínea d), do CPP).

Acto contínuo, deveriam ainda os OPC comunicar ao MP (por qualquer meio, incluindo o telefónico) as
detenções, a notícia do crime e todos os actos praticados (cfr. o regime do art. 259.º, n.º 1, alínea b), que impõe
a comunicação imediata, em detrimento do regime mais lato previsto no art. 248.º, em especial no n.º 3).

d) Proibições de prova

Por último, seria essencial (e muito valorizada) a discussão sobre se a intervenção dos OPC não deveria ter
sido precedida de prévio despacho da autoridade judiciária competente, a partir do momento em que se
deslocavam àquele local no âmbito de uma averiguação sobre crimes de furto e de receptação, ou se, pelo
contrário, poderiam ter actuado daquela forma somente com base no art. 250.º, n.os 1 e 8, do CPP.

Acresce que seria fundamental a discussão sobre se os OPC usaram, dolosamente, de um meio enganoso
(para os efeitos do art. 126.º, n.os 1 e 2, alínea a), do CPP), sob pena de nulidade de todas as provas obtidas e
consequente proibição de valoração das mesmas. Porém, em face dos elementos expressos na hipótese parece
que seria sustentável que todos os factos sucederam sem nenhum plano ou aproveitamento ilegítimo por parte
dos OPC (ou, pelo menos, sem dolo). Nomeadamente, os OPC não sabiam onde se encontrava o quarto em
causa e foi um dos suspeitos que abriu voluntariamente a porta, deixando assim à vista os indícios de crime.

Questão n.º 2

A resposta a esta questão é afirmativa.

O auto de notícia encontra-se previsto no art. 243.º do CPP, estando preenchidos in casu todos os seus
requisitos. Na verdade, os agentes da PSP são OPC, nos termos do art. 1.º, alínea c), do CPP, tendo
presenciado crime(s) de denúncia obrigatória.

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De acordo com o supra mencionado na resposta à Questão n.º 1, tratava-se de uma situação de flagrante
delito em sentido próprio (art. 256.º, n.º 1, 1.ª parte, do CPP), existindo plena actualidade e visibilidade, pelo
que estes agentes da PSP presenciaram o(s) crime(s), conforme exige o art. 243.º, n.º 1, do CPP. Acresce que
tanto o crime de tráfico de droga, como o crime de tráfico para consumo são crimes de denúncia obrigatória
para as entidades policiais, nos termos do art. 242.º, n.º 1, alínea a), do CPP, sendo irrelevante a discussão
doutrinária sobre se a citada disposição respeita apenas aos crimes públicos ou também aos crimes semi-
públicos e particulares, uma vez que tanto o tráfico de droga como o tráfico para consumo são crimes públicos
(cfr. supra a resposta à Questão n.º 1), além de que a referida discussão ficou prejudicada pela nova redacção
do art. 242.º, n.º 3, do CPP, introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, da qual resulta que todos os
crimes, incluindo os semi-públicos e particulares, são de denúncia obrigatória para as entidades policiais.

Assim sendo, deveriam os agentes da PSP lavrar auto de notícia, com o conteúdo e formalidades
previstos nas várias alíneas do n.º 1 e no n.º 2 do art. 243.º do CPP, remetendo-o obrigatoriamente ao MP no
mais curto prazo, em caso algum superior a 10 dias, e valendo o mesmo como denúncia, nos termos do n.º 3
da citada disposição legal.

Embora não integre directamente a questão, será objecto de valorização a referência ao valor probatório
do auto de notícia como prova bastante dos factos descritos, nos termos dos arts. 99.º, n.º 4, e 169.º, do CPP.

Questão n.º 3

Recebido o auto de notícia, o MP promoveria o julgamento em processo sumário caso se observassem os


respectivos pressupostos:

a) Detenção em flagrante delito

De acordo com as circunstâncias do caso concreto, C, D e E foram detidos em flagrante delito (em sentido
próprio), porquanto o crime ainda se estava a cometer, nos termos do art. 256.º, n.º 1, do CPP (“os agentes da
PSP […] procederam a uma busca no interior do quarto, apreendendo vários objectos, entre os quais a

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balança e o vidro acima referidos e ainda um recipiente de plástico vermelho com oito embalagens de papel
estanhado que continham um pó acastanhado com o peso bruto de 79 gramas”).

