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O AMIGO.

Avenida Philadelfia, setembro, domingo, seis da tarde, eu estava com Lucas,


caminhávamos lado a lado, sem trocar palavras, apenas sentindo a maciez do céu rubro, a
luminosidade nas paredes, as discretas coloração do verde nas árvores, alguns pássaros
fugindo em bando, rumo a lugares fictícios ou ao sul. sentia-me mais leve do que nos dias
anteriores, alegria gratuita de estar ao ar livre, respirando nos pulmões da cidade; comentei
sobre o cenário, Lucas disse que eu estava contemplativo. em verdade, desde minha saída
do hospital psiquiátrico, devotava meu ofício de solidão, para absorver pelos olhos o teatro
do mundo, realizar o salto que falta entre mim e a objetividade; a diferença era que em
companhias eu não estava acostumada a aprender a linguagem das coisas brutas,
regressar ao heroico primitivismo. carros,ônibus, motos, bicicletas, pessoas apressadas: a
vida em sua fluidez natural, longe do atravancamento do meu antigo quarto, onde apenas
tinha enfermeiros e pacientes maltratados. a reclusão me ensinou o sentido de amar. não
por ter sido humana, mas sim por conta de sua desumanidade, percebi escarramentos nos
valores, e decidi me mudar. o valor do cotidiano, a fascinação do sábado, os apertos de
mãos, o honesto suor, os micro problemas que encontramos ao sair de casa, mas sabendo
que podemos suportar, lavar a louça, tomar banho, assistir televisão, isso tudo, aprendi
amar estando recluso. aos poucos entendia a importância da comunhão, e Lucas era ótimo
para comungar. respondi que o estado natural do homem é a contemplação, a alma é um
olho que contempla, mas isso foi apenas parcialmente esquecido por distrações do capital.

chegamos, por fim, a um viaduto, subimos, algumas árvores altas invadiam com seus
galhos o estreito acostamento, nenhum carro passava ali naquela hora. tinha ali uma
grande vista para toda a avenida, e ao longe pedaços da zona norte; tentávamos encontrar
uma posição confortável posto que o sol vinha rente. sabe, Nelson, eu tenho a impressão,
disse Lucas, que meus pais estavam certos e eu não entendia, porque eles me passavam
numa linguagem distinta: a maioria das formas de trabalho é um embrutecimento… quando
me falavam da importância de estudar, creio que eles queriam me livrar disso. eu não soube
o que responder, em solidão havia pensado semelhantemente. a confluência de ouvir
alguma coisa que eu já sabia em partes, existir um correlato entre eu e Lucas, me
emocionou e meu rosto se transfigurou numa pintura romântica. com um gesto dissipei a
inatividade,e disse, acho que foi isso que Maiakóvski também quis dizer com o versos:
‘’​cada um ao nascer traz sua dose de amor, mas os empregos, o dinheiro, tudo isso, nos
resseca o solo do coração​.’’ ​Lucas sorriu, ficava aliviado que eu retomava meus interesses
que haviam antes do meu derradeiro colapso nervoso; da minha parte desconhecia outra
pessoa que eu pudesse brevemente me entreabrir; a escutatória dos outros é péssima, e os
julgamentos inevitáveis.
Lucas para todos os efeitos, era alguém que me encantava com a sua sobriedade e o senso
apurado. tinha defeitos como qualquer pessoa, contudo era de entranhada humanidade, e
isso me conquistava. pegou um galho com a mão, e disse, quando vejo árvores dessa
maneira me desperta o instinto de pular feito um macaco, acho que aprendi isso com o meu
pai. Lucas tinha um relacionamento conturbado com o pai, que era uma figura rígida,
conservadora, moralista, e um homem nos moldes clássicos.
regressando ao lugar onde tínhamos deixado a moto, resolvemos nos sentar num ponto de
ônibus. Lucas apontou um pássaro que rasgava o azul, e disse, eu sempre imagino que um
desses pássaros é o pica-pau migrando com uma mala na mão. soltei uma singela risada.
lembrei de que quando criança assistia o legalista pica-pau, despreocupado, sem saber da
sina que me aguardava, ignorante das mazelas que espreitam um homem na esquina do
tempo. alguém aqui em baixo, eu disse, deve estar com o rifle atirando em pássaros, e logo
o pica-pau irá criar uma algazarra na vida do coitado. sabe Nelson, disse Lucas, senti uma
certa angústia de recordar desse desenho, meu pai quando chegava bêbado em casa,
antes de espancar minha mãe assistia pica-pau passando mal de dar risada. estranho foi
pensar, após a fala de Lucas, que num cenário embutido de significado como naquele
domingo, seria capaz de um homem espancar ou violentar uma mulher. incômodo e
absurdo o pensamento de que somos capazes de degradar o mundo, que sempre foi limpo.
uma náusea percorreu meu estômago, leve tontura, pois naturalmente existe maravilhas,
não obstante como a cultura torna torturante a estadia de tantos e tantas.

