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Ciência e Cultura

On-line  version ISSN 2317-6660

Cienc. Cult. vol.56 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2004

A MEMÓRIA
Carla Dalmaz e Carlos Alexandre Netto

Considere aquilo que você sabe a respeito do mundo, dos outros e


de você mesmo: toda essa informação foi adquirida através da
experiência e está armazenada em suas memórias. Somos seres com
história, construímos nossa identidade através de um processo que
mescla as experiências vividas no ambiente e as nossas vivências
interiores; assim, somos quem somos porque aprendemos e
lembramos. A memória é uma das funções cognitivas mais complexas
que a natureza produziu, e as evidências científicas sugerem que o
aprendizado de novas informações e o seu armazenamento causam
alterações estruturais no sistema nervoso.

A memória desperta o interesse e a imaginação do homem desde a


Antigüidade, contudo os primeiros estudos científicos foram
realizados há pouco mais de um século. Hoje, graças aos avanços das
ciências biomédicas, adquirimos uma razoável compreensão acerca
dos mecanismos da formação da memória. Apoiados no fato de que
animais inferiores têm encéfalos mais simples do que aqueles dos
mamíferos superiores (espécie humana), e que seu comportamento e
capacidade de aprender e lembrar são mais acessíveis às técnicas de
laboratório, os estudos em invertebrados têm um papel fundamental
para o conhecimento da memória. Estudando a biologia celular do
armazenamento da memória no caramujo marinho Aplysia, Eric
Kandel e colaboradores (1) demonstraram que as funções e as
moléculas específicas de alguns neurônios mudam quando o animal
aprende uma resposta comportamental. A importância desses
trabalhos para o desenvolvimento das neurociências foi reconhecida
com o Prêmio Nobel de Medicina, concedido ao professor Kandel no
ano 2000.
Os neurônios são células especializadas, cuja principal função é
comunicar-se com outros neurônios e com os órgãos que realizam as
ações (como os músculos e o coração); em conseqüência do
processamento de uma fantástica quantidade de informações, a
atividade integrada dos neurônios determina e modula o
comportamento dos indivíduos. A capacidade dos neurônios de se
transformar e de adaptar sua estrutura em resposta às exigências
ambientais (externas) ou internas é chamada de plasticidade neural.
Foi no início do século passado que o anatomista Ramón y Cajal
formulou a hipótese de que a eficácia das conexões sinápticas (áreas
de contato funcional entre os neurônios) não é fixa, porém plástica e
modificável. Ele postulou que a força sináptica pode ser modificada
pela atividade neural e sugeriu que o aprendizado poderia utilizar
essa plasticidade através do desenvolvimento de novos processos
sinápticos. Muitos estudos apóiam esta hipótese.

A experiência é o fator que mais estimula a plasticidade, em espécies


tão diversas quanto insetos e humanos. Em mamíferos de laboratório
a experiência produz mudanças estruturais e funcionais no cérebro,
como aumento no tamanho e ativação da função dos dendritos (as
regiões terminais dos neurônios), formação ou eliminação de
sinapses e aumento da atividade metabólica; tais mudanças estão
correlacionadas com alterações funcionais dos neurônios e do
comportamento do indivíduo. Esse repertório de mudanças
demonstra que a atividade neural resultante da interação do
organismo com o meio externo pode modificar a estrutura do sistema
nervoso em qualquer período da vida, mesmo após a maturidade.
Assim, aprendizado e plasticidade são interdependentes e se pode
concluir que a experiência, ao modificar o comportamento, está
modificando algumas sinapses no sistema nervoso, ou vice-versa. Em
decorrência, postula-se que as mudanças plásticas possam ser
os loci responsáveis pelo armazenamento da memória.

Outra abordagem experimental bastante útil para o estudo da


biologia da memória é a farmacologia comportamental, que busca
decifrar como os sistemas neurais participam na sua modulação. A
infusão de substâncias com determinadas ações, em regiões
específicas do cérebro, têm revelado as estruturas cerebrais
envolvidas nos diferentes tipos de memória, assim como os sistemas
de neurotransmissores (moléculas especiais responsáveis pela
comunicação entre os neurônios) envolvidos na consolidação da
memória.

Diferentes etapas são necessárias para a fixação da memória, e


durante um certo tempo após o aprendizado a memória permanece
vulnerável a interferências. A maior parte deste processo de
consolidação se completa nas primeiras horas após o aprendizado. No
entanto, o processo de estabilização da informação armazenada se
estende por um prazo mais longo e envolve alterações contínuas na
própria organização da memória. Toda vez que lembramos de algo
estamos re-construindo e adicionando alguma informação àquele
arquivo de memória.