Nos termos do art. 254.º, n.º 1, alínea a), do CPP, a detenção teria como finalidades, entre outras, a
apresentação de C, D e E, no prazo máximo de 48 horas, a julgamento sob a forma de processo sumário ou a
apresentação ao Juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma
medida de coacção.

O crime em análise admitia detenção em flagrante delito, uma vez que era punível com pena de prisão,
tendo aquela sido efectuada por OPC (art. 255.º, n.º 1, alínea a), do CPP).

b) Crime punível com pena de prisão com limite máximo não superior a 5 anos

O crime de tráfico de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas era punível com pena de prisão de 4 a
12 anos, nos termos do art. 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, que aprovou o Regime
Jurídico do Tráfico e Consumo de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas. No entanto, poder-se-ia aplicar
o art. 381.º, n.º 2, do CPP, caso o MP, na acusação, entendesse que não deveria ser aplicada, em concreto e de
acordo com um juízo de prognose, pena de prisão superior a 5 anos.

Caso se concluísse pela prática de um crime de tráfico para consumo, punível com pena de prisão até 3
anos ou com pena de multa, nos termos do art. 26.º, n.º 1, do referido diploma legal, seria aplicável o disposto
no art. 381.º, n.º 1, do CPP.

c) Julgamento da competência de Tribunal singular

Tem sido autonomizada pela doutrina a exigência de um requisito implícito negativo para a realização do
julgamento sob a forma de processo sumário que se prende com a obrigatoriedade de o mesmo ter de ser
efectuado por Tribunal singular (art. 386.º, n.º 1, do CPP).

Ora, se o crime de tráfico para consumo admitia a realização de julgamento por Tribunal singular mediante
a observância do requisito quantitativo previsto no art. 16, n.º 2, alínea b), do CPP, o mesmo não se pode dizer
relativamente ao crime de tráfico de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, p. e p. nos termos do art.
21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com as sucessivas alterações introduzidas.

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Caso se entendesse que a factualidade descrita no caso concreto preenchia somente o crime de tráfico, o
Tribunal singular só teria competência para proceder ao seu julgamento se o MP, na acusação, ou, em
requerimento, entendesse que não deveria ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos (art.
381.º, n.º 2, do CPP).

d) Realização da audiência de julgamento no prazo máximo de 48 horas após a detenção

Não obstante o disposto no art. 387.º, n.º 2, do CPP, o início da audiência de julgamento em processo
sumário tem lugar no prazo máximo de 48 horas após a detenção (arts. 387.º, n.º 1 e 382.º, n.º 3, do CPP).

No entanto, resultavam do caso concreto circunstâncias que impediam manifestamente a observância deste
requisito. Por um lado, existiam sérias dúvidas quanto ao grau de comparticipação dos vários Arguidos (C, D
e E) e, por outro, a determinação da qualidade das substâncias em causa impunha a realização de análises
químicas pelo Laboratório de Polícia Científica, as quais não era seguro que fossem efectuadas no prazo
máximo de 48 horas após a detenção.

Ainda que o MP optasse por substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia do OPC
que procedeu à detenção (art. 389, n.º 2, do CPP), não estariam reunidos todos os requisitos para julgar o
processo em questão sob a forma sumária. Com efeito, o Tribunal deveria remeter os autos para o MP, para
que este tramitasse sob outra forma processual (eventualmente a abreviada), porquanto não poderiam, pelas
razões adiantadas, realizar-se no prazo máximo de 48 horas após a detenção (ainda que prorrogáveis até ao
30.º dia, nos termos do art. 387.º, n.º 2, do CPP) as diligências de prova necessárias à descoberta da verdade
(art. 390.º, alínea b), do CPP).

Questão n.º 4

A aplicação de uma qualquer medida de coacção obedece a várias condições, quais sejam a prévia
constituição como arguido da pessoa que delas for objecto, a existência de processo-crime formalmente aberto
(arts. 192.º, n.º 1, e 58.º, do CPP) e a inexistência de fundados motivos para crer na observância de quaisquer
causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal (art. 192.º, n.º 2, do CPP). Tal

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aplicação está condicionada ao princípio da legalidade/tipicidade, nos termos definidos pelo art. 191.º, n.º 1,
do CPP.

Qualquer medida de coacção deve ainda respeitar os princípios da necessidade, adequação e


proporcionalidade (art. 193.º, n.º 1, CPP), da judicialidade (arts. 194.º, n.º 1, 268.º, n.º 1, alínea d), e 375.º, n.º
4, CPP), do contraditório (arts. 194.º, n.º 3 e 61.º, n.º 1, alínea b), do CPP) e da precariedade (art. 202.º, n.º 1,
alínea b), do CPP).