tentamos por uns 5 minutos adivinhar as espécies de pássaros que circulavam próximos a
pista de caminhada, comendo grãos, e se assustando com os transeuntes. Lucas, não
ousou perguntar sobre os meses que passei no hospital psiquiátrico, e eu tinha prometido a
mim mesmo, que na segunda vez que saíssemos, eu contaria, mas dessa vez não seria
possível. desnudar-me é de difícil matéria, mesmo com o amigo. passou um casal
abraçado, e o perfume de mulher criou uma aura de sedução e ternura. senti carência. não
comuniquei. o meu desejo era ter alguém nos braços, e embora feliz com a companhia de
Lucas, sentia a necessidade de um contato de outro plano. sensibilidades afloraram.
lembrei dos meus erros para com o sexo feminino. as vezes que eu executei tendências
negativas, e a culpa assomou dentro do meu coração. disse para seguirmos viagem, nos
levantamos e quase chegando na moto, Lucas disse, sabe, Nelson, hoje estou naqueles
dias que quero arranjar uma companheira, domingos como esse me fazem lembrar
Eduarda. seguindo caminho rumo casa, o céu escurecendo, e a perda do meu contato com
o natural. precisei sempre do dia, para aguçar meus sentidos observatórios. após chegar
em casa, decidi que no outro dia iria procurar um serviço, um entusiasmo me dominou, e já
me via trabalhando, casado, estudando em uma universidade pública. esquecendo
definitivamente meu passado turbulento.

na manhã seguinte, tomei um banho implacável, vesti minha melhor roupa, tomei dois
ônibus, fui ao shopping iguatemi, procurar serviço. em cinco lojas não estavam aceitando
currículos. enfim, consegui uma entrevista no mesmo dia numa loja de roupas. aguardei
cerca de duas horas, andando pelo shopping e reparando nas pessoas despreocupadas.
caminhava contente por causa da oportunidade, positivamente ansioso, querendo fazer
disso, uma ruptura com o antes, desmantelar o anterior. Nelson, começa aqui uma nova
jornada, hoje se rompe os laços com a miséria do passado, uma reestruturação já deu
início! o fulminante horário chegou. o balanço da memória vagarosamente percorrendo os
momentos de desprazer, e anunciando um novo tempo. um senhor de cabelos grisalhos,
porte robusto, roupas sociais, um olhar inquiridor, conduziu a entrevista. transcorria de
maneira fácil, apesar do meu nervosismo. pediu minha carteira de trabalho. perguntou
porque estava parado a nove meses. um solavanco interior me assaltou. ingenuamente
confessei: estive internado num hospital psiquiátrico. o entrevistador olhava fixamente ao
meu currículo; efetivou uma interjeição de quem organiza o que será dito. encarou-me com
uma expressão que não consegui traduzir, e disse que entraria em contato na próxima
semana. despedi-me melindrado, confuso, vergonhoso de mim mesmo, antecipando que
tudo daria errado. ao sair ainda olhei para trás- o entrevistador amassou e depois fez do lixo
um alvo para o meu currículo

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