O conteúdo emocional das memórias também afeta a maneira como


são armazenadas e, portanto, a sua evocação, a facilidade com que
são lembradas. Por exemplo, as pessoas recordam especialmente
bem eventos acompanhados de elevada emocionalidade. As emoções
melhoram a memória declarativa (aquela para fatos, idéias e
eventos, e toda a informação que pode ser trazida ao reconhecimento
consciente e expressa através da linguagem) através da ativação da
amígdala (um conjunto de núcleos nervosos situados nos lobos
temporais). James McGaugh e colaboradores (2), da Universidade da
Califórnia, em Irvine, demonstraram a importância da amígdala na
mediação de memórias emocionais, tanto em animais de laboratório
quanto em humanos. Os eventos bioquímicos relacionados com a
formação da memória podem ser regulados logo após a sessão de
aprendizado em animais, por meio de mecanismos hormonais e
neuro-humorais relacionados ao estresse e à ansiedade, modulando
sinapses GABAérgicas, noradrenérgicas e colinérgicas. E, ainda, vias
nervosas relacionadas ao controle do humor também podem interferir
na formação da memória, incluindo aí as vias dopaminérgicas e
serotonérgicas.

A evocação da memória, por sua vez, não é simplesmente a


reativação de fragmentos distribuídos que constituem o engrama,
representação da informação no sistema nervoso. Pode acontecer que
apenas alguns fragmentos do engrama sejam ativados, ou podemos
confundir pensamentos e associações provocados diretamente pela
mesma dica, e estudos têm demonstrado a falibilidade da memória
humana. Como já comentamos, lembrar implica num processo ativo
de reconstrução e não se assemelha a assistir a uma fita de vídeo do
passado. Além disso, o humor e a motivação também podem
influenciar o quê, e o quanto, nós lembramos; este fenômeno é
denominado de dependência de estado.

LOCALIZAÇÃO DAS MEMÓRIAS Um tema acerca do qual se sabe


muito pouco é o da localização das memórias. São elas localizadas
numa região específica ou distribuídas pelo encéfalo? O psicólogo
Donald Hebb propôs um armazenamento distribuído para a memória.
Há evidências de que não existe uma região única para a memória e
que muitas partes do encéfalo participam da representação de um
evento singular. Isto não significa que todas as regiões sejam
igualmente envolvidas no armazenamento da informação: diferentes
áreas armazenam diferentes aspectos das memórias. Estudos de
lesão, em humanos e em animais de laboratório, e as novas técnicas
de imageamento funcional têm estabelecido, por exemplo, que as
regiões do córtex cerebral que estão envolvidas na percepção e no
processamento da cor, da forma e do tamanho dos objetos estão
próximas, se não forem idênticas, às regiões importantes para a
memória de objetos. Acredita-se que o engrama de uma memória
declarativa esteja distribuído entre diferentes regiões encefálicas, e
que estas regiões são aquelas especializadas para determinados tipos
de percepção e processamento da informação.

Essa distribuição das memórias em diferentes regiões encefálicas


também depende do tipo de memória e do tempo decorrido após a
aquisição da informação. No caso da formação da memória da tarefa
de esquiva inibitória, que tem sido um dos paradigmas experimentais
em roedores, as evidências implicam a ativação de receptores AMPA
(um dos tipos de receptor para o glutamato, um neurotransmissor
excitatório) no hipocampo durante as primeiras três horas após o
treino. Uma cadeia de eventos bioquímicos é acionada no hipocampo
e, pouco tempo depois, diversas estruturas do córtex cerebral
também são ativadas. Para a evocação, porém, as estruturas
necessárias dependerão do tempo transcorrido após o aprendizado:
enquanto o hipocampo é necessário até uns poucos dias após o
treino, já não o será após 30 dias (3).

Considerando ainda o tempo decorrido entre a aquisição da


informação e a sua evocação, a memória pode ser dividida em dois
tipos: de curta e de longa-duração. Uma questão que foi durante
muito tempo pesquisada buscava esclarecer se a memória de curta
duração é uma etapa da consolidação da memória de longa duração,
ou se esses dois processos são independentes. Poucos anos atrás,
Izquierdo e colaboradores (3), utilizando a tarefa da esquiva
inibitória, observaram que tratamentos que interferem com sistemas
de neurotransmissores no hipocampo, ou nos córtices entorrinal ou
parietal, afetam diferentemente esses dois tipos de memória: podem
bloquear a memória de curta duração sem afetar a memória de longa
duração; ou podem alterar ambas de forma distinta (melhorando
uma e dificultando a outra). Tais resultados sugerem, claramente,
que esses dois processos envolvem mecanismos diferentes e, em
certa medida, independentes.