Em especial, relativamente às medidas de coacção de prisão preventiva e obrigação de permanência na


habitação vigora o princípio da subsidiariedade, o qual se consubstancia no facto de aquelas medidas de
coacção só poderem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de
coacção (art. 193.º, n.º 2, do CPP), sendo que “[q]uando couber ao caso medida de coacção privativa da
liberdade […] deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele
suficiente para satisfazer as exigências processuais de natureza cautelar” (art. 193.º. n.º 3, do CPP).

Mais se refira que a aplicação das medidas de coacção está ainda dependente da verificação de requisitos
gerais (excepção feita ao termo de identidade e residência) e, bem assim, dos requisitos específicos.

Relativamente aos requisitos gerais de aplicação das medidas, estaria preenchido, em face dos contornos do
caso concreto, o requisito previsto no art. 204.º, alínea c), do CPP, relativo ao perigo, em razão da natureza e
das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continuasse a actividade criminosa.

Quanto aos requisitos específicos da prisão preventiva, é verdade que havia “fortes indícios de prática de
crime doloso punível com pena de prisão superior a cinco anos” (art. 202.º, n.º 1, alínea a), CPP), tanto mais
que o ilícito que estava em causa era o crime de tráfico de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas,
punível com pena de prisão de 4 a 12 anos nos termos do art. 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de
Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico do Tráfico e Consumo de Estupefacientes e Substâncias
Psicotrópicas.

Estando preenchidos os princípios, as condições gerais, os requisitos gerais e os pressupostos específicos


de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, o Juiz estava em condições de a aplicar ao caso em
análise.

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Caso se concluísse que C traficava heroína para sustentar o próprio vício da toxicodependência com os
lucros do negócio, tal crime seria punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, nos termos do
art. 26.º, n.º 1, do referido diploma legal. Desta forma, a medida de coacção de prisão preventiva seria
insusceptível de ser aplicada pelo Juiz, porquanto falhariam os pressupostos específicos referentes à medida de
coacção de prisão preventiva.

A prisão preventiva é aplicada no inquérito por despacho fundamentado do Juiz, a requerimento do MP, e
depois do inquérito mesmo oficiosamente, ouvido o MP (art. 194.º, n.º 1, in fine, do CPP).

Saliente-se que, na fase de julgamento, a direcção do processo é do Juiz, não do MP, razão por que a lei
admite que o Juiz aplique oficiosamente a medida, ouvido o MP, mas o vocábulo “mesmo” abre a
possibilidade de o MP requerer a aplicação da medida também nesta fase.

A resposta à questão de saber se o Juiz poderia manter a medida de coacção de prisão preventiva no caso
de o MP ter requerido a substituição da mesma pela obrigação de permanência na habitação iria variar
consoante estivéssemos na fase de inquérito ou fora dela. Todavia, tendo em conta os dados disponibilizados
pelo caso concreto, estávamos em condições de afirmar que o processo se encontrava na fase de inquérito.

Desta forma, perante o requerimento de substituição efectuado pelo MP na fase de inquérito tendo em vista
a substituição da prisão preventiva pela obrigação de permanência na habitação, seria aplicável
analogicamente o art. 194.º, n.º 2, do CPP, uma vez que a ratio legis que presidiu à estatuição desta norma é
mobilizável para as situações em que o MP requer a substituição da medida de coacção por outra menos
gravosa, por considerar que deixaram de subsistir as circunstâncias que justificaram a aplicação da primeira.

O Juiz estaria, assim, impedido de manter a prisão preventiva.

Ainda que se admitisse a manutenção da prisão preventiva, seria sempre necessário averiguar se a
aplicação da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação era ou não susceptível de impedir a
continuação da actividade criminosa de C, nos termos e para os efeitos previstos no art. 193.º, n.º 3, do CPP.
Mas se existissem indícios de que C se dedicava ao crime de tráfico de estupefacientes a partir da sua

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habitação, a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação era inadequada e insuficiente para
impedir a continuação da actividade criminosa por parte de C.

Insistindo o Juiz na manutenção da medida de coacção de prisão preventiva, poderia o MP interpor recurso
daquela decisão, contanto que o fizesse em benefício de C (arts. 219.º, n.º 1, e 53.º, n.º 2, alínea d), do CPP).
Tal recurso deveria ser julgado no prazo máximo de 30 dias a partir do momento em que os autos forem
recebidos (art. 219.º, n.º 4, do CPP), não existindo qualquer relação de litispendência ou de caso julgado entre
o mesmo e a providência de “habeas corpus em virtude de prisão ilegal”, independentemente dos respectivos
fundamentos (art. 219, n.º 2, do CPP).

Questão n.º 5

Trata-se de um problema de objecto do processo. Na fase do julgamento, vigora o princípio da


vinculação temática, nos termos do qual o Tribunal está vinculado aos factos constantes da acusação ou da
pronúncia, se tiver havido instrução (arts. 358.º e 359.º do CPP). Como nada indica que tenha havido instrução
e a questão só fala na acusação, será o tema constante desta que fixará o objecto do julgamento no caso
concreto.

A situação em apreço não configura uma mera alteração da qualificação jurídica, porquanto são
descobertos durante o julgamento factos novos (fornecimento habitual de heroína por parte de D a C, que este
vendia depois a terceiros consumidores). Estes factos novos não são totalmente novos ou independentes, uma
vez que respeitam ao objecto potencial do processo em curso.

Deste modo, tratando-se de uma alteração de factos em sentido próprio, temos de qualificá-la como
substancial ou não substancial, recorrendo aos critérios enunciados no art. 1.º, alínea f), do CPP. Neste caso,
está claramente preenchido o critério qualitativo do crime diverso, pois são diferentes as imagens sociais do
traficante e do consumidor que compra para revender uma parte, a fim de conseguir sustentar o próprio vício.
É também certo que estaria preenchido o critério quantitativo, porquanto o crime correspondente aos factos
pelos quais D vinha acusado era o previsto no art. 26.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro
(traficante-consumidor), sendo punível com pena de prisão até 3 anos ou multa, enquanto o crime
correspondente aos novos factos é o de tráfico de droga, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do mesmo diploma, sendo
punível com pena de prisão de 4 a 12 anos. Ou seja, os limites máximos das sanções aplicáveis agravam-se de

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3 para 12 anos. Mas seria enganador partir aqui do mero critério quantitativo, pois está em causa mais do que
uma mera variação da quantidade de pena.

Acresce que o crime diverso é aqui alternativo daquele pelo qual D vinha acusado. Quando a alteração
substancial de factos se traduz na verificação de um crime alternativo, há doutrina que defende que os novos
factos devem dar lugar à abertura de inquérito, sem haver por isso violação do princípio constitucional ne bis
in idem, consagrado no art. 29.º, n.º 5, da CRP. Ponto é que, no processo em curso, o Tribunal não podia
condenar D pela prática de um crime de tráfico de droga, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93,
de 22 de Janeiro.

Em alternativa, há doutrina que defende a anulação do processado, com base na existência de uma
lacuna, a integrar de acordo com o disposto no art. 4.º do CPP, por aplicação analógica do art. 120.º, n.º 2,
alínea d), do CPP, ou através da norma que o intérprete criaria se houvesse de legislar dentro do espírito do
sistema, nos termos do art. 10.º, n.º 3, do CC, norma essa inspirada na nulidade insanável do art. 119.º, alínea
d), do CPP. De acordo com esta solução, o processo voltaria à fase do inquérito, de modo a abranger os novos
factos, seguindo-se os seus termos ulteriores normalmente.

Poderia, porém, suceder que o MP, o Arguido D e eventuais Assistentes estivessem de acordo com a
continuação do julgamento pelos novos factos, nos termos do art. 359.º, n.º 3, do CPP. No entanto, neste caso
concreto, se houvesse consenso entre os diversos sujeitos processuais, como os novos factos determinariam a
incompetência material do Tribunal, o Tribunal singular deveria declarar-se, oficiosamente ou a requerimento,
materialmente incompetente e remeter o processo para o Tribunal colectivo competente, nos termos dos arts.
32., n.º 1, e 33.º, n.º 1, do CPP, a menos que, por aplicação analógica do art. 16.º, n.º 3, do CPP, o MP
requeresse o julgamento daquele crime por Tribunal singular.

Caso o Tribunal, violando o disposto no art. 359.º, n.º 1, do CPP, condenasse D pela prática de um crime
de tráfico de droga, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, a sentença seria
nula, nos termos do art. 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP.

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