As memórias, porém, não são armazenadas de forma integral e,


mesmo estabelecidas e consolidadas, não são permanentes. Este é o
fenômeno do esquecimento: somos melhores na generalização e na
abstração de conhecimentos do que na retenção de um registro literal
de eventos. O esquecimento é fisiológico e ocorre continuamente,
enfraquecendo o traço de memória do que foi aprendido. De fato,
esquecer é uma função essencial ao bom funcionamento da memória:
seria impossível, e pouco prático, evocar com riqueza de detalhes
todas as informações que necessitamos num único dia.

Na doença de Alzheimer, uma condição neurodegenerativa, o


esquecimento ocorre em grau patológico e prejudica
irreversivelmente a vida cognitiva do paciente. A amnésia afeta,
inicialmente, os fatos recentes e a capacidade de adquirir novas
memórias, e evolui afetando a memória remota do indivíduo: o
reconhecimento dos familiares, os hábitos, as habilidades e, por fim,
a própria identidade. Causada pela deposição de substância amilóide
no parênquima cerebral e pela presença de emaranhados
neurofibrilares (uma estrutura anormal do esqueleto neuronal),
sobretudo nas regiões associadas à fala e à memória, os achados
neuropatológicos do Alzheimer forneceram hipóteses de trabalho que
têm contribuído para o nosso conhecimento sobre a memória: regiões
cerebrais envolvidas, sistemas de neurotransmissores e sua
organização funcional.

Todavia, apesar de todo conhecimento acumulado, as ferramentas


terapêuticas para o tratamento farmacológico do Alzheimer e de
outras demências são ainda pouco específicas e eficazes. A inibição
da enzima acetil-colinesterase e a oferta do precursor do
neurotransmissor mais afetado na doença, a acetil-colina, trazem
benefícios discretos para um grupo reduzido de pacientes. Os agentes
nootrópicos, ativadores dos núcleos aminérgicos do tronco cerebral,
também melhoram o desempenho cognitivo. Porém, como
desconhecemos quais são os mecanismos fundamentais do
armazenamento e da evocação da memória ainda não é possível
tratar com segurança e eficácia os sintomas das demências nem
aqueles comuns ao envelhecimento.

Mas se os fármacos ainda deixam a desejar, é importante lembrar


que a atividade intelectual continuada pode prevenir ou retardar o
aparecimento do Alzheimer, e que a exposição a situações de
novidade facilita a evocação da memória, tanto em pacientes como
em voluntários normais. A detecção e a resposta à novidade
envolvem a ativação do hipocampo e a liberação da beta-endorfina
pelo hipotálamo, um dos peptídeos responsáveis pela modulação da
evocação. Além das possibilidades para o desenvolvimento da
pesquisa, estes achados revelam um fato importante: já que a
manutenção da atividade neural é um dos fatores capazes de
proteger os neurônios da degeneração, a leitura, a prática de
atividades criativas e a disposição em viver novas situações e
conhecer novos ambientes são hábitos de vida muito saudáveis em
termos cognitivos.

O cérebro é uma estrutura em permanente construção, assim como o


são repertório comportamental e as memórias do indivíduo. As
evidências científicas indicam que a plasticidade sináptica é a
responsável pela capacidade de transformação dos neurônios e pela
aquisição das memórias, e que a manutenção de atividades criativas
e estimulantes pode melhorar a evocação da memória; embora
alguns dos prováveis mecanismos já tenham sido identificados,
temos a clareza de que ainda há muito a ser descoberto. A memória
e a plasticidade estão, sem dúvida, entre as mais interessantes e
enigmáticas fronteiras das neurociências.

Carla Dalmaz e Carlos Alexandre Netto são pesquisadores do


Departamento de Bioquímica, Instituto de Ciências Básicas da Saúde
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Referências bibliográficas

1. Squire, L. R. e Kandel, E.R. Memória: da mente às moléculas.


Porto Alegre, ArtMed Editora S.A. 2003.

2. McGaugh, J.L. "Memory consolidation and the amygdala: a


systems perspective". Trends Neurosci; 25(9): 456. 2002

3. Izquierdo, I. Memória. Porto Alegre, ArtMed Editora S.A. 2002.

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